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A MORTE RECLAMA SEUS IMPOSTOS

Romance
ROGÉRIO CARVALHO

A MORTE RECLAMA SEUS IMPOSTOS

Romance
Revisão: Eva S.M.Silva - +55 31 991154338
Fotografia: Luis Hang +55 31 992889911
ISBN: 978-85-5522-0982
SUMÁRIO

EU ME CHAMO... 9

A PRIMEIRA IMPRESSÃO 21

O ENFERMO 33

A DEFESA DE MARCELE 47

A ACUSAÇÃO DE PAUL 63

O ENCONTRO 77

A REVELAÇÃO 95
EU ME CHAMO...

— Olá, caro leitor, escritores e simpatizantes!


Estou aqui para reclamar o que me é de direito. Por
favor, mantenham a calma! Não digo estas
palavras aos ouvidos de vocês apenas para lhes
assustar, pois não é este o meu objetivo. Eu as
lanço no ar para todos, puramente por prazer. Sim,
sinto prazer! Sinceramente me alegro ao ver as
suas feições quando falo que estive — e que estou
o tempo todo — andando e observando as
besteiras que os homens praticam. Sei de todas as
mazelas realizadas diariamente, conheço
miudezas. Quando iniciei meu trabalho de
observação, precisei caminhar com alguns colegas
mais dotados de experiência. Desde então,
desenvolvi minha própria forma de agir e colher
informações. Por isso consegui galgar até um dos
cargos mais altos dentro da empresa. Claro que foi
mais abaixo do dono, sob a sua autoridade. Cometi
alguns erros, fui chamado à atenção; tratei de
corrigi-los e não mais os cometi. Não sei
exatamente o que o proprietário viu em minha
pessoa; pois, alguma coisa em meu modo de
trabalhar, conquistou definitivamente sua empatia
por mim. Gratidão! Não sei bem se esta é a palavra
que devo usar para definir tudo e todos desta
família. O que penso e sinto é imensurável. Por
isso sou rígido, detalhista, respeitoso e cumpridor
de todos os meus deveres. Não aceito baixo
rendimento nas tarefas da empresa. Os horários
são cumpridos fielmente e as metas também.
Sempre advirto meus funcionários: não se
envolvam com aqueles que estão do outro lado em
hipótese alguma. A ordem é: tomem cuidado! Não
entrem em terrenos que não sejam seus. Se assim
o fizerem, não contem com nenhum tipo de ajuda.
Ao contrário, quando chegarem aqui, serão
humilhados, envergonhados e não terão direito a
defesa. Antes de ganharem campo para o trabalho,
estudem as áreas de atuação, observem os
gráficos e peguem suas porções diárias de
alimento. Não quero saber de empregado parado,
para se alimentar, em lugar algum. Nós não
fazemos as mesmas coisas que os outros, somos
muito diferentes. Não podemos gastar, ao
contrário. Temos que juntar mais e mais impostos
para prestar contas ao chefão. Antes de saírem,
devo alertá-los de que o responsável por esta
empresa está de olho em tudo; por isso não façam
besteiras e sigam o manual corretamente. Avisarei
vocês sobre qualquer ação fora do padrão ou
regulamento; em seguida, terão que prestar contas
diretamente a ele. Para quem não sabe o nome
dele, faça-se agora conhecido: “Diabo”. Ele, como
vocês já devem conhecer, é um homem de muita
experiência. Esteve com o Poderoso durante a
criação. Foi humilhado ao pedir uma pequena
porção da adoração que o outro possuía. Tudo lhe
foi negado. Foi completamente desprezado,
lançado para fora do reino. Tudo bem que ele
tenha merecido, pois é ousado. Tiraram todo o seu
brilho. Séculos se passaram desde que o nosso
patrono se colocou de pé. Agora, os que estão do
outro lado disputam conosco os impostos. Fomos
nós que desenvolvemos esta arte; por isso, sempre
saímos à frente deles. Se alguém tem alguma
dúvida, por favor, faça-se conhecer neste
momento. Alguém?!
Tomei coragem e surpreendi a todos.
Ninguém era destemido e ousado a ponto de fazer
perguntas, pois eram ensinados a estudar, a
dominar todo o manual. Mas eu me atrevi:
— Permita-me, por favor, expor uma dúvida.
O meu superior sorriu e falou brevemente:
— Enfim, um jovem corajoso apareceu. Fale
filho das trevas!
— Como saberemos quem são os do outro
lado?...
Neste momento, todos se viraram para mim.
Começaram a murmurar, por causa da minha
coragem em querer saber quem eram os do bem,
os da luz. Meu superior me interpelou diretamente:

— Por que quer saber, reconhecer quem são


eles? Aposto que também queira saber como se
vestem, o que eles comem e o que praticam nos
horários de intervalos de trabalho.
Os risos correram soltos pelo salão e ecoaram
nas profundezas do Palácio Infernal.
Até o Diabo ouviu, mas continuei firme nas
minhas afirmações:
— Para saber evitá-los; ou até mesmo
combatê-los, se necessário for. Não faço tais
perguntas por vaidade.
— Meu maligno jovem cobrador de
impostos... Admiro sua postura. Nunca presenciei
alguém com coragem de me perguntar sobre este
assunto. Você é o primeiro em séculos, acredite.
— Fiz esta pergunta por saber, por meio de
um manual antigo (por sinal, encontrado em um
dos nossos departamentos inferiores), como eles
agem. Não sei como são, mas imagino que se
vistam completamente diferente de nós.
— Notei sua insistência e determinação,
quando me interrompeu. Gosto de homens que
nada temem, mas tome cuidado. Guarde a sua
impetuosidade, para evitar problemas. O que
posso dizer é que saberão reconhecê-los com o
tempo. Sejam pacientes; mantenham a calma e,
por hora, curtam a festa no Palácio Infernal, pois
ela começará assim que eu for avisado da chegada
do nosso anfitrião. Devo alertá-los: não mexam
com as mocinhas que o acompanham, pois são
propriedades exclusivas dele. Jamais cometam a
burrice de, em dado momento, beliscar a bunda
das princesas do patrão. O risco de padecerem
depois, no sofrimento eterno, é gigantesco. Outro
detalhe: qualquer tipo de pergunta deve ser
direcionado para mim, primeiramente. E,
principalmente: não ousem tocar nas vestes das
mocinhas, pois vocês serão mal interpretados.
— Quando iremos a campo? Em qual região
atuaremos?
— Meu caro jovem... Observo que você é
impaciente. Calma! No momento apropriado, terão
informações sobre a região onde atuarão.
— Entendo... Li no manual, que a Morte se faz
presente em todas as ocasiões.
Neste exato momento, o chefe encarregado
coçou a orelha direita, fechou as mãos como se
estivesse esmagando algo — soltando fogo pelas
narinas; e demonstrando feição de preocupação,
começou a andar pela sala.
— Ela sim é um problema! É muito astuta,
sutil e corajosa. Fiquem atentos a todos os passos
dela. Não se metam com a infeliz em hipótese
alguma. Não enviarei legiões para socorrer vocês,
pois sei que será em vão.
— E o que faremos se ela agir?
— Luz e trevas não podem contra ela! É
oportunista, sempre leva nossos impostos (apesar
de já ter dado vários tombos nos seres angelicais
brilhosos). Esqueçamos esses entraves por
enquanto, pois, em breve, nosso anfitrião
adentrará por estas altas e maravilhosas portas.

Então, todos conhecerão seu poder, plenitude


e majestade.
— Devo insistir na pergunta, pois não desejo
voltar sem os devidos impostos. O que fazer, caso
ela se intrometa em nossos negócios? Não percebi
no manual nenhuma ordem direta para agir contra
ela.
— A bem da verdade, naquele manual não
existe coisa alguma sobre tal assunto. Sabemos
pouco sobre o modo como ela age, ou o quanto
sofreríamos, caso ela tentasse algo contra nós. Por
isso, seja cauteloso. Simplesmente se afaste e
jamais tente confrontá-la.
— Durante o nosso treinamento, nos andares
inferiores do Palácio Infernal, gastei imenso tempo
em pesquisas sobre o assunto. Percebi que
algumas páginas do nosso livro maligno, que eu
estudava minuciosamente, foram arrancadas. Por
que isso aconteceu? Quem fez isso? O chefe
saberia dizer? Este infeliz já foi castigado?...
— Vejamos: sobre ela, temos poucos
detalhes. Sabemos apenas que já foi vencida pelo
outro lado. Em relação à sua pergunta, posso dizer
que não sabemos quem arrancou tais páginas ou
por que o fez. Mas temos consciência de que esse
livro maligno chegou até nós faltando páginas, ou
seja, isso não foi praticado aqui, em nossa casa.
Devo lhe informar sobre a existência de uma
biblioteca para assuntos reservados; por sua vez,
ela é acessada somente por nosso patrão.
Prometo verificar depois, junto a ele, sobre esse
assunto. Então, por agora, vamos esquecer este
problema.
— Ouvi dizer que apenas duas pessoas
venceram a Morte. Isto é verdade?
— Por que você insiste nesse assunto meu
jovem?! Isto é bobagem, puramente uma lenda!
Pare de me infernizar!
— Em alguns departamentos inferiores, não
me permitiram pesquisar sobre o fato.
Por que não posso me aprofundar?
— Desista deste “angu com quiabo”. Nada
disto te servirá, é puramente meloso. Apenas se
comprometa em cobrar nossos impostos.

— Por que Lázaro e o Filho de...?


— Cale-se imediatamente ou eu prometo te
levar agora à presença do Diabo! Cale-se, criatura
do Palácio Infernal! Nunca mais tente, nem ouse
falar o nome do Filho...

Você será fulminado. Se você expressar esse


nome mais uma vez, prometo que castigarei todos
os seus parentes por séculos. Quanto ao Lázaro,
são apenas histórias que os cristãos contam, não
apresentando evidência de que o fato tenha
ocorrido. Por isso, ordeno que esqueça estas
histórias.
Naquele momento observei o chefe pegar,
sobre uma maravilhosa mesa de cristal, um pote
contendo enxofre. Ao abri-lo, deu uma cheirada
profunda; soltando, em seguida, fogo pelas
narinas. Ninguém na sala sorriu. Todos ficaram em
silêncio e de cabeças abaixadas. Mas insisti na
pergunta, sendo logo beliscado por um colega de
função, cuja finalidade era a de me calar. Foi em
vão...
— Será que o nosso chefe possui algumas
informações sobre a Morte, já que eles são da
mesma época?...
— Se você tentar fazer alguma pergunta ao
Diabo, ou sequer levantar algo sobre esse assunto,
será punido por mim, acredite. Depois de Miguel,
sou eu o mais forte. Garanto-lhe: sofrerás
eternamente. Não haverá espaço na casa para
você. Diga-me: qual o seu nome, caro jovem
cobrador de impostos?
— Meu nome é Paul!
Neste momento o superior foi interrompido
para receber um aviso.
— Comunico que o Diabo, nosso chefe,
acaba de chegar e está na sala de preparação,
acompanhado por deliciosas moças; inclusive,
bebendo vinho num cálice de ouro, cheio de
soberba.
— Mande entrar os convidados. Em seguida,
irei à presença dele, a fim de pedir permissão para
anunciá-lo.
— E nossas dúvidas?...
— Paul... Acho bom você ficar calado, meu
jovem cobrador! Não quero e não devo importunar
nosso anfitrião com perguntas desnecessárias.
Principalmente hoje, no dia em que ele completa
mais um milênio no exílio.
— Reconheço a sua autoridade e a dele. Não
estou aqui para desafiá-los, nem posso. Apenas
faço perguntas para sanar minhas dúvidas e,
possivelmente, a de outros colegas, que não
possuem coragem para fazê-las.
— Sei disso! Por favor, contenha seus
questionamentos por um breve momento, pois as
Altas Autoridades acabam de chegar. Aproveito
para esclarecer: trata-se daqueles que ganharam
este título por terem lutado com Miguel durante
horas, dias, meses e anos; e que não foram
aprisionados no poço infernal.
— Existe poço infernal?!
— Sim, meu jovem cobrador de impostos.
Bem... Aproveitem a festa, enquanto recepciono o
Diabo. Depois falaremos com mais detalhes sobre
este assunto. Por hora, vamos nos alegrar.
A PRIMEIRA IMPRESSÃO

Os convidados da grande festa começam a


entrar pela porta principal. Roupas belas, perfumes
equilibrados, música adequada ao ambiente e o
principal: comida e bebida à vontade. Neste
momento o superior saiu de cena. Não perdi
tempo, comecei a curtir a festa. A sala na qual
estávamos era muito confortável, com ar
condicionado, lindos quadros de mulheres nuas,
confortáveis sofás de veludo escuro, luz ambiente
adequada, tapete vermelho, alguns camarotes
para as Altas Autoridades e também lindas e
perfumadas mulheres — cujos decotes dos
vestidos chegavam até o umbigo. Excitei-me por
um breve momento, mas logo me controlei.
Observei que todas elas, sem exceção, usavam
sapatos com salto alto e saias curtas; e nenhum
vestígio de calcinhas por baixo. Imaginei
maravilhosas as tais “partes de baixo”; tendo
certeza disso bem mais tarde, depois do banquete.
Os seios perfeitos, belos e grandes, não eram
permitidos ficarem à vista na sua totalidade, a fim
de não tirar nossa atenção do serviço a ser
prestado. As mulheres se comportavam
perfeitamente, obedecendo à ordem emitida pelo
superior: “Sexo, só depois do expediente”;
passados alguns minutos, ele mesmo retornou
para nos entregar algumas pastas com os objetivos
a serem alcançados, as ordens a serem seguidas
e o local onde atuaríamos. No trabalho de campo,
não era permitido desviar a atenção por nada. As
nossas vestes não podiam ser alvas como a neve,
mas deviam estar impecáveis para o serviço.
Cheirar mal era estritamente proibido. Todos, sem
exceção, deveriam usar perfume; e estes, por sua
vez, suaves. Aparelhos e sistemas como: tablet,
computador, internet e telefone celular não eram
considerados aceitáveis na empresa. O
responsável pelo nosso departamento nos dizia
que, antes de tudo isso aparecer, nós
trabalhávamos melhor e rendíamos mais do que
hoje, e que por isso ele adotou o método antigo.
Era expressamente proibida a utilização de
qualquer tipo de comunicação que não fosse a
anterior, ou seja, o recado transmitido oralmente.
O empregado pego fora do padrão era punido
rigorosamente. Após o sermão do superior —
aplicado para todos do departamento — fomos
interrompidos pelo anúncio da entrada do nosso
mentor, que era responsável pela empresa e dono
de todo o Império: o Diabo. De estatura mediana,
apresentava cabelos bem penteados, lisos e
escuros; sobrancelhas perfeitas, bem talhadas;
barba cuidadosamente aparada; tinha as unhas
feitas e arredondadas; trajava um terno impecável.
O perfume que usava superava todos os demais.
Seus passos firmes, harmoniosos, demonstravam
a superioridade que mantinha. As mulheres que
nos serviam pararam no momento exato em que
ele entrara. Todas, sem exceção, correram para
recepcioná-lo. Nenhuma delas se atrevia a lhe
dirigir a palavra, apenas sorriam com alegria e sem
fingimento. Observei: verdadeiramente, elas o
amavam. Não o amor fantasioso, mascarado,
interesseiro, demonstrado por alguns humanos;
mas singelo e genuíno. Num determinado
momento, o Diabo parou e, como de costume,
quebrando o protocolo, pegou pela mão uma das
mocinhas e iniciou uma carinhosa conversa com
ela:
— Olá, querida, tudo bem?
Ela olhou para o superior como se pedisse
permissão para falar; ele apenas balançou a
cabeça em forma de aprovação. Em seguida, foi
desenvolvendo a conversa pausadamente:

— Sim, estou bem, ó majestoso!


— Qual é o seu nome? Espere... Não diga! Sou
bom adivinhador e também um bom observador.

Passados alguns segundos a resposta veio,


corretíssima:
— Caroline! Muito bonito o seu nome. Sem sua
calcinha vermelha, sua parte intima mostra-se
maravilhosa. Querida, por favor, vá até meus
aposentos mais tarde e leve duas amiguinhas com
você; porém, passe antes pela sala de preparo a
fim de saber como proceder diante de mim e
também verificar que vestimentas serão
obrigatórias antes de adentrar no meu quarto.
— Sim, majestoso, irei!
Continuou sua caminhada até o ponto onde
desejava chegar e trocou algumas palavras com o
seu superior:

— E então, como estão os novatos? Já


preparados para o serviço?
— Sim, patrão! Conforme o regulamento.
Neste momento, com um pequeno aceno de
mão, o superior liberou as mocinhas, a fim de que
saíssem da sala. Seríamos revistados pelo patrão
exatamente como um pelotão de soldados é
observado pelo comandante da tropa e seus
generais. Assim sendo, elas deixaram o local
silenciosamente; não sem antes, uma a uma,
beijarem a mão do Diabo.

— Meus queridos diabinhos cobradores de


impostos, gostaria de ouvir vocês! Por favor, me
informem seus nomes e a função que deverão
exercer nas regiões para a qual serão enviados.
Chegada a minha vez, novamente surpreendi
a todos, principalmente o anfitrião:
— O meu nome não precisa ser dito; uma vez
que vós, ó majestoso, é o maior e o pai da
adivinhação. Certamente, já deve saber quem eu
sou...
— Seu infeliz, como ousa se dirigir assim ao
majestoso?!
Após proferir estas palavras, o superior se
levanta raivoso. Rangendo os dentes, pega um
chicote sobre a mesa de vinhos e parte em minha
direção ferozmente, para me atacar. Só não
concluiu a intenção por causa do Diabo; e
erguendo a mão direita, sinalizou ao superior que
ele deveria aguardar um momento.
— Gostei de você, meu jovem! Por favor, se
achegue mais...
O superior ainda tentou se dirigir até mim,
mas foi impedido por ordem direta do Diabo:
— Pare! Deixe este jovem se expressar. Mais
perto, meu jovem diabinho...
Aproxime-se! Caminhei em direção a ele sem
nenhum receio.
— Caro principiante, diga-me qual função irá
exercer e por quanto tempo ficará nela. Por acaso
almeja alguma função mais relevante na empresa?
— Majestoso, a função a ser exercida por mim
será a de recolher as almas no setor dos
mentirosos, enganadores, trapaceiros e adúlteros.
Ficarei por meio milênio nesta função. Quanto à
segunda pergunta: sim, almejo chegar ao cargo de
superior.
— Insolente!! Desejas o meu cargo?! Afinal,
quem você pensa que é, ó filho das trevas?!
— Assim como o majestoso deseja ser
adorado por todos, também ambiciono por isso; e
estou certo de que alcançarei cargos mais altos,
principalmente o de chefe superior — certamente
que abaixo do vosso.
— Muito bem! Superior: a partir de hoje,
coloque este destemido jovem em outra função.
— Majestoso, me permita dizer: ele é apenas
um novato coberto de entusiasmo e emoção, sem
nenhuma experiência de campo, primordial para o
aprendizado — e sem “papas na língua”, devo
afirmar.
— Sei disso, mas admiro-lhe a coragem. Por
tal razão, eu o quero na linha de frente.
— Sim, Majestoso! Sua vasta experiência me
conduz; sua ordem será cumprida rigorosamente,
e sua vontade será realizada.
— Preciso dele na zona vermelha, pois
naquele lugar há um grande problema: nos últimos
dez anos, nós perdemos vários impostos para
“aquele Senhor”. E para piorar, eles têm reclamado
que também estão perdendo para nós.
— Isso é muito estranho, majestoso!
— Tenho ciência desse fato! Pois muito bem!

Quero que ele parta imediatamente e tente


descobrir o que está acontecendo. Não quero
pensar que “aquele Senhor” e os seguidores dele,
estejam mentindo só para aumentar os próprios
impostos. Sei que Ele nunca mentiu - e não mente!

Será que alguns dos seguidores dele se


rebelaram?! Bom... Se assim foi feito, devemos
trazê-los para o nosso lado, imediatamente.
— Sim, majestoso! Mas em caso de
confronto, o que ele deverá fazer?
— Deixe que eu diga - interferi. Tocarei os
sinos de combate para que enviem ajuda e entrarei
em luta contra o meu oponente, ainda que seja o
arcanjo Miguel.
— Fui eu que fiz esta pergunta para o
majestoso. Como ousa tomar a frente e responder
por ele, seu linguarudo?! Insolente!! Será
eternamente castigado por mim...
— Excelente, meu jovem! Gosto de guerreiros
do seu porte. Por isso, antes de ir para o local
informado, passe no harém. Faça sexo e... Depois,
traga-me retorno da situação, tão logo possa.
Superior, sugiro que tenha calma com este jovem.
Ele se parece muito com você, quando você era
mais jovem, lembra-se?!
— Sim, majestoso, sei disso! Perdoe-me...
— Caríssimo... Você não errou! Tais guerreiros
apresentam o reflexo de suas próprias
personalidades: são fortes, corajosos e
destemidos. Assim sendo, vá logo, meu jovem
guerreiro das trevas! Vá! Depois, traga-me
respostas dos problemas que já ocorrem há
décadas.

— O majestoso gostaria que eu trouxesse o


ladrão de impostos acorrentado, humilhado? Ou eu
deveria cortar seus braços e pernas?!
— Traga-o ultrajado e, se possível, algemado.
Mas não fira o corajoso gatuno mortalmente. Eu
mesmo aplicarei a punição no sujeito. Este infeliz
acha que pode me roubar e ficar impune, mas não
será assim. Mostrarei a todos como trato os
ladrões de impostos.
— O majestoso quer que eu mande preparar
um local propício ao sofrimento deste infeliz?
— Não precisa. Eu o castigarei na frente de
todos. Enviarei um convite formal ao Palácio
Infernal, para que presenciem o vexame que farei
sentir este sujeito. Por hora, minhas diabinhas e eu
descansaremos. Tão logo o prisioneiro chegue,
avise-me!
— Sim, majestoso, eu o avisarei. Aproveitarei
para fazer um excelente banquete, num ambiente
repleto de sensualidade e luxúria, para exaltar o
poderio dominante de vossa excelência.
— Faça conforme a sua administração, meu
caro!
O ENFERMO

Minha licença para sair do local foi concedida.


Retirei-me diretamente para o harém, escolhi uma
linda mulher, entrei para o quarto segurando sua
cintura e deliciei-me com seu corpo. Assim que
terminei, sem perda de tempo desloquei-me para o
local informado pelo majestoso: um prédio enorme,
onde havia vários quartos. No primeiro andar havia
uma excelente recepção, com lindas mulheres;
algumas delas aparentavam desgaste causado
pelo tempo, mas ainda estavam em boa forma — e
cujos seios turbinados apontavam para mim,
excitando-me. Vã atitude, pois era meu primeiro dia
de trabalho e eu estava decidido a resolver este
problema, buscando angariar elogios do dono da
empresa. Visualizei o elevador. Dirigi-me para ele,
entrei, o ascensorista apertou o sexto andar; o
elevador deslocou-se rapidamente. Um sinal,
indicando o andar, soou breve e ríspido. Saí do
elevador, olhei para a esquerda procurando o
número do quarto: estava na direção contrária.
Segui por um longo corredor até chegar bem
em frente ao quarto de número 66, de onde
exalava um suave aroma floral. Antes de entrar,
verifiquei os dados contidos no envelope que me
foi dado, a fim de evitar erros:
— Pronto, é aqui! Resolverei logo este
problema.
Girei a maçaneta, abrindo a porta do quarto.
Escutei algumas vozes, achei muito estranho e
pensei: - Espere um pouco... Meu relatório diz que
um homem está em coma... Será que encontrarei
alguém “do lado de lá”?!
Logo ao entrar, dei de cara com uma linda
mulher sentada ao lado do enfermo, enquanto
observava a televisão ligada. Pensei que fosse da
família, mas enganei-me completamente:
— Pare aí mesmo! No dê mais nenhum
passo, filho das trevas! Quem é você?! O que faz
aqui?!
— Me responda primeiro, filha da Luz! Por
que está aqui?!
— Vim resgatar a alma deste homem para o
céu — disse serenamente.
— Agora compreendo a razão para tantos
débitos de almas neste setor... Escute aqui,
mocinha: esta alma é nossa. Você não a levará
para os céus!
— Vai tentar me impedir?! — tornou ela em
minha direção. Arrepender-se-á!
Ela se levanta pronta para o embate,
caminhando até onde estou. Nossos ânimos se
alteram, trocamos mais algumas palavras e...
Quando estávamos prontos para o confronto,
fomos interrompidos por um desconhecido. Num
rompante, ele penetra quarto adentro assoviando
tranquilamente. Portando uma sacola a tiracolo,
inicia um cântico de tom sarcástico:
— “Nem um, nem outro/ Nem um, nem outro/
Levará esta alma sem a minha permissão/ Pois vim
reclamar meus impostos”.
Então complementou, satisfeito:
— Por favor, aquietem seus ânimos, lindos
anjinhos!
— Quem é esse cara?! — indaguei. Saia logo
daqui, você não foi convidado a comparecer neste
lugar!
— Mocinho, mocinho... Tenha mais respeito!
Eu sou bastante conhecido nesta região.
Num instante a Morte se adianta, estende a
mão e nos cumprimenta.
— Quero lembrar ao doce e amável casal:
vocês formam um par bastante charmoso. É um
grande prazer conhecê-los: eu sou a Morte!
Ela diz estas palavras, rindo. Em seguida,
retira um saco de pipocas bem grande de dentro
da sacola, abre, começa a comer e nos oferece em
seguida...
— Como eu estava dizendo, ninguém pode vir
até meu “quintal”, me afrontar, ou tentar sequer
levar alguma alma sem a minha permissão.
A filha da Luz e eu olhamos para a Morte
tranquilamente. Mas, devo confessar que, pela
primeira vez, fiquei assustado com tal informação.
Não imaginava encontrá-la assim, principalmente
comendo pipocas.
— Acaso você tem o controle da situação?
— Tenho sim, meus jovens anjinhos! Querem
pipoca?!
Então, de maneira divertida, joga pipoca em
nós. Por várias vezes tentamos nos esquivar delas.
Infelizmente, em vão.
— Bom... Pelo regulamento comum ao Céu e
ao Inferno, seus funcionários só podem recolher as
almas depois que eu reclamar os devidos
impostos. Portanto, sente-se com a sua bunda
fedida na cadeira que se encontra à sua direita,
mocinho do mal; quanto a esta mocinha, que se
mantenha na do lado esquerdo, em silêncio.
A Morte sobe em cima da cama do paciente.
Retira-lhe o travesseiro, utilizando-o para si;
acomoda-se na cabeceira oposta, após deixar o
saco de pipoca sobre uma pequena mesa; estende
os braços, espreguiçando-se vigorosamente; leva
a mão ao bolso da calça, retira um lenço com um
desenho de ursinho, soa nele o nariz, deposita-o
sobre o paciente; em seguida, após alguns
bocejos, simplesmente adormece.
Aproveito o sono da Morte para falar do
doente: este homem, a partir dos 12 anos de idade,
viveu a vida de forma bem desregrada,
envolvendo-se em várias brigas. O indivíduo, certa
vez, ficou bêbado a ponto de cair em um canteiro e
dormir na rua, quando tinha apenas 15 anos de
idade — já tendo curtido todas as “baladas”
possíveis. Tornou-se viciado no tabagismo ainda
jovem, aos 11 anos de idade: começou com um
“cigarrinho de palha”, evoluiu até os cigarros de
filtro, depois maconha, e, por último, passou a
cheirar cocaína. Mantinha um “corpinho” de 110
Kg, sem fazer esforço algum. Para isso, bastava
uma alimentação gordurosa, salgada, regada a
muita bebida e exageros. Participava
constantemente das “orgias controladas”, pagas,
com belas mulheres, utilizando diversos
entorpecentes — e, devo salientar, mantendo
relações sexuais sem o uso de preservativos.
Nunca fez exames médicos para saber da sua
saúde. Ele, sambista por excelência, não
dispensava uma mulata — ou mulato; pois,
conforme lhe apetecesse, “cortava para os dois
lados”. Certa vez, acordou com fortes dores no
estômago e notou que ela piorava dia após dia.
Correu até um consultório para saber o que estava
acontecendo. O médico solicitou-lhe exames de
sangue, cujos resultados apontaram prontamente,
de forma dolorosa e angustiante: “Câncer”.
Infelizmente, a doença já havia se apossado dos
seus pulmões, rins e fígado; e, completando a
tragédia, também foi detectado o vírus HIV. Ainda
assim, não se preocupou com a notícia. Ao sair do
consultório, entrou num restaurante e pediu uma
refeição caprichada, contendo bastante fritura.
Uma dose dupla de uísque sem gelo, e uma
sobremesa deliciosamente açucarada,
completaram o exagerado cardápio; enfim, fartou-
se de tudo o quanto era possível. Não posso deixar
de contar que, mais tarde, voltou para casa
tranquilamente; no mesmo dia em que recebeu de
sua esposa uma nova má notícia:
“— Estou com Aids...
“Ele, calmamente, apenas procurou confortá-
la:
“— Acalme-se meu amor... Não acredite em
todas as bobagens que esses médicos anunciam.
Você não pode estar com o vírus da Aids... Eu
nunca me envolvi com outra mulher, por isso
minha consciência está tranquila.
“— Querido, eu confiei em você durante anos!
não posso acreditar que tenha transmitido esta
doença para mim... Por que fez isso?! Você me
traiu?!
“— Pare com essas bobagens! não fiz nada,
acredite em mim. Você é a única mulher na minha
vida!”
Para completar a tragédia, uma senhora bem
idosa bate na porta da casa dele. Tal senhora,
sendo atendida pela esposa, anuncia que uma bela
jovem deixou uma criança em sua pobre casa,
dizendo tratar-se do filho do marido dela. A esposa,
ao receber tal notícia, desmaia; bate com a cabeça
ao chão, adquire um Traumatismo
Crânioencefálico e morre três dias depois, no
mesmo hospital em que ele se encontra agora.
Breve silêncio se faz. A Morte mal espera a
deixa, argumentando rapidamente:
— Muito obrigado, ”Diabinho”, por aproveitar
minha sonolência e anunciar aos leitores daqui, tão
primorosamente, os detalhes a respeito desse
irresponsável. E agora?
Vocês finalmente me permitirão trabalhar?
A filha da Luz olhou-o tranquilamente, dizendo:
— Ora, termine logo esse trabalho! Saiba que
eu levarei para o céu a alma desse homem. Não
devemos perder tempo com detalhes...
— Nada disso! — desaprovei — Ele é nosso,
pertence ao Palácio Infernal.
— Antes disso — disse a Morte, ignorando-
me e dirigindo-se à filha da Luz. – Diga seu nome,
meu amor, pois imagino que os leitores talvez não
tenham conhecimento da existência de anjos
“femininos”.
Eu novamente interferi:
— No nosso palácio Infernal existem
maravilhosas “diabinhas”. Mas no céu, sob a forma
feminina?! Mesmo eu desconhecia que se
apresentassem sob a figura de uma mulher...

— Pelo que posso observar, seu chefe enviou


um inexperiente para cá. Meu nome é Marcele! E o
seu, qual é?
— Ora, ora, ora! — interveio a Morte,
ironicamente — Posso sentir um clima de amor
bailando no ar, entre a treva e a luz; e juntava as
mãos, passando-as por cima uma da outra, rindo e
falando sozinha:
— “Treva e luz... Luz e treva... Como pode ser
isso?!...”.
Não pude me conter, quase gritei.
— Cale-se imbecil, faça seu serviço logo! —
e virando-me para Marcele — Meu nome é Paul e,
como já sabe, pertenço ao Palácio Infernal.

A Morte não se importou comigo. Abriu um


saco de batatas fritas, que encontrou sobre uma
bolsa, bem ao lado do paciente, e começou a
comer. Não sem lançar, enquanto isso, algumas
batatas para cima e em nós. Mastigava com a boca
bem aberta, enquanto restos das batatas caiam
sobre o moribundo. Mal acreditamos no que
estávamos presenciando, de tão bizarro que era.
Rejeitamos tal ato balançando vigorosamente a
cabeça, de um lado para o outro. A Morte
desrespeitava o doente, mas, nitidamente, parecia
não se importar com isso; apenas aproveitou-se
para pegar o “lenço de ursinho” que havia deixado
sobre ele, guardando-o no bolso da calça, logo em
seguida.
— Marcele e Paul, vocês formam um lindo
casal! Acho sinceramente maravilhosa, tal relação
amorosa. Vou fomentar ainda mais. Pois, caso
prefiram, podem me chamar por “Padre Félix”.
Vocês trouxeram as alianças? Querem que eu
retire o doente da cama para vocês possam utilizá-
la melhor, nela se amando? Posso observá-los se
beijando? Um beijo, somente, vá? Por favor, sim?!
— Disse isso sorrindo entre os dentes; numa
ironia ácida, em forma de insulto.
— Deixe de gracinha — eu disse,
rispidamente — respeite-nos! Não estamos aqui
para ouvir suas bobagens. Pare de comer sobre o
doente! Faça logo seu serviço, não podemos
perder tempo.
— Sim, concordo com o Paul! — inteirou
Marcele — Há quanto tempo vem nos enrolando?
— Não enrolo ninguém. Na verdade, percebi
o quanto vocês lucram exageradamente. Por isso
tomei a decisão de participar mais, contemplando
a oportunidade de mais lucro, podendo reivindicar
o que é meu por direito.
— Espere um pouco aí... Responda-me ou
não me chamo Paul! Quer lucrar à custa daquilo
que é nossa propriedade?! Que direito julga ter
sobre isso?!
— Não julgo de maneira alguma. Faço isso
por prazer, não apenas pelo direito que me assista
ou não. Pelo que pude observar você não
entendeu nada do que eu disse. Vocês mantém a
posse do excesso de impostos. Apenas tomei a
frente e declaro que este setor é meu, porque faço
o que quero, na hora que desejo, e pronto! Quanto
a possuir direitos, tenho muitos deles. Vocês
desconhecem completamente este assunto, e me
julgo no direito de não os revelar, até o presente
momento. Agora, se querem levar esta alma daqui,
sugiro que se defendam como num tribunal.
Primeiro, quero ouvir a Marcele; depois quero
ouvir você, Paul. Julgarei ambas as defesas
apresentadas e darei o veredito a quem mereça
tomar posse da alma desse enfermo. Paul e
Marcele, Marcele e Paul, meus dois amores! Devo
lembrá-los de que devem ser firmes e bastante
coerentes em seus argumentos, a fim de
convencerem a mim. Caso contrário, sairão de
mãos vazias e com direito a um bom chute no
traseiro. Prestem bastante atenção, pois falarei
apenas uma vez. Funcionará da seguinte forma:
primeiramente, Marcele apresentará a sua defesa;
no decorrer desta defesa, você, Paul, fará os
apontamentos que considerar necessários e
coerentes. Em seguida, faremos uma pausa para o
almoço; e, logo após, você, Paul, desenvolverá a
sua defesa, e ouvirá as acusações de Marcele.
— Certo, entendi! Caso não aceitemos entrar
nesse jogo, o que você fará?
— Eu o enxotarei deste lugar, juntamente
com a Marcele. Efetuarei corretamente os
procedimentos que me cabem, recolherei meus
impostos sem a necessidade de mínima satisfação
que seja aos Céus ou ao Palácio Infernal. Caso
alguém se sinta ofendido, que me procure. Terei
enorme prazer em receber os apelos ou
requisições dos seus superiores.
— Devo considerar a puerilidade deste plano,
seu charlatão! — Marcele retrucou. Então, também
aceitarei, conforme convém aos objetivos da minha
missão. No geral, perderão por sua própria
natureza, infelizmente.
— Excelente! Bravo! Bravíssimo, Marcele!
— Ostentou a Morte, esfuziantemente.
— Isso é uma grande bobagem! — rebati,
indignado. Mas, ainda assim, considero que
sejamos superiores a vocês; seja de um lado, seja
de outro, entrarei neste jogo imbecil. Mas creiam-
me: será para vencer!
A DEFESA DE MARCELE

Ela não perdeu tempo. Iniciou imediatamente


a sua defesa, a fim de conquistar o direito de levar
a alma, com muita determinação e argumentos
sólidos.
— Paul, devo lhe dizer por que esta alma é
minha, para que não haja confusão e nem mais
atritos entre os Céus e o Palácio Infernal.
— Tudo bem, Marcele, me convença. Faça-
me acreditar em suas palavras e a deixarei ir sem
nenhum problema.
— Adoro estes nomes, Paul e Marcele. Estes
parecem nomes de casais apaixonados. Vocês já
comeram um pãozinho chamado “Sonho”? E o
“Bem Casado”, vocês já experimentaram?
— Não dê ouvidos ao “Padre Félix”, Marcele!
— disse eu.
Não aguentamos ouvir a Morte falar de forma
engraçada. Por isso começamos a rir dela, que
achou tudo lindo, abriu os braços e se abaixou, nos
cumprimentando. Em seguida, continuou Marcele:
— Reclamo esta alma, Paul, porque esse
homem, ao passar a maior parte do tempo dele
vivendo como um rebelde sem causa, sem respeito
aos outros e a si mesmo, logo após ter perdido a
mulher se arrependeu de tudo o que havia feito.
Percebi nitidamente uma mudança de atitudes. A
partir da perda da esposa, ele passou a ter postura
coerente com a vida que deveria viver; como um
homem que ama a vida cedida pelo Senhor.
Decidiu cuidar da saúde, passou a ajudar pessoas
necessitadas, e a ter atitudes honrosas.
Semanalmente, iniciou um novo ciclo: visitou asilos
e auxiliou pacientes debilitados, dando-lhes
banhos refrescantes; aplicou medicamentos;
cortou unhas; cozinhou; lavou banheiros; trocou as
fraldas dos impossibilitados de se levantarem do
leito. Foi caridoso em todos os lugares que passou:
visitava os órfãos sempre que possível e ia aos
hipermercados, a fim de arrecadar doações em
forma de alimentos para os necessitados. Aos
domingos, se colocava de pé bem cedinho, para
visitar as viúvas debilitadas; principalmente
aquelas que não possuíam filhos ou parentes.
Nada representava empecilho para esse homem;
mas, infelizmente, já era tarde para mais
mudanças. No meu entender, Paul, esse homem
se arrependeu de seus erros; e as práticas
amorosas em relação ao próximo selaram o
arrependimento.
— Quem garante que tais ações não tenham
sido por remorso? Mera inquietude da consciência
após ter percebido a existência de erros? Imagino
que a mente desse sujeito o incomodava
diariamente; e quando isso abalava suas
estruturas, ele fazia o que era correto.
— Certo! — interrompeu a Morte,
prontamente. Então, o que você me diz de um
homem que bebia exageradamente e que, de
repente, tenha parado de beber, Paul?
— Creio que tenha enxergado que o excesso
poderia lhe fazer mal; o que para mim é a única
explicação coerente.
— Por que você tenta nos interromper, “Padre
Félix”? — exclama Marcele.
— Tudo bem... Ficarei calado. Continuarei
admirando você, Marcele, jogar flechas adocicadas
em direção ao Paul; e ele, saltitando no ar, para
que as setas de amor lhe acertem o peito. Então,
ferido, solicitará seu afago...
A Morte ensaia um pequeno salto no ar, leva
uma mão ao peito, outra à testa e sussurra “Estou
ferido!”. Desmanchamos-nos de tanto rir; em
seguida retornamos ao diálogo.
— Me desculpe jovem Marcele! Eu sei que
arrependimentos representam prováveis
mudanças de atitude. Sendo assim, como você
pode afirmar que ele se arrependeu quando ainda,
disfarçadamente, visitava um bordel toda vez que
tinha vontade de se relacionar sexualmente? Se o
acamado, quase defunto, verdadeiramente se
arrependeu, por que não assumiu as prováveis
paternidades sob sua responsabilidade? Por que
não procurou as várias mulheres com as quais teve
contato íntimo, para saber se estavam saudáveis
ou não, ou se precisavam de alguma ajuda? Ele
apenas diminui o uso de bebidas, as idas e vindas
aos bordéis; e, vez ou outra, abusava da cocaína e
comia exageradamente. Você acredita realmente
no arrependimento desse sujeito, só por ele ter
praticado atos de bondade?
— Marcele, querida, por favor, enxugue
minhas lágrimas — ironizou a Morte, mais uma
vez.
— Ora, pare de nos atormentar; tenha pelo
menos postura, nos respeite! — eu retruquei
visivelmente irritado.
De repente, a Morte resolve tirar tudo o que
ainda estava dentro da sacola que carregava:
chocalho de bebê, língua de sogra, uma pequena
lata de refrigerante, pipoca, sinos de natal, um
envelope pardo — colocando tudo sobre a mesa.
Abre a lata de refrigerante, começa a beber e, em
seguida, arrota bem forte para chamar a nossa
atenção.
— Você não tem respeito pelos doentes?! —
exclamei.
Naquele momento, a Morte levantou a bunda
suavemente, fez um sinal para prestarmos atenção
e, sem nenhuma vergonha, olhou para nós e
expeliu, num som longo e estridente, um peido.
— Tampem o nariz, pois fedeu. Estou com
gases, me desculpem, mas é maravilhoso peidar.
— Não imaginava que você era extravagante
— eu disse. Realmente... Decepcionei-me
com sua postura. Mas agir que nem um porco?!
Isso é demais para mim!
— Confesso que me surpreendo com suas
ações — replicou Marcele. Crianças praticarem
tais travessuras, tudo bem. Mas você?! Não tem
vergonha de se levantar desta maneira e peidar?!
A Morte logo balança a cabeça, afirmando que não.
E diz sorridente:
— Casalzinho ridículo, todos fazem isso. O
autor faz, o leitor faz, o médico faz, o pastor faz, o
bispo faz; todos, sem exceção, fazem! Inclusive
mulheres dos telejornais, por exemplo — só que
escondido e, às vezes, nos corredores da
empresa, no elevador.
Já eu, faço para que o público veja e ouça!
— Paul... Sussurrou Marcele, tentando me
chamar; e sendo logo interrompida pela Morte:
— “Paul, eu te amo, case-se comigo; vamos
nos amar a noite toda e ter muitos filhos”. Ah, como
ela pronuncia o seu nome com uma boquinha tão
linda! Deixa-me louco de amor, desse modo —
ironizou o “Padre Félix”.
O riso se espalhou por todos os lados.
Marcele e eu tentamos, em vão, conter tal reação.
Foi realmente engraçado, observá-la com as mãos
levantadas, gritando freneticamente: “Paul, eu te
amo” — enquanto balançava os sinos de Natal.
Em seguida, prontamente nos contivemos;
enquanto eu me voltava em direção a Marcele,
dizendo docemente:
— Não dê atenção a ele, Marcele! E me
dirigindo em direção a Morte, exclamei:
— Ouça-me! Não nos atrapalhe novamente,
por favor, sim?!
A Morte, colocando as duas mãos sobre o
queixo, faz um “biquinho” com a boca e se põe a
lançar beijos em nossa direção — o quê, para mim,
a faz parecer completamente louca, desvairada.
— Como eu tentava dizer... — insistiu
Marcele, continuando de onde havia parado: ele se
arrependeu e, inclusive, procurou um padre, a fim
de se confessar.
— Percebo pessoas que se confessam
durante horas, choram a ponto de saírem com os
rostos inchados, de tão falso que parece ser o
arrependimento. Mas, mal passados alguns dias,
ou anos, voltam a praticar os mesmos erros. Não
observo, em casos assim, nenhum vestígio de
“mudança de atitudes”. Então, responda-me,
Marcele: Você verdadeiramente acredita que um
criminoso, totalmente desprovido de amor, e que
por isso tira a vida de um inocente, pode se
arrepender de seus atos?!
— Pode, sim, Paul. Caso não volte a praticá-
los e se arrependa honestamente disso!
— Sendo assim, analisemos passo a passo,
os casos que demonstrarei agora:
— Um casal que joga um de seus filhos pela
janela, do alto de um prédio; um filho que assassina
os pais enquanto estão dormindo, unicamente por
causa da herança; um cônjuge que mata por ciúme
a sua companheira e depois a enterra numa
churrasqueira; um companheiro que mata seu
próprio amante; um ladrão que entra numa loja e
assalta os fregueses, matando um dos
funcionários; alguns policiais que praticam uma
chacina, embrenhados que estão na maldade e na
corrupção; um médico que se faz passar por
cirurgião plástico e mata um paciente durante um
implante de silicone; um político que desvia e rouba
grande verba destinada à manutenção da saúde
dos cidadãos; alguns médicos geneticistas que se
aproveitam dos pacientes anestesiados,
estuprando-os enquanto estão desacordados; um
traficante que manda matar inocentes, somente
por representarem um problema para seus
negócios escusos; um motorista irresponsável, que
atropela alguém e não presta ajuda, legando-o à
morte certa; Nazistas que mataram milhões de
judeus, submetendo-os aos horrores dos campos
de concentração, sem piedade alguma... E por aí
vai. Ainda assim, você quer me convencer de que,
ao se apresentarem a algum líder espiritual,
confessando tais pecados, serão finalmente
perdoados?!
— Agora a conversa começa a esquentar...
Vamos Marcele! — brada a entusiasmada Morte.
Saia desta se puder! Depois disso tudo, preciso
mesmo assoprar a “Língua de sogra”, pois senti
uma colocação bem maligna no ar... Ô, se!
A Morte, mais parecendo com um
adolescente sem limites, pega o brinquedo, sobe
em cima da cama, e dança sobre o doente; e
enquanto assopra o brinquedo repetidas vezes,
solta potentes risadas, nos tornando espantadiços
diante de tal atitude. E recompondo-se num piscar
de olhos, diz:
— Paul, segundo os escritos bíblicos, mais
necessariamente em “1 João 1:9”, assim está: “Se
confessarmos os nossos pecados, Ele é fiel é justo
para nos perdoar os pecados e nos purificar de
toda a injustiça”.
— Confessar é completamente diferente de
se arrepender, você não acha? O arrependimento
não trará de volta milhares de vidas que se
perderam — ou que se perdem todos os dias.
— Muito bom Paul. Estou gostando de ver!
Quando o “casal” parar de discutir, gostaria de ser
convidado para entrar na conversa. Ah, não se
esqueçam: como “Padre Félix”, adoro aconselhar
os cônjuges; melhor, os “pombinhos” — disse,
rindo desavergonhadamente.
— Deixe-me trazer à sua memória, Marcele,
um acontecimento. Depois, se puder, responda-
me: O 1 maníaco do parque, era um homem
completamente desconhecido pela sociedade.
Saía em busca de suas vítimas, mulheres as quais
estuprava e assassinava logo depois. Quando
finalmente foi preso, ele disse — durante um
interrogatório com o delegado responsável pelas

1 https://pt.wikipedia.org/wiki/Maníaco_do_Parque
investigações — que sentia prazer em matar. Ficou
detido longe dos demais prisioneiros por ter sua
vida ameaçada por eles; devido, claro, a crimes
brutais cometidos contra mulheres indefesas.
Numa entrevista concedida a uma emissora de
televisão, ele confessou ao repórter que não nutria
arrependimento algum pelos atos praticados. Após
vários anos na prisão, durante uma nova entrevista
ele alegou arrependimento; enquanto trazia nas
mãos uma Bíblia. Reconheça: portar uma Bíblia
não é sinal de conversão, menos ainda de
arrependimento. Ora, vamos! Seja sincera com
você e comigo: acredita mesmo que este homem,
nascido sob tão má índole, além de arrepender-se,
se voltou para o “Bem”?! Quantos já mataram em
nome de Deus?! Será que se arrepender é o
suficiente?! Você se lembra das 2 cruzadas?
Pessoas assim matam, estupram, roubam dinheiro
destinado aos pobres, lançam cidadãos honestos
na miséria, relegam-nos ao abandono. E, pior

2 http://www.infoescola.com/historia/as-cruzadas/
ainda: tais pessoas fazem tudo isso sob a fachada
da religião que cultuam. Eu não creio em mudança
ou arrependimento. Além do quê, deles, somente
espero maldade e muita crueldade.
— Eu também acho impossível — ironizou a
Morte, rindo. E você, Marcele, meu amor? O que
diz?!
Marcele pôs-se em silêncio por alguns
segundos e, quando pensou em responder, foi
novamente interrompida pela Morte:
— Bem... Paremos para um breve almoço,
menino e menina! Eis: “Um para você, um para
mim; um para você um para mim”...
Parecia inacreditável, mas a Morte foi
distribuindo os sanduíches que trazia consigo num
dos bolsos do casaco, estendendo o primeiro em
direção à Marcele e outro para mim — que não
aceitei, dizendo:
— Não quero, obrigado! Trouxe meu próprio
lanche.
— Ah, sim! O “homem do mal” não come com
“a mulher do bem” e menos ainda com a “Morte”.
Eu já devia ter imaginado...
— Deixe de bobagem, Paul! — clamou
Marcele. Coma logo, pois precisamos terminar este
assunto o quanto antes.
— Meu jovem rapaz das trevas, vamos
almoçar! O tempo de Marcele já se esgotou. Logo
após a nossa refeição, será a sua vez de fazer a
defesa.
— Eu não preciso, já argumentei
concisamente — respondi, sem mais delongas.
— Nada disso, nada disso! Você fará sua
defesa “sim”, pois apenas permitirei que a alma
deste homem seja levada por um de vocês, caso
os argumentos apresentados por ambos
demonstrem coerência e fundamento. Se o
contrário acontecer, nada levarão daqui!
— Pare de bobagem...
— Nada disso, mocinho! É hora do almoço,
não discuta com o seu querido “Padre Félix” —
disse ela, sempre cínica e... Irredutível.

Assim posto, abriu um dos sanduíches e


começou a comer. Marcele abriu o dela sem perda
de tempo, devorando-o prontamente. Quanto a
mim, não tive alternativa a não ser comer o meu
também — nada além de alguns biscoitos. Os dois
me olharam como se estivessem rindo do tipo de
lanche que eu trouxera. A Morte brincava,
enquanto ria e se coçava, mandando beijos para
Marcele e para mim, dizendo, zombeteira:
— Marcele e Paul, Paul e Marcele, que lindo
casal! Vocês poderiam dar um único beijinho?!
Apenas um simples “selinho”, vá?! — E ria, ria.
Após a refeição, ela tratou de tirar do bolso da
calça uma pasta de dentes, escovando-os
descaradamente bem na nossa frente; depois,
lançando a escova no doente — ao término do que
imaginamos tratar-se de “insanidade latente” —
disse num rompante:
— O que foi Paul?! Por que me olha assim?!
Acaso você não tem higiene?!
— Tenho sim, e muita! Mas não ajo desta
forma com um moribundo doente e quase inútil.
Considero isso um desrespeito ao agonizante!
— Ora, ora... Pois, pois, isso não me diz
respeito! Agora que acabamos de comer,
precisamos limpar o local de trabalho para darmos
andamento às defesas em curso. Por favor, me
passe o papel que enrolava o seu sanduíche,
Marcele! E o seu também, Paul, meu amor! —
disse debochando, conciso.
— Para quê os quer, afinal?! Para lançá-los
sobre o enfermo?!
— Ora vamos, Paul! Dê-me logo o seu papel,
diabo lindinho! Não me faça esperar mais...
Marcele e eu entregamos os papéis, ainda
que a contragosto. Espantosamente, ao contrário
do que prevíamos, a Morte recolheu todos os
objetos, armazenando-os num saco que guardava
no bolso. Mas logo em seguida, como que para não
nos desmentir sobre o que pensávamos dela,
colocou o saco sob o braço do doente, de forma
que parecesse ser dele o embrulho que por hora
carregava. E depois gargalhou — desta vez, mais
à vontade com a brincadeira macabra do que
antes.
A ACUSAÇÃO DE PAUL

— Vamos Paul, agora é a sua vez! Seja firme,


pois estou aqui para enxugar as lágrimas de
Marcele.
— Percebi nitidamente que os seus
argumentos são fracos, Marcele.
— Uau! Bastante sensual Paul. Continue
firme, por favor. Você precisa ser mais rígido com
as palavras — interpôs a Morte, como sempre.
— Eu afirmo que são fracos, pois este homem
tem cometido más ações desde a infância, que
culminaram no estado lastimável em que se
encontra. Sempre agindo sem jamais se preocupar
com as consequências de seus atos. Inclusive,
também indiferente ao que colheria posteriormente
de tudo o que plantara; tanto relativo à própria vida,
como também a dos outros.
— Você diria, que apenas por ele ter
quebrado o vidro da janela do vizinho com uma
bola, por isso você o condenaria?!
— Não apenas por “isso”, ou até mesmo por
“aquilo”. Faço das suas palavras — ou das
palavras de Davi — as minhas: 3 “Eis que eu nasci
em iniquidade, e em pecado me concedeu minha
mãe”. Você verdadeiramente acha que um homem
mergulhado no erro, com a alma repleta de maus
sentimentos, pode ser transformado para o bem?
Por que Adão, sendo o primeiro homem concebido
dessa forma: 4 “E disse Deus: Façamos o homem
à nossa imagem, conforme nossa semelhança”,
acabou desobedecendo às ordens Dele?
— Nossa! Essa foi forte, Paul! Querida
Marcele, não chore. Você deve reagir! E não se
preocupe: cuidarei de suas feridas — debochou!
Marcele olha para a Morte com feição
fechada, visivelmente séria. Levanta-se, mas,
quando pensa em retrucar, é interrompida por ela,
que diz:
— Marcele, não deixe o mal entrar no seu

3 Bíblia Sagrada; João F. de Almeida. Sl. 51:5

4 Bíblia Sagrada; João F. de Almeida. Gn.1:26


coração!
Marcele olha para ela, balança a cabeça em
sinal de rejeição à palavra expressada e apenas
sorri, sem precipitação.
— Diga-me, Marcele: Qual a razão para um
homem — nunca antes cobrado ou oprimido — ter
sido chamado à atenção quanto ao sacrifício
oferecido no início da criação? E que estando em
desacordo com o padrão ordenado pelo Criador: 5
“E, quando estavam no campo, aconteceu que
Caim se levantou contra Abel, seu irmão, e o
matou”, reage pelo simples fato de não ter sido
aceito? Digo ainda mais: para muitas ações
cometidas pelos homens, simplesmente não há
nenhuma explicação. A meu ver, a natureza caída
de Adão foi que propiciou essa tremenda
proliferação do mal.
— Paul, os homens nascem em pecado.
Adão caiu, mas nem por isso posso dizer que todas
as escolhas tendem para o mal. Basta observar a

5 http://bibliaportugues.com/kja/genesis/4.htm;Gn 4:4-8;
imensidão de homens e mulheres cujas atitudes se
dão de forma correta, honesta e humanizada. Ora,
talvez você devesse observar a quantidade de
pessoas que morrem no continente africano,
vitimadas pela privação de alimentos, submetidos
às doenças — que ao mesmo tempo são causa e
consequência da pobreza; e que nem por tais
razões matam-se uns aos outros, seja por comida
ou por remédios. Sua afirmação de que “só porque
o homem nasceu em pecado, toda essência dele é
apoiada no mal” é frágil, muito frágil. Basta
observar a história da vida de homens, como: Abel,
Abraão, Moisés, Pedro, José e outros mais.
— Muito bem, querida Marcele! Isso que
chamo de “ressurgir dos mortos”. Gostei de ver! —
ironizou a Morte.
— Pare com isso, Morte! — Marcele retrucou
veementemente.
— Não, não pararei! Agrada-me colocar
“lenha na fogueira” — gargalhou ela.
— Reclamo esta alma (eu continuei,
desconsiderando a intromissão de ambos), pois os
homens tendem nitidamente a se recobrir de
padrões morais e éticos que verdadeiramente não
conseguem manter. Culpam a Deus pelas
desgraças, pelos desastres e tragédias que caem
sobre eles. Matam e destroem em nome da fé, da
paixão, até mesmo do “suposto amor” que dizem
possuir. Afinal, quem criou tais situações? Não
fomos nós, garanto! Vocês criaram o amor, a
paixão, o perdão e outras bobagens; por isso
colhem os frutos de toda esta desordem. Como o
conformismo conduz à mediocridade, observe bem
aqui: 6 “A ânsia de alcançar o êxito e obter
recompensas, seja no domínio material ou no
domínio espiritual, assim como a procura de
segurança e o desejo de conforto, sufocam a
dimensão mais espontânea do ser humano,
alimentam o medo, bloqueiam a compreensão
inteligente da vida, instalam, enfim, a apatia e a
incapacidade de descobrir”. Talvez, baseando-me
nesse pensamento, eu creia que isto cause nos

6 J. Krishnamurti; A Educação e o Significado da Vida.


homens à inclinação para as guerras de todos os
tipos — e os homens que desenvolvem estas
tendências são de nossa propriedade.
— Essa foi direto no coração, Marcele. E
agora, o que dizer para o teu “namorado”?
Pegamos lenços umedecidos (destinados à
higienização em ambientes hospitalares) e
lançamos no rosto da Morte, por ela estar rindo
desmedidamente (Ah, o “Padre Félix”! Inventado
por ela, mais uma vez entra em cena, com suas
brincadeiras sem nexo, pueris e ordinariamente
maliciosas. Torna-se nítida a provocação que ela
produz para um romance imaginário; mas sem
sombra de dúvidas, sempre acabam numa fixação
febril, obviamente propensa à luxúria):
— Posso perceber que o casal já está prestes
a se beijar (já que relaxaram a ponto de lançarem
lenços em mim). Eu sei, eu sei! Eis o sinal da
indisfarçável volúpia que carregam por dentro... —
disse, rindo alto. Querem que eu case vocês?
Vamos lá, juntos: “Beija! Beija! Beija!”. Oh, como
tudo isso emociona! Posso limpar suas lágrimas,
querida Marcele?
— Deixe de ser ridículo, sabe que isso seria
impossível! — bradou Marcele, inquieta com o
resultado de sua fraqueza temporã.
Quanto a mim, continuei conciso e mordaz,
com a exposição dos meus pontos de vista:
— Este homem, cuja natureza demonstra sua
total fragilidade, fortaleceu-se nas opções que lhe
foram disponibilizadas entregando, sem
resistência alguma, a sua alma para nós. Ainda
que escutasse os discursos religiosos dos
sacerdotes de todas as partes do mundo, ou de
grandes líderes espirituais, confesso que ele não
daria a devida atenção. Claro que haveria exceção,
caso ele se sentisse sufocado pela descoberta de
uma doença terminal, que o afligiria imensamente,
levando-o a repensar em quanto bem pudera ter
feito — ou pudesse porventura ainda fazer. Para
mim, apenas sensações passageiras, incertas,
desenvolvidas a partir da luz que dizem visualizar
no fim de um túnel qualquer.
— Paul, agora você está completamente
enganado... — rejeitou Marcele, sendo
interrompida imediatamente pela Morte:
— Seu tempo está terminando, Paul.
— Mas ainda não terminei minha defesa!! —
retruquei visivelmente indignado.
— Certo! Permitirei a você mais alguns
minutos, Paul apaixonado! — respondeu rindo-se.
— Escute bem, “Garoto do mal” — disse
Marcele, propositadamente infantilizandome. Os
homens são criados perfeitos, mas, por
corromperem-se, enquanto habitantes deste
mundo, tornam-se maus. Não fosse a rebeldia de
seu superior ao desejar ser adorado, ao almejar
posição superior a do nosso Pai, não teríamos tais
conflitos. E mais, nem estaríamos aqui, discutindo
forçosamente pelo direito de “a quem seria
destinada” essa alma. O dilema, a meu ver, teve
início no Céu, no momento exato em que o seu
superior se encheu de ambição, tornando-se um
anjo caído, rebelando-se contra Deus, destruindo
todos os seus trabalhos de pureza. Por tal razão, o
que ocorreu nos Jardins do Éden foi de total
responsabilidade de vocês. Seu líder, por tão
maligno que se tornara, manipulou a serpente,
fazendo-a apontar, na árvore do conhecimento, o
fruto que Eva não deveria cobiçar. E que, apesar
de atraente, ou talvez exatamente por isso, era o
fruto proibido originalmente, que fatalmente
propiciaria imenso e irreversível destino aos
homens, por onde experimentariam a morte e suas
consequências (e virando-se para a Morte,
esclareceu: “— Peço que não me compreenda mal,
Morte, pela menção da realidade apresentada nos
fatos que acabei de expor”)...
— Fique tranquila querida, desabafe à
vontade! — respondeu solenemente, aprovando o
pedido de desculpas de Marcele, que continuou...
— Sendo assim, eis meu desfecho para esta
abordagem: retire-se da humanidade todo o mal.
Assim, eles passarão a viver muito melhor. A
autoridade maligna do seu líder, neste lugar,
desejava instalar o caos. O que se daria, porém,
apenas se atitude do nosso Pai não fosse repleta
de sabedoria. Sem ela, os homens certamente
viveriam eternamente em pecado.
— Espere um pouco, mocinha!... — disse eu,
percebendo-me cada vez mais indignado.
— Agora eu senti! — num rompante, eis a
debochada Morte — A paixão acaba de inundar
meu coração pela força da expressão “mocinha”.
Então, deixe-me responder ao “mocinho”:
— Diga-me, Paul! Quer que eu saia um
pouquinho? Para que vocês dois possam se
abraçar, se beijar, chegando aos “finalmentes”?
Sexo é vida, penso eu! Ora, vamos! Deem-se as
mãos e iniciem logo uma nova configuração para
este relacionamento — gargalhou.
— Você não se cansa?! Devia deixar-nos
discutir esses assuntos conforme o combinado,
não desta maneira — arrebatou Marcele, mais uma
vez.
Nossos ânimos se exaltaram ao ponto de nos
colocarmos de pé, um de frente para o outro,
falando e gesticulando na mais perfeita
dissonância. Foi preciso uma intervenção direta
para que nos acalmássemos...
— Ah, Marcele! Eu te amo, sabia? E te amo
também, Paul, até muito mais do que a ela. Preciso
avisar aos “namoradinhos” que, a partir deste
momento, considero todos os argumentos
definitivamente encerrados.
— Mas... Eu ainda preciso terminar minhas
argumentações! Não pode encerrar minha fala
agora... — disse eu, tentando ganhar mais tempo.
— Não, Paul! Não e não! — ela arrematou.
Fique sentado, mantenha-se absolutamente quieto
onde está. Quanto a você, Marcele, meu anjinho
de candura, faça o mesmo. A não ser que queira
estreitar laços com o Paul, diabinho tão dócil,
juntando-se a ele “pele com pele” — riu. Que tal?
Vocês aceitariam um cálice de vinho? Acalmaria
ânimos exaltados e contribuiria como certo poder
afrodisíaco, inclusive. Que acham da minha oferta?
— disse, piscando um olho para nós.
— Eu não bebo em serviço! E você já deveria
ter percebido isso, de minha parte, não acha? —
respondi. Ela insistiu ainda, mais um pouco:
— E você, Marcele? Que tal um pouquinho de
vinho ao lado do seu grande amor?
— Não! Simplesmente, “Não, Obrigada!”.
— A argumentação dos apaixonados foi
maravilhosa, devo considerar! Verdadeiramente
observei: ambos estudaram os manuais
disponíveis detalhadamente.

Mas algo ainda me intriga bastante...


— O que é tão intrigante? — Perguntei.
— Nos manuais existentes, havia elucidações
em uma página cujo teor não foi mencionado em
momento algum. Por tal razão, devo presumir: ou
a página foi arrancada do livro, ou foi
completamente apagada.
— Isso é impossível! — bradou Marcele
prontamente. Ainda mais por se tratar dos escritos
divinos. No Céu, algo assim seria inconcebível.
Mas, devo afirmar: não posso dizer que o mesmo
pudesse acontecer quanto aos procedimentos do
Palácio Infernal.
Neste exato momento, me surpreendi. E
fiquei sem reação, ao ouvir a Morte mencionando
a página em questão. Lembrei-me de que, durante
as minhas pesquisas, estava faltando uma página
no meu manual, quando eu estava nos
departamentos inferiores do Palácio Infernal. Então
decidi confrontar a Morte sobre tal assunto:
— Que página seria essa?! O que ela conteria
de tão importante?!
— Meus amores, meus amores! Creio que
ambos, de alguma forma, foram impedidos de ter
acesso ao conteúdo da tal página. Por isso,
também me reservarei o direito de não revelar ou
fomentar mais curiosidade no “casalzinho”, ok? —
balbuciou com visível desdém, dando por
encerrada a questão.
Ficamos mudos! Não reagimos quando ela
nos convidou, gentilmente, a nos retirarmos do
local onde nos encontrávamos. Não sem antes
pontuar, metodicamente, uma recomendação:
— Mantenham-se calmos e não se
descontrolem! Atitudes violentas, ou grandes
perturbações, definitivamente não cairiam bem
para um casal apaixonado — e apaixonante, como
este, que vocês formam. Não quero e não
permitirei manifestações além do cabível para o
corredor de um hospital, deste hospital. Não
permitirei, sob nenhuma hipótese, arregimentadas
discussões para este fim. Sejam pacientes,
respeitosos e reflitam sobre isso. E que sejam
moderados os argumentos que acaso venham a
elaborar, mantendo-os para si mesmos, ninguém
mais.
O ENCONTRO

Mantivemo-nos de pé, em silêncio, após as


recomendações da Morte. Ou melhor: petrificados.
O convite para deixarmos o quarto não nos
pareceu uma boa ideia, ao contrário. Foi quando
ela, percebendo a hesitação, alavancou um
ultimato:
— Muito bem, menino e menina! Uma vez
terminada a função de vocês, podem ir agora.
— Eu não saio daqui sem esta alma! —
respondi à queima roupa, seguido
instantaneamente por Marcele: “Eu, menos ainda!”.
— Os dois vão sair sim, agora mesmo, pois
preciso comandar uma reunião de extrema
urgência! — disse-nos, enquanto abria a porta do
quarto gentilmente, dizendo aos que estavam do
lado de fora:
— Por favor, entrem meus caros convidados!
E... Obrigado por terem vindo.
— Como assim, reunião?! — Indaguei,
sem nada entender.
Não reagimos ao ver superior do Palácio
Infernal — e também o superior das Milícias
Celestes, entrando pela mesma porta. Na verdade,
ficamos atônitos...
— Levantem-se, por favor, e deixe-nos
conversar com tranquilidade, meninos — ela nos
disse. E, virando-se para os convidados:
— Eu senti a presença de vocês. Peço que
me desculpem pelo método empregado para isso,
mas, eu precisava de uma reunião nas mesmas
configurações daquela que tivemos, séculos atrás.
Já é do conhecimento de todos que não sou dado
a enviar recados. Por isso retive os “pombinhos”
até agora, justamente para forçar a vinda dos
colegas até aqui. Sei inclusive que seus chefes são
muito atarefados e eu não quis incomodá-los mais
que o necessário.
— Percebi que era você nos chamando, pois
seu método já foi usado anteriormente e demonstra
ser muito eficaz – disse o meu superior. E
complementou: “Creio que também o superior de
Marcele tenha percebido, não?”.
— Sim, percebi. Um chamado para reunião é
inconfundível, quando há urgência de ser
concretizada. Sua influência é potente, cara
Morte...
Notei que as amabilidades entre eles seriam
interrompidas, tão logo dirigiram seus olhares
sobre nós; e a orientação que viria a seguir deixou
claro que nossa participação não era mais
necessária ali. Quem tomou à frente foi meu
superior, dizendo ininterruptamente:
— Paul, pode sair. Retorne ao Palácio
Infernal e faça um relatório simples, porém
objetivo.
Em tempo e hora, o chefe das Milícias
Celestiais também aplicou suas instruções:
— Quanto a você, Marcele, retorne aos Céus
e dê apoio aos novatos em outras funções.
Dando por encerrado o assunto, saímos um
após o outro: do quarto e da reunião de cúpula.
...

No instante seguinte, uma bela moça entra no


recinto, carregando uma bandeja de prata onde
estão harmoniosamente colocadas: uma garrafa
de vinho, uma jarra de cristal e três belíssimas
taças. Com um belo e indefectível sorriso no rosto,
ela distribui as taças aos convivas; em seguida
pede licença, saindo rapidamente.
— Há quanto tempo não nos reuníamos
assim?! — indaga a Morte.
— Não me lembro, mas... Faz séculos que me
sinto como um exilado, cercado por uma
parafernália de papéis, absurdamente envolvido no
treinamento dos novatos no Palácio Infernal.
Despacho todos os dias: recebo almas, libero
castigos, e minha única distração é com as
mulheres encarregadas de nos oferecer prazer.
Por isso, não faço ideia de quanto tempo faz...
O sorriso corre livremente pela sala. Percebe-
se o efeito causado pelo bordô, suavemente
degustado pelo superior do Palácio Infernal e pela
Morte. Já o chefe das Milícias Celestiais, este se
mantém serenamente em seu lugar, ingerindo
pequenos goles de água, sem pressa; sim, ingerir
apenas água é seu costume. Um bom e previdente
hábito, ele crê.
...

Do lado de fora do quarto, Marcele e eu, numa


súbita decisão — burlando ordens, inclusive —
paramos em frente à porta, estáticos, pondo-nos a
ouvir o que se passava do outro lado: tudo o que
escutamos foram conversas e risos.
— O que será que estão conversando?!
Rindo-se do quê, afinal?! Qual será a razão para
tanto sigilo?! – eu disse, repartindo com Marcele
minhas indagações.
— Deve ser a engraçadinha da Morte, ou do
seu suposto “personagem”, o Padre Félix. Vá saber
— respondeu pensativa.
Dali, para a lembrança das piadas dele, foi o
tempo de um segundo: também começamos a rir
muito, aproveitando a deixa para um ritual de
lembranças dos casos mais inusitados que
tivemos, ao enfrentar o recolhimento das almas;
essa, nossa eterna missão, nosso destino final.
Iniciando por mim: ATO I

Do meu lado ocorreu um fato incrível: um


determinado sujeito passou uma vida inteira dando
a entender que ele realmente estava destinado ao
Palácio Infernal. Extraviava verbas da merenda
escolar e fazia o mesmo com os valores destinados
para licitações; nunca comparecia ao local de
trabalho no horário estipulado para iniciá-lo e
sempre saia antes do cumprimento dele; extorquia
empresários, a própria mãe e todos os seus
parentes; possuía duvidosas contas no exterior,
cujos valores jamais foram declarados ao Fisco;
fidelidade no casamento nada representava para
ele; roubava o dinheiro das ofertas e do dízimo da
igreja que frequentava; surrupiava moedinhas das
crianças que vendiam balas nos sinais de trânsito;
e mentia tão exageradamente que até me
assustava. Chegado o tempo de recolher tão
“pobre alma”, ele me apresentou um recibo
(segundo ele, assinado pelo próprio Diabo) onde
havia uma cláusula que dizia:
“Antes de partir desta para pior, esta alma somente
poderá ser recolhida após a completa extinção de
todo o dinheiro que tenha adquirido ilicitamente
durante toda a sua vida, fazendo jus aos atos
pecaminosos praticados por tal aquisição”. Foi
então que ele mesmo concluiu: “Então meu caro,
eu não posso ser recolhido, pois tenho pacto
firmado com o Diabo. Vamos, pode verificar este
recibo, sinta-se a vontade para fazê-lo”. Nada mais
me restando a fazer, argumentei:
— Para mim, este recibo não tem validade, é
falso!
— Escute aqui, sujeitinho do inferno... —
disse ele, alvoroçado. Tenho mais utilidade neste
lugar do que em outro. Observe atentamente:
possuo excelente talento para o mal.
— Não tem jeito, isso de nada adianta.
Preciso recolher sua alma e pronto! Ordens são
ordens.
— Nada disso, tenho precatórios para
receber. Como isso não acontecia, precisei acionar
o Estado e venci; agora, estou aguardando a
bolada que receberei. Enquanto não acontecer,
não irei.
— Deixe de balelas e me acompanhe.
Conheço essas histórias de longa data. Até ao meu
chefe devem, e muito, inclusive você.
— Eu não posso sair deste mundo agora. Há
muito que roubar e muita gente para enganar.
Façamos assim: fico mais um pouco e, tão logo eu
termine, dividirei os lucros com vocês. Deixe-me
ficar, certo?
Este sujeito apelou como sabia: chantageou,
barganhou, suplicou até. Mas não houve jeito, não
me convenceu, menos ainda ludibriou: eu o
carreguei comigo sem dó nem piedade, pois levo a
sério minha função.

Passando a palavra para Marcele: ATO II

Uma mulher, de alma deveras piedosa,


mesmo estando conformada com o necessário
recolhimento, também deu muito trabalho. Foi
assim:
— A senhora precisa ser recolhida para o
Céu, acredite!
— Não posso, não devo filha! Se eu partir,
quem cantará os principais hinos da igreja em meu
lugar? Ninguém, pois sou a única que conhece de
cor o conteúdo do Hinário. Além do quê, meus
irmãos de jornada não terão mais o meu apoio nas
tarefas de assistência aos orfanatos e asilos. Tudo
o que faço é imprescindível. Por exemplo: corto
cabelo, dou banho, levo a passear todos os idosos.
Poucos se dedicam a tais tarefas com mais carinho
e desprendimento, eu juro!
— Não se preocupe com isso: lá do Céu serão
enviados novos recursos para que outra pessoa
ocupe, com mestria, a função que antes lhe
pertencia; suas boas ações não se perderão
jamais, acredite!
— Eu não posso partir agora... — insistiu.
Fui obrigada a repetir: “Lamento, mas, preciso

levá-la!“. Foi vã a tentativa, pois ela continuou:


— Então me permita cantar os hinos do meu
Hinário preferido e depois disso, irei.
— Tudo bem, pode cantar os hinos que
quiser. Mas tão logo termine, partiremos.
Foi então que aquela senhora pegou um
Hinário gigantesco, contendo pelo menos 3.000
músicas. Começou a cantar... E enquanto cantava,
chorava copiosamente. Muitas vezes se perdia
neste vai e vem, pondo-se a repetir tudo de novo.
Entre uma pausa e outra, a fim de tomar fôlego,
repetia para mim: “Lembre-se: você me permitiu
cantar ‘todas as músicas’. Por isso, só poderá
levar-me quando eu tiver terminado todas elas”.
Como se isto não bastasse, ainda tentou me
convencer a esperar pelas novenas. Felizmente,
resgatei à razão os meus deveres e recolhi a
“abençoada” alma – assim, sem mais delongas, de
tão aliviada que eu estava pelo gran finale.
Foi assim, após a exemplificação de tais
experiências, que nossas atenções voltaram para
o encontro dos nossos superiores com a Morte,
logo ali, do outro lado da porta.
...

— E você, caríssimo chefe das Milícias


Celestiais? Diga-me como vão as coisas lá no Céu
— inquiriu a Morte.
— Não muito diferentes da forma que
acontece no Palácio Infernal, prezada!
Diariamente, procedemos à audição de cantos
celestiais, efetuamos adorações ao nosso Pai,
recepcionamos as almas que chegam
constantemente, reconfortamos aos que morreram
acompanhados de fé inabalável e nos alegramos
com a felicidade demonstrada pelos que chegam.
São momentos de muita reflexão para nós. Mas
imagino que para o meu colega não seja assim,
certo? — apontou sem alarde, olhando diretamente
para o superior do Palácio Infernal.
— Ora, ora, ora! — interveio a Morte.
Caríssimos colegas de missão... Observem
atentamente a situação que aqui se apresenta.
Esta conversa vai indo bem, mas precisamos
respeitar nossas diferenças para que não haja
resquícios de acusação entre os dois lados.
— Sim, é verdade, cara colega! — admitiu o
chefe das Milícias Celestiais. Pois então... Não
podemos nos desentender. Deve existir alguma
harmonia entre nós, e creio ser o que imagina a
humanidade. Sabemos da existência de diversas
regiões em conflito, na Terra. E que, apesar de não
serem do conhecimento de todos, e exatamente
por isso, precisamos manter o equilíbrio e a paz
entre eles.
Sendo assim, peço que me digam —
interrompe a Morte: o que fizeram de uma das
páginas que existia no contrato firmado entre nós,
e que consta nos manuais?!
— Já que você tocou no assunto... — diz o
superior do Palácio Infernal. Depois da
reestruturação, e ainda no período do exílio,
necessitei eliminar uma das páginas do nosso
contrato para evitar problemas com os novatos —
por sinal, jovens bastante determinados a serem
iguais ao Diabo. Para dizer a verdade, a cada “dia,
mês, ano, séculos”, enfim, busca-se implantar
melhorias no nosso sistema de recolhimento de
impostos. Porém percebo que algumas vezes
relutam em obedecer a determinadas ordens.
Percebendo certo emaranhado na convicção
de ambos, a Morte, mais uma vez, rapidamente
trata de colocar um fim ao impacto:
— Mais vinho, colega do inferno?
— Não, obrigado, prezada! Não devo me
exceder no vinho. Não em momentos assim... —
respondeu.

E você, colega angelical? Aceita mais um


pouquinho de água?
— Sim, por favor! E encha a taça até a borda,
pois este lugar anda muito quente, por sinal.
Desta vez, risos não foram tolhidos por
nenhuma das partes. Ao contrário, pareciam
gargalhadas, de tão esfuziantes.
— Eu não imaginava que um novato,
principalmente depois de séculos, fosse
justamente verificar a legitimidade do manual,
posto que o contrato já estivesse selado — insistiu,
o superior do Palácio Infernal.
— No meu caso, lá nos Céus as ordens são
cumpridas com prontidão. Rebeldias não existem
e vocês bem o sabem. Não desmerecendo
nenhum dos dois “lados”, pois não é essa a minha
intenção, e também estava faltando uma página
no nosso manual. Que “diabos” houve com ela?!
— ele parou, refletiu, e sem perder a oportunidade
da ironia, continuou:
— Ops! Sem querer ofender vossa realeza,
claro!
Todos gargalharam fartamente, desta vez!
Mas não tinham ciência de algo deveras
significante: do lado de fora do quarto, os
encarregados percebiam os excessos de risos
nitidamente, sentindo imensa curiosidade pelo que
pudesse estar acontecendo do lado de dentro; o
que contribuía, e muito, para dúvidas e tensões de
ambos.
— Por favor, sirva-me mais um pouco de
vinho, cara Morte. Agora a minha vontade voltou,
mais que antes...
— Sim, claro, nobre colega! — respondeu,
tentando segurar novo riso.
Mais uma vez a bela mulher entra no quarto,
repondo vinho e água. Enquanto isso, a conversa
vai se esticando, esticando... E presumidamente,
por horas a fio continuaria seu rito.
— Então, como eu ia dizendo, não me
preocupei realmente com o livro. Ele estava num
armário velho, assim como eu, embolorando,
embolorando... (mais risos)... Deixado num lugar
nunca visitado por alguém do reino celestial. Diante
disso, não me preocupei.
— Precisamos definitivamente resolver este
problema, caros colegas! — enfatizou a Morte.
— Como representante das Milícias
Angelicais, sugiro que seja mantido o contrato, que
foi firmado entre as partes por milênios. O que
vocês acham?!
— E eu, como representante do Palácio
Infernal, seguindo ordens do meu chefe, o Diabo,
por incrível que pareça concordo com a posição do
colega das Milícias Angelicais. E você, cara Morte?
O que nos diz?!
— Eu digo: “Ótimo, concordo!”. Nossa relação
é totalmente sólida e, devido a isso, manteremos
estabilidade e respeito aos nossos laços de
amizade. Por tal razão, solicito a permissão de
vocês para o seguinte: explicar tudo isso aos
“pombinhos” que estão do lado de fora deste
quarto e obter autonomia para resolver este
problema, sem que haja danos aos dois lados.
— Por mim, tudo bem! Só peço que não
sobrecarregue em demasia o meu “diabinho
preferido”, o Paul, certo?
— E peço o mesmo comportamento em
relação ao meu “anjinho”, a Marcele, por gentileza,
sim?
— Fiquem tranquilos, caros colegas! Sempre
mantenho minha palavra, não é mesmo? —
pronunciou a conciliadora Morte.
— Já nos demonstrou isso abertamente...
Além do quê, foi realmente maravilhoso rever
vocês, meus colegas. Mas, infelizmente, preciso
retornar ao meu pobre “exílio”, pois há muito
trabalho a ser executado no Palácio Infernal.
— Sendo assim, estamos quites! Também
preciso voltar aos Céus, onde muito se espera de
mim. Miguel e os exércitos celestiais já devem
estar sentindo a minha ausência.
E levantando-se, exclama em tom firme:
Sigamos, então: Avante! — conclui reverente.
REVELAÇÃO

Confesso que nos assustamos ao perceber


nossos chefes saindo do quarto. Eles sorriam
muito, aparentando grande contentamento, entre
calorosos apertos de mãos e amigáveis
despedidas. Imediatamente tentamos justificar
nossa presença ali, do lado de fora do quarto, ao
invés de termos cumprido as ordens recebidas.
— Chefe, eu fiquei aqui para o caso de
alguma ajuda e... — fui logo dizendo.
— Não precisa se explicar! — disse ele,
interrompendo minha fala. Desta vez você não será
punido por desobedecer minhas ordens. Agora
entrem os dois, pois a Morte precisa falar com
vocês.
— Entre Marcele, e ouça atentamente o que
a Morte tem a dizer — complementou o chefe das
Milícias Celestiais.
— Sei que errei... Mas como posso corrigir
meu erro?
— Somente o Pai, em sua infinita
misericórdia, poderá lhe perdoar — respondeu ele,
encerrando a questão.
A Morte nos convida a entrar e voltar aos
nossos lugares, a fim de iniciar um novo diálogo.
Em seguida, se despede dos nossos chefes. A bela
e sorridente moça entra, recolhe a bandeja
contendo as taças e garrafas vazias, saindo
rapidamente.
— Muito bem! Agora que os problemas
pendentes foram resolvidos, creio que eu deva
uma elucidação ao “casal de pombinhos” —
retornou a Morte, com suas velhas e cortantes
ironias.
— Pare com esta besteira e fale logo, estou
curioso! O que aconteceu aqui dentro, afinal? —
perguntei, entre “impaciente” e “aflito”.
— O que aconteceu nesta sala foi realmente
uma reunião de velhos colegas — quase
conhecidos, eu diria. Não era para acontecer, mas
como houve um ligeiro relaxamento por parte dos
chefes de vocês, a necessidade se fez presente.
Esclarecerei agora, a razão dela...
— Vocês são colegas?! Não me lembro de
referência alguma em nossos livros sobre esta
amizade...
— Sim, o Paul tem razão! Nem nos Céus
existe algum relato sobre o que você acabou de
mencionar...
— Certo, falarei sobre isso! Muitos milênios
atrás, bem antes das separações das almas, o
sistema funcionava da seguinte forma: quando um
determinado cidadão morria, quem chegava
primeiro recolhia a alma dele para o seu próprio
território. A partir daí, sérios problemas surgiram
nestes locais — ou seja, nos Céus e também no
Palácio Infernal. O que mais se ouvia, era que nas
regiões celestes, a mais completa balbúrdia se
formara: almas que foram recolhidas (as
recobertas de avareza, maldade, soberba e
mentira) acabaram por destruir a imagem da
tranquilidade, da organização, da paz e da alegria
dominantes por lá. Em contrapartida, no Palácio
Infernal o contrário se dava: onde deveria reinar
discórdias, mágoas, rancores, angústias,
maldades e sofrimentos de todas as espécies, um
coro celestial se fazia ouvir, belo e harmonioso.
Tudo era correto ali: tudo lindo, onde somente
bondade e verdade imperavam.
— Mas isso é loucura! — exclamei,
horrorizado.
— Sim, meus jovens anjinhos. Por falar nisso,
doce casal... Aceitam minhas “balas de amor”?
Esta, da minha própria boca, tão deliciosa quanto
o néctar da mais pura flor?
— ria debochando, enquanto mantinha a bala
no canto da boca.
— Ora, continue com o assunto mencionado,
deixe de brincadeiras! — reclamei irritado.
— Imagine só... Nos Céus, uma bagunça
instalada; e no Palácio Infernal, ao contrário,
apenas paz e angelitude reinando. Quanto a mim?
Simplesmente trabalhando, dia e noite sem parar,
sem nenhum tipo de descanso ou remuneração.
Quando, num belo dia, andando pelas ruas,
encontrei os chefes de vocês: sentados à beira de
uma calçada, choramingando um para o outro as
“más aventuranças” — e a malfadada desarmonia
que se instalara em suas “casas”.
— Isso não pode ter acontecido!! Fomos
ensinados a não nos envolver no reinado uns dos
outros. Como eles puderam?! Como isso se deu?!
— Espantou-se nitidamente Marcele.
— Meu bem, meu docinho, apenas
“aconteceu”! E o pior de tudo?! Notar que o
superior do Palácio Infernal estava com a cabeça
literalmente arriada no ombro do superior das
Milícias Angelicais, pateticamente e em prantos; e
o seu chefe, meigo e bondoso, se debulhava em
lágrimas, enquanto o consolava amigavelmente.
Acheguei-me deles e perguntei o que estava
acontecendo, e qual a razão para a cena
desastrosa que eu acabara de presenciar. Então
fui posto a par dos problemas existentes. Sentei-
me, pois, entre eles. E sob a forte emoção que me
tomara, pedi um tempo para pensar. Foi quando
uma ideia me ocorreu...
— Já sei! Você resolveu dar um tombo nos
dois lados, aposto! — bradei entusiasticamente.
— Não, meu caro jovem! Eu apontei uma
solução, apenas: sugeri um acordo entre nós. Que
foi permitido por seu superior angelical, Marcele, e
pelo seu superior do Palácio Infernal, Paul. E,
como não podia deixar de ser, por mim, claro!
Daquele dia em diante, nunca mais se ouviu falar
em desorganização, ou qualquer espécie de
bagunça nos Céus; menos ainda de qualquer
organização, fosse esta efetivada em padrões
éticos ou morais, no meu “local de exílio” – digamos
assim. As almas foram reconduzidas, cada qual ao
lugar que lhes fora destinado, conforme tenham
agido durante sua passagem pela Terra.
— Mas, o que o Pai celestial e o Diabo
disseram sobre isso, afinal?! — perguntei.
— Isso não é verdade! — agitou-se Marcele.
O que fez com eles?! Vamos, diganos!?
— Eu nada fiz! Respeito os acordos que faço,
honro com a palavra dada. Nunca fui e nem serei,
como os humanos são. Foi por tal razão que forcei
a vinda de meus colegas até aqui: para relembrá-
los do nosso acordo, nada mais!
— Meu chefe não faz acordo com ninguém,
jamais! — insisti. Nem o meu Pai o faz! Então, diga-
nos, por favor, que espécie de acordo foi esse?!
— Respondendo sua pergunta, Marcele: não
sei o que seu chefe, lá no Céu, disse sobre isso; e
nem o que foi dito pelo seu superior, Paul, no
Palácio Infernal. Mas posso afirmar que tal acordo
foi aprovado e que perdura até hoje. Direi a você
com todas as palavras, minha querida Marcele!
Não se aflija: eis aqui o teor do acordo...
A Morte pega um envelope sobre a mesa,
abrindo-o. Retira de dentro dele um documento e
começa a ler em voz alta, para nosso espanto:
— “Eis aqui este contrato, firmado entre as
partes Angelicais, as partes Malignas e a Morte.
Refere-se aos impostos que deverão ser cobrados
e suas especificações. A partir de hoje, todas as
almas que, do nascimento até a primeira infância,
e desta até a velhice (ou no tempo que lhes for
dado cumprir) desenvolverem todos os padrões
exigidos pelo Céu, como a ‘bondade, caridade,
misericórdia, obediência, moralidade, amor,
perdão, companheirismo’, e demais características
inerentes à prática do bem, serão de total
responsabilidade do Pai (...)”...
— Mas, e se por algum motivo elas se
desviarem do caminho?! — disse eu,
interrompendo drasticamente a leitura.
— Calma jovem Paul! Por que você, ao invés
de me interromper, não beija a Marcele?! Por que
não se dão as mãos?!
Marcele se levanta, sentando-se ao meu lado.
Inebriada com a espontânea atitude dela, a Morte
começa a chorar, compulsivamente. Retira do
bolso da calça o “lenço de ursinho”; depois, assua
ruidosamente o nariz, enxugando os olhos em
seguida (Ah! Eis que ela consegue dar “Padre
Félix” uma cena das mais dignas de aplausos — se
plateia houvesse para tal). Lágrimas copiosamente
bem forjadas descem pelo rosto dela com emoção
dantesca, regada a muitos soluços, inclusive.
— Mas o que é isso?! — bradei nitidamente
exasperado.
— Eu tinha a certeza... Eu bem sabia que
vocês formavam um par ma-ra-vi-lho-so! Que tal se
beijarem agora? Beijem-se, vá? E deixem que eu
celebre esta magnífica união, por favor, sim? —
respondeu, recompondo-se na velocidade de um
raio.
— Ora, ande com isso! Continue a leitura do
documento. Você sabe que não existe a menor
possibilidade de união entre trevas e luz. Pare de
nos importunar e conclua logo de uma vez!

— Pois bem, pois bem, que assim seja! Mas


antes, deixe que eu me recomponha.
Marcele, querida, poderia me servir um pouco de
água, por favor?
Marcele obedece, servindo para a Morte da
sua própria água, guardada com zelo e
simplicidade numa pequena garrafa plástica. A
Morte, após bebê-la toda, num só gole, recolhe os
soluços ainda em falsete, põe-se a rir
descaradamente e reinicia a leitura do contrato:
— “Porém, se as almas, apesar de possuírem
todos os padrões determinados pelo Céu,
desenvolverem os padrões do Palácio Infernal,
como ‘mentira, imoralidade, furto, latrocínio, ira,
ausência do perdão’, entre outros mais, de igual ou
superior teor, assim se dará: estas deverão ficar à
disposição — e sob-responsabilidade — do Diabo
e dos seus subordinados”.
— Espere um pouco ai! — Marcele indaga.
Quanto a isso, percebo que a pergunta do Paul foi
respondida: a partir do momento em que se
desviarem do caminho do bem, as almas serão,
obviamente, incorporadas a quem responda pelo
caminho do mal. Mas, e quanto a nós?! Como
fica?! E onde entra você, neste caso?!
— Marcele, Paul... Ora, vamos, pensem!
Felizmente, é exatamente aí que eu entro na
história. Eu reclamo meus impostos devido a esta
cláusula, assinada pelos chefes de vocês. No
momento preciso em que qualquer destas almas,
mesmo sendo no último minuto de vida delas, num
último suspiro, se desviarem dos padrões impostos
pelo Céu ou pelo Palácio Infernal, o pertencimento
delas será meu. Esclarecendo melhor: se o
indivíduo em questão vivenciar a maior parte dos
dias dele sobre a Terra na mais absoluta
mediocridade, mas, em determinada parte do
percurso decidir viver em conformidade com os
padrões celestiais, assim será: “Tão logo chegue a
hora da sua morte, em pouquíssimos instantes não
pertencerá nem aos céus, nem ao Palácio
Infernal”. Ou seja, será minha por direito. Simples
assim!
— Assim sendo, o que você pretende fazer
com tais almas, então?! – indaguei visivelmente
confuso.
— Isso é problema meu! E a nenhum dos dois
posso ou necessito prestar mais esclarecimentos
ou justificativas. Se constar em contrato lacrado, e
justamente na última cláusula, isto bastará!
Não conseguiríamos esconder a decepção
em nossos semblantes nem se quiséssemos. O
conteúdo do tal documento revelou-se a nós de
maneira bombástica, isso sim! Não tínhamos
conhecimento daquela cláusula e mal podíamos
acreditar na existência dela, ainda mais quando tão
clara e elucidativa nos foi revelada.
Por isso, observar Marcele tomando a frente,
quase que num piscar de olhos, pareceu-me mais
que necessário — se não muito, urgente:
— Eu não fazia sequer “ideia” do que pudesse
estar acontecendo. Agora, mais que nunca, devo
retornar ao Céu e solicitar imediata audiência com
o Pai, para tentar compreender tudo isso e, ao
mesmo tempo, sanar grandes dúvidas.
— Farei o mesmo com relação ao meu
superior comuniquei, de forma resoluta. Ele me
deve muitas explicações... Caso não o faça,
recorrerei a meu “Pai das Trevas”, a fim de obter
maiores esclarecimentos a respeito.
— Antes de partirem, gostaria de pedir
desculpas a ambos. Usei vocês para brincar com o
que eu desejava, mas de modo pessoal, claro...
Sim, devo insistir, perdoem-me!
A morte estendeu suas mãos para nós e, ao
segurá-las, fomos transportados para outro local.
Mal dei por mim, estava parado numa calçada da
Avenida Brasil, próximo ao Bairro Olaria, no Rio de
Janeiro, ao lado de Marcele. Uma criança,
aproximando-se de nós, cumprimenta-nos e diz:
— A Morte me deu mais uma chance. Qual
dos dois me doutrinará melhor? Será você,
Marcele? Ou você, Paul?
— Você nos vê?! Qual é o seu nome?!
— Sim, vejo vocês. O meu nome não importa,
mas, sim, o que farei daqui em diante.

A Morte, de cima de uma passarela


construída no formato de um arco, sobre o fluxo
intenso da Avenida Brasil, observa o trio. O menino
acena para ela, que retribui e sorri.
— Para quem você está acenando? —
pergunto intrigado.
— Para o “Padre Félix”, lá em cima, na
passarela.
— Quem é este “Padre Félix”?
— Vocês não se lembram?! Se não se
lembram, esqueçam! É bobagem de criança...
Olhamos para a passarela, mas não vimos
ninguém com uma batina; não a quem
pudéssemos identificar como sendo um “padre”.
Mas podíamos jurar ter ouvido do alto e distante,
vindo da passarela:
— “Vocês formam um casal maravilhoso!!
Paul e Marcele, Marcele e Paul”.
Vagarosamente, saímos os três pela
calçada, caminhando e conversando
animadamente, como antigos amigos o fazem ao
se reencontrarem. Percebemos, a poucos metros
de distância, que um casal nos acompanhava —
provavelmente os pais do menino. Com os olhos
fixados nele, parecia que tentavam compreender
com quem ele estava falando — pois não viam a
nós, só a ele. Nada havia mudado na paisagem ou
no tempo; tudo se manteve, exatamente como
estava antes. Assim também como aos homens,
com suas mazelas, seus fetiches e suas crenças.

Mas para mim e Marcele, o único desafio


seria o de doutrinar aquele menino, fosse para o
bem, fosse para o mal; e, ao final daquela vida,
recolher tal alma. A escolha é individual,
oportunizando ao homem o exercício de tal
faculdade; assim como se dá com a semente que,
depois de plantada e regada, cresce dentro do
tempo propício, transformando-se no fruto.
Da nossa parte, uma vez concluída, nos
restará a cobrança dos impostos. Mas o plantio da
semente e a colheita do fruto pertencem
unicamente aos homens. Para que isso se dê, é
necessário que a alma adquira experiência, e para
isto é necessário que o homem conheça o bem e o
mal.
Então, que assim seja: que ele se incline em
direção a um lado, ou ao outro. E, quiçá, possa
finalmente ser “FELIZ”.

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