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CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988: VINTE E DOIS ANOS -

O QUE ACONTECEU E ESTÁ ACONTECENDO

SILVA, Moizéis Lima da1

RESUMO
Este artigo analisa a repercussão que as normas constitucionais da novel Constituição Federal de 1988
provocam na vida do Estado e da população e ressalta algumas mudanças mais significantes em seu texto,
bem como identifica algumas evoluções ou retrocessos, desenhando um panorama crítico do atual estágio
do sistema constitucional brasileiro à luz da análise da efetividade de sua Constituição e, consequentemente,
de seus preceitos.
Palavras-chave: Aniversário da Constituição de 1988. Eficácia Constitucional. Evolução Constitucional.
Direitos Fundamentais. Direito Constitucional.

1 - INTRODUÇÃO
Atualmente, o povo brasileiro vive sob a égide de leis que têm como espeque a Constituição Federal
de 1988, não podendo nenhuma dessas leis preceituar algo que vá de encontro ao que trazido no
texto constitucional, haja vista ser a Constituição norma suprema de todo o ordenamento jurídico,
motivo pelo qual goza de supremacia sobre toda e qualquer lei, inclusive aquelas do direito
internacional, não ficando, destarte, submetida a nenhum outro Estado nem organização interna ou
internacional, a não ser que seja signatário de algum tratado, acordo, protocolo, etc.

Corroborando esse entendimento, Barroso (2009) não destoa quando afirma que

“(...) Na celebrada imagem de Kelsen, para ilustrar a hierarquia das normas


jurídicas, a Constituição situa-se no vértice de todo o sistema legal, servindo
como fundamento de validade das demais disposições normativas. Toda
Constituição escrita e rígida, como é o caso da brasileira, goza de
superioridade jurídica em relação às outras leis, que não poderão ter
existência legítima se com ela contrastarem.” (p. 71, grifo nosso)

A Constituição, segundo Rocha (2003, p. 51), posicionando-se a favor do termo direito


constitucional processual, não é “simples receptáculo do existente, mas consagradora de valores e
princípios criadores de novas práxis jurídicas e sociais que servem de fundamento de validade e
guia hermenêutico de todo o direito”.

1
Acadêmico de Direito da Faculdades Nordeste – FANOR
E-mail: moizeiscam@hotmail.com
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Vendo o imenso valor que a Constituição possui no Brasil e na maioria dos Estados ocidentais que
também a adotam, pode-se inquirir o porquê dessa supervalorização e o que seria uma Constituição
em termos conceituais.

Para um dos maiores estudiosos da área constitucional, Silva (1989) apud Mendes, Coelho e Branco
(2010),

“a Constituição do Estado, considerada sua Lei Fundamental, seria a


organização de seus elementos essenciais: um sistema de normas jurídicas,
escritas ou costumeiras, que regula a forma do Estado, a forma de seu
governo, o modo de aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento de
seus órgãos e os limites de sua ação. Em síntese, a Constituição é o conjunto
de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado.” (p. 57)

Moraes (2003), conceituando o termo Constituição, diferencia Constituição em sentido jurídico de


constituição em sentido amplo - lato senso. Esta, segundo ele, “é o ato de constituir, de estabelecer,
de firmar; ou, ainda, o modo pelo qual se constitui uma coisa, um ser vivo, um grupo de pessoas;
organização, formação.” Citando Canotilho e Moreira, Moraes continua diferenciando, dizendo que

“Juridicamente, porém, Constituição deve ser entendida como a lei


fundamental e suprema de um Estado, que contém normas referentes à
estruturação do Estado, à formação dos poderes públicos, forma de governo
e aquisição do poder de governar, distribuição de competências, direitos,
garantias e deveres dos cidadãos. Além disso, é a Constituição que
individualiza os órgãos competentes para a edição de normas jurídicas,
legislativas ou administrativas.” (2003, p. 36)

Assim, percebe-se a essencialidade do papel de uma Constituição para vida de um Estado, pois é ela
– a Constituição – que marca o nascimento deste e que serve de rocha sobre a qual, no caso do
Brasil, sustenta-se a República Federativa, o Estado Democrático de Direito e todas as instituições a
eles inerentes. Em analogia ao corpo humano, pode-se dizer que a Constituição é o coração, os
pulmões e o cérebro que regulam e possibilitam a manutenção e o desenvolvimento do elemento
social e econômico e do organismo estatal.

Historicamente, as constituições surgiram como fonte primordial do direito das sociedades a partir
da Revolução Francesa de 1789, por meio da qual a lei foi alçada ao posto de substrato a partir de
que se abstraem os comandos normativos que devem dirigir e harmonizar a sociedade, tentando
instalar, com isso, a paz no corpo social.
A ideia de constituição chegou por intermédio dos colonizadores portugueses. A nação portuguesa
era aliada ao sistema romano-germânico, comum a diversos países da Europa, nos quais, segundo
Venosa (2006, p. 75), “as normas surgem vinculadas a preocupações de justiça e moral. Há
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predominância da lei como fonte do Direito.” Assim, o Brasil herdou as mesmas características, por
ter sido colonizado por Portugal, acolhendo o sistema romano-germânico e fazendo com que a lei
fosse adotada como vetor precípuo de ação na sociedade.

Portanto, a soma de nossa tradição romano-germânica com a notoriedade dada pela Revolução
Francesa às constituições resultou no atual modelo jurídico vigente no Brasil, modelo este em que a
Constituição é quem capitaneia e quem orienta todo o ordenamento jurídico e, em tese, toda a vida
social. Daí, grosso modo, o seu papel protagonista e destacado na vida ocidental e, particularmente,
brasileira.

2 - OBJETIVO
Construir um panorama crítico da atual situação do sistema constitucional brasileiro, tentando
identificar possíveis avanços e retrocessos ocorridos no decorrer de sua existência, ressaltando
algumas mudanças que vêm sendo feitas desde a sua entrada em vigor e verificando a efetividade de
suas normas no contexto social.

3 - METODOLOGIA
Este trabalho desenvolveu-se a partir de pesquisa bibliográfica realizada em meio eletrônico (artigos
e sites) e em meio impresso (livros e revistas). As obras que serviram de substrato para este estudo
foram escolhidas tendo como paradigma a data de sua publicação, definida como sendo aquela a
partir da instituição da Assembleia Nacional Constituinte, isto é, a partir de 1987. Tendo essa data
em vista, o corpus da pesquisa é composto de 23 obras, das quais 22 foram escritas em língua
portuguesa e 01 traduzida para o português.

4 - RESUTADOS
PARTE I – BREVE HISTÓRICO DAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS
O Brasil, desde o Império, teve várias constituições, as quais tentaram espelhar, como é de praxe, o
momento histórico e os anseios sociais e econômicos, tratando do poder e de sua forma de
exercício. Assim, é forçoso discorrer sobre a história constitucional brasileira para que se tenha uma
noção, uma visão, mesmo que geral, da importância histórica das evoluções e das novidades
trazidas pelo Texto Magno de 1988, sobre as quais se versará mais adiante.
Para estudarmos as características das constituições brasileiras, utilizaremos uma ferramenta que
nos ajudará a desenvolver brevíssimo comentário a respeito delas, ferramenta esta denominada
constitucionalismo, que, segundo Carvalho (2006), “... em termos jurídicos, reporta-se a um sistema

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normativo, enfeixado na Constituição, e que se encontra acima dos detentores do poder (...).” (apud
LENZA, 2010, p. 50)

Entretanto, não é no sentido suscitado por Kildare G. Carvalho que utilizaremos o


constitucionalismo, mas no de Tavares (2006), o qual, em que pese o tom simplista, afirma que
“Numa vertente mais restrita, o constitucionalismo é reduzido à evolução histórico-constitucional
de um determinado Estado.” (apud LENZA, 2010, p. 50)

Assim, abordaremos a evolução histórico-constitucional brasileira, fazendo, todavia, apenas um


levantamento sucinto e rápido das sete constituições que precederam a Constituição Federal de
1988, a qual será tratada isoladamente, e de forma mais profunda, em tópico exclusivo.

Primeira Constituição brasileira, a Constituição de 1824, também conhecida como Constituição do


Império, enquadra-se dentro do rol das constituições outorgadas, ou seja, “elaboradas e
estabelecidas sem a participação popular, através de imposição do poder da época (...).” (MORAES,
2003, p. 39).

As constituições outorgadas remetem ao arbítrio de um poder assemelhado ao do ditador, ou


melhor, plasmado na figura central de um indivíduo - ou de um grupo de indivíduos – que reúne em
si e, quando existe, no Poder Executivo a maioria das funções estatais e que, mais que isso, mitiga a
ação dos Poderes Legislativo - em maior escala - e Judiciário, reduzindo-os a meros atores a
exercerem papéis secundários no cenário que deveria ser democrático.

Com a mesma característica de outorgada da Constituição do Império, houve:


• a Constituição de 1937, do Estado Novo, “(...) inspirada tanto pela Constituição da Polônia,
de 23 de abril de 1935 – o que lhe valeu o apelido de ‘A Polaca’ -, quanto pelas idéias nazifascistas
de Hitler e Mussolini e, ainda, pelo ideário corporativista do Estado Novo português (...)”.
(MENDES, COELHO e BRANCO, 2010, p. 233-234) Sendo a quarta Constituição do Brasil e a
terceira da República, a Constituição de 1937 concentrou muitas funções no Chefe do Executivo, o
qual tinha poder de nomear os interventores estaduais, ou seja, os governadores dos estados. Uma
vez nomeados, os interventores estaduais nomeavam, por sua vez, as autoridades municipais.
• a Constituição de 1967, “na mesma linha da Carta de 1937, (...) concentrou, bruscamente, o
poder no âmbito federal, esvaziando os Estados e Municípios e conferindo amplos poderes ao
Presidente da República.” (LENZA, 2010, p. 111) A Constituição em comento teve como
prioridade a segurança nacional e buscou centralizar os poderes no Executivo Federal, bem como

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“reduziu a autonomia individual, permitindo a suspensão dos direitos e garantias constitucionais
(...).” (OLIVEIRA, 2008, p. 149)
• A Emenda Constitucional nº. 1, de 17/10/1969 é objeto de controversa na doutrina,
existindo autores que não a consideram Constituição e outros que a consideram como tal. Dentre
estes últimos, encontra-se Lenza (2010), que, nesse sentido, preleciona que

“Sem dúvida, dado o seu caráter revolucionário, podemos considerar a EC


n. 1/69 como a manifestação de um novo poder constituinte originário,
outorgando uma nova Carta, que ‘constitucionalizava’ a utilização dos Atos
institucionais.” (p. 114)

A Constituição Federal de 1969 também teve como consectário uma grande concentração de poder
político no chefe do Executivo Federal, à semelhança da Constituição anterior.

Felizmente, no constitucionalismo brasileiro, existiram constituições promulgadas – também


conhecidas como “democráticas ou populares” (OLIVEIRA, 2008, p. 26) -, as quais são fruto do
labor de representantes do povo, eleitos com o fito de construírem uma nova Carta Política para o
Estado e a Nação.

Versando sobre o conceito daquelas, Alexandre de Moraes acentua que, em síntese, “São
promulgadas (...) as Constituições que derivam do trabalho de uma Assembleia Nacional
Constituinte composta de representantes do povo, eleitos com a finalidade de sua elaboração.”
(2003, p. 39)

Desse modo, identificam-se enquadradas no conceito de promulgadas as Constituições brasileiras


de 1891, 1934, 1946 e 1988. As três primeiras tiveram como principal distintivo a inspiração das
ideias liberais e sociais, “procurando harmonizar o princípio da livre-iniciativa com o da justiça
social.” (LENZA, 2010, p. 108)

PARTE II
I – CONJUNTURA HISTÓRICA PRÉ-CONSTITUIÇÃO DE 1988

Estivemos mal. Em 31 de março de 1964, tropas de Minas Gerais e São Paulo saíram às ruas para
depor o Presidente João Goulart (Jango). Era o Golpe Militar, que iniciava um dos piores períodos
da história do Brasil no que tange à observação dos direitos fundamentais: a Ditadura Militar (1964-
1985).

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A Ditadura Militar é um período da história política brasileira no qual os militares governaram o
Brasil. Foi caracterizada pela ausência de democracia, desrespeito aos direitos e garantias
constitucionais, censura e perseguição àqueles que lhe eram opositores.

Dentre aqueles que se opunham ao regime implantado, estava Ulysses da Silveira Guimarães, que,
com o denodo que lhe era peculiar, denunciou a “eleição” indireta, na qual os militares indicavam
um general para a Presidência e este, depois de indicado, era “escolhido” pelo Congresso Nacional,
por meio de votação.

Ulysses saiu em campanha ou, como ele gostava de dizer, “anticampanha”, denunciando com
bravura a farsa das eleições indiretas. Nas palavras dele, no primeiro discurso com o qual dava
início à anticampanha, proferido em meados de 1973, “O paradoxo é o signo da presente sucessão
presidencial brasileira. Na Situação, o anunciado como candidato, em verdade, é o Presidente, não
aguarda a eleição e sim a posse.” (FIGUEIREDO, 2003, p. 438)

No mesmo discurso, continuando sua crítica-denúncia ao Regime Militar e sabendo das


perseguições, da inobservância das previsões constitucionais, da censura, das torturas e assassinatos
perpetrados pelo governo militar, Ulysses arremata:

“Não é o candidato que vai percorrer o País. É o anticandidato, para


denunciar a antieleição, imposta pela anticonstituição que homizia o AI-5,
submete Legislativo e o Judiciário ao Executivo, possibilita prisões
desamparadas pelo habeas corpus e condenações sem defesa, profana a
indevassabilidade dos lares e das empresas pela escuta clandestina, torna
inaudíveis as vozes discordantes, porque, ensurdece a Nação pela censura à
imprensa, ao rádio, à televisão, ao teatro e ao cinema.” (FIGUEIREDO,
2003, p. 439)

O Governo Militar, entrincheirado no Poder Executivo, sobrepujava a separação de Poderes, a qual


foi extremamente violentada quando se iniciou intenso controle sobre o Poder Legislativo, que foi o
que padeceu mais intensa e dramaticamente da ação da Ditadura Militar. Nesse sentido, Barroso
(2010) observa:

“Ao longo do regime militar, o Poder Legislativo foi o que sofreu as


conseqüências mais graves do autoritarismo. Com efeito, inúmeros de seus
membros, de 1964 a 1977, tiveram os mandatos e direitos políticos
cassados. Nesse período, em diversos momentos, o Congresso Nacional foi
fechado, passando o general-presidente a concentrar todos os poderes
legislativos, inclusive os de reforma constitucional.” (p. 37)

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O mesmo autor, discorrendo sobre a conjuntura histórica na qual já se podia vislumbrar o ocaso da
Ditadura no horizonte da esperança, postulou o seguinte:

“A censura à imprensa e às artes, a proscrição da atividade política e a


violenta perseguição aos opositores do regime criaram o ambiente de
desesperança no qual vicejou a reação armada à ditadura, manifestada na
guerrilha urbana e rural. A tortura generalizada de presos políticos imprimiu
na história brasileira uma mancha moral indelével e perene. A abertura
política, ‘lenta, gradual e segura’, teve seu início sob a presidência do
General Ernesto Geisel, que tomou posse em 15 de março de 1974.”
(BARROSO, 2008, p. 257)

Depois do General Ernesto Geisel, toma posse, em março de 1979, o general João Baptista
Figueiredo, em cujo governo foi promovida a Anistia (Lei 6.683/79) e a liberdade partidária. Esta
última permitiu a implantação do pluripartidarismo.

O que possibilitou e, mais do que isso, causou, além de outros fatores, a queda do regime ditatorial
militar, implantado em 1964, foi a crise aguda de falta de legitimidade do Governo e das medidas
por ele adotadas. A insatisfação era gradual e cada vez mais intensa, chegando ao ponto de, como já
ressaltado, formarem-se grupos guerrilheiros, a exemplo do Comando de Libertação Nacional
(Colina), do qual a Presidenta eleita do Brasil, Dilma Rousseff, fez parte.

Um governo que não tem legitimidade de seus governados não consegue sustentar-se por muito
tempo no poder. A legitimidade, conceitualmente, afigura-se no âmbito das convicções pessoais
ideológicas, das percepções subjetivas do corpo social, de critérios axiológicos que orientam a
avaliação do indivíduo sobre o governo que se lhe impõe.

Ainda sobre a legitimidade, traz-se a opinião inelutável do nosso erudito conterrâneo, Bonavides,
que afiança:

“A legitimidade (...) inquire acerca dos preceitos fundamentais que


justificam ou invalidam a existência do título e do exercício do poder, da
regra moral, mediante a qual se há de mover o poder dos governantes para
receber e merecer o assentimento dos governados.” (2003, p. 115)

Assim, a Ditadura Militar padecia de um mal incurável: a ausência de legitimidade, motivo por que
veio a ruir, aos poucos, sendo esmagada pela consciência crescente de que seu tempo havia
esgotado-se, o que, por sua vez, desembocou na transição iniciada pelo General Ernesto Geisel e
continuada pelo General Figueiredo.

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Foi ainda no governo do General Figueiredo que ocorreu o movimento Diretas já, que pleiteava a
realização imediata de eleições presidenciais. Contudo, tal movimento não logrou êxito, tendo sido
objeto da última vitória do decadente governo militar.

Entretanto, além de movimentos como o Diretas já, foi graças a pequenas atitudes altruístas - frutos
da ausência de legitimidade - de heróis anônimos de não aceitação do regime posto que este foi
sendo, paulatinamente, sabotado e enfraquecido. Entre heróis anônimos e renomados, podem-se
citar os que foram presos, torturados, exilados ou mortos, membros da sociedade civil; instituições
como a OAB; e, além de vários outros, magistrados e juristas, pois estes - e principalmente estes –
não poderiam ficar calados diante de um regime legal, mas que ia contra a vida, a liberdade e os
Direitos Humanos. Nesse sentido, merece destaque a fala lúcida e cheia de simbolismo do jurista
João Baptista Herkenhoff, abaixo exposta, sobre a atitude a ser adotada pelo jurista diante de
arbítrios do Estado:

“A única coisa, a nosso ver, intolerável é que, em face do esmagamento do


ser humano, pela força de sistemas legais opressivos, não possa o jurista
dizer, como o profeta, ante o opressor: ‘mesmo com a lei e a força nas mãos,
não te é lícito fazer isto’” (2001, p. 28)

Em janeiro de 1985, o Colégio Eleitoral elegeu a chapa contrária à situação, alçando à Presidência
da República Tancredo Neves e seu vice, José Sarney.

Chegava ao fim o Regime Militar e tinha início a Nova República.


II - CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
1. Preparativos da Constituição
Conforme narra Barroso (2008), Tancredo Neves adoeceu e não chegou a tomar posse, morrendo
em abril de 1985. José Sarney assume e, cumprindo dívida de campanha assumida por Tancredo,
envia proposta de convocação de uma constituinte ao Congresso Nacional, o qual a aprovou como
Emenda Constitucional nº 26, de 27/11/1985.

Instalada em 1º de fevereiro de 1987, a Assembleia Nacional Constituinte elegeu como seu


presidente o Deputado Ulysses Guimarães.

Após dezoito meses de trabalho, em 5 de outubro de 1988, culminando um processo constituinte


exaustivo e desgastante, objeto de pressão advinda de várias áreas da sociedade e de choques de
poder, foi aprovada a Constituição da República Federativa do Brasil.
2. A Constituição Cidadã

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Batizada de Constituição Cidadã e de Constituição Coragem pelo presidente da Assembleia
Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, a Constituição Federal de 1988, nas palavras dele,
“dividiu competências para vencer dificuldades (...). Andou, imaginou, inovou, ousou, ouviu, viu,
destroçou tabus, tomou partido dos que só se salvam pela lei.” (apud MENDES, COELHO e
BRANCO, 2010, p. 245)

A Carta Política de 1988 é, segundo expressão usada por Inocêncio Mártires Coelho (MENDES,
COELHO e BRANCO, 2010), uma Constituição-Resposta: resposta ao autoritarismo, à censura, à
perseguição política, às torturas, às mortes, ao desrespeito à dignidade humana, às restrições às
liberdades públicas, ao arbítrio, em suma, à Ditadura Militar.

Como apregoa o celebrado Luís Roberto Barroso, “A Constituição de 1988 é o símbolo maior de
uma história de sucesso: a transição de um Estado autoritário, intolerante e muitas vezes violento
para um Estado democrático de direito.” (BARROSO, 2008, p. 259)

Estamos protegidos. Agora, depois da promulgação do Texto Magno de 1988, pode-se dizer que os
cidadãos brasileiros são sujeitos da proteção espessa e blindada do manto da Constituição, tecido
sob a luz da dignidade da pessoa humana, insculpido em seu inciso III, artigo 1º.

Obviamente, a Constituição, ou melhor, a aplicabilidade de suas normas carece de maior


consagração, mormente no que se refere à melhoria da efetividade de seus preceitos concernentes
aos direitos sociais, como aqueles inscritos no artigo 6º, quais sejam: a educação, a saúde, a
alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância e a assistência aos desamparados. É que, apesar de já termos avançado
muito na área dos direitos fundamentais, ainda estamos assaz distantes do plano ideal, que seria
aquele no qual os direitos seriam condizentes com a realidade, ou seja, neste plano ideal, as normas
do dever-ser, da deontologia, passariam a fazer parte do ser, do que realmente existe, do que
deveras acontece no cotidiano, isto é, do ontológico.

Discorrendo sobre as normas constitucionais, Pinto Jr. (2010) faz reflexões rápidas, mas preciosas
sobre a história do constitucionalismo no Ocidente, comentando sobre a realidade que cerca certas
normas constitucionais brasileiras. Ele afirma:

“temos que a Constituição tem em seus dispositivos, caráter de aplicação


direta e imediata, todavia não é o que se observa de forma factual, haja vista
que muitas vezes as normas dispostas em nossa Lei Maior funcionam

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apenas como a demonstração de anseios por parte de nossos legisladores,
tornando-a assim, uma norma de forma geral programática.” (p. 13)

Por outro lado, como advoga patrioticamente Inocêncio Mártires Coelho, mas alertando que não se
deve ter nenhuma espécie de temor reverencial nem se deve deixar de analisá-la criticamente, “(...)
idiossincrasias à parte, a Constituição da República Federativa do Brasil (...) é a nossa carta
política, a lei suprema da nossa terra, a lei sob cujos preceitos nós exercemos os nossos direitos e
cumprimos os nossos deveres.” (MENDES, COELHO e BRANCO, 2010, p. 247)
3. Análise da Constituição de 1988
Sendo considerada constituição analítica (aquela que contém muitos artigos, que é muito extensa e
que possui normas constitucionais materiais e formais), a CF/88, precedida de incisivo Preâmbulo,
possui 346 artigos, entre disposições permanentes e disposições transitórias, e já conta com 72
Emendas, das quais 6 são Emendas de Revisão.

Lenza (2010) lembra que Constituição de 1988 é democrática e liberal, tendo sofrido forte
influência da Constituição Portuguesa de 1976. Outro ponto importante foi a continuação da
característica laica do Estado brasileiro, inexistindo, por ser o Brasil um país leigo, laico ou não
confessional, religião oficial.

Podem-se identificar certas normas constitucionais que remetem a características socialistas, tais
como a do já citado artigo 6º, além daquelas que, por exemplo, no artigo 5º, preveem a igualdade
(caput e inc. I), a função social da propriedade (inc. XXIII), a gratuidade da assistência jurídica
integral aos que comprovarem insuficiência de recursos (inc. LXXIV), a isenção de alguns impostos
para a pequena propriedade rural (inc. XXVI), citando somente algumas ocorrências.
Nesse sentido, Cintra, Grinover e Dinamarco (2006, p 88) afirmam que, para a efetivação da
garantia de que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (inc.
XXXV, art. 5º, da CF/88), esta assegurou a assistência judiciária aos, comprovadamente,
insuficientes de recursos e estendeu-a à assistência jurídica pré-processual, ao instituir a Defensoria
Pública, que é cercada de várias das garantias reconhecidas ao Ministério Público. Como assevera
Borge (2010), em valoroso artigo sobre a história da Defensoria Pública no Brasil veiculado na
internet, “o constituinte originário deferiu grau de relevância à Defensoria Pública, tendo-a, à
semelhança do Ministério Público, instituição fundamental à Justiça e, ainda, essencial à função
jurisdicional do Estado.”

A Constituição de 88 é o palco onde ideologias políticas, no mínimo, diferentes vêm à baila para
garantir a busca de uma sociedade melhor, utilizando-se, para tanto, do máximo de ferramentas

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possível para atingir esse fim, mormente quando, na medida do possível, aliam-se características
tanto liberais-capitalistas quanto sociais-comunistas.

Nesse sentido, Daniel Sarmento (2010) afirma que nossa Carta Magna caracteriza-se por ser
compromissória, pois não plasma nenhuma ideologia política pura, mas, ao revés, nasce de um
acordo ou de uma soma de ideários que se chocaram na Assembleia Constituinte, os quais eram
representados pelos diversos seguimentos sociais que se fizeram presentes nela.

Diz aquele autor que “o pluralismo social existente na sociedade brasileira transplantou-se para o
seio da sua Constituição, que abriga preceitos inspirados em visões de mundo nem sempre
convergentes.” (SARMENTO, 2010, p. 248)

A nossa Constituição não se limitou a definir a organização do Estado e a elencar direitos de


abstenção para restringir o arbítrio estatal. Ela foi além: definiu metas, programas e tarefas a serem
a buscados pela sociedade e pelo Estado, possibilitando, destarte, a definição de projetos, como se
vê no artigo 3º do Texto Magno, onde se definem os objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil.

São essas características que, grosso modo, corroboram a concepção de Canotilho (2001) de
constitucionalismo dirigente. Nesse quadro, a Constituição de 88 é, então, definida como dirigente
ou programática, haja vista que ela se plasma na forte dimensão prospectiva, cujos desideratos
expressam-se no com o fito de pautar e inspirar a labuta das forças políticas e sociais.

É a partir daí e com esse objetivo que se coloca o sistema de direitos fundamentais, cujo conteúdo
nos fornece um rol não exaustivo de direitos civis, políticos e sociais, que visam a garantir o
respeito, a efetividade e a aplicabilidade dos direitos concernentes à igualdade, liberdade e
fraternidade, frutos das Revoluções Burguesas iniciadas na Revolução Francesa de 1789.

Pela própria estrutura das disposições constitucionais, percebe-se o estabelecimento de prioridades


pelo constituinte de 88: diferentemente das outras Constituições brasileiras, a CF/88 coloca os
direitos e garantias fundamentais antes da definição da estrutura do Estado, que passou a ter como
paradigma de ação a dignidade da pessoa humana, conforme preceitua o inciso III, art. 1º, da Carta
Magna.

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A título exemplificativo, cita-se a Constituição de 1967, que trazia os princípios fundamentais do
Estado; a competência da União, dos Estados, Municípios, do Distrito Federal e Territórios; a
definição do Sistema Tributário; as atribuições dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, e
etc.; só deixando para tratar dos direitos e garantias individuais no artigo 154, quase no final do
texto constitucional, que era composto de 189 artigos. Destoando, destarte, da Constituição de 88,
que, como ressaltado, já os traz no artigo 5º, ou seja, antes mesmo da demarcação da estrutura
estatal, consagrando modelo já adotado no último pós-guerra pelas Constituições ocidentais,
especialmente a Constituição de Portugal, de 1976, e da Espanha, de 1978, que influenciaram
sobremaneira a nossa Carta Magna.

Outrora fragilizados e usurpados em suas funções, o Poder Legislativo e o Judiciário foram


fortalecidos pela Constituição Cidadã, a qual nem por isso desproveu o Executivo das ferramentas
necessárias para bem cumprir sua relevante função administrativa do Estado.

Reconhecendo a indispensável função exercida por algumas instituições, a Constituição de 88 deu-


lhes nova roupagem e, mais que isso, novo papel. Exemplo maior disso foi o Ministério Público,
que surgiu totalmente diferente do que era quando do regime constitucional anterior, não sendo
mais visto como apenas um braço do Executivo.

O Ministério Público se agigantou, enrobusteceu-se, ganhou densidade constitucional que lhe


proporciona os mais amplos poderes e garantias para promover a justiça e realizar o direito, atuando
em nome da Sociedade e do Estado e lutando na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e
dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Em suma, nas palavras do douto Inocêncio
Mártires Coelho, “o Ministério Público foi alçado à condição de uma supercriatura constitucional
(...)” (MENDES, COELHO e BRANCO, 2010, p. 249)

Outra importante mudança trazida pela CF/88 foi o novo modelo de controle de concentrado de
constitucionalidade, cuja funcionalidade foi arejada e ampliada com o alargamento do rol de
agentes legitimados a provocar o Supremo Tribunal Federal (STF) a manifestar-se sobre a
constitucionalidade, em tese, das leis e atos normativos federais ou estaduais, que se resumia, sob o
regime das Cartas Políticas de 1967/1969, ao Procurador-Geral da República. Tal rol transmudou-se
daquele único legitimado para um total de oito agentes aptos a consultar o STF.

Bem assim foi a introdução da ação declaratória de constitucionalidade (Adecon), que tem por
objetivo provocar a jurisdição constitucional para que declare a validade de normas cuja

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legitimidade constitucional, sendo posta em dúvida e para que não se tenha prejuízo à comunidade,
possa ser definida ou não. A ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) é,
outrossim, outra novidade posta pela CF/88, sendo utilizada para evitar ou reparar lesão a preceito
fundamental resultante de ato do Poder Público da União, dos Estados ou dos Municípios e tendo
caráter subsidiário, vez que se aplica às matérias que não se subsumem à Adecon nem à Adin (ação
direta de inconstitucionalidade). Esta tem por finalidade provocar o STF para consultar-lhe sobre a
adequação à Constituição de leis e atos normativos federais ou estaduais.

A par dessas armas cidadãs trazidas pela Constituição de 88, alinhamo-nos ao relato desenvolvido
por Cintra, Grinover e Dinamarco (2006) e à seguinte constatação: “Pode-se dizer, pois, sem
exagerar, que a nova Constituição representa o que de mais moderno existe na tendência à
diminuição da distância entre o povo e a justiça.” (p. 88)

Assim, conclui-se que a Constituição de 1988 é o núcleo firme que dá sustentação ao edifício de
direitos garantidos ao cidadão. É ela que nos protege a todos, minorias e maiorias, idosos, crianças,
índios, afrodescendentes, pois é a ela que se pode e deve recorrer quando do sofrimento de ameaça
ou lesão a direitos, por meio do Judiciário.
4. O que mudou na Constituição?
O Direito é a seara na qual se coligem os valores sociais, devendo-se levar em consideração os usos
e costumes, o contexto temporal e o lugar onde se desenvolve para que o ordenamento jurídico – as
leis, os princípios, etc. - tenha coerência com a sociedade sobre a qual vai incidir. Assim, o Direito
deve estar sensível às aspirações do corpo social, guardando coerência com ele. No dizer do célebre
Miguel Reale (2002, p. 6), “o Direito é ordenação que dia a dia se renova.”
Para o grande escritor, político e filósofo francês, barão de Montesquieu (1996), em sua
clássica obra O Espírito das Leis, o direito e as suas normas

“devem ser relativas ao físico do país; ao clima gélido, escaldante ou


temperado; à qualidade do terreno, sua situação e grandeza; ao gênero de
vida dos povos, lavradores, caçadores ou pastores; devem estar em relação
com o grau de liberdade que sua constituição pode suportar; com a religião
de seus habitantes, com suas inclinações, com suas riquezas, com seu
número, com seu comércio, com seus costumes, com seus modos.” (p. 16-
17)

Se o Direito é assim, o Direito Constitucional não poderia fugir a essa regra. Por isso, a
Constituição de 88, consagrando os fatores reais do poder e atendendo às necessidades prementes
da sociedade, como interesses econômicos e políticos, permite-se ser modificada para adequar-se à
transformação social constante, por meio de emenda, que, para ser aprovada, exige discussão e

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votação em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver,
em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros (art. 60, § 2º).

Sendo assim, a Constituição sofreu 72 emendas, as quais causaram mudanças em diversas matérias,
desde o incremento de direitos sociais - como o direito à moradia e à alimentação (emendas 26/2000
e 64/2010) – até mudanças na duração do mandato presidencial, de cinco para quatro anos (ECR
5/94).
4.1. As Emendas Constitucionais de Revisão
As alterações iniciaram-se com as Emendas Constitucionais de Revisão (ECR) previstas no artigo
3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Contando um número de seis, as
Emendas de Revisão versaram sobre temas como a inclusão no ADCT dos artigos 71, 72 e 73, que
instituíram o Fundo Social de Emergência (ECR 1/94); a ampliação dos agentes que podem ser
convocados pela Câmara dos Deputados, Senado Federal e suas Mesas, ou qualquer de suas
comissões (ECR 2/94); os requisitos da nacionalidade e sua manutenção, previstas no artigo 12
(ECR 3/94); a inserção das expressões “a probidade administrativa, a moralidade para o exercício
do mandato, considerada a vida pregressa do candidato” ao parágrafo 9º, art. 14, que versa sobre os
Direitos Políticos (ECR 4/94). Foi justamente a inserção dessas expressões que possibilitou a
elaboração da Lei Complementar n. 135, de 4 de junho de 2010, conhecida como Lei da Ficha
Limpa, que teve controvertida aplicação às eleições do ano de 2010.

Ainda nas Emendas Constitucionais de Revisão, destaca-se a ECR 5/94, a qual alterou o artigo 82
da CF/88, reduzindo o mandato presidencial de 5 para 4 anos. A ECR 6/94 incluiu o parágrafo 4º
no artigo 55, cuidando da renúncia de parlamentar submetido a processo que vise ou possa levar à
perda do mandato, suspendendo os efeitos da renúncia até deliberações finais de que tratam os
parágrafos 2º e 3 º do mesmo artigo.
Como se vê, as Emendas de Revisão trataram de temas pontuais, tendo sido a mais relevante
delas a ECR 5/94, que reduziu o mandato presidencial. A revisão constitucional, que teve como
Relator o Deputado Nelson Jobim, por vários motivos, não logrou muito sucesso, haja vista a falta
de liderança do governo no processo; o boicote dos partidos de esquerda; o fato de que, durante a
revisão, o Congresso atravessou grave crise, com a CPI do Orçamento, que desvendou esquema de
corrupção envolvendo diversas lideranças parlamentares; e a aproximação do período eleitoral de
1994. Motivos estes listados por Daniel Sarmento (2010), na opinião do qual a revisão
constitucional “acabou revelando-se um fiasco, com a aprovação de pouquíssimas mudanças no
texto magno”. (p. 259)
4.2. Algumas Emendas à Constituição

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Além das mudanças trazidas à seara constitucional pelas Emendas de Revisão, houve outras, que
não de revisão, mas advindas do poder constituinte reformador, com o qual se pode, seguindo
rigoroso e dificultoso processo inerente às Constituições rígidas, modificar o Texto Magno, sempre
se respeitando as cláusulas pétreas e os novos direitos fundamentais que, uma vez concedidos, não
podem sofrer revogação - o que consubstancia o princípio da vedação de retrocesso ou efeito
Cliquet - ou, em outras situações, que não podem ser alteradas de nenhuma forma (este ponto é
controverso na doutrina), como as regras do artigo 60 que definem e estatuem o processo de
modificação do texto constitucional e os seus limites.

Abre-se um parêntese aqui para falar-se um pouco mais sobre o princípio da vedação de retrocesso,
que foi chamado pelo Conselho Constitucional Francês de Efeito Cliquet (effet cliquet). Segundo
esse princípio, os benefícios criados na área de direitos fundamentais não podem ser retirados, pois,
uma vez instituídos, não estariam passíveis de redução, exceto quando eles forem substituídos por
mecanismos igualmente eficazes para atingir o mesmo objetivo visado primeiramente ou para
aperfeiçoar a sua consecução. Assim, se, por exemplo, o direito à alimentação foi inserido no caput
do artigo 6º (CF/88) - que trata dos direitos sociais -, esse direito não poderá ser de lá abolido,
exceto se for substituído por outro dispositivo que ofereça garantias com eficácia análoga.

Fecha-se o parêntese com as palavras de George Marmelstein Lima:

“A idéia por detrás do princípio da proibição de retrocesso é fazer com que o


Estado sempre atue no sentido de melhorar progressivamente as condições de
vida da população. Qualquer medida estatal que tenha por finalidade suprimir
garantias essenciais já implementadas para a plena realização da dignidade
humana deve ser vista com desconfiança e somente pode ser aceita se outros
mecanismos mais eficazes para alcançar o mesmo desiderato forem
adotados.” (2008)

Dentre as alterações, destaca-se a controvertida Emenda Constitucional (EC) n. 16/97, que


possibilitou a reeleição do Presidente da República e dos chefes dos Executivos estaduais, distrital e
municipais.

A reforma administrativa, fruto da EC n. 19/98, implantou-se com o fito de tornar mais eficiente,
econômica e gerencial a Administração Pública brasileira. Logo em seguida, com intuito de lutar
contra o déficit do sistema previdenciário, promulgou-se a EC n. 20/98, que capitaneou e iniciou a
reforma da Previdência no apagar de luzes do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso
(1995-98).

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A limitação temática e a vedação de reedição das medidas provisórias foi objeto da EC n. 32/2001,
que, sensível ao uso desarrazoado daquelas, tentava impedir que chegassem ao mesmo ponto
insustentável em que chegaram os conhecidos decretos-lei que povoaram o ordenamento jurídico
brasileiro. O uso pródigo e sem pudor da ferramenta constitucional denominada medida provisória
pode resultar na invasão da atribuição do Poder Legislativo e no desrespeito à separação de Poderes
acolhida pela Constituição Federal de 1988, especificamente, em seu artigo 2º. Mostrando-se
preocupado e dispensando ácida crítica sobre o mau uso das medidas provisórias, o conceituado
Bonavides (2004) postula o seguinte:

“O país vive, por conseguinte, o pesadelo daquelas medidas provisórias.


Com elas se destrói, a cada passo, o princípio da separação de poderes e se
instala, pouco a pouco, diante dos erros, recuos e omissões do Legislativo e
do Judiciário, uma espécie de ‘ditadura constitucional’, a qual, sendo uma
contradição em termos, nem por isso deixa de ser a realidade que
efetivamente começa a reger a nossa vida institucional cotidiana,
suspendendo na prática algumas garantias constitucionais do Estado
Democrático de Direito.” (p. 668-669)

Em 21 de dezembro de 2001, foi promulgada a Emenda Constitucional n. 35, que trouxe


modificações e novidades para o instituto das imunidades parlamentares, que são divididas em
imunidade material ou penal e imunidade processual. Conceituando aquela, Capez desenvolve o
seguinte trecho: “Imunidade material: os deputados e senadores são invioláveis, civil e
penalmente, em quaisquer de suas manifestações proferidas no exercício ou desempenho de suas
funções.” (2010, p. 106)

O mesmo autor, referindo-se à imunidade processual, afirma que, antes da EC 35/2001, aquela
consistia na necessidade de prévia licença da Casa respectiva para processar o parlamentar, isto é, o
STF pleiteava, depois do oferecimento da denúncia, autorização à Câmara dos Deputados ou ao
Senado Federal, de acordo com o caso, para a instauração do processo. Vislumbrava-se, então, essa
autorização como condição de prosseguibilidade: o processo só prosseguiria se houvesse
autorização para tanto.

Com a emenda 35/2001, segundo Capez, “O Controle legislativo deixou de ser prévio, passando a
ser posterior: não existe mais a possibilidade de licença prévia.” (2010, p. 108). Assim, a
autorização prévia da respectiva Casa deixou de ser pressuposto obrigatório, passando, destarte, a
ser possível a sustação do andamento da ação no STF, por iniciativa de partido político representado
na respectiva Casa e pelo voto da maioria de seus membros, até a decisão final.

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Ainda uma vez sobre a reforma previdenciária, já no primeiro governo Lula (2003/2007), editou-se
a Emenda Constitucional n. 41, a qual dava continuidade à reforma da Previdência, tentando reduzir
o déficit entre os benefícios públicos e privados.

Dentre as últimas Emendas Constitucionais, uma das que geraram mais mudanças foi a EC n.
45/2004. Foi ela que implantou a reforma do Judiciário e que ventilou suas ideias e ações na busca
de oferecer uma prestação jurisdicional cada vez melhor.

Entre outros benefícios, podem-se destacar dois pontos positivos instituídos por essa emenda: a
criação da Súmula Vinculante e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Este ficou responsável
pelo “controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos
deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas
pelo Estatuto da Magistratura (...)” (art. 103-B, parágrafo 4º, CF/88).

Apesar de ser elencado entre os órgãos do Poder Judiciário (art. 92, inciso I-A), o CNJ é
considerado órgão de controle externo, criado pela necessidade premente de punirem-se os
desmandos levados a cabo por alguns tribunais e juízes, motivo pelo qual sua criação sofreu grande
resistência, mormente de segmentos do próprio Judiciário, que não simpatizavam com a idéia de
sofrerem reprimendas, admoestações, orientações, recomendações nem, muito menos, punições.

Ressaltando o aparecimento tardio dessas medidas, Coelho (2010) observa o seguinte:

“Dizemos que foi uma providência serôdia porque só veio a ser adotada 14
anos depois de promulgada a Constituição de 1988 (...), quando se fez mais
intenso o clamor contra notórios desmandos de juízes e tribunais,
especialmente no âmbito administrativo, sem qualquer repressão efetiva por
parte dos órgãos disciplinadores da magistratura.” (MENDES, COELHO e
BRANCO, 2010, p. 250)

Decorridos quase 6 anos de sua criação (a EC 45 foi promulgada em dezembro de 2004), pode-se
dizer que a sociedade tem muito a comemorar, não somente pelo tolhimento de comportamentos
abusivos que esporadicamente feriam a magistratura nacional, mas também pela constatação de que
a busca da melhoria da prestação jurisdicional é pautada, doravante, na coordenação segura de
ações e na gestão responsável de recursos, essenciais para a administração da Justiça.

O outro ponto positivo a ser aqui citado com relação à Emenda Constitucional n. 45/2004 é a
criação da Súmula Vinculante, a qual pode ser editada pelo Supremo Tribunal Federal a partir de
decisões reiteradas sobre matéria constitucional, devendo ser respeitada, a partir de sua publicação
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na imprensa oficial, pelos demais órgãos do Poder Judiciário e pela administração direta e indireta,
nas esferas federal, estadual e municipal.

Com a Súmula Vinculante (art. 103-A, CF/88), o STF pode fazer respeitar decisões que já têm
entendimento bem definido em seu âmbito, tornando-o obrigatório e promovendo, destarte, uma
uniformização da jurisprudência - conjunto de soluções dadas sobre questões legais específicas. -
dos Juízos e Tribunais.

Em que pese o seu auxílio à melhoria da prestação jurisdicional, a Súmula Vinculante - que, na
opinião de Coelho (MENDES, COELHO e BRANCO, 2010, p. 255), foi alçada à condição de
superlei - é objeto de algumas críticas, dentre as quais, a que diz com o fato de ela dar uma força
demasiado ampla ao Poder Judiciário, o que faz doutrinadores do porte de Eliaz Días (apud
MENDES, COELHO e BRANCO, 2010, p. 254) refletirem sobre se o Estado Constitucional de
Direito não é uma máscara que esconde um Estado Judicial de Direito.

A par dessas alterações, há outras não menos importantes, mas que aqui não mereceram
acolhimento pela natureza do trabalho – artigo científico – que, por definição, não pode ser
demasiado extenso, o que prejudicaria a transmissão de ideias.

As mudanças constitucionais, em que pesem críticas sobre a sua intensidade e frequência


exagerada, vêm para atender a uma necessidade nascida da sociedade ou de setores que constituem
os fatores reais de poder, sendo, desse modo, necessárias à manutenção da ordem constitucional,
sempre, obviamente, respeitando-se aquelas normas constitucionais impassíveis de mitigação ou,
até mesmo, como já se falou supra (item 4.2), de alteração.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O percurso desenvolvido até agora pela Carta de Outubro não foi plano: houve crises, dentre as
quais, citam-se o impeachment de Fernando Collor e o episódio que ficou conhecido como
Mensalão, no governo Lula. Em outras conjunturas históricas, crises como essas poderiam gerar
golpes como o do Estado Novo, de 1937, e o da Ditadura Militar, de 1964. Felizmente, os
mecanismos trazidos pela Constituição Cidadã foram suficientes para solucionar as tensões que se
apresentaram sob sua égide. As eleições ocorrem periodicamente, conforme o mandamento
constitucional. Elas são livres e têm regularidade, o que demonstra a consideração de que gozam os
preceitos insculpidos no Texto Maior.

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As forças políticas têm respeitado o ordenamento constitucional, na medida em legitimam o
domínio dele, que tem regido e solucionado satisfatoriamente os litígios que se lhe apresentam.
Aparentemente, não há entes políticos relevantes que tenham o desiderato de subverter as regras do
jogo constitucional em prol de interesses particulares. Nesse sentido, Barroso (2008) assevera o
seguinte:

“A Constituição de 1988 foi o rito de passagem para a maturidade


institucional brasileira. Nos últimos vinte anos, superamos todos os ciclos
do atraso: eleições periódicas, Presidentes cumprindo seus mandatos ou
sendo substituídos na forma constitucionalmente prevista, Congresso
Nacional em funcionamento sem interrupções, Judiciário atuante e Forças
Armadas fora da política. Só quem não soube a sombra não reconhece a
luz.” (p. 259-260)

O Judiciário, não obstante a congestão que atinge seus tribunais e juízes, atua com independência e,
principalmente depois da criação do Conselho Nacional de Justiça, está procurando, ao perseguir
metas por este estabelecidas, fornecer uma prestação jurisdicional com um mínimo de qualidade e
celeridade, apesar da escassez de recursos humanos e financeiros para tanto.

Entretanto, há muito por fazer. Na área social, o fantasma da desigualdade está muito forte, de
modo que existe um abismo entre favorecidos e menos favorecidos economicamente em questões
como alimentação, saúde, educação, moradia, lazer, que são quase inacessíveis para os
desfavorecidos e que, se não inacessíveis, no mais das vezes, são de péssima qualidade. A precária
situação dos sistemas de saúde e de ensino públicos, com raras exceções, são exemplos dessa
situação.

A crítica que Bulus (2003) fez em artigo a respeito dos 15 anos da Constituição não deixa, a
despeito do negativismo, de guardar certa pertinência com a realidade e merece destaque por sua
lucidez sobre as mazelas que ainda resistem em nosso País. Ele pontua o seguinte:

“(...) depois de 15 anos, a fome e o desempregou persistem. A


violência urbana, a instabilidade econômica, o preconceito, o
menoscabo às prerrogativas comezinhas da cidadania, também
prosseguem em ritmo avassalador. As promessas do constituinte de
1988 ficaram no limbo. O quadro é caótico, porque não há certeza de
nada, exceto a incerteza de tudo.” (BULUS, 2003)

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Mas estamos melhores e podemos melhorar: a instalação do constitucionalismo calcado no Estado
Democrático de Direito é a vitória de um modelo desenvolvido no pós-segunda guerra. Neste, o
princípio da dignidade da pessoa humana passou a ser o vetor que orienta todas as ações da
maioria dos governos do Ocidente, que baliza o processo legiferante e que fundamenta as decisões e
interpretações judiciais. É a vitória do modelo no qual se busca o bem comum, a limitação de poder,
os direitos fundamentais, a justiça social, a tolerância, enfim, o convívio harmônico e pacífico
daqueles em função dos quais existe o Direito: os seres humanos.

Cada cidadão é parte legítima para reclamar a observância dos direitos e garantias trazidos pela
Constituição, entretanto, nós, juristas, temos uma responsabilidade ainda maior na efetivação das
normas constitucionais e, especialmente, dos direitos fundamentais, haja vista que conhecemos com
mais profundidade as potencialidades daqueles e modo pelo qual se pode concretizá-los. A missão
dos juristas – advogados, juízes, defensores públicos, professores, doutrinadores, promotores,
procuradores, etc. – é lutar pela realização da Justiça, que é o fim do Direito, e pela realização do
bem comum: e a obtenção desses objetivos passa pela consagração dos dispositivos constitucionais.

Sem prejuízo da citada luta para aumentar a efetividade dos direitos fundamentais e para obter
melhorias no nível de vida da população, podemos comemorar: é o aniversário de 22 anos de nossa
Constituição, que foi resultado da pugna e do sacrifício da vida de vários compatriotas.

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