Você está na página 1de 33

Arbitrariedade Saussureana: Saltos e Sobressaltos

Miriam Lemle, UFRJ

0. Introdução

O que pretendo fazer neste trabalho é discutir ferramentas que se apresentam na


teoria da Morfologia Distribuída ao utilizá-las para compreender a sintaxe no interior de
palavras do Português Brasileiro. Gostaria de mostrar que deste novo olhar resulta não
somente um método para descrever palavras complexas, mas nascem explicações para as
regularidades que se observam.
Sobram também algumas irregularidades intrigantes entre a morfologia e a
semântica, que nos deixam com problemas por resolver, e portanto, com desafios. Entre os
desafios, está o de compreender a variação sincrônica e os mecanismos da mudança
diacrônica no âmbito das palavras. Na parte 1, focalizarei a distinção entre a parte do
significado fixada por convenção e a parte calculada por regras de interpretação. Na parte 2
tratarei de problemas na análise sincrônica, e na 3 comentarei alguns casos da mudança
diacrônica quando já está completa. Na parte 4 faço um sumário das tarefas realizadas e
ressalto as principais lições e direções adquiridas nesta viagem nas entranhas de palavras.

1. O convencionado e o computado na leitura de palavras

As séries de palavras em (i) são constituídas pela seqüência nome, adjetivo, verbo,
nome com sufixo -ção, representada estruturalmente nos diagramas em (1):
(i) nação, nacional, nacionalizar, nacionalização
globo, global, globalizar, globalização
indústria, industrial, industrializar, industrialização
nome, nominal, nominalizar, nominalização
fim, final, finalizar, finalização
América, americano, americanizar, americanização
Cristo, cristão, cristianizar, cristianização
urbe, urbano, urbanizar, urbanização
paz, pacífico. pacificar, pacificação
prole, prolífico, prolificar, prolificação
espécie, específico, especificar, especificação

(1) As abreviações nos rótulos significam nome, adjetivo, verbo.


n a v n

Raiz n n a a v v n

glob o Raiz n n a a v

glob ø al Raiz n n a

glob ø al iza Raiz n

glob ø al iza ção


O modelo de gramática da Morfologia Distribuída dá destaque a uma diferença
crucial entre o modo de criar a palavra globo (e as demais que iniciam cada uma das séries)
e fixar seu significado, e o modo de gerar e chegar ao significado de todos os demais
termos em cada série. Em globo, a relação entre a forma da palavra e seu significado
decorre de uma convenção arbitrária. Porém o mesmo não se dá nas palavras derivadas.
Nelas, cada sufixo corresponde a uma determinada operação semântica que resulta em uma
leitura regular em relação ao significado da palavra anterior à qual é juntado. A leitura de
globo é determinada por convenção, mas a de cada uma das palavras subseqüentes da série
iniciada por globo é computada composicionalmente por meio de uma operação a partir da
leitura da palavra imediatamente anterior. O primeiro nome denota uma entidade, o adjetivo
dele derivado denota propriedade típica de coisas relacionadas a essa entidade, o verbo
denota o evento em alguma coisa adquire a propriedade, e finalmente o nome abstrato
denota estado final resultante desse evento.
A proposta formal feita por Alec Marantz [WORDS] para explicar esse tipo de
observação na interface morfologia-semântica é a de que apenas o significado arbitrário é
negociado e resulta em uma leitura convencionada. A convenção se efetiva no momento em
que é feito o merge mais interno, qu se dá entre um traço categorizador e a Raiz. O traço
categorizador é, de início, abstrato, o que significa desprovido de substância fonológica. No
modelo proposto, o módulo da gramática que armazena esses traços categorizadores é
chamado de Lista Um. Estes traços sem som é que são denominados morfemas no jargão
deste modelo, por serem a parte que corresponde mais de perto ao Léxico do modelo
minimalista, a partir do qual a Numeração é selecionada para entrar na derivação. Os
morfemas selecionados são mergidos por fases no módulo sintaxe, e somente ganham
realização fonológica pela inserção - tardia, por ser pós-sintática - das Peças de
Vocabulário, unidades dotadas de informação sintática e fonológica, entre as quais estão os
sufixos.

Arquitetura da
Morfologia Distribuída

traços
Sintaxe abstratos
computação
por fases Lista 1
SPELL-OUT

Itens do Forma Lógica


Vocabulário Inserção
Lexical

Lista 2 Enciclopédia

Lista 3
Leitura
contextuais
fase a fase
Nesta arquitetura da Gramática, cada fase de nova seleção de morfema categorizador na
Lista Um vai determinar, no lado da Forma Morfofonológica, a inserção, no lugar do
morfema, de uma Peça de Vocabulário (um afixo) que contribuirá para a implementação
fonológica do traço categorizador. No lado da Forma Lógica, a seleção de morfema
determinará uma operação semântica correspondente a essa fase. Os afixos, Peças de
Vocabulário, ficam armazenados numa lista de Peças Funcionais que é a segunda lista
(Lista Dois), localizada no módulo da Morfofonologia. As raízes, ao serem selecionadas,
encontram-se despojadas (bare Roots), isto é, desprovidas de marcação de categoria lexical;
e há opiniões divergentes quanto à sua localização no modelo, se na Lista Um ou na Dois.
O módulo cognitivo que armazena o resultado da negociação da parte arbitrária do
significado é a Enciclopédia. Essa fixação do significado acontece no primeiro merge da
Raiz com o traço categorizador já morfologicamente implementado como Peça Vocabular.
A Enciclopédia constitui a interface entre a cognição de mundo e a cognição de gramática,
e é a terceira das listas previstas neste modelo de gramática: a Lista Três. Fixada a
definição de uma palavra na Enciclopédia, ela pode retornar à sintaxe, e novas palavras
podem ser derivadas a partir dela, com seu significado sendo calculado fase a fase, em
Forma Lógica, a partir da acepção vinda da Enciclopédia. O cálculo em Forma Lógica
depende de comandos semânticos codificados nos morfemas, que não possuem,
inicialmente, traços fonológicos mas carregam a informação categorial e alguma semântica.
Nesta arquitetura da Gramática, como se vê, a formação de uma palavra é distribuída. A
inserção das Peças de Vocabulário é tardia, e traz informação fonológica ao ser feito o
pareamento, por fases, das peças aos morfemas sem som selecionados na Lista Um. A
condição que autoriza a inserção de uma Peça de Vocabulário para dar informação sobre a
realização fonológica de um morfema é que os traços da Peça Vocabular candidata à
inserção sejam idênticos aos traços codificados no morfema, ou então sejam um
subconjunto dos traços do morfema abstrato. Neste caso, se diz que a Peça de Vocabulário
é subespecificada.
Resumindo, há duas idéias básicas nos alicerces desta teoria: a de que a parte
idiossincrásica do significado fica estabelecida na categorização trazida pelo merge do mais
interno dos afixos categorizadores; e a de que a parte composicional do significado de
palavras complexas depende de cada um dos afixos categorizadores sucessivamente
mergidos depois daquele que dá a primeira categorização.
Apresentarei a seguir mais alguns exemplos de séries de palavras relacionadas umas
com as outras pelo acréscimo de morfemas, implementados por sufixos, fornecendo após
cada série o diagrama da última palavra, a de tipo mais complexo. O objetivo é ilustrar as
duas idéias básicas da teoria, e começar a apontar as dificuldades que aparecem quando
observamos de perto um bom número de exemplos.

(ii) nome, verbo, nome com sufixo -mento

a. cadastro, cadastrar, cadastramento; letra, letrar, letramento;


tranca, trancar, trancamento; lixa, lixar, lixamento;
pinça, pinçar, pinçamento;

b. mapa, mapear, mapeamento; sucata, sucatear, sucateamento;


(2)
n

v n

n v

Raiz n

cadastr ø a mento

A forma do diagrama (2) por si só já informa que a parte arbitrária do significado


está no constituinte mais interno da palavra; neste caso, é o nome que inicia as séries:
cadastro, tranca, etc. A leitura semântica das palavras formadas a partir do nome é feita
composicionalmente: cadastrar alguma coisa é causar estar seu nome em cadastro, trancar
algo é fazê-lo estar preso sob tranca, pinçar algo é fazê-lo estar preso em pinça, ancorar
uma embarcação é fazer com que fique presa pela âncora, etc. Esse tipo de relação
semântica entre o verbo e o nome já vem descrita desde Hale &Keyser (1993), e é ali
denominada de location e locatum verbs.
Retomada por Marantz, a proposta é que o verbo venha se formando ao longo de
uma derivação que começa com a estrutura sintática diagramada em (2.a) e prossegue com
os deslocamentos descritos em seguida, ao fim dos quais resulta a estrutura em (2):

(2)a v

v r

DP r

r n

-a o cliente r cadastro

A letra r abrevia 'relacionador', e é um morfema da Lista 1, assim como v e n. O n


complemento de r ganha a leitura de alvo ou instrumento; o composto [r + n] sobe para v e
merge com v. Destes deslocamentos sintáticos resulta a configuração em que o DP que
começou em especificador de r acaba por se tornar objeto direto do verbo, um objeto direto
interpretado como tema. A leitura do papel temático do objeto direto do verbo provém da
configuração sintática em que o DP está em Spec de r, como em (2a).

Nos exemplos em (ii)b, o que faz o sufixo -e- em mapear e sucatear? Vejam:
papear, pinotear, rotear, rodear, sacanear, devanear, sapatear, saborear, pavonear-se,
lisonjear, cabecear. A propriedade semântica comum a esses verbos é o aspecto de
iteratividade. Para representar isto, deverá aparecer um nó de aspecto entre os nós r e v de
(2a), e neste nó virá a ser inserido o sufixo -e. Ver a árvore (2b):
(2)b v

v Asp

Asp r

DP r

r n

Raiz n

a e ∅ sucat ∅

(iii) verbo, particípio passado, nome com sufixo -ura

a. rachar, rachado, rachadura; abotoar, abotoado, abotoadura;


atar, atado, atadura; morder, mordido, mordedura;
arranhar, arranhado, arranhadura amassar, amassado, amassadura
fechar, fechado, fechadura; urdir, urdido, urdidura;

b. cobrir, coberto, cobertura romper, roto, ruptura


abrir, aberto, abertura; por, posto, postura;
fazer, feito, feitura; escrever, escrito, escritura;
tingir, tinto, tintura formar, formado, formatura
frigir, frito, fritura estar, estado, estatura
legislar, legislado, legislatura; assinar, assinado, assinatura

c. ler, *lecto, leitura; esculpir, *esculto , escultura;


? , ? , rasura; ? , *fisso, fissura;
cindir, ? , cesura; ? ,misto, mistura
? , culto, cultura ? ,espesso, espessura
? , cinto, cintura ? , ? , sutura

Observando as séries a e b concluímos que o nominalizador -ura merge com o


particípio passado em abstrato, sendo insensível á (ir)regularidade da morfologia. Ver (3).

(3) n

a n

v a

Raiz v

fech a d ura
ab(e)r ø t ura
Vale a pena notar que a forma nominal nesta seqüência é ambígua, podendo
significar um evento ( A abertura dos envelopes é feita pelo secretário) ou uma coisa
resultante (A abertura da garrafa estava cheia de mosquitos). Esta conversão de tipo
semântico não será tratada aqui.
Em c, vemos que o trio de formas muitas vezes tem brechas (transcritas por ?), a tal
ponto que a própria análise se torna questionável. Nas brechas que temos hoje em c , os
nossos antepassados que falavam latim tinham verbos: rasus era o particípio de radere
(raspar); cinctus era o particípio de cingere, (cingir); fissus era o particípio de figere (furar);
mixtum vinha de misceo, misturar; spissus vinha de spiscere, espessar; sutus de suo
(costurar, que por sua vez provém de con+su+t+ur+ are!). Nestes casos, sobreviveram os
particípios, mas os verbos em forma finita caíram em desuso. Nestas circunstâncias,
formou-se um novo modelo para derivar palavras: sendo o particípio um adjetivo, estendeu-
se, em português, a nominalização em -ura a partir de adjetivos. Daí surge a explicação da
elevada quantidade de nominalizações em - ura que não encontram correspondência nas
outras línguas românicas: gordura, largura, grossura, secura, frescura, chatura, gostosura,
bravura, brancura, lisura, quentura, diabrura,....

(iv) verbo, particípio passado, nome com sufixo -or

a. guardar, guardado, guardador; comprar, comprado, comprador;


salvar, salvado, salvador; admirar, admirado, admirador;
congelar, congelado, congelador; aspirar, aspirado, aspirador;
liquidificar, liquidificado, liquidificador; regar, regado, regador

b. escrever, escrito, escritor; cobrir, coberto, cobertor;


conduzir, conduto, condutor; produzir, produto, produtor;
difundir, difuso, difusor; confessar, confesso, confessor

c. emitir, *emisso, emissor; defender, *defenso, defensor;


prometer, *promisso, promissor; transmitir, *transmisso, transmissor;
ler, *lecto, leitor; dirigir, ?direto, diretor;
redimir, *redento, redentor; distair, *distrato, distrator;
redigir, *redato, redator; compor, ?composto, compositor;
construir, *construto, construtor; instruir, *instruto, instrutor;

d. ? ?, professor; ? ? , reitor; ? ? autor ; ? ? , pastor; ? ? agrimensor

O sufixo -or, assim como -ura, entra num nominalizador que merge com particípio
passado, indiferente à sua (ir)regularidade morfológica, como se vê considerando os
exemplos em a e b. Nos conjuntos c e d vemos brechas na derivação. Em d, são duas
ausências, que aniquilam inteiramente o trio, e portanto até mesmo despertam dúvidas
quanto à procedência de considerarmos, em português, estas palavras como incluídas no
grande conjunto. Em latim, a série era completa, e tínhamos em c os verbos profiteor, rego,
augeo, pasco, metior. A questão que aqui fica em aberto é se o predomínio de adjetivos e
nomes em -or cuja derivação passa por um verbo cognato conhecido nos faz perceber uma
base verbal também para os vocábulos em d, apesar de o verbo por si só não estar em uso.
A estrutura sintática está em (4):
(4) n n

a n a n

v a v a

a v Raiz v

Raiz a

liquid ø fic a d or guard a d or


escri ø t or

(v) verbo, adjetivo ou nome com sufixo -nte

a 1. comover, comovente; brilhar, brilhante; cortar, cortante; desinfetar, desinfetante; picar,


picante; provocar, provocante;.descender, descendente; angustiar, angustiante; informar,
informante; gerir, gerente; mandar, mandante; comandar, comandante;

a 2. claudicar, claudicante; crescer, crescente; nascer, nascente; pender, pendente; chamejar,


chamejante; vibrar, vibrante; suplicar, suplicante; desafiar, desafiante.

b 1. decair, decadente; poder, potente; provir, proveniente; convir, conveniente; ver,


vidente, ...

b 2 propor, proponente;

c. crer, crente; protestar, protestante; restaurar, restaurante;; colar, colante; amar, amante;
espumar, espumante; fluir,fluente; atrair, atraente; chocar, chocante

d. ?, crocante; ? , pedante; ? , tenente; ? , contente; ? , corrente; ? , presente; ? ,


ausente; ? , ciente; ?, parente ; ? , permanente; ? , clemente; ?, recipiente; ? , incipiente;
?, ciente; . ?, decente; ? , incandescente; ? , carente

Notar que, ao contrário do sufixo -or que seleciona particípio passado, -nte
seleciona presente: escritor, escrevente. O conjunto a1 é constituído de adjetivos derivados
de verbos, em que a correspondência morfológica é regular e a relação semântica é
transparente. Conforme mostra Medeiros (2007), no subconjunto a1 o adjetivo denota uma
propriedade ou estado inerente do sujeito do verbo (angustiante), e no subconjunto a2, um
processo em andamento no qual o sujeito do verbo atua (vibrante). Notar que no passo de
verbo para adjetivo a operação semântica sincronizada ao acréscimo do sufixo é previsível
exemplo após exemplo.
No conjunto b, a correspondência morfológica entre o verbo, de um lado, e o
adjetivo ou nome, de outro, não é regular. A subdivisão semântica é a mesma dada em a e
b. Notar que a irregularidade morfológica em nada afeta a regularidade semântica da
modificação de significado codificada no sufixo -nte.
No conjunto c a relação semântica entre o verbo, de um lado, e o adjetivo ou nome,
de outro, é idiossincrásica, mas a mesma subdivisão semântica pode ser encontrada.
No conjunto d não existe um verbo cognato em português, embora saibamos, pela
etimologia, que na língua latina existia um verbo que dava a base derivacional a esses
adjetivos. Como descreveremos o estado final nas derivações destas palavras? Ver (5).

(5) a

v a

Raiz v

vibr a nte

(vi) ignorar, ignorante, ignorância; equivaler, equivalente, equivalência; importar,


importante, importância; ascender, ascendente, ascendência; repelir, repelente, repelência;
aderir, aderente, aderência; poder, potente, potência; *obedir, obediente, obediência

Temos em (vi) um conjunto de verbos de estado ou processo, que mergem com o


morfema de participio presente, implementado por -nte. Disso resulta um adjetivo que dá a
leitura de estado concernente ao DP mergido em seu Spec; e, finalmente, esse adjetivo, ao
se combinar com o nominalizador -ia, dá um nome abstrato, interpretado como 'situação em
que vige o estado denotado no adjetivo da fase anterior'. A estrutura sintática do nome
abstrato está em (6):

(6) n

a n

v a

Raiz v

repel ø e nt ia

A representação fonológica do sufixo adjetivador em (7) é dada como -/nt-/ e não como
/nc-/ porque estou assumindo uma regra fonológica de fricativização que muda o /t/ em /s/
diante do sufixo átono /-ia/.

(vii) lavar, lavável, lavabilidade; vencer, vencível, vencibilidade; dividir, divisível,


divisibilidade.
Nesta série, o verbo precisa ser transitivo; o seu objeto direto corresponde ao
argumento externo do adjetivo formado pelo merge do sufixo -bil, e o significado do
adjetivo é 'estado de afetado pela ação denotada pelo verbo'. Com o merge do sufixo -idade
ao adjetivo, cria-se um nome abstrato cujo significado é 'situação resultante pertinente à
coisa que está no estado de afetada pela ação denotada pelo verbo'. Ver (7):
(7) n

a n

v a

Raiz v

lav a bil idade

A apresentação maciça de exemplos, nos sete conjuntos acima, foi feita para ilustrar
a idéia de que há no interior das palavras dois domínios sintáticos que se distinguem na sua
maneira de se relacionarem com o significado: na camada mais interna se dá a primeira
determinação de categoria lexical, e neste ponto o significado é dado por convenção. Esta
representação é a da Enciclopédia. Nas camadas subseqüentes se aplicam recategorizações,
e inserção de novas Peças Categorizadoras, e o significado, nesses pontos, é calculado
composicionalmente a cada novo merge de afixo. Por ser a composicionalidade da
semântica uma propriedade da sintaxe, Marantz defende que o mecanismo que gera
palavras é a sintaxe, a mesma sintaxe que gera sentenças, e não outro módulo que seja
exclusivamente destinado à formação de palavras.

Consideraremos, na seção 2, dados problemáticos nessa interface da sintaxe com a


semântica: palavras que compartilham a mesma raiz mas se distanciam umas das outras no
significado; e palavras em que até mesmo se fica em dúvidas sobre onde fica a
identificação do categorizador.

2. Os problemas

2.1. Dúvidas nas fronteiras

Neste modelo, as Raízes não possuem categoria lexical inerente, e a categorização


em nome, verbo, adjetivo ou advérbio é dada por Peças de Vocabulário que conferem
categoria às palavras. Assim sendo, fica prevista no modelo a possibilidade de existirem
palavras que compartilham a raiz mas recebem categorização distinta na primeira camada
de categorização, e por essa razão a significação destes cognatos, armazenada na
Enciclopédia, pode ser bastante idiossincrásica e distante. Mostrarei a seguir alguns
exemplos deste tipo.

(i) Considerem o adjetivo redondo e o nome redondeza. Na expressão 'provas da


redondeza da terra' a derivação deadjetival de redondeza é regular morfológica e
semanticamente, e podemos nos dar por satisfeitos analisando o nome como derivado do
adjetivo redondo, no qual recai a interpretação saussureana da arbitrariedade, na árvore
(8)a:
(8)a n

a n

Raiz a

redond ø eza

Mas em 'meu gato tem uma namorada nestas redondezas' não temos formação
composicional de significado entre redondo e redondezas: o nome, neste contexto, significa
'área em torno de uma região' .A solução que o modelo oferece para este caso é que o
sufixo formador de nome, -eza, merge diratamente com a raiz para formar o nome
[redond[ezas]]. Desse modo, sem passar pelo significado do adjetivo redondo, o nome
ganha a sua própria semântica idiossincrásica, negociada na fase do merge da raiz
despojada redond- diretamente com o nominalizador -eza. Esta negociação resulta no
significado arbitrário de 'área', negociado sobre a árvore (8)b.

(8)b n

Raiz n

redond eza

(ii) Considerem os nomes sala e salão. Salão não é o aumentativo de sala com
interpretação composicional do sufixo '- ão ' mergido a sala, pois salão tem em sua
definição enciclopédica especialmente o uso do aposento para festas. A questão se resolve
dizendo que o merge do sufixo -ão em (9)b , tal como o merge do nominalizador -a em
sala, é o primeiro merge, feito diretamente com a raiz desnuda sal-. Na definição
enciclopédica de [sal [ão]] entra a informação do uso específico do aposento para festas.

(9)a n (9)b n

Raiz n Raiz n

sal a sal ão

(iii) Considerem o nome 'trancinha', com seus dois significados bem distintos:
'pequena trança de cabelo' e 'intriga, fofoca, maledicência'. O primeiro será gerado pelo
merge do sufixo -inha ao nome trança, [[trança]n + [inha]]n, e o segundo, sem passar por
trança, é lido no ponto do merge desse sufixo diretamente na raiz: [tranc + inha]n.Os
diagramas (10)a e (10)b descrevem a diferença:
(10)a n (10)b n

n n Raiz n

Raiz n tranc inha


[PartPres]

tranc ∅ inha

(iv) Considerem o nome fogo e o adjetivo fogoso. Um arbusto que está ardendo em
chamas não é referido como um arbusto fogoso. Mas um cavalo dando pinotes é tratado
como um cavalo fogoso. Diremos, então, que a sintaxe do adjetivo é [fog + oso], em que
apenas a raiz, não o nome fogo, merge com o sufixo adjetivador. A árvore (11) é a sintaxe
de fogoso, cuja descrição enciclopédica será animal bravio, indomado.

(11) a

Raiz a

fog -oso

(v) Porque não nos damos conta de qualquer noção de restaurar dentro de
restaurante, mas computamos a semântica de restaurar dentro do adjetivo restaurador?
Veja a resposta nos diagramas (12)a e (12)b, notando o detalhe relevante responsável por
esta distinção entre as duas estruturas: há vezinho em restaurador, mas não em restaurante:

(12)a n (12)b a

√ n ppas a

restaur ante v PartPas

√ v

restaur a d or

Distinção idêntica à de restaurante - restaurador parece ser a que temos no par


refrigerante - refrigerador. Dentro de refrigerador, computamos o significado do verbo,
mas muitas pessoas afirmam que não captam refrigerar dentro de refrigerante. Mais um
caso semelhante é o da diferença entre dormente em 'meu pé ficou dormente' e 'um
dormente da ferrovia'. No primeiro contexto há o verbo dormir dentro do adjetivo
dormente, mas dentro do nome há apenas a raiz: [[dorm øe]v nte] a , [[√dorm] ente] n .

(vi) Considerem os exemplos em (v).d da parte 1, repetidos abaixo:


d. crocante; pedante; tenente; contente; presente; ausente; ciente; parente ; permanente;
clemente; recipiente; incipiente; decente; incandescente; carente

Não existe atualmente em português um verbo para cada um destes nomes ou


adjetivos. Em latim, existiam esses verbos: teneo (possuir), contineo (abranger), praesum
(estar à testa), absum (estar afastado), scio (saber), pareo (aparecer), permaneo (persistir),
clemeo (ter benevolência), recipio (recuperar), incipio (começar), decet (convir), candeo
(ser branco), careo (ter falta de).

A pergunta é: nós, os falantes de hoje em dia, percebemos o recorte destas palavras


como [crocant+e], [permanent+e], ou como [croca+nte], [permane+nte]? Para crocante, o
verbo correspondente seria crocar, que não se usa. Uma menina de quatro anos revelou-me
a sua segmentação do adjetivo, ao me dizer que adora um certo biscoitinho, porque 'ele
croca muito!' Poderíamos supor que por haver um grande número de palavras em -nte
derivadas de verbos ficamos propensos a segmentar a terminação -nte como sufixo, mesmo
na ausência de exposição ao uso de um verbo cognato. Poderíamos também conjeturar que
haja variação entre indivíduos, variação por palavra e por ponto de segmentação.

Experimentos psicolingüísticos poderão esclarecer se apesar da falta de uso de um


verbo como predicador em sentença podemos tê-lo mentalmente representado no interior de
uma palavra cuja estrutura e significado implica fortemente que ele exista na nossa
representação mental. Acontece, porém, que só se disporá a montar experimentos para
testar essa hipótese algum psicolingüista que a admita como plausível na teoria do
conhecimento e na teoria lingüística. Repito isto porque acho necessário lembrar
continuamente a idéia de que os experimentalistas, que muitas vezes se fantasiam como
empiristas e portanto os juízes últimos das celeumas filosóficas dos teoristas, não estão de
modo algum imunes à responsabilidade de inescapáveis opções filosóficas a serem feitas
com o puro instrumento da razão por qualquer profissional da ciência, no instante em que
enverga o seu jaleco e decide como fatiar o que vai olhar no microscópio ou lá qual seja o
aparelho.

2.2. Dois tipos de verbos transitivos

(i) Qual a diferença entre rabiscar a parede e rabiscar um bilhete? No primeiro


exemplo, entendemos que foi feito um rabisco sobre a parede, e no segundo entendemos
que foi criado um bilhete de uma maneira rabiscante.
(ii) Qual a diferença entre pintar a janela e pintar um quadro ? No primeiro caso
entendemos que a janela foi revestida com pintura, e no segundo que um quadro foi criado
através da ação de pintar.
(iii) Qual a diferença entre assinar um documento e assinar o nome? No primeiro
exemplo entendemos que foi posta uma assinatura no documento, e no segundo que
produzimos uma representação escrita do nome ao fazer um ato de escrever.
(iv) Qual a diferença entre cortar o dedo e cortar o bolo? No primeiro exemplo,
entendemos, preferencialmente, que foi feito um corte no dedo; no segundo, entendemos
que foi feito no bolo um ato de cortar que o tornou dividido em partes.
(v) Qual a diferença entre socar a mesa e socar o alho ? No primeiro exemplo
entendemos que a mesa é golpeada com socos; no segundo entendemos que é realizado no
alho um ato transformador, por socamento.
A diferença sintática que subjaz a estas duas interpretações de verbos transitivos
parece consistir no seguinte: os primeiros exemplos de cada par são casos da estrutura
denominada location / locatum em Hale & Keyser (1993): o verbo é derivado de uma
pequena oração que contém um nome como complemento de um morfema relacionador
nulo, r, e um DP no especificador de r. Os segundos exemplos têm o vezinho mergido
diretamente à raiz, e um DP adjungido ao v. Nas árvores (13) e (14) as duas análises estão
formalizadas:

(13) v location/locatum

v r

DP r

r n
a parede rabisco
a janela pint(ura)
o documento assin(atura)
o dedo cort(e)
a mesa soc(o)

A estrutura sintática em (13), ainda parcialmente abstrata, vai ser alterada na própria
sintaxe, antes mesmo da inserção lexical: o morfema n, mergido com o morfema r, forma o
composto [r+n]. Este composto sobe para v e merge ali, formando, em v, o feixe de traços
[r+n]+v] v. É já com tudo lá em cima, depois da subida para v de [r+n], como em (14), que
se dá a inserção lexical dos verbos rabiscar, pintar, assinar, cortar e socar.
As letras t em (14) são a abreviação de trace, os vestígios dos deslocamentos dos
traços r e n para v.

(14) v

v t

[[n + r ]+v] DP t
rabiscar a parede
pintar a janela t t
assinar o documento
cortar o dedo
socar a mesa

Com a subida do r para v, o DP que estava em Spec de r acaba ficando em


configuração de objeto direto de v, o traço nuclear do feixe de traços [[n+r]+v]v A
reconfiguração da estrutura de (13) para (14) acaba formando a estrutura sintática de
verbos transitivos. Esta seqüência de computações abstratas ilustra a idéia da inserção
tardia, ou seja, pós-sintática: a inserção dos verbos rabiscar, etc, é efetuada em uma
estrutura sintática que já tinha sido anteriormente submetida a operações de mergir e
mover os traços sintáticos (morfemas) r e n.
Um outro tipo de verbo transitivo é o de criação, descrito pela árvore (15):

(15) v criação

v DP

Raiz v

rabisc- um bilhete
pint um quadro
assin- o nome
cort- o bolo
soc- o alho

A análise em (15) tira proveito da proposta de Marantz 2007, ms, (Argument


Structure in Morphology: Noun Phrases that Name Events). Esta configuração, parte da dos
verbos de criação, de estrutura [v + √Raiz], acrescida de um DP que nomeia a coisa
criada. A idéia que Marantz esboça, usando bake a cake como exemplo, é que Raízes, na
configuração de (15), são modificadores do vezinho, e dão a noção de 'maneira' para o
evento. O DP objeto direto entra na derivação, neste caso, adjungido ao vezinho, na
configuração de irmão.A análise em (15) é a que Marantz dá para bake the cake no handout
de 2007 intitulado Noun Phrases that Name Events, aplicando a esta construção a
denominação de verb of creation:

(15’) v

v DP

v Raiz

bake the cake


rabisc- um bilhete

Segundo Marantz, o DP nessa configuração (15’) é interpretado como um segundo


evento, um evento cujo estado final é cake. A interpretação eventiva de cake se forma por
uma operação puramente semântica de coerção de tipo, de entidade para evento. A coerção
requer configuração sintática em que o DP entra como irmão do vezinho. Notem como se
percebem dois eventos em socar o alho: um evento de socar que é a causa, e outro, o alho
mudando de estado, que é o efeito. Do mesmo modo, os eventos lidos nos demais DPs em
(15) são: bilhete em processo de ser redigido, quadro em processo de ser pintado, nome
em processo de ser escrito, bolo em processo de ser fracionado.
Note-se que a convergência destas duas derivações diferentes, (14) e (15), para a
estrutura sintática transitiva pode criar expressões ambíguas: Francisco gosta de pintar
portas pode se referir, pela derivação (14), ao prazer de trabalhar de um pintor-operário que
passa tinta sobre portas ou, pela derivação (15), ao trabalho de um pintor-artista que faz
desenhos de portas nos seus quadros.
De maneira análoga, Ele queimou um CD pode ser sinônimo de ele danificou um
CD com queima (14) ou ele produziu pelo método de queima um CD (15).
Notem que dentro de uma teoria avessa à noção de derivações sintáticas, casos de
ambigüidades como as que acabamos de ver só poderiam ser tratados jogando-os nos
braços da pragmática. Uma solução dessas, no entanto, é prematura, porque desconsidera
aspectos regulares do significado. A entrada em cena da pragmática é mais tardia.

2.3. Dois tipos de verbos intransitivos

A literatura tem reconhecido a diferença entre dois tipos de verbos intransitivos:


inacusativos e ergativos. Exemplos típicos são os dos exemplos em (i) e (ii):

(i) A água ferve a 100 graus centígrados


A festa animou com as piadas do Jaiminho
A sopa estragou
Esta blusa amarrota à toa
O preço da gasolina aumentou

(ii) A água borbulhava


A festa bombou depois das onze horas
Este cachorro morde
O telefone está tocando
Este queijo fede muito

Os verbos inacusativos formam uma predicação, inscrita na raiz, e expressam o


estado interno do DP sobre o qual recai a predicação. O DP é mergido como irmão da raiz,
e sobe para Spec de Tempo, onde recebe caso. A Raiz sobe para v, e o composto [Raiz +v]
sobe para T. Em (16) o DP já subiu para Spec de T e a posição inicial da Raiz está tarjada
de cinza:

(16) T estativo

DP T

a sopa T v
estragou
v R

DP Raiz

t estrag-
Nos verbos ergativos, segundo Marantz, as raízes expressam a maneira pela qual
uma ação se realiza. Foram denominados verbos de criação por Ken Hale, seguido por
Marantz. Já os vimos na árvore (15). Mais acima, acima da camada do vezinho, entrará o
DP sujeito destes verbos, que é mergido em Spec de Voz e sobe para Spec de Tempo. O
morfema denominado Voz é um agentivizador, e o DP inserido em seu Spec ganha leitura
de Agente ou Instrumento. A árvore é (17), que nada mais é senão (15), a estrutura de
verbos de criação, acrescida de mais duas camadas acima do vezinho: Voz, em cujo Spec
entra o Agente, e Tempo, o núcleo que dá caso nominativo ao DP que sobe para seu
especificador:

(17) T

DP T

T Voz

Voz v

o telefone ∅ v Raiz

toc

É importante notar que as duas estruturas para verbos intransitivos não permitem
prever de maneira automática uma divisão de raízes tal que algumas sejam inseridas
apenas no esquema (16) e outras apenas no esquema (17).
Por exemplo, considerem o verbo sujar, em (i) e (ii)
(i) Esta flanela está sujando em vez de limpar.
(ii) A minha roupa sujou na viagem
A semântica de sujar, em (i), é de criação, fazer sujeira, sendo portanto do tipo de
(17). Comparemos isto com (ii). Neste caso, temos uma instância dos verbos de estado,
(16). Para se certificar da diferença, note que é consistente continuar a sentença (ii) com 'e
ficou suja por uma semana', mas esta continuação não combina com a sentença (i)
Também o verbo curar entra nas duas estruturas, como podemos ver em (iii) e (iv):
(iii) A fé cura
(iv) Esta ferida nunca que cura
Em (iii), a sintaxe é a de criação, (17). Mas em (iv) temos (16), um verbo estativo.
Vejam esquentar, em (v) e (vi):
(v) Este forninho quase não esquenta
(vi) A comida já esquentou
Em (v) o verbo significa 'fazer quentura', e portanto a estutura é (17); mas em
(vi)temos um estado, ficar quente, e neste caso a estrutura é (16).
Notem que a formação de palavras ambíguas está de acordo com as expectativas na
teoria da Morfologia Distribuída, pois aqui há sintaxe antes da inserção lexical. Estes são,
porém, dados incômodos para teorias avessas a computações na sintaxe que precedam a
inserção lexical, pois se as palavras são inseridas na sintaxe num feixe já fechado, como
podem ser ambíguas?
2. 4. Transitivização de verbos intransitivos

Ambas as estruturas, a dos inacusativos (16) e a dos ergativos (17), possuem


contrapartes transitivas. A estrutura (17) se transitiviza para (15), o tipo bake a cake. Um
exemplo da contraparte transitiva do exemplo em (17) é: O celular dele toca Tico-Tico no
Fubá.
A contraparte transitiva dos verbos inacusativos é formada pelo acréscimo de uma
camada agentiva acima do v, cujo núcleo é um morfema que vem sendo rotulada de Voz, e,
mergido a vezinho, abaixo de Tempo, autoriza um DP em seu Spec, o qual é lido como
Agente ou como Instrumento. A subida do verbo, nessa estrutura, é sucessivamente para
Vezinho, Voz e Tempo. Um exemplo de contraparte transitiva do exemplo em (16) seria O
excesso de sal estragou a sopa, desenhado em (18):

Transitivização de verbo estativo com acréscimo do agente: (16) (18)

(18) T

DP T

T Voz

Raiz +v DP Voz
+Voz+T
Voz v

DP v

Raiz v
o excesso de sal estragou t t a sopa t t

Também no caso dos verbos transitivos aparecem verbos que cabem numa ou em
outra das estruturas, a dos estativos que recebem agente e a dos de criação que recebem
objeto direto (bake a cake). Por exemplo, vejam (i) e (ii):
(i) Eu vou espremer uma limonada para nós
(ii) Eva espremeu um limão
O VP na sentença (i) significa produzir limonada espremendo, e portanto estamos
no universo dos verbos de criação, com uma derivação isomórfica à de (15). Mas em (ii)
temos uma mudança de estado do limão, que ficou espremido, causada por Eva. Temos aí,
portanto, uma estrutura isomórfica à de (18).

2.5. Verbos que contêm prefixos

(i) Consideremos o par destro e adestrar, e vamos compará-lo com o par longo e
alongar. Alongar significa tornar longo. Adestrar não significa tornar destro, mas sim
treinar, preparar fisicamente um indivíduo para realizar alguma ação com grande mestria.
Dentro da palavra alongar está contido o adjetivo longo, mas dentro da palavra adestrar
não está contido o adjetivo destro, mas apenas a sua raiz. As estruturas que refletem esta
diferença são, por isso, [[a + longoa]r + ar]v e [[a + destr]r + ar]v.

(ii) Considerem os pares rombo, arrombar e fileira, enfileirar.


Enfileirar significa 'fazer ficar em fileira'. Arrombar significa 'fazer ficar com rombo' ?
Não: arrombar significa 'tornar aberto com método violento'. Capturamos a diferença
incluindo em enfileirar o nome fileira [[en fileiran] ar]v, mas, em arrombar, apenas a raiz
despojada: [[a romb]r ar]v.

(iii) Comparemos empilhar livros com soterrar o vilarejo. Empilhar livros significa
fazer ficar livros em pilha, mas soterrar o vilarejo significa fazer vilarejo ficar no estado
de soterrado, sendo que no verbo soterrar até mesmo mal percebemos a fronteira entre as
formas componentes sob e terra.
Qual será o contexto sintático mais abrangente em que se formam, de um lado, os
verbos alongar, enfileirar, empilhar; e de outro os verbos adestrar, arrombar, soterrar.
Para os três primeiros verbos, mais transparentes, a estrutura (13), que se torna (14), à la
Hale & Keyser, satisfaz, e será redesenhada em (19). E para os verbo do segundo conjunto,
os mais opacos, a derivação, mostrada em (20), acompanha somente o lado esquerdo do
esquema dos verbos de criação, desenhado em (15); é que o objeto direto, neste caso, não
expressa a coisa criada mas sim o rumo tomado pela ação de adestrar, arrombar, soterrar. A
leitura da árvore (20) é algo como fazer adestro ao cavalo, fazer arrombo à porta, fazer
soterro ao vilarejo. A abreviação aplic se refere ao morfema aplicativo, um introdutor de
DP com papel temático de beneficiário (ou maleficiário).

(19) alongar a mesa, enfileirar os copos, empilhar livros = (13) (14)

v v

v r [[r n]v] DP

DP r

r a/n

a mesa a- longo a longo ar a mesa


os copos em- fileira en fileira ar os copos
os livros em- pilha em pilh ar os livros
(20) adestrar o cavalo, arrombar a porta, soterrar o vilarejo

T T

DP1 T DP1 T

T Voz r Raiz v Voz T DP2

DP1 Voz

Voz v

v aplic

r v aplic DP2

r Raiz

a romb a ∅ a porta a romb a a porta


a destr o cavalo a destr a o cavalo
sob terr o vilarejo so terr a o vilarejo

Nestes dois conjuntos de verbos, note-se que está localizada em pontos diferentes o
merge em que ocorre a negociação da parte arbitrária do significado: em (19), em longo,
fileira e pilha, ou seja, a semântica do verbo é calculada; em (20), em arrombar, adestrar,
soterrar, ou seja, a semântica do verbo é listada na Enciclopédia. Fará isso diferença em
termos de facilidade de acesso lexical ou leitura? Note-se que sem ter uma proposta de
estrutura, a pergunta não surge.
Mais uma vez, constataremos que as estruturas (19) e (20) não implicam em que se
possa prever uma subdivisão automática de verbos de acordo com sua distribuição em uma
ou outra estrutura. Por exemplo, comparem o verbo aconselhar nas duas sentenças a seguir:
(i) O orientador aconselhou a mudança de tema;
(ii) O orientador aconselhou os alunos a mudarem de tema.
Na primeira, a mudança de tema é posta em um conselho, e por isso estamos com
um caso de (19). Na segunda, temos um caso análogo ao de (20) em que a Raiz conselh-
está dentro de v, o DP os alunos está como DP2 e a oração [a [ PRO mudarem de tema]]
está adjungida, e expressa o papel de alvo.
Considerem enrolar em (i) comparando-o com o mesmo verbo em (ii):
(i) O sertanejo enrolou um cigarro.
(ii) A enfermeira enrolou o bebê na manta.
Na primeira sentença o verbo enrolar expressa criação, criar enrolando, com o
cigarro como segundo evento, por coerção contextual, tal qual bake a cake em (15).
Na segunda, temos enrolar no contexto em (19), uma construção de locação,
acrescida do PP na manta adjungido ao v. Esta segunda forma de computação sintática com
enrolar como um verbo que contém um locativo é a que está por detrás da derivação da
expressão idiomática em que enrolar significa enganar, lograr, como em (iii):
(iii) O estelionatário enrolava donas de casa.
A diferença entre o caso (ii) e (iii) de enrolar se reduz à natureza do nome rolo que
está mergido ao Relacionador: em (ii) o rolo é de matéria-prima de natureza física, e em
(iii) a matéria-prima do rolo é constituída de unidades de linguagem, e donas de casa
precisa ser lido como coagido para 'a mente de donas de casa".
Considerem o verbo ensopar em (iv) e (v):
(iv) Eu vou ensopar esta carne
(v) Você ensopou o seu terno.
Ensopar a carne é preparar a carne ensopando, um caso de bake a cake, ou seja,
(15). Ensopar o terno é fazer com que o terno fique no estado de ensopado, o que nos
conduz à derivação (18).
Resumindo, o agrupamento de exemplos proposto acima reúne no esquema de
locativo (19=13→14) os exemplos alongar mesa, empilhar livros, enfileirar copos,
aconselhar mudança de tema, enrolar bebê e enrolar donas de casa. O esquema (20), que
combina a estrutura de verbo de criação com um adjunto regido por um aplicativo nulo, dá
conta de adestrar cavalo, arrombar porta, soterrar vilarejo, aconselhar alunos, enrolar
cigarro e ensopar carne. No grupo dos estativos (18) entra ensopar o terno.

Mais uma vez, cabe perguntar: como fica a psicolingüística?


Ao compreender o quanto há de sintaxe por detrás da polissemia de verbos, salta uma
pergunta que deveria preocupar bastante os que pretenderem investigar a psicolingüística
naquilo que chamam de 'acesso lexical'. Conforme acabamos de ver, segundo o modelo da
Morfologia Distribuída as palavras são elas mesmas o resultado de operações sintáticas, e
não simplesmente a matéria-prima da sintaxe. Se a formação de palavras está distribuída
entre três listas conectadas por diversas operações, é necessário pensar em como capturar o
processamento das operações distintas de 'gerar estruturas sintáticas abstratas', 'implementá-
las com Peças de Vocabulário armazenadas na morfologia' e 'interpretar palavras', sendo
que para realizar a leitura semântica esperamos que isso seja feito por acesso a lista na
Enciclopédia e por cálculo na Forma Lógica. O termo 'acessar palavras' deveria portanto
ficar restrito ao caso das palavras com uma só camada, que se armazenam na Enciclopédia.
Mas a psicolingüística da sintaxe abstrata e a do cálculo da composição semântica em
Forma Lógica são também objetos caros de nosso desejo de saber como os diversos eventos
cognitivos acontecem na caixinha preta do nosso cérebro.

3. Problemas na análise: aquisição e diacronia

Na seção 1 vimos que se pode admitir que diferentes pessoas estejam atribuindo
diferentes estruturas às mesmas palavras fonológicas. Tendo essa expectativa, parti para o
experimento: solicitei a pessoas conhecidas que usassem o método da introspecção
intuitiva com pares de palavras nas quais a etimologia garante a relação morfológica.
Averigüei um panorama nada uniforme. Por exemplo: para as palavras refrigerar e
refrigerante, poucas pessoas alegaram que percebem o verbo refrigerar no interior de
refrigerante, e muitas alegaram que refrigerante é simplesmente bebida com gás. Entre
tintura e tingir, predomina a análise em que essas palavras não estão derivacionalmente
relacionadas. No caso de restaurante, nenhuma pessoa reconheceu o verbo restaurar
embutido. Entre compelir e compulsão uma pessoa viu a relação, a mesma que viu a
relação entre propelir e propulsão, e relacionou também impelir com impulso e repelir
com repulsivo. Em emoção, emotivo, emocional, emocionar, o número de pessoas que
vêem alguma relação desta família com mover é zero. Porém são unanimemente
relacionados sem titubeios comover e comoção, bem como remover e remoção, e promover
com promoção. Que preso tem a ver com prender todos vêem, e também que surpresa
tem a ver com surpreender, e que aceso tem a ver com acender. Mas que apenso tem a ver
com apender e portanto com pender ninguém vê. Promessa vem de prometer, com
unanimidade de julgamento, mas em nota promissória somente uma pessoa com
conhecimento do valor jurídico desse documento disse que via a relação lexical. Remeter
com remessa foi bem-visto. Que apartamento contém apartar é uma surpresa geral. Porém
há consenso em que departamento e repartição contêm parte. Que as secretárias
administram coisas secretas é uma boa piada. Consenso com consentir, meio a meio. A
relação entre propor e proposta tem mais adeptos do que aquela entre impor e imposto.
Deter com detento deu um sim unânime, mas conter com contente unananimemente deu
não. Corrupto com corromper deu sim unânime, romper com ruptura deu sim, e romper
com roto a maioria viu. Enxugar com enxuto deu meio a meio. Extrair com extrato, meio a
meio. Conceber com conceito, meio a meio. Receber com receita deu não, mas receber
com recibo deu confusão. Corrigir com correto deu mais não do que sim, mas corrigir com
correção deu sempre sim. Nascer com nato, como em 'brasileiro nato', uns poucos vêem,
mas a relação de nascer com nativo é vista. Porém a de nascer com natural não. Natural
com natureza, sim. Que fatores afetam o reconhecimento consciente destas relações
morfológicas?

3.1. Variação sincrônica na estrutura sintática de palavras relacionadas

No 'teste' que fiz, por precário que tenha sido em termos metodológicos, creio que
captei uma situação que é próxima à realidade: diferentes falantes, de faixas etárias e
sociais semelhantes, igualmente capazes de empregar e compreender satisfatoriamente
discursos que contenham estas palavras, têm delas representações mentais distintas, porém
possivelmente inócuas para a inteligibilidade mútua entre os falantes.

A metodologia do teste consistiu em perguntar a um grupo de dez adultos


sexagenários de alto nível de escolaridade (reunidos para um festejo, não para serem
testados): Você vê a palavra restaurar dentro da palavra restaurante? Ou, alternativamente:
A palavra compulsão tem a ver com a palavra compelir? Fiz anotações depois de cessada
essa atividade, que acabou sendo um jogo interessante para pessoas que tinham
compreendido o que eu desejava investigar. Algumas palavras que não consegui propor
nessa ocasião, complementei em outras ocasiões, com a mesma metodologia, solicitando o
julgamento a alunos de graduação e de pós-graduação da Faculdade de Letras da UFRJ.

A tabela apresentada não quantifica as respostas. Dou apenas uma resposta quando
as opiniões recebidas foram unânimes, e dou as duas respostas quando houve pelo menos
um falante discrepante. A organização da tabela é a seguinte: na primeira coluna, a palavra
mais básica; na segunda, a palavra derivada; na terceira, o tipo de resposta dada pelos
falantes consultados; na quarta, a análise da segunda palavra. Quando as respostas são
discordantes, proponho análises sintáticas alternativas para a segunda palavra.
As convenções de notação para a representação da estrutura sintática, dada por meio de
colchetes rotulados, são as seguintes:
(i) quando a palavra é constituída apenas de [Raiz + categorizador], separo estes dois
componentes por um simples espaço e rotulo o colchete, o que significa que o sufixo é o
categorizador que confere à palavra a categoria indicada no colchete;

(ii) os rótulos n, a, e v significam nome, adjetivo e verbo, respectivamente; o rótulo T em


caixa alta abrevia Tempo, e se refere nestes casos sempre ao particípio passado, cuja
instanciação pode ser -s, -t ou -st. As letras sombreadas de cinza assinalam que depois da
representação morfofonológica proposta, ainda operará a fonologia, deletando os fonemas
representados na mancha cinza. O afastamento entre a representação morfofonológica e a
representação fonológica se justifica pela convicção de que a alomorfia de Raízes só pode
ser motivada por contexto fonológico, com exceção dos alomorfes supletivos, aqueles que
são totalmente distintos fonologicamente (do tipo vou, ia, fui para o verbo ir; e sou, era, fui
para o ser)

(iii) representando emoção como emotion pretendo captar que o mesmo t que aparece em
emotivo é o que subjaz ao ç em emoção, via a regra de fricativização 't vira c' diante da
semivogal /y/ .A representação com o final on em lugar de ão se justifica ao observar que
em emocional o segmento ion é o que corresponde ao ão em emoção, sendo que a
representação fonética [ão] no contexto de fim de palavra se resolve na fonologia, com
uma regra 'ion vai para ão em final de palavra' (cf. nacional-nação, pressionar-pressão,
milionário--milhão, pensionista-pensão, canino-cão, etc.)

Tabela: Variação sincrônica na estrutura sintática de palavras relacionadas


tingir tintura sim
[[[ting∅]v t]T ura]n
tingir tintura não
[tint ura]n
refrigerar refrigerante sim
[[re [frig era]v]v nte]n
refrigerar refrigerante não
[refriger ante]n
restaurar restaurante não
[restaur ante]n
compelir compulsão sim
[[[compl∅] v s]T ão]n
compelir compulsão não
[compuls ão]n
propelir propulsão sim
[[[pro pl∅] v s]T ão]n
propelir propulsão não
[propuls ão]n
repelir repulsivo sim
[[[re pl∅] v s]T ivo]a
repelir repulsivo não
[repuls ivo]a
impelir impulso sim
[[[im pl∅] v s]T o]n
impelir impulso não
[impuls o]n
mover emoção não
[emot ion]n
mover emotivo não
[emot ivo]a
mover emocional não
[[emot ion]n al]a
comover comoção sim
[[[co mov]v t]T ion]n
remover remoção sim
[[[re mov]v t]T ion]n
promover promoção sim
[[[pro mov]v t]T ion]n
prender preso sim
[[[prend]v s]T o]a
surpreender surpresa sim
[[[sur prend]v s]T a]n
acender aceso sim
[[[a cend]v s]T o]a
pender apenso não
[apens o]a
prometer promessa sim
[[[pro met]v s]T a]n
prometer (nota) promissória não
[[[[promis]raiz ]or]a ia]a
prometer (nota) promissória sim
[[[[[pro mit]v] s]T or]a ia]a
remeter remessa sim
[[[re met]v s]t a]n
√part- apartamento não
[aparta mento]n
√part- departamento sim [[de part a]v mento]n
√part- repartição sim [[re part i]v ção]n
secreto secretária não [[secret ar]a ia]a
consentir consenso sim [[[con sent]v s]T o]n
consentir consenso não [consens o]n
propor proposta sim [[[pro pon]v st]Ta]n
propor proposta não [propost a]n
impor imposto sim [[[im pon]v st]To]n
impor imposto não [impost o]n
deter detento sim [[[de ten ]v t]T o]n
conter contente não [contente]a
corromper corrupto sim [[[co rump]v t]T o]a
romper ruptura sim [[[rump]v t]T ura]n
romper roto sim [[[romp] v t]T o]a
romper roto não [rot o]a
enxugar enxuto sim [[[en xug]vt]T o]a
extrair extrato sim [[[ex tra C ]v t]T o]n
extrair extrato não [extrat o]n
conceber conceito sim [[[con cep]v t]T o]n
conceber conceito não [conceit o]n
receber receita não [receit a]n
receber receita sim [[[re ceb]v t]T a]n
receber recibo sim [[re ceb]v io]n
receber recibo não [recib o]n
corrigir correto sim [[[co rig]vt]T o]a
corrigir correto não [corret o]a
corrigir correção sim [[[co rig]vt]T ion]n
nascer nato sim [[[nasc i]v t]T o]a
nascer nato não [nat o]a
nascer nativo sim [[[nasci]v t ]T ivo]a
nascer natural não [natur al]a
natural natureza sim [[natur]n eza]n

Antes de começar a comentar esta tabela, gostaria de lembrar aos leitores que
estamos assumindo aqui duas posturas básicas desta teoria, que se não forem reconhecidas
poderiam prejudicar a leitura.
Primeiro: como podemos admitir que diferentes falantes apresentem diferenças
substanciais nas suas representações morfofonológicas para as mesmas palavras? É que
estamos nos posicionando em uma teoria lingüística na qual o que entendemos por língua é
um sistema especializado de cognição localizado no interior da mente dos falantes, um
mecanismo complexo, conversor de pensamento em linguagem. Nesta teoria, uma língua
deixa de ser vista como um objeto primordialmente externo ao indivíduo, localizado nas
ondas acústicas ou no aparelho fonador ou na sociedade. Estas duas perspectivas opostas
foram denominadas por Chomsky Língua-I e Língua-E. Dentro desta maneira de pensar, é
lícito admitir que falantes concidadãos, coetâneos e da mesma faixa social, falantes da
mesma língua -E , possuam línguas -I com muitas diferenças, não apenas fonológicas,
mas também semânticas, como veremos.
Segundo: quando as representações morfofonológicas são implementadas como
representações fonéticas, muitas modificações podem acontecer: não apenas podem ser
mudados fonemas, mas também deletados e acrescentados, como se pode ver em preso,
aceso, promessa. A interface entre a morfofonologia e a fonética é um processo dinâmico
que pode resultar em correspondências não-isomórficas entre as representações em cada
face.
Agora sim, consideremos a tabela. Houve quatro pares de palavras em que a
resposta para a questão do relacionamento foi unanimemente não: secreto-secretária,
conter-contente, parte-apartamento e nascer-natural. O que há de comum entre eles?
Parece que os significados das duas palavras não podem ser conectados através de passos
semanticamente regulares. O significado da palavra derivada difere do significado da
palavra-base a tal ponto que a semelhança fonológica se configura como mera coincidência
sem relevância lingüística: as secretárias de nossos dias não são necessariamente
informadas sobre coisas secretas de seu chefe; o estado de contente não implica em conter
muitas coisas boas; um apartamento é uma moradia em edifício, sem que se dê atenção ao
fato de estar apartado da moradia dos vizinhos. Natural tem a ver com um estado de não
afetado por eventos propositalmente criados, e essa noção nada mais tem a ver com nascer.
Na tabela, a independência entre as duas palavras já vem dada na representação de cada
raiz.
Um grande número de pares de palavras provocou resposta não de uma parte das
pessoas, e sim de outra parte. Isto nos autoriza a pensar que a turma do sim percebe o
relacionamento semântico, e o percebe porque capta o parentesco formal apesar de serem
bastante grandes as diferenças fonológicas entre as duas palavras.
Analisemos a turma do não. Um fator que sabidamente afeta a análise que o
aprendiz vai atingir é a configuração estatística dos dados primários que constituíram a sua
experiência lingüística. Por exemplo, a freqüência de uso de refrigerante supera a de
refrigerar, e a de tintura supera a de tingir. Há, então pessoas que tiveram pouca exposição
a refrigerar e tingir. Estas pessoas mandam para a Enciclopédia refrigerar e tingir, e
mandam para a Enciclopédia também refrigerante e tintura, incomputados, inteiriços,
porque não estão usando passos sintáticos para compor estas duas formas. Assim, o
significado que estas pessoas dão à palavra complexa não é atingido via Forma Lógica, mas
sim pela leitura via Enciclopédia tanto da palavra maior como da menor. Contudo, ainda
que divergindo na segmentação da palavra mais complexa, a turma do sim e a turma do não
convergem na referência que atribuem a essas palavras. É que significados diversos podem
corresponder a referências idênticas. Acontece, então, que do ponto de vista
comportamental e pragmático, os recortes diversos dados pelos dois grupos de falantes
passam desapercebidos e a inteligibilidade recíproca não fica prejudicada.. Isto decorre de
ser a glanularidade requerida para a comunicação menos fina do que a oferecida pela
gramática.
Resumindo, podemos dizer que a mudança lingüística aqui em foco se reduz à perda
de camadas de computação sintática que dariam leitura composicional. A leitura de uma
estrutura sintática complexa em Forma Lógica pode ser substituída pela leitura de uma
nova unidade, com a sintaxe achatada, da forma Raiz +Categorizador. Essa leitura é dada
em uma definição na Enciclopédia, o lugar onde a relação entre forma e significado é uma
convenção arbitrária.
Alguns leitores poderão estar céticos quanto à afirmação de que pessoas que
acreditam estar falando a mesma língua podem não estar falando a mesma língua. No
entanto, o convívio de falantes dotados de diferentes línguas-I é logicamente previsível,
uma vez que existe um inevitável fator aleatório nas circunstâncias em que acontece a
aquisição de linguagem: duas crianças nunca serão expostas a exatamente os mesmos dados
de fala, pois necessariamente vão diferir os repertórios e ordem de apresentação de palavras
ouvidas por cada uma, e a freqüência dos tokens ouvidos por cada uma. A variação da
gramática em meio a uma só população é portanto a maneira de ser normal no mundo real.
Essa variação entre indivíduos, acumulada ao longo de gerações sucessivas, é o que
chamamos de mudança lingüística, um testemunho das duas maneiras diversas de que
dispomos para construir palavras: por convenção, via Enciclopédia, e por computação, via
sintaxe.
Na Seção 3.2 a seguir vou mostrar algumas etimologias de palavras do português, e
veremos como a situação que surgiu no passado é semelhante à situação que acabamos de
ver numa amostra de nossos dias.

3.2. Etimologia como variação na aquisição.

Em nossa tabela de variação sincrônica mostrei alguns exemplos de pares de


palavras que todas as pessoas julgaram como não relacionadas. Nesta seção mostrarei
algumas etimologias de palavras que equivalem formalmente a estes casos, apesar dos
séculos que nos separam. Veremos que estas etimologias são também casos de extinção de
um verbete na Enciclopédia e criação de um novo verbete:

(i) agregar provém de [[ad+greg]+ are], um verbo que contém a raiz greg, que é a do
nome gres, gregis, rebanho. Caído em desuso esse nome, substituído que foi por rebanho,
os falantes não tinham evidência suficiente para fazer a segmentação de prefixo+raiz. Por
isso, nós hoje acessamos agregar na Enciclopédia, com a acepção juntar.

(ii) enorme provém de [[ex norm]e], fora da norma. Supondo que a expressão fosse
utilizada comumente para fazer referência a tamanho acima do comum, eis que esse
significado deixou de corresponder ao que resultaria da pura computação de ex norme. E cá
estamos nós com um novo verbete, separado do de norma, na Enciclopédia: enorme=muito
grande.
(iii) agudo provém do adjetivo [acu+utus], em que acu significa agulha. Por sua vez,
agulha provém do diminutivo de acu: acucula. Predominando o uso do diminutivo
acucula, o nome acu deixou de ocorrer, e com isso a raiz ac dentro de agudo deixou de ser
identificada, com a conseqüente perda da computação acu+utus, que determinava
'agulhoso' como sua leitura. A semântica de agudo foi transferida para a Enciclopédia por
aqueles falantes que tinham perdido o verbete acu na Enciclopédia deles. Devem ter
convivido por algum tempo em algum lugar falantes que viam o nome acu dentro do
adjetivo agudo e falantes que tinham já na Enciclopédia o adjetivo ag + udo, ou mesmo
agud+o. Nesse lugar e nesse tempo, se algum lingüista perguntasse a seus amigos se viam
ago em agudo, alguns lhe responderiam sim, e outros, não.

(iv) assunto provém de [[ad+sum]+t+u], o particípio passado (ppas) de [[ad sum] eo]. A
raiz é sum do verbo assumir, a mesma que está em consumir e resumir. Os nossos
ancestrais liam assuntu computando o significado a partir da sintaxe, e compunham
assumido como resultado da computação. Quem deixou de reconhecer o -t como peça
vocabular realizadora do ppass deixou de computar o significado por composição e passou
a incumbência da semântica para o repositório estático, a Enciclopédia. E o verbo assuntar,
como em ficar assuntando? O verbo assuntar precisa ter entrado em uso mais tarde do que
assumir, pois se trata de uma uma nominalização feita por computação, depois da
enciclopedização deste nome.

(v) assar provém de ard+s+are, formado a partir do ppas ard+s+us, do verbo ardere.
Assim como aconteceu na história de assunto, a peça vocabular realizadora do ppass, a
desinência -s em ardsus deixou de ser reconhecida como tal, com a ajuda do
desaparecimento do /d/ da raiz por assimilação ao /s/: ardsus>arsus. Restou o adjetivo
arsus, queimado, não mais legível por vias da Forma Lógica a partir do verbete
enciclopédico de ardere, mas sim com uma leitura arbitrária proveniente da Enciclopédia
para arsus, um adjetivo. A perda da percepção de arsus como relacionado com ardere
decerto não ocorreu simultaneamente para todos os falantes. Como outros adjetivos, arsus
se presta facilmente para servir de base à geração de um verbo: arsus- arsare; assim como
siccus- siccare; primus- primare. Finalmente, a assimilação do r ao s em arsare>assar terá
sido a pá de cal para a possibilidade de se conectar arder com assar por composição
sintática e leitura em Forma Lógica.
Estamos vendo que a teoria nos permite supor que arder é uma palavra mais idosa do que
assar. É tarefa da filologia nos mostrar que a teoria lingüística profetiza a datação das
palavras.

(vi) derrubar provém de [[de+rupa]+are], jogar do alto de uma rocha. O nome rupa saiu
de uso – deixando-nos como souvenir o raro adjetivo rupestre – e com isso a leitura
composicional do verbo ficou impossível para quem já não sabia o significado de rupa.
Mesmo assim, na lista da Enciclopédia, a palavra derrubar podia ser lida, não analisada,
destituída de referência a 'rocha', por aqueles que desconheciam o nome rupa, preservando
porém a noção de movimento abrupto de cima para baixo. Sendo que a perda do verbete
enciclopédico de rupa não terá ocorrido simultaneamente em todos os falantes no mesmo
lugar, a pergunta sobre se derrupare contém rupa, se tivesse sido proposta por lingüistas de
dois milênios atrás, teria recebido respostas sim e respostas não, em lugares e tempos em
que algumas pessoas ainda saberiam o que significa rupa, e outras já não mais saberiam.

(vii) derivar provém de [[de+riva]+are] , sair da beira, um caso semelhante ao de derrubar:


perda do nome riva da Enciclopédia para uma parte dos falantes, conseqüente perda da
composição de derivar por computação, e subseqüente passagem da leitura do verbo da
Forma Lógica para a Enciclopédia. No período em que a perda de riva ainda não estava
generalizada, um lingüista teria recebido as respostas sim e não se alternando para a
indagação sobre riva em derivar.

(viii) endereçar vem do verbo indirectiare. Qual seria a sintaxe deste verbo composto?
Reconstruamos os passos da derivação que culmina em
[[[in+[[[di+√rec]+v]+t]]+i]+are] .
A computação começa pela seleção da raiz rec~reg, a mesma que está presente no
verbo reger. O prefixo di- mergido a √rec- operará dando a noção de direcionamento ao
composto[direc], ao qual o verbalizador zero introduz evento: [[direc]∅]v . Neste estágio da
derivação, temos a forma que deu origem ao verbo dirigir. No merge seguinte entra Tempo,
realizado por -t, a peça vocabular que realiza o particípio passado, e também categoriza a
seqüência como adjetivo. Nesta fase chegamos ao adjetivo [[[direc]∅]v t]a , 'dirigido'. O
prefixo in- introduz na derivação a noção de localização, localização no itinerário direto.
Chegamos à fase [in[[[direc] ∅]v t]a] . O sufixo -i é um aspectual introdutor da noção de
iteração, e o seu merge resulta em [[in[[[direc] ∅]v t]a] i]asp. Finalmente, mergindo v a
esse composto e inserindo -are em v se chega a [[[in[[[direc] ∅]v t]a] i]aspare]v . Mergindo
ao verbo um nominalizador, se obtém o nome indirectio, ou seja, endereço.
Acontece, porém, que não é desse modo que nós hoje lemos o verbo endereçar e o
nome endereço. O nosso descompasso com a ancestralidade latina deve vir de longa data,
pois o que se constata é que a quase totalidade dos falantes de hoje não reconhecemos
sincronicamente a família de reger: reger/reto/reitor; corrigir/ correto/ correção/corretor;
dirigir/ direto/ diretor/ direção; erigir/ereto/ereção.
Simultaneamente aos falantes que faziam a análise sintática que prevê indirectiare,
já deveria haver falantes que haviam perdido a percepção da raiz √reg-, e
conseqüentemente não computavam mais as expressões direto, endereciar, endereço. Estes
falantes armazenariam em suas Enciclopédias a forma endereço como nome, e comporiam
o verbo endereçar a partir do nome endereço, sem passarem pelas fases que acabamos de
ver, de√rec até indirectiare e indirectio.
Assim como estamos descobrindo que nos dias de hoje há divergências na análise
de palavras por falantes, assim também devemos admitir que divergências semelhantes já
estivessem acontecendo em priscas eras.

(ix) enguiçar provém de iniquitiare, um verbo formado a partir do adjetivo iniquus, que se
analisava como [in+equus], desigual. Esta forma podia ser lida como maior, menor,
malvado, injusto. O verbo tinha, portanto, a estrutura [[[[in[equu]a ]a it] i] are], com a
leitura na Forma Lógica 'ir para o estado de injusto, malvado, mau'. Reanalisado por
alguns falantes sem a fronteira morfológica no adjetivo in+ iquu, surge um adjetivo
iniquus - mau, inapropriado - e o verbo [iniqu] it i are significando 'ir para iniquo'. Neste
estágio, mais uma vez os falantes devem ter se cindido em dois grupos, um que via e um
que não via o adjetivo /iniquus/ dentro de /iniquitiare/ . Os que viam são os que
produziram iniquitiar, que fonologicamente foi para iniguitiar > [/inguitiar/] que a estas
alturas tem a análise [inguit+ iar] . Pela regra fonológica t>ç diante de i chega-se a
[enguiç ar]v, verbo que se presta para dar entrada na derivação do nominal [[enguiç ]v o]n.
Dentro desse verbo, o adjetivo iniquo se tornou fonologicamente irreconhecível, além do
quê poucos são hoje os que conhecem essa palavra. Assim, estamos nós, hoje, derivando o
verbo enguiçar a partir do nome enguiço, e não vice-versa. Resumindo: a perda da
computação em in+equus fez com que o adjetivo iniquo entrasse na derivação pela
Enciclopédia, e servisse de base para o verbo inguiçar que por sua vez dava a partida ao
nominal enguiço, por computação na sintaxe. Caindo em desuso o adjetivo iniquo, vai para
a Enciclopédia o nome enguiço, que veio a tornar-se par nós hoje em dia o ponto de partida
para o nosso verbo enguiçar.
Este exemplo é bem ilustrativo da dança entre computação e convenção que resume
o que seja a história das palavras.

(x) ajudar vem de ad juvo, adjuvas, adjuvi, adjutum, ser útil, dar auxílio, ajudar.
Nesta vocábulo, curiosamente, a semântica do nosso verbo ajudar deve estar bem próxima
à de adjuvo, apesar das duas mudanças de recorte que as novas gerações impuseram aos
recortes dos seus ancestrais: incorporaram de forma indissolúvel o prefixo à raiz, e
incorporaram à raiz o -t do particípio passado. No adjetivo coadjuvante ainda
discriminamos o prefixo ad- e a raiz juv-.
Estes dois tipos de ressegmentações - incoporação de prefixo e incorporação de ppass à raiz
- conforme estamos vendo nos exemplos, são mudanças que novas gerações ocasionaram
repetidas vezes no decurso de sua aquisição de língua, ao lerem os dados de maneira
distinta daquela da geração anterior.
(xi) costurar vem de consuturare, que contém o verbo suo, suis, sui, sutum, suere, que
significava costurar. A estrutura era [[[con+ [su v+t]ppas]+ur ]n+are]v. , e foi reduzida ao
simples [costur ar] v , uma palavra de uma camada só, na qual perdemos tudo o que havia
dentro, exceto o verbalizador.

4. Conclusão

Para concluir, vou resumir e comentar os pontos seguros e os problemas que


persistem no modelo de gramática que está sendo proposto na teoria da Morfologia
Distribuída.
Na parte 1 apresentei sete conjuntos de séries de palavras, ordenadas a partir da
mais simples à mais complexa, a fim de documentar a distinção entre a palavra mais básica,
que tem leitura idiossincrásica, e as palavras gradativamente mais complexas, formadas a
partir da primeira, que se lêem composicionalmente por operações em Forma Lógica.
Vemos que a palavra na qual a Raiz recebe a primeira categorização é aquela que recebe a
leitura saussureana, ou seja, a significação arbitrária e negociada. Cada uma das palavra
seguintes da série é relacionada de modo regular com a primeira, tanto na forma como no
significado. Esta regularidade no interior das palavras na relação entre a forma e o
significado nos faz ver que existe sintaxe dentro das palavras complexas, e que nestas a
leitura semântica é calculada a cada nova fase de acréscimo de morfema, e não acessada em
lista.
Já nessa parte 1 começamos a ter problemas: vemos que algumas séries são
defectivas, ou seja, uma ou mais palavras na série não estão em uso na fala comum. O
problema é o seguinte: nas séries defectivas, mesmo se não existe, em uso, uma palavra
fonologicamente autônoma que corresponda a uma camada-base para uma camada
subseqüente, podemos considerar uma camada interna como ativa na mente dos falantes,
levando em conta que em outras numerosas palavras com o mesmo sufixo a presença dessa
camada tem evidência atestada por palavras que estão em uso? Ou a falta de uma base que
ocorra na fala tem como conseqüência obrigatória o achatamento e enciclopedização das
últimas sobreviventes de cada série se estas são as últimas da série? Temos aí uma questão
epistemológica interessante, um problema em aberto para a pesquisa experimental e,
certamente, posições discordantes.
Na parte 2 discuto dados que seriam problemáticos para outros modelos de gramática
mas se harmonizam otimamente com o modelo da Morfologia Distribuída, onde as análises
se oferecem de maneira muito natural.
O primeiro tema que abordo, em 2.1, é o de palavras categorialmente distintas cujas
diferenças de significado dificilmente poderíamos descrever por meio de leituras
composicionais da estrutura sintática, derivando-as uma da outra, pelo acréscimo de
categorizadores, tal como mostramos que se pode fazer nos exemplos fornecidos na parte 1.
Trata-se dos exemlos analisados por meio das árvores (9) a (13), apelando para duas
entradas separadas, na Enciclopédia, que compartilham a Raiz mas não os categorizadores.
Daí emerge um novo problema, que é o da semântica das raízes: o que há de comum nestes
significados que permite o uso da mesma raiz? Um fato intrigante, nessa parte, é que ao
buscarmos as traduções desses pares de palavras cognatas em qualquer outra língua
conhecida, veremos que as traduções apropriadas, geralmente, não são preservadoras de
raiz, nem mesmo se procurarmos suas traduções em outras línguas romãnicas. permanece
em aberto, na literatura, a questão da semântica das raízes.
Ainda na parte 2 discuti a estrutura sintática pré-inserção lexical de verbos transitivos
e verbos intransitivos. Este empreendimento fica particularmente interessante dentro da
teoria da Morfologia Distribuída, porque a dissociação entre operações que acontecem
antes e operações que acontecem depois da inserção lexical dá a este modelo um poder
descritivo diferente do das teorias lexicalistas. Explorando, em 2.2, a análise semântica dos
verbos rabiscar, pintar, assinar, cortar e socar, pudemos ver que para cada um deles há
duas acepções que se distinguem de maneiras paralelas, e pudemos ver que até mesmo
podem emergir sentenças ambíguas com esses verbos transitivos. Lançando mão de
diferentes ordenações de mergir e mover na formação de estruturas sintáticas (que neste
modelo precedem a inserção das peças de vocabulário), pudemos caracterizar um dos tipos
de leitura de modo semelhante ao que se aplica á estrutura 'location/locatum' (árvore 14) e o
outro de modo semelhante ao que se aplica a estruturas dos 'verbos de criação' (árvore 15),
uma distinção que já estava sendo alinhavada desde Hale &Keyser 1993, e foi atualizada
por Alec Marantz em seu handout de 2007.
Lidando também com as classes de verbos intransitivos, pudemos ver, na parte 2.3,
de que modo se dá a análise dos verbos de estado (estragar) e dos verbos de ação (tocar)
dentro da teoria em pauta. Assim como foi constatado com os verbos transitivos,
encontramos significados bem distintos para um mesmo vocábulo verbal. Pondo a teoria
em prática, pudemos explicar as duas leituras diversas usando as árvores (17) e (18), e
mostramos que também no caso dos verbos intransitivos se pode encontrar um mesmo
vocábulo (sujar, curar, esquentar) aninhado em idênticas sintaxes superficiais, prestando-se
a uma ou à outra leitura. Esta é uma evidência favorável para o modelo que permite dizer
que existem duas diferentes estruturas da sintaxe pré-inserção lexical responsáveis pelas
duas diferentes leituras ao término da derivação.
Em 2.4 mostramos de que modo o modelo gera a transitivização dos intransitivos
estativos e a dos intransitivos ergativos, e como deriva a diferença semântica entre essas
duas estruturas, superficialmente idênticas. Para isso escolhemos como exemplo o contraste
semântico entre espremer um limão, e espremer uma limonada , e argumentamos que
espremer limão provém de uma sintaxe estativa transitivizada pelo acréscimo de um
morfema agentivizador (árvore 19), ao passo que em espremer limonada a estrutura é a dos
de verbos de criação, com transitivização do verbo pela adjunção de um DP que se torna
objeto direto, a ser lido como segundo evento (árvore 15).
Em 2.5. discriminamos três estruturas que chegam à superfície como verbos
transitivos que começam por prefixo: num conjunto de sentenças o verbo cai no tipo dos
verbos de locação (alongar, enfileirar, empilhar, aconselhar, enrolar); no outro, cai no tipo
dos verbos de criação (adestrar, arrombar, soterrar, aconselhar, enrolar, ensopar); no
conjunto dos estativos, cai ensopar. Mais uma vez se pode constatar que o significado se
forma ao longo de uma derivação sintática que vai sendo alterada até chegar à superfície. E
a camada da arbitrariedade saussureana está localizada de maneira diversa em cada uma das
três derivações examinadas para os verbos transitivos que contêm prefixos. Mais uma vez
as observações sobre estas estruturas tornam evidente a necessidade de uma
interdependência estreita entre o avanço na lingüística e na psicolingüística, com prioridade
epistemológica para a primeira, porque não há experimento sem hipótese e não há hipótese
sem uma teoria.
As partes 3.1 e 3.2 estão ligadas pela mesma idéia, a de que a releitura de estruturas
sintáticas é o cerne da mudança lingüística, em qualquer lugar e a cada dia. Na parte 3
apresento uma pesquisa 'experimental' sobre a variação na percepção individual da estrutura
das palavras. As respostas obtidas dão um forte atestado de variação. A variação consiste
em que algumas pessoas vêem a estrutura interna em uma dada palavra enquanto outras
lêem a mesma palavra sem sintaxe interna, com uma só marca de categorização. O grupo
que vê a sintaxe faz computação em Forma Lógica e calcula o significado da palavra mais
complexa a partir do de uma outra ou outrs que lhe dão um ponto de partida na computação
do significado. O grupo que não vê a sintaxe interna não precisa relacionar palavras umas
com as outras para calcular o significado de uma a partir do da outra: fazem o acesso das
palavras complexas como se não o fossem, diretamente na Enciclopédia. Chamemos o
grupo que vê a estrutura de Sintaticistas, e o grupo que acessa a Enciclopédia sem passar
pela sintaxe de Enciclopedistas. Salta à mente uma pergunta. Qual dos falantes se dá
melhor linguisticamente, os Sintaticistas ou os Enciclopedistas?
Esta pergunta, no presente estágio de nossas pesquisas, é irrespondível, porque não
temos estudos do repertório lexical de indivíduos. Mesmo assim, podemos tecer conjeturas.
Tomemos, por exemplo, o caso de um conjunto de pares de palavras em que foi encontrada
variação nas respostas sobre o relacionamento entre as palavras: o conjunto em que temos a
raiz √pel-: compelir/compulsão, propelir/propulsão, repelir/repulsivo, impelir/impulso.
Suponhamos que um Sintaticista faz busca na Enciclopédia para o verbo de cada par, e
calcula por regra de Forma Lógica o significado da palavra derivada. O tamanho da lista
enciclopédica dele, neste caso, será de quatro palavras. Suponhamos que um Enciclopedista
conheça o significado das oito palavras sem dar-se conta do relacionamento entre os pares.
O tamanho da lista enciclopédica dele será de oito palavras. Suponhamos que há um limite
máximo nos bites de memória enciclopédica concedidos pela biologia humana ao nosso
cérebro. Pensando assim, concluímos que um Sintaticista puro, por tirar melhor proveito do
mecanismo computacional, apelaria menos para a Enciclopédia, e portanto poderia vir a
dotar-se de um vocabulário mais vasto do que o de um Enciclopedista, uma vez que este, ao
não tirar bom proveito da derivação por cálculo do significado de muitas palavras
complexas consumiria mais rapidamente o espaço da memória enciclopédica que a natureza
lhe concede. Seria, então, melhor ser um Sintaticista do que um Enciclopedista.
Salta à mente outra pergunta: se para atingir um vocabulário vasto é mais rendoso
ser Sintaticista do que Enciclopedista, de que forma a educação poderia estimular nas
crianças o uso da computação sintática a fim de ajudá-las a não abusarem de sua
Enciclopédia? É um terreno desconhecido, que eu saiba, a questão de quanta evidência e
com que tipo de perfil estatístico um aprendiz necessita para descobrir a sintaxe no interior
das palavras, descobrir cognatos, induzir as regras de leitura semântica da sintaxe nas
camadas mais baixas. Conjeturar sendo o melhor que se pode fazer no momento,
poderíamos conjeturar que dados primários esparsos e pouco variados convidam ao uso da
Enciclopédia em detrimento da Forma Lógica, e dados primários variados nos quais
palavras cognatas apareçam próximas e reincidentes em discursos coesos serão
estimulantes para a ativação da Forma Lógica. Então, o direcionamento de um falantinho-
junior para que use a sua capacidade de computação sintática dependerá da freqüência com
que lhe aparece no dia a dia a oportunidade de perceber sintaxe. Isto porá em ação o
Mecanismo de Aquisição de Linguagem, que vem com a metodologia para computar
sintaxe embutida. A melhor oportunidade para ver sintaxe, que eu saiba, vem da leitura.
E o exame das etimologias, feito na parte 3.2, o que nos ensina? Como vimos, as
etimologias nos fornecem exemplos verdadeiramente escandalosos de corrosão sintática e
abuso da Enciclopédia. Digo abuso, pois constatamos que muitas vezes as etimologias
indicam que em algum momento devem acontecer mal-entendidos graves entre falantes que
dão recortes diferentes e leituras discrepantes para determinadas palavras. Nem por isso
diríamos que a língua portuguesa é uma corruptela da língua latina. Na verdade, as novas
Raízes que se formam a partir das inovações trazidas pelos falantes-juniors são tão boas
quanto as dos seus ancestrais, e acabam entrado nas computações de Forma Lógica dos
juniors dos juniors. Plus ça change, plus c'est toujours la même chose. Algum sábio disse
isso, mas não me lembro quem foi, nem a respeito de quê. Mas cai como uma luva para o
fenômeno da mudança nas línguas. O tema mais misterioso do nosso momento é, me
parece, o da semântica das raízes.
Referências bibliográficas:

Marantz, Alec - No Escape from Syntax: Don't Try Morphological Analysis in the Privacy
of Your Own Lexicon. In A. Dimitridis , L. Siegel et al., eds, University of Pennsylvania
Working Papers in Linguistics, vol 4.2, Proceedings of the 21st Annual Penn Linguistic
Colloquium, pp. 201-225. Pennsylvania, 2007

_______, Argument Structure and Morphology: Noun Phrases that Name Events. ms, 2007

Medeiros, Alessandro Boechat de- Traços Morfossintáticos e Subespecificação


Morfológica na Gramática do português; Um Estudo das Formas Participiais. Tese de
Doutorado em Lingüística´, UFRJ, 2008/1

Nascentes, Antenor- Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Depositários: Livrarias


Acadêmica, São José, Francisco Alves e Livros de Portugal. Rio de janeiro, 1955.

Saraiva, F. R. dos Santos- Novíssimo Dicionário Latino-Português. Rio de Janeiro e Belo


Horizonte, Livraria Garnier, 2000.

Hale, Kenneth & Samuel Jay Keyser - On Argument Structure and the Lexical Expression
of Syntactic Relations. The View from Building 20, Kenneth Hale & Samuel J. Keyser eds,
Cambriodge, Mass., MIT Press, 1993, pp. 53-109

Você também pode gostar