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A responsabilidade como princípio ético em Jean-Paul Sartre

Responsibility as an Ethical Principle in Jean-Paul Sartre

Alysson Augusto dos Santos Souza


Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)
alysson.souza@acad.pucrs.br
http://lattes.cnpq.br/5952003112091002

Resumo
Embora nunca tenha escrito um livro sobre o assunto, Jean-Paul Sartre é comumente tido como um filósofo
moral, possivelmente por conta da conferência, O existencialismo é um humanismo, pela qual fez não apenas
uma defesa do existencialismo contra as objeções que lhe logravam má-fama como, também, pela qual
popularizou suas próprias noções sobre o indivíduo existente, e como este indivíduo, condenado à
liberdade, não está verdadeiramente livre de responsabilidade. No presente texto, traçaremos um caminho
em vistas de explorar alguns conceitos-chave em Sartre que fundamentam sua percepção sobre a
liberdade, e buscaremos entender como os pilares de seu raciocínio fenomenológico desembocam numa
consequente conscientização do indivíduo sobre sua própria condição, da qual fugir por um ato de má-fé
seria o mesmo que fugir da própria responsabilidade frente ao mundo, a qual se faz causa de angústia
porém justifica o agir moral de um sujeito que, à primeira vista, parece ser livre para fazer o que quer. Em
suma, veremos que a liberdade radical de Sartre não é tão radical assim, e por isso mesmo concilia-se com
uma abordagem ética, que em sentido principiológico tomaremos como estando exposta em seu conceito
de responsabilidade.
Palavras-chave
Liberdade; Responsabilidade; Ética.

Abstract
Although has never written a book on the subject, Jean-Paul Sartre is commonly regarded as a moral
philosopher, possibly because of his conference The existentialism is a humanism by which he made not only
a defense of existentialism against objections that gave to this philosophy a bad fame, as well as by which
he popularized his own notions about the existing individual, and how this individual, condemned to
freedom, is not truly free of responsibility. In the present paper we will trace a way to explore some key
concepts in Sartre that base their perception on freedom, and we will try to understand how the pillars of
their phenomenological reasoning result in a consequent awareness of the individual about his own
condition, from which to flee for an act of bad faith would be the same as evading one's own responsibility
to the world, which causes anguish but justifies the moral action of a subject who at first sight seems free
to do what he wants. In short, we will see that Sartre's radical freedom is not so radical, and for that reason
Sartre conciliates her with an ethical approach, which in a principiological sense we will take as being
exposed in his concept of responsibility.
Keywords
Liberty; Responsibility; Ethics.

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1. Introdução
Conta-se que Jean-Paul Sartre, num dia de folga, estava sentado bebendo coquetéis de damasco
com Simone de Beauvoir e Raymond Aron, num café de Montparnasse, e, a seus companheiros
filosóficos, demonstrava insatisfação com a filosofia, por ela não dar conta da vida real, cotidiana
e prática. Aron, prontamente, teria objetado, invocando o filósofo alemão, Edmund Husserl, e
apontando a fenomenologia: “veja, meu camaradinha, se você é fenomenólogo, pode falar dessa
bebida e isso é filosofia” (Strathern, 1999, p. 25). Sartre, que até então teria estudado Descartes,
Kant, Hegel, Freud e outros — os quais invariavelmente tomava como insuficientes para o tipo
de filosofia que buscava —, encantou-se pela fenomenologia, pois prezava pelo “indivíduo
existente”, como diria Soren Kierkegaard, e seu envolvimento com o mundo. Tal deslumbre
impulsionou sua tomada de ação pelo estudo de Husserl, e aí, nos idos dos anos 1933, Sartre teria
colocado seu pé no existencialismo, corrente filosófica que não seria a mesma sem a participação
importantíssima e destacada deste autor.
O caminho que Sartre trilhava visava fundir o mundo da literatura com o mundo da
filosofia, tanto por conta de seu projeto pessoal — que era constituir-se escritor —, quanto por
reflexo de sua própria forma de existir no mundo: um personagem elegante, frequentador de um
café parisiense, recheado de casos intelectuais com belas jovens, em contraste a seu caso de longa
data com Beauvoir, também formidável intelectual. De alguma forma, sua filosofia, que
preconizava a liberdade frente às mais variadas instâncias da vida, era não apenas o fundamento
de sua ação no mundo; antes, era o reflexo de quem Sartre propriamente era.
Em alguma medida, porém, o louvor acadêmico e prestígio social que compunham a
identidade de Sartre, somados à sua forte afeição por estudos literários constantes e às aparentes
contradições que viveu em vida, ainda hoje induzem certo ceticismo quanto ao verdadeiro valor
de sua filosofia, tanto no sentido de questionar se podemos, de fato, considerá-lo um filósofo, a
depender dos critérios dos analíticos1, quanto em vias de nos questionarmos se não são suas obras
filosóficas irremediavelmente datadas da atmosfera do pós-guerra, a qual popularizou seu
pensamento como representante da moda existencialista por seu ensaio, O existencialismo é um
humanismo (obra doravante citada como EH), sendo, em certo sentido, uma moda considerada
ultrapassada por filósofos franceses pós-estruturalistas e pós-modernistas.2
Nas considerações que se seguem, tentaremos articular o pensamento de Sartre em vistas
de, entre seus diferentes enfoques, resgatar e ver algum sentido em seu raciocínio em termos de
considerações éticas, a despeito de Sartre não ser popularmente reconhecido como um filósofo
moral. Para tanto, será necessário fundamentar algumas de suas considerações fenomenológicas
sobre o indivíduo, o qual Sartre alega sem ressalvas ser detentor de uma irremediável e plena
liberdade, característica fundante deste sujeito existente, que invoca para si a condição da
responsabilidade. Trata-se, aqui, de transparecer a visão deste pensador quanto ao
direcionamento ético que ele confere ao sujeito livre, dado que a perspectiva sartriana
constituinte do indivíduo é de uma liberdade extremada, que parece não reconhecer os limites
de sua própria ação, o que em sentido ético soa intratável e, portanto, justifica uma investigação
do tipo que faremos agora, traçando um caminho que vá das considerações conceituais às morais
que o autor dá ao sujeito existencial, este que faz-se produto de seu próprio engajamento
livremente autoatribuído. Nas palavras de Sartre (1970, p. 15):

1 Morris conta que, por uma razão um tanto obscura, filósofos do século XX e XXI são amplamente classificados pelos
filósofos anglófonos em analíticos e continentais, sendo a filosofia continental o “outro” da filosofia analítica. Sartre,
nestas categorias, seria um representante dos continentais.
2 “Sartre é frequentemente visto como um filósofo de um mundo que passou, filho e relíquia da modernidade cuja voz
soou no meio das alienações e horrores do século XX, mas que hoje é escassamente detectável nas ondas sonoras de
nossa condição pós-moderna contemporânea” (in Morris, 2009, p. 17).

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O homem faz-se; ele não está pronto logo de início; ele se constrói escolhendo sua moral; e a
pressão das circunstâncias é tal que ele não pode deixar de escolher uma moral. Só definimos
o homem em relação a um engajamento. Parece-nos, portanto, absurdo que nos objetem a
gratuidade da escolha.

Note-se, já de início, que a liberdade em Sartre não é “gratuita”, como se o indivíduo não
necessitasse de lidar com as consequências daquilo que empreende em sua vida. A condição
existencial à qual todos estamos delegados a viver não anula a destinação proveniente de nossas
ações, que não apenas nos coloca frente às adversidades de nossas escolhas mas, também, as
ressalta como parte de nós mesmos. Nas palavras de Strathern (1999, p. 54-55):
Ao escolher o que escolhemos, deveríamos ter consciência do que estamos fazendo e assumir
inteira responsabilidade por isso. O objetivo individual deve ser ampliar a consciência:
tornar-se mais consciente de si mesmo e da própria provação, assim como aceitar a
responsabilidade pela própria sina, por suas ações e pelo eu que se cria com essas ações.

Compreendida a condição nada trivial em que a liberdade sartriana se estabelece,


podemos, agora, perquirir pelos fundamentos conceituais que fazem da filosofia de Sartre
parâmetro de um existencialismo cogente com um mundo no qual as essências determinísticas
dão lugar às diversas criações de sentido a nível de um projeto de vida individual e livre.

2. A liberdade como condição


Fato notável e bem conhecido é ser o primeiro princípio da filosofia sartriana a ideia de que “a
existência precede a essência”. Embora seja um axioma autoexplicativo, proferi-lo não é apenas
adotá-lo como premissa, mas também promover seus fundamentos. Para uma mente moderna
mais acostumada à ideia de que o indivíduo é ele mesmo responsável não apenas pelo seu
próprio destino, mas pelos aspectos que o circundam — como a sociedade, a cultura, o sistema
econômico e a própria ciência —, ter em mente que primeiro o ser humano existe, para só então
ser algo não parece uma novidade ou informação digna de nota. Entretanto, a despeito de ser um
caráter típico da modernidade que a autoridade sobre a vida não provenha de um ser divino, mas
do próprio indivíduo, esse tipo de constatação só tomou ares de maior transparência com a
filosofia de Sartre, que não apenas fez o gesto de pôr o sujeito existente no centro mesmo da
existência, mas desfez qualquer laço remanescente com a ainda arraigada ideia de que o ser
humano tem inerente a si uma natureza própria.
Não posso, porém, contar com homens que não conheço, fundamentando-me na bondade
humana ou no interesse do homem pelo bem-estar da sociedade, já que o homem é livre e
que não existe natureza humana na qual possa me apoiar. (EH, 1970, p. 10)

Sartre não incorpora em sua filosofia o discurso tradicional e trans-histórico da natureza


humana, já que assumi-lo comprometeria o seu próprio discurso, afetando as bases libertárias
fundacionais deste indivíduo livre que ele entende estar posto no mundo a despeito de qualquer
designação e determinismo. É nesse sentido que Sartre declara ser o seu existencialismo mais
coerente em comparação àquelas filosofias existencialistas que admitem o divino, como a de Karl
Jaspers e Gabriel Marcel, filósofos de confissão católica.
O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente. Afirma que, se Deus não existe,
há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de
poder ser definido por qualquer conceito: este ser é o homem, ou, como diz Heidegger, a
realidade humana. O que significa, aqui, dizer que a existência precede a essência? Significa

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que, em primeira instância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só
posteriormente se define. O homem, tal como o existencialista o concebe, só não é passível
de uma definição porque, de início, não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será
aquilo que ele fizer de si mesmo. Assim, não existe natureza humana, já que não existe um
Deus para concebê-la. O homem é tão-somente, não apenas como ele se concebe, mas
também como ele se quer; como ele se concebe após a existência, como ele se quer após esse
impulso para a existência. O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo: é
esse o primeiro princípio do existencialismo. É também a isso que chamamos de
subjetividade: a subjetividade de que nos acusam (Sartre, 1970, p. 4).

Sartre dispensa Deus em função de dispensar uma natureza humana, mas isso não
significa que ele esteja disposto a anular todo e qualquer aspecto compartilhado entre os
indivíduos, como que os dissociando de uma realidade comum. Nosso filósofo entende que “se
bem que seja impossível encontrar em cada homem uma essência universal que seria a natureza
humana, consideramos que exista uma universalidade humana de condição” (Sartre, 1970, p. 13).
Tal condição é a condição da liberdade, pois “o homem está condenado a ser livre” (Sartre, 1970,
p. 7).

2.1. O conceito de projeto como construção de sentido


E que outra coisa poderia pressupor a liberdade, se não uma liberdade de ação? Sartre apoia-se
na concepção husserliana de intencionalidade da consciência para fundamentar a precedência da
existência sobre a essência, pois, para Husserl, “o homem é doador de sentido ao mundo que o
rodeia porque é capaz de intuir intencionalmente, inventando um estatuto de ordenação das
coisas” (Melo, 2003, p. 15), sendo próprio do ser humano, portanto, atuar no campo da existência
em vistas de fazer brotar sentido, o qual se dá em sua consciência.
Dizer que nós inventamos os valores não significa outra coisa senão que a vida não tem
sentido a priori. Antes de alguém viver, a vida, em si mesma, não é nada; é quem a vive que
deve dar-lhe um sentido; e o valor nada mais é do que esse sentido escolhido (Sartre, 1970,
p. 17).

A conquista de sentido ocorre em vistas de um projeto. Destaquemos, aqui, que boa parte
da filosofia sartriana acompanha uma crítica ao psicologismo, como feita por Husserl3, e Sartre
seguia essa linha contrária à objetivação do psíquico. No caso de Sartre, suas críticas se
direcionam ao psicologismo do psicólogo William James, que separava a emoção do sujeito que
a vive, cortada da consciência e posta apenas como realidade física; bem como criticava o
psicólogo Pierre Janet por postura parecida, embora mais sutil. O que Sartre quer, aqui, é
dissociar do sujeito uma ideia mecanicista de sua ação, dotando-o de uma conduta com uma
finalidade, com um sentido ou significado.
De fato, só enquanto tem uma finalidade — portanto finalidade para um sujeito — o fato
psíquico significa alguma coisa, tem um sentido. Caso contrário, é mero efeito de uma causa,
automaticamente; ocorre sem visar a um fim, apenas ocorre. É essa a posição de James, para
quem a emoção é mero efeito de alterações corporais, e também a de Janet, para quem a
emoção é efeito de descarga de energia. (Moutinho, 1995, p. 56)

3 O psicologismo criticado por Husserl confundia o “sujeito do conhecimento” com o “sujeito psicológico”, sendo esta
confusão positivista fruto de uma lógica indutiva, pela qual conhecer consiste em descrever numa observação positiva
dos fatos, reconhecendo padrões e inferindo a partir deles. Para Husserl, as leis gerais inferidas pelo psicologismo são
carentes de uma exatidão, justificando assim uma análise fenomenológica em busca das essências acerca dos fatos
investigados.

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É fácil entender a necessidade de sentido que Sartre reclama, pois Sartre está amparado
na fenomenologia de Husserl, a qual preconiza uma consciência intencional e, portanto,
portadora de sentido. Uma consciência que não visa a alguma coisa, que não intenciona algo, é
uma consciência que sofre causalidade — e portanto é explicada pelo passado. Ocorre que uma
consciência intencional é finalista, e não se explica nos termos do passado; antes, é o futuro que
explica o presente. “Não é o passado que determina o presente, no sentido de causa e efeito, mas
a consciência é no presente conforme o futuro que ela visa” (Moutinho, 1995, p. 57). Assim, o
quadro da liberdade do sujeito depende diretamente de um fim a ser realizado, que se direciona
ao futuro — futuro que determina o presente —, e esta finalidade nos remete ao que Sartre
entende por projeto (lembrando o exemplo do próprio Sartre, que tinha como projeto realizar-se
escritor). Logo, é próprio da liberdade que haja barreiras a superar, uma vez que “se o ser livre é
aquele que pode realizar seus projetos, é preciso que haja distinção entre a projeção de um fim e a
realização desse fim. Se bastasse conceber para realizar, então a vida seria sonho” (Moutinho, 1995,
p. 72).
Sartre vê como próprio deste indivíduo uma liberdade “engajada em um mundo
resistente” (Moutinho, 1995, p. 73), sendo este um engajamento autoimposto de um sujeito que,
consciente de sua liberdade, precisa definir uma finalidade para sua vida, responsável por lhe
conferir sentido. É este o papel da finalidade consciente que, atribuída intencionalmente, constrói o
projeto pessoal do indivíduo livre.

3. A liberdade como responsabilidade


Sendo característica do indivíduo que precise designar a si um projeto pessoal para conferir
sentido à sua realidade, inevitavelmente suas considerações, na tentativa de implementar a
concretização do projeto escolhido, passarão por dilemas dos mais variados, que reclamarão
decisões por vezes pensadas minuciosamente e, por vezes, trágicas e objetivas. Sartre,
plenamente consciente de sua própria condição, entende ser uma necessidade existencial tomar
as rédeas sobre as contingências que urgem e criam uma atmosfera de escolhas prováveis, com
as quais deve lidar em nome deste projeto de si.
À luz da nossa contingência, e portanto do absurdo da nossa existência, devemos assumir
completa responsabilidade por nossas vidas (...). Não temos o direito de lamentar o destino.
Todo indivíduo quer seu próprio destino: ele quer a sua personalidade e mesmo as
circunstâncias sob as quais age essa personalidade. Levado às últimas consequências lógicas,
isso tem algumas implicações peculiares. Mas Sartre não era alguém que se esquivasse a tais
dificuldades. Sim, isso significava que ele, como indivíduo, era responsável por tudo (...). O
que significava que era responsável até pela Segunda Guerra Mundial. E devia estar
querendo aceitar essa responsabilidade e agir de acordo. Como colocou mais tarde: “esta é
minha guerra; está na minha imagem e eu a mereço… tudo acontece como se eu tivesse toda
a responsabilidade por essa guerra… Então eu sou essa guerra” (Strathern, 1999, p. 39-40).

É esta insurgência de desafios de todos os tipos, especialmente de desafios morais, que


justifica o entendimento da liberdade não como natureza humana mas como condição, pois existir
antes de ter uma essência definida é nada menos que não haver situações pré-concebidas no
mundo que solicitarão respostas apriorísticas a nível moral. As nossas escolhas pela realização
de nosso projeto pessoal cabem tão somente a nós mesmos, estão dissociadas de uma essência
anterior à existência e de planos divinos, e é pelo apontamento destes fatos que temos o
reconhecimento da responsabilidade, termo de suma importância na filosofia de Sartre.

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Pois que outro chamado pode haver sobre um indivíduo pleno e consciente de sua
liberdade que não a responsabilidade por suas próprias ações? Esse é o caráter liberal da filosofia
de Sartre, que toma como responsável das ações do homem o próprio homem, e não as estruturas
envolvidas na sua formação, como por exemplo a cultura, o sistema econômico ou a herança
histórica proveniente de um coletivo de antepassados. Sua tese da liberdade radical, porém, não
pode ser confundida como uma liberdade para se fazer o que se quer. Antes, a liberdade sartriana
é engajada, ou seja, está não na plena realização de ações no mundo, mas na plena intenção de realizá-
las. Luiz Moutinho (1995, p. 73) coloca bem a questão quando diz que:
O problema da liberdade diz respeito ao querer e não ao poder (poder para alcançar o que o
querer indica), e é por isso que o sucesso não importa em rigorosamente nada para a
liberdade: não se é menos livre porque não se consegue o que se quer, mas seríamos não-
livres (o que é impossível) se nosso querer fosse condicionado.

A aparentemente contraditória noção sartriana de que o homem é livre mesmo quando


trancado em uma cela, aqui, ganha sentido, pois uma liberdade que existe na possibilidade de
evadir-se do aprisionamento — que não está fundada no sucesso dessa evasão, mas na projeção
intencional da fuga — é íntima ao sujeito de tal modo que, mesmo conseguindo fugir da cela, não
conseguirá fugir de sua condição da liberdade. De toda forma, Sartre abraça a possibilidade do
indivíduo enganar a si mesmo, criando narrativas que o façam acreditar ter um destino ou estar
pré-determinado no mundo, e a esta possibilidade ele chama má-fé.

3.1 A má-fé como resposta à angústia de ser livre


É só por meio de um autoengodo que o sujeito consegue nublar sua consciência da própria
condição. A má-fé, em Sartre, foge do sentido popular de ser um ato nocivo direcionado ao outro
(ação maldosa, fraude), sendo um ato nocivo direcionado contra si mesmo. Como Sartre (1970, p.
16) diz, “a má-fé é, evidentemente, uma mentira, pois dissimula a total liberdade do
engajamento”.
Agimos de má-fé quando enganamos a nós mesmos, particularmente quando tentamos
racionalizar a existência humana impondo-lhe um significado ou coerência. Isso pode ser
feito com a aceitação de uma religião ou qualquer conjunto de valores dados. Também inclui
qualquer aceitação da ciência na medida em que isso seja uma tentativa de impor um significado
geral à vida. Agir de má-fé significa, portanto, esquivar-se à responsabilidade pelos próprios
atos, depositando-a em alguma influência externa (Strathern, 1999, p. 55-56).

Com a liberdade dissimulada o que o sujeito quer é lidar com a angústia de ser responsável
pela própria realidade. A obrigação de responder pelos próprios atos sendo um indivíduo
imperfeito e desamparado por um sentido universal sobre a própria vida é um encargo cuja
imposição não se escolheu abraçar antes de vir ao mundo — não há contratos essenciais. Perceber
que se está no mundo e que, para projetar-se, você precisa necessariamente moldá-lo é um fado
existencial que nem todos aceitam de bom grado carregar. A má-fé é uma tática comum aplicada
dentre aqueles que buscam convencer a própria consciência de que não são realmente livres, e,
portanto, estariam justificados a delegar a responsabilidade sobre os próprios atos a outros
motivos que não a si mesmos.
O existencialista declara frequentemente que o homem é angústia. Isto significa o seguinte:
o homem que se engaja e que se dá conta de que ele é não apenas aquele que ele escolheu
ser, mas ainda um legislador que escolhe, ao mesmo tempo que ele mesmo, toda a
humanidade, não poderia escapar ao sentimento de sua total e profunda responsabilidade
(Sartre, 1970, p. 5).

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A angústia é o resultado gerado pela consciência que se vê compelida a escolher. Tal
escolha, porém, embora seja possível tão somente por haver um querer autônomo do sujeito, não
está restrita ao âmbito do indivíduo — não se basta ao alcance de si mesmo; é ela fruto do peso
que a ação individual tem sobre a sociedade, peso este gerador de responsabilidade.

3.2 A responsabilidade como escolha da humanidade


“Nada me designa para ser Abraão, e, no entanto, sou a cada instante obrigado a realizar atos
exemplares”, é como Sartre (1970, p. 6) desenha o chamado para o engajamento pessoal do sujeito
que, consciente das barreiras a superar para imputar seu projeto, deve fazer de sua condição um
exemplo de intenção a conduzir todas as consciências. Os atos exemplares, aqui, nada mais são
que reflexo da responsabilidade sobre a própria liberdade, que se faz autêntica quando totalmente
dissociada da má-fé, lidando com a angústia de ter de escolher não apenas o que o homem mesmo
deve ser, mas como deve ser a humanidade inteira. É aqui que Sartre introduz o imperativo
categórico kantiano como modo de fazer este indivíduo aparentemente atomizado chegar ao
coletivo de sua espécie, pois “com cada opção que faço estou não apenas criando a mim mesmo
como implicando toda uma moralidade, quer eu goste ou não disso” (Strathern, 1999, p. 55).
Tudo se passa como se a humanidade inteira estivesse de olhos fixos em cada homem e se
regrasse por suas ações. E cada homem deve perguntar a si próprio: sou eu, realmente,
aquele que tem o direito de agir de tal forma que os meus atos sirvam de norma para toda a
humanidade? E, se ele não fazer a si mesmo esta pergunta, é porque estará mascarando sua
angústia. (...) esse tipo de angústia — a que o existencialismo descreve —, se explica também
por uma responsabilidade direta para com os outros homens engajados pela escolha (Satre,
1970, p. 6).

É patente a distinção entre Sartre e Kant, o que não torna impossível qualquer
aproximação feita entre ambos no campo da moralidade. Isso porque Sartre, embora rejeite o
caráter categórico da filosofia moral kantiana, ainda assim compartilha de um fundo comum com
a mesma, dado que a escolha moral individual traduz-se em escolha que visa a humanidade como
um todo. Sim, é verdade que a decisão, em Sartre, não ocorre por uma condição apriorística, que
designa ao sujeito o dever de agir categoricamente; antes, a decisão sartriana é situacional, o que
faz questionar a existência de um caráter universal na ética do filósofo francês. É preciso ter em
mente, porém, que “a universalização examina se o horizonte de vida subjetivo posto em uma
máxima pode ser pensado e querido como unidade racional de uma comunidade de pessoas”
(Machado, 2015, p. 2), o que tornaria, então, a universalização numa espécie de campo de atuação
do sujeito onde ele pode, livre e racionalmente, contrabalancear o horizonte de decisões possíveis
e quais delas podem melhor refletir o que seria preferível diante de toda a humanidade.
Quando se decide livremente, em Sartre, o que estamos fazendo é demonstrar nosso
projeto pessoal, escolhendo quem somos, mas fazendo-o de tal modo que esta escolha determine
também a escolha que fazemos da humanidade inteira. Nessa sinalização, o que o sujeito dispõe,
ao escolher, é o valor que dá às opções disponíveis, sendo aquela de sua escolha a que mais bem
valoriza, contrastando sua decisão ao modelo de homem que busca projetar no mundo, uma vez
que “nada pode ser bom para nós sem que o seja para todos” (Sartre, 1978, p. 7). Percebe-se, aqui,
que, embora se distancie da absolutização da razão frente à moralidade, Sartre elenca, apesar de
livre, que o sujeito conscientiza-se de seu status existencial quando posto frente às adversidades
e dilemas dos mais variados que lhe fazem ter de decidir, fazendo de suas ações o exato reflexo
do tipo de ação e, por que não, sujeito que quer ver no mundo. É perante suas escolhas que o

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homem torna-se responsável por si, e é ao projetá-las no mundo que o homem torna-se
responsável por toda a humanidade.

4. Considerações finais
A repentina paixão de Jean-Paul Sartre pela fenomenologia é responsável não apenas pelo rigor
com o qual tratou a articulação de seus próprios pensamentos; este passo dado em direção à
criação de uma filosofia da ação4 culminou na conceituação de uma liberdade radical condizente
com uma responsabilidade pela humanidade inteira e, ironicamente, fez de Sartre, ao decidir por
esta ideia de responsabilidade, ser responsável por toda uma geração cultural de jovens
engajados em escrever seus próprios projetos de vida, conferindo a si mesmos sentidos
particulares pelos quais viver livremente num contexto de desamparo existencial pós-guerra.
No caminho traçado, vimos como Sartre relaciona a condição de indivíduo jogado no mundo
com a consequente realidade de um indivíduo agente no mundo. O famigerado imperativo
categórico de Immanuel Kant, embora atrelado a um universalismo rejeitado por Sartre, serviu
de modo suficientemente coerente para fundamentar um agir moral do indivíduo livre. Esse agir
moral é pleno na ausência de má-fé. A falta de má-fé é a consciência da própria condição de
liberdade, que designa uma vida autêntica. É levando uma vida autêntica que um indivíduo
estabelece seu projeto. Este projeto evoca o reconhecimento da responsabilidade, geradora da
angústia. Essa angústia, pressupondo todo o processo anterior, só pode ser aliviada com a escolha
de um posicionamento autêntico, que evite a má-fé e, portanto, faça o indivíduo optar pelo bem,
pois “o que escolhemos é sempre o bem e nada pode ser bom para nós sem o ser para todos”
(Sartre, 1970, p. 5) — e este bem, que é kantiano, existe numa relação entre indivíduo e sociedade.
Optar pelo bem, que é a decisão mais livre e também mais autêntica, é o que criaria essa “imagem
do homem tal como julgamos que ele deva ser” (Sartre, 1970, p. 5). Se não estamos agindo de má-
fé, somos direcionados a agir moralmente. É esse o princípio da responsabilidade que faz de
Sartre um pensador amplamente lido como provedor de uma reflexão legitimamente ética sobre
o mundo.

Referências
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<https://plato.stanford.edu/archives/fall2013/entries/sartre/>.
MACHADO, F.S. Ação Moral e Subjetividade: aproximações e incompatibilidades entre Kant e
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MELO, N.V. A escolha de si como escolha do outro: Liberdade e alteridade em Sartre. Recife: INSAF,
2003.
MORRIS, K.J. Sartre. Porto Alegre: Artmed, 2009.
MOUTINHO, L.D.S. Sartre: Existencialismo e liberdade. São Paulo: Editora Moderna Ltda., 1995.
SARTRE, J.P. O existencialismo é um humanismo, 1970. Acessível em:
<http://stoa.usp.br/alexccarneiro/files/-1/4529/sartre_exitencialismo_humanismo.pdf>.
STRATHERN, P. Sartre em 90 minutos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.

4 “A consequente e brava tentativa de assumir responsabilidade pela própria existência e agir em acordo com ela jamais
pode iludir totalmente o conteúdo psicológico ou emocional. Pode ser salutar tentar agir como se fôssemos livres de
nossa psicologia, mas jamais podemos alcançar plenamente essa liberdade. Mas a insistência de Sartre de que nunca
devemos nos esconder por trás dessas coisas é inegavelmente uma corajosa receita para uma filosofia da ação”
(Strathern, 1999, p. 35).

Controvérsia, São Leopoldo, v. 13, n. 3, p. 17-25, set.-dez. 2017. 24


TOURINHO, C.D.C. A crítica da fenomenologia de Husserl à visão positivista nas ciências
humanas. Revista da Abordagem Gestáltica, v. 17, n. 2, p. 131-136. Acessível em:
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-68672011000200003>.

Submissão (1a versão): 26-07-2017


Aceito para publicação: 01-02-2018

Controvérsia, São Leopoldo, v. 13, n. 3, p. 17-25, set.-dez. 2017. 25

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