Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Resumo
Embora nunca tenha escrito um livro sobre o assunto, Jean-Paul Sartre é comumente tido como um filósofo
moral, possivelmente por conta da conferência, O existencialismo é um humanismo, pela qual fez não apenas
uma defesa do existencialismo contra as objeções que lhe logravam má-fama como, também, pela qual
popularizou suas próprias noções sobre o indivíduo existente, e como este indivíduo, condenado à
liberdade, não está verdadeiramente livre de responsabilidade. No presente texto, traçaremos um caminho
em vistas de explorar alguns conceitos-chave em Sartre que fundamentam sua percepção sobre a
liberdade, e buscaremos entender como os pilares de seu raciocínio fenomenológico desembocam numa
consequente conscientização do indivíduo sobre sua própria condição, da qual fugir por um ato de má-fé
seria o mesmo que fugir da própria responsabilidade frente ao mundo, a qual se faz causa de angústia
porém justifica o agir moral de um sujeito que, à primeira vista, parece ser livre para fazer o que quer. Em
suma, veremos que a liberdade radical de Sartre não é tão radical assim, e por isso mesmo concilia-se com
uma abordagem ética, que em sentido principiológico tomaremos como estando exposta em seu conceito
de responsabilidade.
Palavras-chave
Liberdade; Responsabilidade; Ética.
Abstract
Although has never written a book on the subject, Jean-Paul Sartre is commonly regarded as a moral
philosopher, possibly because of his conference The existentialism is a humanism by which he made not only
a defense of existentialism against objections that gave to this philosophy a bad fame, as well as by which
he popularized his own notions about the existing individual, and how this individual, condemned to
freedom, is not truly free of responsibility. In the present paper we will trace a way to explore some key
concepts in Sartre that base their perception on freedom, and we will try to understand how the pillars of
their phenomenological reasoning result in a consequent awareness of the individual about his own
condition, from which to flee for an act of bad faith would be the same as evading one's own responsibility
to the world, which causes anguish but justifies the moral action of a subject who at first sight seems free
to do what he wants. In short, we will see that Sartre's radical freedom is not so radical, and for that reason
Sartre conciliates her with an ethical approach, which in a principiological sense we will take as being
exposed in his concept of responsibility.
Keywords
Liberty; Responsibility; Ethics.
1 Morris conta que, por uma razão um tanto obscura, filósofos do século XX e XXI são amplamente classificados pelos
filósofos anglófonos em analíticos e continentais, sendo a filosofia continental o “outro” da filosofia analítica. Sartre,
nestas categorias, seria um representante dos continentais.
2 “Sartre é frequentemente visto como um filósofo de um mundo que passou, filho e relíquia da modernidade cuja voz
soou no meio das alienações e horrores do século XX, mas que hoje é escassamente detectável nas ondas sonoras de
nossa condição pós-moderna contemporânea” (in Morris, 2009, p. 17).
Note-se, já de início, que a liberdade em Sartre não é “gratuita”, como se o indivíduo não
necessitasse de lidar com as consequências daquilo que empreende em sua vida. A condição
existencial à qual todos estamos delegados a viver não anula a destinação proveniente de nossas
ações, que não apenas nos coloca frente às adversidades de nossas escolhas mas, também, as
ressalta como parte de nós mesmos. Nas palavras de Strathern (1999, p. 54-55):
Ao escolher o que escolhemos, deveríamos ter consciência do que estamos fazendo e assumir
inteira responsabilidade por isso. O objetivo individual deve ser ampliar a consciência:
tornar-se mais consciente de si mesmo e da própria provação, assim como aceitar a
responsabilidade pela própria sina, por suas ações e pelo eu que se cria com essas ações.
Sartre dispensa Deus em função de dispensar uma natureza humana, mas isso não
significa que ele esteja disposto a anular todo e qualquer aspecto compartilhado entre os
indivíduos, como que os dissociando de uma realidade comum. Nosso filósofo entende que “se
bem que seja impossível encontrar em cada homem uma essência universal que seria a natureza
humana, consideramos que exista uma universalidade humana de condição” (Sartre, 1970, p. 13).
Tal condição é a condição da liberdade, pois “o homem está condenado a ser livre” (Sartre, 1970,
p. 7).
A conquista de sentido ocorre em vistas de um projeto. Destaquemos, aqui, que boa parte
da filosofia sartriana acompanha uma crítica ao psicologismo, como feita por Husserl3, e Sartre
seguia essa linha contrária à objetivação do psíquico. No caso de Sartre, suas críticas se
direcionam ao psicologismo do psicólogo William James, que separava a emoção do sujeito que
a vive, cortada da consciência e posta apenas como realidade física; bem como criticava o
psicólogo Pierre Janet por postura parecida, embora mais sutil. O que Sartre quer, aqui, é
dissociar do sujeito uma ideia mecanicista de sua ação, dotando-o de uma conduta com uma
finalidade, com um sentido ou significado.
De fato, só enquanto tem uma finalidade — portanto finalidade para um sujeito — o fato
psíquico significa alguma coisa, tem um sentido. Caso contrário, é mero efeito de uma causa,
automaticamente; ocorre sem visar a um fim, apenas ocorre. É essa a posição de James, para
quem a emoção é mero efeito de alterações corporais, e também a de Janet, para quem a
emoção é efeito de descarga de energia. (Moutinho, 1995, p. 56)
3 O psicologismo criticado por Husserl confundia o “sujeito do conhecimento” com o “sujeito psicológico”, sendo esta
confusão positivista fruto de uma lógica indutiva, pela qual conhecer consiste em descrever numa observação positiva
dos fatos, reconhecendo padrões e inferindo a partir deles. Para Husserl, as leis gerais inferidas pelo psicologismo são
carentes de uma exatidão, justificando assim uma análise fenomenológica em busca das essências acerca dos fatos
investigados.
Com a liberdade dissimulada o que o sujeito quer é lidar com a angústia de ser responsável
pela própria realidade. A obrigação de responder pelos próprios atos sendo um indivíduo
imperfeito e desamparado por um sentido universal sobre a própria vida é um encargo cuja
imposição não se escolheu abraçar antes de vir ao mundo — não há contratos essenciais. Perceber
que se está no mundo e que, para projetar-se, você precisa necessariamente moldá-lo é um fado
existencial que nem todos aceitam de bom grado carregar. A má-fé é uma tática comum aplicada
dentre aqueles que buscam convencer a própria consciência de que não são realmente livres, e,
portanto, estariam justificados a delegar a responsabilidade sobre os próprios atos a outros
motivos que não a si mesmos.
O existencialista declara frequentemente que o homem é angústia. Isto significa o seguinte:
o homem que se engaja e que se dá conta de que ele é não apenas aquele que ele escolheu
ser, mas ainda um legislador que escolhe, ao mesmo tempo que ele mesmo, toda a
humanidade, não poderia escapar ao sentimento de sua total e profunda responsabilidade
(Sartre, 1970, p. 5).
É patente a distinção entre Sartre e Kant, o que não torna impossível qualquer
aproximação feita entre ambos no campo da moralidade. Isso porque Sartre, embora rejeite o
caráter categórico da filosofia moral kantiana, ainda assim compartilha de um fundo comum com
a mesma, dado que a escolha moral individual traduz-se em escolha que visa a humanidade como
um todo. Sim, é verdade que a decisão, em Sartre, não ocorre por uma condição apriorística, que
designa ao sujeito o dever de agir categoricamente; antes, a decisão sartriana é situacional, o que
faz questionar a existência de um caráter universal na ética do filósofo francês. É preciso ter em
mente, porém, que “a universalização examina se o horizonte de vida subjetivo posto em uma
máxima pode ser pensado e querido como unidade racional de uma comunidade de pessoas”
(Machado, 2015, p. 2), o que tornaria, então, a universalização numa espécie de campo de atuação
do sujeito onde ele pode, livre e racionalmente, contrabalancear o horizonte de decisões possíveis
e quais delas podem melhor refletir o que seria preferível diante de toda a humanidade.
Quando se decide livremente, em Sartre, o que estamos fazendo é demonstrar nosso
projeto pessoal, escolhendo quem somos, mas fazendo-o de tal modo que esta escolha determine
também a escolha que fazemos da humanidade inteira. Nessa sinalização, o que o sujeito dispõe,
ao escolher, é o valor que dá às opções disponíveis, sendo aquela de sua escolha a que mais bem
valoriza, contrastando sua decisão ao modelo de homem que busca projetar no mundo, uma vez
que “nada pode ser bom para nós sem que o seja para todos” (Sartre, 1978, p. 7). Percebe-se, aqui,
que, embora se distancie da absolutização da razão frente à moralidade, Sartre elenca, apesar de
livre, que o sujeito conscientiza-se de seu status existencial quando posto frente às adversidades
e dilemas dos mais variados que lhe fazem ter de decidir, fazendo de suas ações o exato reflexo
do tipo de ação e, por que não, sujeito que quer ver no mundo. É perante suas escolhas que o
4. Considerações finais
A repentina paixão de Jean-Paul Sartre pela fenomenologia é responsável não apenas pelo rigor
com o qual tratou a articulação de seus próprios pensamentos; este passo dado em direção à
criação de uma filosofia da ação4 culminou na conceituação de uma liberdade radical condizente
com uma responsabilidade pela humanidade inteira e, ironicamente, fez de Sartre, ao decidir por
esta ideia de responsabilidade, ser responsável por toda uma geração cultural de jovens
engajados em escrever seus próprios projetos de vida, conferindo a si mesmos sentidos
particulares pelos quais viver livremente num contexto de desamparo existencial pós-guerra.
No caminho traçado, vimos como Sartre relaciona a condição de indivíduo jogado no mundo
com a consequente realidade de um indivíduo agente no mundo. O famigerado imperativo
categórico de Immanuel Kant, embora atrelado a um universalismo rejeitado por Sartre, serviu
de modo suficientemente coerente para fundamentar um agir moral do indivíduo livre. Esse agir
moral é pleno na ausência de má-fé. A falta de má-fé é a consciência da própria condição de
liberdade, que designa uma vida autêntica. É levando uma vida autêntica que um indivíduo
estabelece seu projeto. Este projeto evoca o reconhecimento da responsabilidade, geradora da
angústia. Essa angústia, pressupondo todo o processo anterior, só pode ser aliviada com a escolha
de um posicionamento autêntico, que evite a má-fé e, portanto, faça o indivíduo optar pelo bem,
pois “o que escolhemos é sempre o bem e nada pode ser bom para nós sem o ser para todos”
(Sartre, 1970, p. 5) — e este bem, que é kantiano, existe numa relação entre indivíduo e sociedade.
Optar pelo bem, que é a decisão mais livre e também mais autêntica, é o que criaria essa “imagem
do homem tal como julgamos que ele deva ser” (Sartre, 1970, p. 5). Se não estamos agindo de má-
fé, somos direcionados a agir moralmente. É esse o princípio da responsabilidade que faz de
Sartre um pensador amplamente lido como provedor de uma reflexão legitimamente ética sobre
o mundo.
Referências
FLYNN, T. “Jean-Paul Sartre”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2013. Acessível em:
<https://plato.stanford.edu/archives/fall2013/entries/sartre/>.
MACHADO, F.S. Ação Moral e Subjetividade: aproximações e incompatibilidades entre Kant e
Sartre, 2015. Acessível em: <http://cifmp.ufpel.edu.br/anais/1/cdrom/mesas/mesa8/03.pdf>.
MELO, N.V. A escolha de si como escolha do outro: Liberdade e alteridade em Sartre. Recife: INSAF,
2003.
MORRIS, K.J. Sartre. Porto Alegre: Artmed, 2009.
MOUTINHO, L.D.S. Sartre: Existencialismo e liberdade. São Paulo: Editora Moderna Ltda., 1995.
SARTRE, J.P. O existencialismo é um humanismo, 1970. Acessível em:
<http://stoa.usp.br/alexccarneiro/files/-1/4529/sartre_exitencialismo_humanismo.pdf>.
STRATHERN, P. Sartre em 90 minutos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.
4 “A consequente e brava tentativa de assumir responsabilidade pela própria existência e agir em acordo com ela jamais
pode iludir totalmente o conteúdo psicológico ou emocional. Pode ser salutar tentar agir como se fôssemos livres de
nossa psicologia, mas jamais podemos alcançar plenamente essa liberdade. Mas a insistência de Sartre de que nunca
devemos nos esconder por trás dessas coisas é inegavelmente uma corajosa receita para uma filosofia da ação”
(Strathern, 1999, p. 35).