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O risco de uma catástrofe geracional

Não, ainda não é hora de voltar às aulas. O risco de


contágio pelo coronavírus continua altíssimo. Mas
como será o futuro? Como ficará o processo de
aprendizado? Estamos perdendo tempo? Alguns dos
principais pesquisadores do assunto no País dizem
que para sair dessa enrascada educacional e
pavimentar uma retomada sólida nos próximos
meses, será preciso desenvolver, daqui para frente,
novas modalidades de ensino híbrido, que combina
atividades presenciais e não presenciais. O maior
problema, porém, é que no Brasil há milhões de
estudantes digitalmente excluídos, que estão, no
momento, sem qualquer atividade escolar

MEDIDAS RESTRITIVAS Alunos de escola privada em Manaus fazem


trabalho escolar usando máscaras e separados por barreiras de
proteção: o novo normal (Crédito: Divulgação)

Vicente Vilardaga e Mariana Ferrari

21/08/20 - 09h30 - Atualizado em 21/08/20 - 12h19


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SEGURANÇA Na
volta às aulas, em Manaus, funcionários de escola pública medem a
temperatura dos alunos: crianças têm alta carga viral (Crédito: Yago Frota)

A pandemia e o isolamento social colocaram a educação num impasse. Ou ela


se transforma, porque o velho mundo acabou, ou ela não vai mais funcionar.
As coisas nunca mais serão como antes e é preciso recuperar o tempo de
aprendizado que está sendo perdido e estabelecer uma estratégia de
retomada. É um momento de alta tensão, mas há luz no horizonte. Será
necessário um trabalho duro e capacidade inovadora para superar as
consequências do isolamento prolongado e oferecer para as crianças e
adolescentes novas perspectivas de ensino. A volta das atividades presenciais
está se iniciando em algumas cidades e, em outras, existe muita incerteza e
preocupação sobre um eventual retorno. Mas independentemente do momento
da retomada, o ensino, daqui para frente, se tornará cada vez mais híbrido,
combinando atividades presenciais e não presenciais.

O problema é que no Brasil há uma desigualdade gritante e milhões de alunos


de todos os níveis estão excluídos digitalmente. Calcula-se que um quinto dos
estudantes brasileiros estejam, hoje, sem realizar qualquer atividade escolar. O
desafio que se tem pela frente é mundial e tão grave, que, há duas semanas, o
secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres,
disse que o mundo está diante de uma “catástrofe geracional” por causa da
interrupção ou da precarização das aulas em todo o mundo. Segundo Guterres,
até meados de julho, as escolas estavam fechadas em 160 países, afetando
diretamente mais de 1 bilhão de estudantes. Pelo menos 40 milhões de
crianças perderam a pré-escola neste ano. “Agora, encaramos uma catástrofe
geracional que pode desperdiçar incontável potencial humano, prejudicar
décadas de progresso e exacerbar desigualdades entrincheiradas”, disse o
secretário-geral da ONU, ao lançar a campanha “Salve nosso Futuro”. “Assim
que a transmissão local de Covid-19 estiver sob controle, colocar os alunos de
volta às escolas e instituições de ensino, com o máximo de segurança possível,
precisa ser uma prioridade”, disse. Apesar de prioritária, não há consenso de
quando e de que forma ela deve ser feita. Tudo depende da evolução da
pandemia. E, por enquanto, o risco é alto e não vale a pena arriscar. Pesquisa
do Instituto Datafolha mostra que 79% da população são contra uma abertura
precipitada.
DÚVIDAS Na casa
da família Portella o ensino à distância não é totalmente eficiente:
aprendizagem defasada sem o convívio das salas de aula
(Crédito:GABRIELREIS)

“Para que haja a volta às aulas é necessário que a transmissão esteja em


queda”, afirma o infectologista Leonardo Weissmann, médico do hospital Emilio
Ribas e membro da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI). “E a situação
ainda está fora de controle”. Manaus (AM), lugar onde, segundo a Fundação de
Vigilância em Saúde do Amazonas, já se verifica uma tendência de
desaceleração da pandemia, foi a primeira capital do País a tomar a decisão de
reabrir as escolas públicas e privadas, na segunda-feira 10. Vários cuidados
estão sendo tomados, como regras de distanciamento, uso de máscaras,
medição de temperatura, recomendação de lavagem frequente das mãos e
disponibilidade de álcool em gel. Mesmo assim, o sentimento de risco de
infecção é alto e se percebe um medo generalizado dos alunos de voltar a
frequentar as aulas. ”É um grande desafio fazer com que as crianças respeitem
as regras durante todo o tempo”, diz Weissmann. Um estudo recém-concluído
pela Escola de Medicina da Universidade de Harvard mostra que as crianças
têm alta carga viral e podem ser mais contagiosas do que adultos.

“O ano não está


perdido. Os alunos estão desenvolvendo novas habilidades
socioemocionais e se familiarizando com atividades remotas” Maria
Helena Castro, membro do CNE (Crédito: GABRIEL REIS)
Na capital amazonense, retornaram às aulas cerca de 110 mil estudantes do
ensino público e 60 mil do privado. Em São Paulo, o prefeito Bruno Covas
descartou a reabertura das escolas antes de outubro. No Rio de Janeiro, as
aulas presenciais estão previstas para voltar dia 15 de setembro nas escolas
privadas e dia 5 de outubro nas públicas. “Temos pouco conhecimento sobre a
Covid-19 e por isso a população está contra a volta das escolas. Há
insegurança e incerteza”, diz Raquel Teixeira, conselheira do Conselho de
Gestão de Educação do governo de São Paulo. A capital paulista chegou a
anunciar a retomada do ensino presencial, mas a reação negativa fez com que
a medida fosse adiada. A volta, antes prevista para o dia 8 de setembro, será
dia 7 de outubro. Baseado em pesquisas e análises de profissionais da área, o
governo estadual optou pela autonomia dos municípios na gestão da crise.
“Talvez, em um primeiro momento, a escola fique disponível para um, dois, três
alunos e professores que precisem usufruir de uma boa internet e melhor
infraestrutura”, prevê.

Para a educadora Maria Helena Castro, membro do Conselho Nacional de


Educação (CNE) e presidente da Associação Brasileira de Avaliação
Educacional (Abave), o ponto de partida da retomada das aulas é o respeito às
decisões das autoridades sanitárias. “A preocupação da ONU com uma
catástrofe é real e o maior problema imediato que temos é a evasão dos alunos
do ensino médio”, diz. “Estudantes mais vulneráveis, com dificuldade de
acesso à internet, poderão ser prejudicados pelo resto da vida”. Em 2018, o
índice de abandono, no primeiro ano do ensino médio, foi de 28%. Os
desistentes, em geral, são adolescentes com atraso escolar e idades que
variam de 16 a 18 anos. A pressão sobre esse grupo, que já é alta, devido ao
abandono da escola para entrada no mercado de trabalho, se intensificou mais
com a pandemia e causou perda de motivação e dificuldades adicionais para
continuar nos estudos. Segundo Maria Helena, a desistência nessa fase da
vida estudantil é verificada em várias partes do mundo. Em Nova York, diz,
20% dos alunos abandonaram o curso.

DISPERSÃO Catarina (à frente), Eduarda e João: rotina de estudos tumultuada


e dificuldade de acompanhamento de atividades não presenciais
(Crédito:RodrigoZaim)

Maior desigualdade

Maria Helena também destaca que se a retomada não for bem feita pode
aumentar a desigualdade escolar, um problema grave do sistema de ensino.
Atualmente, 85% dos 48 milhões de estudantes brasileiros estão em escolas
públicas. É esse grupo que está sendo mais afetado pela interrupção das
atividades presenciais. Nas escolas privadas, que contam com as ferramentas
necessárias para desenvolver atividades remotas, os avanços em direção a um
modelo de ensino híbrido foram intensificados. Há, também, apoio de
consultorias, prestadas por hospitais como Albert Einstein e Sírio Libanês, para
estabelecer protocolos de retorno personalizados. Na rede pública, porém, a
situação é diferente e bastante desigual. Além do ensino médio, os alunos de
alfabetização também formam um grupo com alto risco de sofrer graves
prejuízos com a interrupção das atividades presenciais. São estudantes que
precisarão de uma educação intensiva e de um plano individual de
recuperação. “O ano não está completamente perdido, os alunos estão
desenvolvendo habilidades socioemocionais e se familiarizando com atividades
remotas e interativas”, diz Maria Helena. “Daqui para frente, o grande desafio
da escola pública será garantir a conectividade”.

Na zona sul da capital paulista, Catarina, Eduarda e João, 11, 8 e 6 anos,


respectivamente, vivem o ensino à distância de maneiras distintas. João, o
caçula, que está em fase de alfabetização, é o pólo mais fraco quando a
questão é estudo remoto. A pouca idade faz com que ele fique irritado e
disperse muito mais rápido do que os outros irmãos.

“Um legado da
pandemia será o ensino híbrido, a integração da tecnologia com a
aprendizagem presencial” Mozart Neves, professor da USP (Crédito:Leo
Caldas)

Para João, computador virou sinônimo de incômodo. A tela não é atrativa, os


amiguinhos estão distantes e o professor já não mais acompanha ao vivo o seu
desenvolvimento. “Dos meus três filhos, o João é o que mais está sofrendo,
principalmente porque ele está começando a vida escolar”, diz Paulo Curio,
diretor executivo do aplicativo iFood. Dentro do apartamento, Curio pôde
observar o ensino remoto pela perspectiva de três faixas etárias diferentes e
viu que, com os mais velhos, ela é eficaz. De qualquer forma, a rotina está
tumultuada. E a imediata volta às aulas é descartada. “É muito difícil não ter
essa vontade para que eles voltem, mas gostaria de um horizonte mais claro.
Não tem a menor possibilidade de a escola ser normal até todo mundo estar
vacinado”, diz Curio.

“Um legado da pandemia será o ensino híbrido. Vamos integrar a tecnologia


com a aprendizagem presencial”, diz Mozart Neves, professor catedrático da
USP. O coronavírus está possibilitando um jogo de tentativa e erro para a
construção de um novo modelo escolar. As mudanças feitas no susto, a partir
da pandemia, poderão se tornar um bom caminho para traçar novas metas e
possibilidades de desenvolvimento para os alunos. A tecnologia, antes vista
como adversária de um modelo tradicional, passou a ser a principal aliada de
estudantes e professores. Sendo assim, o ensino presencial e o não presencial
passarão a andar juntos. “O mundo digital faz parte do século XXI. Dizer que
isso não fará parte da educação daqui para a frente é desconsiderar tudo o que
foi feito ao longo da pandemia”, diz Neves. A ideia é transformar o aluno em
tempo integral, para que os recursos presenciais e tecnológicos andem lado a
lado, de forma a melhorar o desempenho. “Só o online não funciona, mas uma
junção dos dois seria uma melhora importante”, diz Rodrigo Portella, estudante
de 15 anos da rede privada que não vê a hora de retomar as atividades.

“Eu só aprendo 40% com o conteúdo tecnológico”. A empresária e mãe do


adolescente, Juliana Portella, acompanha o desespero do filho de perto e, por
isso, acredita que o ano letivo só será recuperado em 2021. “Se as escolas em
São Paulo reabrirem agora serão só três meses de aulas antes das férias, o
que vai impactar no aprendizado”, diz. Mesmo em meio a uma terrível crise
sanitária, está todo mundo descobrindo novas formas interativas e
interessantes de ensinar e aprender à distância. Ainda que o quadro de enorme
desigualdade educacional que existe no Brasil tenda a se agravar e o risco de
uma catástrofe geracional seja real, a experiência da pandemia contribui para
transformar a escola, num movimento sem volta. Silenciosamente, a educação
está sendo reinventada.

Guerra aos livros


RETOMADA Agentes sanitários fazem a desinfecção em pátio de escola
pública em Taguatinga (DF): pandemia pode aumentar o gargalo da
alfabetização (Crédito:Eraldo Peres)

Se já não bastasse o conturbado cenário do ensino brasileiro, o ministro da


Economia Paulo Guedes propôs uma reforma tributária que prevê uma taxação
de 12% em livros, que eram isentos de impostos desde 2004. Detalhe: em um
País em que a média de leitura é de somente dois livros por ano. Ainda assim,
o ministro diz que isso beneficiaria a economia porque os consumidores
pagarão mais impostos. Só que a matemática desse cálculo é clara: livros mais
caros, menos leitores.
https://istoe.com.br/o-risco-de-uma-catastrofe-geracional/

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