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Vol.

9(1) (2021): Latin American Futures | 109

INTERVENTIONS

A ascensão do fascismo no Brasil: Uma breve análise do caso brasileiro sob


a perspectiva de Jason Stanley

Jason Stanley (2018):


Como funciona o fascismo: A política do “nós” e “eles”
São Paulo: L&PM, 208 páginas.

Renato Vicentini
Rede Pública de Ensino do Estado e do Munícipio do Rio de Janeiro

Vinícius Carvalho da Silva


Universidade Federal do Mato Grosso do Sul

A ascensão da extrema direita pela via hierarquia social; vitimização do grupo


democrática em diversas partes do socialmente dominante; criminalização de
mundo, bem como o modo como ela corrói grupos minoritários por meio de apelos à
as democracias por dentro, é o objeto de lei e à ordem; estímulo à ansiedade sexual
estudo do filósofo Jason Stanley (2018) em do conjunto da sociedade; exaltação à vida
Como funciona o fascismo: A política do rural em detrimento dos grandes centros
“nós” e “eles”. urbanos; apologia ao trabalho duro em
detrimento do Estado de bem-estar social.
Neste livro, o autor nos fornece diversos
elementos que caracterizariam o Partindo da hipótese de que o fenômeno
fascismo: nacionalismo exacerbado, analisado por Stanley esteja em curso no
fundamentalismo religioso, racismo, Brasil desde a eleição de Jair Bolsonaro,
xenofobia, machismo, LGBTfobia, aplicaremos seu método ao caso brasileiro.
autoritarismo político, entre outros. Assim, Analisaremos as dez características do
Stanley nos apresenta dez estratégias que fascismo apontadas por Stanley e como
seriam comuns aos governos fascistas elas se aplicam ao Brasil. Caso a hipótese
contemporâneos para atingir os seus se confirme e o Brasil esteja vivendo uma
objetivos de poder: a ideia de retorno a um experiência fascista, o impacto sobre o
passado mítico; uso intenso da propaganda futuro nacional e o da América Latina
para subverter valores democráticos; seria grave, criaria instabilidade política
ataques sistemáticos à intelectualidade; e ameaçaria os ideais democráticos na
destruição da realidade por meio de região.
teorias conspiratórias; apelo a uma rígida
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O passado mítico legítimo, auspicioso e honesto – uma


época na qual devemos nos inspirar.
Segundo Stanley, a gênese da política
fascista reside no passado: “a política Propaganda
fascista invoca um passado puro que
Outra arma fascista para destruir as
foi tragicamente destruído” (Stanley
democracias seria o uso intensivo da
2018: 19). Assim, o fascismo forja no
propaganda para desvirtuar e corromper
imaginário social um passado nacional
princípios liberais. Ou seja, eles utilizariam
grandioso, heroico, patriarcal e puro,
retórica supostamente democrática
que teria sido destruído pelos valores
contra a democracia e contra as minorias.
liberais. Tais valores teriam dado origem:
Deste modo, uma luta contra imigrantes
ao feminismo, que supostamente teria
pode ser apresentada como luta por
desviado as mulheres de suas funções
“estabilidade”; a perseguição a um grupo
maternas; à militância LGBT, que teria
político rival, ou ao Judiciário, pode ganhar
atentado contra a virilidade da nação;
a forma de luta “anticorrupção”; uma
à receptividade aos imigrantes e seus
política de extermínio de negros e pobres
costumes, que degradariam os valores
pode receber a alcunha de “guerra às
locais, maculariam a pureza da sociedade e
drogas”; a defesa de insultos raciais pode
teriam corrompido os valores tradicionais.
ser feita sob o manto “da liberdade de
Tais elementos teriam conduzido a
expressão” etc.
sociedade a um presente decadente.
Desde o dia 15 de abril de 2020, grupos
Este passado idílico seria uma artimanha
fascistas fazem manifestações públicas
fascista para manipular politicamente o
semanalmente em Brasília em favor do
presente. É a promessa de resgate deste
fechamento dos poderes Legislativo e
passado que faz com que o grupo fascista
Judiciário. Bolsonaro participa dessas
transmita seus valores – hierarquia,
manifestações e as defende sob a bandeira
autoritarismo, pureza e luta – ao conjunto
da liberdade de pensamento e expressão.
da sociedade, pois teria sido pela suposta
perda destes valores que a mesma teria Anti-intelectualismo
enveredado para a dita decadência atual.
Outros alvos do fascismo são as
Logo, o revisionismo histórico estaria
universidades, os especialistas e a mídia.
estruturalmente atrelado ao fascismo.
O objetivo seria minar a credibilidade
No caso brasileiro, o passado glorificado é das instituições junto à sociedade,
a Ditadura Militar (1964-1985). O período apresentando professores como
é enaltecido, pois teria salvado o país do “doutrinadores marxistas”, que por meio
comunismo, instaurado a lei, a ordem e do “politicamente correto” silenciariam
promovido o progresso. Bolsonaro nega outras correntes de pensamento. Estudos
que tenha havido uma ditadura de fato. de gênero, de raça, ou do Oriente Médio
Ao invés disso, teria sido um governo passam a ser estigmatizados como
“marxismo cultural” (Stanley 2018: 54).
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Também o ensino utilitário, voltado Assim, o campo fica livre para que se
para o mercado de trabalho, passa a ser disseminem teorias de conspiração com
valorizado em detrimento das áreas de os mais diversos propósitos. Tais teorias
humanidades. jogariam ainda mais descrédito sobre a
imprensa, que supostamente ocultaria
Tais ataques seriam extensíveis ao
verdades da população. Deste modo,
governo, à imprensa e à ciência como um
se generalizariam paranoias, medos,
todo, que são apresentados como redutos
desconfianças mútuas na sociedade.
de esquerdistas. Assim, o fascismo rebaixa
Neste cenário caótico, restaria somente
todos os debates, reduzindo-os ao campo
a palavra do líder fascista como a única
ideológico. O próprio debate político
fonte segura daquilo que é ou não verdade
tem a sua linguagem rebaixada em um
(Stanley 2018: 66 f.).
esforço de reduzir a capacidade geral de
compreensão da realidade. O discurso Pós-verdade, fake news, obscurantismo e
fascista não dialogaria com o intelecto, negacionismos ganham um lugar central
mas com as emoções (raiva, medo) dos na agenda do governo brasileiro, onde,
cidadãos. O objetivo final seria “fortalecer atualmente, os fatos são esgarçados e
o poder [do chefe] e a identidade tribal [da substituídos por narrativas ideológicas
nação]” (Stanley 2018: 48, 65), bem como sem compromisso com a noção de
obliterar a realidade. verdade. Opondo-se a todas as evidências
em contrário, Bolsonaro afirma que não
O governo Bolsonaro também aposta
há desmatamento da Amazônia, que os
claramente na desinformação e no ataque
dados sobre as queimadas são falsos,
aos institutos de pesquisa. Dentre seus
que a OMS mente sobre a pandemia,
seguidores há terraplanistas, revisionistas
que a cloroquina é o melhor tratamento
históricos e negacionistas da pandemia de
para COVID-19, que os governos petistas
COVID-19. A perseguição às universidades
objetivavam “perverter” sexualmente
é uma tônica da atual gestão.
as crianças, a fim de destruir a família
Irrealidade tradicional por meio de um “kit gay” –
inexistente – e de mamadeiras em formato
Após desacreditar jornalistas, professores
de falo distribuídas nas creches públicas.
e especialistas, a política fascista destruiria
a nossa base comum de realidade. Nesta Hierarquia
conjuntura, o chefe fascista poderia
Outra estratégia utilizada pela
mentir descaradamente, pois a verdade
retórica fascista é a naturalização e o
se tornaria uma questão de ponto de
aprofundamento das desigualdades já
vista. Ao dar vazão a opiniões outrora
existentes na sociedade. Em contrapartida,
vistas como chocantes e deploráveis,
todos os discursos que pregam a igualdade
tais políticos passam a ser vistos como
são apresentados como uma subversão
mais autênticos – livres da censura do
da natureza das coisas, servindo de armas
“politicamente correto”.
para que os grupos subalternos se rebelem
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e dominem os grupos tradicionalmente A angústia pela perda do status dominante


dominantes. passa, desse jeito, a ser manipulada
para se converter em vitimização e
Neste sentido, grupos privilegiados são
ressentimento do grupo dominante ante
apresentados como “merecedores” de
o grupo dominado. Esta “vitimização
privilégios, enquanto os grupos dominados
coletiva” reforçaria uma identidade de
seriam os “não merecedores”. Na lógica
grupo baseada em cor de pele, religião
fascista, a igualdade seria um caminho
ou origem étnica, estimulando um
seguro para a degeneração social (Stanley
“nacionalismo tóxico” que se contrapõe a
2018: 94).
um “inimigo”, que pode habitar dentro ou
Nas palavras do próprio Bolsonaro (2017) fora das fronteiras do país. Esta é a política
em 08 de fevereiro de 2017, durante um do “nós” contra “eles” – o cerne da política
comício em Campina Grande, “as minorias fascista (Stanley 2018: 109).
devem se curvar à maioria”, devem se
Para Bolsonaro, patrões seriam vítimas das
adaptar ou “desaparecer”. Bolsonaro
leis trabalhistas; brancos seriam vítimas
defendia a “família tradicional” cristã
de ações afirmativas e fazendeiros, vítimas
brasileira e as “pessoas de bem”. Em sua
de leis ambientais; o homem branco
visão, as minorias são os não cristãos, os
heterossexual é a vítima dos crescentes
indígenas, os negros, LGBTQ+, mulheres,
ataques das minorias. Ele declarava
feministas, esquerdistas e todos os que
seu vitimismo abertamente enquanto
não se enquadram na categoria abstrata
deputado: “Nós somos as vítimas!” (Bonin
das pessoas de bem, fieis ao “cristianismo”
2011). Segundo ele, em um país fundado
ao qual ele pertence e o qual representa
pelo genocídio e escravidão de indígenas
(Bolsonaro 2017).
e negros, a vítima é o homem branco.
O Presidente já declarou, publicamente,
Lei e Ordem
que mulheres devem receber salários
menores que os dos homens, pois A construção do “nós” em oposição a “eles”,
engravidam, sendo por isso menos no seio da sociedade, conduziria a uma
produtivas. rígida política de lei e ordem. Para Stanley
(2018: 112), “a retórica fascista de lei e
Vitimização
ordem é explicitamente destinada a dividir
O fascismo também equipara o avanço os cidadãos em duas classes: aqueles que
da igualdade social à discriminação dos fazem parte da nação escolhida, que são
grupos dominantes. Assim, estimula-se o seguidores das leis por natureza, e aqueles
vitimismo branco, frente ao antirracismo; que não fazem parte da nação escolhida,
o vitimismo masculino, ante o avanço do que são inerentemente sem lei”.
feminismo; o vitimismo hetero, ante as
Por isso, feministas, negros, gays e
conquistas LGBTs, e assim por diante.
imigrantes poderiam ser enquadrados
como criminosos natos, cuja própria
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existência, por si só, poderia ser de liberdade e igualdade se traveste


enquadrada como criminosa. Após incutir de defesa da segurança de mulheres e
este medo na sociedade, o líder fascista crianças, algo entendido por todos como
se apresenta como seu único protetor, legítimo (Stanley 2018: 137).
aquele que pode manter estes grupos
A obsessão fálica e a repressão sexual
afastados, em seu “devido lugar”.
estão entre as mais fortes – e caricatas
No Brasil, Bolsonaro se vê como o – características do fascismo brasileiro.
concretizador da ordem. O “povo quer Durante as eleições, mobilizou-se a
hierarquia, respeito, ordem e progresso” propaganda para consternar o país
(Richter 2019), diz ele, enquanto sinaliza com a suposta depravação sexual de
mais uma vez que as Forças Armadas professores, que se utilizariam de um “kit
podem ser utilizadas para promover a gay” (totalmente fictício) para perverter
“ordem”. Citando diretamente o líder sexualmente crianças e adolescentes. A
fascista Benito Mussolini, diz que prefere homofobia e a repressão sexual são parte
ter um dia como leão ao passar cem permanentes do imaginário bolsonarista.
anos como cordeiro. O leão fascista,
Sodoma e Gomorra
literalmente citado, é um dos modelos
máximos de como o fascismo impõe o A imagem de Sodoma e Gomorra seria
que entende por ordem, ao custo da mais evocada, historicamente, por grupos
cruel violência. fascistas para se referir aos grandes
centros urbanos. Nestas narrativas,
Ansiedade sexual
as cidades são sempre apresentadas
O líder fascista se apresentaria para a como antros de degradação: redutos
nação como figura equivalente a um de imigrantes, negros, homossexuais,
pai. Por isso, toda ameaça à estrutura minorias religiosas, e de uma elite
patriarcal familiar também representaria corrompida, financista e parasitária. Em
uma ameaça ao seu projeto de poder. A contrapartida, o campo seria um reduto
independência econômica das mulheres de virtude e pureza; de lá emanaria a
e a liberdade sexual dos indivíduos serão verdadeira cultura nacional. Na zona rural
sempre apresentados como elementos estariam os verdadeiros trabalhadores,
de pânico para a sociedade, constituindo produtivos e pagadores de impostos. O
verdadeiras ameaças à virilidade da nação. campo representaria a autossuficiência da
nação, já a cidade, o parasitismo.
Nesta narrativa, entra em cena a figura
do estuprador nato, violador da pureza, O ódio fascista ao meio urbano
aquele que polui o sangue da nação. representa o ódio ao cosmopolitismo, ao
Negros, muçulmanos, imigrantes, até progressismo, à tolerância e à diversidade,
mesmo mulheres transexuais – seriam típicos das grandes metrópoles. Já o
todos estupradores em potencial. campo seria exaltado por sua xenofobia,
Destarte, o ataque fascista aos ideais religiosidade e tradicionalismo. Por isso,
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segundo Stanley (2018: 141 f.), zonas estas populações, o que as torna menos
rurais seriam grandes redutos eleitorais acessíveis às redes de fake news e à
da extrema direita, e as grandes cidades propaganda fascista como um todo. Esta
seriam freios ao seu avanço político. singularidade do caso brasileiro torna a
nossa experiência com a extrema direita
Em um primeiro momento, é lícito dizer
diferente daquela observada no norte
que o fenômeno do bolsonarismo no
global.
Brasil contraria as previsões de Stanley,
segundo as quais o fascismo seria mais No entanto, as fortes ligações do
forte entre eleitores das zonas rurais bolsonarismo com ruralistas e
– supostamente mais conservadoras – desmatadores são evidentes: latifundiários,
e perderia força nos grandes centros madeireiros, grandes mineradoras etc.
urbanos, mais cosmopolitas. Bolsonaro constituem uma base sólida de apoio ao
foi um sucesso eleitoral sobretudo nas atual governo. Bolsonaro, apesar de ter
grandes cidades, mesmo nos estados e morado por muitas décadas no Rio de
nas regiões onde perdeu a eleição. Janeiro, se esforça para parecer sertanejo,
alguém comprometido com a pureza de
Contrariando as previsões de Stanley, o
uma terra idílica. Bolsonaro tem amplo
grosso da população rural (sobretudo
apoio do “triplo B”, a bancada da Bíblia,
nas regiões mais pobres do Brasil, Norte
da Bala, e do Boi. Isto é, de parlamentares
e Nordeste) demonstrou menos apoio a
ligados a (1) grupos advindos de diversas
Bolsonaro do que as populações urbanas.
igrejas evangélicas e dos setores mais
Tal fenômeno pôde ser observado
conservadores do catolicismo brasileiro,
mesmo na região Nordeste, onde ele é
que se unem na defesa de pautas
menos popular. Lá, a popularidade de
antiprogressistas; (2) parlamentares e
Bolsonaro é maior nas capitais e regiões
lobistas ligados aos interesses da indústria
metropolitanas quando comparada com o
bélica e de grupos militares e militarizados;
interior rural daqueles estados.
e, enfim, (3) parlamentares e lobistas do
Tal fenômeno merece um estudo agronegócio, dos grandes pecuaristas e
aprofundado, mas, preliminarmente, ruralistas de modo geral.
pode ser atribuído sobretudo a uma
Bolsonaro parece não criticar diretamente
profunda redução da pobreza extrema
as grandes cidades e os espaços urbanos,
nos rincões do Brasil quando o Partido
mas sistematicamente ataca gays,
dos Trabalhadores (PT) governava o país.
lésbicas, feministas e “esquerdistas”, que
Neste período também houve melhora
seriam minorias urbanas distantes dos
significativa na infraestrutura destas
valores do homem “macho” do campo,
regiões: a chegada da energia elétrica,
chefe da família tradicional do “bem”.
criação de cisternas nas regiões de
Enfim, Bolsonaro representa os interesses
seca, entre outros. Outro fator que não
da elite rural brasileira.
pode ser desconsiderado é um menor
uso da internet e das redes sociais por
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“Arbeit Macht Frei” critério meritocrático, culpando os pobres


pela própria pobreza, marginalizando as
Em diversos campos de concentração
periferias e concebendo os guetos como
nazistas, a frase “Arbeit Macht Frei” (o
antros de degradação social (Stanley 2018:
trabalho liberta) era posta na entrada,
148,151).
insinuando que suas vítimas eram
“preguiçosas e parasitárias” (Stanley 2018: Bolsonaro passou a sua vida pública
151). No fascismo, somente os “produtivos” afirmando que as minorias eram
da nação, pagadores de impostos, seriam preguiçosas, tal qual os povos indígenas e
os legítimos “merecedores” do Estado de quilombolas, que, segundo ele, não fariam
bem-estar social. nada para merecer as terras que possuem.
O lema utilizado pelos nazistas, “O trabalho
Daí a defesa do desmanche da assistência
liberta”, foi repetido pela SECOM –
pública e o ódio aos sindicatos – que
Secretaria Especial de Comunicação Social
lutam por direitos e promovem a
– do Governo de Bolsonaro para divulgar
solidariedade de classe, acima da
suas ações em redes sociais (Fellet 2020).
solidariedade étnica, racial ou religiosa.
Esse desmanche, associado à leis mais Entre Stanley e Bolsonaro: Limites e
rígidas, produziria o encarceramento extrapolações
em massa das minorias. O preconceito
Mais que um projeto intelectual e
a elas se somaria ao preconceito aos ex-
acadêmico, o livro de Stanley (2018: 183)
presidiários, produzindo, assim, um tipo
cumpre um propósito político: “tentei
de desemprego direcionado a grupos
(...) explicar a sua estrutura para que ele
específicos, empurrando-os novamente à
[o fascismo] possa ser reconhecido e
criminalidade e reforçando os estereótipos
combatido”. Assim, este artigo constitui
fascistas lançados sobre eles. A política
um esforço de dar continuidade a este
fascista, portanto, não se contentaria em
projeto. Ao aplicarmos as ferramentas
mentir sobre as minorias, mas criaria
analíticas fornecidas por ele ao caso
as condições para que suas mentiras se
brasileiro, concluímos, inequivocamente,
tornassem “verdades”. Essa ideologia
que estamos diante de um governo
darwinista social não toleraria pessoas
fascista em curso no país.
“fracas”, “improdutivas” e “dependentes
A abordagem que Stanley faz ao fascismo
do Estado” (Stanley 2018: 170 ff.).
oferece uma métrica com dez parâmetros
É claro que os campos de concentração
bem definidos a partir dos quais podemos
nazistas representam uma das piores
mensurar em que medida, em quais
coisas na história humana. Mas a
pontos, um governo é fascista. No entanto,
analogia, aqui, é bastante pontual: assim
tais parâmetros devem ser tomados como
como os nazistas glorificavam o trabalho,
gerais, mas não “universais” em sentido
classificando os judeus como “vagabundos”,
forte. Isto é, eles condensam tendências
“improdutivos” e “parasitas”, o fascismo
históricas observadas, mas não “essências”
busca dividir a sociedade a partir de um
imutáveis e necessárias.
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Com relação ao Brasil, outros componentes com acenos esporádicos a nações do


sociológicos e históricos não podem ser Leste Europeu. Da mesma forma, há uma
ignorados. Qualquer análise meticulosa constante oposição e produção de tensões
dos rumos da sociedade brasileira deve contra as nações que representariam o
levar em conta outros ingredientes, como mal, a saber, a Venezuela, Cuba e a China.
o ethos escravagista da classe média e da
Pensemos no slogan “Brasil acima de tudo”
“elite” nacional (Souza 2019) e o racismo
do governo federal. Há a intenção clara de
estrutural que nos marca profundamente
exaltação de uma determinada tradição
(Almeida 2019).
nacionalista. No entanto, há também
O governo Bolsonaro reúne todas as algo novo na ideologia propagada por
características da ideologia fascista Bolsonaro: O internacionalismo mítico.
listadas na obra de Stanley. Mas vai além, Em manifestações de apoio a Bolsonaro,
possuindo traços próprios que o tornam com frequência observamos bandeiras
pitoresco. Destaca-se o uso do humor, da de Israel e Estados Unidos. A ideia de
performance, do exagero, de declarações uma tríade Brasil-Israel-Estados Unidos
que oscilam entre o absurdo e o ridículo (Cordeiro 2018) possui força simbólica
como forma de manter um clima de tensão entre seus seguidores, que enxergam
política que o beneficiaria, preservando Israel como berço da civilização ocidental,
sua base de apoio sempre “excitada”, de onde provêm os valores religiosos
com a sensação de que há uma luta em fundamentais do Ocidente, e os Estados
curso e que é preciso defender seu líder. Unidos, como seu guardião.
Outras peculiaridades são a ligação com
A América Latina à sombra do fascismo?
segmentos do movimento neopentecostal
brasileiro e a postura subserviente em No momento, o Brasil é o epicentro
relação a Donald Trump. do neofascismo na América Latina. A
influência geopolítica do Brasil na região
Nesse ponto, há uma característica
é significativa, um Brasil autoritário pode
do governo Bolsonaro que nos parece
desestabilizar o cenário local, sobretudo
contrária não somente à abordagem de
o sul-americano. O futuro da América
Stanley, mas à percepção comum que
Latina se vê ameaçado pelo populismo
temos sobre o fascismo. Enquanto os
autoritário de extrema direita.
governos fascistas são autenticamente – e
não só retoricamente – ultranacionalistas, No entanto, a América Latina possui um
promovendo o culto da nação como histórico de reincidência e resistência
elemento estruturante da ideologia, aos assaltos dos autoritários, de todas
o governo Bolsonaro até se esforça as bandas do espectro político. A
na construção de tal estética, como América Latina sobrevive, mesmo com
demonstramos anteriormente, mas faz suas Veias Abertas, como diria Eduardo
apelo a uma espécie de aliança internacional Galeano. Pode ser que esse mais novo
de nações que representariam o “bem” – arroubo antidemocrático da extrema
os Estados Unidos, Israel e o próprio Brasil,
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direita não prospere por muito tempo. a Gazeta do Povo, em: <https://www.
Os movimentos populares no Chile, que gazetadopovo.com.br/mundo/qual-e-a-
resultaram em ampla vitória no plebiscito ideia-religiosa-que-une-jair-bolsonaro-
por uma nova Constituição, e os resultados e-donald-trump-em-relacao-a-israel-
eleitorais mais recentes na Argentina e na 1437tglt3ek7512e3m1f2atuf/> (Acesso
Bolívia podem indicar uma mudança de em20/12/2020).
rumo. Todavia, ainda é prematuro emitir
Fellet, João (2020): Mensagem do governo
qualquer sentença nesse sentido. O que
com alusão ao nazismo agride vítimas do
sabemos certamente é o que nos disse
Holocausto, diz rabino, São Paulo: BBC
Gabriel Garcia Márquez (1995): A América
News Brasil, em: <https://www.bbc.com/
Latina existe, e a despeito do momento
portuguese/brasil-52626218> (Acesso em
atual vivido, por mais obscuro que seja,
20/12/2020).
resistirá e reexistirá.
Márquez, Gabriel G. (2011):
A aproximação com os Estados Unidos América Latin existe, em: https://
fez sentido enquanto Donald Trump elpais.com/diario/2010/10/23/
esteve no poder. Mesmo após a vitória babelia/1287792762_850215.html
de Joe Biden, Bolsonaro reforçou as (Acesso em 15/01/2021).
declarações de Trump de que as eleições
Richter, André (2019): “Povo quer
norteamericanas teriam sido fraudadas e
hierarquia, respeito, ordem e progresso”,
foi um dos últimos reconhecer a vitória do
diz Bolsonaro. Presidente defendeu ainda
democráta.
atuação das Forças Armadas, Agência
Brasil – Política, em: <https://agenciabrasil.
Bibliografia
ebc.com.br/politica/noticia/2019-01/
Almeida, Silvio (2019): Racismo Estrutural, povo-quer-hierarquia-respeito-ordem-
São Paulo: Pólen. e-progresso-diz-bolsonaro> (Acesso em
Bolsonaro, Jair M. (2017): As Minorias Tem 20/12/2020).
que se Curvar às Maiorias, em: <https:// Souza, Jessé (2019): A Elite do Atraso, Rio de
www.youtube.com/watch?v=6cIkWMKeDh Janeiro: Sextante/Estação Brasil.
s&feature=youtu.be> (20/12/2020).
Stanley, Jason (2018): Como funciona o
Bonin, Robson (2011): Na Câmara, fascismo: A política do “nós” e “eles”, São
Bolsonaro se diz vítima de preconceito por Paulo: L&PM.
ser heterossexual. G1 Política, em: <http://
Struck, Jean-Philip (2020). Bolsonaro
g1.globo.com/politica/noticia/2011/04/
finalmente reconhece Joe Biden como
na-camara-bolsonaro-se-diz-vitima-de-
presidente eleito dos EUA. DW. Notícias, em:
preconceito-por-ser-heterossexual.html>
<https://www.dw.com/pt-br/bolsonaro-
(Acesso em 20/12/2020).
finalmente-reconhece-joe-biden-como-
Cordeiro, Thiago (2018): Qual é a ideia presidente-eleito-dos-eua/a-55953296>.
religiosa que une Jair Bolsonaro e Donald (Acesso em 20/12/2020)
Trump em relação a Israel. Especial para

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