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Rosino Gibellini

A TE°LOQIA
D ° SÉc ULO

Tradução:
João Paixão Nctfo

Deus na filosofia do século X X


R. Gibellini, G. Penzo
A teologia do século X X
R. Gibellini
Do original italiano:
L a teologia del X X secolo
®1992, 19963, by Editrice Queriniana
via Piamarta, 6 - 25187 Brescia
ISBN: 88-399-0369-0

Edição
M arcos M arcion ilo
 memória
Preparação de m inha mãe, Clementina (1905-1991),
S ilv a n a C obucci-Leite
que atravessou o século X X
Revisão
com m u ita coragem
R en ato R ocha C arlos
M au rício B. L eal
Aos membros da
Diagratnação Associação Ecumênica dos Teólogos/Teólogas do Terceiro M undo
T elm a dos S an tos C ustódio
(E A T W O T /A S E T T )
em espírito de comunhão e de solidariedade

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ISBN: 85-15-01703-2

© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 1998


T e o l o g ia d a h i s t ó r i a

evento particular só é obtida no horizonte do futuro da realidade em sua IX


totalidade, quer dizer, do futuro derradeiro. A razão histórica é orientada,
assim, para o futuro, como aliás o é a fé, por causa de sua dimensão esca-
tológica. Razão e fé, apesar de sua distinção, mostram que estão em conti­
nuidade, e não em contraste. A continuidade está no fato de que razão e fé Teolosia da esperança
estão orientadas para o futuro, e a distinção está no fato de que a fé está
orientada para o futuro escatológico, prolepticamente surgido na história de
Jesus. A fé pode assim “reconhecer como verdadeira” a razão, porque a fé
leva à expressão do inexprimível pela razão. A relação entre razão e fé es­
pera, pois, ser reformulada; é contra a razão moderna, que é razão histórica
aberta à busca de significados, mostrá-la ainda como relação de racionali­ Um dos traços característicos da teologia do século XX é a redescober-
dade (razão) com irracionalidade (fé). Para Pannenberg, é a fé que pode ta do caráter escatológico do cristianismo. A escatologia estava reduzida a
ajudar a razão a compreender-se em toda a transparência: “E justamente uma “doutrina dos novíssimos”, como doutrina das realidades últimas, que
enquanto orientação para o futuro derradeiro, escatológico, que a fé pode devia ser realizada setorialmente e na maioria das vezes como apêndice
confirmar-se como critério da racionalidade da razão”50. Também a projetada final depois da abordagem das outras verdades cristãs.
Teologia da razão, entendida como um enfoque moderno da relação entre fé
e razão histórica, se torna tarefa decorrente de uma programática assunção,
por parte da teologia cristã, do desafio lançado pelo iluminismo. Nesse sen­ 1. A redescoberta da escatologia
tido, o empreendimento de Wolfhart Pannenberg, com sua constante referên­
cia à história, apresenta-se como uma ampla e sistemática tentativa — mo­ A redescoberta do caráter escatológico da mensagem cristã começara
derna, pós-iluminista — de refundamentação (Neubegriindung) da teologia no final do século XIX e início do século XX, primeiro por obra de Johannes
cristã, em vista de uma reconciliação entre fé cristã e razão crítica. Weiss e depois de Albert Schweitzer, que, ao final do extenuante debate a
respeito da vida de Jesus — conhecido como “pesquisa sobre a vida de
Jesus” (Leben-Jesu-Forschung) — haviam substituído o “Jesus ético” da teo­
logia liberal, portador de uma mensagem de amor, por um “Jesus escatoló­
gico”, que anunciava um Reino futuro e supramundano. Segundo Schweitzer,
que pensa esta posição de modo coerente e conseqüente (escatologia con­
seqüente), o Jesus de Marcos e de Mateus (as únicas fontes tidas como
historicamente aceitáveis em termos de crítica histórica) é um Jesus esca­
tológico, que viveu na expectativa do fim do mundo e do advento sobrena­
tural do Reino de Deus. O Jesus histórico é um Jesus escatológico: não é
convincente como o Jesus modernizado da teologia liberal, pois tem em si
algo de estranho, condicionado como é pela visão apocalíptica do judaísmo
tardio. JE entretanto tal estranheza, quer dizer, o fato de que Jesus nos fale
a partir de um mundo conceptual diferente do nosso, torna sua pregação
mais fascinante e eficaz. Essa pregação nos arranca de nosso mundo, jus­
tamente por sua estranheza, prende-nos e nos leva a ser diferentes do
mundo, para tornar-nos partícipes de sua paz.íA temperatura apocalíptica
do Sermão da M ontanha, perpassado como é pelo cheiro de queimado da
50. W. Pannenberg, “Fede e ragione”, in Questioni fondam entali di teologia sistem atica
p. 281. iminente catástrofe cósmica, é mais apta que o empolado dogma da teologia

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tradicional ou a domesticada teologia liberal para impulsionar-nos para a bilidade de vir a ser o momento escatológico. Compete a ti despertá-la!”3
ética do amor ativo. São significativas as palavras com que Schweitzer ]Aqui o éschaton é a possibilidade, oferecida pela fé, de transformar cada
termina sua História da pesquisa sobre a vida de Jesus (1906, 2. ed. 1913): momento da existência em momento escatológico.i Sobretudo na posição
“E como um anônimo desconhecido que ele vem a nós, do mesmo modo radical de Bultmann, a escatologia absorve a história e a esperança sofre
como então, à beira do lago, se aproximou daqueles homens que não sabiam uma contração privatizante como esperança da alma isolada. Como observa
quem era ele. E pronuncia a mesma palavra: segue-me!, colocando-nos diante Ernst Bloch em Ateísmo no cristianismo (1968), no “belo salão religioso” de
das tarefas que nossa época precisa realizar. E ele quem ordena. E àqueles Bultmann a escatologia é desativada, isto é, “removida do espaço explosivo
que lhe obedecem, por mais sábios ou ignorantes que sejam, se manifestará histórico-cósmico e do Cristo que aí se encontra como uma carga de dina­
em tudo aquilo que paz, ação, luta e sofrimento tiverem podido experimen­ mite, para ser introduzida na alma isolada”4.
tar em comum com ele, e eles aprenderão, como um indizível segredo, que Uma autêntica recuperação da escatologia bíblica significava recolocá-la
ele existe...”1 no “espaço explosivo” da história. As perspectivas de Cullmann sobre a
Se a mensagem do Jesus histórico era uma mensagem escatológica, “história da salvação”, e sobretudo as de Pannenberg sobre a “revelação como
então a mensagem do cristianismo sofrera um processo de desescatologização. história” e sobre a ressurreição como “prolepse” iam nessa direção. Mas seria
A escatologia conseqüente de Schweitzer continha uma preciosa indicação, o teólogo evangélico Jürgen Moltmann que haveria de apresentar um articu­
que seria aproveitada pela teologia dialética: recuperar para a mensagem lado projeto de teologia escatológica entendida como escatologia histórica,
cristã sua dimensão escatológica. Mas o pêndulo acabou por oscilar para o que ele desenvolverá como doutrina da esperança e da práxis da esperança.
pólo oposto, uma vez que a recuperação da escatologia na teologia evangé­
lica posterior acabou assumindo a figura da “escatologia do presente”
(presentische Eschatologie), ou seja, de uma escatologia expressa na figura 2 . Teologia escatológica como teologia da esperança
do presente: da escatologia conseqüente à escatologia do presente.
Essa posição é expressamente teorizada na teologia dialética do pri­ Em 1964, o teólogo evangélico Jürgen Moltmann (1926-) (então pro­
meiro Barth, e, em forma ainda mais rigorosa, na teologia existencial de fessor de teologia sistemática em Bonn; em 1967 ele passará a Tübingen)
Bultmann e de sua escola. Em A epístola aos Romanos (2. ed. 1922), como publica uma Teologia âa esperança, que trazia como subtítulo Pesquisas sobre
comentário a Rm 13,12 (“A noite avançou, e o dia se aproxima”), Barth os fundamentos e sobre as implicações de uma escatologia cristã. O volume
escreve: “Incomparável, perante todos os instantes, é o instante eterno, “caía” (segundo a expressão de W.-D. Marsch) em uma situação que, de
justamente por ser o significado transcendental de todos os instantes”; acordo com a perspicaz análise que prontamente fez o teólogo holandês J.
“Todo instante traz em si o segredo da revelação, e cada um deles pode M. Jong, caracterizava-se pela contraposição dos dois campos teológicos —
tornar-se um instante qualificado’'’2. Para Bultmann, na fé acontece para
o barthiano e o bultmanniano —, que então haviam esgotado seu poder
mim o fim do velho mundo e me é oferecida aqui e agora a possibilidade
criador: “A situação poderia ser ilustrada desta forma: há uma edição mi-
ôntica da nova existência, da existência escatológica. Bultmann concluía
meografada de uma correspondência entre Barth e Bultmann5 que registra
suas lições sobre História e escatologia (1957) com estas palavras: “Ao ho­
uma tentativa honesta, mas claramente desastrosa, de explicação mútua.
mem que se lamenta: ‘Não consigo ver um significado na história, e portan­
Na véspera de Natal, Barth escrevia sua última carta. Tristeza e ironia se
to minha vida, entrelaçada com ela, também é destituída de significado”,
juntam ao sentimento da amizade e ao vínculo da fé. Ele compara Bultmann
respondemos: não fiques olhando ao redor de ti, para a história universal,
e a si mesmo a uma baleia e a um elefante, que numa tranqüila praia do
mas olha para tua história pessoal. O sentido da história sempre está con­
Pacífico olham um para o outro com um espanto imenso; a primeira esgui­
tido em teu presente, e tu não podes vê-lo como mero espectador, mas
somente em tuas decisões responsáveis. Em cada momento dorme a possi- 3. R. Bultmann, Storía ed escatologia (1957), Milão, Bompiani, 1962, p. 176.
4. E. Bloch, Ateism o nel cristianesimo (1968), Milão, Feltrinelli, 1971, pp. 76-79.
1. A. Schweitzer, Geschichte der Leben]esu-Forschung, Hamburg, Siebenstern-Taschenbuch 5. Entrem entes a correspondência foi publicada: cf. Karl Barth — R udolf Bultmann
Verlag,1972, p. 630. Briefwechsel (1922-1966), org. B. Jaspert, Zürich, Theologischer Verlag, 1971. A carta citada é de
2. K. Barth, Lepistola ai Romani (2. ed. 1922), Milão, Feltrinelli, 1962, pp. 479-482. 24-12-1952, pp. 195-201.

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cha no ar um poderoso jato d’água, enquanto o outro barre com sua trom­ mado pertence à esperança, a fé se expande em esperança e é somente por
ba. Ouvem um ao outro e se observam, mas não se entendem; falam línguas meio da esperança que ela atinge a seu horizonte que tudo abarca.)
diferentes”. 2. C r is t o l o g ia e s c a t o l ó g ic a . Para traçar os elementos de uma teo­

“O que pensar de tudo isso? Vamos refletir: esses homens eram coe­ logia da esperança cristã, Moltmann parte do Antigo Testamento, percor­
tâneos. Encontravam-se em uma mesma situação de fé. Haviam estudado rendo um caminho histórico que passa pela experiência veterotestamentária,
nas mesmas universidades, com os mesmos professores. Falavam a mesma que é experiência de promessas, de expectativas e esperanças e, com os
língua materna, e um estudara a obra do outro. A luz de tudo isso, não profetas, de esperança escatológica. (A. religião de Israel não é religião de
podemos aceitar a imagem, ao mesmo tempo cômica e angustiante, da ba­ epifania, e sim religião da .promessa. Os fatos, então, não manifestam a
leia e do elefante. Pensando bem, isso é penoso e humilhante”6. Teologia da presença do absoluto, como nas religiões da epifania, mas são percebidos
esperança logo revelava sua capacidade de abalar as posições então conso­ como a frente do tempo que avança diretamente para a meta da promessa.
lidadas da teologia evangélica, e, sob este aspecto, sua ação era semelhante A revelação tem caráter promissório, e isso justifica que as revelações de
à exercida por Revelação como história (1961) do círculo de Heidelberg. A D eus. sejam essencialmente promessas, que abrem novos horizontes histó­
obra enunciava o princípio teológico da primazia da esperança e traçava as ricos e escatológicos.’
linhas de uma cristologia escatológica e de uma eclesiologia messiânica. Se a história veterotestamentária é marcada pela experiência da pre­
1. P r i m a z i a d a e s p e r a n ç a . — O princípio teológico da primazia da sença de Deus, pergunta-se: quando uma promessa se torna escatológica?
esperança é formulado desta forma: “[...] na vida cristã, a prioridade per­ Moltmann vê na mensagem dos profetas o ponto em que a promessa vete-
tence à fé, mas o primado, à esperança”7. Quer dizer: a esperança é espe­ roíe&tamentária assume a dimensão escatológica, na medida em que assume
rança da fé e não o contrário; e, portanto, estruturalmente, primeiro vem uma universalização e uma intensificação, assim formuladas: “A universa­
a fé e depois a esperança, mas a fé pode e deve expandir-se em esperança. lização da promessa atinge seu éscathon na promessa do senhorio de Javé
A esperança — com acento calviniano (como Barth, Moltmann pertence à sobre todos os povos. A intensificação da promessa encaminha-se para a
Igreja Reformada) — é o “companheiro inseparável” da fé e dá à fé o ho­ realidade escatológica mediante a negação da m orte”9.lEscatológico significa
rizonte oniabrangente do futuro de Cristo. aqui um futuro universal e radical; universal: não o futuro histórico espe­
Não é fácil expressar conceptualmente a..distinção entre prioridade e cífico de um povo, e sim um futuro que se estende a todos os povos; radical:
primado. Prius e primado são termos que Ernst Bloch já usara: em Direito um futuro não apenas em termos de vitória sobre a fome e a pobreza, sobre
natural e dignidade humana, o filósofo via como tarefa do presente o esta­ a humilhação e as ofensas, sobre as guerras e sobre o politeísmo, e sim um
belecimento de uma relação recíproca entre socialismo e democracia “se­ futuro que se estende — como um non plus ultra, como um novum ultimum
gundo um prius econômico e um primado humanista”8; é o mesmo que — para além do que se considera o extremo limite da existência: um futu-
dizer que a necessária reestruturação da sociedade deve partir do econômi­ ro para além da morte. “Escatológico”, pois, não é simplesmente um Tu tu ro
co para expandir-se no humano.lA fórmula moltmanniana é, pois, formal­ intra-histórico ou um “futuro absoluto” contraposto à história, e sim um
mente blochiana e materialmente calvinista. Trata-se de uma implicação futuro histórico esteildida.a.lodos. Qs.poYOS e intensificado e radicalizado
dialética toda especial. A_féiniplica_a esperança: sem esperança, com efeito, até os confins mais remotos da realidade. '
_aje^.enfraquece. Já a fé em Cristo, sem esperança, produziria um conheci­ Esta leitura da Bíblia como livro das promessas de Deus leva a con­
mento de Cristo efêmero e infrutífero. Mas a esperança, por sua vez, im­ cluir que o Evangelho não cumpre as promessas, mas as ratifica, apontando
plica a fé; sem fé, a esperança efetivamente se tornaria utopia, perdendo para o futuro da salvação escatológica: “A ‘novidade’ do Evangelho não é,
assim sua dimensão teológica (como acontece em Bloch). E, nessa relação pois, ‘totalm jnte nova’”10. Também o Evangelho, tem caráter promissório:
dialética, a prioridade pertence à fé: a esperança é esperança da fé; o pri­ ele: não é cumprimento de promessas, é sim ratificação de promessas e ele
mesmo promessa aberta acerca do futuro de Cri&to. A escatologia cristã
6. J. M. Jong, in W.-D. Masch (org.), D ibattito sulla Teologia delia speranza (1967), pp.
51-52.
9. J. Moltmann, Teologia delia speranza, pp. 133-134.
7. J. Moltmann, Teologia delia speranza (1964), p. 14.
10. Id , ibid., p. 156.
8. E. Bloch, Naturrecht und menschliche Würde, Frankfurt a. M Suhrkamp, 1961, p. 13.

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— nascida da experiência pascal — relembra e retoma as promessas A Igreja e o cristianismo parecem para Moltmann socialmente m ar­
veterotestamentárias, e contudo se diferencia delas e as ultrapassa, na medida ginalizados, enquanto fato religioso, na sociedade moderna. O cristianismo
em que fala de Cristo e de seu futuro: “ [...] a escatologia cristã é, em seu perdeu definitivamente a função precípua de religião da sociedade, de cultus
núcleo essencial, cristologia em perspectiva escatológica”11. A ressurreição publicus, que exercera desde os tempos de Constantino até mais da metade
de Cristo é ratificação (bebáiosis) das promessas precedentes, mas ela mes­ do século passado (aliás, na doutrina oficial da Igreja Católica, até o Con­
cílio Vaticano II, observa Moltmann). Mas, se Igreja e cristianismo são
ma é promessa universalizada e radicalizada em perspectiva escatológica:
expulsos do centro integrador da sociedade moderna e não são mais reco­
promissio inquieta que não encontra repouso a não ser na ressurreição dos
nhecidos como coroa da sociedade, contudo a sociedade ainda lhes pede que
mortos e na totalidade do novo ser. À pergunta essencial de Kant: “Que
exerçam funções e tarefas sociais de alívio — portanto, secundárias, e mar­
posso esperar?”12 responde o fato histórico da ressurreição de Cristo, que
ginais — que podem ser descritas sumariamente como cultus privatus. E o
revela as intenções de Deus a respeito do futuro da humanidade e descortina
caso, por exemplo, da função de consolar diante da angústia existencial, de
yxm futuro de vida e de ressurreição para a humanidade. Cristologia em
dar às pessoas, no anonimato da sociedade secular, o sentido de pertença
perspectiva escatológica significa: na ressurreição de Cristo são lançadas as
e o calor da fraternidade, de dar certezas no agnosticismo geral. São funções
foases do futuro da humanidade.
diferentes, que no entanto permanecem “sob o signo da marginalização
Pode-se perceber, aqui, a diferença entre a teologia da história e as fi­ social geral do cristianismo”16 na sociedade pluralista e secular. Não se
losofias da história. As filosofias da história teorizam, no máximo, um trata de papéis da Igreja derivados do Novo Testamento, e sim de papéis
quiliasmo da história, na medida em que situam o fim da história no inte­ que a sociedade pede à Igreja em nome de sua estabilização institucional.
rior da história; a teologia da história, ao contrário, orienta a história para Ora, na análise de Moltmann, os tempos “constantinianos”, em que o cris­
um futurum como novum, e demonstra ter um conceito histórico da histó­ tianismo funcionava como cultus publicus e coiçp finis principalis da socie­
ria. A escatologia historiciza a história, enquanto lança nela aquela luz dade, já passaram, e contudo o cristianismo não pode ser reduzido a fun­
messiânica de que fala o texto final de M inima moralia de Th. W. Adorno: ções supletivas e de alívio representáveis como_cultus privatus. A c o m u n i­
“A filosofia, que só poderia encontrar justificativa diante do desespero, é a dade dos cristãos não existe para si, não existe em função de uma “ecle-
tentativa de considerar todas as coisas tal como elas se apresentariam do sialização” do mundo, mas tampouco existe em função da estabilização da
ponto de vista da redenção. O conhecimento não tem outra luz senão a que sociedade; ela vive de uma promessa, que descortina um horizonte de es­
emana da redenção sobre o mundo: tudo o mais se exaure na reconstrução perança para toda a humanidade; ela, tem, pois, uma missão pública|Embora
a posteriori e faz parte da técnica. Trata-se de estabelecer perspectivas nas não seja a salvação do mundo, “está a serviço da adveniente salvação .do í
quais o mundo se aniquile, se aliene, revele suas fraturas e fissuras, tal mundo e é como a flecha lançada no mundo para indicar o futuro”17.í
como ele aparecerá um dia, deformado e defeituoso, à luz messiânica. Atin­ Num ensaio de 1961 — que antecipa a perspectiva eclesiológica de
gir essas perspectivas sem arbítrios e sem violência, com o mero contato Teologia âa esperança (1964) —, Moltmann expressara a missão.m bliea da
dos objetos, esta, e somente esta, é a tarefa do pensamento”13. comunidade cristã na sociedade moderna, utilizando uma singular imagem
/ 3. Eclesiologia messiânica. — Qual é, então, a tarefa da comunidade hegeliana. Sabe-se que, no prefácio às Linhas funâamentais âe filosofia âo
I cristã? A promessa gera a missão: “A pro-missio do Reino é o fundamento da áireito, Hegel qualifica a razão como “rosa na cruz do presente”18. Lasson
' missio do amor pelo mundo”14; e: “A missão é a esperança da fé em ação”15. interpretou este símbolo hegeliano — que está relacionado com a seita
Rosa-cruz e com o brasão de Lutero — no sentido de que, na unificação
11. Id., ibid., p. 197. (rosa), a razão recompõe a cisão (cruz) da realidade presente. Lõwith con­
12. I. Kant, Critica della ragion pura, vol. 2, Bari, Laterza, 1959, p. 628 (ed. br.: Crítica da fere ao símbolo hegeliano um sentido teológico, uma vez que a razão não
razão pura, São Paulo, Ediouro, s.d.). é rosa na cruz do presente porque toda cisão (cruz), por sua própria natu-
13. Th. W. Adorno, M inim a moralia. M editazioni della vita offesa, Turim, Einaudi, 1979,
p. 304 (ed. br.: M inim a moralia, São Paulo, Ática, s.d.).
14. J. Moltmann, Teologia della speranza, p. 229. 16. Id , Teologia delia speranza, p. 320.
17. Id , ib id , p. 337.
15. Id , “Das Ziel der M ission”, in Evangesliche Missions-Zeitschrift, 1/1965, pp. 1-14; aqui:
p. 1. 18. G. W. F. Hegel, Lineamenti di filosofia del diritto, Bari, Laterza, 1954, p. 17.

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reza, tende para a unificação (rosa), mas porque a dor da cisão e a conci­ configuram-se como “escatologia do presente” ou “escatologia na figura do
liação se verificaram originariamente no sofrimento de Deus na cruz19. presente”: o éschaton é o significado transcendental de todos os instantes
jPara Moltmann — por analogia a esta imagem hegeliana —, a Igreja é a (Barth); a decisão-de-fé transforma o instante perecível do presente em
rosa na cruz do presente, porque, como comunidade da esperança, assume momento escatológico (Bultmann). Cullmann sustenta a tensão entre um
sobre si a cruz das tensões e das contradições do presente, levando-as ao “já ” e um “ainda não”, e neste sentido pode afirmar: “A escatologia não é
encontro da transformação prometida e esperada, dando destarte à socieda­ eliminada, mas é destronada tanto do ponto de vista da cronologia como do
de o poder do espírito da esperança, sem o qual se desencadearia a “fúria conteúdo”, o que significa que a linha do. tempasalvífieo sobe em direção ao
do desaparecimento”) (Hegel): “Para a antiga concepção religiosa, a Igreja faturo da plenitude final, mas tem seu centro decisivo nos acontecimentos do
podia ser a coroa da sociedade, centro saneador, encarnação do divino e passado. Daniélou interpreta a posição de Cullmann como “escatologia ante­
elevação do humano.[Ainda hoje tais idéias nos são familiares. A autêntica cipada” e qualifica, ao invés, a posição católica comp “escatologia iniciada”,
cristandade, porém, se encontra, com seu amor serviçal, no meio da cruz da uma vez que enfatiza mais o “já ” do tempo da Igreja^A posição de Moltmann
.sociedade e justamente nisto éjjue-ela se torna a esperança para a socieda­ é decisivamente formulada como “escatologia do futuro”, na medida em que
de, esperança de que é responsável o presente” .jf interpreta o evento de Cristo não como realização, mas como ratificação da
• O tema da missão da Igreja (Moltmann fala freqüentemente, a este promessa, que se abre adiante para o futuro de Cristo, quer dizer, para um
respeito, de “cristandade” como comunidade dos cristãos, para ressaltar futuro universal e radical de ressurreição e de vida. /
que a missão é tarefa de todos os cristãos, e não só dos que detêm um cargo No debate sobre a teologia da esperança — realizado principalmente
de guia na Igreja) será retomado por Moltmann com maior amplitude e na Europa de língua alemã em 1965-1967 — atribuiu-se a Moltmann um
concretude na obra menor A experiência esperança (1974) e sobretudo em desequilíbrio em relação ao futuro, que leva a subestimar — como se expri­
A Igreja na força do Espírito (1975) — que juntam ente com a Teologia da me G. Sauter21, autor de Futuro e promessa (1965) — a dimensão de cum-
esperança (1964) e com O Deus crucificado (1972) constitui uma espécie de primçnto acontecido em Cristo”: a esperânça cristã, ao contrário, se move
trilogia: a trilogia da esperança.
entre um “futurismo apocalíptico” que exclui a dimensão do presente, e
uma “transfiguração do presente” que exclui ou restringe a dimensão
promissiva. Em resposta, Moltmann ulteriormente definiu melhor sua po­
3. Teologia da-esperança -e filosofia da esperança sição introduzindo uma distinção no conceito de “futuro”.
Futuro, no sentido de futurum , é o que vem a ser a partir da physis —
\ A obra de Moltmann não é um tratado específico sobre a esperança
matéria, cujo seio eternamente fecundo e gerador pode ser projetado, no
como virtude teologal, quer dizer, não é uma teologia do genitivo, em que o
mito, como mater, enquanto perenemente gera seus filhos, mas também
genitivo (no caso: da esperança) exprime o objeto bem delimitado da reflexão
como moloch, enquanto perenemente os devora. Pode-se prever tal futuro
/ teológica, mas é um ensaio de teologia escatológica, em que os temas centrais
utilizando o método da extrapolação das tendências intrínsecas do presente,
I do cristianismo são revisitados na perspectiva da promessa, esperança e missão, i
que é o método da futurologia científica, mas também o da filosofia da
■A Bíblia é o livro da revelação, na medida em que é o livro da promessa
esperança. No entanto, futuro também pode indicar parusía, adventus; nesse
divina; a promessa alimenta a esperança; e a esperança impulsicma.a missão.
caso, significa aquilo que vem, quer dizer, o que ad-vém, futuro como ad­
O próprio Moltmann apresenta sua posição como “escatologia do futuro”!
vir (= sobrevir), Zukunft como Ankunft. Este futuro é conhecido por an­
(futurische Eschatologie). A posição de Barth e sobretudo a de Bultmann
tecipação, quando algo de novo lhe anuncia a vinda. j
19. Sobre o significado e sobre as interpretações desta imagem hegeliana, cf. K. Lõwith, Da ÍNa práxis do agir histórico, os dois modos de verificação do futuro ^
Hegel a Nietzsche, Turim, Einaudi, 1949, pp. 36-58, espec. pp. 39-40. se integram entre si. Esta integração pode ser aplicada também no campo
20. J. Moltmann, “La rosa nella croce dei presente” (1961), in Prospettive delia teologia da escatologia cristã. O objetivo de Teologia da esperança era abrir ao
(1968), p. 272. O volume recolhe os artigos escritos entre 1960 e 1968, e abarca a fase preparatória
da Teologia da esperança e a fase imediatamente posterior a ela. A obra, pois, deve ser considerada
como gravitando em torno da Teologia da esperança como documento do amadurecimento, na fase 21. G. Sauter, “Escatologia applicata”, in W.-D. Marsch (org.), D ibattito sulla Teologia delia
preparatória, e do desenvolvimento, na fase posterior, dos temas de Teologia da esperança. speranza (1967), pp. 144-166.

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presente o futuro da justiça, da vida, do Reino de Deus e da liberdade do Nem muito menos concorrer com ele. Pensei antes numa ação paralela à
homem, na esperança, que encontra garantia e fundamento na ressurrei­ filosofia da esperança na linha das tradições teológicas e cristãs”23. '
ção, já acontecida, de Cristo: do presente de Cristo se extrapolava o futuro Alguns críticos forçaram o confronto entre teologia da esperança e filo­
do Reino de Deus em termos de escatologia do futuro, como corretivo da sofia da esperança, particularmente Chr. Hinz, que o expôs em termos de
escatologia do presente./Pediu-se a M oltmann que desse consistência ao contraposição, apoiando-se numa brilhante citação das Teses de filosofia da
presente de Cristo e, em resposta, ele uniu a dimensão do futuro com a história de Walter Benjamin: “Diz-se que havia um autômato construído es­
do advento; antes, pôs a dimensão do advento como fundamento da di­ pecialmente para responder a cada movimento de um jogador de xadrez com
mensão do futuro, que em Teologia da esperança estava em primeiro pla­ outro movimento que lhe garantia a vitória. Diante do tabuleiro de xadrez,
no: |uma vez que o futuro de Deus ad-vém no presente do evento-Cristo, colocado numa grande mesa, ficava sentado um fantoche vestido de turco,
então, a partir do presente do evento-Cristo, pode de-vir o futuro de Deus; com um cachimbo na boca. Um jogo de espelhos dava a ilusão de que a mesa
se o evento-Cristo antecipa in re o futuro do Reino de Deus, então é era transparente de todos os lados. Na verdade, um anão corcunda, que era
possível, a partir deste in spe, extrapolar o futuro do Reino de Deus. “Se um brilhante enxadrista, ficava agachado e, por meio de fios, guiava a mão do
compreendemos o futuro como futuro-real, então devemos entender o fantoche. Pode-se imaginar algo semelhante a este aparelho na filosofia. Quem
presente como advento-real. E aí reside, a meu ver, a possibilidade de deve vencer é sempre o fantoche chamado ‘materialismo histórico’. Ele pode
reverter a tendência da Teologia da esperança, que, na esperança, abriu ao sobrepor-se a quem quer que seja se toma a seu serviço a teologia, que hoje,
presente o horizonte do futuro, e expor, no sentido oposto ao do futuro como se sabe, é pequena e feia, e deve passar despercebida”24. Eis o comen­
de Deus, seu advento na história e na ação de Cristo para o presente, tário de Chr. Hinz: “Pode-se entender a Teologia da esperança projetada por
partindo assim do futuro para chegar ao advento, do futuro que ainda não Moltmann como um legítimo protesto da teologia evangélica, cansada de ser
aconteceu ao futuro que já aconteceu, da esperança à fé, de uma teologia tratada como um anão feioso, jogada sob a mesa, usada e ‘deixada em heran­
da ressurreição a uma teologia da cruz e, portanto, dq futuro de redenção ça’”. É o anão que se apresenta, deixa-se ver, quer sentar-se à mesa para jogar
ao presente de reconciliação”22. a partida ele mesmo: “O evangelho de Cristo deve vencer!”25 Mas o teólogo
Teologia da esperança — como admite seu autor — é um tecido produ­ alemão — como se vê pelo texto autobiográfico citado — pensava mais numa
zido por diferentes fios: a renovação da teologia bíblica realizada por Gerhard ação paralela: como Bloch tinha em mira uma renovação da tradição marxista
von Rad para o Antigo Testamento e por Ernst Kásemann para o Novo do ponto de vista de humanismo real (e por isso acabará como exilado na
Testamento; a teologia holandesa do apostolado, de autoria de Arnold van Alemanha ocidental, em Tübingen), assim o teólogo apostava numa renova­
Ruler, que utilizava em teologia a categoria de Reino de Deus; e a inspira­ ção da teologia cristã e da práxis da comunidade cristã, aplicando, numa
ção recebida da obra filosófica de Ernst Bloch, especialmente de O princípio perspectiva escatológica, a categoria de futuro, que Bloch propunha como
esperança (1949-1959). Mais tarde, Moltmann descreveu seu encontro com a categoria filosófica central. A filosofia da esperança foi, ao mesmo tempo, (
filosofia da esperança desta forma: “Em seguida dirigi minha atenção para fonte de inspiração para a renovação escatológica da teologia cristã e partner /
Bloch. Nessa época, ele ainda lecionava em Leipzig como filósofo marxista. privilegiada de diálogo e de confronto nos anos 60, como demonstram, além \
Lembro-me muito bem de que passei umas férias inteiras no Ticino em da obra de Moltmann, também a de Pannenberg e de Metz.
companhia de O princípio esperança, indiferente à beleza das montanhas A filosofia da esperança de Bloch articula-se em dois princípios: |a)
suíças. Minha primeira impressão foi a seguinte: ‘Mas como pôde um tema uma ontologia universal do não-ser-ainda, que abrange natureza e história;
como este escapar à fé cristã, quando na realidade devia ser seu tema predi­ e b) uma escatologia não menos universal da superação da alienação huma­
leto? Onde foi parar no cristianismo atual o espírito cristão primitivo da na, numa pátria da identidade, e da superação do sofrimento humano cau­
sado pela injustiça, numa pátria da solidariedade} Certa vez um amigo lhe
esperança? Foi então que comecei meu primeiro trabalho a respeito da Teo­
logia da esperança [...]. Não tive a pretensão de ser o herdeiro de Ernst Bloch.
23. Id., “Sguardo retrospettivo personale sugli ultimi dieci anni” (1970), in R. Gibellini, La
teologia di Jürgen M oltmann (1975), p. 331.
22. J. Moltmann, “Risposta alia critica delia ‘Teologia delia speranza’”, in W. -D. Marsch 24. W. Benjamin, Angelus Novus. Saggi e fram m enti, Turim, Einaudi, 1962, p. 72.
(ed.), D ibattito , pp. 265-315; aqui: p. 284. 25. Chr. Hinz, in W.-D. Marsch (org.), Dibattito, p. 172.

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perguntou: “Todos os grandes filósofos conseguiram resumir seu pensamento xadas da morte” trituram apenas a casca da existência do homem, quer
numa única proposição. Qual é sua proposição fundamental?” e Bloch res­ dizer, o ser que existe, mas não o núcleo obscuro, quer dizer, o ser que
pondeu: “S não é ainda P”26. Quer dizer: o Sujeito não é ainda o Predicado. existirá: esta é a região extraterritorial da existência, intangível pela morte.
A filosofia de Bloch está toda voltada para a perscrutação das entranhas da Moltmann assemelha a posição blochiana à doutrina da imortalidade na
matéria-realidade (o Su jeito Lpara-captar a tenrlênria-latência grávida de futuro versão fichtiana (que distingue entre o eu empírico e o eu transcendental),
(o Predicado). ^ filosofia de Bloch é radicalmente voltada para o futuro, mas, a qual não levaria a sério a letalidade da morte — letalidade mediante a
justamente por isso, está empenhada em recuperar algo do passado, quer qual as queixadas da morte trituram tudo: a casca e o núcleo, e a diferencia
dizer, a receber por herança todos os vestígios da esperança latentes nos da esperança cristã, que aceita a letalidade de morte —, mas espera, para
devaneios, na arte, nas utopias e na religião.) Q niarxismo deJBloch apresenta­ além da morte, a creatio ex nihilo da ressurreição prometida por Deus e
m-se assim, em nome do “princípio esperança” (das Prinzip Hoffnung) e do garantida pela ressurreição de Cristo.
j“ futi4ro-não-ainda-tornado-tal” (ungewordene Zukunft), como herdeiro uni­ d) Bloch, finalmente, julga que somente a esperança do princípio espe­
versal das esperanças humanas, e, portanto, jtarnbim_cxiina-me.ta-religião. rança é capaz de comprometer o homem na tentativa, repleta de riscos, do
A pergunta que o teólogo faz a Bloch é a seguinte: “[...] quais elementos laboratorium possibilis salutis do mundo, e não a esperança religiosa, que se
da escatologia cristã opõem resistência a ser passados em herança ao ‘prin­ parece mais com uma “certeza confiante” (Zuversicht), quer dizer, com a
cípio esperança’ por meio da meta-religião?”27 A discussão sohre a herança segurança supersticiosa e mitológica, segundo a qual a hipóstase Deus fará
não «.nova: na Antiguidade patrística, o cristianismo recebeu por herança os tudo, seja lá como for, e, por isso, precisa ser incorporada a um escatologismo
lógoi spermatikói da verdade do pensamento clássico, e na Idade Média a ateu.jMoltmann objeta que a esperança cristã evidentemente é uma certeza
filosofia serviu de ancila à teologia; o pensamento moderno, ao contrário, confiante (Zuversicht), mas não uma tranqüila segurança (Sicherheit),e sim
desde o Lessing áe 'A educação do gênero humano em diante, pretendeu herdar, protesto contra a.miséria, a injustiça, o pecado e a morte; decidida a assu­
sob a forma de verdade racional, as verdades da revelação. A intenção de mir com coragem a “cruz da realidade” (é uma esperança que está junto à
Bloch é explícita: o passado, e in primis o conteúdo utópico da religião e do cruz de onde provémjTsemprê insatisfeita porque caminha na direção da
cristianismo, é Erbmaterial, material que deve passar por herança na meta- promessa de Deus. Mas, para fazer isso, ela deve acolher as instâncias do
-religião da filosofia da esperança. Moltmann apresenta quatro pontos do princípio esperança, sem porém vender-se a ele a qualquer preço, pois isto
cristianismo que se recusam a passar como herança a um escatologismo ateu: implicaria, em último caso, a rendição do messianismo ao marxismo.
a) Segundo a escatologia cristã, o homo absconditus será revelado por |Ã filosofia da esperança constituiu apenas um desafio, que a teologia
obra do Deus absconditus; a esperança encontra assim fundamento na pro­ acolheu para revigorar, inclusive politicamente, a esperança cristã em um
messa de Deus e no futuro de Cristo. No escatologismo ateu de Bloch, ao projeto de “ações da esperança” da cristandade, que se tornem responsáveis
invés, o homo absconditus coincide com o Deus absconditus: o aspecto mis­ pelo futuro da humanidade. Mas permanece uma diferença essencial entre a
terioso de Deus não é outra coisa senão o lado misterioso do próprio ho­ filosofia e a teologia da esperança: a primeira conhece apenas um futuro do
mem que no final será revelado. Mas, neste caso, o fundamento da esperan­ futuro, quer dizer, um futuro que vem a ser do seio da matéria e que só pode
ça está na própria esperança. ser conhecido por extrapolação a partir das tendências intrínsecas da realida-
b) O Reino de Deus, objeto da esperança cristã, é o Reino em que a de-matéria; a segunda, ao invés, conhece também o futuro do advento, o fu­
morte será definitivamente vencida, e não só a pátria da identidade, à qual turo que vem como dado por Deus e que é conhecido por antecipação: no
Bloch pretende legar o conceito religioso de Reino de Deus. evento do Cristo, é antecipado o futuro de ressurreição e de vida que Deus
c) A escatologia cristã espera a ressurreição dos mortos, que é irredutível doa à humanidade; aqui a utopia é transcendida como escatologia teológica.
à extraterritorialidade da morte anunciada por Bloch. Para Bloch, as “quei­

26. A. Lowe, ‘“S. ist noch nicht P.’ Eine Frage an Em st Bloch”, in S. Unseld (org.), Ernst ^ 4. Da teologia da esperança à teologia da cruz •' ,
Bloch zu ehren. Beiträge zu seinem Werk, Frankfurt a. M. Suhrkamp, 1965, pp. 135-143; aqui: p. 135.
27. J. Moltmann, “H principio speranza e la teologia della speranza” (1963), artigo publi­
cado depois em Apêndice à terceira edição de Teologia delia speranza (3. ed. 1965), pp. 349-373; Eis o que escreve Walter Benjamin nas Teses de filosofia da história:
aqui: p. 354. “Há um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Há nele um anjo que

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parece estar se afastando de algo que ele olha com atenção. Tem os olhos A r-essurreição-de-Gristo^tem estrutura, proléptica: ela é antecipação do
arregalados, a boca aberta, as asas preparadas para o vôo. O anjo da história futuro. do. Deus. que vem e do fim da história. Todavia, o ponto de vista
deve ter esse aspecto. Seu olhar está voltado para o passado. Lá onde apa­ proléptico é insuficiente para captar toda a verdade do evento Cristo. Surge,
rece uma série de eventos, ele vê uma única catástrofe, que acumula sem com efeito, a pergunta: se, com a ressurreição, “já começou” o futuro de
trégua ruína e mais ruína, lançando-as a seus pés. Ele bem que desejaria Deus, que sentido têm então seu sofrimento e sua morte? Em outras pala­
parar, acordar os mortos e recompor a fratura. Mas cai do céu uma torm en­ vras: naquele Um se antecipa o futuro de Deus, mas por que precisamente
ta, que se emaranha em suas asas, e é tão forte que ele não consegue fechá- naquele Um? A resposta, sobre a qual reflete a teologia da cruz, é esta:
-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual volta quem ressuscitou foi aquele que foi crucificado.
as costas, enquanto o monte de ruínas sobe diante dele até o céu. Essa “A cruz [...] modifica a ressurreição.”31 A ressurreição é antecipação
tempestade é o que chamamos de progresso”28. do futuro de Deus. Mas, como a ressurreição é..ressun:£Íçãa.do.crucificado, |
O anjo da história — pois — vê um amontoado de ruínas lá onde o essa antecipação torna-se antecipação do futuro de Deus para aqueles que j !
olhar utópico vê gênese e progresso. A teologia da cruz, proposta por Moltmann vivem.^em esperança e sem direito. A cruz torna-se assim o significado dai
na obra O Deus crucificado (1972), apresenta-se como a tentativa de fazer ressurreição. Uma cruz sem ressurreição significaria fracasso, e Jesus de
com que a teologia assuma a acuidade e a profundidade do olhar do anjo Nazaré não seria o Cristo de Deus. Uma ressurreição sem cruz soaria ape­
da história, tornando-a intérprete da história do sofrimento humano. As nas como milagre, metamorfose na glorificação, prolepse abstrata do futuro.
primeiras reações falaram de “livro inesperado”, de “salto mortal”, e se A ressurreição do crucificado é prolepse e esperança para os sem-esperança,
perguntaram: Por que será que Moltmann, da altissonante música de Bloch, é prolepse e esperança na cruz do presente.
passou gradualmente a uma eschatologia crucis mais amena?”29 Em Teologia Cristologia escatológica como teologia da esperança; escatologia
da esperança, o teólogo dialogava com a filosofia da esperança de Ernst cristológica como teologia da cruz: “A teologia da cruz outra coisa não é se­
Bloch e dirigia sua meditação para o futuro para revitalizar a esperança não o avesso da teologia cristã da esperança”32. A cristologia escatológica
cristã. A nova obra, ao contrário, estava em diálogo com a dialética negativa de Teologia da esperança dá perspectiva à esperança cristã, ampliando assim
da teoria crítica da sociedade e com a teologia hebraica do Holocausto, ou os espaços do horizonte do Reino, mas poderia levar ao entusiasmo e a
seja, com a moderna temática do sofrimento do mundo. ÍTratava-se, no fun­ saltar o movimento da encarnação; a escatologia cristológica de O Deus
do, de um aprofundamento da esperança cristã, que se baseia na ressurreição crucificado confere profundidade e radicalidade à esperança, introduzindo
de Cristo, mas esta traz uma inevitável referência à cruz. j no movimento messiânico a história da paixão humana.
Se em Teologia da esperança eram desenvolvidas as linhas de uma A teologia da cruz, na versão de Moltmann, põe o seguinte problema: se
cristologia escatológica, em O Deus crucificado realiza-se a necessária a história do sofrimento humano encontra acolhida em Deus, até que ponto
integração com uma escatologia cristológica: “A cristologia escatológica in ­ ela o envolve? Será que Deus pode sofrer? O bloqueio intelectual que se
duz ao erro se não percorre o caminho inverso da escatologia cristológica”30. manifestava em cristologia todas as vezes que esta questão era levantada tinha
Na cristologia escatológica, a partir de Cristo, se olha para a frente, na origem no conceito filosófico grego de Deus: o ser divino é impassível; com
direção do éschaton, e então o ponto privilegiado de observação é a ressur­ efeito, se fosse passível, seria corruptível e imperfeito e não seria mais Deus.
O obstáculo era contornado com a doutrina de duas naturezas e com a
reição de Cristo, que torna possível vislumbrar o futuro prometido por
communicatio idiomatum, devido à qual o sofrimento de Cristo, que acontecia
Deus; na escatologia cristológica, ao invés, a partir do éschaton, olhamos
na natureza humana e não atingia a natureza divina impassível, podia ser
para trás, para o evento Cristo, e passamos a nos perguntar como o futuro
atribuído à pessoa divina. Aqui o discurso de Moltmann — alinhado inclusive
Reino de Deus se manifesta na realidade do presente. Os dois caminhos
com a tendência cristológica de outros teólogos (H. Mühlen, E. Jüngel)33 —
teoréticos devem ser igualmente percorridos.
31. Id., II Dio crocifisso, p. 214.
28. W. Benjamim, Angelus Novus. Saggi e fram m enti, op. cit., pp. 76-77.
32. Id., ibid., p. 11.
29. Cf. J. Moltmann, II Dio crocifisso, cit p. 11. 33. Cf. H. Mühlen, La m utabilità di Dio come orizzonte di una cristologia fu tu ra (1969),
30. Id., “Teologia come escatologia” (1968), in Religione, rivoluzione e futuro (1962), p. 200. Brescia, Queriniana, 1974; E. Jüngel, Dio, mistero dei mondo (1977), Brescia, Queriniana, 1982.

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admite a possibilidade de sofrimento no próprio Deus para conferir profun­ Deus na história do Gólgota. Por isso não existirão muito menos vida,
didade ao envolvimento de Deus na paixão do mundo. Em Deus, deve ser felicidade e alegria que não sejam integradas, mediante sua história, na
excluída toda capacidade de sofrimento que comporte carência de ser e história eterna, na alegria infinita de Deus”35.
imperfeição, mas não a capacidade de sofrimento que nasce do amor. As­ A cruz é aqui interpretada como “açftntecimento de Deus”, como
sim, não se deve compreender a imutabilidade de Deus como uma imutabi­ “história de-Deus”, e portanto como “história da história” humana, donde
lidade absoluta, e sim como uma imutabilidade relativa, que não exclui a se segue que a história humana está em Deus; não, hegelianamente, Deus
capacidade de um sofrimento ativo, o sofrimento do amor. Se se desvincula na história; mas, cristãmente, a história em Deus. A história do homem —
o conceito de Deus do princípio metafísico grego da impassibilidade/apatia que é história de esperança e de sofrimento — é recuperada na “história de
do ser divino, é possível falar de história de Deus. Deus”, que acontece na cruz. A teologia da cruz, na versão moltmanniana,
Mediante uma análise teológica das fórmulas neotestamentárias da está preocupada em pensar a cruz, de tal forma qye a história.do. sofrimen-
“entrega” e do “abandono”, Moltmann chega à conclusão de que o mono­ to humano possa ser pensada em Deus. A teologia da cruz torna-se então
teísmo não pode funcionar como chave interpretativa da cruz; a cruz deve teologia trinitária da cruz. Nessa tentativa sistemática de introduzir o so­
ser entendida em termos trinitários: no acontecimento da cruz, as pessoas frimento em Deus e de ler assim a história do sofrimento humano na
divinas se constituem em sua relação recíproca; no acontecimento da cruz, “história de Deus”, Moltmann estabelece um confronto entre teologia cris­
dá-se a “história de Deus”. E na cruz que o Pai e o Filho se constituem tã, de um lado, e teologia apática da Antiguidade grega e teologia patética
como tais, na medida em que são distintos e separados no modo mais do mais recente pensamento hebraico, de outro.
profundo: no abandono — o Pai como aquele que abandona o Filho ao A teologia do livro XII da Metafísica de Aristóteles, que fala do theós
sofrimento e à morte, e o Filho como aquele que é abandonado ao sofrimen­ apathés, incorruptível e impassível, corresponde na-filosofia-helenística, e
to e à morte —; mas ao mesmo tempo estão unidos no modo mais íntimo especialmente no estoicismo, â ética do sábio, cuja virtude é a apátheia, que
da entrega — o Pai como aquele que entrega o Filho à agonia do abandono dá ao sábio liberdade e superioridade sobre o mundo, em analogia com a
e sofre com isso, e o Filho como aquele que é entregue e voluntariamente liberdade perfeita e plena, própria da divindade. J ^ judaíorno,-C9p ooialra.ente
se entrega à agonia e à morte. O que brota desse acontecimento entre o Pai com Fílon, e o cristianismo assumiram, da. Antiguidade a. teologia apática,
e o Filho na cruz é o Espírito que justifica, que abre para o futuro e cria com sua respectiva antropologia aoática. se bem que com as oportunas
vida. O sujeito dessa “história de Deus” não pode ser o Deus impassível/ inovações para adaptá-la ao conceito de agape de Deus e dos crentes.
apático da metafísica grega, mas Deus entendido como “a unidade da his­ Abraham Heschel foi o primeiro, em polêmica com o helenismo e com a
tória dialética e rica de tensões que foi vivida pelo Pai, pelo Filho e pelo filosofia judaica da religião elaborada por Jehuda Halevi, Maimônides e
Espírito na cruz do Gólgota”34. Spinoza, a qualificar o anúncio que de Deus fizeram os profetas como
Essa “história de Deus”, que acontece na cruz, é mostrada como “his­ theologia pathetica. Os profetas não possuíam nenhuma “idéia” de Deus,
tória da história”, quer dizer, como história transcendental, que em si in­ mas compreendiam a si mesmos e ao povo na “situação de Deus”, que eles
clui a história do homem, interpretando-a e redimindo-a: “A ‘história de chamavam de o páthos de Deus. A profecia, em seu núcleo, não é previsão
Deus’, concreta na morte de Jesus no alto do Gólgota, contém, pois, todas do futuro, e sim o olhar voltado para o páthos atual de Deus, para seu
as profundidades e abismos da história humana e poderá ser compreendida sofrimento pela infidelidade de Israel, para sua apreensão por seu direito e
como a história da história. Toda história humana, por mais marcada que por sua honra no mundo. E um páthos que se fundamenta em sua liberdade
esteja pela culpa e pela morte, é superada nessa ‘história de Deus’, quer e coincide com o profundo interesse de Deus, um interesse que o faz sofrer
dizer, na Trindade, e integrada no futuro da ‘história de Deus’. Não existe — pelo homem e por seu mundo. Na esfera do Deus apático, o homem se
nenhum sofrimento que nessa história de Deus não seja sofrimento de realiza como homo apatheticus, ao passo que, na situação do páthos divino,
Deus, como não existe nenhum a morte que não se tenha tornado morte de o homem se torna sympatheticus na amizade com Deus, que encontra ex­
pressão na esperança e na oração. Heschel desenvolveu sua teologia do
Cf. a retomada do mesmo tema in J. Moltmann, In der Geschichte der dreieinigen Gott. Beiträge zur
trinitarischen Theologie, M ünchen, Kaiser, 1990.
34. J. Moltmann, II Dio crocifisso, p. 288. 35. Id., ibid., p. 288.

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T e o l o g ia d a e s p e r a n ç a C r is t ia n is m o e m e s s ia n is m o

páthos divino em termos de teologia bipolar: ao páthos de Deus corresponde A Igreja é Igreja de Cristo: a eclesiologia, pois, deve ser desenvolvida
a sympathia do homem. a partir da cristologia como sua conseqüência e como correspondência a
A teologia cristã pode utilizar o conhecimento e a saudade presentes ela. E, no entanto, a tendência protestante é a de dissolver a eclesiologia na
na teologia apática do helenismo como pressuposto para compreender a cristologia, ao passo que a tendência católica é a de dissolver a cristologia
liberdade de Deus e a libertação futura do homem; mas sobretudo poderá na eclesiologia. A Igreja de Cristo é Igreja do Reino: o ângulo visual, portan­
assumir a teologia patética do judaísmo para compreender a paixão e a to, é a missão da cristandade, em toda a sua vastidão, na história para o
compaixão de Deus, e a simpatia do crente. A teologia patética hebraica Reino. A Igreja de Cristo vive no horizonte do Reino, porque vive na
pode ser recuperada em uma teologia trinitária da cruz e em uma antropo­ presença e na força do Espírito Santo: A Igreja se compreende na presença
logia empática universal no Espírito. do Espírito Santo como povo messiânico para o Reino que está por vir,
A teologia da cruz apresenta-se assim como a contrapartida da teologia quando está à escuta da língua do tempo messiânico, e no batismo e na ceia
da esperança, na medida em que integra a cristologia escatológica com uma do Senhor celebra os sinais do pôr-se a caminho e da esperança. Na festa
escatologia cristológica, pensada de maneira conseqüente como teologia messiânica, ela toma consciência de sua liberdade e de seu mandato. A
trinitária da cruz e como teologia patética.; Igreja se experimenta na força do Espírito Santo como a comunidade
messiânica a serviço do Reino de Deus no mundo37.
O conceito de messiânico realiza uma mediação entre o escatológico e
5. Cristianismo e messianismo o histórico, entre o Reino de Deus e a história: não separação no sentido
da metafísica, de acordo com a qual a eternidade transcende o tempo; nem
A esperança cristã é esperança criativa: não somos apenas os intérpre­ identificação no sentido das filosofias historicistas, para as quais o sentido
tes do futuro; somos colaboradores do futuro, cuja força, tanto na esperan­ da história encontra realização total no interior da história; e sim mediação:
ça como na realização, é Deus36. jDepois da Teologia da esperança (1964), “Se o escatológico se torna histórico, o histórico se torna escatológico”38.
Moltmann aderiu prontamente, por volta de 1968, ao programa de “teologia Na vinda do Cristo e em sua ressurreição, o escatológico fez sua entrada na
política”, para dar concretude à esperança cristã (cf. X). Nesta perspectiva, história; a história se põe, assim, a caminho de sua plenitude final: “A
a teologia da esperança projeta as “ações da esperança” da cristandade; e a esperança se torna realista, e a realidade se torna prenhe de esperança”39.
teologia da cruz inclui nas ações da esperança as ações de resistência e de Tal mediação messiânica se exprime antes de tudo na figura messiânica da
libertação, quer dizer, as ações de uma esperança que se tornou sagaz e antecipação, que não é ainda plenitude, mas somente fragmento do todo
decidida a perseverar (“o grande fôlego da esperança”). A estratégia das que está para vir; disso se segue que ficam excluídos tanto o entusiasmo
ações da esperança constitui o “exercício da esperança”, a tarefa mais u r­ fanático como a resignação trágica. Além disso, ela encontra expressão na
gente da comunidade cristã como “comunidade messiânica” e “vanguarda figura messiânica da resistência contra as forças do mal e da morte que
do mundo libertado”. É o tema que Moltmann aborda numa obra menor, ainda estão em ação num mundo que tende a fechar-se em si mesmo e
como O exercício da esperança (1974), e sobretudo no tratado eclesiológico A sobre si mesmo. Antecipação e resistência estão vinculadas às figuras
Igreja na força do Espírito (1975), que, juntamente com Teologia da esperança messiânicas da dedicação e da representação: as antecipações não represen­
(1964) e O Deus crucificado (1972), constitui uma espécie de trilogia: a trilogia tam a si mesmas, representam aquilo que deve vir e exigem empenho e
da esperança. Poder-se-ia assim periodizar o percurso moltmanniano da teo­ dedicação do presente para que ele se abra para o futuro do Reino. Na
logia da esperança: ele toma como ponto de partida a páscoa, retorna à antecipação mediante a resistência, dedicação e representação, a história se
contemplação da cruz da Sexta-Feira Santa e daqui volta a partir para a mantém aberta para o futuro escatológico: “A Igreja, o cristianismo e a
missão do Espírito de Pentecostes; em termos teológicos: da cristologia cristandade compreendem a própria existência e as próprias tarefas na
escatológica a uma escatologia cristológica até a eclesiologia messiânica, história a partir da perspectiva messiânica. Sua vida, portanto, caracteriza-
que retoma e desenvolve o capítulo final de Teologia da esperança.
37. Id., La chiesa nríiaforza dello Spirito (1975), p. 377.
38. Id., ibid., p. 258.
36. J. Moltmann, “Teologia come escatologia”, art. cit., p. 204. 39. Id., ibid.

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T e o l o g ia d a e s p e r a n ç a

-se pela antecipação, pela resistência, pela dedicação e pela representação. nidade ideal, vê em Jesus o aparecimento do verdadeiro homem. Mas se,
[...] A Igreja, na força do Espírito, não é ainda o Reino, mas é sua anteci­ com procedimento histórico e não dedutivo, se parte da Bíblia como Scrip-
pação na história. O cristianismo não é ainda a nova criação, e sim a ação tum da história das promessas, da esperança e da libertação par excellence,
do Espírito da nova criação. A cristandade não é ainda a nova humanidade, a pergunta deverá ser a seguinte: “És tu aquele que há de vir?”, formulando
mas é sua vanguarda na resistência contra todo fechamento mortal, na assim — in limine — não a questão da divindade de Cristo, nem uma
dedicação e na representação”40. questão antropológico-existencial, e sim a pergunta sobre o caráter
Dessa caracterização messiânica da teologia da esperança é que brota messiânico de Jesus, como questão que co-responde à teologia cristã como
seu constante diálogo e confronto com o judaísmo. No ensaio sintético teologia messiânica.
Messianismo hebraico e messianismo cristão (1974), Moltmann estabelece um *'A teologia da esperança elaborada por Moltmann, não como teologia
apaixonado cotejo com o judaísmo a respeito do tema do caráter messiânico específica do genitivo, mas como projeto de teologia escatológica em pers­
de Jesus: “Ao pôr a pergunta messiânica sobre ‘aquele que há de vir’, judaís­ pectiva messiânica, que mantém em tensão o escatológico e o histórico, o
mo e cristianismo são aparentados da maneira mais estreita possível. Na Reino de Deus e a história, está na base da reviravolta política da teologia,
resposta, que eles ouvem, parecem estar divididos da maneira mais profun­ realizada nos anos 60, que encontrou suas expressões mais evidentes na
da possível”41. Resumindo: messianismo sem cristologia é a solução do ju ­ teologia política (cf. X) e na teologia da libertação (cf. XI). Depois do ciclo
daísmo; cristologia messiânica é a solução do cristianismo. A cristologia da teologia da esperança (1964-1975), com a adesão ao programa de teolo­
gia política (a partir de 1968), Jürgen Moltmann empreendeu um projeto
messiânica mantém firme, no horizonte da esperança no Reino de Deus,
de teologia sistemática (com uma série de Contribuições sistemáticas para a
uma “presença messiânica na história”42. A cristologia cristã, porém, não
teologia a partir de 1980)45 como teologia dialogai, que se desenvolve em
deve absorver o horizonte do Reino. “Por isso a cristologia não pode ser o
comunhão ecumênica com as teologias das Igrejas cristãs e pensa de manei­
fim da escatologia messiânica. Tal entusiasmo da realização acabou sempre
ra ecumênica todos os grandes temas da tradição cristã: ela tem suas coor­
por deificar Jesus e procurou anular a inquietação hebraica. A cristologia
denadas de referência, além da “Escritura” como fonte cristã, na comum
deve antes levar ao horizonte aberto da esperança escatológica.”43
A opção fundamental em cristologia é por uma cristologia escatológi­ esperança no Reino como horizonte de reflexão.
ca — a perspectiva esboçada em Teologia ãa esperança. A escatologia cris­
tológica — delineada em O Deus crucificado — deverá representar um cor­
retivo à cristologia escatológica, que continua sendo a perspectiva funda­
mental da teologia cristã como “teologia messiânica”. “A cristologia não é
outra coisa senão messiologia.”44 A pergunta decisiva que deve ser feita a
Cristo — sem esquecer que toda pergunta nossa vem sempre precedida por
seu interrogar: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (Mt 16,15) — não é: “És
tu o verdadeiro Deus?”, ou “És tu o verdadeiro homem?”, e sim a pergunta
messiânica: “És tu aquele que há de vir?” (Mt 11,3). As duas primeiras
perguntas, amplamente tratadas na história da teologia cristã, levam ao
desenvolvimento de uma cristologia dedutiva, que, partindo da idéia de
Deus, vê em Cristo a encarnação de Deus, ou, partindo da idéia de hum a­

40. Id., ibid., p. 262.


41. J. Moltmann, “M essianismo ebraico e messianismo cristiano”, in Uesperimento speranza
(1974), pp. 79-88; aqui: p. 79. 45. Id., Trinità e Regno di Dio. La dottrina su Dio (1980), Brescia, Queriniana, 1983; Di
42. Id., ibid., p. 82. nella creazione. Dottrina ecologica delia creazione (1985), Brescia, Queriniana, 1986; La via d i Gesü
43. Id., ibid., p. 86. Cristo. Cristologia in dimensioni messianiche (1989), Brescia, Queriniana, 1991. Der Geist des
44. J. Moltmann, “Fé y política”, in Diálogo ecuménico 9 (1974), n. 33, pp. 3-50. Lebens. Eine ganzheitliche Pneumatologie, München, Kaiser, 1991 (ed. br.: Edições Loyola, prelo).

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