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Olgária c.

f Matos
FICHA CATALOGRÁFICA
(preparada pelo setor de catalogação de
MG Editores Associados — Bibliotecária
Diva Andrade)

Matos, Olgária C.F.


Rousseaú
- uma arqueologia da desigualdade. São Pau-
lo, M.G. Editores, 1978. EAI |
124p.
Bibliografia.
1. Filosofia francesa |. Título. Da ci UMA ARQUEOLOGIA

DA DESIGUA LDA DE

O desta edição da
MG EDITORES ASSOCIADOS
Rua Sergipe, 768 - fone: 259-7398 RApanRs
| 01243 - São Paulo, SP a

| SÃO PAULO — 1978


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PICLÁCIO: 5.5.5) csmuato osso SHUAl caseira liga aa OR 9
INtFOCUÇÃO: ma ssa ani qo sEUE, ato qe! vo Vo Sdtai BAT VE (Ô o 17

Capítulo I — O Silêncio e aOrigem ....... PRE ETEeE 25


A — O Visível e a Natureza: a Presença e a Igualdade ..... 25
B — O Movimento das Paixões. ........... E 8 estã ops sis 36

Capítulo II — A Naturezae o Artifício. .............. 45


A — O Animal, o Homem: a Identidade .............. 45
B — O Animal, o Homem:a Diferença .............. 50.
€ — O Retorno do Reprimido na Sociedade . «........ .. 60

Capítulo II = Da Visibilidade à Alienação ............ 67


A — O Invisível o a Representação ,.,.cccccsescso. 67
B —- A Gênese da Oposição: a Consciência ,,.......... mn
C — A Guerra de Todos contra Todos; a Propriedade .,... 82

Conclusão — Balanços e Perspectivas ....iicsiccaeeos 93


A — Restaurar a Visibilidade: o Contrato , ,,,......... 4 498
B — Um Balançó Provisório. qua qui njieaaiea ua rerao é 104.
C — Um Balanço sem Perspectivas ..,....cccccc.... 112

Bibliografia ua sv ira RR a O DO ass ce o , 121


PREFÁCIO

Por que, tendo escavado as origens da desigualdade entre


os homens, Jean-Jacques Rousseau não é um revolucionário? Este
livro nos convida a refletir menos acerca da coerência da obra
de Rousseau e mais sobre a inquietante questão de seus limites.
A autora procura localizar o ponto em que o discurso rousseau-
niano cria sua própria barreira interna e que, não podendo ser
ultrapassada, impede a emergência da idéia de uma nova justiça
e a exigência de uma revolução para alcançá-la. A origem e o fun-
damento da desigualdadé social são marcados pelo advento da
propriedade privada, porém falta à análise de Rousseau apontar
o vínculo necessário entre propriedade e exploração. A ausência
desta última impossibilita dar à desigualdade “um conteúdo his-
tórico” e, na falta deste, não há como conceber “uma passagem
dialética das contradições”, Eis porque as duas soluções oferecidas
pelo filósofo — o contrato social e a pequena comunidade de Cla-
rens — aparecem mais como substitutos para a injustiça do que
como luta contra sua causa. Ser desnaturado porque cindido da
Natureza e socialmente dividido, o homem jamais recuperará
a indivisão da origem quando, silencioso e disperso, colhia os frutos
da terra, 'aplacava as necessidades e divagava no murmúrio das
paixões benevolentes, Quando os homens se reunem já se sepa-
raram da Natureza e a sociedade, precária substituição, é incapaz
de refazer a unidade indivisa do originário. Buscando a origem
perdida, o homem social apenas encontra substitutos para ela,
mas porque a perda é perversão, perversos serão os substitutos
encontrados e nascendo acorrentado aos grilhões do destino de
tudo quanto advém depois da queda, o homem social é homem
sem esperança e sem redenção. Desnaturar-se é ser culpado e tor-
nar-se suspeito no coração de uma alteridade pervertida e cada
tu 11

movimento da história apenas agrava a culpa € alimenta a suspeição. presente no “Segundo Discurso”, quanto às transformações ocorri-
A perfectibilidade, substituto para a imediateza do instinto, diz das no modo de ser do homem. Destarte, tanto o conceito de ho-
Olpária, não é dialética e sim ambígua, pois o homem progride mem natural quanto o de homem social bem como a passagem do
porque é desgraçado e se aperfeiçoa em desgraça e para a desgraça. estado de natureza ao de sociedade encontram-se fundados em um
Socializar-se é nascer para a morte. princípio único e sólido a partir do qual é possível narrar o drama
História da perversidade, o discurso que a tematiza só pode- do género humano, Assim, a pergunta pela origem da desigualda-
ria ser perverso também. Não seria esta uma pista para adivinhar- de entre os homens deve passar pelo momento em que os homens
mos que a questão acerca da coerência da obra de Rousseau talvez eram iguais na diferença puramente natural, momento da auto-sufi-
seja um falso problema? Pedir-lhe coerência não seria um contra- ciência e da piedade, momento originário da liberdade e da espontá-
senso, não seria exigir que o discurso escapasse milagrosamente nea identificação com o outro no sofrimento. Se a natureza huma-
da trama dessa história perversa que o suscita e provoca para que na é livre e piedosa em estado de natureza é porque neste estado
se tornasse um “bom discurso” sobre o mal? Mais fecunda será reina a abundância, a satisfação das necessidades não ultrapassa o
a leitura que interrogue os limites do discurso e que, ao fazé-lo, desejo natural, o mundo feito somente do aqui e do agoraé plena-
desvende o sentido dessa enigmática rememoração que percorre mente visível e sua visibilidade transita entre os homens para os
a obra onde lembrar é saber que o homem feliz não tem memó- quais o simples gesto é bastante para a comunicação e a dor visível
ria e falar é afirmar que a felicidade é silenciosa. A obra é per- do outro, suficiente para despertar um eco nos demais que não |
versa e nela a busca da origem é tentativa funesta para suprimir-se precisam “entendê-la” para senti-la em sua própria carne. A per-
a si mesma sem consegui-lo, A memória, a linguagem, o pensamen- gunta pela origem da desigualdade converte-se, pois, em questão
to e o trabalho são signos da perda originária; lembrar, escrever, acerca da transformação ocorrida na natureza humana e que a fez
pensar fazem com que o trabalho da obra seja a repetição incan- passar do estado de igualdade entre homens auto-suficientes ao
sável da perda e da divisão cuja origem o discurso está a procurar. estado de desigualdade entre homens que se tornaram dependentes.
A obra de Rousseau não é descrição da queda: é sua plena manifes- A Arqueologia da Desigualdade é uma teoria da alienação. Com-
tação, preendemos, então, porque a autora completa a pergunta sobre
Como o diferente se torna desigual, o visível se oculta e a origem da desigualdade com uma outra que lhe confere pleno
a presença se faz ausente? A resposta a estas questões, escreve sentido; qual a origem da submissão? Sem a questão acerca da
Olgária, não deve ser buscada em uma história empírica, pois Rous- obediência a outrem seria impossível determinar o momento em
scau não indaga quais os fatos que teriam determinado o advento que a diferença natural é transfigurada em desigualdade social,
da desigualdade entre os homens e sim quais os princípios que a tor- pois esta mada mais é senão a forma da dominação e das relações
naram possível. Diríamos que a Arqueologia da Desigualdade trans- entre homens divididos,
corre no espaço de uma história transcendental. Frequentemente os Olgária Matos enfatiza a afirmação de Rousseau segundo a
intérpretes da obra rousseauniana consideram o princípio explicati- qual a propriedade privada marca o advento do estado de guerra,
vo da desigualdade como fruto da comparação feita entre o estado mas não“o advento da sociabilidade, de sorte que o surgimento
de natureza e o estado de sociedade, visto que em Rousseau a críti- da propriodade privada é precedido de outras desigualdade que
ca do social encontra-se alicerçada em sua oposição absoluta face a preparam, sendo mais um fruto delas do que sua causa. Da mesma
ao natural, Olgária desloca o foco tradicional da interpretação: maneira, Olgária mostra como o uso da força e a exigência do
não é através do conceito de estado de natureza que Rousseau reconhecimento entre homens que se tornaram conscientes não
fundamenta a teoria da desigualdade, mas através do conceito são causas da submissão, mas apenas seus intrumentos de conser-
do natureza humana, Esse deslocâmento interpretativo é funda- vação, sendo necessário buscar aquém delas a gênese da obediên-
mental, pois sem elo tornar-se-ia incompreensível a preocupação, cia, Assim, tanto or advento da propriedade privada quanto o da
12 13

dominação devem pressupor outras alterações no modo de ser vam uns com os outros, na linguagem dos sentimentos o outro
é
dos homens que as tornaram possíveis. Eis porque a autora se descoberto como objeto de amor ou de ódio e, assim,
como dife-
detém na análise da origem das línguas, na compreensão do signi- rente. Mas porque ser amado e não ser odiado supõem compara-
ficado da passagem da sensibilidade e das paixões para a consciên- ções e preferências, a linguagem do amor e do ódio cria e conserva
cia e a razão, na interpretação da gênese do mundo do trabalho seres desiguais, impelidos pela vaidade e pela vergonha, pelo medo
como mundo da carência. Essas modificações são camadas super- da afronta e pelo desejo de vingança,
postas onde a desigualdade se sedimenta e cujo perfil os capítulos Bim que momento falar e trabalhar transformam a diferença'
deste livro desenterram com paciência. Aqui a arqueologia é geolo- em desigualdade o fazem do desejo de reconhecimento recíproco
a. uma luta mortal? Como a sociabilidade nascente engendra o estado
E No estado de natureza, pólo ideal da origem, reinam a pre- do guerra? Para o compreender é preciso mostrar como as duas
sença e a visibilidade. O nascimento da linguagem e o advento divisões originárias — trabalho e linguagem — criam nova divisões
do trabalho marcam a separação entre o homem e a origem, pois que alteram irremediavelmente o modo de ser da natureza humana.
a fala é relação com o ausente e o trabalho, criação do possível. O homem natural é o homem do amor de si; O homem social,
do
Com eles surge a consciência do tempo e da morte, mas também amor-próprio, Para que a primeira forma do amor se convertesse
a da permanência e a da identidade. A consciência de si desco- (ou se pervertesse) na segunda foi preciso que surgisse o desejo
bre-se como idêntica ao saber-se diversa do mundo natural e das da posse e com ele o interesse particular. A subjetividade nascente,
demais consciências que a cercam. Para que a linguagem, o traba- escreve Olgária, organiza-se menos sob a categoria do “eu” e muito
lho, a consciência do tempo e da identidade surgissem foi preciso mais sob a égide do “meu” e seu imperativo é a posse. Não será
que a adesão institiva ao imediato cedesse passo a algo inscrito na por acaso que a grande divisão definidora do ser social do homem
natureza humana desde a origem: a perfectibilidade. Todavia, para será a oposição entre o indivíduo e o cidadão, entre o interesse par-
que esta viesse a ocupar o lugar do instinto, distinguindo o ho- ticular e o bem coletivo. Porém, é 'preciso indagar: como foi possível
mem do animal, e para que a consciência viesse a ocupar o lugar nascer o interesse particular? A resposta a esta questão põe em
da pura sensibilidade foi preciso que algo ocorresse na própria Na- cena o advento da propriedade privada e do trabalho alienado,
tureza. Crises, revoluções naturais e acasos funestos fizeram com fonte da submissão.
que a Natureza deixasse de ser grande mãe benevolente para conver- Se é impossível convencer os homens de que “os frutos são
ter-se em obstáculo a exigir que os homens lutassem para viver. de todos e a terra, de ninguém” é porque o trabalho se realiza
Com o trabalho realiza-se a cisão fundamental entre homem e em terra cercada e possuída e porque a linguagem do possuidor
Natureza e da labuta nasce, entre dores, o homem social. Foram é linguagem do interesse. Para que a diferença surja como desigual-
também os cataclismos naturais (geleiras e desertos, frio e seca) dade é preciso dizer “isto é meu”, porém, para que a desigualdade
os responsáveis pelas aglomerações humanas em certos pontos do seja acolhida pelos esbulhados como simples diferença, reconhe-
globo terrestre e, uma vez aglomerados, os homens foram obri- cida como direito de algumas a fruírem do trabalho de todos os
gados a criar línguas comuns que lhes permitissem viver reunidos outros, assumida como deter de obediência dos que nada têm aos
e cooperar em tarefas comunitárias. , que tudo possuem é preciso, primeiro, persuadir um homem de
Se o trabalho parteja a divisão entre o homem e a Natureza, que não poderia viver sem o outro. Todavia, se é verdade que sem o
a linguagem marca o advento da consciência da alteridade entre trabalho da maioria despossuída, a minoria possuidora não pode-
os próprios homens. Se o trabalho nasce sob a violenta pressão ria viver, na realidade o discurso persuasivo não será proferido
da carência, a linguagem nasce sob a exigência das paixões: ter pelos que trabalham e sim pelos que possuem a terra. Assim, o
fome ou sede não faz falar, mas amar ou odiar criam os sons ar- direito à palavra cristaliza a desigualdade determinando aqueles
ticulados. Enquanto na piedade natural os homens se identifica- que querem e podem falar.
la fo

Os possuidores convencerão os demais acerca da dependên- próprio discurso. Com efeito, o advento da propriedade privada
cia necessária e sem este convencimento a submissão seria impos- faz com que a alteridade seja vivida como um perigo e para exor-
sível. Contudo, a linguagem do engodo só foi possível quando cizá-la a razão nasce como razão de dominação, manifestando-se
toda a superfície da Terra já se encontrava repartida entre alguns através do governo, isto é, de uma vontade determinada (pelo
que para defenderem seus bens e se apossarem dos de outrem pre- interesse particular) que ocupa o lugar da vontade universal. Graças
cisavam contar com apoio daqueles que estavam sendo espoliados a essa usurpação aquele que não se submeter será tido como sus-
— eis como o discurso do rico, fraco para se defender sozinho, con- peito e merecerá a exclusão. Essa vontade determinada ou razão de
verte-se em discurso do forte, pois conta com o auxílio submisso dominação perpetua a relação senhor-servidor e, portanto, a alie-
daqueles que acreditaram que seu bem consistia em trabalhar para nação. Assim, a alienação como forma das relações sociais pressu-
o bem de um outro. Assim, trabalho e linguagem complementam-se põe tanto a propriedade privada e o trabalho forçado quanto sua
no espraiamento interminável da alienação: enquanto a proprie- legitimação, na medida em que as relações entre os homens são me-
dade e o trabalho afundam o punhal na came dos desiguais, a lin- diadas pelas coisas e ocultam as relações humanas reais.
guagem põe ungúento nas feridas para cicatrizá-las à força, con- O Homem separado da Natureza aliena-se porque passa a
vencendo os esbulhados de que todos são iguais porque, unidos depender das coisas produzidas para viver e julga depender delas
pelo trabalho, criam o bem coletivo. e não do trabalho que as produz; por outro lado, a divisão entre
Mas o que teria tornado possível o logro generalizado? Como senhor e servidor aliena o próprio trabalho na medida em que
foi possível passar do claro uso da força ao exercício invisível do para ter as coisas para viver é preciso depender de outrem, seja
poder? Em que momento o discurso do rico e do forte transfi- daquele que possui a terra (dependência do servidor) seja daquele
gura-se em discurso da legitimidade? Como é possível esse movi- que realiza o trabalho (dependência do senhor). Todavia, escreve
mento sincronizado da propriedade e da submissão, do trabalho Olgária, Rousseau toma a alienação como resultado do movimento
e da linguagem? Para responder a estas questões Olgária Matos da produção e não como interior ao próprio ato produtivo e, inca-
explicita o desenvolvimento de uma oposição que selou a sepa- paz de alcançar a “alienação em ato”, não pode ultrapassar a di-
ração definitiva entre o homem natural e o homem social: o de- mensão das oposições que descrevera.
senvolvimento da oposição entre o ser e o parecer. “Há em Rousseau Permanecendo prisioneiro dos conflitos cuja origem des-
um “sistema de oposições! que vai do plano ontológico ao plano vendou, Rousseau poderá apenas tentar oferecer remédios para
político: ser-parecer; ter-não-ter; forte-fraco; rico-pobre. O dis- o estado de guerra, mas não sua supressão. No estado de guerra im-
curso do rico (categoria econômica) é o discurso do forte (categoria pera a força. Ora, o que é adquirido pela força, a força pode arre-
política), que se desdobra como persuasão (categoria da linguagem) batar e somente uma força maior pode conservar. Para que a for-
e a injustiça (categoria moral) e que recobre a falsidade (categoria ça ceda lugar ao poder é preciso universalizar a vontade particu-
ontológica.” lar. Ao contrato social caberá a tarefa de fundação da universa-
Foi preciso a opacidade do mundo para que a aparência lidade, submetendo a vontade particular à Lei, nascida na Von-
desse à linguagem o poder para afirmar que o mal é o bem; a fra- tade Geral. Ora, escreve Olgária, do ponto de vista da desigualdade
queza, força; a guerra, paz; a mentira, verdade. Somente quan- social o contrato serve apenas para fixá-la, uma vez que sua reali-
do a reflexão, poder invisível assenhorou-se da sensibilidade, foi zação implica em transformar a posse belicosa em propriedade
possível convencer os homens de que anecessidade merecia o legítima.
nome de liberdade. Por seu tumo, a pequena comunidade de Clarens também
No entanto, o mesmo movimento que permite a Rousseau é impotente para superar a desigualdade, e através dela Rousseau
desvendar a origem da alienação e com ela a origem da desigual- apenas encontra uma via para que senhores benevolentes sejam
dade é o movimento que o deixa prisioneiro no interior de seu bem servidos por alegres trabalhadores. Malgrado seu fracasso,

porém, o Contrato Social e Clarens exprimem o desejo de unir


homens que a sociedade apenas reunira. O desejo de união, subs-
tituto final para a indivisão originária, tenta realizar-se restaurando
a visibilidade e a presença dos homens uns aos outros através da
ei, da festa e do labor cotidiano. Porém, a Lei, no Contrato, a
festa e a alegre labuta, em Clarens, não podem apagar o rastro
da sociedade nascida da guerra e a lembrança da origem não re-
INTRODUÇÃO
dime o presente. Primado do ético sobre o político, do genealó-
gico sobre o histórico, do arqueológico sobre o revolucionário, o
discurso sobre a desigualdade ruma para a desarticulação do erga:
rio: é grito parado no ar..
Paciente meditação sobre o drama do homem alienado, ai
“Não se trata de conser-
livro não só amplia os horizontes da leitura da obra de Rousseau,
var O passado, mas de
como ainda os ultrapassa: a sombra de Marx desenha-se vagaro- realizar suas esperanças.”
samente no transcurso dessas páginas e um novo discurso se anun- (Adorno)
cia para além do desencanto e da culpa que atormentaram Jean-
Jacques. O contra-discurso sobre o presente volta-se para o passa-
do apenas para ganhar impulso, pois, longe de estancar-se num Como as paixões, alterando-se insensivelmente, mudam de
grito, prepara-se para um salto em pleno ar. Ei-lo na epígrafe esco- natureza; por que as carências e desejos mudam de objeto; por que,
lhida pela autora: “Não se trata de conservar o passado, mas de à medida que Homem Natural se apaga, a sociedade só revela ao
realizar suas esperanças”. olhar a reunião de homens artificiais e paixões fictícias?
A preocupação do Discurso se faz sentir em seus avanços
e recuos, em seus acordes e pausas, sob cada signo obscurecido
e cristalizado pelo olhar desnaturado. Existiria uma perversão
Marilena de Souza Chaui inscrita já na própria origem? O claro-escuro do Discurso impede
Universidade de São Paulo, julho de 1977 a visão, e o que transparece, desaparece. Dever-se-ia colocar a ques-
tão de outra forma, para recuperar “o ser mais quimérico e mais
extravagante que só o delírio inventa”. O Discurso é uma obra
solene!; dedicatória, prefácio, evocação que percorremos lenta-
mente, como se Rousseau quisesse exprimir, pelo símbolo, o es-
paço que nos separa do começo primeiro. De sua Genebra, passa
à evocação de Platão e da Academia de Atenas, para deixar surgir
finalmente a floresta primitiva — de onde decorreria toda a his-
tória: “Ó homem, de qualquer região que sejas, quaisquer que
sejam tuas opiniões, ouve-me: eis tua história, como acreditei tê-la

1. A expressão é de Starobinski, in Jean-Jacques Rousseau, La Trans-


parence et "Obstacle.
!8 19

lido, não nos livros de teus semelhantes, que são mentirosos, mas tempos, fazendo emergir, da penumbra, o homem primitivo: co-
na natureza que não mente nunca”.? Para reencontrar esta natu- meçam então a configurar-se sua solidão indolente, seus desejos
reza, será preciso fazer apelo a um olhar que seja ao mesmo tempo e carências satisfeitos pela Natureza, num equilíbrio anterior ao
audição e fala, isto é, silêncio, na dimensão em que o homem natural Devir abstrato do tempo. Aqui trata-se de saber o que é que pode-
vive; diante da natureza diversificada, apenas o olhar (que lhe é ria ter degradado a origem, desenvolvendo todos os recursos da
coextensivo) pode escutar e compreender. “O olho escuta e fala.” perfectibilidade do homem, subordinando-o à temporalidade, fa-
Aqui domina o mesmo silêncio que existe entre os “povos zendo-o, de uma só vez, sociável e mau, sábio e escravo das apa-
felizes” onde não existe opressão, onde a Vontade Geral não tem rências, senhor da natureza ao preço de seu próprio desriaturamento,
necessidade de tomar a palavra porque o Estado é sua própria “A primeira fonte do mal é a desigualdade”, diz Rosseau
palavra, pois não existem interesses contraditórios. A Arqueologia numa resposta ao Rei Estanislau”. A Arqueologia aparece encar-
busca a ruptura deste silêncio e a instauração deste outro silêncio regada de “cavar até a raiz” a desigualdade de onde provém o mal;
— que se torna signo — em nada semelhante ao anterior: o signo neste sentido o “Segundo Discurso” é taxativo, o mal não reside
atual não mais pode ser mudc, como no momento em que perten- na natureza humana mas nas estruturas sociais. O ponto crucial
cia ao discurso da natureza; o sujeito acaba por ser tomado intei- da análise será a “propriedade privada”, ou seja, as origens do
ramente no “discurso do outro da natureza” (a cultura) que lhe Estado de Guerra do qual resulta um “projeto refletido” que “põe
impõe q silêncio. fim ao estado de natureza ao fixar esta lei de propriedade”. ,
A obra se erige entre dois silêncios que se escapam mutua- O itinerário seguido pelo “Segundo Discurso” indica as dire-
mente, o do homem natural e o do homem civil. Neste estado ções que o tema da Desigualdade tomará nos outros textos de
Rousseau diz: “Ouço ao longe os gritos de alegria de uma mul- Rousseau, tornando possível a explicação do que permanece “eva-
tidão insensata; vejo construírem-se palácios e cidades; vejo nas- sivo” ou “ausente” nas respostas do Discurso. No entanto, a com-
cerem as artes, as leis, o comércio; vejo os povos formarem-se, espa- preensão da obra exige, preliminarmente, um silêncio sobre o sis-
lharem-se, dissolverem-se, sucederem-se, como as ondas do mar; tema: “Antes de falar do sistema de Rousseau ou da estrutura
vejo os homens reunidos em alguns pontos de seu território para de neu toxto, é preciso ter-se tentado apreender no ato suas hesi-
aí se devorarem mutuamente e transformarem o mundo num hor- Lações, suas escolhas, sous arrependimentos, em suma, os momentos
rível deserto”? A partir do dia em que “o equilíbrio em repouso” de sua Hbordade, o proteger-se de qualquer simplificação retrospec-
da natureza foi rompido, a história do homem não deixou de ser a tiva, de qualquer ilusão anacrônica, Se existe estrutura ou sistema,
procura obstinada de um centro de gravidade imponderável, que pensamos, como se tivéssemos chegado ao meio ou ao coração
se desloca a cada instante, agravando, assim, cada vez mais, o de- de nossa pesquisa, que esta estrutura ou este sistema é o fruto
=.

sequilíbrio. curioso de um proceso no qual os acasos da História e as escolhas


O reencontro da natureza será a única alternativa a tornar livres de um homem desempenharam um grande papel: acasos e
possível a leitura de um mundo que há muito se fez ilegível, estra- escolhas livros inoaporados, imprevisíveis de qualquer forma, apesar
=

nho a seu próprio sentido, e no fundo do qual o homem aparece co- da tentação de reduzilos a esquemas satisfatórios ao espírito”.é
como uma personagem errante. Rousseau se refugia na memória dos Sigamos estos passos: Launay conta uma história, a da ela-
boração do pensamento político de Rousseau, sua ligação a um
“melo social historicamente definido” — a classe dos artesãos de
—e po

2, Jean-Jacques Rousseau, Discours sur VOrigine de V'Inégalite, p. 40,


Ed, Garnier, 1962, Paris,
4 A, Grosrichard, in Cahier pour "Analyse, n9 8, p. 43, Ed. du Seuil. 5, Oeuvres Complótes, Correspondance, t. HI, p. 49.
4 Essa sur POrigine des Langues, p. 208. 6. Michel Launay, Jeanvacques Rousseau, Ecrivain Politique, p. 7/8.
20 21

E
Genebra — que toma consciência de si, de seus interesses e da ma- mas de uma “espécie de instinto”, não da reflexão, mas de “certa
neira pela qual poderá realizar-se no começo do século XVIII; espécie de reflexão”, não da primeira associação, mas de “certa

NS
mostra a gênese da obra, seu percurso, sua periodização, na qual espécie de associação livre”, não, finalmente, da propriedade, mas
tendências contraditórias se exprimem, como se pudessem ser 'de uma espécie de propriedade” ”.?
complementares: “A tensão revolucionária do “Segundo Discurso” Neste sentido, pode-se compreender porque no Discurso
que é um eco enfraquecido da febree dos tumultos que reinavam, a Revolução não é o indício de uma nova justiça. Nele há uma

TD
então, no reino de França, é contrabalançada pela prudência bur- verdadeira imobilidade no mal, em tudo oposta à imobilidade
guesa do artigo “Economia Política”, sem que uma contradiga for- que caracterizava a inocência primitiva. No Discurso não se trata
malmente a outra; é o sentido global e o tom geral de cada uma nem de um apelo ném de uma esperança: não se trata da “supe-
das duas obras que mostram a hesitação e a reviravolta de um pen- ração deste destino”, não se trata da conquista da liberdade civil,

E PD
samento que deve, de agora em diante, dar conta de duas fide- da qual falaria o Contrato Social. Só aparecem nele “curtas e fre-
lidades opostas”.” quentes revoluções”, que levam à anarquia. “Os povos, uma vez
Para Launay, a unidade da obra se encontra preservada mes- noostumados a senhores, não podem mais dispensá-los: se procu-
mo na expressão de seu tema maior: a “Propriedade” é condenada ram abalar o jugo, afastam-se ainda mais da liberdade, pois. con-

DE
no “Segundo Discurso”, sem que tal condenação seja radical. É tundemna com uma licença desenfreada, e sua revoluções entre-
progressivamente que os “bens” tornam-se independentes do ho- paMNOS quado sempre a sedutores que só agravam as suas corren-
mem e contribuem para sua alienação final; o “Segundo Discurso” tom: ora, considerando apenas (...) a instituição humana, se o magis-
não faria aparecer como contraditórios os “bens” e a “liberdade”,

O
trado, que tem todo o poder nas mãos e se apropria de todas as van-
mas assinalaria apenas a anterioridade essencial da liberdade com tagona do Contrato, tivesse o direito de renunciar à autoridade, com
relação à propriedade: “podem-se alienar os bens e os direitos de

O VN
muito mala razão deveria o povo, que paga todos os erros dos che-
propriedade, produzidos por um trabalho livre, mas não se pode fon, ter direito de renunciar à dependência”? O que resta é so-
alienar a propriedade que é a unidade e a essência do homem, sem mento a possibilidade de uma renúncia a uma dependência que,
“degradar seu ser” e destruir-se a si mesmo. É ao final de um longo alida, não é explicitada, No extremo da decadência moral, a hu-
processo que a propriedade criada pelo homem livre volta-se con- mandado é inoapas de escapar À desordem e à violência. Rousseau

SS
tra a liberdade”* heomita como se faria a passagem de uma “sociedade anterior”
De nossa parte, procuraremos não apenas apreender a coe- numa sociedade “perfeitamente justa”? O Contrato se lança nesta
rência do pensamento, mas também seus limites. Launay observou: busca, Mas como ler o Contrato?
o “Segundo Discurso” não termina pela insurreição; as hesitações, Megundo Althusser, esto pode ser lido de duas maneiras:
ambiguidades e contradições manifestam a possibilidade de uma somo antecipação de uma teoria da moralidade e como teoria do
“traição de classe”, uma recusa em aprofundar o “impreciso”, em Povos “A primeira pronuncia seu nome em certas fórmulas já kan-
E
PN

forçar a “prudência”: que a cada instante se revela no Discurso por Hamas (a liberdade como obediência à lei que cada um se dá, etc.);
seus “pour ainsi dire”, “à peine”, “presque”, “quoi qu'il en soi”,.
cos

no segundo caso, o Contrato é a antecipação de uma teoria do


“quelque”, “plutôt”, Rousseau fala protegido por um discurso Povo, como totalidade, momento do Espírito Objetivo, de que
que pretende denunciar; Rousseau “fala, pois, não da primeira so encontram as determinações fundamentais em várias ocasiões
sociedade, mas de uma “espécie de sociedade”, não de instinto, (as condições históricas de possibilidade do Contrato, a teoria dos

ce —e——. — a

7 Launay, op, cit, po 8, 9, Launay, op, cit, p. 207.


H. Idem, op. clt, po 8, 10, Rousseau, D.O.1,, idem, p. 27.
22 2s

costumes, da religião, etc.). Nos dois casos, o objeto filosófico Não trataremos, pois, da unidade da obra, trabalho, no es-
Contrato Social fracassa em sua função originária. Nem a morali- sencial, já desenvolvido” ; procuraremos ver como, no interior do
dade kantiana, nem o povo hegeliano são constituídos por um “Segundo Discurso”, a análise da alienação não culmina num pro-
Contrato. Basta, aliás, ler Rousseau de perto para ver que seu Con- jeto de desalienação, mesmo quando se faz vir em seu socorro
trato não é um contrato”.!! toxtos exteriores. O tema “alienação”, que coexiste na proprie-
A História pela qual começaria o Contrato — a alienação da dade e no trabalho, dá um status à propriedade. Aqui está o impor-
Vontade de todos nas mãos de todos, o que substituiria o “isto é tante: o trabalho legitimaria a propriedade? Vários autores fala-
meu” — não resolve a situação da desigualdade. Nosso trabalho ram, diz Rousseau no Discurso, do direito natural de cada indiví-
indicará, apenas, de que maneira as questões suscitadas pelo Dis- duo de conservar o que lhe pertence, mas sem explicar o que enten-
curso são resolvidas ou contornadas, como se faz o confronto dem por “pertencer.” Deste ponto de vista, compreendemos que
entre a Origem e a Desigualdade. A Origem encontra-se pelo e no não se trata apenas de observar a condenação expressa da “pro-
imaginário que, em sua transparência, salva-a ou deserda defini- priedade privada” para a ultrapassagem do mal. É preciso veri-
tivamente o homem; a alma humana degenerou, desfigurou-se ficar seu estatuto no “Segundo Discurso”, no qual notamos que
quase que inteiramente, sem poder reencontrar sua beleza primi- falta à propriedade um fundamento histórico, o único que permi-
tiva — ou então, a deformação representa, antes de mais nada, tiria a “passagem dialética das contradições”, conso Engels a consi-
uma ocultação: a natureza primeira subsiste, mas escondida; sob derava. Rousseau hesita sempre entre “formar um homem ou um
a mortalha dos artifícios, a origem permanece, como sempre, in- cidadão”, como bem o mostrou P. Burgelin!*. Assim, vemos que
tacta, Teses defendidas por vezes alternativamente, por vezes si- “a negação da negação não é necessariamente uma afirmação e o
multancamente, esquema reenvia antes a uma ambiguidade que a uma dialética” !S,
De qualquer modo, afastamo-nos de F. Engels, que vê no Ê que, no interior do Discurso, o sonho de Rousseau não poderá
Anti-Dihring um caminho dialético desde o Discurso — onde o realizar-se; “Teria desejado nascer em um país no qual o Soberano
homem vive isolado para Ser feliz passando pelo Emílio — que e O povo não pudessem alimentar senão um único e mesmo inte-
deverá alcançar uma certa idade para ter acesso à vida social, até renso (,,,) O que não poderia suceder, a menos que o povo e o sobe-
o Contrato Social, momento de síntese em que Emílio é um gel- rano sejam u'a mesma pessoa”, !º
vagem feito para viver na cidade. Bento Prado Jr. mostra que es- A trama terminará numa dimensão insituável, onde a ques-
ta “unidade” não se encontra na permanência dos mesmos temas tão da propriedade perde seu território, saindo da História — atopia
e obsessões “pois a unidade da obra não é, com efeito, a mesma dos Devaneios, onde se sonha a plenitude e a transparência. A
coisa que a unidade do pensamento”!2, A unidade seria encontrada, contradição permanece sempre com a impossibilidade de que a
de preferência, na maneira de ler Rousseau: “A aparência de desor- análise da desigualdade se supere na noção de exploração. Seria
dem e a ilusão de contradição, denunciadas já por Rousseau, podiam necessário uma outra existência “em que seria, eu mesmo, sem
na realidade ser o efeito de uma leitura que ignora a organização contradição (...). Sim, sem dúvida, é preciso que eu tenha feito
retórica da obra, a maneira pela qual esta se dispõe a um auditó- sem que percebesse um salto da vigília ao sono”!”,
rio particular” .!?
*, C£. P, Burgelin, La Philosophie.de Existence de Jean-Jacques Rous-
seau,, p. 9 e suas orientações bibliográficas.
11, Cahiers ..., idem, p. 21. 14, Burgelin, op. cit.
12. Revista Discurso, n9 3, p. 42, Órgão Oficial do Departamento 15. Bento Prado Jr., Revista Discurso, idem, p. 43.
de Filosofia da PPC, da U,S.P,., 1972. 16, Rousseau, D.O.Z., idem, p. 126.
13, Idem, p, 52, 17. Rousseau, Troisiême Dialogue, p. 291/2 — Bibliothêque de Cluny.
| CAPÍTULO I

O SILÊNCIO E A ORIGEM

“Dão-nos gravemente por Filosofia os sonhos de


algumas noites mal dormidas. Alguem me dirá que
sonho também. Concordo. Mas O que Os outros
não se importam em fazer — eu dou meus sonhos
por sonhos, deixando buscar se têm algo de útil
às pessoas acordadas.”
(Emílio)

A = O Visível e a Natureza: a Presença e a Igualdade,

“Todos os filósofos que examinaram os fundamentos da


sociedade, sentiram a necessidade de recuar até o estado de natu-
reza, mas nenhum deles chegou até lá”!
No prefácio do Discurso sobre a Desigualdade, quando Rous-
seau procura reconstituir o estado de natureza, refere-se a ele como
um estado ao qual o homem não mais pertence, que não existe mais,
que provavelmente nunca existiu e nem virá a existir, e na primeira
versão do Contrato Social (1756) diz que a idade de ouro foi sem-
pre um estado estranho à natureza humana. A descrição do homem
natural não será uma verdade histórica, mas a condição hipotética

1. Rousseau, D.O.I., idem, p. 132.


26 27

que poderá iluminar a natureza essencial do homem. Quais as expe- (...) da linguagem entre os homens dispersos”. Na relação gesto-
riências necessárias para se chegar a conhecer o homem natural palavra, o gesto não é somente um acréscimo aritificial, mas o
e quais os meios para realizá-las no seio da sociedade?” Rousseau recurso a um signo mais natural e expressivo, mais imediato: “Em-
não aponta nenhuma solução à dificuldade mas propõe direções bora a língua do gesto e a da voz sejam igualmente naturais, con-
para abordá-la. Uma delas consistirá na observação dos animais tudo a primeira é mais fácil e depende menos de convenções: pois
em seu meio natural; poder-se-ia também estudar o homem selva- mais objetos atingem os nossos olhos do que os nossos ouvidos,
gem — tendo sempre presente que este já vive em sociedade e, e as figuras têm maior variedade do que os sons” .*
portanto, apresenta-se já distante do seu estado natural; não é mais Na linguagem tudo é complementar: a idéia de “substitui
o “homem natural”, mas a ele se assemelha no físico e no moral, ção” precede a oposição entre a natureza e a cultura, pois existe
apesar da alteração dos seus traços gerais pela vida social. um substituto (suplemento) que pode ser natural (o gesto) e arti-
A força do selvagem, a acuidade de seus sentidos, sua nudez, ficial (a palavra). À palavra (ela própria substituto do gesto) pode-se
sua despreocupação, suas paixões indolentes, sua diferença com acrescentar o gesto visível; neste movimento de suplementaridade
relação ao futuro, tudo isto permitirá a Rousseau reconstituir o encontra-se a origem das línguas.
homem tal como devia ser quando “saía da natureza”. É O homem deixa-se anunciar a partir desta suplementaridade
No estado natural domina o “silêncio da origem”, no qual que não é nem um atributo acidental nem essencial. É o jogo da
não há nada a dizer, onde a natureza é a única existência — lingua- presença e da ausência; é a impossibilidade (e portanto o desejo)
gem silenciosa dos gestos, onde a. própria voz é muda pois não - da presença pura*. “Desde que aprendemos a gesticular, esque-
representa a natureza mas identifica-se a ela. Este silêncio “ruido- cemos a arte das pantomimas pela mesma razão que, contando
so”, rico de expressão, é o silêncio do selvagem: “A primeira lin- com tantas belas gramáticas, já não entendemos os símbolos dos
guagem do homem, a linguagem mais universal, mais enérgica, e egípcios. O que os antigos diziam com mais vivacidade não era
a única de que teve necessidade antes de precisar persuadir homens expresso através de palavras, mas de signos. Não o diziam: mos-
reunidos, é o grito da Natureza (...). Quando as idéias dos homens travam-no ”$
começaram a se difundir e a se multiplicar, e entre eles se estabeleceu O que os antigos mostravam era a metáfora hieroglífica,
uma comunicação mais estreita, procuraram signos mais numerosos isto é, o signo visível, É no mesmo sentido que o tratamento do
e uma linguagem mais extensa: multiplicaram as inflexões da voz visível aparece na Nouvelle Héloise: “depois de ter passeado nas
e juntaram-lhes os gestos que, por sua natureza, são mais expres- nuvens, eu chegava”, diz Saint-Preux, “a um recanto mais sereno
sivos e cujo sentido depende menos de uma determinação ante- de onde se vê, na estação própria, o trovão e a tempestade for-
rior”.?! Mais universal, a linguagem do gesto depende menos de marem-se abaixo de si... Foi aí que destaquei sensivelmente, na
convenções; o gesto supõe uma distância, um “meio de visibili- pureza do ar em que me encontrava, a verdadeira causa da mu-
dade” e perde sua eficácia quando o excesso de distância ou de dança de meu humor e da volta desta paz interior que eu perdera
mediações interrompe a visibilidade. “A ação do movimento”,
diz Rousseau, “é imediata pelo tocar, ou mediata, pelo gesto: a
primeira, tendo por termo o comprimento do braço, não pode 4,EB.0,L., idem, p. 150.
transmitir-se à distância; mas a outra vai tão longe quanto o ângulo 5. Rousseau, id, ibid., p. 152.
de visão. Assim restam apenas a visão e a audição, como órgãos *, “É preciso notar”, diz Starobinski, “que o estado de natureza não
é um imperativo moral, não é uma norma prática a qual seríamos convidados
a nos conformar: é um postulado teórico, mas que recebe uma evidência
quase concreta, pela virtude de uma linguagem que sabe dar ao imaginário
2. Rousseau; idem, p. 35. todas as características da presença”. (T. et O., p. 344/5.)
3, Rousseau, idem, p. 53, 6. Rousseau, id., ibid., p. 152. .
28 29

há tanto tempo”.” A limpidez do ar e a intensidade das formas Mas a que distância encontra-se o homem em relação à visi-
não são um atributo da paisagem mas uma “qualidade do olhar”, bilidade perdida? Qual é a espessura que os separa, qual o espaço
que de um só golpe faz desaparecer a opacidade do ar e o obstá- a ser transposto para reencontrá-la? Pois se a natureza expulsou
culo entre os homens. Segundo Starobinski*, a Nouvelle Héloise o homem e a Sociedade persiste em oprimi-lo, deve haver ao menos
propõe um devaneio prolongado sobre a transparência e o véu. uma forma de inverter a questão a seu favor, procurando-se a “so-
Desde o início do romance, a descrição da montanha, va- ciedade da natureza” para meditar sobre a “natureza da sociedade.”*
laisanne adquire a significação de uma paisagem liberada do véu, Para isto, torna-se necessário partir em busca das origens; o
desvendada aos olhos: “Imagine a variedade, a grandeza, a beleza homem pode chamar-se homem e excluir seu outro do jogo da
de mil grandiosos espetáculos; o prazer de só ver ao redor de si “suplementaridade”, quer dizer, recuperando a “primitividade”
objetos inteiramente novos, pássaros. estranhos, plantas exóticas da natureza, da animalidade, da infância e da loucura: “Pois como
e desconhecidas, de observar de uma certa forma uma outra natu- conhecer a fonte da desigualdade entre os homens, se não se come-
reza e de encontrar-se num novo mundo. Tudo isto provoca nos çar por conhecer a eles mesmos (...). Semelhante à estátua de Glau-
olhos uma mescla inexprimível, cujo encanto aumenta mais pela co, que o tempo, o mar e as intempéries tinham desfigurado, e a
sutileza do ar que torna as cores mais vivas, os traços mais mar- tal ponto que se assemelhava mais a um animal feroz do que a um
cados, reaproxima todos os pontos de vista; as distâncias parecem deus, a alma humana alterada no seio da sociedade por milhares
menores do que nas planícies onde a densidade do ar cobre a terra de causas sempre renovadas, pela aquisição de uma multidão de
com um véu, o horizonte apresenta aos olhos mais objetos do conhecimentos e de erros, pelas mudanças que se dão na cons-
que parece conter; esquece-se tudo, esquece-se de si mesmo, não tituição do corpo e pelo choque contínuo das paixões, mudou
se sabe mais onde se está”.? É a transparência que faz reinar uma por assim dizer de aparência, a ponto de se tornar quase irreco-
atmosfera mágica: o mundo parece mais vasto e simultaneamente nhecível (...); é fácil ver que nessas mudanças sucessivas da cons-
tudo se torna mais próximo, pois a “infelicidade da distância das tituição humana é que se deve procurar a origem primeira das
coisas atenua-se” diferenças que distinguem os homens”.!!
A Botânica, em Rousseau, é também o domínio da transpa- É pela linguagem que Rousseau pode marcar, acentuar e
rência e da visibilidade e erige-se em símbolo da inocência perdida radicalizar os traços do homem no estado puro de natureza. Neste
na História. “O mal”, diz Bento Prado Jr., “desenhou-se quando sentido, o Ensino sobre a Origem das Línguas quer reconstituir
algo escapou à publicidade dos olhares, quando o homem voltou-se o movimento pelo qual os homens “esparços sobre a Terra” são
sobre si mesmo, cavando um espaço privado e secreto: o mal está arrancados de seu estado primitivo; e é assim que Rousseau pode
do lado das trevas e do invisível. Já que nenhuma câmara secreta escapar ao “erro dos filósofos” que projetam no homem primiti-
se esconde sob esta fina película que é a superfície da planta, a vo a imagem deformada do homem que vive em sociedade, que
consciência pode abandonar-se às aparências e coincidir nova- fazem da sociabilidade e da linguagem os critérios da humanidade,
mente com as suas sensações”.!º impondo limites à natureza. Para Rousseau, quando Hobbes esta-
belecia o estado de natureza como estado de guerra, de violência

7. Rousseau, Premiere Partie, Lettre XXIII, Pléiade, O.C. II, p. 78. " Enta soria, segundo Lévi-Strauss, a mensagem indissolúvel do Con-
8, InT et O, p. 102. trato Soclal, das Cartas Sobre a Botânica e das Réveries. (In Jean-Jacques -
9. Rousseau, La Nouvelle Héloise, cit. Starobinski, idem, p. 102. do “Fundador de las Ciências del Hombre”, Presencia de Rousseau,
10, Revista Tempo Brasileiro, n9 15/16, p. 78, Rio de Janeiro, Gua- p. 16). :
nabara, 11, Rousseau, DO, Idem, p, 34,
30
al
e de angústia, não fazia outra coisa senão dotar seus “homens
naturais” de qualidades propriamente sociais. Ao confundir o O homem natural é uma totalidade, é o “inteiro absoluto”,
homem natural com o civilizado (ou mesmo com o “selvagem”), a unidade com relação a si mesmo, e só pode ser reportado a si
Hobbes amplia para a idade primitiva o que só é verdadeiro na mesmo ou a seu semelhante; o homem social é somente uma “uni-
sequência da História: “O grande dade fracionária”, que só tem sentido relacionado a um denomi-
defeito dos europeus é filosofar
sempre sobre a origem das coisas segundo o que se passa ao seu nador comum e cujo valor encontra-se em sua relação ao inteiro
redor”.!?2 que é corpo social; “as boas instituições sociais são as que da melhor
O que Hobbes via no começo dos tempos, Rousseau vê no maneira conseguem desnaturar o homem, retirar-lhe a existência
fim: o reino do egoísmo. Rousseau se dirige à natureza do homem: absoluta para dotálo de uma relativa, e transportar o eu na uni-
“Nascemos sensíveis e, desde o nascimento, somos afetados de dade comum; de tal forma que cada particular não se acredite
diversas maneiras pelos objetos que nos cercam. Desde que co- mais uno, mas parte da unidade, e seja apenas sensível no todo”.!?
meçamos a ter, por assim dizer, a consciência de nossas sensações, O estado de natureza é apresentado como historicamente
estamos preparados a procurar ou a fugir aos objetos que es pro- anterior ao estado civil. A natureza é este “grau zero” da História
duzem; primeiro, conforme sejam agradáveis ou desagradáveis;
onde o homem natural “silencioso e estúpido” age, no entanto,
em seguida, conforme a conveniência ou inconveniência que en- como homem. Este homem não tem História, encontra-se entre
contramos entre nós mesmos e estes objetos e, finalmente, con- os animais, é para o outro como para si próprio, sem consciência
forme os juízos que construímos e sem memória, sem vícios, sem virtudes, sem razão. É preciso
sobre a idéia de felicidade ou
de perfeição que a razão nos dá. Estas disposições se ampliam sair da História caso se queira tomar como ponto de partida a
ou se fortalecem na medida que nos tornamos mais sensíveis e imagem de um homem ainda próximo da “estupidez dos animais”;
mais esclarecidos; mas constrangidas por nossos hábitos, alteram-se é preciso “afastar todos os fatos”!S, pois estes são os traços his-
mais ou menos por nossas opiniões. Antes desta alteração, elas tóricos do homem e fariam com que parássemos na História; pren-
são o que em nós chamamos a natureza”.*? der-se aos fatos seria penetrar num domínio já afastado da origem.
A distinção entre homem natural e homem Para recuperá-la, Rousseau adota as narrações dos viajantes que
social faz apa-
recer a “natureza” como um absoluto — o homem natural não viveram entre os selvagens, apesar destes já estarem desnaturados,
poderia ser destruído no interior do homém social — de outra diferenciados pela cultura: mas encontram-se tão distantes de nós
maneira a educação do Emílio seria impossível.* que se voltarmos a olhar. em sua direção estaremos, ao mesmo
tempo, olhando em direção da origem. Por trás de homens co-
loridos por pinturas e plumas, o olhar des-cobre a imagem de um
12. Rousseau, E.0.L., cap. VIII, idem, p. 192. homem nu e solitário, cujos desejos não ultrapassam as necessi-
13. Emile, v. II, p. 6, Ed. Hachette. dades físicas. “Os únicos bens que conhece no universo são o ali-
*, Se tomamos a Nouvelle Héloiise, vemos que aconteceu muitas vezes mento, uma fêmea e o repouso; os únicos males que teme são
a Saint-Preux, nos instantes em que faz a sátira dos costumes parisienses,
a dor e a fome. Digo a dor, e não a morte; pois jamais o animal
evocar, com respeito às “almas fúteis e perversas”, certas reaparições impre-
vistas do “natural” que desarticula, no momento, a configuração dos há- saberá o que é morrer — e o conhecimento da morte, de seus terrores,
bitos e convenções sociais. P. Burgelin (in P.E.) mostra que a desnaturação é uma das primeiras aquisições
do homem, ao se afastar da condi-
é, na realidade, uma dualidade: o homem mundano compõe-se de um ser qão animal”!
profundo e de uma máscara sob a qual permanece escondido o primeiro,
sem no entanto apagar-se, Por esta razão, tem sentido o projeto de Rousseau:
“E, por assim dizer, a vida de tua espécie que vou descrever de acordo com
as qualidades que recebeste e que tua educação e teus hábitos puderam de- 14, Rousseau, Emile, Livre I, Ed. Garnier, p. 9.
it

pravar, mas que não puderam destruir”. (D.0O.I., idem, p. 140). 15, Rousseau, D.O.I., idem, p. 40.
16, Rousseau, idem, p, 49.
demo

JM
32 >

Rousseau articula a significação da origem (essência, pre- cente”. É ela que permitirá a restauração do “tornar-se cultura
sença, nascimento, renascimento) compreendendo as relações da natureza”.
entre o Ser e o Tempo a partir do “agora”. É por esta razão que A linguagem, a moralidade e a- razão são faculdades virtuais
o homem selvagem enfrenta a morte sem angústia; para ele o tempo. que se obtêm pela vida em sociedade, já que o ser que corre pela
é o presente, o presente sem espessura: “Sua alma que não é por floresta, que se alimenta de frutos, que luta contra os animais
nada agitada, entrega-se ao único sentimento da existência atual ferozes, que passa os dias sem história e que, talvez, impropria-
sem nenhuma idéia do futuro, por mais próximo que seja, e seus mente chama-se homem, não necessita disso para sobreviver; a
projetos, limitados por sua vista, se prolongam somente até o fim sociedade e a fala originam-se nele sem lhe ser, porém, essenciais
do dia. Tal é ainda hoje o grau de previsão do Caraíba: vende de ou constitutivas; o homem primitivo poderia ter atravessado toda
manhã o leito de algodão e vem chorar à noite para recomprá-o, a existência sem precisar nem de relações nem de comunicação.
por não ter previsto que precisaria dele na próxima noite”.*!7 O Emílio reforça esta idéia: “Enquanto só se conhece a necessidade
física, cada homem se basta a si mesmo; a introdução do supér-
O homem primitivo vive numa iminência: não é nem “natu-
fluo torna indispensável a repartição e a distribuição do trabalho;
reza” nem “sociedade”, já apresenta características distintas com
pois, embora um homem trabalhando sozinho ganhe apenas a
relação aos animais — é uma “quase sociedade”, “sociedade nas-
subsistência de um homem, cem homens trabalhando juntos ga-
nharão o suficiente para a subsistência de duzentos. Assim, quando
uma parte dos homens descansa, é preciso que o consenso dos
braços dos que trabalham supra a ociosidade dos que não fazem
nada” ** A desnaturação assinala o fim da independência do indi-
17, Rousseau, idem, p. 49-50, víduo, mas a socialização implica o desenvolvimento das “poten-
*, Para delinear a constituição original do homem, Rousseau volta-se clalidades” de sua natureza. Por entre as vicissitudes da História,
sobre si mesmo: “Comecemos, pois, por nos tornarmos nós mesmos, por o homem atualiza as suas faculdades virtuais, a linguagem, a mora-
entrarmos em nós, por circunscrever nossa alma com os mesmos limites
com que a natureza dotou nosso ser, comecemos, numa palavra, por nos
lidade, a razão; nos primeiros tempos, ao contrário (“chamo de
reunirmos onde estamos a fim de que, procurando nos conhecer, tudo o primeiros tempo”, diz Rousseau, “os da dispersão dos homens,
que nos componha venha, ao mesmo tempo, apresentar-se a nós. De minha seja qual for a idade do gênero humano na qual se queira fixar
parte, penso que aquele que conheceu melhor em que consiste o eu humano tal época”), os homens dispersos sobre a face da Terra só tinham
está mais próximo da sabedoria; e da mesma forma que o primeiro traço por sociedade a da família, por leis só as da natureza, por língua
de um desenho se compõe de linhas que o realizam, a primeira idéia do ho- ge pmmo mp

mem é de separá-lo do que não é ele”.!(Lettres à Sophie, VI, Masson, cit.


Burgelin, op. cit., p. 143). O estado de natureza é, antes de mais nada, uma
experiência vivida de que se tem uma visão direta: “liberto da inquietude
da esperança, e certo de perder assim pouco a pouco a do desejo, vendo
* É preciso observar que há, em Rousseau, a consideração do “homem
que o passado já não me era nada, procurava me pôr inteiramente no estado
da natureza”, “homem primitivo” e “homem selvagem” que tendem a con-
de um homem que começa a viver”. (Rousseau, Emile et Sophie, 0.C., III,
fundir-se, como se verá pela seqiiência dos textos. Nos três casos, o impor-
mação

p. 18, Ed, Hachette). Trata-se do retorno à presença das origens; no “coração”


tante é a representação da ausência de desigualdade e o momento da vida
isto se passa depois de cada “funesto acaso”, que pode recompor a vida:
indolente e em equilíbrio com a natureza (embora, a rigor, o homem da
depois da força divina que quis que o homem fosse sociável (no Ensaio sobre
natureza e o homem primitivo sejam os únicos a estar dispersos, sem ter
— —

a Origem das Línguas); depois que Rousseau foi derrubado por um “cachorro
nenhuma idéia de reunião: “quem não percebe”, diz Rousseau, “que tudo
dinamarquês” (“Deuxiême Promenade”); é o acordar que significa a volta
parece afastar do homem selvagem a tentação e os meios de deixar de sê-lo?”
à pura presença, sem antecipação, sem lembrança, sem nenhuma comparação
(D.O I., idem, p. 49).
ou distinção, sem articulação, Assim se apagam a memória e seus signos,
18. Emile, p. 240, Ed. Garnier.
tudo se torna natural na paisagem, tudo é visto pela primeira vez.

d
“34 35
só a do gesto e alguns sons inarticulados.'? Ou ainda: “parece, é
imediata, que só conhece o “particular”: “esta língua possuiria
a princípio, que os homens nesse estado, sem ter entre si qualquer muitos sinônimos para exprimir o mesmo ser em suas várias rela-
espécie de relação moral ou de deveres conhecidos, não podiam ções (...), a lógica está ausente dela, persuadiria sem convencer
ser nem bons nem maus, ou possuir vícios e virtudes, a menos e pintaria sem raciocinar”
2?
que se considere como vícios do indivíduo as qualidade capazes Esta linguagem dirige-se aos olhos e não à inteligência, pois
de prejudicar sua própria conservação, e virtudes aquelas capazes fala-se melhor aos olhos do que aos ouvidos: “vê-se mesmo que
de a seu favor contribuir”; neste caso, poder-se-ia cnamar de mais os discursos mais elogúentes são os que se compõem de maior
virtuoso aquele que menos resistisse aos impulsos simples da na- número de imagens e os sons nunca possuem maior energia do
ida bes que quando produzem o efeito das cores” 2? E Rousseau apela
No estado de dispersão da humanidade primitiva, não exis- para as mais antigas línguas orientais, onde não se pode encontrar
te nada que possa unir um a outro e nada também o subjuga: só nada de “metódico ou raciocinado”. São línguas vivas e figurativas,
se conhecia e se desejava o que se encontrasse ao alcance da mão, de não são “línguas de geômetras” mas “de poetas” pois não se co-
tal forma que, ao invés de aproximar o homem de seu semelhante, meça por raciocinar mas por sentir. O homem não inventa a pala-
suas carências afastavam-nos. E porque não experimenta nenhum vra para exprimir suas carências — seu efeito natural é o de sepa-
desejo de comunicação, não se sente separado do outro, nenhuma rá-los e não o de aproximá-los: “e foi preciso que assim se passasse
“distância metafísica” afastao do exterior — por esta razão o para que a espécie chegasse a se expandir e que a Terra fosse po-
estado primitivo é o momento da visibilidade absoluta: “supo-lo-ei voada; sem o que o gênero humano permaneceria amontoado num
conformado em todos os tempos como o vejo hoje, andando so- canto do mundo e todo o resto permaneceria deserto”.2?
bre dois pés, utilizando-se de suas mãos como o fazemos com as A origem das línguas está nas necessidade morais, nas pai-
nossas, levando o seu olhar a toda a natureza e medindo com os xOos que aproximam os homens: “não é a fome ou a sede, mas
olhos a imensidão do céu”.2! Assim, errante nas florestas, sem o amor, o Ódio, a piedade, a cólera, que lhes arrancaram as primei-
fala ou domicílio fixo, sem necessidade do outro e sem desejo ras vogos, Ou frutos não fogem às nossas mãos, é possível alimen-
de prejudicá-lo, o homem primitivo, sujeito a raras paixões, tinha taco com elos nem falar; porsegue-se em silêncio a presa de que
somente “sentimentos” e “luzes” próprias a seu estado; sentia queremos nos alimentar: mas para comover um jovem coração,
apenas necessidades verdadeiras, só olhava o que acreditasse ter para repolls um agressor Injusto, a natureza dita sinais, gritos, quei-
interesse em ver e, assim, nem a inteligência nem a vaidade de- mumes, lo as mala antigas palavras inventadas,
eis porque as pri-
senvolviam-se. meleas línguas foram cantantos o apaixonadas antes de serem sim-
Já no Ensaio, a linguagem e a sociedade são descritas no pleno metódia"PE
momento em que se formaram, antes de sua progressiva degrada- ota linguagem que não dá lugar nem ao cálculo, nem à re-
ção; a linguagem instituída conserva ainda um “canto puro”, por fondo, nem À comparação, é alnda uma “linguagem natural”, li-
ser uma língua de puro ritmo: já não é mais animal, pois exprime poda ds emoções, é uma língua comum a todos como a que “as
a paixão, e não é inteiramente convencional, porque escapa à arti- onançua falam antos do aprondor a falar”, “estudemos as crianças,
culação; e nem constitui uma linguagem analítica pois abando-
na-so à situação presente. As palavras calcam-se na experiência

22,80, Idem, p, 168,


19. B,0,L, idem, p, 194, 24 Idem, ibid, p, 156,
as

20, DO, Idem, p. 57, 24, Idem, ibid, p, 162,


21, DO, Idem, p. 41, 25, Rousseau, E,O,L,, Idem, p, 162.
pa
+
-—
J6 57

e logo nós a reaprenderemos com elas. As amas são os nossos mes- com cordas as suas roupas de pele, a enfeitar-se com plumas e con-
tres nesta língua; compreendem tudo o que dizem os bebês; res- chas, a pintar O corpo de várias cores, a aperfeiçoar ou embelezar
pondem-lhes, têm com eles diálogos continuados; e embora pro- nous arcos o (lochas, a talhar com pedras cortantes algumas canoas
nunciem palavras, tais palavras são inteiramente inúteis; não é o do pescador ou toscos instrumentos de música; em uma palavra,
sentido das palavras que elas compreendem, mas a acentuação de enquanto só se dedicaram a obras que um único homem podia
que são acompanhadas”.? é orar o a aros que não solicitavam o concurso de várias mãos,
O conceito de infância deve ser analisado sempre em rela- viveram to livros, sadios, bons e felizes quanto o podiam ser por
ção ao signo: isto quer dizer que a infância é a não-relação ao signo nua natureza”?
enquanto tal.* Para Rousseau, a criança é o nome daquilo que Esto d 0 momento da “quase sociedade”, da qual a cabana,
não tem nenhum significado caso se separe o significante do sig- a Unguagem dos gostos e sons Inarticulados são os indícios. A fa-
nificado, o que tornaria possível amá-lo. nele mesmo, como um mélia já existia, pola, mesmo antes do “tempo das festas e da apro-
fetiche. Deste ponto de vista, a infância é o estado de não-alie- nimação dos homens”, estes não nasciam da “terra”: “poderiam
nação absoluto — é o estado da presença que corresponde a este as porações sucedorem-se sem que os sexos se unissem e as pes-
“tempo feliz em que nada marcava as horas” do Ensaio, onde a sous so entendessem? Não: existiam famílias”,2º Nelas impera umã
associação não passa por tratados, leis ou representantes. O homem língua doméstica e cada qual basta a si mesmo e perpetua-se pelo
era seu próprio “servidor”, para ser “mestre” cada um era servido mesmo sangue; as crianças nascem dos mesmos pais, crescem juntas
por todos e o tempo passava sem ser percebido. É o tempo das 6 05 poucos encontram uma maneira de compreenderem-se. Havia
Rêveries, um tempo indiferenciado, sem intervalos ou desvios famílias afirma o Ensaio, mas não nações; havia línguas domés-
entre o desejo e o prazer, porque prazer e desejo confundem-se ticas é verdade, mas não línguas populares; “havia casamentos,
e sentem-se de uma só vez. mas não havia amor”.2º *

27. D.OI., idem, p. 72/73.


B — O Movimento das Paixões
28. E.0.L., idem, p. 220.
29, Idem, ibid. p. 220.
A separação entre o mestre e o servidor só se torna possí- * A família nascente encontra-se na origem da sedimentação social.
vel a partir da diferenciação temporal que permite medir o tempo im termos hegelianos, esta família pertence ao momento da pré-história
do homem: “A moralidade objetiva é a idéia da liberdade (...). O conceito
e simultaneamente atirar o homem fora do Presente. A sucessão desta idéia só é o Espírito como algo de real e consciente de si se for a ob-
dos “tempos” no Discurso será então retomada pelos conceitos jetivação de si mesmo, o movimento que percorre a forma de seus diferentes
de estado de natureza, estado selvagem e estado social. Nele Rous- momentos. Ele é: .
a) O Espírito moral objetivo imediato ou natural — a família, Esta
seau diz: “Enquanto os homens se contentaram com suas caba- substancialidade se dissipa na perda de sua unidade, na divisão
nas rústicas, enquanto se limitaram a costurar com espinhos ou e no ponto de vista do relativo; torna-se, pois,
b) sociedade civil, associação de membros que são indivíduos inde-
pendentes numa universalidade formal, através das necessidades,
pela constituição jurídica como instrumento da segurança da pessoa
e da propriedade e por uma regulamentação exterior para as neces-
26, Rousseau, Emile, p. 45, Ed. Garnier, 1962. sidades particulares e coletivas. Este estado exterior redunda e
* Derrida (in De La Grammatologie) diz que não existe signo en-
reúne-se na
quanto tal; um signo é considerado como uma coisa e não é mais um signo,
0) constituição do Estado, que é o fim e a realidade em ato da subs-
ou então ele é um “enviar”, uma mensagem e portanto não é mais ele mesmo. tância universal e da vida pública que se consagra a isso (...).
hr
38 39

A idade das cabanas já se encontra do lado da cultura, a Este período de desenvolvimento das “faculdades” do ho-
natureza já sofreu alterações, mas cada um continua a manter mem (linguagem, moralidade, trabalho) encontra-se a meio caminho
relações independentes. É a época da sociedade natural, sociedade entre a indolência primitiva e a degenerescência civil; por esta
nascente ou sociedade começada: “Na medida em que as idéias razão deve ter sido o momento mais feliz e mais durável — quando
e sentimentos se sucedem, que o espírito e o coração entram em a terra não era de ninguém e a colheita e a caça, atividades que
atividade, o gênero humano continua a domesticar-se, as ligações bastavam aos grupos — da qual só se saiu por um “funesto acaso”.??
se estendem e os laços se fortalecem”.?º E uma vez que se trata Rousseau diz que um imenso intervalo separa a perda da natureza
de uma verdadeira sociedade, a moralidade aparece significando, primitiva e o estabelecimento da sociedade civil* — e que a suces-
ao mesmo tempo, a “oportunidade de humanidade” e já “origem são destes estados não poderia ocorrer sem crises, ritmadas pelas
da perversão”: esta moralidade consistirá nos “primeiros deveres “Grandes Revoluções” do “Segundo Discurso”: “Forçados a se
de civilidade”. *Tudo isto se dá quando o homem. deixa de dormir | abastecer para o inverno, eis os habitantes levados a se socorrer,
sob a primeira árvore e começa a cortar a lenha e construir cabanas; obrigados a estabelecer entre si alguma espécie de covenção. Quan-
passa então a necessitar do socorro do outro, o que se encontra do as expedições se tornam impossíveis e o rigor do frio os detém,
na origem do estabelecimento e distinção das famílias. o tédio os liga tanto como a necessidade: os Lapões, enterrados
A idade das cabanas assiste à introdução de uma espécie nos gelos, os Esquimós, o mais selvagem de todos os povos, reu-
de propriedade de onde decorrem querelas e combates. Pois, “co- nem-se no inverno em suas cavernas e, no verão, nem se conhecem
mo os mais fortes foram provavelmente os primeiros a construir mais. Aumentai de um grau seu desenvolvimento e suas luzes, e
habitações que se sentiam capazes de defender, é de crer que eilos reunidos para sempre”. 33 O homem primitivamente ocioso,
os fracos acharam mais rápido e seguro imitá-los do que tentar sobredeterminado pelas “circunstâncias exteriores” descobre a
desalojá-los e, quanto aos que possuíam cabanas, nenhum deles necessidade e a eficácia do trabalho.
**
“certamente procurou apropriar-se da de seu vizinho menos por Sobrevém o que Rousseau chama a “Primeira Revolução” ***
não lhe pertencer do que por ser-lhe inútil e não poder apoderar-se — o período dos agrupamentos em família e da construção das.
dela sem expor-se a um árduo combate com a família que a ocu- comunidades. Quanto mais Rousseau reflete sobre ele e o recons-.
2231
pava . titui, mais acredita ser este o estado menos sujeito a conflitos, o
melhor ao homem, e do qual só saiu por um “funesto acaso” que
para o bem de todos não deveriam nunca ter ocorrido. Na idade

A família se realiza em três aspectos:


a) na forma de seu conceito imediato, como casamento;
b) na existência exterior: propriedade e bens da família e cuidados 32. Rousseau, D.O.I., idem, p. 72.
correspondentes; * A rigor, o estado de natureza só será definitivamente extinto no
c) na educação das crianças e na dissolução da família”. (Hegel, Prin- momento em que se estabelecerem as sociedades políticas com um governo,
cipes de la Philosophie du Droit, p. 189-197/8/9.
como mostraremos no decorrer de nosso trabalho.
30. Rousseau, D.0.I., idem, p. 69. 33. Rousseau, E.0.L., idem, p. 212.
*, “É preciso observar que a sociedade começada e as relações já esta- **, É preciso lembrar que num primeiro momento à associação per-
belecidas entre os homens exigiam deles qualidades diferentes das que con- manece ocasional, pressionada pelas necessidades, constituindo “grupos
servavam de sua constituição primitiva; que a moralidade, começando a anárquicos””, sem permanência, pois ao trabalho comum sucede a dispersão,
introduzir-se nas ações humanas...” (Rousseau, D.0O.I., idem, p. 72).
***, Esta “Primeira Revolução” não representa ainda a ruptura com
31. Rousseau, D.O.I., idem, p. 69. o estado de natureza.
40 41

das cabanas, o homem já perdeu sua ociosidade paradisíaca, caiu das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e
no estado de trabalho que começa a opô-lo à natureza; mas a eco- se encontra, entre nós, tanto na espécie quanto no indivíduo; en-
nomia que resulta é uma “economia de subsistência”* — o trabalho quanto que um animal é ao fim de alguns meses o que será por
não cria ainda valor. Foi Locke que o observou” explicitamente: toda a vida, e sua espécie no fim de milhares de anos o que era
vê como um “valor natural” de qualquer objeto o que tem a capa- no primeiro ano desses milhares. Por que só o homem é suscetí-
cidade de satisfazer as carências elementares do homem ou de vel de tornar-se imbecil? Não será porque volta, assim, a seu
servir à sua comodidade.** E Marx analisou-o: a utilidade de um estado primitivo e, enquanto o animal, que nada adquiriu e tam-
objeto converte-o em “valor de uso” e o que constitui seu “valor bém nada tem a perder, fica sempre com seu instinto — o homem,
de uso” — os bens — é sua própria materialidade independente- perdendo com a velhice ou outros acidentes tudo o que sua per-
mente do volume de trabalho necessárioà sua produção. O “valor fectibilidade lhe fizera adquirir, recai, assim, mais baixo que o
de uso” só se corporifica no momento de sua utilização ou do próprio animal? Seria triste vermo-nos forçados a convir que seja
consumo de um determinado objeto, isto é, o “valor de uso” é esta faculdade, distintiva e quase ilimitada, a fonte de todas as
“worth” e não “value” (este já é “valor de troca”, produção para infelicidades do homem; que seja ela quem, com o tempo, o ar-
a circulação num mercado). “Os valores de uso”, diz Marx, “formam ganca dessa condição original na qual passaria dias trangúilos e
o conteúdo material da riqueza qualquer que seja sua forma so- inocentes; que seja ela que, fazendo com que através dos séculos
cia?” 2º A “sociedade nascente” é, neste sentido, o momento desabrochem suas luzes e erros, seus vícios e virtudes, torna-o
do “valor de uso”, já que “a natureza é a fonte dos valores de com o tempo. o tirano de si mesmo e da natureza” *º
uso”,?5 Num segundo texto, Rousseau precisa o conceito — O ins-
Por que se passa de uma economia de subsistência a uma tinto de perfectibilidade encontra-se na origem de todas as trans-
economia de produção? O que leva Rousseau a afirmar que foi formações, mas para realizar-se depende de “fatores exteriores”.
o ferro e o trigo que civilizaram os homens e degeneraram o “gê- Isto por que Rousseau mostrara que no estado de natureza só
nero humano”? Quando os obstáculos e a adversidade obrigam existia um único estilo de desigualdade, a que chamou de natural
o homem, para sobreviver, a desenvolver todas as suas forças e. ou física, estabelecida pela natureza (diferença de idade, saúde,
Faculdades, percebe que, com relação ao animal, é ele que tem força corporal e diferença de qualidades do espírito ou da alma* ):
o poder de modificar seu estado e a si mesmo; da perfectibilidade “Depois de ter provado ser a desigualdade apenas perceptível no
derivam todas as outras faculdades, fonte das convulsões econô- estado de natureza, e ser nele quase nula sua influência, resta-me
micas e sociais, fonte das “luzes adquiridas” e fonte de todas as ainda mostrar sua origem e progressos nos desenvolvimentos su-
misérias: “Ainda quando as dificuldades que envolvem todas estas cessivos do espírito humano. Depois de ter mostrado que a per-
questões dessem algum lugar à discussão sobre a diferença entre fectibilidade, as virtudes sociais e outras faculdades que o homem
o homem e o animal, haveria uma outra qualidade específica que natural recebera potencialmente jamais poderão desenvolver-se
Os distinguiria e a respeito da qual não pode haver contestação por si mesmas, pois para isso necessitam do concurso fortuito
— é a faculdade de apefeiçoar-se, faculdade que, com o auxílio de Inúmeras causas estranhas, que poderiam nunca ter nascido
E sem as quais o homem teria permanecido eternamente em sua
condição primitiva, resta-me considerar e aproximar os vários aca-
*, A Expressão é da Starobisnki.
"4 In Some considerations on the Consequences of the lowering
of'interest, vol. II, p, 2, Ei
34. El Capital, p. 4, 46, DO, idem, p. 48.
35, Marx, Programme de Gotha, p. 6. * DOL, idem, p. 39.
42 43

sos que puderam aperfeiçoar a razão humana deteriorando a espé- a todo domínio desta espécie e aos “homens-animais”, Este ho-
cie, tornar mau um ser ao torná-lo sociável e, partindo de tão longe, mensanimais Unham uma vantagem com relação aos outros ani-
trazer enfim o homem e o mundo ao ponto em que o conhece- mais, à propriedade de aperfeiçonrem-se, de “evoluírem ulterior-
mos”.27 Os selvagens não são maus justamente porque não sabem mente” — e esta foi a causa da desigualdade; mas este progresso
o que é ser bom; e neles, não é nem o desenvolvimento de suas sendo antagônico era, 40 mesmo tempo, um recuo,
luzes nem a vigilância das leis o no impede o Mal, e sim a calma É verdade que no Emílio Rousseau afirma que apenas em
das paixões e a ignorância do vício.* sociedade o homem torna-se propriamente homem, que é a mo-
A “perfectibilidade” torna manifesto que as reliçes humanas ralidade que dá a humanidade, assim, há um “deslocamento”,
mudaram; num certo sentido, realiza-se “contra a natureza”, no na medida em que o homem abandona sua amoralidade original;
estado social, sob a influência das necessidades materiais. Ou seja, é pelo mesmo movimento que ele se sabe bom e torna-se mau.
as mudanças repondem a uma provocação vinda de fora: em certas Vemos, entretanto, que o progresso é mais ambíguo que dialé-
regiões o homem encontrou “anos estéreis, invernos longos e rudes, tico: “E preciso empregar muita arte para impedir o homem
verões ardentes” e em seu meio natural não conseguiu encontrar social de ser completamente artificial”, diz o Emílio. É pelo aper-
proteção segura, yendo-se forçado a sair de sua indolência primi- foiçoamento da cultura, por uma desnaturação mais avançada
tiva; a partir de então, passa a depender do exterior. E este ser que a concordância com a natureza poderá ser reencontrada; esta
que recebia os dons da natureza deverá conquistá-los — a adver- “segunda natureza” será um equilíbrio novo, agora esclarecida
sidade só será vencida ao preço de um esforço contínuo: é o tra- pela razão e garantida pelo sentimento moral que o homem des-
balho que obrigará o homem a organizar-se em sua luta contra conhecia antes. Em outros termos, a antítese entre a natureza e
os obstáculos. a cultura pode resolver-se em um movimento progressivo. É a filo-
Entendida como desenvolvimento de “potencialidades”, a sofia que Kant lerá em Rousseau.*
perfectibilidade é sinônimo de progresso, mas de um progresso que.
O Discurso não oferece estas perspectivas tranquilizadoras.
é “a perdição do gênero humano.”** Engels?º mostra, porém, Rousseau continua a procurar a origem da desigualdade e continua
que em Rousseau existe um progresso na emergência da desigual- 4 mostrar que pelo trabalho o homem se torna um ser histórico que
dade: no estado natural e selvagem os homens eram iguais e, como luta contra a natureza, opondo-lhe seu trabalho e degenerando-se
Rousseau toma a linguagém como alteração da natureza, tem razão medida em que se desenvolvem nele “novas luzes”; Rousseau
em aplicar a igualdade entre os animais de uma mesma espécie lembra sempre que no estado de natureza os desejos não ultrapas-
sam as necessidades físicas e a imaginação não se manifesta pois
nada agita a alma, só existe o sentimento da existência do mo-
mento, O trabalho que enfrenta as coisas evoca a reflexão e o ho-
37. D.O.I., idem, p. 65. mem acaba por tomar consciência de sua diferença: começa a com-
* D.O.I., idem, p. 58. pararse ao outro e esta comparação se encontra na origem da
w*, É interessante aproximar dois textos, um de Rousseau, outro de
Nietzsche, como propõe Burgelin (in P.E.): “Esta disposição para compa-
rar, diz Rousseau, que transforma uma paitão natural e boa em uma outra
factícia e má (.,.) provém das relações sociais, do progresso das idéias e da
cultura do espírito”, (Dialogues, IX, p. 197). E Nietzsche: “Os Europeus,
*,. “A natureza quis assim: o homem extrai de si mesmo tudo o que
praças a sua moralidade crescente, acreditam com toda inocência e vaidade ultrapama a ordem mecânica de sua existência animal, e não participa de
que se elevam, enquanto que, em realidade, declinam.” (Volonté de Puis- nenhuma outra felicidade ou perfeição a não ser a que ele mesmo criou por
sance, livro II, p, 227). sum própria razão, liberada do instinto”. (Kant, La Raison Pratique, textes
38, Anti-Dahring, p. 160 e ss. chotah),
4 45

uimos recu-
razão. Ao chegarmos neste ponto nem mesmo conseg
e cada vez nos afastam os mais desta dimensão:
perar as “origens”
cruel ainda é que, mais os progres sos da espé-
“O que há de mais
cie humana o distanciam incessantemente de seu estado primitivo,
meios
mais acumulamos novos conhecimentos, e mais retiramos os
sentido,
de adquirir o mais importante de todos, e que é num certo
estudar o homem que nos tornamo s incapaz es de co- CAPÍTULO II
à força de
nhecêlo” 2º É preciso examinar o porquê deste desvio.

A NATUREZA E O ARTIFÍCIO

“Começou-se por separar o homem da natureza


e por fazer dele um reino soberano, acreditando-se,
assim, que se apagava seu caráter mais irrecusável,
o de ser, antes de mais nada, um ser vivo. E fechan-
do-se os olhos a esta propriedade comum, abriu-se
caminho a todos os abusos.: Nunca como ao final dos
quatro últimos séculos de sua história, o homem
ocidental compreendeu que arrogando-se o direito
de separar radicalmente a humanidade da animali-
dade, entregando a um tudo o que se retirava ao
outro, abria um círculo maldito e que a mesma fron-
teira, constantemente deslocada para trás, serviria
para separar os homens uns dos outros e reivindicava,)
em benefício de algumas minorias cada vez mais
restritas, o privilégio de um humanismo corrompido
desde seu nascimento, por ter feito do amor-próprio
seu princípio e sua noção”!

A — O animal, o homem: a identidade

É preciso colocar a questão fundamental (originária) que o-põe


o estado de natureza ao estado civil e constitui o “abismo teórico”
da vida política. Rousseau não se interessa pela produção histó-
rica deste movimento, mas pela elucidação de sua natureza; em
outros termos, são os fundamentos que o “Segundo Discurso” está

39, DO, idem, p; 34, 1. Claude Lévi-Strauss, op. cit., p. 17.


47
46
estabelecimento do corpo político como um verdadeiro contrato
procurando — a verdade da origem não se confunde com a verdade
entre o povo e os chefes que escolhe, contrato pelo qual as duas
dos fatos. Por isso Rousseau começa por “afastar todos os fatos”
e continua lembrando: “Confesso que os acontecimentos que tenho partes se obrigam à observância das leis nele estipuladas e que
a descrever, podendo sobrevir de inúmeros modos, só por conjectu- formam os liames de sua união (...). Pois não se baseando a ma-
gistratura e seus direitos senão nas leis fundamentais, assim que
ras posso decidir-me na escolha. Mas, mesmo que essas conjecturas
estas fossem destruídas, os magistrados deixariam de ser legítimos
se tornem razões quando são as mais prováveis que se possam extrair
da natureza das coisas e os únicos meios que se possa ter para des- e o povo não mais estaria obrigado a obedecê-los, e como não
cobrir a verdade, as consequências que quero deduzir não serão era o magistrado, mas a lei, que constituíra a essência do Estado,
por isso conjecturais, porquanto, sobre os princípios que acabo
cada um de direito voltaria à liberdade natural”? O estado de
solidão está aquém do bem e do mal, que só podem ser definidos
de estabelecer, não se poderia formar nenhum outro sistema que
não me fornecesse os mesmos resultados e do qual não pudesse
pela ordem social. No estado de sociedade, porém, a miséria do
homem transparece na contradição entre seu estado e seus desejos,
inferir as mesmas conclusões” ?
entre seus deveres e inclinações, entre a natureza e as instituições
A descoberta de um método capaz de substituir a História,
sociais — em suma, entre o homem e o cidadão. A lei deve, assim,
vai ajudar “perigosamente” Rousseau: pois é necessário explicar
tornar o homem feliz fazendo-o uno, entregando-o inteiro ao Estado
a ordem social, “este direito sagrado que serve de base a todos
ou a si mesmo, pois “quando se divide o coração, o homem se
os outros. Tal direito, no entanto, não vem da natureza: funda-se,
dilacera”; o “programa” do Contrato é o de colocar a lei social,
portanto, em convenções. Trata-se de sabér que convenções são
estas, Antes de alcançar este ponto, devo estabelecer o que aca-
no “fundo do coração do homem”. O Contrato ainda não é a lei,
mas a sua possibilidade, a possibilidade de que se retome a lei natural
bo de adiantar”,” Trata-se de colocar o problema do Contrato
em função da natureza dos indivíduos, de suas forças e da mu- a partir de agora abolida, na dimensão da “decisão do homem”.
dança da maneira de ser dos homens.*
Só no Discurso é possível que o homem seja feliz em plena natu-
reza: “Se entendo bem o termo miserável,é uma palavra sem ne-
Viu-se que ao estado de indolência feliz e de repouso do
homem original opõe-se o ciclo das revoluções. Viu-se que para
- nhum sentido ou que só significa uma privação dolorosa e sofri-
o Rousseau do Discurso, o homem civil, corrompido e infeliz,
mento do corpo ou da alma. Ora, desejaria que me explicassem
qual poderia ser o gênero de miséria de um ser livre cujo coração
pervertido pela História e por seus próprios progressos, tem tudo
a cobiçar ao homem da sociedade primitiva de onde “nunca devia está em paz e o corpo com saúde”.º Na primeira vrsão do Contrato
ter saído”. Ou então, este “paradoxo inicial” permite denunciar Social, entretanto, Rousseau acentua o caráter de miséria do estado
de natureza. Para a compreensão desta passagem, é preciso notar
os males de que sofrem as sociedades fundadas sobre a desigual-
dade e preparar assim, através de uma crítica radical, a passagem que, neste momento, não se trata mais do estado primitivo do
à sociedade do Contrato: “Sem entrar, no momento, nas pesqui- homem, mas de um estado de natureza segundo, em que o homem
sas que ainda restam por fazer sobre a natureza do pacto funda- já está desnaturado mas não ainda socializado; deverá ainda atra-
vessar toda uma “história” antes de tornar-se “homem civil”. Daqui
mental de qualquer governo, limito-me (...) a considerar aqui O
decorre a distinção que deverá ser feita entre a “piedade natural”
tal como se exerce no estado de animalidade e a “piedade” que
desperta no Ensaio sobre a Origem das Línguas com a imaginação
2. D.O.I., idem, p. 65/66.
3. Du Contrat Social, I, I, p. 236. |
4, Rousseau, DO, Idem, p, 84/5,
*, Não se pode esquecer que toda a primeira parte do. D.0.I. descreve
5, Rousseau, idem, p, 56,
o estado de pura natureza, sem necessidade nem mesmo das línguas.
au 4Y

e à reflexão, aleições sociais que nos remetem necessariamente Para Rousseau este princípio é a piedade*: como o animal,
a um estado posterior, ao estado de razão.* E se Rousseau, só tar- o primitivo ama sem comparar-se e a piedade é a expressão desta
diamento vem a falar no Discurso do “direito natural” **, é justa- forma espontânea de amor: diante do sofrimento, o coração faz
mento porque é preciso refletir, antes de mais nada, sobre a natureza dele seu próprio sofrimento, sem no entanto ter a consciência
do homem a partir do estado de natureza, para conceber o que do outro. O Homem tem apenas uma simples “consciência” de
é a “mudança de sua maneira de ser”. Pois “como conhecer a fonte existir, sem limite, numa adesão imediata e total a si e ao outro,
da desigualdade entre os homens, se não se começar por conhecer sem conhecimento, sem esforço. Se podemos falar em “eu”, este
4 eles mesmos? E como o homem chegará ao ponto de ver-se tal não se encontra em nenhuma parte, nem em si, nem entre ele e
como o formou a natureza, através de todas as mudanças produzi- as coisas, não existe nenhuma dualidade de onde se delinearia a
das na sua constituição original pela sucessão do tempo e das coisas, inquietude, o mundo é seu prolongamento: o originário é indi-
e separar o que pertence à sua própria essência daquilo que as visão, o sentimento de existir ainda não implica a consciência,
circunstâncias e seus progressos acrescentaram ou modificaram não é “nem amor nem ódio”, já que o instinto físico (conservação
em seu estado primitivo?” de si ou da espécie) compreende uma temporalidade não vivida
E Rousseau diz que é o desconhecimento da natureza do como tal. A “integração do devir” é a primeira fissura nesta uni-
homem que torna obscura a “verdadeira definição de direito na- dade perfeita, transformando-a em identidade que se estende por
tural”, posto que a idéia de direito e sobretudo a de direito natural todos os momentos da existência e que traz em si o gérmen da
são manifestamente idéias relativas à natureza do homem; não se consciência. “Tal é o puro movimento da natureza, anterior a
deve confundir o que é natural no estado selvagem com o que é toda reflexão: tal é a força da piedade natural, que os costumes
natural no estado civil. Pode-se agora compreender como a noção mais depravados ainda tém dificuldade em destruir (...). É, pois,
de “natureza do homem” ultrapassa a noção do homem natural: bem certo, que a piedade é um sentimento natural que moderando
esta interessa enquanto deciframento da natureza do homem. em cada indivíduo a atividade do amor de si mesmo, contribui
A preocupação de Rousseau consiste naquilo que é conforme à à conservação mútua de toda a espécie **. É ela que nos leva sem
natureza em nosso estado atual, discernindo dentre nossas carac-
terísticas as que são naturais e aquelas que só representam excres- *, É preciso lembrar neste momento, que Rousseau tem uma dupla
concepção do estado de natureza: num primeiro sentido, já que o homem
cências ou desvios patológicos, neste sentido que a natureza se
não tem nenhuma espécie de relação moral, significa um estado aquém do
volta de certa maneira contra si mesma para “dividir e destruir”. - mal (“nem vícios nem virtudes”, dizia o D.O.I., p. 57); mas no segundo,
Por esta razão “convém destacar antes de mais nada um critério o hbmem é naturalmente bom: “Há um outro princípio (...) que, tendo
universal que é o princípio de natureza”.” . sido atribuído ao homem, em certas circunstâncias, para suavizar a fero-
cidade de seu amor-próprio ou o desejo de conservação antes do nascimento
desse amor, tempera com uma repugnância inata de ver sofrer seu semelhante,
o ardor que consagra ao seu bem-estar (...). Falo da piedade, disposição con-
veniente a seres tão fracos e sujeitos a tantos males como o somos; virtude
tanto mais universal e tanto mais útil ao homem que precede o uso de qual-
*, Encontram-se várias observações contraditórias a esse respeito. quer reflexão e tão natural que os próprios animais às vezes dão dela alguns
Housseau diz; “É um espetáculo belo e grandioso ver o homem sair por seu sinais perceptíveis”/ (D.O.L, p. 58.) I
próprio esforço, a bem dizer do nada: dissipar pelas luzes da razão as trevas ** “O amor de si mesmo é um sentimento natural que leva todo animal
nas quais a natureza o envolvia”. (Discours sur les Sciences et les Arts, A, . e velar pela própria conservação”. tD. O.I., p. 118.) Trata-se de um egoísmo
1,4), instintivo “que leva o homem a se conservar, a satisfazer suas necessidades,
*º [ato toma será desenvolvido no próximo capítulo. sem no entanto prejudicar a ninguém: o primeiro sentimento do homem
6. DO, idem, p, 34, foi o de sua existência, sua primeira preocupação, a de sua conservação”,
1 Hurgelin, op, cit, p, 222. (idem, p. 67.)
TE

50 ST

reflexão, ao socorro dos que vemos sofrer: é ela que, no estado um outro, se não sei sequer que ele sofre, se ignoro o que há de
de natureza, ocupa lugar de lei, de costumes e de virtude, com comum entre ele e eu? Aquele que jamais refletiu não pode ser
a vantagem de que ninguém é tentado a desobedecer à sua doce nem clemente, nem justo, nem piedoso”.! a
voz” Esta concepção da piedade que toma densidade pela refle-
A piedade não é apenas uma forma de identificação com a xão seria impossível no Discurso, onde razão e reflexão abrangem
humanidade inteira, mas a própria maneira pela qual o homem tudo o que conduz inelutavelmente à degenerescência do “gênero
redescobre sua infra-estrutura vital: “É sobre esta faculdade pri- humano”: “É a razão que engendra o amor-próprio e a reflexão
mordial que virão desenhar-se, num jogo de oposição, os predi- o fortifica; faz o homem voltar-se sobre si mesmo; separa-o de
cados que a ciência deve decifrar. O homem identifica-se, pri- quanto o perturba e aflige. É a filosofia que o isola; por sua causa
meiro, pela piedade, com a totalidade da vida, para em seguida ele diz, em segredo, ao ver um homem sofr. .do: Perece, se queres,
distinguir-se, no interior deste campo, do 'não-humano” ”.? quanto a mim estou seguro”.!'? Deste ponto de vista, a conserva-
ção do gênero humano teria sido impossível se dependesse da re-
flexão. Esta afirmação é atenuada pelo Emílio, que introduz, é
B-— O Animal, o Homem: a Diferença verdade, uma inclinação intelectualista na concepção da piedade:
“Para impedir que a piedade degenere em fraqueza, é preciso, pois,
No Ensaio sobre a Origem das Línguas, no Discurso e no generalizá-la e estendê-la a todo o gênero humano. Então, as pes-
Emílio a piedade aparece como um sentimento original, isto é, soas só se entregariam a ela na medida em que ela estivesse de
em oposição ao social artificial, o “resíduo que não se deixa expli- acordo com a justiça, pois, de todas as virtudes, a justiça é a que
car pela sociedade”! º mais concorre para o bem comum dos homens. É preciso por razão,
Mas este sentimento será tratado de maneira diversificada por amor a nós, ter piedade de nossa espécie mais ainda que de
nos três textos: no Discurso e no Emílio a piedade é vista como nosso próximo; e é uma enorme crueldade para com os homens
um sentimento espontâneo da alma (embora não seja um senti- a piedade pelos maus”.!?
mento simples) anterior à reflexão, enquanto que no Ensaio! ! As três obras, entretanto, não são incompatíveis, pois a reda-
transparece um acento intelectualista. Assim, no Ensaio Rousseau ção do Ensaio prolonga-se por vários anos, de onde a possibilidade
diz: “A piedade, embora natural ao coração do homem, permia- de se destacarem “diversas camadas” de reflexão; certos capítulos
neceria eternamente inativa sem a imaginação que a coloca em importantes podem muito bem ter sido comparados, completados ou
jogo. Como nos deixamos comover pela piedade? Transportan- remanejados ao mesmo tempo que o “Segundo Discurso”, ou
do-nos para fora de nós mesmos, identificando-nos com o ser que mesmo depois dele. Mais ainda, a piedade que se toma ativa pela
sofre. Sofremos apenas na medida em que julgamos que ele sofre; imaginação não entra em contradição nos diversos textos de Rous-
não é em nós, é nele que sofremos. Figure-se o quanto este trans- seau pois existe uma “théorie de Pinnéité”* como virtualidade
porte supõe de conhecimentos adquiridos. Como imaginaria os
males de que não tive, nenhuma idéia? Como sofreria vendo sofrer

12. E.0.L., idem, p. 196.


8. D.O,, p. 59/60. 13,:D.O.I., idem, p. 60.
9. Bento Prado Jr., Revista Tempo Brasileiro, idem, p. 16/17. 14, Emile, idem, p. 304.
10. P. Burgelin, P.E., idem, p. 219. * A expressão é de Derrida na Grammatologie, p. 244, Ed. Minuit,
11. Segundo Starobinski, Ed, Pléiade, vol. II, p. 1330. Paris, 1967.
y

52 5a

ou uma teoria da naturalidade como “potentialité sommeillante”. *


tinção entre o homem e o animal; se bem que dotado de inteligência,
As faculdades virtuais operam como ligadura em todos os pontos
os animais não são passíveis de aperfeiçoarem-se, são desprovidos
de fissura teórica (nos pontos em que a sociedade se rompe) arti- de imaginação, do poder de antecipação que ultrapassa o dado
culando-se com a natureza. Isto leva a pensar a natureza não mais sensível e presente, na direção do não-percebido: “Todo animal
como um dado, como presença atual, mas como um resíduo, uma tem idéias, posto que tem sentidos; chega mesmo a combinar suas
reserva. Assim, é a imaginação que desperta o poder de sua reserva, idéias até certo ponto, e o homem, a esse respeito, só se diferencia
sem se esquecer sua dupla determinação: ela é a fonte dos vícios do animal como do mais ao menos. Alguns filósofos chegaram
e das virtudes, de um lado, do Bem e do Mal, do outro. É que mesmo a afirmar que existe maior diferença entre um homem e
a própria imaginação pode perverter-se; desperta as faculdades
outro do que entre um certo homem e o animal. Não é, pois, tanto
virtuais mas logo as transgride.!$ o entendimento quanto sua qualidade de agente livre que o distingue
A imaginação desempenha um papel decisivo no desenvol- dos animais”.!”
vimento das faculdades do homem, pois sem ela a piedade nunca A distinção entre o animal e o homem, ou melhor, “a trans-
se tornaria ativa e o homem não poderia identificar-se a seu seme- cedência do homem”*, marca-se na oposição entre liberdade
lhante; e além disso o homem embora dotado de perfectibilidade, e instinto, “esta obscura faculdade” que parece guiar, sem nenhum
permaneceria em sua condição de “quase animalidade”. Desta conhecimento adquirido, o animal na direção de alguma finalidade.
exigência de aperfeiçoamento ver-se-á nascer sua história: a piedade Neste sentido, a liberdade é a perfectibilidade**: “Sobre a di-
põe as afeições** em movimento, sob impulso da imaginação, e o ferença entre o homem e o animal, há uma outra qualidade muito
homem pode então compreender a dor e a aflição de seu seme- específica que os distingue e a respeito da qual não pode haver
lhante, saindo já, num sentido estreito, da sua solidão, rompendo contestação — é a faculdade de aperfeiçoar-se (...) — porquanto
o isolamento. Rousseau diz: “A imaginação que entre nós causa o animal é, ao fim de alguns meses, o que será por toda a vida,
tantos danos, não fala a corações selvagens; cada qual espera cal- e sua espécie, no fim de milhares de anos, o que era no primeiro
mamente o impulso da natureza, entrega-se a ele sem escolha, com ano desses milhares”.
mais prazer do que furor e, uma vez satisfeita a necessidade, extin- Texto que se apresenta, de agora em diante, sob um aspecto
gue-se todo o desejo”.!* * novo: a Imaginação é ao mesmo tempo a condição da “perfecti-
A imaginação está do lado da socialização e é, portanto, po- bilidade” (a liberdade) e a faculdade que pode despertar a piedade,
licitamente concebida. E a dupla determinação desta categoria, bem distinguindo para sempre o homem do animal. A animalidade não
como a “perfectibilidade” da imaginação, leva-nos a seguir sua evo- tem história porque a sensibilidade e o entendimento são funções
lução nas diversas obras, e particularmente seu significado no de passividade: numa carta ao príncipe de Warteemberg***, Rous-
Ensaio. *** Nele pode-se ver como a perfectibilidade determina a dis-
seau diz da imaginação que só ela é ativa e as paixões só se excitam
pela imaginação; quanto à piedade, é inata tanto nos homens como
nos animais, é tão natural que — como diz no Discurso — mesmo
os animais manifestam a sua presença.
*, Idem p. 263.
15. Cf. D., idem, p. 315/16.
**, Traduzimos por afeição o substantivo affection, lembrando que
17. Rousseau, D.O.I., idem, p. 47.
Rousseau se utiliza constantemente de seu duplo sentido, de afeição e afec-
*, Cf. Burgelin, P.E., idem, p. 72.
ção.
**, “Perfectibilidade é uma tradução científica e precisa da palavra
16. D.O.T., idem, p. 62.
comum de liberdade, que escondia várias confusões. Exprime simplesmente
e**, Cf, Derrida, in De la Grammatologie, onde é discutida a comple-
a idéia de que o homem pode transformar-se.” (Launay, op. cit., p. 267).
mentaridade entre o Discurso e o Ensaio.
**%, Carta de 10-11-1763.
54 55

Sob o impulso da imaginação, esta piedade vai despertar poder enraizar-se nas bordas férteis do Eurotas; observaria que em
como humanidade; vemos então delinearem-se duas séries*, a da geral os povos do norte são mais industriosos do que os do sul
animalidade — carência, interesse, gesto, sensibilidade — e a da por poderem menos se privar de sê-lo, como se a natureza qui-
humanidade — paixão, imaginação, palavra, liberdade; a partir sesse assim igualar as coisas dotando os espíritos da fertilidade que
daí, a imaginação pode ser compreendida como o “tornar-se hu- recusa à terra”.!?
mano da piedade”. As paixões são os principais instrumentos da conservação
É preciso, agora, situar o lugar da paixão na própria natureza. do homem, são obras de Deus, instituições da própria Natureza.
O homem começa por funções puramente animais: perceber e No “Segundo Discurso” a natureza não é um intermediário en-
sentir, pois neste momento está entregue, pela natureza, somente tre Deus e o Mundo, mas substitui a noção de Deus ao colocar-se
ao instinto; mas querer e não querer, desejar e temer serão as pri- a si mesma como ponto originário de todos os acontecimentos
meiras operações até que as circunstâncias determinem novas mu- — “tudo o que sai das mãos da natureza é bom” — afastando a
danças: “A natureza comanda todos os animais, e o animal obe- afirmação de um criador perfeito. Não vemos, pois, no Discurso
dece. O homem nasce livre para aquiescer ou resistir, e é sobretudo esta “hipótese teológica”: “É preciso dotar a sociedade geral e o
na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de direito natural de um elo histórico que é o lugar vacilante do nas-
sua alma**, pois a Física de certo modo explica o mecanismo cimento, e apenas uma hipótese teológica permite neutralizar esta
dos sentidos e a formação das idéias, mas no poder de querer, vacilação e pensar o nascimento como pura origem (...); por inter-
ou melhor, de escolher e no sentimento desse poder só se encontram médio do direito natural, é a vontade de Deus que rege esta so-
atos puramente espirituais que de modo algum são explicados ciedade do gênero humano”.?º Para Rousseau, a Bíblia arruina-
pelas leis da Mecânica”.!? Além disso, porque a paixão é também ria a noção de um puro estado de natureza, sobre o qual os filó-
natural no homem, ela o leva a satisfazer suas carências. Nem a sofos cristãos se apóiam para distinguir o homem de antes da queda
fome, nem a sede, afirma o Ensaio, poderiam provocar no homem e o homem pecador — ou, em outros termos, a igualdade desejada
a palavra; mas o amor, o ódio, a cólera arrancam “as primeiras por Deus antes do pecado original e a desigualdade não menos
vozes”. “Mais ainda”, diz Rousseau, “ser-me-ia fácil fazer ver que, desejada depois da culpa de Adão e Eva: “A religião nos manda
em todas as naçõesdo mundo, os progressos do espírito se propor-. acreditar que se o próprio Deus tirou os homens do estado de
cionaram precisamente segundo as necessidades que os povos rece- natureza, eles são desiguais porque Ele quis que o fossem”?!
beram da natureza (...). Mostraria, no Egito, as artes nascendo E Rousseau: “É evidente, pela leitura dos livros sagrados, que,
e difundindo-se segundo o transbordamento do Nilo; acompanharia tendo o primeiro homem recebido imediatamente de Deus luzes
seu progresso entre os gregos, onde se as viu germinar, crescer e e preceitos, não se encontrava nesse estado e que, acrescentando
elevar-se até os céus entre as areias e os rochedos da Ática, sem aos escritos de Moisés a fé que lhe deve todo filósofo cristão, é
preciso negar que, mesmo antes do dilúvio, os homens se tenham
encontrado no estado puro de natureza, a. menos que não tenham
*, Segundo Derrida, op. cit., p. 260/62. recaído nele por causa de qualquer acontecimento extraordiná-
**, A mota é nossa: a expiritualidade da alma (anima-animal) que
faz a distinção entre o homem e o animal é a liberdade. Mas o espírito tem
também um segundo sentido no Discurso, como o que movimenta a sen-
sibilidade e o entendimento, antes passivos; “Assim, os homens dissolutos
se entregam a excessos que lhes causam febre e morte porque o espírito “
deprava os sentidos e a vontade fala ainda quando a natureza se cala”. (Idem, 19. D.O.I., idem, p. 47.
p. 47). 20. Patrick Hochart, Cahiers ..., p. 80.
18. D.OI., idem, p. 49, 21. Launay, op. cit., p. 204.
6 A

rio — paradoxo bastante embaraçoso de defender e completamen- damentos quando, por seus desenvolvimentos sucessivos, chega
te impossível de provar”.?? a ponto de sufocar a natureza”.25
Rousseau reflete sobre o princípio de que o homem é natu- Do animal ao homem há uma continuidade, já que possuem
ralmente bom e que, portanto, não pode existir uma perversidade um fundo comum — a sensibilidade. A ruptura ocorre com a per-
original nos primeiros movimentos da natureza; esta é unidade, footibilidade; “É a própria natureza que se torna sociável no ho-
onde o homem vive em si, num estado de indivisão, de tal forma mem, & que só se revela desta maneira pelo concurso dos acasos
que apenas um' élan indeterminado conduz à defesa ou a indo- da história do globo. Os acontecimentos exteriores e a natureza
lência; essa adesão a si mesmo é coincidência consigo mesmo e escondida do homem formam uma única e mesma realidade em
proximidade do originário, do não-dividido: a única paixão com, movimento” 2º Apenas quando o homem começa a olhar seu
a qual nasce é o amor de si, paixão que em si mesma é indiferente semelhunto como tal, começa a ver suas relações e as relações das
ao bem e ao mal; por isto, o homem natural é sempre “justo”: volaas, constituindo-se então as idéias de conveniência, justiça e
“ela só se torna boa ou má”, diz Rousseau, “por acidente e segundo ardem,
as circunstâncias em que se desenvolve; todos os vícios que se dó agora “o belo moral” começa a se tornar sensível, a cons-
atribuem ao coração humano não lhe são naturais e (...) pela al- vlência entra em ação e os homens passam a ter “virtudes”; e se
teração sucessiva da bondade original, os homens se tornam, final- têm também vícios, diz a Carta a M. de Beaumont, é a partir da
mente, o que são”.?? ampliação de seus interesses e do despertar
da ambição, à medi-
No estado de Natureza o homem se limita exclusivamente da que “suas luzes” se desenvolvem; enquanto não há tantas opo-
ao instinto físico, “ele é ninguém, é bicho”. O caráter animal tem nigõos entre interesses e portanto é pequeno o concurso de “suas
o sentido da recusa de qualquer explicação não-natural das mu- luzon”, 08 homens são essencialmente bons.
danças do homem; quando se afastam as considerações religiosas, É! na ordem social que se encontra a causa da mudança, pois
a Natureza permanece aquilo que se constrói por si mesmo: daí em tudo cla é contrária à natureza e a tiraniza sem trégua. Com
a insensatez dos que se queixam da natureza sem saber “que todos bao, porcebe-se porque Rousseau não precisou da hipótese teoló-
os males vêm de si mesmos”, dizem as “Confissões”. As palavras plom não supôs o homem mau por natureza, já que pôde marcar
“Providência”, “Natureza” ou “Divindade” tornam-se o mesmo: origem € O progresso da maldade; tal hipótese não é eficaz, nem
“Porque a divindade existe e é boa, é preciso combater a concep- mesmo possível: a relação com Deus é de “ordem religiosa” e não
ção social que desfigurou, perverteu e travestiu a Natureza”.?? “filosófica”, diz Rousseau. Deus não é uma “evidência”, os primi-
Rousseau procura as causas humanas e naturais do estado de guer- tivos não o conhecem, Emílio o descobre tarde e porque é ensi-
ra — a piedade, por si mesma, não engendra a sociabilidade. No nado à conhecélo, E o Contrato exclui os atributos metafísicos
Discurso pode-se ler: “Do concurso e da combinação que nosso do Deus, à existência da divindade “poderosa, inteligente, bene-
espírito é capaz de fazer desses dois princípios (o amor de si e a mérita, previdente e providente” é um dogma da religião civil.
piedade), sem que seja necessário nele introduzir o da sociabili- Por outro lado, lemos no Emílio: “Eu sei que o mundo é governado
dade, parecem-me decorrer todas as regras do direito natural, regras por uma vontado poderosa e sábia; eu a vejo, ou melhor, eu a sinto,
essas que a razão, depois, é forçada a restabelecer com outros fun- D & tmportanto eu saber disso. Mas este mesmo mundo é eterno
mm orbado! HA um princípio único das coisas? Há dois ou vários?

22, DO, idem, p. 40.


23, Lettre à M, de Beaumont, idem, p. 444. a Bd dem, po 47,
24, Launay, op. cit, p. 205. dh Loamay, apo olho, po 20H,
58 59

e qual é a sua natureza? Eu não sei. E o que me importa? (...) Re- A piedade deriva do amor de si o ao mesmo tempo tem um ter-
nuncio a questões ociosas que podem inquietar meu amor-pró- etário na sociedade, porque ela não é uma paixão simples: “Ela
prio mas que são inúteis à minha conduta e superiores à minha post dota princípios, a aber, o ser inteligente e o ser sensitivo
razão” É” cujo Dementar não é o mesmo, O apetite dos sentidos tende ao
Retornemos, pois, às paixões: pertencem à Natureza e por do como é o amor da ordem ao da alma, Este último amor, de-
esta razão a análise da desigualdade não pode voltar-se nessa di- senvolvido e ativado, leva o nome de consciência; mas a conscién-
reção, como se as paixões já estivessem marcadas pelo mal. Ao ola nó se desenvolve e age com as luzes do homem, É só por estas
contrário, não se trata de reprimir o vício mas de impedi-lo de luzes que chega a conhecer a ordem e só quando a conhece sua
nascer: é um empreendimento vão e ridículo, diz o Emílio, “que- comsolência o leva a amá-da"
rer destruir as paixões, controlar a natureza e réformar a obra Momento o homem bom e mau, que conhece o amor e o
de Deus”; seria contraditório que a Natureza (Deus) quisesse ani- Culto, em quem a lmaginação o as paixões desenvolveram-se pro-
quilar as paixões que ela engendra no homem. Mas é preciso estar porolonalmento (into é, o homem que desperta para as afeições
atento ao fato de que, se é verdade que a origem de todas as pai- sovlals é que é sensível À pledade), experimenta a necessidade de
xões é natural, nem todas o são: “a necessidade de satisfação de falar o inventa a língua, O livro V do Emílio descreve a impor-
uma multiplicidade de paixões é obra da sociedade”, diz o Discurso. tância das paixões que se encontram na origem da sociedade e
É preciso perguntar-se qual o estatuto da piedade como da moral; é pela paixão que se constrói a relação com o outro,
paixão natural, já que também ocupa um lugar na sociedade (em- primeira forma de sociabilidade, é no “murmáúrio das paixões”
bora de maneira menos ampla do que no estado de natureza). Pois que à homem pode nascer verdadeiramente.
Rousseau observa: “A benevolência e a amizade são, bem entendi- Das paixões iniciais, amor de si (natureza) e amor-próprio-
das, produções de uma piedade constante (...), pois. desejar que (sociedade) vão logo nascer todas as que constituem o ser moral;
alguém não sofra não será desejar que seja feliz? A ser verdadeiro mas Rousseau denuncia logo o pecado original do ser moral: se
que a comiseração não passa de um sentimento que nos coloca as paixões “doces e afetuosas” se originam do amor de si (este
no lugar daquele que sofre, sentimento obscuro e vivo no homem sentimento segundo o qual todo ser vela por sua própria conser-.
selvagem, desenvolvido mas fraco no homem civil, que importará vação mas no qual a preocupação de si supõe sempre o olhar do
tal idéia para a verdade do que digo, senão para lhe dar mais força? outro), as paixões perversas nascem do amor-próprio, sentimen-
A comiseração, com efeito, mostrar-se-á tanto mais enérgica quanto to que leva cada um a cuidar de sua própria conservação; é um
mais intimamente se identificar o animal espectador com o animal sentimento relativo, fictício, que nasce em sociedade. O amor-
sofredor. Ora, é evidente que essa identificação foi infinitamente próprio é o amor de si, que se torna interesse particular, isto é
mais estreita no estado de natureza do que no estado de raciocí- o recalgue e o esquecimento do sentimento natural. Germina,
nio”.2º É que a piedade não é nem a própria origem, nem um neste momento, a idéia da culpa, posto que a hipótese teológi-
fluxo passional derivado, uma paixão adquirida entre outras: ela cu foi descartada e a divindade confia ao homem a regência do
é a primeira “derivação” do amor de si, ela é “quase natural”.* mundo, fazendo dele não só um animal mas um ser livre; e nu-
ma carta a Voltaire*, Rousseau diz que a fonte do mal está na
liberdade do homem, na perfectibilidade que já começa corrom-

27, Rousseau, Emile, transcrito por ele na Lettre à M. de Beaumont,


idem, p. 459/460,
28, DO, idem, p. 59/60. 19, Rousseau, Lettre à M. de Beaumont, idem, p. 444.
"A expressão é de Derrida, * Primeiro de Agosto de 1756.
60.
61

pida. O mal é produzido pela história e pela sociedade, e a culpa


desfruta dela (,,,). A consciência de si toma então a vida como se
da sociedade não é a culpa do “homem essencial” mas a do “ho-
velho um fruto maduro que so encontra diante da mão que o to-
mem em relação”; o mal está do lado do factual e não existiria
qua Usto gago na imediatos, gozo de si, não é diferenciado
se o homem não possuísse a “perigosa liberdade” de negar, pelo
por intervalos não há descontinuidade, não há alteridade; é a
artifício, o natural. “É nas mãos do homem, e não em seu cora-
exporência da presença contínua a al mesmo, é 4º tempo das Rê-
ção que tudo degenera. Suas mãos trabalham, mudam a natureza,
portes, tempo da presença “onde O prosento dura sempre sem con-
fazem a história” 2º
tudo qmarone aum duração e sem nonhum rastro de sucessão”: sem
antecipação ou recordação
Mas prazer que se ronliza positivamente neste desfrutar,
C-— O Retorno do Reprimido na Sociedade
ao mesmo tempo em que é “oortoza do mi” (isto é, consciência
de ol objetivas tom uma algnificação negativa = a de ele próprio
Rousseau se esforça por pensar a sociedade geral* como
mer muprimido, Hegel dig: “Ora, à consciência de si concebeu sua
uma sociedade quase pura, sem negar as contradições que viriam
própria atualização apenas em qua significação. positiva, eis por-
cindir a origem, prolongando numa duração homogênea, sem li-
aque qua exporência entra como contradição na consciência; nesta
mite e sem história, o momento fugidio do nascimento, onde a
experiência, a realidade da singularidade da consciência de si efe-
única desigualdade é a desigualdade física?! O “princípio de des-
Hunmento alcançada assiste a seu aniquilamento por parte da
truição” já está presente neste “quase”, na própria origem, mas
essência negativa que, privada de realidade efetiva, levanta-se vazia
de alguma forma permanece indiferente. Desta forma, Rousseau
diante dela e é, porém, a potência que a conserva” 2?
não considera os princípios originários de conservação e de des-
EKetomemos Rousseau: embora presente desde a origem, o
truição das origens como simultâneos, o que equivaleria à destrui-
mal é sempre consequência de uma falta de vigilância, a consegiiên-
ção da noção de origem; é levado a conceber como sucessivo o que,
ola de uma distração fatal; nos textos de Rousseau este instante é
na realidade, descreve como simultâneo, posto que desde o iní-
musinalado pela expressão “tant que” do Discurso — enquanto
os
cio o “princípio de destruição” age insensivelmente.
homens so contentaram com suas cabanas rústicas, enquanto se
Isto pode ser compreendido a partir da análise hegeliana
Hemitaram a coser suas roupas de peles, viveram livres e sãos; ou
da consciência. A consciência de si tem a certeza de ser a realida- ainda na Carta a M. de Beaumont: “enquanto há menos oposições
de; tem seu objeto em si mesma; mas a consciênciaé um objeto
de Interesses, os homens são essencialmente bons”. Segundo Rous-
de tal ordem que não o possui apenas para si (o ser lhe aparece
seau, anos estéreis, invernos longos e cruéis, verões calcinantes que
como uma realidade diferente dela) — num primeiro momento, secavam os frutos da terra, impuseram o trabalho ao homem;* *
ela é consciência de si como essência singular independente da
outra consciência de si, a partir da qual torna-se ser para si; ou
então reduz esta “outra consciência de si” a si mesma. “A cons-
ciência de si joga-se, pois, na vida e caminha em direção à realiza-
12, Hegel, La Phenomenologie de "Esprit, p. 298.
ção da pura individualidade na qual surge. Em lugar de const uir *, É interessante aproximar este texto do de Rousseau sobre o gozo
sua própria felicidade, ela a colhe imediatamente e imediatamente imediato no estado de natureza: “Os frutos estão ao alcance da mão, deles
nos alimontamos sem falar; perseguimos em silêncio a presa com que nos
aaolamos. (Emile, idem, p. 162.)
14, Phen, E., idem, p. 299.
30. Starobinski, 7. et O., idem, p. 34.
*, Trata-se da sociedade nascente. (D.O.I., idem, p. 72). **, Quando a natureza passa a ser um obstáculo, surge O trabalho: ele
é, pola, o advento do negativo; dá-se a primeira grande divisão, a Natureza
31. Hochart, “Droit Naturel el Simulacre”, Cahiers ..., idem,
do “primeiro Outro” que o homem alcança e que surge porque lhe é hostil.
62 63

a necessidade qué os homens passam a ter uns dos outros não é pesdativamento aum forooldado: acostumavam-se pouco a pouco
natural: na realidade, a convivência tornou-se necessária, Uma MA oa austeoo 0, enfosquadoo por so fazer entender, aprenderam
vez que a sociabilidade não é uma necessidade, a desigualdade so- ndo cmplioar AF no dorm am primeira fostas: os pé saltavam de
cial se explica por um determinismo, ao mesmo tempo geográ- alegra, d posto cápido anão bastava mais o a voz o acompanhava
fico e demográfico, a partir da convergência de certos “acasos”, Dom motas apalmonadas à pragor o o desejo confundidos, faziam-se
“concursos singulares e fortuitos de circunstâncias”, “diferentes mente e quem tempo! O outro desenvolvimento consiste
acasos”, “muito sábia providência”, “concurso fortuito de várias Bum uma capénio do apromilvidado, mancida da desconfiança: pela
causas estranhas que poderiam nunca ter nascido”, “causas mui- plmervação do qutrm, O homem identifica suas semelhanças na
to leves”, “alguns felizes acasos”*, etc. E Rousseau: “grandes Hunmetea do pense o de sentir o aline no outro — ou torna-se seu
inundações ou tremores de terra cercaram de água ou de preci- hnbemlgo o ommforino ma vlrounat ncia
pícios regiões habitadas; revoluções do globo separaram e cortaram FE qual decarrento não é uma natureza, é contingente com
em ilhas porções do continente. Concebe-se que entre os homens polagõo À matucoea coriginal do homem, Há uma oposição entre
aproximados desse modo e forçados a viver juntos, teve que se a pano do homem como herdade o sua condição atual; “o
formar um idioma comum”.*? homem nasceu livro e om toda parto está agrilhoado”, diz o Con-
No Discurso, o único indício da aproximação dos homens frete Mas tal condição se origina na essência do social ou em
dispersos — a primeira revolução — consiste na passagem do singu- “avidontos históricos” que no fundo permaneceriam estranhos à
lar ao plural: a caça e pesca são atividades coletivas, pois a aquisição emsóncia?
de suas diferentes técnicas é a primeira forma de sociedade; ne- No osso do Discurso já conhecemos a resposta — “os aca-
nhuma invenção realizada isoladamente poderia transmitir-se. sos no Contrato, são os “abusos”: “se os abusos desta nova con-
Além disso, a imaginação que “movimenta” a piedade só desperta digõo,.!*, A liberdade natural (a do estado de natureza) opõe-se
na sociedade, pois quem nunca refletiu não pode ser moral (bom, à liberdade moral, própria à natureza do homem, que faz aparecer
mau, justo, vingativo, piedoso). As primeiras invenções do homem a aoolabilidade como condição de instauração da natureza humana.
modificam-no, assim como suas relações com a natureza e com o £) recurão de que Rousseau lança mão, o afastamento de qualquer
outro; o homem adquire uma espécie de reflexão a partir da qual aumento teológico (o “acaso” como “causalidade não causal””*),
torna-se senhor, num duplo sentido: domina os animais que lhe fas com que a questão apareça como propriamente histórica, no
podem servir e torna-se um perigo para. o outro. O princico uso sentido da busca do originário no movimento de auto-constituição
que faz da reflexão é para se saber superior ao animal. do próprio social; no estado de natureza o homem se encontra
A luta do homem contra as outras espécies anuncia as que na etapa da animalidade e não realizou sua natureza histórica:
iria opor o homem ao homem: o segundo uso que faz de suas “imagino os homens chegados àquele ponto em que os obstáculos
“novas luzes” é refletir sobre a natureza do outro e sobre as rela- que prejudicam a sua conservação no estado de natureza sobrepu-
ções que deverá desenvolver com ele de agora em diante. Desde jaum, pela sua resistência, as forças de que cada indíviduo dispõe
o início, há um duplo desenvolvimento social: um positivo, espé- para manter-se nesse estado. Então, este estado primitivo já não
cie de Benevolência fundada sobre o bem comum: “'sob velhos
carvalhos, vencedores dos anos, uma ardente juventude esquecia

15. KO, idem, p. 220.


*, Indicação de Launay, op. cit., p. 215. 46,08, livro I, cap. I, idem, p. 236.
34.0.C., Pléiade, III, p. 168. * A observação é de Marilena S. Chaui, quando da leitura deste trabalho.
64 65

pode subsistir e o gênero humano pereceria se não mudasse seu é permitido infringir e ele nunca a infringe impunemente”.?º Neste
modo de ser'?”, sentido, se um “preconceito insensato” não tivesse separado Julie
Rousseau concebe uma mudança do homem natural (muda, e Saint-Preux, poder-se-ia assistir ao desabrochar de uma situação
Por assim dizer, de natureza, mas continua subsistindo no estado natural: estas “belas almas” saíram das mãos da natureza “uma
civil), Esta passagem não se dá, entretanto, sem dificuldade: Rous- para a outra”, “é numa doce união, é no seio da felicidade, livres
e
2
soam diz no Discurso que não é uma tarefa ligeira a de separar o para expandir suas forças e exercer suas virtudes, que teriam ilu-
Original do artificial na natureza atual do homém. A natureza muda, minado a terra com seu exemplo”.* !
de uma certa forma: “para estabelecer a escravidão foi necessário Mas o Barão d' Etange, expressão da situação social, não
violentar a natureza, foi preciso transformá-la para perpetuar este compreendeu que os direitos de um amante são mais verdadeiros
direito”; a natureza atual do homem é mais que o homem na- do que os de um pai e que violava, com sua proibição, a lei da na-
tural, contém tudo o que o homem veio a ser e pode tornar-se tureza. A morte de Julie representa, ao mesmo tempo, o castigo
conforme as indicações de sua natureza; e isto no sentido em que da natureza e o único alívio possível: morta, Julie liberta-se da
sempre oscila entre a simplicidade original (instintiva, estática) necessidade de agir, pois pode furtar-se ao esforço que lhe custa-
o O dinamismo da, perfectibilidade; o vício da natureza atual (a va a lei do dever. Assim, a virtude (que é o conhecimento do Bem
“desordem” da natureza atual) consiste em desnaturar o homem, e do Mal, e vitória voluntária sobre o Mal) jamais voltará a ser
impedindo-o de viver “conforme sua natureza”. Não se trata de “inocência primitiva”, ignorância do Bem e do Mal: a alma vir-
Uma volta à natureza, mas de segui-la. Não basta definir a natu- tuosa fez a experiência do conflito. A Morte é suplemento e re-
Teza pela “lei natural”, se não se percebe, ainda, o que significa presenta o sentimento que não coincide mais consigo mesmo e com
hatureza* : o que importa registrar é que qualquer coisa, para ser a Natureza; embora as “belas almas” tragam de volta o reino da
natural, deve falar “imediatamente pela voz da natureza”. Rous- limpidez, elas sabem que a verdadeira transparência está perdida;
Seau não entende por lei natural a que torna indiferentemente a felicidade que podem reencontrar não exclui a lembrança do
escravos ao homem e ao animal; esta confusão provém do fato tempo da infelicidade e da divisão: “elas conservam assim a lem-
de designar-se “com esse nome (lei natural) antes a lei que a natu- brança da tribulação entre a transparência inicial e a transparência
Teza impõe a si mesma do que a que prescreve”.?? Encontramos restaurada: conhecem sua historicidade. Sabem também que a
Uma ilustração disto na Nouvelle Héloise — uma atração espontã- felicidade atual é efeito de sua força e de sua livre decisão e, con-
nea aproxima dois seres: “se reina o amor é que a natureza já es- sequentemente, precária. Poderiam, cansadas de viver no extremo
colheu (...). Esta é a lei sagrada da natureza, que ao homem não de sua vontade, recair nas vias da opacidade. Bastaria um deslize
para os corações se fecharem novamente sobre seu segredo e com-
prometerem a serenidade tão penosamente conquistada” *?
As “belas almas” sabem disso e não podem deixar de lastimar
37. €,8,, livro I, cap. VI, p. 243. o tempo da inocência, tempo “sem esforço”, quando o instante
38, Idem, p. 84: presente não representava qualquer ameaça em relação ao instante
; *, É interessante notar que há no texto da Nouvelle Héloiseo mesmo anterior. Nelas a volta do passado reprimido provoca sempre uma
movimento que se encontra no Discurso: “assim como para estabelecer a certa tensão, sensível em todo o romance, mesmo quando Rous-
escravidão foi necessário violentar a natureza” (p. 84): violência presente
no esforço para apagar as lembranças em Julie e Saint-Preux: “eles violen- seau fala da confiança absoluta das “belas almas”, da comunica»
tam-se para libertar-se delas. Mas este esforço não pode se realizar de uma
Voz por todas, devo ser perpetuamente recomeçado. De onde uma luta que 40, T. et O., idem, p. 115.
Sorre q pavo de tornar-se insuportável”. (Starobinski, T. et O., idem, p. 114). 41. La Nouvelle Héloise, II, WI, M. II, p. 253.
49, DO, idem, p. 36. 42, Starobinski, T. et O., p. 250.
00

qão “sem obstáculos da consciência”, da ausência, enfim, de segre-


do: “Deixo exalar minhas comoções”, diz Saint-Preux, “sem cons-
trangimento; não contêm nada que eu deva calar, nada que per-
turbo a presença do sábio Wolmar. Não temo que o seu olhar escla-
recido leia no fundo do meu coração; e quando uma terna lembran-
qa quer renascer, um olhar de Claire o recompensa, um olhar de
Julio me enrubesce”.*? Mesmo “exalando” essa “transparência
perfeita”, Saint-Preux confessa a necessidade de lutar contra a
“terna lembrança”.
É neste sentido que o Discurso sobre a Desigualdade erige CAPÍTULO III
a sociedade sempre como um mal com relação à Natureza. As
causas fortuitas que marcaram o fim do estado de natureza e que
deveriam promover as virtudes morais só conseguiram “aperfeiçoar
a razão, deteriorando a espécie” e tornar um ser mau “fazendo-o DA VISIBILIDADE À ALIENAÇÃO
sociável”, provocando a perda da transparência e da visibilidade
absolutas.
Ao nível do Discurso, o conflito já manifesta a desigualdade, A-—O Invisível ea Representação
a impossibilidade de viver “conforme a natureza”. O interesse
particular começa a movimentar-se, transformando o amor de si Emílio* será, primeiramente, o homem da natureza que com
em amor-próprio, transformando a felicidade de um na infelici- seu olhar natural iluminará as contradições sociais (fim do livro
dade do outro, a tal ponto “que só permanece na boca dos homens V). Nela domina um novo silêncio antes desconhecido,'o da escra-
uma palavra feita para enganarem-se mutuamente. Cada qual finge vidão, na qual a Vontade Geral se cala sob a tirania, a consciência
querer sacrificar seus interesses ao do público, e todos mentem. sob representações que lhe escapam; aquele que era senhor de
Rs puém quer o bem público senão quando concorda com o suas representações passa a submeter-se a elas, e com esta sujeição
seu”, tem fim a liberdade natural. É deste ponto de vista que o Discur-
so, ao tratar da origem e dos progressos da desigualdade, dá por
perdida a causa do homein social: “Assim como um corcel indomá-
vel eriça a crina, bate cóm o pé na terra e se debate impetuosamente
só com a aproximação do freio, enquanto que um cavalo domado
suporta pacientemente o chicote e a 'espora, também o homem
bárbaro não curva sua cabeça ao jugo que o homem civilizado
traz sem murmáúrio e prefere a mais tempestuosa liberdade a uma

* O Emílio representa o último recurso para salvar O indivíduo porque


a sociedade está perdida. Mas, como observa L. R. Salinas, as cartas nos
governos podem “auxiliar” um cumprimento aproximado da lol, antes que
o corpo político esteja totalmente morto. Deste ponto de vista, entre à Mimi
AM NH, parto V, Lottro VII, O.C., p. 609. lio e o Contrato há o Discurso como genealogia do mal, mas há também ns
44, Letivo d M. de Beaumont, p. 445. “cartas” como medicina política,

E:
68 69

dominação trangúila. Não é, pois, pelo aviltamento dos povos Se a vingança substitui a Benevolência, pela qual se desejava a
dominados que se deve julgar as disposições naturais do homem felicidade para o outro, coube à sociedade natural estabelecer
a favor ou contra a escravidão, mas sim pelo prodígio realizado a sociedade civil, para um “equilíbrio do terror” e para a “bene-
por todos os povos livres para se esquivarem da opressão. Sei que volência universal”. Declarado o estado de guerra, o instinto que
os primeiros nada fazem senão enaltecer continuamente a paz conserva o homem vivo está comprometido, isto é, o amor de si,
e o sossego de que gozam sob seus grilhões (...), mas quando vejo O “estado de guerra” é o ponto “crítico e moral”, é o lugar
animais nascidos livres e detestando o cativeiro esmagarem a cabeça de uma contradição insuperável entre os obstáculos que se opõem
contra as grades da prisão, quando vejo multidões de selvagens à vida e às forças que os indivíduos podem lhe opor*. Neste mo-
nus desprezarem as volúpias européias e enfrentarem a fome, o mento, os obstáculos não provêm mais da natureza (catástrofes,
fogo, as armas e a morte para conservar somente a sua indepen- dificuldades do clima, recursos para a produção da existência);
dência, concluo que não cabe a escravos raciocinar sobre liber- trata-se, já, de obstáculos puramente internos às próprias relações
dade” , humanas, efeitos do estado de guerra generalizado que constante-
O homem civilizado será sempre aquele que impõe a opres- mente ameaça o indivíduo (os bens, sua liberdade, sua vida). Este
são silenciosa, “sem murmúrio”, à simplicidade e uniformidade estado de guerra deve ser compreendido tal como Hobbes o defi-
da vida animal e selvagem. Como afirma Rousseau: “De que se niu: como uma relação constante e universal, embora indepen-
trata precisamente neste Discurso? De assinalar, no progresso das dente dos indivíduos, embora estes sejam pacíficos.
coisas, o momento em que, sucedendo o direito à violência, sub- Rousseau já havia mostrado, no Discurso, que tudo o que
meteu-se a natureza à lei; de explicar por que encadeamento de inaugura a “sociedade geral” inaugura, também, de maneira ori-
prodígios o forte pôde resolver-se a servir o fraco, e o povo a com- ginária, a guerra geral e a era de violência, pela primeira revolução:
prar uma tranquilidade imaginária pelo preço de uma felicidade “Deixando logo de adormecer sob a primeira árvore, ou de reco-
real”? lher-se em cavernas, encontrou alguns tipos de machados de pedra
Eis novamente diante de nós a questão da desigualdade, duros e afiados que serviram para cortar lenha, cavar a terra e fazer
agora relacionada com o fato de que, na sociedade, o homem cai choupanas de ramos que em seguida resolveu cobrir de argila e de
sob o domínio das leis — da cultura das terras decorreu necessa- lama. Foi a época de uma primeira revolução que determinou
riamente sua repartição, e da propriedade, uma vez reconhecida, o estabelecimento e a distinção das famílias e que introduziu uma
“as primeiras, regras de justiça”. O homem social é “peuple poli- espécie de propriedade da qual nasceram muitas guerras e comba-
cé”; o que num certo sentido permanece subjacente é a procura tes”? Assim, a origem de toda jurisdição, de toda legalidade tem
de fundamentos justos para a vida social, separando-se na cons- sempre como outra face, também original, o aparecimento da
tituição atual das coisas o que foi feito pela soberania divina e o violência, do arbitrário, da ilegalidade — da desigualdade; desde
que o homem pretendeu realizar. Já que todos os legisladores foram sua origem a sociedade geral tem um “princícpio destruidor” —
impotentes para reparar os vícios sociais, é preciso “limpar a área a guerra geral, “esta guerra anterior à guerra” **, A todos os obs-
e afastar todos os velhos materiais”. É preciso meditar sobre a táculos que dele decorrem, o homem só pode opor suas forças
“natureza do pacto fundamental”, é preciso “estudar a sociedade
para os homens e os homens para a sociedade”.
Antes da lei, cada qual era o único juiz das ofensas recebidas,
o que culminou em vinganças “sanguinárias, terríveis e cruéis”. * O percurso é o de Althusser in “Sur le Contrat Social”, Cahiers...,
3, DOS, “ul p. 69,
1. Rousseau, D.O.I., idem, p. 82. "*, Em Eat de Guerre”, Rousseau diz que a guerra propriamente
2. D.O.I., idem, p. 39. dita só existe entre as sociedades civis,
70 71

para tentar manter-se no estado natural: “Estas forças são cons- forçada; este interesse particular é a forma que toma o amor-pró-
tituídas pelos atributos do homem natural que chega ao estado prio na sociedade nascente e que se radicaliza no estado de guerra.
de guerra. Sem esta última precisão, o problema do contrato social Podemos considerá-lo (e Rousseau o faz) um estado de natureza,
é ininteligível”.* pois é estado social mas ainda não é estado civil; no estado de
Neste momento, não se trata mais das forças do homem no guerra o homem encontra-se no interior do estado de natureza, só
primeiro estado de natureza — onde é ainda um animal livre, cujas que está alienado. O que porá fim ao segundo estado de natureza
faculdades intelectuais e morais ainda são nulas. Econtramo-nos é a luta mortal à qual o homem se entrega.
diante de um animal convertido sob as catástrofes naturais e sob
o impacto da Grande Descoberta (a Metalurgia). E o homem chega
ao estado de guerra generalizado de posse de seu corpo mas com B— 4 Gênese da Oposição: A Consciência
suas forças físicas enfraquecidas pela vida social: “Foi nossa indús-
tria que nos privou da força e da agilidade que a necessidade obiiga A desnaturação assinala a perda da independência do indi-
o homem natural a adquirir. Se tivesse um machado, seu punho víduo, mesmo que em seus princípios isto se passe num cenário
romperia galhos tão resistentes? Se possuísse uma escada, subi- de canto e de dança — o que termina por estabelecer a primeira
ria tão ligeiramente numa árvore? Se tivesse um cavalo, seria tão diferença consciente entre o homem e seu outro: “O canto e a:
ágil na corrida? Dai ao homem civilizado o tempo de reunir todos dança, verdadeiros filhos do amor e do lazer, tornaram-se a dis-
esses instrumentos à'sua volta; não se pode duvidar que ultrapasse tração, ou melhor, a ocupação dos homens e das mulheres ociosos
com facilidade o homem selvagem”.* e agrupados. Cada um começou a olhar os outros e a desejar ser
O homem no estado de guerra possui “forças intelectuais” ele próprio olhado, e a estima pública passou a ter um preço. Aque-
e “bens” — e a violência configura-se como estrutura constituti- le que cantava ou dançava melhor, o mais belo, o mais forte, o mais
va do reino da carência: “desde o instante em que um homem hábil ou o mais eloquente passou a ser o mais considerado, e foi
precisou do socorro de outro, desde que se percebeu ser útil a esse o primeiro passo tanto para a desigualdade quanto para o
um só contar com provisões para dois, a igualdade desapareceu, vício; destas primeiras preferências nasceram, de um lado, a vai-
introduziu-se a propriedade, o trabalho tornou-se necessário e dade e o desprezo e de outro a vergonha e a inveja (...).
as vastas florestas transformaram-se em campos aprazíveis que se Assim que os homens começaram a apreciar-se mutuamente
precisou regar com o suor dos homens e nos quais logo se viu a e se lhes formou no espírito a idéia da consideração, cada um pre-
escravidão e a miséria germinarem e crescerem com as colheitas”. tendeu ter direito a ela e a ninguém foi mais possível deixar de
A propriedade é o indício da passagem do estado de natureza tê-la impunemente. Saíram daí os primeiros deveres de civilidade,
ao estado civil. O animal humano do “primeiro estado de natu- mesmo entre os selvagens, e por isso toda a afronta voluntária
reza” não tem, a rigor, interesse particular: não existem relações tornou-se um ultraje porque, junto com o mal que resultava da
necessárias entre' os homens, e a condição para oporem-se também injúria ao ofendido, este via nela desprezo pela sua pessoa, frequen-
se encontra ausente. No “estado de natureza segundo”, o homem temente mais insuportável do que o próprio mal. Eis como, cada
desenvolvido, alienado de seu estado anterior, adquire a noção um punindo o desprezo que lhe dispensavam proporcionalmente
de interesse particular, estimulado pelas relações de socialização à importância que atribuía a si mesmo, as vinganças tornavam-se
terríveis e os homens sangúinários e cruéis”.”

4. Althusser, “Sur le Contract Social”, idem, p. 10.


5. D.OI.,
p. 42.
6. Rousseau, D.O.I., p. 73. 7. D.O.L,,
p. 1/2.
72 73

Este texto mostra o nascimento da “consciência de si”. O em relação a sua fortuna e aparência. A categoria do parecer expli-
élan que impulsionava o homem no estado dê natureza — o amor ca a divisão interior do homem civilizado, isto é, sua servidão e o
de si — começa a dividir-se: o homem da natureza não se compara
caráter ilimitado de suas necessidades; na Profisão de Fé, Rousseau
ao outro*mas a ele se identifica pela piedade; nas relações sociais,
diz que a consciência é a voz da alma e as paixões a do corpo, a
a satisfação se realiza em função do outro, o eu opõe-se e defi- consciência representando para a alma o que O instinto é para
ne-se diante do outro e depois contra o outro, pois necessita ser
o corpo. A voz da alma é diferente da voz do corpo mas as duas
Teconhecido. são Natureza — a consciência só toma o rumo da oposição quando
Daí decorre a divisão entre o ser e O parecer, entre um nú- a Natureza se divide, quando se abre o caminho para a ação da
cleo natural e um eu de oposição: “ser e parecer tornaram-se duas (quando o homem perde a unidade), “fonte
“contra-natureza”
coisas inteiramente diferentes. Desta distinção resultaram o fausto de todas as misérias”, diz o Emílio. O homem da Natureza era
imponente, a astúcia enganadora e todos os vícios que constituem uno porque os seus meios coincidiam com suas necessidades e de-
o seu cortejo”.8 *% sejos. O homem do parecer “vive na opinião do outro” e só do
O homem aliena-se na aparência, que é ao mesmo tempo juízo alheio é que pode retirar o sentimento de sua própria exis-
consegiiência e causa das transformações econômicas. Ou seja,
tência.
a questão moral e a econômica vêm juntas: “Os políticos antigos A individualização supõe que os homens se diferenciem entre
falavam incessantemente de bons costumes e de virtudes, os nossos
si, opondo-se uns aos outros. A partir do instante em que se des-
só falam de comércio e de dinheiro (...). Que nossos políticos
se cobre o outro cada qual se vê obrigado a se situar, limitar-se, esco-
dignem. a suspender seus cálculos para refletir sobre estes exemplos
, lher — preferir ou recusar: “... logo que o amor absoluto degenera
e que aprendam de uma vez por todas que se tem de tudo com comparativo, produz a sensibilidade negativa
em amor-próprio e
dinheiro, salvo bons costumes e cidadãos”.º O homem social perde
porque, quando se adquire o hábito de se medir com o. outro e trans-
sua existência autônoma por uma “relativa”, e para ela inventa
portar-se para fora de si, para se designar o primeiro e melhor lugar,
cada vez mais desejos, aos quais, por si só, não é capaz de satis-
é impossível não tomar aversão por tudo o que nos ultrapasse Cd,
fazer — necessitará então, ao mesmo tempo, de riqueza e de pres- tudo o que, sendo alguma coisa, impede-nos de sermos tudo a
tígio, necessitará possuir objetos e dominar consciências. Só se O amor-próprio que se compara nunca pode estar satisfeito
“Teconhecerá” a partir da consideração do outro e de seu respeito
porque, ao fazer com que (cada um prefira mais a si que ao outro,
exige que os outros o façam também, o que é impossível. E como
os homens não procuram mais satisfazer suas “verdadeiras necessi-
dades), mas as que sua vaidade cria, encontram-se constantemente
*. “Afirmo que em nosso estado primitivo, no verdadeiro estado de
natureza, o amor-próprio não existe, pois, cada homem particularmente fora de si, estranhos a si, escravos uns dos outros: “O homem,
olhando-se a si mesmo como único espectador que o observa (...) torna-se de livre e independente que era, devido a uma multidão de novas
impossível que um sentimento que vai buscar sua fonte em comparações necessidades, passou a estar sujeito, por assim dizer, à natureza
que não estão a seu alcance, possa germinar em sua alma,” (Rousseau, D.O.I.,
inteira e, sobretudo, a seus semelhantes, dos quais num certo senti-
p. 118).
8. D.O.I., idem, p. 76.
do se toma escravo, mesmo quando se torna senhor: tico, preci-
** Há em Rousseau um “sistema de oposições” que vai do plano sa de seus serviços; pobre, precisa de seu socorro e a mediocridade
ontológico ao plano político: ser-parecer; ter-não-ter; forte-fraco; rico-po- não o coloca em situação de viver sem eles. É preciso, pois, que
bre. O discurso do Rico (categoria econômica) é o discurso do Forte (cate-
goria política), que se desdobra como persuasão e injustiça (categoria da
linguagem e da moral) e que recobre a falsidade (categoria ontológica).
9, Rousseau, 0.C., Pléiade, t. II, p. 19. 10, Rousseau, D., 1X, p; 196,
74 75

incessantemente procure interessá-los pela sua


sorte e fazélos espírito se desenvolve neste elemento da consciência e nele ins-
encontrar, de fato ou em aparência, algum lucro
em trabalharem tala seus momentos, esta oposição fracassa em cada momento
para ele: o que o torna falso e artificioso para com
uns, imperioso particular, e todos aparecem então como figuras da consciência.
e duro para com os outros”.! 1
A ciência deste caminho é a ciência da experiência que a consciên-
A individualização que decorre de todo este processo rea- cia faz”.!º Há um movimento de ação recíproca da consciência
lizase mais na dimensão do meu do que na do eu*. Rousseau sobre si mesma, em que nada se destaca dela como objetivo livre,
afirma: “O primeiro que tendo cercado um terreno
lembrou-se. o que torna impossível a suas obras alcançarem oUniversal; a cons-
de dizer “isto é meu' e encontrou pessoas sufici
entemente simples ciência permanece consciência de si universal no interior de si
para o acreditar foi o verdadeiro fundador da sociedade forma
civil”!? A mesma, “como uma ação recíproca entre esta orarrnciboda
propriedade, “este demônio”, traduz a luta entre os
indivíduos e leva da universalidade e ela mesma na da consciência pessoal e
ao desprezo mútuo.
Para Hegel, é este o estatuto do sujeito rousseauista. A luta
Por causa da propriedade, o eu coloca o outro
como um que opõe o homem ao mundo, que desenvolve nele a faculdade
perigo & a razão, ao examinar a realidade, ao discernir o bem e o de comparar, determinará a possibilidade de uma reflexão rudi-
mal, o útil e o prejudicial, estabelece-se, desde o
início, como razão mentar para o sujeito: ela saberá perceber diferenças entre as coisas,
de dominação: o homem torna-se sujeito consci
ente, a razão de perceberá que ele é diferente dos animais, ela se Merá finalmente
dominação permanece soberana em si mesma, recusa-
se a alienar-se, como superior e daí emerge um vício: o orgulho — “Esta aplicação
a confundir-se com qualquer coisa que não seja
ela mesma, reiterada dos vários seres a si mesmos e de uns aos outros, deve
Tal passagem pode ser entendida em termos
hegelianos: ter, naturalmente, engendrado no espírito do homem as percepções
esta consciência não pode realizar nenhuma
obra positiva pois de certas relações (...). Estas relações (...) acabaram por produzir
não pode chegar à constituição e à organização
da liberdade; se- nele uma certa espécie de reflexão.
gundo Hegel, a consciência neste momento não
pode realizar “atos As novas luzes que resultaram desse desenvolvimento aumen-
de governo”. Isto porque a consciência é tomada
tal como é, em taram sua superioridade sobre os demais animais, dando-lhe cons-
sua relação ao outro objeto, o mundo ou a
natureza. Este saber ciência dela (...). Assim, o primeiro olhar que lanço sobre si mesmo
do Outro é um saber de si e este é um saber
do Outro, do Mundo, produziu nele o primeiro movimento de orgulho”.
Nos diversos objetos da consciência descobrimos à consci
ência, o Com a reflexão termina o homem da natureza e começa O
mundo é seu espelho. O eu coloca a si mesmo
como tendo neces- homem do homem: o orgulho rompe o equilíbrio do Homem como
sidade de um não-eu, isto é, de sua determinação
possibilidades; o eu, quando coloca sua limitaç
deduzem-se suas um ser sensitivo, o homem não coincide mais consigo mesmo:
ão, só pode aparecer “Se a natureza nos destinou a sermos sãos, ouso quase assegurar
a si mesmo no fundo da Alteridade: “O estar-a
í imediato do espí- que o estado de reflexão é um estado contra a natureza e O homem
rito, a consciência, possui os dois momentos:
objetividade, que é o negativo com relação
o do saber e O da que medita é um animal depravado”.!
ao saber. Quando o A divisão entre o eu e o outro realiza a perversão do amor
de si em amor-próprio e, com o trabalho e o confronto entre o

11, DOI, p. 76. .


* “Com paixões tão pouco ativas (...) os homens não possuíam a menor
noção do teu e do meu, nem qualquer idéia veraz da justiça; consideravam
14, Hegel, op, elt,, p. 31/32.
as violências que podiam sofrer como um mal fácil de ser reparado e não
14, Idem, po 194,
como uma injúria que deve ser punida,” (D.O.1,, p. 61).
15, Roumeau, DOF, idem, p, 67/68.
12. DOI. p. 66. 16, Rousseau, DO, idem, p. 45,
76 o

obstáculo e a reflexão, acentua-se no homem a consciência de sua (“este guia do amor-próprio”, diz o Emílio). A razão é o instru-
diferença; a comparação final entre ele e o outro constituirá agora mento do Terror e merece que se suspeite dela — ela se coloca
o verdadeiro “despertar da Razão”. A partir disto, instrumentos a serviço da opinião e do amor-próprio: “O homem sensual (sensuel)
começam a pôr-se entre o homem e a natureza; e da mesma ma- é o homem da natureza, O homem que reflete, o da opinião”, lê-se
neira, quando o homem se apropria de sua identidade distinta no IX Diálogo.”
vê desmanchar-se a dimensão perfeita de sua vida imediata pers O homem compara pela reflexão, entra em relação, descobre
a correlação sem interior nem exterior de seu estado primitivo e a diferença — a desigualdade é o outro nome da relação; a primeira
não pode mais abandonar-se ao “sentimento dc sua existência desigualdade que se exprime numa noção (maior ou menor habi-
atual”. “A separação, a diferença, o passar do tempo, a morte
possível, eis o que percebe logo que o esforço bem sucedido o
faz conhecer seu poder sobre o mundo. Só conquista o domínio * Rousseau diz que “a doce voz da piedade” foi inscrita no coração
(maítrise) | para descobrir uma dependência. A mesma faculdade por Deus (Natureza). Trata-se de uma “escrita natural.” a escrita do coração,
de comprar (de refletir) que faz a superioridade consciente do que se opõe à escrita da Razão; esta é “sem piedade”, transgride a lei e a
a. Mas
voz da piedade, substituindo a afeição natural pela afeição pervertid
homem sobre o mundo faz também com que ele se preveja doente Razão. Nas Lettres à Sophie, Rousseau
há ainda outros sentidos da palavra
Couffrant)! ou morrendo (...). Rousseau nos mostra como, pelo es da alma confor-
diz: “A Razão é a faculdade de ordenar todas as faculdad
trabalho, o homem sai de sua condição animal e descobre o conf das coisas e a sua relação conosco” . A Razão torna-se uma
me à natureza
to dos contrários: o forae o dentro, o eu e o outro, o ser e o pare- na sensibili dade e que realiza a
faculdade plena, profundamente enraizada
“Como tudo o que penetra no entendimento humano
cer, o bem e o mal, o poder e a servidão.”17 unidade do homem:
razão sensitiva, é ela
O poder da consciência singular se materializa no governo vem dos sentidos, a primeira razão do homem é uma
que serve de base à razão intelectu al”. (Emile, idem, p. 94). E um texto
que quer e executa ao mesmo tempo uma ordem e uma ação de- esta ambiguidade: “De todas as faculdades
da Nouvelle Helóise esclarece
terminadas, de um lado excluindo de sua operação os outros indi- um composto de todas
do homem, a razão — que não é por assim dizer senão
mais dificilm ente e mais tardiamente”. Seu
víduos, do outro constituindo-se como vontade determinada em as outras, é a que se desenvolve
o justifica sua duplicid ade, pois não se pode esquecer o que
oposição à vontade universal; como na descrição hegeliana, o go- caráter compost
o amor-próprio,
verno só pode apresentar-se como “facção”, “facção vioriosa” Rousseau fala no Discurso (p. 90): “é a tazão que engendra
si mesmo; separa-o
é a reflexão que fortifica; faz o homem voltar-se sobre
e nisto reside a necessidade de seu declínio. Este governo é ne- por sua causa, ele
de quanto o perturba e aflige. É a filosofia que o isola;
cessariamente culpado — e, inversamente, os cidadãos são sempre um homem sofrendo: “Perece, se queres; quanto
diz, em segredo, ao ver
r, em última análise,
suspeitos em relação a ele: “Ser suspeito substitui-se a ser culpado, a mim estou seguro”. Talvez seja interessante distingui
nio”. O raciocín io é a arte de compara r verdades conhe-
ou tem essa significação ou efeito; e a reação externa contra esta “Razão” e “Raciocí
que se ignorav am e que tal arte nos faz
efetividade, que reside no interior simples da intenção, consiste cidas para compor outras verdades
não nos ensina a conhecer as verdades primitiva s que servem
descobrir . Mas
na destruição brutal deste si no elemento do ser ao qual só se pode em seu lugar nossas opiniões,
de elemento às outras, e quando colocamos
retirar seu próprio ser”.!ê Neste momento, não existe fundamento nossas paixões, nossos preconce itos, longe de nos esclarecer, ele nos cega
de sistema, que sozinho
para o direito que emerge da situação de Terror — a submissão (..). Este inconveniente é inseparável do espírito
os e consiste em generaliz ar sempre”. (Lettresà So-
dos vencidos não é um título legítimo para o vencedor. Tudo isto leva aos grandes princípi
que a Razão pode, num certo sentido, fazer parte
significa que o amor-próprio foi bem sucedido, apoiado na razão phie, p. 47). Entendemos
Burgelin) — pela descoberta de “uma
da sensibilidade (Razão Sensitiva, diz
Jr. (in Revista Tempo
lógica inscrita no sensível”, como diz Bento Prado
o sujeito e que se mani-
Brasileiro, idem, p. 176), uma faculdade que precede
ca que se encontra
festa, mesmo que precariamente, na linguagem metafóri
é o raciocínio que é
17. Starobinski, T. et O., idem, p. 347.
na raiz da linguagem da Razão. Deste ponto de vista,
de sistemas.
18. Hegel, idem, I, p. 6/7. abandonado com desprezo aos filósofos, construtores
79
78

os particulares só acidentalmente são inimigos*. O direito


lidade no trabalho), materializa-se em seguida na propriedade e no onde
tem por único fundamento a lei do mais forte**.
dinheiro. A desigualdade marca, assim, a vontade de colocar o de conquista
indivíduo como um valor independente ao mesmo tempo em que E se a guerra não dá ao vencedor o direito de massacrar o vencido,
de
desperta o desejo de distinção, isto é, o de impor o reconhecimento este direito inexistente não pode ser o fundamento do direito
não
de seu próprio ser à opinião do outro. Isto quer dizer que, desde sujeição; na verdade, o direito de morte só aparece quando
em
agora, é a ordem do parecer que passa a representar seu ser — Rous- se*pode fazer o outro de escravo: “OQ direito de transformá-lo
pn diz: “Quanto mais examino a obra dos homens e suas insti- escravo não vem do direito de-matá-lo: é pois uma troca iníqua
-tuições, vejo mais que, por força de parecerem independentes, o fazê-lo comprar ao preço de sua liberdade sua vida (...).
fazem-se escravos, e que gastam sua própria liberdade em esforços
vãos para assegurá-la. Para não ceder à torrente das coisas, fazem-se o,

mil vínculos, e depois, quando querem dar um passo não podem só pode ter como inimigo outros Estados e não ho-
* “Cada Estado
e se espantam de estarem presos a tudo”.!º mens, pois que não se pode estabelecer qualquer relação
verdadeira entre
É a força que vai ligar os homens uns aos outros, potência coisas de natureza diversa” (Rousseau, C.S., livro E, IV, p. 241).
, outro
física da qual não resulta nenhuma moralidade. Ceder à força cons- **, Seria interessante aproximar dois textos, um de Rousseau
fortes oprimirão
titui um ato de necessidade e não de vontade; a força não introduz de Nietzsche — Rousseau: “Ouço sempre dizer que Os mais
opressão.
nenhum direito, já que “o mais forte tem sempre razão”. os fracos. Que me expliquem o que querem dizer com à palavra
com violência, outros gemerão submetidos a todos os seus
Uns dominarão
Nenhum homem goza de autoridade natural sobre seu seme- mas não vejo como
caprichos. Aí está precisamente o que observo entre nós,
lhante — como então podem sair do estado de guerra? Rousseau se poderia dizer isto de homens selvagens aos quais
se teria mesmo grande
diz que Grotius e outros retiraram da guerra o “direito de servidão” compree nder o que é servidão e dominação. Um ho-
dificuldade de fazer
outro colheu, do ani-
no sentido de que o vencedor teria o direito de matar o veficio mem poderá muito bem apossar-se dos frutos que um
do antro que lhe servia de abrigo, mas como chegaria
e este poderia conservar sua vida ao preço de sua liberdade. Mas mal caçado por este,
ao ponto de se fazer obedecer? e quais poderão ser as cadeias de dependên-
Rousseau mostra que este pretenso direito de matar os vencidos homens que nada possuem? Se me expulsam de uma árvore, sou
cia entre
não resulta do estado de guerra: “Apenas porque, vivendo em sua o que me impe-
livre de ir a uma outra, se me perseguem num certo lugar,
“primitiva independência, os homens não mantêm entre si relações Se encontra r um homem com força bem superior à mi-
dirá de ir a outro?
so e feroz para me obrigar
suficientemente constantes para constituir quer o estado de paz nha e, além disso, o bastante depravado, preguiço
À sua existênci a enquant o permane ce ocioso, será preciso que ele
quer o de guerra (...). É a relação entre as coisas e não a relação a prover
se resolva a não me perder de vista um só Instante e ter-me amarrado com
entre os homens que gera a guerra e, não podendo o estado de cuidado enquanto dormir, temendo que eu escape ou que o mate
muito
impre-
guerra originar-se de simples relações pessoais, mas unicamente (1): depois de tudo isso, qua vigilância amaina um pouco, um ruído
na floresta, meus gri-
das relações reais, a guerra particular ou de homem a homem não visto faz com que volte a cabeça, ando vinte passos
64/65).
pode existir nem no estado de natureza, no qual não há proprie- Ihões no quebram o ele não me reverá nunca mala,” (DO, p.
“como o
O texto de Nietecho parece trazer uma resposta à questão
dade constante, nem no estado social, em que tudo se encontra no fazer obedece r" Nietzcho se pergunta sobre
homem poderia chegar a
sob a autoridade das leis”.2º surgimento da má consciência o a Genealogia da Moral
encontra a origem
os credores e os
Os combates particulares, os duelos, os encontros ocasionais, da noção de culpa na idéia de dívida, nas relações entre
sua vez às formas
não: constituem um estado. A guerra é uma relação entre Estados, devedores: “relação contratual (,,) é que reconduz por
compra, da venda, da troca, da circulação (La Génealogie
fundamentals da
registra em sua
de la Morale, p; 25/21. Para inspirar confiança, o devedor
a necessid ade do pagamen to, sob a forma do dever, da
própria consciência
de insolvência
obrigação, comprometendo-se a indenizar o credor no caso
e ou sua vida.
da dívida com alguma colsa que possua, mesmo sua liberdad
19. E.0.L., cap. II, p. 444., Ed. Hachette.
20. Rousseau, €.S., idem, p. 240. pôde degradar e torturar o corpo do devedor, po-
A partir disto, o credor
80 81

Supondo-se mesmo a existência desse terrível direito de a si; e cada qual é a si mesmo e ao outro uma essência imediata
tudo matar, afirmo que um escravo feito na guerra (...) não tem
que é para si, mas que, ao mesmo tempo, é para si somente através
qualquer obrigação para com seu senhor, senão obedecê-lo enquan-
desta mediação”.22 Isto quer dizer que cada qual é para o outro
to a isso é forçado. Ao tomar um equivalente a sua vida, O ven-
porque o outro é para si mesmo. Esta luta contra O outro pode
cedor não lhe concedeu graça: ao invés de matá-lo sem proveito, ser o motivo
manifestar-se em diversas ocasiões, sem no entanto
matou-o utilmente. Longe, pois, de: ter adquirido qualquer auto-
ridade sobre ele além da força, o estado de guerra persiste entre
essencial do conflito — o conflito é essencialmente um conflito
ambos como anteriormente, sendo a própria relação entre eles- pelo reconhecimento. A consciência de si faz a experiência da
seu efeito e a utilização do direito de guerra não supõe qualquer luta pelo” reconhecimento, mas a verdade desta experiência en-
gendra uma outra, a das relações de desigualdade no reconheci-
tratado de paz. Firmaram uma convenção — seja; mas esta con-
venção, longe de destruir o estado de guerra, supõe sua continui-
mento, a experiência da dominação e da servidão.
Já que a oposição entre os homens conduz à dominação
dade” 21
Para assegurar sua conservação, o homem se impõe ao outro*; e à servidão, uma inversão dialética entre eles acabará por libertar
o vencido é poupado porque o vencedor tem necessidade de ser o servidor (Der Kencht): a verdadeira mestria pertence à história
reconhecido. Em termos hegelianos, o vencedor, “o senhor”, é do servidor, que recupera sua humanidade (ao salvar o “biológico”,
o homem que leva até o fim a luta pelo reconhecimento, arris- por medo de arriscar a vida, o servidor perde o espírito, que é
cando a vida: “... cada extremo é para o outro o termo médio conquista do “senhor”) pelo trabalho; o senhor arriscou a vida,
com a ajuda do qual entra em relação consigo mesmo e se reúne exprimindo, assim, a consciência de si imediata; o servidor repre-
senta a mediação essencial à consciência de si despercebida pelo
senhor — e é efetuando conscientemente esta mediação que o
dendo
servidor se libera, pois o senhor só é senhor por ser reconhecido pelo
cortar as partes que lhe parecessem proporcionais à importância da
dívida: “deste ponto de vista, muito cedo e por toda parte, houve estima- servidor; além disso, o servidor não é propriamente servidor do se-
tivas precisas, por vezes atrozes em suas minúcias, estimativas que tinham nhor mas da vida, já que recuou foi diante da morte. O senhor, uma
a força do direito (...). Foi já um progresso, prova de uma concepção jurí- vez reconhecido como pura consciência de si, põe o servidor a seu
dica mais livre, mais generosa, mais romana, quando a lei das Doze Tábuas serviço utilizando-o materialmente: o trabalho é servidão, depen-
decreta que pouco importa, que o credor tome mais ou menos num tal caso
dência, mas culmina na transformação da natureza e na criação
(...). Façamos uma idéia clara da lógica desta forma de compensação (...):
estabelece-se uma equivalência, substituindo a vantagem que compensaria
de um produto. O subjetivo se objetiva no produto, cria um mundo
diretamente o dano (logo, à sua compensação em dinheiro, em terra ou em próprio; o produto do trabalho não é mais em si mas para si; OU
um bem qualquer) uma espécie de satisfação que se concede ao credor para | seja, é possível ao servidor reconhecer-se nos produtos que criou,
reembolsá-lo e indenizá-lo, satisfação de poder exercer sem contenção sua
O servidor experimenta uma outra forma de presença do objeto,
potência sobre um impotente (...), desfrutando da violação.” (G.M., idem,
ignorada pelo senhor — objeto ao mesmo tempo estranho e não
Pp. 27/8), E ainda: “O sentimento de justiça é, na verdade, uma forma intei-
ramente tardia e mesmo refinada do juízo e do raciocínio humano (...). É estranho. Por esta razão, Marx diz, nos Manuscritos de 1844, que
nonta esfera, a do direito das obrigações, que se encontra o núcleo de ori- na Fenomenologia do Espírito a dialética da negatividade foi to»
pom do mundo dos conceitos morais “culpa,” “consciência,” “dever,” “ca- mada como a produção do homem por ele próprio no trabalho,
rátor sagrado do dever” — foi, em seus princípios, longamente e abundan-
O homem é tanto o produto de seu trabalho quanto este é sou
temente regado com sangue (...) e no fundo este mundo sempre conservou
um corto odor de sangue e de tortura (mesmo no velho Kant: o imperativo produto, da mesma maneira que as circunstâncias sociais são pro
ntogórico tem sabor de crucldade).” (idem, p. 250).
2108, livro IV, idem, p, 242.
*, Que não é mala o “outro como ele mesmo”, do estado de natureza,
22, Hegel, Phen, E, Idem, p; 157,
ER)
82

duto do homem e o homem o produto das circunstâncias. Esta Na relação “interesse particular oposição dos Interenos
transformação do mundo pelo servidor é sua “fruição retardada”.?? particulares”, é a oposição que aparece primeiro, quer dizer, é
A dialética da dominação e da servidão consiste “em mostar que ela que constitui o indivíduo como particular tendo um interes
o senhor se revela em sua verdade como o escravo do escravo e o se particular. Relembremo s Rousseau, quando afirma que o pr
escravo como senhor do senhor”.?* meiro indivíduo que cercou um terreno e disse “isto é meu”
encontrou pessoas suficientem ente ingênuas para acreditarem,
foi o primeiro, o verdadeiro fundador da sociedade civil; “Quantos
C- 4 Guerra de Todos contra Todos crimes, guerras, assassinatos, quantas misérias e horrores não teria
poupado ao gênero humano aquele que, arrancando os crédulos
O Estado de senhor e servidor no interior do estado de guerra ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: Doforn
perpétuo e universal é o “estado de alienação humana”; aqui o deivos de ouvir esse impostor, estareis perdidos se esquecerdos
homem se perde, pois aparece uma categoria — o interesse — es- que os frutos são de todos e a terra não é de ninguém!" Grande
tranha ao olhar natural: “*... pois, se a oposição dos interesses par- é a possibilidade, porém, de que as coisas já então tivessem chegado
ticulares tornou necessário o estabelecimento das sociedades, é o ao ponto de não poder mais perdurar como eram: pois esta idéia
acordo desses mesmos interesses que o tornou possível. O que de propriedade, dependendo de muitas idéias anteriores que nó
há de comum nestes diferentes interesses é o que forma o elo so- poderiam ter nascido sucessivamente, não se formou repentina
cial; e se não houvesse algum ponto em que todos os interesses mente no espírito humano: foi preciso se fazer muitos progromos,.
coincidissem, nenhuma sociedade poderia existir. Ora, é unica- adquirir-se muita indústria e luzes, transmitilas e aumentá-las
mente sobre este interesse comum que a sociedade deve ser go- de geração a geração, antes de chegar a esse último termo do eb
vernada”.25 Assim, o processo de socialização transforma ao mesmo tado de natureza”.?”
tempo as faculdades do homem e o amor de si em interesse par- A apropriação da terra está na raiz do subsequente estado
ticular, dada a oposição dos interesses e os efeitos do estado de de guerra e de seus efeitos: ricos e pobres, fortes e fracos, senhores
guerra: “Quando passa pela reflexão do indivíduo, o interesse e escravos. As relações entre os indivíduos que constituirão O está
particular toma a forma abstrata (e subjetiva) do amor-próprio, do de guerra são também produto da atividade do homem, tals
alienação do amor de si. Mas o conteúdo objetivo do interesse relações não são externas com relação aos indivíduos, exintom
particular o vincula diretamente à natureza do estado de guerra. como “consubstancialidade”, isto é, todo o desenvolvimento da
A categoria do interesse particular denuncia logo seu fundamento história do homem se produz de tal maneira que os efeitos da
universal. Só existe interesse particular em função de outros inte- primeira socialização já determinam a alienação dos individuna,
resses particulares em competição na concorrência universal”.2º a partir desta “primeira alienação” das relações sociais exintentos,
Deste ponto de vista, a oposição dos interesses particulares signi- o homem se aliena cada vez mais. Enquanto subsistiu a “flores
fica que o interesse particular se constitui pela oposição universal ta”, o homem pôde escapar à tirania das relações sociais 0 à hos
— e esta por sua vez, é a essência do estado de guerra. efeitos coercitivos. Quando o “reino da floresta” findou, toda
a terra começou a ser cultivada, dominada pelo proprietário qmuta
forte que usurpou a terra aos ocupantes primitivos, 04 hormona
23, Hegel, Phen. E., p. 165.
24, J. Hyppolite, Génêse et Structure de la Phénoménologie de V'Es-
prit de Hegel, p. 166.
25, Althusser, “Sur le Contract Social”, Cahiers, p. 11.
26, Cahiers. .., p. 11 27. D.O J., idem, p. 66,
84 85

não encontraram mais refúgio para sua liberdade, viram-se for o eu do homem social não se reconhece mais em si mesmo, mas
çados aos estado de guerra, à alienação.* procura-se no exterior, entre seu escravo.
as coisas, tornando-se
De onde provém esta “nefasta consegência”? A resposta a divisão do trabalho, que faz nascer uma dependência mútua
está na idéia de produção: quando os homens começam a pro- entre Os indivíduos, terminará sendo vivida enquanto dependência
duzir além de suas necessidades reais, começam a disputar o su- dos objetos,
pérfluo, não se quer mais desfrutar (jouir) mas possuir, não se Marx vai afirmar que o homem está indissoluvelmente liga-
deseja mais os bens atuais mas os signos abstratos dos bens possíveis do À natureza pelo trabalho: “O homem vive da natureza: isto
deve manter
(as apropriações futuras); o homem precisa satisfazer “uma infi- significa que a natureza é o seu corpo com O qual
vida física
nidade de paixões que são obra da sociedade”. um processo constante para não morrer. Dizer que a
Starobinski?º aponta para a correlação entre o fato de que e Intelectual do homem está indissoluvelmente ligada
à natureza
o homem perde sua unidade, quando se entrega a uma atividade está indisso-
não significa nada mais do que dizer que à natureza
é parte da natu-
parcial, e a paixão com que tenta compensar a perda da integri- luvelmente ligada a si mesma, porque o homem
dade de seu ser. Mas esta “compensação”, longe de restabelecer é sempre uma
reza” *O Esta unidade do homem com a natureza
o equilíbrio originário, compromete-o cada vez mais: o homem unidade mediatizada social e historicamente pela prática social.
só pode possuir se delimita e defende a terra que ocupa. As cercas dos sujeitos conscientes, isto é, ativos, transfor-
O aparecimento
de apropria-
vão se levantando, pois a posse implica a exclusão dos não possui- ma a natureza — e a si mesmos — pelo movimento
que suprime a
dores; os menos hábeis ou menos violentos serão afastados e tor- ção da natureza exterior e interior; movimento
a do real. E ainda nos
nar-se-ão pobres. E Rousseau diz: “Lastimo que a filosofia afrouxe exterioridade bruta e o caráter de estranhez
é uma simples atividade
os elos da sociedade que são formados pela estima é pela bene- Manuscritos, Marx diz que o trabalho não
volência mútuas, e lastimo que as ciências, as artes e todos os outros econômica, um simples meio de conservação da vida, mas uma
trabalho
objetos de comércio estreitem os elos da sociedade pelo interesse atividade livro, E o homem é livre se “a natureza for seu
ele se reconheça a si mesmo
pessoal. E que, com efeito, não se pode estreitar um destes elos e ua venlidade, de tal maneira que
sem que o ego não se afrouxe por isso. Não há pois, nisto, con- num mundo que ele mesmo ertou”
tradição”.2 há um trabalho (e neste momento reencontra-
Entretanto,
pela divi-
A estima e a benevolência constituem relações entre os ho- mos Rousmeau) que é uma atividade imposta ao homem
mens pelas quais estes se ligam imediatamente: nada se coloca dizer que toda divisão do trabalho
são social do trabalho; isto quer
entre as consciências. Ao contrário, toda relação efetuada pelo que não considera as aptidões e necessidades de cada indivíduo
são exteriores:
interesse pessoal passa pela mediação das coisas. Daí pode-se re- acorrenta a atividade a forças econômicas que lhe
tirar uma dupla conclusão: a perversão das relações entre os ho- só tem a sensação de estar con-
“Consequentemente o trabalhor
mens provém tanto do fato que as coisas se colocam entre as cons- está fora do trabalho, e quando está em seu
sigo mesmo quando
volun-
ciências, quanto do fato que os homens não identificam mais seus trabalho sente-se fora de si (...). Seu trabalho não é, pois,
interesses com sua existência pessoal, mas começam a identifi- é trabalho forçado; não é, portanto, a satis-
tário mas imposto:
algumas ne-
car-se aos objetos que pensam ser indispensáveis à sua felicidade; fação de uma necessidade mas um meio de satisfazer
cessidades à margem do trabalho”2? Esta concepção da aliena-

p. 252,
* Cf, cap.srIII, parte B, nota sobre Rousseau ee Ni Nietzsche, p. 81/2/3.
Ea 30, Marx, Manuscritos Econômico-filosóficos de 1844,
31, Marx, id., ibid., p. 252.
29!1n Discours sur les Sciences et les les Arts, 32, Marx, id., ibid., p. 104.
86 87

ção (alienare-alienus-alheio) significa que, com relação às coisas O que Rousseau não percebe é que a apropriação dos obje-
que o homem produz e com relação a si mesmo, encontra-se na tos revela-se como alienação não somente sob seu aspecto moral
mesma relação que frente a um objeto estranho; o objeto produ- mas também sob o domínio econômico: quanto mais o trabalha-
zido pelo trabalho enfrenta o homem como um ser estranho, co- dor produz, menos ele possui, caindo sob a dominação de seu
mo um bem independente do produtor: “Foi o ferro e o trigo produto, o capital: “O caráter exterior do trabalho”, diz Marx,
que civilizaram o homem e arruinaram o gênero humano”, diz “aparece no fato que ele não é um bem que lhe é próprio (ao tra- |
Rousseau; o homem caiu no universo do trabalho e no estado balhador) mas antes o de um outro, que não pertence ao trabalhor; ,
de reflexão que descobre as vantagens da divisão social do traba- que no trabalho o trabalhador não pertence a si mesmo mas a
lho. Cada qual dr. ver que, por serem os laços da servidão for- um outro”.?º Por outro lado, Rousseau prefigura Marx quando
mados unicamente pela dependência mútua dos homens e pelas mostra de que maneira a cultura estabelecida nega a Natureza
necessidades recíprocas que os unem, é impossível subjugar um (Discurso, Emílio) e que desta negação deriva a alienação, “as
homem sem antes tê-lo colocado na situação de não poder viver falsas luzes” — as que não iluminam o mundo humano e velam
sem o outro, situação essa que, por não existir no estado de natu- a transparência natural, separando os homens uns dos outros, par-
TEZa: UEMA cada um livre do jugo e torna inútil a lei do mais for- ticularizando seus interesses e substituindo à cólmunicação essen-
tels cial um “comércio factício” — a sociedade se constitui lá onde
O estado de dependência e desigualdade está ligado à passa- cada qual se isola em seu amor-próprio e se protege por trás do
gem de uma economia de subsistência a uma economia de produ- parecer: o mundo da alienação é um mundo “de opacidade e de
ção.* Na economia de subsistência o produto do trabalho é o traba- mentira”.?º Rousseau considera a alienação como desapropria-
lho materializado num objeto, o que é a objetivação do trabalho; ção, alienação das relações dos trabalhadores com o produto de
no estado de dependência e desigualdade, o trabalho vai se apre- seu trabalho — o que resta mostrar é que a alienação não aparece
sentar ao trabalhador primeiro como perda de sua realidade e em somente no resultado mas no próprio ato de produção, no inte-
seguida como perda do objeto ou servidão com relação ao objeto rior da atividade produtiva em que o homem já se encontra es-
— isto significa que a apropriação torna-se alienação, desapropria- tranho a si mesmo. Consegiientemente, se o produto do trabalho
ção. Mas Rousseau não chega a destacar o núcelo da questão; mostra é alienação, a produção é, também, alienação em ato ou “a alie-
apenas que “a sociedade civilizada, desenvolvendo cada vez mais sua nação da atividade é a própria atividade da alienação”.
oposição à natureza, obscurece a relação imediata das consciências: Nos Manuscritos, Marx mostra a contradição fundamental
a perda da transparência original caminha ao lado da alienação que existe entre o trabalho social (as forças produtivas) e a apro-
do homem nas coisas materiais (...). Com efeito, o Discurso sobre priação individual (relações de propriedade): as condições e o pro-
a Desigualdade é uma história da civilização como progresso da duto do trabalho apresentam-se como estranhos e independentes,
negação do dado natural, progresso ao qual corresponde uma de- as coisas perdem seu caráter de suporte das forças produtivas e das
gradação da inocência original. A história das técnicas é exposta relações de produção; as coisas apresentam-se como estranhas
em estreita ligação com a história moral da humanidade (...). Mas porque efetivamente são consideradas independentemente do ho-
é como moralista que descreve a história da moral” 2“ mem, ao tornarem-se independentes de todo sistema produtivo
que lhes deu origem. O trabalho separado de seu objeto é “a alie-

33. D.O.I., idem, p. 65.


*, A expressão é de Starobinski, in T. et O., op. cit., p. 349. 35, Manuscritos..., idem, p. 104.
34. Starobinski, 7. et O., idem, p. 104. 36, Starobinski, op. cit., p. 37.
“8 89

nação do homem pelo homem”; os indivíduos se isolam uns dos


por intermédio das relações estabelecidas pelo ato da troca, dire-
outros, e jogam-se uns contra os outros e finalmente encontram-se
tamente entre os produtos e indiretamente, por seu intermédio,
Naados mais pelas mercadorias que trocam do que por suas pes- as relações
entre os produtores. A este últimos, consegientemente,
.Soas: “O trabalho não produz apenas mercadorias, produz a si
que ligam o trabalho de um indivíduo ao trabalho dos outros não
mesmo e ao trabalhador como mercadoria, ao produzir merca-
dorias em geral”.27 E mais: “a produção capitalista de mercadorias aparecem como relações sociais entre os indivíduos que trabalham,
tem o resultado mistificador mas como são na realidade, isto é, relações materiais entre as pes-
de transformar as relações sociais. soas” 40
dos indivíduos em qualidades das próprias coisas (mercadorias)
e ainda mais especificamente, de transofrmar em uma coisa (di- Nos termos de Rousseau, a sociedade — negadora da natu-
nheiro) as próprias correlações de produção”? 8 reza não a suprime mas mantém com ela um conflito permanen-
aa E não diz outra coisa, completando nosso percurso: té-de onde nascem os males e vícios de que os homens sofrem,
m do mais, O dinheiro é o suplemento dos homens e o suple- desenvolvendo técnicas, a divisão social do trabalho e a proprie-
ia para
mento nunca valerá a própria coisa (...). Os sistemas de finanças dade privada: “A invenção das artes (...) foi, pois, necessár
forçar o gênero a sé dedicar à arte agrícola. Desde que se precisou
fazem almas venais; e quando só se quer ganhar, ganha-se sempre para
mais sendo velhaco que homem honesto. O emprego do dinheiro de homens para fundir e forjar o ferro, precisou-se de outros
mais se miultipl icava o número de tra-
desvia e esconde; destina-se a uma coisa e emprega-se em alimentar a estes. Quanto
outra
Os que o manejam logo aprendem a desviá-lo (...); se só diga balhadores, houve menos mãos para atender à subsistência comum
riquezas públicas e manifestas, se o caminho do ouro deixasse sem que com isto houvesse menos bocas para consumi-la e como
uma marca ostensiva e não pudesse se esconder, não haveria ex- “uns precisavam de víveres em troca de ferro, outros por fim encon-
pediente mais cômodo para comprar.os serviços da coragem, da traram o segredo de empregar o ferro para a multiplicação dos
fidelidade, das virtudes; mas, tendo em vista sua circulação víveres. Nasceram, assim, de um lado, a lavoura e a agricultura
(...) o dinheiro extorquido se esconde facilmente” 3º
GE e, de outro, a arte de trabalhar os metais e multiplicar-lhes o uso”.
O encontro de Rousseau e Marx se faz, pois, pela “gene- Da cultura das terras resultou sua partilha e a propriedade
ralidade abstrata”, que é o dinheiro. A abstração foi reconhecida, fazendo aparecer as primeiras regras de justiça:
o o lugar “pois, para dar a cada um O que é seu, é preciso que cada um possua
do particular e do universal — e daí seu resultado mistificador:
sua origem está na maneira específica da produção de mercadori alguma coisa (...). Esta origem é tanto mais natural quanto é im-
com indivíduos isolados que não só trabalham independentement
as possível conceber-se a idéia da propriedade nascente de algo que
uns dos outros mas
e não a mão-de-obra, pois não se compreende como, para se apro-
satisfazem suas necessidades exclusivamente nisso
pelas necessidades do mercado: “posto que os produtores priar de coisas que não produziu, O homem conseguiu pôr
não ao cul-
entram em contato uns com os outros até o instante em que trocam mais do que o seu trabalho. Somente o trabalho, dando
um direito sobre o produto da terra que ele trabalhou,
seus produtos, o caráter social específico do trabalho de cada tivador
dutor só se mostra no ato da troca. Em outras palavras, o
pro- dá-lhe consequentemente direito sobre as terras pelo menos até
trabalho
do indivíduo só se afirma como uma parte do trabalho da sociedad a colheita, assim sendo cada ano; fato que determinando uma
e posse contínua se transforma facilmente em propriedade” * É

37. Marx, Manuscritos. .. , idem, p. 101


38. El Capital, vol. I, p. 962. p. 94.
39, Considérations sur le Gouvernement de Pologne, p. 385/6. 40, Marx, EL Capital, idem, vol. L,
41, Rousseau, D.O.1., idem, p. 74/5.
90
91

Com a divisão sócial do trabalho, o trabalho e seu


desfru- É neste sentido que Marx diz: “A propriedade privada nos
tar, a produção e o consumo se dão a indivíduos
diferentes. A “tornou tão estúpidos e limitados que só consideramos um objeto
divisão social do trabalho está na origem da repart
ição desigual
do trabalho e de seus produtos, nosso quando o possuímos, quando existe para nós como eg
qualitativa e quantitativamente.
Além disso, “divisão do trabalho e propriedade privad ou quando imediatamente consumido, comido, bebido, vestido,
a são (2x5) habitado por nós etc., em suma, quando nos servimos da
expressões idênticas — dado que numa se
exprime com relação
à atividade o que na outra se aplica com bora o proprietário privado só considere tais realizações imediatas
relação ao produto da
atividade”.*? A partir daí compreende-se o sistema da posse como meios de subsistência: a vida para a qual servem
de desenvol- de meio é a vida da propriedade privada, o trabalho é a conversão
vimento das artes, das ciências, do comérc
io, da indústria, das j em capital.
finanças, da circulação do dinheiro — o que
vem simultaneamente de todos os sentidos físicos e intelectuais apareceu,
(como, mostra Rousseau em seu Discurso sobre sd Ei
as Ciências e as pois, o sentido do ter, que não é senão a alienação de todos esses
Artes) ao luxo material e ao do espírito — de onde
decorre a forma- sentidos. O ser humano deveria ser reduzido a esta pobreza abso-
ção de um povo ávido, ambicioso, servil, sempre no extremo da:
miséria e da opulência: “A ambição devoradora, luta, a fim de engendrar sua riqueza interior partindo de si mes-
o ardor de aumen- mo” *$ -
tar sua fortuna relativa, menos por uma verdad
eira necessidade Assim que a propriedade privada eoragon Sr existir, nasceu
do que para se colocar acima dos outros, inspira
a todos os ho- um conflito perpétuo entre os homens, entre 0 no do mais
mens uma negra tendência a prejudicarem-se
mutuamente, uma forte e o do primeiro ocupante, o que culminou em CoTnaISE
inveja secreta tanto mais perigosa quanto, para
dar seu golpe com
segurança, fregiientemente coloca a máscar e crimes”: “A sociedade nascente deu lugar ao mais horrível esta-
a da benevolência (...).
Quando as heranças cresceram em número do de guerra: o gênero humano, aviltado e desolado, não podendo
e em extensão a ponto
de cobrir todo o solo e tocarem-se umas às outras, mais voltar sobre seus passos, nem renunciar às aquisições infeli-
uns só puderam zes que realizara, chegou às portas de sua ruína por não a
prosperar às expensas dos outros, e os
supranumerários, que a pelo abuso das faculdades que O dignifi-
fraqueza ou a indolência tinham impedido senão para sua vergonha,
de as adquirir por sua
vez, tendo se tornado cam (...). Os ricos (...), aliás, qualquer que fosse a cor que pudessem
pobres sem nada terem perdido, porque
tudo mudando à sua volta somente eles dar a suas usurpações, sabiam muito bem que só se apoiavam
não mudaram, viram-se adquiridas apenas
obrigados a receber ou arrebatar sua subsist num direito precário e abusivo e que, pa
ência da mão dos ricos, força poderia arrebatá-las” . o
Daí começaram a nascer, segundo os vários pela força, a mesma
caracteres de uns e de
outros, a dominação e a servidão ou a - O estado de guerra reveste-se, portanto, de significação — a
violência e as rapinas”.*? de transformar uma situação de fato
E mais: para formar uma nação livre que de legitimar as usurpações,
não tema a ninguém e que
seja feliz, “é preciso utilizar um método bem atual em direito. Os homens se encontram num estado de guerra
diferente — manter, num =
restabelecer (...) costumes simples, gostos sãos; que sua própria atividade produz, se bem que tomados,
(...) formar almas j sentido, de surpresa — tornam-se os homens de relações aliena as,
corajosas e desinteressadas; aplicar os povos à agricul
tura e às artes dominados pelos interesses particulares e expostos a cada instante
nessas à vida: tornar o dinheiro desprezível e, se possível,
inútil”, a uma contradição: “Contradição no sentido próprio do termo,
posto que o estado de guerra é a liberdade e a atividade humana
voltadas contra si mesmas, sob as aparências de seus próprios efeitos.
42. Marx, L 'Ideologie Allemande, p. 28/9.
43. D.O.L., idem, p. 76,
44, Rousseau, Considerations..., op. cit., p. 84/5. 45, Marx, Manuscritos..., idem, p. 141.
46, Rousseau, D.OL., idem, p. 77.
92 93
Contradição não apenas entre indivíduos e suas forças por
um
lado, e os obstáculos humanos da concorência universal, mas
tam-
bém (em função da natureza deste estado de alienação universal
)
entre cada indivíduo e ele próprio, entre o amor de si e o interesse
particular, entre a liberdade e a morte”.*7 A alienação, tanto no
sentido material (ligado à produção e ao trabalho) como dó sentido
moral (amor-próprio, ambição, inveja, separação entre o ser
e o
parecer) e social acentua-se no estado de guerra reconduzindo-nos
sempre à sua origem —a luta entre os que possuem e os que
não CONCLUSÃO
possuem, entre os ricos e os pobres.

BALANÇOS E PERSPECTIVAS

“Os homens da idade de ouro são felizes porque


ignoram todos os males de que sofrem as sociedades
civilizadas; têm por função, entre a história e a utopia,
povoar O espaço político em que se aventura o homem
europeu: do Renascimento ao Século das Luzes.
A uma sociedade que duvida de seus valores e de
seus podetes, apresenta-se a ocasião de se colocar
a si mesma em questão, de se pensar diferente do
que é, de inventar sua própria negação para medir
melhor sua alienação.” (Michêle Duchet)

A — Restaurar a Visibilidade: o Contrato

Como pôde o homem sair do estado de guerra? Rousseau


já mostrou que o gênero humano desapareceria se não mudasse
seu “modo de ser”; só resta ao homem assegurar sua conservação
através de um conjunto de forças agregadas que, agindo concor-
dantemente, pudessem sobrepujar a resistência dos obstáculos.
Trata-se de criar uma força capaz de ultrapassar os obstáculos
sobre os quais se desencadeiam as forças de cada indivíduo; esta
nova força a ser criada decorre das novas relações entre as forças
já existentes, colocando-as em “união ao invés de oposição.”*
I

47. Althusser, Cahters.,., idem, p. 12/13.


1, Althusser, Cahiers... o p. 13.
94 95

Deste ponto de vista, mudar a “maneira de ser” dos homens sig- natural e no hábito)*e a do corpo social, que não poderia ser fí-
nifica colocar o problema do Contrato em função da natureza sica pois não existe instinto social. Daí decorre a ausência de con-
dos indivíduos e destas forças: “Sendo, porém, a força e a liberdade tinuidade entre os dois: “A mais antiga das sociedades, e a única
de cada indivíduo os instrumentos primordiais de sua conservação, natural, é a família: as crianças só permanecem ligadas ao pai du-
como poderia ele empenhá-los sem prejudicar-se e sem negligen- rante o tempo em que necessitam dele para se conservarem. Lo-
ciar os cuidados que deve a si mesmo?”.? Assim, procura-se uma go que cessa esta necessidade, o elo natural se desfaz. As crianças,
“forma de associação” que assegure a união das forças dos indi- isentas da obediência que devem ao pai; o pai isento dos cuidados
víduos sem prejudicar os instrumentos de sua conservação — suas que devia aos filhos, recuperam todos igualmente a independência.
forças (no interior do estado de guerra as forças significam, além Se continuam a permanecer unidos, não é naturalmente, é volun-
das forças físicas, os bens) e sua liberdade. Novas forças que se tariamente; e a própria família só se mantém por convenção” é
chamam: interesse particular — “Esforçar-me-ei, sempre, nessa O corpo político não pode, portanto, formar-se nem por
pesquisa em aliar o que o direito permite ao que o interesse pres- extensão da família nem a partir de uma sociedade natural ou
creve, a fim de que a justiça e a utilidade não fiquem separadas”. geral; constitui-se em descontinuidade com a natureza física, o que
Isto pode ser feito através do Contrato. Nele, a liberdade o faz irredutivelmente outro: o advento do corpo político cons-
subsiste enquanto qualidade humana, como direito e como dever, titui uma “ruptura” — cabe à Lei reconstituir o campo social,
em suma, como fundamento da moralidade. A sociedade civil imprimindo-lhe uma dimensão simbólica que o estado de natureza,
será o espaço em que a liberdade pode se exercer plenamente — e em sua imediatez, não possui: “Se chamamos (...) política, a “for-
a passagem à sociedade civil produz uma mudança notável no ho- ma” na qual se descobre a dimensão política do social, não é para
mem; o instinto é substituído pela justiça e as ações humanas ga- privilegiar as relações de poder, entre outras, mas para fazer com-
nham a moralidade que lhes faltava. “É só então que, sucedendo preender que o poder não é “alguma coisa”, empiricamente deter-
a voz do dever ao impulso físico e o direito ao apetite, o homem, minada, mas indissociável de sua representação, e que a prova
que até então só olhava a si mesmo, vê-se forçado a agir sobre que se faz dele, simultaneamente prova do saber e modo de ar-
outros princípios e a consultar a razão antes de ouvir suas incli- ticulação do discurso social, é constitutiva da identidade social”?
nações.” * Apenas em sociedade suas “faculdades virtuais” têm A característica do corpo político em sua identidade, e que é a
cidadania e podem se desenvolver: “Embora se prive, nesse estado, marca da alteridade, se encontra na “moralidade”; mas isto não
de muitas vantagens que lhe vêm da natureza, ganha outras de basta para constituir o corpo político, na medida em que se pode
igual monta: suas faculdades se exercem e se desenvolvem, suas conceber uma sociedade sem Contrato, fundada apenas na lei moral,
idéias se estendem, sua alma toda se eleva”.º presente em todos e em cada um. Assim, O corpo político é uma
E preciso determinar a natureza do corpo social, já que ele pessoa moral que resulta da união dos seres físicos que o cons-
não existe no estado de natureza. E mesmo quando se sustenta, tituem, é um ser específico que não pode ser reduzido a seus com-
contrariamente ao “Segundo Discurso”, que a família é uma so- ponentes fundadores “mais ou menos como os componentes qui-
ciedade natural, haverá sempre uma heterogeneidade entre a estru-
tura da família (estrutura física fundada no instinto, na inclinação

* Cf. E.OL., cap. IX: “A inclinação natural bastava para Os unir


(os homens do estado de natureza), O instinto ocupava o lugar da paixão,
2. Rousseau, C,S., idem, I, VI, p. 243. o hábito ocupava o lugar da preferência.” (p.220).
3, €.S,, Idem, p. 233, 6. Cs., idem, I, II, p. 236.
4.€8., idem, 1, VIII, p. 246-7. 7. Claude Lefort, “Esquisse d'une Génêse de PIdeólogie”, in Revue
5. CS, idem, p, 247, Textures, p. 10, 74/8-9.
96

micos têm propriedades que não retiram de nenhuma das misturas


A descrição do estado de pura natureza surge, assim, da
que os compõem”? de conservar a independência e a irredutibilidade do
necessidade
O corpo político é um ser moral, fundado; quando se co- componente fundador e a do componente fundado*, cada qual
loca a questão de sua natureza, coloca-se, ao mesmo tempo, a de outro. Ou seja,
com uma natureza própria, independentemente do
sua origem, já que a questão sobre a origem só tem sentido para as pessoas privadas
além da pessoa pública, é preciso considerar
seres morais, isto é, a origem só constitui um problema em virtude indepe ndem delas. Po-
que a compõem, e cuja vida e liberdade
da desigualdade moral e não pela desigualdade física: “Concebo estrutu ra da pessoa moral
de-se passar da independência inscrita na
na espécie humana, dois tipos de desigualdade: uma, que chamo ente fundador;
à sua existência historicamente anterior ao compon
natural ou física, por ser estabelecida pela nabiréza e que con- que não
mas isto não representa uma dificuldade para Rousseau
siste na diferença de idade, de saúde, das forças do corpo e das o, mas sua
se interessa pela produção histórica do corpo polític
qualidades do espírito e da alma; a outra, que se pode chamar legitim a esta aprese ntação
explicitação enquanto ser moral — o que
desigualdade moral ou política, porque depende de uma espécie no “Segun do Discur so”
à margem .da história. E encontramos
de convenção e que é estabelecida ou, pelo menos, autorizada a questã o dos fundam entos:
um modo de colocar rigorosamente
pelo consentimento dos homens (...). os homens,
“pois, como conhecer a fonte da desigualdade entre
Não se pode perguntar qual a fonte da desigualdade natural er a eles mesmos ? e como o homem
se não se começar por conhec
porque a resposta estaria enunciada na simples definição da gi como O formou a nature za?”:! A
chegará ao ponto de ver-se tal
lavra. Pode-se, ainda menos, procurar a existência de qualquer para o exame da forma pela qual
partir daí, a análise se orienta
ligação essencial entre essas duas desigualdades, pois, em outras pa- (instinto, por
os elos puramente físicos do estado de natureza
lavras, seria perguntar se aqueles que mandam valem necessaria- dos homens num corpo político,
exemplo) podem permitir a união
mente mais do que os que obedecem, e se a força do corpo ou ade própria ; també m aqui, Rous-
-que apresenta uma individualid
a mas
seau não se interessa pela produção real da sociedade polític
do espírito, a sabedoria ou a virtude sempre se encontram nes-
tes mesmos indivíduos, na proporção do poder ou da riqueza”.? união, visto que
pela necessidade de constituir uma verdadeira
Mais ainda, a busca das origens constitui a única forma de desven- os homens mas apenas uma de uni-los”.
“há mil maneiras de reunir
dar a desigualdade moral e a natureza do corpo político: “Esse sociedades
O Contrato Social fornece o método para realizar as
mesmo estudo do homem original, de suas verdadeiras necessi- e não discu-
políticas, pois Rousseau procura “o direito e a razão
em de
te fatos” 12, O que se tenta apreender é a razão da passag
dades e dos princípios fundamentais de seus deveres, representa
ainda o único meio bom que se pode empregar para-descartar essa o: “O
um estado a outro, a causa da instituição do corpo polític
multidão de dificuldades que se apresentam sobre seus membros.
a origem da que é que faz que o Estado seja uno? é a união de
desigualdade moral, sobre os verdadeiros fundamentos do corpo de seus membro s? Da obriga ção que OS li-
E onde nasce a união
político, sobre os direitos recíprocos de seus membros e ir
ga”12, diz Rousseau na Lettre Escrite de la Montagne.
inúmeras questões semelhantes, , tão i importantes q quanto mal escla
A obrigação é um elo moral que permite a constituição do
E
: BR
recidas”.19
corpo político como ser moral; aqui tem início a idade: da razão
que distingue o Bem e o Mal. Se no estado de natureza o homem

et Simulacre”, Ca»
* A Expressão é de P. Hochart, “Droit Naturel
hiers....
8. Rousseau, Manuscrit de Génêve, I, 2, p. 284, O.C,, Pléiade, 1964, 11. D.OI., idem, p. 34.
9. Rousseau, D.O.[., idem, p. 39. , 12. Manuscrit de Génêve, idem, p. 297.
10. Rousseau, DO.F., idem, p. 37-8. 13. 0.C., I, p. 806, Pléiade.
98 99

se limita a satisfazer suas carências físicas, o estado civil será a


Neste sentido, o Emílio é uma primeira história da consciên-
fonte das “necessidades morais”; e no mesmo sentido em que ia
a cia natural que, através de suas experiências, ultrapassa a si
piedade permanecia inativa sem a presença da imaginação, a cons-
e a todos os obstáculos até a liberdade*. As leis entramdr
ciência só fala no instante em que o homem se torna um ser social. a ;
no Contrato e a Vontade Geral é a expressão de sua liber
É a consciência que permitirá o abandono do estado de guerra, compreendida como expressão do ini
racional, “razão”
dando nascimento a um “projeto refletido” que o neutraliza e por ocasião do Contrato. Para ee a =
o que só ocorre
fixa a “Jei de propriedade”. A sociedade regulada por tal proje- pe f E
berdade objetiva” (Sittlichkeit), a existência de pia
to não se limita apenas a reunir os homens, mas a unilos, pois e
não atingiram a reflexão filosofica, são o espaço real po iber
tem por base o direito natural e a razão (o que faz do homem ao poder e enc
a partir disto, a liberdade começa a se confrontar
pessoa moral); este projeto é inalienável, é o fundamento da “li-
tra seus limites; é o “caminho natural” da liberdade que enfrenta
berdade racional” ou da “razão em ação” — mas isto só existirá E e
a necessidade: para garantir as posses estas deverão
se a comunidade for “comunidade do direito natural”. RR E
em propriedade privada, com o aparecimento do E
O ato de associação é um engajamento recíproco entre o
Civil. O império do “direito privado” é o espetácu lo ilu o E
público e o particular; o que o homem perde pelo Contrato, é termos hege is
a liberdade (o momento da subjetividade em
liberdade natural, um direito ilimitado a tudo quanto possa pre- A o.
na medida em que deve ser a si mesmo seu
tender conquistar; o que ganha é a “liberdade civil”, a propriedade o
É preciso buscar fora dele o princípio de sua legitimidade.
de tudo o que possui; a sociedade é entendida como um “sistema associaç ão Em ça
que Rousseau diz: “Encontrar uma forma de
positivo de empreendimentos artificiais” e não um conjunto
de fenda e proteja, com toda força comum, à pessoa e Os EA
limitações, uma luta mortal para a satisfação egoísta dos desejos
cada associado, e pela qual, cada um, unindo-se a todos, s ES
e paixões, pois o estado de natureza torna-se, no estado de guerra,
deça contudo a si mesmo e permaneça tão livre sadia Edna
o reino do arbitrário, da carência, onde o homem é um ser em dá a
é o problema fundamental ao qual o Contrato Social
necessidade: o estabelecimento de uma sociedade torna indispen-
ção” 18
sável o de todas as outras e para enfrentá-las unidas foi preciso
O Contrato Social pode então ser entendido como um pro
a união de cada uma individualmente — as sociedades se multipli- E
longamento do Discurso, na medida em que sua finalidade ques
cam e se espalham rapidamente “cobrindo toda a superfície e em que O homem se en E
da em regulamentar o estado de sociedad
Terra” e não é mais possível “encontrar um único recanto no
uni- trou. A ordem social, “direito sagrado”, serve de base a to o
verso em que conseguisse escapar av jugo. (...) Tornando-se, deste
os direitos e se funda sobre convenções que implicam a bay
modo, o direito civil a regra comum dos cidadãos, a lei natural
dade: o Contrato dará a solução se e somente se Rousseau izer
-só encontrou lugar entre as diversas sociedades onde, sob o isto é, o lugar em que a razão
nome dele o universal concreto hegeliano,
de direito das gentes, foi temperada por algumas convenções feitas
i se identificam efetivamente.
para tornar o comércio possível e suplementar à comiseração natural E
c Ret pode consegui-lo, dados os Ra da
que, perdendo entre as sociedade quase toda a força que A Ro e
tinha original do homem e da origem social dos E
entre os homens, só reside ainda em algumas grandes almas cosmopo-
deprava e perverte os homens; quanto mais se reúnem, mais Se
litas (...) que acolhem todo gênero humano na sua benevolên
cia.
Os corpos políticos permanecendo deste modo, entre
si,
no estado de natureza, logo se ressentiram dos inconvenientes
que haviam forçado os particulares a sair dele”.!4 nologia do Espírito
* Esta é a visão hegeliana que aparece na Fenome
e na Filosofia do Direito.
14. D.O.I., idem, p. 79. 15.C.S., idem, p. 243.
100 101

corrompem”.!é O interesse corrompe as relações naturais do ho- nidade como pessoa moral não precede à do corpo político mas
mem na sociedade natural (a da primeira revolução) — o reino deriva dele; da mesma maneira, o “direito natural” é apenas uma
do amor de si, da piedade e da simpatia. A sociedade civil, ao invés extensão do direito civil à sociedade geral de que “o Estado nos
de restabelecer o equilíbrio e de proteger o mais fraco contra o dá a idéia”.!8 Por esta razão Rousseau diz em seguida: “é apenas
mais forte, faz a lei se exercer em proveito do segundo, aumentan- da ordem social estabelecida entre nós que retiramos as idéias
do a desigualdade. A passagem do estado de natureza ao estado daquela que imaginamos. Concebemos a sociedade geral conforme
civil é descrito no Discurso como “deterioração da espécie”; no nossas sociedades particulares, o estabelecimento de pequenas
Contrato, ao contrário, é vista como promoção: passagem da ani- repúblicas nos faz pensar nas grandes e só começamos a nos tornar
; ; a an ço19. Es
malidade à humanidade; a sociedade do Contrato se encontra longe propriamente homens depois de sermos cidadãos”**; ou então,
das relações de força que existem entre os objetos. Para curar os “a lei é anterior à justiça e não a justiça à lei”.?º
males sociais é preciso substituir o homem pela lei e armar a von- O direito natural não é, pois, o direito do estado de natureza
tade geral de uma força superior à toda vontade particular, pois mas deriva do direito civil de instituição. P. Hochart?! mostra
entre o fraco e o forte é a liberdade que oprime e a lei que libera. que há nisto uma espécie de círculo onde se encontra encerrado
A sociedade do Contrato é o produto da realização do homem, todo pensamento sobre a origem. Deve sempre existir uma “co-
já que não retira as regras da vida social de nenhuma autoridade originalidade” ou uma “complementaridade de origem” do direito
que o ultrapassa, de nenhum direito natural pré-existente: o na- natural e da lei civil; o círculo da origem abrange q desejo de indi-
tural é o que determina o indivíduo, o social é determinado por visão, encarregado de se realizar pela Natureza (Discurso) e pela
ele. Se o homem entra na sociedade contratual é justamente por- Lei (Contrato). Nos termos de Rousseau: “Seria necessário que
que não há direitos pré-existentes. “Desde que é a força que faz o efeito pudesse tornar-se causa, que o espírito social — que deve
o direito”, afirma Rousseau, “o efeito muda com a causa: toda ser obra da instituição, presidisse à própria instituição e que os
a força que supera a primeira sucede a seu direito. Desde que se homens fossem antes das leis o que devem tornar-se através de-
pode desobedecer impunemente, pode-se-o legitimamente, e já las”.22 Mas Rousseau tem necessidade de fundar o direito polí-
que o ruais forte- tem sempre razão, a única coisa a fazer é agir tico sobre o direito natural, única maneira de fazer derivar deter-
de tal modo a ser o mais forte. Ora, que direito é esse que perece minações que escapem ao arbitrário, que tenham força não so-
quando cessa a força? Se é necessário obedecer pela força, não mente de reunir mas de unirt P. Hochart explica: “eis por que
se precisa obedecer por dever, e se não se for mais forçado a obe- é possível descrever uma estranha reviravolta em que o direito
decer, não se é mais obrigado a isso. Vê-se, pois, que esta palavra
direito nada acrescenta à força; aqui não significa absolutamente 18. Manuscrit de Génêve, II, idem, p. 327.
nada”,!? 19. Idem, ibidem, p. 287.
20. Idem, ibidem, p. 329.
Todo direitoé por natureza político e só adquire sentido 21. Cahiers... 1
na sociedade que ele constitui; o “direito natural” ou a “justiça 22.C.S., idem, II, VII, p. 262.
universal” não podem ser compreendidos, colocados do ponto de *, Devemos considerar que a sociedade civil pressupõe sua origem
a partir da sociedade geral e engendrará a sociedade política. Por isso, o
vista da sociedade, como a obrigação que estabelece a humanidade lugar da sociedade geral se encontra entre o estado de pura natureza (onde
enquanto pessoa moral. Se não existe sociedade geral da humanidade a sociedade não existe) e o estado civil (onde o estado de natureza não existe
nem obrigações no estado de natureza, a constituição da huma- mais e não mais poderia existir). Deste ponto de vista, a sociedade geral é
o período da sociedade e do direito naturais que se identifica com a “socie-
dade nascente”, ou “sociedade começada”, no momento da dança e do canto
16. Rousseau, Emile, II, p. 207, Ed. Hachette. (capítulo IX do Ensaio) enquanto não existe a “idade patriarcal” em que
17.C.S., idem, III, p. 238. a sociedade já está fortemente estruturada.
102 103

natural e a sociedade geral, longe de serem quimeras imaginadas nomas e livres, sem sofrer “solidão ou servidão”; sua existência
no modelo da sociedade e do direito civis, aparecem como o que pessoal justifica-se e garante-se pelo reconhecimento do outro,
torna possível a constituição de um direito e de uma sociedade
fundada na benevolência unânime: “Estas cláusulas (as do Contrato)
civil, que só têm realidade moral (...) na. medida em que se con- reduzem-se todas a uma só: a saber, a alienação total de cada asso-
formem às exigências do direito natural e da sociedade geral”.2? Os
ciado, com todos os seus direitos, à comunidade toda: pois, em
bens sociais só podem consolidar-se a partir do “sentimento de
primeiro lugar, cada um dando-se inteiramente, a condição é igual
humanidade”: “Parece que o sentimento de humanidade evapora
para todos. (...)
e se enfraquece ao estender-se por toda a terra (...). É preciso, de
Ademais, fazendo-se a alienação sem reservas, a união é tão
certa maneira, limitar e comprimir o interesse e a comiseração associado terá algo mais a re-
perfeita quanto pode ser e nenhum
para dotá-lo de atividade”.?*
clamar (...).
Torna-se uma necessidade fundar o direito civil sobre o di- Enfim, cada um dando-se a todos não se dá a ninguém. (...)
reito natural, única alternativa para que o Contrato Social não
Cada um de nós põe em comum sua pessoa e toda. sua potência
infrinja a lei natural; o Contrato deverá respeitar os “direitos de
sob a direção suprema da vontade geral; e recebemos ainda cada
humanidade”, que de certa forma são anteriores ao direito civil
membro como parte indivisível do todo”.?º
e o ultrapassam: e “toda virtude que se funda sobre uma violação
O que Rousseau apresenta no Contrato Social é a diferença
deste direito (natural) é uma falsa virtude que encobre infalivel-
entre o homem natural que vive no estado de natureza e o homem
mente alguma inigiidade”.?$ O verdadeiro Contrato é o que forma e o Emí-
natural que vive em sociedade; a bondade natural subsiste
o povo, em seu sentido político, como um conjunto de associados, morar na
lio é o selvagem feito para viver em sociedade, “para
como corpo moral ao qual o pacto confere unidade. Ainda por do Emílio deverá despertar
cidade”. Por isso, toda a educação
isto, o Contrato Social toma “os homens tais comc são e as leis
as paixões doces e afetuosas e impedir o nascimento das paixões
tais como podem ser”.?$ O Contrato deve fundar-se numa “a- degradantes e cruéis, opondo “a força expansiva do coração” às
zão cultivada” pois o homem sensível e passional descobre através “pulsões egoístas”. *
do amor a seu semelhante e da comunicação, que foi feito para Entretanto, a reflexão sobre a natureza do Contrato leva
a sociedade — resta-lhe constituir uma que seja feita para o homem;
Rousseau a acusar a cumplicidade entre seu nascimento e a con-
o Contrato permitirá a construção de uma sociedade em que sejam solidação da propriedade privada; disto derivou a concorrência, à
garantidas a liberdade e a igualdade pelo abandono voluntário das
rivalidade, a oposição dos interesses e “o desejo escondido de lucrar
pessoas e dos bens à comunidade. O homem se aliena no Contrato
às custas do outro”. Fixando-se a lei de propriedade, fixa-se a
— “alienar”, diz Rousseau, “é dar ou vender”?” — mas está alie-
desigualdade, e as leis que “de uma hábil usurpação fizeram um
nação não poderia ser compreendida no mesmo sentido que a
direito inexorável e, para o lucro de alguns ambiciosos, sujeitaram
do Discurso e a do pensamento de Marx. Trata-se, no Conirato,
a partir de então todo o gênero humano ao trabalho, à servidão
da alienação total pela qual os seres se “entre-oferecem”, tornan- e à miséria”.2º Mais ainda, o direito de propriedade e o delito
do-se mutuamente visíveis, isto é, trata-se de uma certa forma da re-
cuperação da presença com o direito de existir como pessoas autô-

23; Cahiers ..., p. 75. .


28. Rousseau, C.S., 1, VI, p. 243/4.
24. Rousseau, Discours sur 'Economie Politique.
* Relembremos que o estado de guerra provém da identidade imediata
25. Rousseau, Troisiême Dialogue, IX, Ed. Hachette. repre-
do interesse particular com o indivíduo proprietário singular. O Emílio
26.C.8., I, IV, idem, p. 235. “mediação” , o “natural do social”.
senta a “pessoa” que é a
27. Rousseau, C.S., idem, I, IV, p. 239. 29. Rousseau, D.O.I., idem, p. 76.
104 105

caminham lado a lado: não existe propriedade sem direito de punir os primeiros corpos políticos é vicioso por sua própria natureza, e
— de onde a necessidade de um outro Contrato. Mas, posto que longe de ser um “ato de razão”, pelo qual todos renunciariam à
Rousseau fala no Discurso da subsistência das sociedades naturais violência pelo respeito às leis, ele cria novos entraves aos pobres
não-contratuais, as que não dividem as terras e não estabelecem e novas forças aos ricos, destruindo para sempre a liberdade na-
a propriedade, o Contrato parece sempre acrescentar os efeitos tural.*E no próprio Contrato Social, Rousseau diz que o forte
da desigualdade econômica aos da desigualdade natural, conduzindo nunca o é2 suficientemente para permanecer sempre “Senhor”, a
necessariamente à desigualdade de instituição.* não ser que transforme sua força em direito e a obediência em
“Rousseau faz do estado das leis o resultado de um pacto entre dever.?º A Lei marca e perpetua o estado de guerra, fazendo de uma
indivíduos desiguais. Longe de representar um progresso na histó- “hábil” usurpação, um direito “inexorável”.
ria do homem, o Contrato não é outra coisa senão violência e mi- O significado da lei em Rousseau é analisado por Derrida,
séria, corrupção e vício. O Contrato poderia garantir a continui- na Gramatologia, a partir da noção de suplemento: “Tudo aqui
dade do estado de natureza se a lei fosse um pacto entre indiví- está reunido: o progresso como possibilidade de perversão, a re-
duos iguais, o que ocorreria se Rousseau pudesse afastar a natureza gressão em direção a um mal que não é natural e que se prende
histórica do Contrato e fazer dele um princípio lógico. Mas no ao poder de suplência, que nos permite ausentarmo-nos e agirmos
Segundo Discurso está sempre presente a questão da moralidade por procuração, por representação, pelas mãos de outrem. Por
que as ações humanas poderiam conservar num corpo político escrito. Esta suplência tem sempre a forma do signo”.?! O que
que a cada instante se volta na direção da dissolução e da morte.** Rousseau denuncia é a forma pela qual o signo, a imagem ou o
A sociedade civil poderia ligar os homens e fazer do amor ao outro representante tornam-se forças; suplemento é o que vem se co-
o princípio da ordem moral, se o homem se tornasse mau ou a locar no lugar da natureza, no sentido de que é sua imagem ou
sociedade virtuosa. sua representação — e portanto cria um registro histórico novo;
o suplemento que epa a natureza” age como a escrita, e como
ela representa uma “ameaça” à vida: assim como a escrita “abre
uma crise” — a da palavra viva, presente a partir de sua imagem,
B — Um Balanço Provisório de sua pinta ou representação, a lei instaura a crise no que con-
cerne à presença do ser. A lei começa por representar, ao mesmo
O estado de guerra marca o instante em que o homem se tempo, o interesse geral e o particular, pois este continua exis-
encontra manifestamente desnaturado; o primeiro pacto social tindo; no fundo, o interesse particularé a verdadeira essência da
2
— o Contrato — é insuficiente para dissolver os vícios que aí se lei e do próprio interesse geral. Por toda parte trata-se do mesmo
desenvolvem. Rousseau destrói a essência do hobbesianismo, que “interesse particular”, só que, no primeiro caso, trata-se do inte-
faz nascer a justiça do pacto que funda a sociedade civil e põe fim
à angústia do estado de natureza: para Rousseau, o pacto que funda

* Nos Fragments Politiques Rousseau diz: “Se me perguntasem qual


*, Não se deve esquecer que “o queo homem perde pelo Contrato é o povo mais corrompido, eu responderia sem hesitar que é o que tem a
Social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo o que tenta e pode maior quantidade de leis (...) pois quem sgbe escutar a voz de sua própria
alcançar; o que ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo que possui” consciência não necessita de outras leis.” (0.C., Pléiade, III, p. 493). E o texto
(Rousseau, C.S., idem, 1, VIII, p. 247). conclui indicando que se um povo possui muitas leis, é que não são boas
**, No Discurso a genealogia do mal tem como origem o econômico: nem eficazes.
no Contrato a Genealogia do corpo político como equilíbrio possível tem 30. C€.S., idem, I, II, p. 238.
como origem a Lei e a Pessoa e portanto a questão do Poder. 31, Derrida, op. cit., p. 210.
106 107

resse particular de cada indivíduo isoladamente e, no segundo, do narse poder transmitido, vontade particular, preferência. Desi-
interesse particular de grupos sociais. Assim, a “vontade geral” gualdade, A Vontade Geral torna-se muda.* Embora o Contrato
não poderá exercer-se: “Só a vontade geral pode dirigir as forças Social seja fundado num momento anterior à representação, ele
do Estado de acordo com a finalidade de sua instituição, que é é obrigado a recorrer a ela; por esta razão “o corpo político como
o bem comum; porque, se a oposição dos interesses particulares o corpo do homem começa a morrer desde o nascimento e traz
tornou necessário o estabelecimento das sociedades, é o acordo em si mesmo as causas de sua destruição”.?*
destes mesmos interesses que o tornou possível. O que há de co- Todo o Mal procede da ausência, da não-presença. Isto é
mum nestes diferentes interesses é o que forma o liame social (...). sentido por Rousseau que tenta restaurar a presença, propondo
Ora, é unicamente sobre este interesse comum que a og nas Considérations sur le Gouvernement de Pologne, a rápida re-
deve ser governada”.» 34
novação dos representantes para dificultar a “sedução do poder”.
E se Roussau o diz, é pustismente porque não é isto que anarnes Mas a representação vai se tornando cada vez mais representativa,
no Estado existem sempre “Erupos humanos”, “interesses de grupo” agravando a ausência do representado. Rousseau diz: “Seja como
e “classes”. Althusser diz: “esta famosa liberdade em particular for, no instante em que um povo se dá representantes, não é mais
(a do Contrato), solenemente atribuída ao homem do primeiro livre, não é mais”.? Os deputados do povo não são e não poderiam:
estado de natureza, reserva o depósito sagrado para o não-se-sabe- ser seus representantes, são apenas seus comissários, e não podem
quando, isto é, para o porvir da Moral e da Religião (e para a Von- concluir nada definitivamente; toda lei que não é retificada pelo
tade Geral, isto é, para o Interesse Geral) — percebe-se que o ho- povo em pessoa,é nula, não é uma lei: “o povo inglês pensa que é li-
mem natural não tem necessidade dela e nem a utiliza; que todo vre; está muito enganado pois só o é durante a eleição dos membros
o “Segundo Discurso” vive perfeitamente sem ela. Ver-se-ia também do parlamento: desde que são eleitos, ele é escravo, não é nada”.?”?
o que ela é para os grupos sociais; não é o corpo dos ricos que O direito civil e a lei que o cristaliza não são outra coisa
toma a iniciativa do Contrato Social, cujos argumentos agora são senão simulacro do direito natural, O simulacro é o inimigo do
dados: o empreendimento muito refletido da maior impostura .
modelo na medida em que é essencialmente outro, e na medida
da história do gênero humano? O verdadeiro Contrato Social,
em que se constitui a partir do modelo em sua ausência. O Simula-
legítimo este, encontra assim, ao término do deslocamento de
cro e o Modelo são incompatíveis em sua presença, como a sociedade:
seus conceitos, as mesmas realidades de que o “Segundo Discurso”
civil e a sociedade geral; além do que, o simulacro desfigura e. de-
descrevera a existência,e sua lógica implacável”.?? Rousseau está
sonra o modelo: “Choremos a nossa (Pátria), ela pereceu e o simu-
bem longe do que pretendia exprimir quando escrevia que a vontade
lacro que ainda resta só serve para a desonrar”.?8 A lei faz a desi-
geral é aquela que deveria partir de todos e aplicar-se a todos: “a gualdade progredir — sua primeira forma é a lei e o direito de pro-
vontade geral para o ser verdadeiramente, deve sêlo tanto em pricdade, a segunda é a instituição da magistratura e a terceira e
seu objeto quanto em sua essência: deve partir de todos para se última é a transformação do poder “legítimo” em poder arbitrá-
aplicar a todos”.?* ro: assim a primeira revolução acaba por autorizar o estado de
Onde situar, então, os males da representação? O mal in-
tervém no momento em que se delega a vontade soberana e, conse-
quentemente, a lei é escrita; a vontade geral corre o risco de tor-
* Malas uma vez é uma queda na dimensão empírica e imediata que
dá a genealogia do Mal,
15,05, Idem, p, 297,
32.CS., idem, II, I, p. 249/250. 16, 6,8, 1d. ibid, p. 297,
33. Cahiers. .., p. 37/8. 14 CS, Idem!p, 302,
34.C.S., idem, p. 254. 38, Carta ao Coronel Plokot, de março de 1764,
“108 109

rico e o de pobre; a segunda, o de forte e fraco, e a terceira, o berdade. Eis porque, para impedir a degenerescência do sistema,
de senhor e escravo, último passo da desigualdade. Neste momen- o “verdadeiro” contrato se coloca fora do ciclo das revoluções
Pa, to — já que a desumanidade do senhor determina a fuga ou o sui- — o que permite a Rousseau estabelecer uma concepção não ju-
“eídio do escravo — a lei vem socorrer o escravo, não para lhe de- rídica do Estado: a Revolução não é a passagem de uma forma *
volver a liberdade, mas a ilusão da liberdade, não a propriedade de governo a outra, mas o ato pelo qual pode-se interromper O
de si, mas a “consciência de sua dignidade”, que o gratifica da círculo fatal das revoluções, para instituir uma sociedade justa.
servidão. O bom senhor é aquele que faz o escravo esquecer sua No entanto, isto permanece apenas esboçado em Rousseau. A
condição, tratando-o não como “seu igual” mas como seu seme- oposição entré a Natureza e a Culturaé irremediavelmente o ins-
lhante.* tante em que se passa de um estado, em que nada falta ao homem,
A ordem política se liga necessariamente ao reunir e não a um outro, em que tudo é carência e necessidades jamais satis-
ao “unir”, ao “rassembler” e não ao “assembler”, ao “Yattacher” feitas. A sociedade do Contrato não escapa a isso, pois é obrigada
e não ao “Jier”; e este vocabulário político explica que a ausên- a recorrer à representação, tornando-se “poder transmitido”, “ von-;
cia do prefixo faz prevalecer a liberdade sobre a necessidade. No tade. particular”, “desigualdade”, e no “sistema de representação”
Emílio, Rousseau diz que as boas instituições sociais são as que a igualdade só é aparente e ilusória: “Ela só serve para manter
conseguem desnaturar o homem da melhor maneira, o que de- o pobre em sua miséria, e O rico em sua usurpação. Na realidade,
pende da natureza do Contrato inicial. E já sabemos que se recai as leis são sempre úteis aos que possuem e prejudiciais aos que
na força do rico. Por mais que se esforçassem em dizer “isto é meu, não têm nada”.*º
fui eu que construí este muro” os despossuídos poderiam res- Por isso, Rousseau termina o primeiro livro do Contrato,
ponder: “Ignorais que uma multidão de vossos irmãos perece e por uma observação que deve servir de base a todo sistema social:
sofre a necessidade do que tendes a mais e que vos seria necessá- ao invés de restaurar a igualdade natural, o pacto social substitui
rio um consentimento expresso e unânime do gênero humano a desigualdade física (natural) pela “igualdade moral e legítima”;
para que, da subsistência comum, vos apropriásseis de quanto no descartar a desigualdade de “força ou de gênio”, todos se tor-
ultrapasse a vossa? Destituído de razões legítimas para justifi- nam (guais por convenção e de direito: a igualdade jurídica camu-
car-se e de forças suficientes para defender-se (...), O rico, forçado fla a desigualdade social e econômica das condições reais de exis-
pela necessidade, acabou concebendo o projeto mais refletido tência. É disto que Marx fala na Crítica ao Programa de Gotha
que até então passou pelo espírito humano”, o Contrato.?º o direito igual tem sempre um limite: o direito do produtor”
As revoluções que culminaram no despotismo, na dissolu- é proporcional ao trabalho que fornece e, neste sentido, a igual-
ção e na morte são, pois, o efeito da corrupção política que de- dade consiste na aplicação do trabalho como unidade de medi-
veria ter sido rompida com a criação das condições próprias à li- da comum. Entretanto, um indivíduo que ultrapsse “fisicamen-
te ou moralmente” um outro, é capaz de fornecer “mais traba-
lho”, pode trabalhar mais tempo; e para que o trabalho possa servir
de medida, é preciso determinar sua duração e intensidade, de
*, “Se seguirmos o progresso da desigualdade nessas diferentes revo- outra maneira ele não seria mais a unidade. Marx diz: “O direi-
luções, verificaremos ter constituído seu primeiro termo o estabelecimento to igual é um direito desigual, Não reconhece nenhuma distinção
da lei e do direito; a instituição da magistratura, o segundo, sendo O terceiro de classe, porque cada homem só é um trabalhador como outro
e último a transformação do poder legítimo em poder arbitrário; de tal forma a desigualdade dos dons
qualquer, mas reconhece tacitamente
que o estado de rico e de pobre foi autorizado pela primeira época; o de
poderoso e de fraco pela segunda, e, pela terceira, o de senhor e escravo.”
(Rousseau, D.O.I., idem, p. 77/8).
39. D.O.I., idem, p. 77/8. 40,058, 1, p. 249, nota,
a.
110 111

individuais e, consegiientemente, da capacidade de rendimento ra, mas o que acorrenta* : “O espírito raciocinador e filosófico
como princípios naturais: é, pois, em seu teor, um direito funda- prende a vida, afemina, avilta as almas, concentra todas as pai-
do sobre a desigualdade, como todo direito. O direito, por sua xões na baixeza do interesse particular, na abjeção do eu huma-
natureza só pode consistir no emprego de uma mesma unidade no e mina assim, secretamente, os verdadeiros fundamentos de
de medida; mas os indivíduos desiguais (e não seriam indivíduos toda sociedade”
**
distintos se não fossem desiguais) só são mensuráveis segundo Rousseau já havia mostrado que a razão substitui a paixão
uma unidade comum se os considerarmos de um mesmo ponto natural pela paixão pervertida; as paixões naturais são os princi-
de vista, se os apreendermos sob um aspecto determinado; por pais elementos da conservação da vida e determinaram o apare-
exemplo, no presente caso, se são considerados como trabalha- cimento das línguas (no Ensaio, nos países frios as línguas derivam
dores e nada mais, abstraindo-se todo o resto. Por outro lado: da necessidade, nos países quentes, das paixões); mas à medida
um operário é casado, outro não; um tem mais filhos que o outro que aumentam e se ampliam as necessidade, a razão se desenvol-
etc.; com igualdade de trabalho e consequentemente com igualdade ve, a linguagem muda de figura — torna-se mais precisa e menos
de participação no fundo social de consumo, um recebe pois efeti- apaixonada, substituindo sentimentos por idéias, não se dirigin-
vamente mais que o outro, um é mais rico que o outro etc. Para do mais ao coração mas à razão: “O estudo da filosofia e o pro-
evitar todos este inconvenientes, o direito deveria ser, não igual gresso do raciocínio, aperfeiçoando a gramática, privaram a lín-
mas desigual”?! gua desse tom vivo e apaixonado que a tornava de início tão can-
A lei generalizadora não pode prestar atenção à “diferen- tante (...). Desde que a Grécia ficou repleta de sofistas e de filó-
ça” — só a presença permanente poderá fazê-lo. Por isto, Rousseau sofos, não se viram mais nem poetas nem músicos célebres. Ao
diz no Contrato que a Vontade Geral não pode ser representada: cultivar a arte de convencer perdeu-se a de comover”.** Isto sig-
ou ela é ela mesma ou torna-se outra coisa, não existe meio ter- nifica que o homem está separado do mundo pelo acúmulo de
mo. Toda sociedade deve possuir regras jurídicas, religiosas, po- argumentos, o que abre as vias aos preconceitos tornando o homem
líticas, econômicas “enquanto que sua conquista da natureza, insensível à ordem da natureza que só se oferece aos “olhos des-
sem a qual ela não seria mais uma sociedade, faz-se progressiva- prevenidos”. No fundo, o que Rousseau diz é que não se cura a
mente, de fonte em fonte de energia, de objeto em objeto. Eis desigualdade com argumentos que a agravam**. Resta-lhe procurar
porque a lei pesa com todo seu peso, antes mesmo de se saber “um lugar selvagem na floresta”? onde nada denuncie a servidão
qual é seu objeto, e sem que nunca se saiba exatamente”.*2 Uma e a dominação, “onde eu possa acreditar ter sido o primeiro a
legislação perfeita seria a que transformasse os homens a ponto entrar e onde nenhum terceiro importuno viesse se colocar entre
de se tornar inútil — diz Rousseau nos Fragments Politiques. E
no Contrato, afirma que aquele que ousa empreender a instituição
de um povo tem que se sentir capaz de mudar a “natureza huma- *, Cf, Marx, El Capital, vol. 1: “O escravo romano está ligado a seu
na”; e mais — “um povo que governasse sempre bem não neces- proprietário por meio de correntes, o assalariado está ligado ao seu por laços
sitaria ser governado” *? invisíveis, A aparência de autonomia mantém-se pela constante variação
A partir de agora, podemos retomar a questão da liberdade do patrão individual e pela fíctio juris do Contrato.” (p. 186).
e da razão no Contrato. A “razão contratual” não é o que libe- 44, Roussoau, Narcisse, p. 104/5, Ed. Hachette.
45,00. L,, idem, cap, XIX, p. 262.
se Of, tumbém Nietzsche, Crépuscule des Idoles, p. 49 (trad, Albert,
Ed, Gallimard, 196H) onde diz que não se cura o ascetismo, as condições
41. Critique du Programme de Gotha. de existência não podem ser refutadas com argumentos: “Não se refuta o
42. Gilles Deleuze, Logique du Sens, p. 69. cretianhamo, não se refuta uma doença dos olhos. Ter-se combatido o pes-
43.C.S., HI, idem, p. 280. alemao como uma fosofia, fol o cúmulo da idiotia sábia.”
112 113
a natureza e eu. Seria aí que ela (a Natureza) pareceria oferecer blema político: ela só é modelo para um pequeno grupo de pes-
a meus olhos uma magnificência sempre nova”.*S Rousseau é soas virtuosas capazes de dar a si mesmas suas próprias regras;
conduzido à “busca da solidão” pela mesma razão que o fez ima- é uma sociedade justa, onde o homem faz a experiência da feli-
ginar o estado de natureza. Lebrun observa, entretanto, que a cidade de viver entre seus semelhantes, onde seu ser moral e seu
solidão não significa uma fuga à sociedade, mas a condição de ser social confundem-se numa mesma vocação: “Teria desejado
possibilidade da sociabilidade cuja idéia está encoberta pela vida nascer num país no qual o soberano e o povo não pudessem ali-
social: “Posto que o espetáculo do reino vegetal nos ocasiona o” mentar senão um único e mesmo interesse” .*º
prazer que experimentaríamos em todos os momentos no reino Em Clarens não há a “técnica de representação” das associa-
dos fins, um pacto” secreto liga a floresta à cidade ética (...). O ções políticas; estas são substituídas pela participação ativa de cada:
retiro longe dos homens ensina-nos a amar o gênero humano”.*”? um na vida da comunidade, nas assembléias, nos pequenos centros
em que todos se confundem e se compreendem facilmente: vivem
uns sob o olhar dos outros. Julie, na Nouvelle Heloise, percebe
C — Um Balanço sem Perspectivas a proximidade dos amigos como uma parte de seu ser: “estou cer-
cada. por tudo que me interessa, todo o universo se encontra aqui
Mas o que é este pacto secreto se não for o Contrato? para mim; desfruto ao mesmo tempo do apego que tenho por
meus amigos e do que me prestam; do que têm um pelo outro; sua
A sociedade justa é uma possibilidade extra-histórica, a pa- benevolência mútua ou vem de mim ou se me refere; nada vejo
tir da qual (deste pacto ideal) é possível reconhecer o que há de que não amplie meu ser e que o divida; ele está em tudo que me
mistificador no pacto histórico. A noção de Natureza permitiu cerca, nenhuma porção existe longe de mim; minha imaginação não
um “distanciamento histórico” e a noção de “direito” (no sen- tem mais nada a fazer, não tenho nada a desejar; sentir e desfrutar
tido de oposição ao fato) manifesta a dimensão das infrações: — são para mim a mesma coisa; vivo ao mesmo tempo em tudo que
ela é a possibilidade de um saber crítico e de uma ação nova. amo, eu me satisfaço de felicidade e de vida”.*º Além disso, nos
Deste ponto de vista, Rousseau vai estabelecer uma norma momentos de festa, encontra-se a unidade primitiva, pois é um
cuja oportunidade de sucesso se liga à constituição dos “peque- espetáculo onde se restaura a presença original. A festa exprime
nos grupos” — Clarens. E isto porque, ao opor a imagem do homem . no plano existencial da afetividade o que o Contrato formulou
sábio à do homem corrompido, o Discurso evidenciou um impasse: no plano da Teoria do Direito. E, como ele, está condenada. Em
a condição do selvagem não pode mais ser reconquistada e a do meio à alegria pública, cada qual é ao mesmo tempo ator e espec-
civilizado é inaceitável. A sociedade de Clarens, delineada na Nou- tador — o que o Contrato propõe no plano da Vontade e do Ter,
velle Héloise não poderá reencontrar a existência no “imediato” a festa realiza no plano do Olhar e do Ser: cada qual se aliena no
(como faz o homem primitivo), no instantâneo; tratar-se-á de um olhar do outro mas volta a si mesmo por este “reconhecimento
imediato recuperado num outro plano, que já se enconta media- universal” — a festa reconquista o reino da sensibilidade, num
tizado; não é mais a felicidade espontânea mas é “a reparação universo de música e de dança. No Ensaio Rousseau explica: a
refletida da infelicidade”.** A pequena sociedade de Clarens, música não comove a alma, mas remove o corpo; o canto perten-
em que poderia viver o Emílio, é uma solução moral a um pro- co no homem e assim que se ouve “canto ou sinfonia” é por que
“um outro ser sensível está aqui”. Na festa, o homem canta, dan-

46. Rousseau, Terceira carta a Malherbes.


47. Lebrun, Kant et la Fin de la Métaphysique, p. 350. 49, DO, Idem, p, 26,
48. Starobinski, T. et O., idem, p. 335. 50, Viême partie, op, cit, VII, O,C,, Ed. Pléiade, VII, p. 689.
II4 115

ça, enfeita-se: são signos que se bastam e indicam a presença cer- A igualdade reencontrada reaparece nos dias de festa mas
ta do outro, pois “um homem abandonado numa ilha deserta não desaparece assim que estas terminam; em seu quotidiamo, Clarens
arrumaria sua cabana unicamente para si; não procuraria flores não vive na igualdade natural dos “primeiros tempos”, mas na
para se enfeitar e as plantaria ainda menos. O prazer do enfeite igualdade civil sonhada pelo Contrato. Senhores e servidores con-
só tem sentido pela admiração dos outros, supõe que levo em con- tinuam a ser desiguais, embora os “senhores” o sejam pela “con-
sideração seu olhar”. ! fiança” (IV parte, carta X). M. Wolmar busca a confiança de seus
Para Rousseau, são mentirosos os espetáculos que excluem servidores para fazer deles “bons servidores” — trata-se de uma
e reunem um pequeno número de pessoas “num pequeno canto sociedade patriarcal, tal como se vê nesta espécie de organização
escuro” e que “só oferecem aos olhos cercas, lanças, soldados, doméstica. São os senhores que conservam o privilégio de senti-
imagens aflitivas da servidão e da desigualdade”.*? É ao ar livre rem-se iguais com relação a seus servidores e não o inverso. O sen-
que os “suaves sentimentos” podem unir-se: “Plante-se ao meio timento de igualdade dos senhores permite-lhes desfrutar de suas
de uma praça uma estaca coroada de flores, reúna-se o povo e se propriedades sem consciência culpada: “eu me admirava: como,
terá uma festa. Faça-se ainda melhor: que se dê os espectadores com tanta afabilidade, pudesse reinar tanta subordinação e como
como espetáculo; que eles próprios se tornem atores; faça-se que ela e seu marido (Julie e Wolmar) podiam descer e igualar-se com
cada um veja e se ame nos outros, para que todos se unam me- tanta frequência a seus empregados sem que estes fossem tentados
lhor”.º? Mas as belas almas sabem que a festa é uma ilusão. Os a tomá-los literalmente e por sua vez igualarem-se a eles. Não acre-
efeitos dessa ilusão, entretanto, são os de reaproximar o homem dito que haja na Ásia soberanos servidos em seus palácios com
da imagem da inocência primitiva, a ponto de o persuadir que o mais respeito que estes bons senhores o são em suas casas. Não
fim e o começo se reunem; a realização do desenvolvimento moral conheço nada de menos imperioso que suas ordens e nada de tão
pode se fazer na espontaneidade irrefletida de que a História arran- prontamente executado: é só pedirem e são satisfeitos”.**
cou o homem*. A festa não deve conter nada de ritual: na pequena Rousseau compensa pela festa a desigualdade da ordem quo-
sociedade de Clarens ela é improvisada — é durante a colheita do tidiana, embora os servidores não constituam uma “classe anta-
vinho que todos, assim reunidos, configuram a festa; ela não repre. gônica” que comprometeria a existência comum. Na festa, o vinho
senta nada de “memorativo ou comemorativo” — ela não é uma ajuda a estabelecer uma “igualdade sentimental” que promove
representação: “nasce de improviso (...) no concurso de um grupo relações novas entre os indivíduos; é o momento em que se rea-
humano no qual ninguém tem mais nada a esconder do que pensa liza, passageiramente, uma alegria sem “dia seguinte”, uma so-
e sente. Os homens não estão alegres porque foram convidados ciedade livre — a da presença — sem corpos intermediários. Mas
a uma festa; esta é tão somente a manifestação visível da alegria a ordem e a economia habitual se mantêm sobre a mesma base, a
que os homens experimentam de estarem juntos”. 4 da dominação do senhor -e da obediência do servidor: “como con-
trolar empregados, mercenários, de outra forma senão pelo cons-
trangimento e pela imposição? Toda arte do senhor consiste em
51. Lebrum, op. cit. esconder esta obrigação sob o véu do prazer ou do interesse, de
52. Lettre à d'Alembert, p. 224, Ed. Garnier, 1962. tal forma que pensem querer tudo o que se os obriga a fazer”.*6
53. Lettre à d'Alembert, idem, p. 225.
Este estado de guerra entre os servidores e os senhores não se en-
* A festa, em Rousseau, significa o recurso a uma “astúcia” segundo
a qual a necessidade natural pode ser reintroduzida no reino da cultura; é
o que se passa na pedagogia do Emílio e no pequeno grupo de Clarens: se-
gundo Grosrichard essa “estratégia” tem, portanto, a mesma função da lei
natural. 55.N.H., idem, IV partie, lettre X, p. 458/9.
54. Starobinski, T. et O., idém, p. 116. 56. Idem, p. 453.
116 Eio

contra escondido, existe perpetuamente entre o pobre e o rico. Neste sentido Clarens é um Jardim e o Eliseu é um jardim
Para Launay*” a Nouvelle Héloise seria uma tentativa reformis- dentro de outro jardim. Clarens é uma comunidade moral e não
ta de denunciar e suplantar o mal cuja análise das causas é feita social. Para suprimir a existência das “classes sociais”, Rousseau
pelo Discurso. A felicidade da festa “dura quanto duram os es- utiliza uma espécie de “regressão econômica” — o pequeno, pro-
petáculos”.ºº A festa é a ocasião para que as “classes” se apro- dutor independente e artesanato do “Segundo Discurso”, a que
ximem e se confundam nas sociedades de classe. É ilusão da Be- Rousseau chamou “comércio independente”)— se substiéui a
nevolência concluir que as barreiras e conflitos sociais se quebram, uma solução política possível; esta “solução teórica” tenta re-
é uma ilusão acreditar que uma economia de subsistência — que cuperar a transparência contra o obstáculo. A “situação revolu-
exclui o consumo, causa da degradação moral, e que propõe uma cionária” que permanece ao fim do “Segundo Discurso” não pro-
vida sem- excessos, sem luxo — poderia reconquistar a igualdade voca nenhuma mudança decisiva — o que necessitaria uma Teo-
recorrendo a uma economia agrícola de gestão comunitária. Rous- ria da História. Em Rousseau, a História é sempre aquilo que dis-
seau faz desaparecer simbolicamente a desigualdade com o tema tancia o homem da origem, da natureza, aquilo que começa com
do cidadão no campo, posto que não vislumbrou um caminho esta distância. A história aparece apenas como exemplo. (os cos»
para a suprimir realmente. Robert Mauzi*º diz que, já que é im- tumes dos gregos, dos romanos etc.); a História como ampla do-
possível conceder ao camponês uma promoção burguesa, o burguês cumentação econômica, política e moral aparece nas Considera-
se transforma em camponês e por um passe de mágica a desigual- tions sur le Gouvernement de Pologne e no Projet de Constitution
dade é esconjurada, sem que tal sociedade esteja, por isso, em pour la Corse mas não aparece em suas relações de entre-signifi-
perigo. É este oo lugar que também ocupa o tema do “Jardim” na cação e entre-engendramento. Além disso, no Contrato Social
Nouvelle Héloise: o “Eliseu” é o modelo do jardim ideal, que res- a “democracia eletiva” era o melhor de todos os governos. Nem
tituia inocência e a felicidade das origens. O Jardim é o espaço a Córsega, nem a Polônia, poderão aproveitar as vantagens do re-
privilegiado em que o sonho se realiza, a meio caminho entre o gime aristocrático: a Córsega deverá transformar-se em uma demo-
isolamento e a comunicação. O “Eliseu” é um recanto natural cracia e a Polônia deverá continuar uma monarquia. Esta ruptura
no estado absoluto. Dele, M. Wolmar tem a impressão que os cam- entre a teoria e a prática esclarece o significado da História em
pos habitados por seus camponeses são “naturais”; Saint-Preux Rousseau como aquilo que se liga inelutavelmente à decadência.
pensa estar “au bout du monde”. O “Eliseu” é um lugar enigmá- Este sentido único da História é marcado pelos “sitôt que”, “des
tico de que poucos têm a chave, onde nenhum estranho é admi- Vinstant que”, “dês que”, de seu discurso; na História, a proprie-
tido.* dade privada emerge como a materialização da desigualdade — mas
tal concepção de História não poderia prevenir seu aparecimento
— de onde a insistência nos “abusos” das apropriações e sua conde-
57. Launay, op. cit., p. 306. nação moral: “de quantos crimes, guerras, assassinatos, de quantas
58. Starobinski, op. cit., p. 123.
59. Robert Mauzi,L Idée du Bonheur au XVIII ême Siêcle, p. 367/8. A Pensilvânia e o Jardim (do Cândido de Voltaire) almejam recomeçar
*, Marilena de S. Chaui mostra que o Jardimé a resposta que se encon-. a vida social sem os vícios da sociedade existente. E para tal precisam ficar
tra para uma sociedade que desfigurou a natureza: “O universo mercantil de fora, lá, no mundo silvestre, ainda não corrompido pelo mercado. O comér-
perverte as relações entre os homens porque instaura a troca fraudulenta cio aparece não apenas como alienação das mercadorias, mas como alienação
dos objetos. A convenção monetária é contrária à sociabilidade natural dos do indivíduo. Isto quer dizer que o indivíduo alienado é aquele que precisa
proprietários, fazendo dos homens meios para outros homens. Ao eliminar das coisas produzidas por um outro e, portanto, o fim da alienação estaria
o dinheiro e a troca, o Jardim pretende recuperar, no domínio da prática, condicionado pela recusa da circulação 'de bens; isto é, pela supressão do
a mesma relação imediata com as coisas e com as pessoas tal como existe consumo, sobre a base da compra e da venda.” (In “Três em Uma”, p. 111,
no domínio da visibilidade (...). Revista Discurso, Ano 3).
J18 119

misérias e horrores não pouparia o gênero humano aquele que deduzir-se da natureza do homem unicamente pelas luzes da ra-
arrancando os crédulos ou enchendo o fosso...”.ºº zão e independentemente dos dogmas que dão à autoridade sobe-
Por que lhe falta uma Teoria da História como o espaço rana a sanção do direito divino. Segue-se desta exposição que, sendo
em que os homens fazem e refazem sua existência em suas rela- a desigualdade quase nula no estado de natureza, deve sua força
ções com a natureza e com os outros homens, como totalidade e seu incremento ao desenvolvimento de nossas faculdades e aos
econômica, política e moral — não surge ninguém para “encher progressos do espírito humano, tornando-se, afinal, estável e legí-
o fosso” dos terrenos cercados, engradados. A propriedade de- tima graças ao estabelecimento da propriedade e das leis. Segue-se,
sequilibrou o mundo destruindo a igualdade primitiva. O que Rous- ainda, que a desigualdade moral, autorizada unicamente pelo di-
seau não chega a mostrar é que deste próprio desequilíbrio (o do reito positivo, é contrária ao direito natural sempre que não coin-
conflito ininterrupto entre a origem e os desenvolvimentos da cide, na mesma proporção, com a desigualdade física — distinção
perfectibilidade, as novas aquisições técnicas e a corrupção dos que determina suficientemente o que se deve pensar, a esse res»
costumes) poderia emergir a solução para reencontrar o “centro peito, da espécie de desigualdade que reina entre todos os povos
de gravidade”: “é este desequilíbrio que torna as revoluções pos- policiados, pois é manifestamente contra a lei da natureza, seja
síveis; não que as revoluções sejam determinadas pela progressão qual for a maneira por que a definimos, uma criança mandar num
“técnica, mas tornam-se possíveis por esta distância entre as duas velho, um imbecil guiar um sábio, e um punhado de pessoas re»
séries (no caso de Rousseau, as da origem e da desigualdade *) gurgitar superfluidades enquanto à multidão faminta falta o ne-
o que exige remanejamentos da totalidade econômica e política cessário” .é 2
em função. das etapas do progresso técnico. Há pois dois erros,
o mesmo na verdade: o do reformista ou da tecnocracia, que pre-
tende promover ou impor remanejamentos parciais das relações
sociais no ritmo das aquisições técnicas; e o do totalitarismo, que
pretende construir uma totalização do significável e do conheci-
do no ritmo da totalidade social existente num momento dado.
Eis por que o tecnocrata é o amigo natural do ditador, ordena-
-dor e da ditadura, mas o revolucionário vive na distância que se-
para a progressão técnica e a totalidade social, aí inscrevendo seu
sonho de revolução permanente. Ora, este sonho é por si só ação,
realidade, ameaça efetiva sobre toda a ordem estabelecida e tor-
na possível aquilo de que é sonho”.º!
O sonho de Rousseau no Discurso não se realizaria pela re-
belião, e por isso lê-se em seu parágrafo final: “Esforcei-me por
expor a origem e o progresso da desigualdade, o estabelecimento
e o abuso das sociedades políticas, quanto possam essas coisas

60. D.OI., idem, p. 66.


* A observação é nossa.
61. Deleuze, op. cit., p. 69. 62. D.O I., idem, p. 92.
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