Escrito por Bete Jaguaribe, bete.jaguaribe@idm.org.br 07:00 / 29
de Agosto de 2021.
Legenda: Bete Jaguaribe é diretora de formação e criação do
Instituto Dragão do Mar (IDM) / Escola Porto Iracema das Artes Foto: Divulgação Tempos graves estamos vivendo. Entre as muitas implicações da atual crise política e sanitária, destacamos a potencialização de certa sensação de passagem, de habitar as zonas difusas, ambíguas entre distância e proximidade, solidão e comunidade, estagnação e movimento, espera e realização, ruptura e continuidade, provisório e permanente, presencial e virtual. Um cenário provocador para o 8º aniversário da Escola Porto Iracema das Artes, celebrado neste 29 de agosto.
Tal como o personagem do conto A terceira margem do rio, de
Guimarães Rosa, cada um / uma de nós, de algum modo e com diferentes intensidades, teve que metaforicamente se instalar numa canoa, soltá-la no rio e viver a estranheza de ausentar-se sem, no entanto, ter ido a lugar algum. Simplesmente, como diz o escritor, “executar a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa”.
Assim como o pai no conto de Rosa, que se instala numa canoa,
ganha o rio, mas não vai embora, os personagens do clássico Limite (1931), de Mario Peixoto, permanecem também num barco que não vai a lugar nenhum. Imagens que marcam essa experiência liminar, em que nos encontramos imersas nesse país sem rumo. Evocações que inspiraram o referente poético e norteador do ano letivo 2021: “Poéticas de travessia”.
A escolha do tema partiu dessa experiência social de
confinamento que interferiu radicalmente nas dinâmicas de interação. Partiu do lugar de ameaça em que foi colocado o ato criativo, num país em que as forças conservadoras no poder questionam o direito à existência do artista. Como gerar proximidade, estando distante? Como sustentar os vínculos comunitários no isolamento social? Como resistir à cultura de morte fomentada no Brasil? Fomos todos convidados a reinventar nossos modos de estar. Repentinamente, fomos todos lançados numa condição de sobreviventes.
Nesses cruzamentos de referências poéticas e perguntas afiadas,
formulamos a proposta de assumir esse estado de travessia como provocador para nossas ações formativas. Ao evocar a travessia como referente poético para este ano, indagamos como esse estado de travessia nos provoca individual e coletivamente, como repercute em nossas poéticas de criação, como atravessamos e somos atravessados. Trata-se explicitamente de um gesto estético e político, que nos orienta no sentido de pensar sobre o país em que vivemos. Qual o lugar de uma escola pública de arte, num país em que a negação da vida encontra-se tão oficialmente programada? Pensamos no compromisso de nos consolidarmos como um lugar de criação, de invenção de modos de resistir, lugar de instauração de uma cultura democrática.
Acreditamos profundamente no poder do ato criativo em todas as
suas dimensões: seja na poética de um artista extraordinário como Emicida, como na resistência em defesa da floresta e dos povos indígenas, expressa na figura gigante e comovente de Ailton Krenak.
Aprofundamos processos de pesquisas, nas quais emergiram
poéticas contundentes, em que a cultura da diversidade (em todas as suas dimensões) emergiu como mobilizadora da energia mais transformadora. Não são certezas que temos, mas uma impressão muito forte de que nenhuma comunidade seguirá abrindo mão do que mais expressa a vida: a cultura de nossos povos e o poder poético de nosso(a)s artistas. Arquelano, Pedra Silva, Armando Praça, Viramundo, Caio Castelo, Sy Gomes, José Viana Júnior, Maria Macedo, SEP 85, Pedro Diógenes, Yuri Juatama, Nayra Costa, Allan Deberton, Luiza Nobel. E muito(a)s outro(a)s. Salve! Bete Jaguaribe É doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e diretora de formação e criação do Instituto Dragão do Mar (IDM) / Escola Porto Iracema das Artes. Também é coordenadora do Curso de Cinema e Audiovisual da Universidade de Fortaleza (Unifor)