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SÃO PAULO
2021
Resumo
Neste ensaio, nosso objetivo consiste em, a partir do uso de autores que estudaram
tanto a cultura quanto as relações antropológicas com a história, retomar e clarificar
brevemente como a noção de cultura se estabelece em alguns estudos antropológicos do
século XX. Para além de ser considerada apenas como uma forma de denominação,
procuramos demonstrar que, assim como nos mostra a antropóloga Manuela Carneiro da
Cunha, a cultura não seria algo fixo no tempo, mas sim algo que é constantemente
reinventado (CUNHA, 2009:239). A experiência do ser humano em determinada sociedade,
portanto, é um fator de relevância quando analisamos a trajetória do desenvolvimento
antropológico e da etnografia. Nosso enfoque não será tão abrangente, no entanto recairá,
principalmente, sobre os estudos de Sahlins (1973) e seu diálogo com a noção de cultura
tanto de Clifford Geertz quanto de Manuela Cunha. Para desenvolver nossa articulação,
dividimos o ensaio em duas partes abrangentes. A primeira se dedica à apresentação do
estudo interdisciplinar de Sahlins sobre cultura e sua visão crítica a uma vertente do modelo
estruturalista que considera a existência de uma forma “pura” desta. Para o autor, esse tipo de
visão mais delimitada não abarca a complexidade da história e da mudança, tampouco a
prática, ação humana no mundo (SAHLINS, 2008:24). A partir disso, explicitamos como
Sahlins propõe que é possível conciliar história e análise estrutural a partir da observância de
seu desenvolvimento teórico metodológico. Por fim, articulamos o abordado com um estudo
de Manuela Cunha e, a partir de um exemplo pontuado pela própria, ponderamos acerca da
invalidação da cultura dos povos originários no Brasil, o que potencialmente coloca em xeque
a legitimidade de sua identidade enquanto “indígena” pela visão ocidental e nos permite um
desfecho da nossa exposição.
1
Crítica de Marshall Sahlins ao modelo estrutural aplicado de maneira “pura” na
Antropologia: desenvolvimentos conceituais
Deslocando o debate proposto, à época, por Clifford Geertz, Marshall Sahlins realiza,
segundo introduz Fraya Frehse (2008) na apresentação à edição brasileira da obra “Metáforas
históricas e realidades míticas'' (1973), uma mudança de perspectiva na abordagem da
cultura. Se Geertz (1989) propõe analisar a cultura e suas imbricações a partir do ponto de
vista que a mesma não pode ser abordada no singular quando analisada, mas sim como
receptáculo de uma série de estruturas significativas (2008:11), Sahlins se propõe a investigar
a relação estabelecida entre antropologia e história a partir da cultura e da estrutura. Para isso,
o autor adota um posicionamento interdisciplinar que desenvolve não apenas as relações entre
antropologia e história, mas também a história a partir da perspectiva estruturalista, que leva
em consideração uma noção de “estrutura da conjuntura”, ensejando releituras locais a partir
de releituras anteriores1 e suas relações com o evento e a ação, refletindo sobre o emaranhado
de signos que a cultura representa e como esta dialogaria com o mundo e com o tempo.
1
Conferir Lilia M. Schwarcz (2000:128).
2
consiste no modo como esses materiais históricos se inter-relacionam num determinado
momento ou estado da língua” (2008:21).
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No evento, o discurso insere os signos em “novos” contextos de uso,
acarretando contradições que têm de, em contrapartida, ser
abarcadas pelo sistema. O valor é verdadeiramente constituído num
sistema de signos, mas as pessoas utilizam e experienciam os signos
tal como os nomes das coisas; consequentemente, elas condicionam e
potencialmente revisam os valores conceituais gerais de termos e
relações linguísticos por referência ao mundo. O encontro com a
palavra é em si uma valoração, e uma revaloração potencial, de
signos (2008:24).
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A invalidação da cultura dos povos originários no Brasil
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•••
Um exemplo fascinante é trazido por Cunha no décimo quarto capítulo de sua obra em
questão: em 1978, quando o Ministério do Interior quis arrogar o direito de decidir, baseado
em dados culturais, quem era e quem não era mais “índio”. Aqui, estamos diante de um
exemplo do pressuposto citado não sendo cumprido, já que a noção de cultura do caso
abrange uma concepção aparentemente estática, como se os povos originários brasileiros
fossem os mesmos desde a invasão do território em 1500. Se nós, ocidentais, e os diversos
grupos que essa nomenclatura compreende, não temos os mesmos hábitos, as mesmas
instituições, nem certamente as mesmas técnicas ou valores, por que os povos “indígenas”
poderiam ser considerados como integrantes de uma cultura “pura”? Caso seguíssemos essa
lógica, Ailton Krenak, líder indígena, jornalista e escritor brasileiro, não deveria ser
considerado “índio” por vestir-se como os “brancos”. Sônia Guajajara, líder indígena,
professora e enfermeira, não poderia ser considerada “índia” por ter frequentado instituições
de uma cultura adversa a sua, como as que recebem o nome de “faculdade”.
Nesse sentido e retomando o que nos ensinou Sahlins ao nos introduzir à perspectiva
saussureana e Cunha ao nos apresentar o conceito de etnicidade, concluímos que os grupos
étnicos se caracterizam à medida que se diferenciam em relação aos outros grupos com os
quais interagem, mas isso não implica em uma despersonificação do grupo ou do indivíduo a
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ele pertencente, como foi proposto pelo Ministério supracitado. Conforme nos mostrou
Sahlins, a ação cria um contexto — começando e terminando na estrutura — ao ter seus
efeitos absorvidos por um “prático-inerte cultural”. Assim, as categorias culturais em diálogo
podem sofrer alterações — conforme foi observado no contato ocidental e “indígena”— que
acabam por acarretar no aparecimento de novos valores e possivelmente de uma nova ordem
estrutural (2008:133). Os traços culturais observados nos povos “indígenas” podem, desta
forma, variar no tempo e no espaço sem que isso necessariamente afete a identidade destes
grupos, denotando que na teoria articulada há um movimento entre a empiria (prática da
estrutura) e a simbologia (estrutura da prática).
Referências bibliográficas:
GEERTZ, Clifford. “Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura” [1973].
In: A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 13-41.