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GIOVANNA MARIA PEZZUTTI (11760771) - Vespertino (Júlio)

RAFFAELLE PESSOA SPADA (10992114) - Vespertino (Laura)

DO DIÁLOGO SOBRE A ESTRUTURA À INVALIDAÇÃO CULTURAL:


observações sobre os textos de Marshall Sahlins e Manuela Carneiro da Cunha

Primeiro trabalho apresentado à disciplina de


Antropologia IV do Departamento de
Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, como parte da avaliação do curso.

Docentes: Júlio Assis Simões e Laura Moutinho

SÃO PAULO
2021
Resumo

Neste ensaio, nosso objetivo consiste em, a partir do uso de autores que estudaram
tanto a cultura quanto as relações antropológicas com a história, retomar e clarificar
brevemente como a noção de cultura se estabelece em alguns estudos antropológicos do
século XX. Para além de ser considerada apenas como uma forma de denominação,
procuramos demonstrar que, assim como nos mostra a antropóloga Manuela Carneiro da
Cunha, a cultura não seria algo fixo no tempo, mas sim algo que é constantemente
reinventado (CUNHA, 2009:239). A experiência do ser humano em determinada sociedade,
portanto, é um fator de relevância quando analisamos a trajetória do desenvolvimento
antropológico e da etnografia. Nosso enfoque não será tão abrangente, no entanto recairá,
principalmente, sobre os estudos de Sahlins (1973) e seu diálogo com a noção de cultura
tanto de Clifford Geertz quanto de Manuela Cunha. Para desenvolver nossa articulação,
dividimos o ensaio em duas partes abrangentes. A primeira se dedica à apresentação do
estudo interdisciplinar de Sahlins sobre cultura e sua visão crítica a uma vertente do modelo
estruturalista que considera a existência de uma forma “pura” desta. Para o autor, esse tipo de
visão mais delimitada não abarca a complexidade da história e da mudança, tampouco a
prática, ação humana no mundo (SAHLINS, 2008:24). A partir disso, explicitamos como
Sahlins propõe que é possível conciliar história e análise estrutural a partir da observância de
seu desenvolvimento teórico metodológico. Por fim, articulamos o abordado com um estudo
de Manuela Cunha e, a partir de um exemplo pontuado pela própria, ponderamos acerca da
invalidação da cultura dos povos originários no Brasil, o que potencialmente coloca em xeque
a legitimidade de sua identidade enquanto “indígena” pela visão ocidental e nos permite um
desfecho da nossa exposição.

1
Crítica de Marshall Sahlins ao modelo estrutural aplicado de maneira “pura” na
Antropologia: desenvolvimentos conceituais

Deslocando o debate proposto, à época, por Clifford Geertz, Marshall Sahlins realiza,
segundo introduz Fraya Frehse (2008) na apresentação à edição brasileira da obra “Metáforas
históricas e realidades míticas'' (1973), uma mudança de perspectiva na abordagem da
cultura. Se Geertz (1989) propõe analisar a cultura e suas imbricações a partir do ponto de
vista que a mesma não pode ser abordada no singular quando analisada, mas sim como
receptáculo de uma série de estruturas significativas (2008:11), Sahlins se propõe a investigar
a relação estabelecida entre antropologia e história a partir da cultura e da estrutura. Para isso,
o autor adota um posicionamento interdisciplinar que desenvolve não apenas as relações entre
antropologia e história, mas também a história a partir da perspectiva estruturalista, que leva
em consideração uma noção de “estrutura da conjuntura”, ensejando releituras locais a partir
de releituras anteriores1 e suas relações com o evento e a ação, refletindo sobre o emaranhado
de signos que a cultura representa e como esta dialogaria com o mundo e com o tempo.

Na obra em questão (1973), Sahlins se utiliza do modelo de Saussure e sua proposta


de “semiologia” para tomar a relação língua/linguagem como objeto científico e como
parâmetro comparativo tanto dos conceitos teóricos que desenvolverá quanto da etnografia
que apresenta. O faz a fim de distinguir a posição da cultura no percurso histórico e, também,
para apontar para o fato de que a abordagem estruturalista privilegiou, até então, o sistema
em detrimento do evento e a sincronia no lugar da diacronia. Para compreender sua crítica, é
necessário, primeiramente, compreender um pouco do desenvolvimento teórico proposto pelo
autor no início e ao fim de sua obra.

Seu desenvolvimento inicia, portanto, em torno da noção saussuriana de sistema, que


tem como concepção básica um todo constituído por várias partes mutuamente determinantes.
Qualquer elemento dado em tal sistema é compreendido como tal a partir das relações que
nutre com os outros, assim como ocorre na língua. O valor conceitual, por exemplo, da
palavra “claro” é determinado pela existência concomitante de “escuro” e vice-versa. Dessa
maneira, o tempo é eliminado da inteligibilidade, uma vez que as partes se constituem por
relações recíprocas em contextos específicos da ação humana. Portanto, “o único sistema

1
Conferir Lilia M. Schwarcz (2000:128).

2
consiste no modo como esses materiais históricos se inter-relacionam num determinado
momento ou estado da língua” (2008:21).

Assim, nos parece que há uma espécie de sistematização da ação — tanto no


momento em que ela ocorre quanto a partir da história que dela decorre — que se forma a
partir de uma estruturação simbólica específica, mas não necessariamente particular.
Esclarecendo a suposição a partir do que desenvolve o autor, essa estruturação simbólica
consistiria na disposição dos signos em emaranhados de relações indexicais com seus
referentes, constituindo determinado contexto que é tanto percebido quanto permeado pela
fala como uma forma de estabelecer uma atividade social. Outro ponto importante é a
distinção cultural — que será pontuada também por Manuela Cunha em sua articulação sobre
etnicidade —, que reside justamente nessa relação simbólica e consiste na (re)valoração de
signos no encontro com a palavra (2008:24). Assim, uma vez que os signos utilizados atuam
de forma a atribuir valor a determinados objetos e contextos, a relação entre os termos
utilizados na fala constituem, como também defende Weber, uma teia de significados que
representam a convivência social: um diálogo se estabelece a partir do momento em que os
signos são identificados pelo receptor. A análise estrutural “pura” criticada por Sahlins foi a
que se desenvolveu justamente em contraponto a esse argumento ao marginalizar a “ação
individual” e a “prática no mundo” em suas investigações, exceto quando estas
representavam a “reprodução estereotípica” do sistema vigente, o que não releva as estruturas
presentes não apenas na história, mas também nos signos e nos contextos por eles criados.

Entretanto, o autor propõe que é possível determinar estruturas na história e


vice-versa, ou seja, é possível conciliar história e análise estrutural. Adversamente, considera
o que ficou excluído dessa análise: é no nível da fala que a história é feita, ou seja, a
compreensão da história como significado precisa reconhecer o papel distintivo do signo na
ação humana. Em outras palavras, além dos signos manterem relações variadas entre si, o
fazem de acordo com os propósitos instrumentais (interesses) das pessoas — socialmente
constituídos, mas individualmente variáveis. Assim, os signos assumem valores funcionais e
implicativos num projeto de ação, não meramente determinações mútuas de um estado
sincrônico, o que articula a suposição que fizemos anteriormente. Todo esse contexto em que
atuam os signos, à medida que são guiados por interesses e imbuídos de valores, leva Sahlins
a conceituar que a ação no mundo pode não se conformar aos pressupostos esperados pelos
indivíduos, formando um evento:

3
No evento, o discurso insere os signos em “novos” contextos de uso,
acarretando contradições que têm de, em contrapartida, ser
abarcadas pelo sistema. O valor é verdadeiramente constituído num
sistema de signos, mas as pessoas utilizam e experienciam os signos
tal como os nomes das coisas; consequentemente, elas condicionam e
potencialmente revisam os valores conceituais gerais de termos e
relações linguísticos por referência ao mundo. O encontro com a
palavra é em si uma valoração, e uma revaloração potencial, de
signos (2008:24).

Em suma, o argumento de Sahlins que focalizamos é o de que há um desenvolvimento


próprio das relações culturais no nível da “estrutura da conjuntura", no sentido que considera
a existência de uma organização das categorias culturais de acordo com interesses, valores e
contextos a que estão submetidas. A novidade que o evento enseja pode produzir um
rearranjo de valores — dadas as intenções e interpretações adversas —, colocando as próprias
relações simbólicas em xeque e não apenas essa ou aquela categoria cultural. Nesse sentido, a
transformação pode não alterar o funcionamento do sistema em que ocorre, mas sim
conteúdos inerentes às categorias em questão (como valores). Ademais, podemos depreender
que a dialética da história é estrutural, já que resulta de um conjunto situacional de relações
constituídas a partir de categorias culturais em operação convencional (estrutura da prática) e
do embate entre vontades e intenções dos atores sociais em jogo (ação prática no mundo),
gerando consequências imprevistas, voluntárias e relativamente incontroláveis.

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A invalidação da cultura dos povos originários no Brasil

Na mesma linha de raciocínio de Sahlins, que enseja a diferenciação a partir de um


sistema simbólico, Manuela Carneiro da Cunha (2009) discorre sobre o conceito de
etnicidade, que a seu ver consiste em uma linguagem que atua de forma a diferenciar um
grupo. O desenvolvimento da argumentação da autora ressalta a importância de se levar em
consideração que essa linguagem, inserida em um contexto e submetida à ação, está sujeita a
mudanças conforme os eventos a que é exposta. Assim, a existência de uma tradição cultural
representa apenas a conservação de características culturais que, à medida que enfrentam as
demandas e implicações do novo contexto, preservam alguns traços culturais que servem
como sinais diacríticos para uma identificação étnica, ou seja, para a distinção.

Como exemplo, podemos mencionar os movimentos separatistas na Catalunha, que


optaram por manter a língua que os espanhóis consideravam como um dialeto, ou seja,
utilizaram a língua como um traço distintivo culturalmente e também como uma forma de
resistência e organização política. Essa distinção, enquanto representa a existência de
categorias culturais comparáveis, aponta para a existência de um sistema, assim como
também nos apontou Sahlins anteriormente. A etnicidade seria, portanto, um sistema na
medida em que organiza politicamente determinados grupos e, sendo ela passível de
mudanças por ser representada em contraste cultural, demonstra que a cultura é algo
constantemente reelaborado. Sendo assim, podemos compreender a força da argumentação de
Sahlins que, ao articular a noção de cultura proposta por Geertz, amplia metodologicamente a
proposta.

Portanto, segundo Cunha, sendo a etnicidade passível de mudanças por ser


representada a partir do contraste entre grupos, demonstra que a cultura não é algo dado ab
initio, mas sim algo constantemente reinventado por novas significações. Destarte, defende
que não se pode definir grupos étnicos simplesmente a partir da observação de sua cultura,
mas sim de suas relações:

A cultura original de um grupo étnico, na diáspora ou em situações


de intenso contato, não se perde ou se funde simplesmente, mas
adquire uma nova função, essencial e que se acresce às outras,
enquanto se torna cultura de contraste: esse novo princípio que a
subtende, a do contraste, determina vários processos. A cultura tende
ao mesmo tempo a se acentuar, tornando-se mais visível, e a se
simplificar e enrijecer, reduzindo-se a um número menor de traços
que se tornam diacríticos. (CUNHA, 2009, p. 237).

5
•••

Suspendendo temporariamente o desenvolvimento teórico proposto por Cunha e


deslocando o foco do que articulamos até então para o contexto dos povos originários no
Brasil, nos propomos, para finalizar a discussão, a fazer um breve exercício de como, a partir
do movimento de ampliação teórica proposto tanto por Sahlins quanto por Cunha, podemos
observar alguns embates importantes sobre o conceito de cultura. Segundo Cunha, embora
considere importante a abordagem a partir da perspectiva cultural, é preciso cuidado para
manejar suas aplicações conceituais. Na medida em que correspondem a diversas situações
empíricas encontradas no mundo, elas devem ser utilizadas de maneira a não tomar a
existência de determinada cultura como uma característica primária e não supor que
determinada cultura partilhada deva ser necessariamente a cultura ancestral (2009:250). Esse
último pressuposto é uma das grandes questões existentes sobre os povos originários no
Brasil.

Um exemplo fascinante é trazido por Cunha no décimo quarto capítulo de sua obra em
questão: em 1978, quando o Ministério do Interior quis arrogar o direito de decidir, baseado
em dados culturais, quem era e quem não era mais “índio”. Aqui, estamos diante de um
exemplo do pressuposto citado não sendo cumprido, já que a noção de cultura do caso
abrange uma concepção aparentemente estática, como se os povos originários brasileiros
fossem os mesmos desde a invasão do território em 1500. Se nós, ocidentais, e os diversos
grupos que essa nomenclatura compreende, não temos os mesmos hábitos, as mesmas
instituições, nem certamente as mesmas técnicas ou valores, por que os povos “indígenas”
poderiam ser considerados como integrantes de uma cultura “pura”? Caso seguíssemos essa
lógica, Ailton Krenak, líder indígena, jornalista e escritor brasileiro, não deveria ser
considerado “índio” por vestir-se como os “brancos”. Sônia Guajajara, líder indígena,
professora e enfermeira, não poderia ser considerada “índia” por ter frequentado instituições
de uma cultura adversa a sua, como as que recebem o nome de “faculdade”.

Nesse sentido e retomando o que nos ensinou Sahlins ao nos introduzir à perspectiva
saussureana e Cunha ao nos apresentar o conceito de etnicidade, concluímos que os grupos
étnicos se caracterizam à medida que se diferenciam em relação aos outros grupos com os
quais interagem, mas isso não implica em uma despersonificação do grupo ou do indivíduo a

6
ele pertencente, como foi proposto pelo Ministério supracitado. Conforme nos mostrou
Sahlins, a ação cria um contexto — começando e terminando na estrutura — ao ter seus
efeitos absorvidos por um “prático-inerte cultural”. Assim, as categorias culturais em diálogo
podem sofrer alterações — conforme foi observado no contato ocidental e “indígena”— que
acabam por acarretar no aparecimento de novos valores e possivelmente de uma nova ordem
estrutural (2008:133). Os traços culturais observados nos povos “indígenas” podem, desta
forma, variar no tempo e no espaço sem que isso necessariamente afete a identidade destes
grupos, denotando que na teoria articulada há um movimento entre a empiria (prática da
estrutura) e a simbologia (estrutura da prática).

Referências bibliográficas:

CUNHA, Manuela Carneiro da. “Religião, comércio, etnicidade”; “Etnicidade: da cultura


residual, mas irredutível”; “Três peças de circunstância sobre direitos dos índios”; “O futuro
da questão indígena”. In: ______. Cultura com aspas. São Paulo: Cosac Naify, 2009, caps.
13, 14, 15 e 16, pp. 223-274.

GEERTZ, Clifford. “Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura” [1973].
In: A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 13-41.

SAHLINS, Marshall. “Apresentação à edição brasileira: De Antropologia, história e também


teoria social”; “Prefácio”; “Introdução: História e teoria estrutural”; “Conclusão: estrutura na
história” [1981]. In:________. Metáforas históricas e realidades míticas. Rio de Janeiro:
Zahar, 2008, pp. 9-28; pp.125-134.

SCHWARCZ, L. M. Apresentação: Marshall Sahlins ou por uma antropologia estrutural e


histórica. Cadernos de Campo (São Paulo - 1991), [S. l.], v. 9, n. 9, p. 125-133, 2000. DOI:
10.11606/issn.2316-9133.v9i9p125-133. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/53108. Acesso em: 17 out. 2021.

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