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5 AULAS SOBRE NIETZSCHE

1ª aula
Oswaldo Giacóia Júnior
IFCH/UNICAMP

Aforismo 354 da Gaia Ciência


Lembro-me de ter dito a vocês, na semana passada, que passassem os olhos pelo aforismo 354, da
Gaia Ciência, não sei se vocês tiveram ocasião de fazê-lo ou não. Então, eu pediria, por favor, se
vocês não trouxeram o texto, que tivessem a paciência de prestar atenção na minha leitura. Bom, já
faz muito tempo, mas eu me lembro que eu tinha dito a vocês, quando nós nos encontramos, acho
que foi no segundo encontro, que este problema da unidade do sujeito em Nietzsche, pode ser
tratado de diversos pontos de vista. E o primeiro deles ia ser aquele que, ao mesmo tempo,
consistiria num intróito do nosso curso, que é aquele texto sobre Os Desprezadores do Corpo, sob a
ótica da relação entre a grande razão e a pequena razão. Este ponto, ele ainda não está esgotado,
pretendo voltar a ele ainda, mas depois desse percurso por Descartes e por Kant. Pretendo
trabalhar agora com um outro aspecto da relação entre consciência e subjetividade, mas um
aspecto que diz respeito à relação entre consciência e linguagem. Foi uma coisa, de certa maneira,
difusamente presente em Os Desprezadores do Corpo, mas que a gente vai explorar nesse
aforismo aqui. Esse aforismo que nós vamos ler, não é o único a respeito dessa questão, existem
vários outros; eu vou tomar este aqui como ponto de partida, porque ele condensa, segundo minha
opinião, muitos dos aspectos mais essenciais da discussão que Nietzsche faz a respeito. Então, o
que nós vamos ver hoje é a questão da unidade subjetiva em Nietzsche, vista sobre o ponto de vista
da relação entre consciência e linguagem. Nos nossos próximos encontros, aqueles para cuja
preparação pedi que vocês lessem os aforismos de Além do Bem e do Mal, nós vamos ver ainda um
outro aspecto, aspecto esse que diz respeito a uma relação mais estreita com aquilo que nós vimos
nas análises de Descartes e de Kant. Portanto, o que vamos trabalhar agora, é uma espécie de
pequeno refrigério, um tema menos árido, mas não menos essencial, na minha opinião, em relação
a essa questão que estamos examinando.
Esse aforismo 354, faz parte do quinto livro da Gaia Ciência. Esse livro foi acrescentado por
Nietzsche aos outros livros em 1886, portanto, é bem posterior à primeira edição do livro, a Gaia
Ciência, e este parágrafo 354 é contemporâneo de uma série de questões que Nietzsche, em parte,
já tinha trabalhado no Zaratustra, entre elas, aquelas presentes lá em Os Desprezadores do Corpo e
boa parte continuará a trabalhar nas suas obras posteriores. Todo esse parágrafo 354 é dedicado
então à famosa consciência. O aforismo se chama do Gênio da Espécie. Eu queria,
antecipadamente, dizer que o título do Gênio da Espécie é uma provocação maldosa, que a gente
vai ver no que consiste só depois ter lido o texto.

O problema do ter-consciência (mais corretamente: do tomar-consciência-de-si) só


se apresenta a nós quando começamos a conceber em que medida poderíamos
passar sem ela: e é nesse começo do conceber que nos coloca a fisiologia e a
zoologia (as quais, portanto, precisaram de dois séculos para alcançar a
premonição de Leibniz, que voava na sua dianteira).

Bom, em primeiro lugar qual é a premonição de Leibniz que ele se refere aqui? O fundamental na
metafísica de Leibniz é que o homem, o ser humano não é só ser racional, ele não é só
racionalidade, mas ele é também apetite, a famosa frase de Leibniz diz que o ser humano é
perceptio, quer dizer, representação; e apetitus, isto é, vontade, desejo. Então, Nietzsche já começa
aqui, provocativamente, estabelecendo um curto-circuito entre o tema do tornar-se consciente-de-si
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e o tema da fisiologia e da zoologia. Quer dizer, uma ligação que é efetivamente uma provocação.
Ou seja, Nietzsche no fundo quer dizer o seguinte: se você observa a fisiologia e a zoologia verá
que o problema da consciência é, na verdade, um problema simplesmente superficial. Ou seja, que
aquilo que define o essencial do sujeito não é, como pretendia a tradição filosófica, a sua
capacidade de tomar-consciência-de-si, mas a consciência precisamente é um fenômeno
secundário. O problema do ter-consciência, é precisamente aquilo que se constitui como problema.
Ou seja, por que é que nós tomamos consciência de nós mesmos, em que medida isto é importante,
tanto mais quanto nós podemos perfeitamente bem passar sem isso. Então, a fisiologia e a zoologia
aqui, na verdade, simplesmente comprovam aquilo que Leibniz já tinha dito. Ou seja, que a
consciência não é o essencial do sujeito, da subjetividade; mas a consciência é, na verdade, uma
ínfima porção da subjetividade. Você pode ter vida, tanto animal quanto humana, sem que
necessariamente o fenômeno da consciência-de-si tenha que se apresentar.

Poderíamos, com efeito, pensar, sentir, querer, recordar-nos, poderíamos


igualmente "agir" em todo sentido da palavra: e, a despeito disso, não seria preciso
que tudo isso nos "entrasse na consciência" (como se diz em imagem).

Comentário: Recordar, aqui, fica difícil de aceitar isso.


Professor: Por que?
Comentário: Não sei. Recordar, sem consciência?
Professor: Sim.
Comentário: Não sei, fica...
Professor: Logo para frente Nietzsche vai dizer, um pouco ironicamente, que isso poderia soar muito
estranho nos ouvidos de um filósofo mais velho. E esse filósofo mais velho é uma referência, é uma
remissão à tradição, essa tradição que a gente procurou verificar. Por que? Porque para Descartes,
não sei se vocês lembram, que o sentir, o querer, o imaginar e o recordar eram formas do pensar, e
o pensar era o ato por excelência da consciência. Se vocês voltam aqui a Kant e vêem que a
consciência pensada como uma apercepção transcendental, esse eu-penso que é precisamente o
veículo, uma unidade originária tem que ser necessariamente postulada como condição de todas as
representações. Vocês vêem a importância da consciência como origem ou unidade originária, que
sintetiza ou que unifica, que dá unidade ao eu enquanto o eu do pensamento, enquanto sujeito do
pensamento, inclusive, a memória. Ou seja, o que Nietzsche está pensando aqui, muito
concretamente, é na memória como recolhimento e processamento de informação.
Pergunta: Ou seria a memória como instinto?
Professor: Por exemplo, o que significa simplesmente informação recebida, incorporada e
processada...
Pergunta: Aí sim, eu acho que a memória como instinto, vamos dizer, um pássaro que tem um ritual,
daí dá para entender...
Professor: Claro. Daí a referência zoologia e a fisiologia. O ouvido do filósofo mais velho, aqui não é
só Kant, Descartes, mas é Platão. Porque a recordação, como você lembra muito bem, o que era
para Platão? Era a sabedoria por excelência, era filosofia. Ninguém, no fundo, aprende coisa
nenhuma, você só se recorda. Mas essa recordação...
Comentário: Mas o texto é muito irônico.
Professor: Mas esse texto é irônico o tempo todo. Inclusive, o Gênio da Espécie, eu repito, é uma
maldade terrível, porque esta recordação é um ganhar consciência de coisas que você
inconscientemente tinha vivido, que a alma já tinha vivido antes da encarnação, etc.; enquanto
habitante do mundo das puras formas de Platão ou habitante do mundo das idéias.

A vida inteira seria possível sem que, por assim dizer, se visse no espelho: como,
de fato, ainda agora, entre nós, a parte preponderante dessa vida se desenrola sem
esse espelhamento - e aliás também nossa vida de pensamento, sentimento,
vontade, por mais ofensivo que isso possa soar a um filósofo mais velho. Para que
em geral consciência, se no principal ela é supérflua?

Ou seja, essa idéia da consciência como espelho, Nietzsche está se referindo à reflexão, à
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consciência como superfície de reflexão daquilo que se passa na nossa vida mental, na nossa vida
anímica. Então, segundo ele, toda a vida, tanto mental quanto sensível, como volitiva, etc., seria
perfeitamente possível sem que ela tivesse que refletir no espelho da consciência.

Ora, parece-me, se se quer dar ouvidos à minha resposta a essa pergunta e à sua
suposição talvez extravagante, que o refinamento e força da consciência estão
sempre em proporção com a aptidão de comunicação de um ser humano ou
animal...

Então, o primeiro elemento, isto é, o refinamento da consciência e a força da consciência é uma


função ou está em relação ou em proporção com a capacidade ou aptidão da comunicação, de um
animal ou de um ser humano.

...e a aptidão de comunicação, por sua vez, em proporção com a necessidade de


comunicação: isto entendido, não como se o próprio homem singular, que é
precisamente mestre em comunicar e tornar inteligíveis suas necessidades, fosse
também, ao mesmo tempo, aquele cujas necessidades mais o encaminhassem aos
outros.

Ou seja, a equação que Nietzsche monta aqui é entre a capacidade ou entre o refinamento da
consciência e a capacidade de comunicação, por um lado. Por outro, entre a capacidade de
comunicação e a necessidade de comunicação; mas essa necessidade de comunicação não
pensado do ponto de vista do indivíduo singular ou do homem enquanto indivíduo, mas sim em
função de cadeias de gerações, raças inteiras como ele vai dizer aqui.

Mas bem me parece ser assim no que se refere a raças inteiras e gerações
sucessivas: onde a necessidade, a indigência, coagiram longamente os homens a
se comunicarem, a se entenderem mutuamente com rapidez e finura, acaba por
haver um excedente dessa força e arte da comunicação, como que uma fortuna que
pouco a pouco se acumulou e agora espera por um herdeiro que a gaste
perdulariamente.

Bom, então, o plano em que Nietzsche coloca a reflexão não é o plano singular dos indivíduos, mas
é o macro-plano da sucessão das gerações, da cultura, da espécie, e a relação continua sendo
mantida entre a necessidade, a indigência e, precisamente em função disso, o progresso da
comunicação.
Comentário: Ele coloca, então, a consciência como a comunicação. Consciência surgiu da
necessidade da comunicação.
Professor: Olha, eu vou dizer até uma coisa a mais, e há aqui uma outra maldade; se vocês lerem o
texto aqui, a tradução do Rubens, que é realmente preciosíssima, vocês terão lá essas indicações
que eu estou dando para vocês. Em alemão, você tem dois termos com os quais você pode se
referir à sociedade e comunidade. Por um lado, Gesellschaft se diz sociedade, e Gemeinde é o
termo usado para comunidade. Por exemplo, uma igreja se diz uma Gemeinde, ou um certo grupo
se diz uma Gemeinde, é uma comunidade. Só que Gemeinde, Nietzsche usa, numa relação, como
filólogo deve saber o que está falando, ele usa em relação ao adjetivo gemein, e gemein, quer dizer
comum e vulgar. Ele faz um jogo de palavras extraordinário com isso em que ele liga como
sociedade, enquanto comunidade, àquilo que é comum, vulgar, medíocre. Tudo sob esse eixo do
Gemeinde, gemein, Gesellschaft, etc., que vai acabar por estabelecer uma espécie de ligação entre
aquilo que é social, comunitário e comum, e daí com comunicação. Por conseguinte, comunicar-se é
se tornar comum. E a consciência é precisamente o modo pelo qual você se torna comum. Vamos
chegar a ler exatamente esse movimento aqui. E como é que você se torna comum? Pela
linguagem.
Pergunta: Agora, comum, ele toma no sentido do pejorativo?
Professor: No duplo sentido. É um jogo consciente com a equivocidade de comum, comum no
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sentido daquilo que pertence a ambos, mas também no sentido daquilo que é medíocre.
Comentário: E é completamente oposto ao conceito do verbo divino ... da palavra...
Professor: Claro. Ou desta consciência pensada como unidade originária, que nós vimos aqui. Aqui
o que nós vamos assistir neste texto é a gênese simultânea, para Nietzsche, da consciência, da
linguagem e da sociedade. Este texto aqui é no fundo isso. É isso que significa o Gênio da Espécie.
Comentário: Então, mas é uma crítica imensa.
Professor: Claro. E é a melhor forma de você fugir-de-si. Ou seja, a melhor forma de você, em boa
consciência, esquecer daquilo que é absolutamente singular, daquilo que não pode ser comunicado,
porque ao ser comunicado se torna comum.
Comentário: E aí entra o cristianismo...
Professor: Sem dúvida. Com toda essa equivocidade. Isso é proposital, não é por acaso, não é que
ele não considerou, evidentemente que ele considerou; sobretudo, porque ao longo da tradição
havia esse primado da consciência como fonte, sede, locus da racionalidade; pensar era igual ser
consciente.
Comentário: E daí a linguagem.
Professor: Claro. É o Logos. A palavra. Aliás, a mesma palavra para linguagem e razão. Bom,
vamos prosseguir um pouquinho. Agora, o interessante é que, precisamente nesta relação entre a
indigência, a carência, a necessidade e o poder de comunicação, com isso se cria uma fortuna; o
Rubens traduz Vermögen em alemão, por fortuna, a palavra quer dizer tanto a fortuna no sentido
material, quanto poder no sentido de faculdade, capacidade. Ou seja, esta capacidade de
comunicação é algo com que o homem se enriquece, e é precisamente esta capacidade de
comunicação, que uma vez acumulada, tornada desenvolvida, é depois, com o progresso da cultura,
gasta perdulariamente. Aqui, ele vai dizer:

(- e os assim chamados artistas são esses herdeiros, do mesmo modo que os


oradores, pregadores, escritores: todos os homens que sempre vêm no final de uma
longa série, sempre "nascidos tarde", no melhor sentido da palavra, e, como foi dito,
por essência perdulários).

Mas, então, é preciso que esta capacidade de comunicação seja...

Suposto que esta observação é correta, posso passar a suposição de que a


consciência, em geral, só se desenvolveu sob a pressão da necessidade de
comunicação.

Então, suposto que aquela equação de que ele falou antes, é pensável, é admissível, então nós
podemos supor que a consciência só se desenvolveu sob pressão da necessidade de comunicação.
Essa é uma outra frase iconoclasta, porque para toda tradição a consciência é aquilo que constitui a
espontaneidade do eu, é o núcleo do eu, por assim dizer. Por conseguinte, aquilo que é
absolutamente natural. E ele está dizendo aqui, que a consciência não só não é natural como se
desenvolveu em conseqüência de uma espécie de necessidade.

... que previamente só entre homem e homem (entre mandante e obediente em


particular) ela era necessária, era útil, e que também somente em proporção ao
grau dessa utilidade ela se desenvolveu.

Ou seja, a consciência se desenvolveu porque era útil. E se desenvolveu exatamente em proporção


ao seu grau de utilidade. Vale dizer, se nós não considerarmos o plano da relação entre os homens,
por conseguinte, se nós não considerarmos a capacidade e a possibilidade de comunicação, a
consciência não é nenhum dado natural da nossa existência.

Consciência é propriamente apenas uma rede de ligação entre homem e homem -


apenas como tal ela teve de se desenvolver: o homem ermitão e animal de rapina
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não teria precisado dela.

Aqui, começa a aparecer, portanto, a simultaneidade do tema da consciência como o tema da


sociabilidade. Quer dizer, não fora a premência da vida social, não teria sido necessário o
surgimento e o desenvolvimento da consciência. A consciência se desenvolve, precisamente, em
função do caráter político, ou se vocês quiserem, social das relações entre os homens.

Que nossas ações, pensamentos, sentimentos, e mesmo movimentos, nos


cheguem à consciência - pelo menos uma parte deles -, é a conseqüência de um
terrível, de um longo "é preciso", reinando sobre o homem: ele precisava, como o
animal mais ameaçado, de auxílio, de proteção, ele precisava de seu semelhante,
ele tinha de exprimir sua indigência, de saber tornar-se inteligível - e, para tudo isso,
ele necessitava, em primeiro lugar, de "consciência", portanto, de "saber" ele
mesmo o que lhe falta, de "saber" como se sente, de "saber" o que pensa.

Então, aqui é um aspecto bastante importante deste texto; ou seja, a consciência que nós temos de
nossas ações, de nossos pensamentos, de nossos estados, não é algo também dado naturalmente,
mas é o resultado, é conseqüência de uma necessidade, de uma carência. Ou seja, que carência é
essa? A carência de comunicar esses estados. Então, é porque o homem tem necessidade de
comunicar esses estados é que ele precisa ter consciência desses estados ou, pelo menos, de uma
parte desses estados.
Eu pediria para que vocês prestassem atenção nas aspas. Porque ele era um animal mais
ameaçado, mais frágil, em última instância, ele precisava mais de proteção, mais de auxílio,
portanto, precisava de comunidade. Ora, não pode haver comunidade sem comunicação. Portanto,
para que ele possa se comunicar, ele precisava de "consciência". É interessante que aqui o termo
consciência tenha sido usado por Nietzsche propositadamente no sentido irônico; quer dizer, esta
consciência de que os filósofos tanto falavam é, na verdade, isto ou esta ferramenta, esse utensílio,
de que é preciso lançar mão para se viver em comum. E as aspas prosseguem 3 vezes sobre a
palavra saber. "Saber" ele mesmo, o que lhe falta, "saber" como se sente, "saber" o que pensa. Ou
seja, o uso reiterado das aspas no saber, tem também aqui uma intenção irônica no sentido de
mostrar que aquilo que nós conscientemente sabemos é muito provavelmente um falso saber. Ou
seja, é um saber entre aspas, isto é, é um saber parcial, limitado, calibrado na perspectiva da
consciência. Então, aquilo que a gente diz "saber conscientemente" é saber entre aspas; ou seja,
não é saber no sentido em que os filósofos chamam de saber. Vale dizer: o saber consciente não é
inteiramente consciente-de-si, daí porque é preciso usar saber entre aspas. Um saber coletivo. Um
saber na perspectiva do coletivo, do gregário.
Comentário: Mas não necessariamente é sempre assim.
Professor: Do ponto de vista da consciência, necessariamente é assim; é do ponto de vista da
linguagem o que você está falando. E a gente vai chegar aqui, exatamente nesse momento.

Pois, para dizê-lo mais uma vez: o homem, como toda criatura viva, pensa
continuamente, mas não sabe disso; o pensamento que se torna consciente é
apenas a mínima parte dele, e nós dizemos: a parte mais superficial, a parte pior: -
pois somente esse pensamento consciente ocorre em palavras, isto é, em signos de
comunicação; com o que se revela a origem da própria consciência.

Aqui, todos os passos estão dados: consciência, sociabilidade e linguagem. Isso que o Dornelis
estava dizendo agora, na perspectiva gregária, ou seja, este saber consciente é o saber
necessariamente posto sob a perspectiva comunitária, gregária, por isso, para Nietzsche,
superficial. Por que? Porque este pensamento consciente é o pensamento verbal. Ou seja, é aquele
que se dá em signos de comunicação, ocorre em palavras. Com o que se revela a origem da própria
consciência; quer dizer, a origem da consciência é gregária, é comunitária; e é precisamente por
isso que ela é verbal, lingüística neste sentido aqui.
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Pergunta: Ele chega a discutir com Rousseau no Ensaio das Origem das Línguas? Porque é a tese
do Rousseau.
Professor: É a tese do Rousseau. Sem dúvida nenhuma.
Comentário: É melhor granir, urrar com Rousseau.
Professor: É importantíssima. Eu tive a oportunidade de discutir isso, agora, numa tese de
doutorado sobre Rousseau, eu não sei até que ponto Nietzsche conheceu esse texto. Acho até que
não conhecia o Ensaio sobre a Origem das Línguas. Mas é impressionante a proximidade. É
realmente impressionante. Ao mesmo tempo uma proximidade nesse aspecto, uma diferença brutal
no que diz respeito, por exemplo, a jus naturalismo, etc.
Professor: Por que você diz, que ele não conhecia o texto?
Professor: Porque eu não conheço em Nietzsche nenhuma referência a esse texto. Há várias
referências ao Rousseau, a Contrato Social, etc.; mas não a este texto. Ele teria que corroborar
exatamente com aquilo que o Rousseau mostrou. E não é o único ponto de proximidade entre
Nietzsche e Rousseau, ao contrário do que Nietzsche afirma, esbraveja o tempo todo, e nós vamos
ver quando fizermos a análise gramatical nos textos que vão se seguir, como a proximidade com
Kant é assustadora, apesar das invectivas todas contra o Kant. Mas fica claro, então, como é que
essa origem da consciência é uma origem necessariamente gregária e como ela é contemporânea
do surgimento da linguagem ou dos signos de comunicação.

Dito concisamente, o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento da


consciência (não da razão, mas somente do tomar-consciência-de-si da razão) vão
de mãos dadas.

Não existe possibilidade de se confundir, em Nietzsche, a razão com a consciência. É a tese, que
nós já vimos enunciada no Zaratustra, da diferença entre a grande razão e a pequena razão. É só a
pequena razão, que é idêntica a consciência, e que, portanto, se dá sob ou sobre a superfície da
linguagem. Então, o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento da consciência vão de
mãos dadas. Então, quanto mais desenvolvida é a consciência ou tornar-se-consciente-de-si, tanto
mais é desenvolvida a linguagem.

Acrescente-se que não é somente a linguagem que serve de ponte entre homem e
homem, mas também o olhar, o toque, o gesto;

Portanto, aqui, a linguagem está sendo considerada, por Nietzsche, não somente do ponto de vista
da linguagem verbal, mas da comunicação em geral.

... o tomar-consciência de nossas impressões dos sentidos em nós mesmos, a força


de poder fixá-las e como que colocá-las fora de nós, aumentaram na mesma
medida em que cresceu a urgência de transmiti-las a outros por signos. O homem
inventor de signos é ao mesmo tempo o homem cada vez mais agudamente
consciente de si mesmo; somente como animal social o homem aprendeu a tomar
consciência de si mesmo - ele o faz ainda, ele o faz cada vez mais. -

É somente do ponto de vista do pacto social, ou para usar a expressão de Nietzsche, aqui, como
animal social, que o homem se torna consciente de si, aprendeu a tornar-se-consciente-de-si. E,
precisamente, tornar-se-consciente-de-si se dá no mesmo movimento em que se inventa signos de
comunicação, em que se desenvolve, por conseguinte, a linguagem. Bom, aí é um traço de
separação no texto, muito característico do Nietzsche, como que para mostrar que se trata de um
segundo momento do argumento.

Meu pensamento é, como se vê: que a consciência não faz parte propriamente da
existência individual do homem...

Ou seja, consciência não é um dado da natureza, ela não é a natureza mesma do eu.
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...mas antes daquilo que nele é da natureza de comunidade e de rebanho; que


também, como se segue disso, somente em referência à utilidade de comunidade e
rebanho ela se desenvolveu e refinou e que, conseqüentemente, cada um de nós,
com a melhor vontade de entender a si mesmo tão individualmente quanto possível,
de "conhecer a si mesmo", sempre trará a consciência, precisamente, apenas o
não-individual em si, seu "corte transversal" - que nosso pensamento mesmo, pelo
caráter da consciência - pelo "gênio da espécie" que nele comanda -, é
constantemente como que majorizado e retraduzido para a perspectiva do rebanho.

Essa, então, é a tese completa. Bom, vocês certamente devem imaginar porque esse "conhecer a si
mesmo" aqui está entre aspas: é o famoso dito socrático que é a origem da filosofia: "conhece-te a ti
mesmo". Ora, mas conhecer-se a si mesmo é a maior mentira possível, porque conhecer-se a si
mesmo é a melhor maneira de ignorar-se tão completamente quanto possível. Porque conhecer-se
a si mesmo significa retraduzir-se inteiramente na perspectiva do rebanho, do comum, por
conseguinte, do não próprio, do não pessoal, do não singular. Ou seja, significa, simplesmente, o
esquecimento do individual.
Várias aporias estão implicadas nisso. Como tomar consciência do individual, daquilo que é não
gregário, daquilo que é não comunitário, o que é que significa entrar em relação com o si mesmo.
Esse é, talvez, um dos maiores problemas para Nietzsche. É isto que vai afastá-lo sempre de toda e
qualquer tentativa de universalização, seja a nível das vivências, seja, inclusive, a nível das suas
próprias posturas teóricas. Por exemplo, só para dar uma indicação neste sentido, o fato de que ele
constantemente insiste em dizer: "Olha, determinadas vivências e determinadas experiências não
são para todos". Aquilo de que todos são capazes, é precisamente aquilo que é comum. O
universalizável está sempre posto sob a perspectiva do rebanho.
Comentário: Então, para ele, a natureza é seletiva?
Professor: A natureza não é propriamente seletiva. Isso seria uma perspectiva, para ele, de
rebanho, a perspectiva darwinista, que é o sentido da crítica dele ao darwinismo. A natureza, para
Nietzsche, é o princípio de diferenciação. Ela funciona sobre a base da diferenciação. E a gente vai
tentar ver em que sentido e, tanto quanto possível concretamente, o que é que significa esta
vivência do singular, do individual; como é que ela se expressa ou pode se expressar. Uma das
suas formas é, exatamente, uma forma negativa que consiste na denúncia das falsas formas de
auto-conhecimento. Como, por exemplo, "conhece-te a ti mesmo". Como se você pudesse ter
acesso ao si-mesmo via consciência. Como se a consciência não fosse uma espécie de
epifenômeno ou fenômeno de superfície desse si-mesmo. E você tem que tomar o corpo, aí sim,
para Nietzsche, um ponto de partida, que não é mais a consciência. É esta a grande razão.
Pergunta: Quando ele põe aqui justaposto neste texto, necessidade, carência, indigência e utilidade,
me parece que utilidade tem um sentido mais positivo do que a idéia de necessidade e carência.
Quando aparece necessidade e carência, indigência, é brava a coisa, mas o sentido de utilidade
não é.
Professor: Eu detesto fazer isso, mas será que a gente poderia esperar, porque é um anzol a
questão da utilidade nesse texto, como muitos são os anzóis espalhados aqui. No final do texto, ele
vai desfazer essa idéia de uma derivação, pura e simplesmente, utilitarista. Ele vai mostrar como a
utilidade, ela própria é uma ilusão. Então, vamos ver se a gente consegue chegar até lá, para que a
coisa seja, talvez, mais esclarecida ou melhor esclarecida.

Retomada da Aula Anterior

- Meu pensamento é, como se vê: que a consciência não faz parte propriamente da
existência individual do homem, mas antes daquilo que nele é da natureza de
comunidade e de rebanho; que também, como se segue disso, somente em
referência à utilidade de comunidade e rebanho ela se desenvolveu e refinou e que,
conseqüentemente, cada um de nós, com a melhor vontade de entender a si
mesmo tão individualmente quanto possível, de "conhecer a si mesmo", sempre
trará a consciência, precisamente, apenas o não-individual em si, seu "corte
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transversal" - que nosso pensamento mesmo, pelo caráter da consciência - pelo


"gênio da espécie" que nele comanda -, é constantemente como que majorizado e
retraduzido para a perspectiva do rebanho.

O Gênio da Espécie, aqui, é uma espécie de metáfora da natureza simplesmente comunicativa e


gregária da linguagem e da consciência que se funda nessa linguagem; tanto a consciência quanto
a linguagem são vistas aqui a partir da mesma ótica, isto é, consciência e linguagem são
instrumentos de comunicação. Por conseguinte a gênese simultânea da consciência e da linguagem
que torna possível o desenvolvimento e o refinamento da consciência e da linguagem, essa
simultaneidade não retira de ambas o seu papel simplesmente instrumental. Ou seja, a sua
existência tem em vista a possibilidade de tomar-consciência dos seus estados, das suas
necessidades, e a linguagem possibilita a comunicação, por conseguinte, a cessação desse estado
geral de carência, de falta.
Pergunta: Entendo que a consciência evolui tanto no indivíduo como na espécie. Agora, situações
onde a consciência seja manifesta na maneira de rebanho sempre irão existir, mas em condições
muito primitivas, nas tribos por exemplo, a consciência é muito mais de rebanho do que individuada.
Será que na época do Nietzsche a consciência não estaria num estágio muito menos desenvolvida
do que é hoje? Porque essas idéias cria um desconforto razoável.
Professor: É, você pode dizer que, talvez, nós hoje temos um desenvolvimento da consciência maior
do que Nietzsche está falando aqui. De qualquer forma, para ele, desse ponto de vista, ou seja,
mesmo os refinamentos futuros da consciência, não purgarão essa gênese da consciência a partir
da indigência, da carência, etc.
Comentário: Sim. Esse aspecto da consciência gregária sempre vai existir.
Professor: Isso. Agora, o que é mais engraçado é que (isto talvez nós não cheguemos a ver nesse
texto, talvez até mesmo só vejamos a partir do momento em que examinarmos aqueles parágrafos
mencionados no primeiro capítulo do Além do Bem e do Mal) o que é possível e o que é
efetivamente realizado, é uma espécie assim de sofisticação tão extrema da consciência, e mesmo
da linguagem, que ela é capaz, então, a partir dessa extrema complexificação, e ao mesmo tempo
desse extremo movimento de aperfeiçoamento da consciência e da linguagem, que você assiste a
uma espécie de transformação dessa indigência no seu contrário. Ou seja, a consciência se torna
tão desenvolvida e a linguagem tão enriquecida, que ela dialeticamente se converte no seu outro, ou
seja, então, de indigência, ela se torna riqueza excessiva e, por conseguinte, dissipadora. É
precisamente aquilo que vai acontecer quando a linguagem já é suficientemente rarefeita,
sublimada, que ela perde exatamente a sua função instrumental meramente representativa. É
quando, então, a linguagem deixa de servir simplesmente para comunicação destes estados
comuns a todos, dessas vivências comuns a todos, e passa a ser uma tentativa de expressão
daquilo é absolutamente singular e inefável. Ou seja, quando é possível fazer o uso poético, artístico
da linguagem e igualmente da consciência. A gente vai chegar a ver isso, acho, com detalhes, mas
isto é uma espécie, assim, de retorno reflexivo contra si mesmo tanto da linguagem quanto da
consciência. Ou seja, a consciência faz a crítica da sua própria origem.
Pergunta: Mas o que eu acho que o Dornelis está sentindo, que é uma coisa dentro de toda
interferência iluminista, que a consciência é transparente, que ela é o lugar da verdade, toda a
nossa subjetividade é isso. De repente toda essa filosofia ocidental, que faz a maior apologia da
consciência, e eu acho até uma interpretação do Jung muito equivocada, que faz apologia da
consciência, leva a idéia de que: Nossa! Aonde que estamos? Que a consciência não é colocada
dentro desse referencial, eu acho que não é.
Professor: Olha Amnéris, relativamente a esse ponto que você toca, nós vamos chegar a ver com
detalhes, como a posição de Nietzsche é extremamente avançada em relação a tradição do
iluminismo. Vale dizer, como a crítica nietzschiana da ideologia, que é necessariamente uma
variante da sua crítica da consciência, ela é praticamente única em relação a tradição do iluminismo,
na medida em que, para ela, este primado da consciência é simplesmente uma das figuras da
ilusão. Isto nós vamos ver no texto, que nós vamos examinar ainda hoje. Ou seja, qual é a
verdadeira natureza da crítica da consciência, em Nietzsche, e em que medida, para ele, toda e
qualquer crítica da ideologia para ser conseqüente consigo mesmo, tem que partir do dado de que a
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consciência não é nem potencialmente onisciente, nem potencialmente onipotente. E mais ainda, de
que a ilusão da onipotência e da onisciência da consciência é o perigo, precisamente porque é,
como ilusão, inconsciente de si mesmo. Ou seja, a crítica nietzschiana da consciência desemboca
na denúncia do caráter necessariamente superficial da consciência.
Pergunta: Mas se ele retoma o patamar que lhe dá a base? Ainda assim ela não é valorizada.
Professor: Não, não é que não é valorizada. Não há outra saída fora da auto-reflexão da
consciência, ou seja, a auto-reflexão da consciência é infinita. Só que ela jamais pode chegar a
transparência absoluta.
Pergunta: Nem buscar esse movimento?
Professor: Pode até ser buscado, mas ele é inatingível, para Nietzsche. Ele é inatingível, e ele é
simplesmente pensado como uma das figuras da ilusão. Porque a consciência necessariamente
repousa sobre uma espécie de sem fundo, de abismo, que ela não pode percorrer inteiramente. Nós
vamos ver aqui no texto, em que medida o ponto de partida nietzschiano é exatamente aquele que
se coloca em estrita rejeição e, ao mesmo tempo, em estrita inversão do cartesianismo e do
kantismo. Ou seja, a crítica da filosofia da consciência, lá onde essa filosofia da consciência chega
ao seu ponto máximo de aprofundamento. Então, a tentativa nietzschiana vai ser uma inversão do
cogito kantiano e uma inversão do cogito cartesiano. Daí o ponto de partida não ser mais a
consciência, como para todo iluminismo, mas justamente o corpo. E a gente vai tentar entender o
que é que significa tomar o corpo como ponto de partida; e, na verdade, é esse o objetivo desse
curso, em que medida tomar o corpo como ponto de partida, pressupõe uma outra concepção de
subjetividade. Ou seja, uma concepção de subjetividade que não se funda mais na unidade da
consciência, seja ela consciência transcendental a modo kantiano, ou seja ela a consciência
transparente para si mesma, a modo cartesiano.
Pergunta: As duas formas de olhar, tanto por Kant, tanto por Descartes, na verdade, no meu modo
de entender, havia uma confusão do uso da palavra "consciência". Tanto para Kant quanto para
Descartes, é saber, que é uma forma de raciocínio. A consciência, não sei, é isso que eu queria
tentar entender dentro do Nietzsche, parece que há algo a mais, é mais do que saber, a consciência
é perceber outra dimensão da vida. E daí a consciência a nível da situação, do rebanho, do
gregário, é o começo de um processo, que depois precisa chegar a um ponto em que é necessário
o sacrifício dessa própria consciência, em função de uma outra dimensão.
Professor: Precisamente isso. Ou seja, a consciência vai ter que fazer precisamente isso, a meu ver,
entre aspas, uma palavra que não é muito adequada nesse progresso, ao termo do qual ela se auto-
sacrifica. Isso é Nietzsche puro. Ou seja, a idéia cara ao iluminismo, nos seus diferentes matizes,
que exatamente a consciência é o lugar da verdade ou o lugar do absoluto, da revelação do
absoluto, e que, por conseguinte, todo e qualquer tipo de salvação (entre aspas), todo e qualquer
tipo de esclarecimento ou de ilustração, ou melhor, toda a felicidade do homem, depende desse
processo de esclarecimento, de ilustração, que se funda na consciência; e por conseguinte, a
crença e a fé inerentes a todas as formas de iluminismo, de que exatamente em virtude dos
progressos da consciência e da ilustração, vai ser possível construir uma espécie de reinado da
felicidade sobre a terra, ou seja, o estabelecimento das relações do homem com a natureza e do
homem consigo mesmo, fundadas em critérios pura e simplesmente racionais; tudo isso é que vai
ser completamente denunciado como ilusão, precisamente a partir dessa crítica da consciência.

Nossas ações são, no fundo, todas elas, pessoais de uma maneira incomparável,
únicas, ilimitadamente individuais, sem dúvida nenhuma; mas, tão logo nós as
traduzimos na consciência, elas não parecem mais sê-lo...

Claro, porque cada uma das nossas ações só é absolutamente singular, na medida em que ela
escapa a este plano gregário da consciência. Se ela é traduzida para este plano gregário da
consciência, ela já é posta sob perspectiva daquilo que é comum, por conseguinte, ela já não é mais
única, singular, pessoal.

Isto é propriamente o fenomenalismo e perspectivismo, assim como eu o entendo: a


natureza da consciência animal acarreta que o mundo, de que podemos tomar
consciência, é apenas um mundo de superfícies e de signos, um mundo
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generalizado, vulgarizado - que tudo que se torna consciente justamente com isso
se torna raso, ralo, relativamente estúpido, geral, signo, marca de rebanho, que,
com todo tornar-consciente, está associada uma grande e radical corrupção,
falsificação, superficialização e generalização.

Essa é uma das mais radicais formulações da crítica nietzschiana à crença iluminista de que toda e
qualquer forma de progresso, de acesso a verdade, passa necessariamente pela clarificação ou
iluminação da consciência. Ou seja, é até bem possível, é até muito provável, em termos
nietzschiano, que os progressos da consciência são passos decisivos em direção a paz e a
felicidade, mas simplesmente a paz e a felicidade do rebanho. Então, certo tipo de paz e de
felicidade, que Nietzsche denomina muito provocativamente, de paz e felicidade à inglesa, ou seja,
felicidade entendida como bem estar, conforto, ausência de riscos, de perigos, de extremos; a
felicidade simplesmente reduzida à perspectiva do bem estar. Então, não somente, não se deve
esperar da ilusão de onipotência da consciência alguma espécie de acesso efetivo a verdade, mas
sim corrupção, falsificação, generalização.
Mas, aqui, eu queria voltar àquela questão do Dornelis: vejam é preciso prestar um pouco de
atenção a este movimento dialético que está presente no pensamento do Nietzsche. Eu não tenho
escrúpulo em usar a palavra dialético para me referir ao Nietzsche, porque há uma longa discussão
sobre se o verdadeiro adversário do Nietzsche não é todo e qualquer pensamento dialético. Eu
estou entendendo aqui, dialético, no sentido antigo da palavra dialético. Veja, isso que está sendo
feito aqui é uma crítica da consciência, uma denúncia do caráter gregário da consciência. Mas de
onde se faz essa crítica? Evidentemente a partir da própria consciência filosófica. É isso que eu
tentava dizer a você: como é, de certa maneira, antitético o próprio movimento; porque, na verdade,
aqui se trata de uma autocrítica da consciência filosófica. É uma espécie de auto-reflexão da
consciência acerca da sua própria natureza. Ou seja, inequivocamente uma crítica radical da
consciência e da linguagem só pode ser feita a partir do ponto extremo a que chegou o
desenvolvimento da consciência e da linguagem. Vale dizer, é somente a partir do momento do seu
extremo amadurecimento, da sua extrema sofisticação, é que a consciência é capaz de se tomar-a-
si-mesma como objeto.
É precisamente ao longo ou ao termo de um processo histórico de profundo refinamento e
sofisticação que a consciência se torna auto-consciente. Isso não quer dizer, como veremos a partir
do exame dos outros textos, que é essa consciência que ela toma das suas próprias limitações, uma
espécie de um sucedâneo nietzschiano da onipotência da consciência. Ou seja, que a consciência
se torna tão poderosa, que ela toma consciência das suas próprias limitações. Não. Ela toma
consciência das suas limitações, mas tão radicalmente, que ela sabe que a própria consciência que
ela toma das suas limitações, também não é consciência de todas as suas limitações, nem pode
ser. Ou seja...
Comentário: É a experiência do sem-fundo.
Professor: Isso. Ou seja, a consciência está sempre dançando sobre a cratera de um vulcão. Ou,
como diz o jovem Nietzsche: está sonhando no dorso de um tigre. Quer dizer, ela sempre é a
superfície, é a fachada de uma espécie de abismo que ela encobre, cuja profundidade não
consegue atingir, jamais conseguirá. Isso a gente vai ver com bastante tempo.
Pergunta: Escuta, essa crítica que você está falando, a autocrítica, não é a capacidade da
consciência de perceber no particular, o do rebanho, conseguir perceber o geral.
Professor: É isso mesmo. Veja, a consciência pode perceber naquilo que é perspectiva do rebanho,
exatamente a sua natureza de rebanho. Então, ela pode ter uma espécie de perspectiva acima da
simples perspectiva do rebanho. Vou tentar dar um exemplo: se você toma as formas mais comuns
de crítica da consciência, se você quiser, de crítica da consciência ideológica, você encontra, mais
ou menos, o seguinte movimento: há um certo nível de vivência, de experiência de saber, que é tido
como falso saber, tomado por um certo tipo de consciência como o saber verdadeiro. Ora,
precisamente, a crítica da ideologia tem como função denunciar o caráter fictício, falso, desta forma
da consciência, deste conteúdo do saber, como sendo simplesmente encobridor de um outro nível
de realidade, que se encontra ou denegado ou reprimido ou inibido ou, simplesmente desfigurado,
por este falso saber que a consciência imediata julga ser seu saber verdadeiro. Então, qual é a
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função da crítica da ideologia? Reconduzir a forma da consciência à sua figura verdadeira. E


denunciar todas as formas de distorção pelas quais a ideologia pode se impor à consciência como
verdade. Por exemplo, se você usa o exemplo freudiano, é clássico: o discurso do analisado como
uma forma de falsa consciência, e você faz uma interpretação desses discursos e dos seus
sintomas, no sentido de repor estes elementos todos num certo plano de verdade, e tornar possível
o acesso da consciência a esses planos de verdade, conseguindo então uma verdadeira ou uma
forma verdadeira da consciência a respeito da ideologia dos sintomas ou da razão de ser desse
discurso. Então, a interpretação consiste sempre nesse movimento de passagem de uma forma
distorcida da consciência para uma forma verdadeira da consciência.
Isso se você pegar o caso de Freud, mas você pode pegar o caso da crítica marxista da ideologia,
que é a denúncia da consciência como simplesmente inversão encobridora daquilo que,
efetivamente, se passa ao nível das relações de produção. Então, a consciência, o que é? A
ideologia o que é? É uma representação invertida, falsa por conseguinte, encobridora daquilo que,
efetivamente se passa a nível das relações de produção e reprodução da vida material. Então, o
que é que faz a crítica da ideologia neste sentido? Reconduz a consciência desta distorção de que
ela é vítima, para uma visão, para uma compreensão, para uma inteligência adequada daquilo que,
efetivamente, acontece; ou seja, da realidade. O que é que está por debaixo desses dois protótipos
de crítica da ideologia e crítica da consciência? Exatamente a possibilidade de que por meio do
saber, vale dizer, por meio dos progressos da consciência, é possível, então, a obtenção de um
saber que é um saber verdadeiro; ou seja, que é um saber onde, realmente, se dá uma adequação
entre a representação e o objeto da representação. Ou seja, o que é de comum entre essas duas
formas de ideologia é a convicção de que por meio de um refinamento, de um progresso da
consciência, é possível obter algo assim, como um saber verdadeiro.
Comentário: Mas, então, nós estamos enganchando - por mais intelectual mesmo que seja ou nem
é tão intelectual -, é isso que existe como possibilidade, desde Freud até Max que é um patamar
alto. É isto que existe. Então, isso causa o desconforto, porque entre os psicólogos, me perdoe
Dornelis, eu nunca vi alguém propondo algo que não fosse o alargamento da consciência.
Professor: Concordo. O que Nietzsche está dizendo aqui, não é que a consciência não deve ser
alargada, pelo contrário, ela deve ser alargada. Só que ela nunca escapa de um fundo de ignorância
que é constitutivo dela. Então, essa ilusão de que é possível à consciência tornar-se inteiramente
transparente para si mesma, isso é exatamente uma ilusão herdada do iluminismo, para Nietzsche.
Pergunta: Quando ele afirma que a consciência não é o lugar da verdade, isso não quer dizer que
ela seja falsa. Porque ele desmonta esse tipo de idéia. Ela apenas não é onisciente, mas não é
falsa.
Professor: Não. Ela não é onisciente, nem pode ser. Ou seja, há um certo grau de ignorância, que é
absolutamente necessário para que a consciência possa ser consciente, ou seja, para que ela
possa executar exatamente as suas funções.
Pergunta: E se a gente pensa no inconsciente do Freud, não seria esta a parte da consciência que
nunca se descobre. Ou como é que é isso?
Professor: Não. Eu acho que aí as duas coisas não se recobrem mais. Eu acho que dá para você
manter, tanto no Nietzsche quanto no Freud, a idéia de um inconsciente; eu acho que, inclusive, no
Nietzsche, esse inconsciente seja ainda, talvez, muito mais corporal do que no Freud. O que é
diferente é este eu, que no Freud é uma das instâncias ou um dos seus componentes a nível
psíquico. É precisamente a consciência, consciência entendida aqui como Benvurstzein, como sede
desse eu. Em Freud e em Nietzsche a tematização desta consciência é diferente; enquanto você
tem em Freud a persistência do tema iluminista de que esta consciência, ou a consciência pensada
como sede do eu, é sim o lugar da verdade. Para Nietzsche você tem a afirmação de que, a
consciência pertence, necessariamente, uma dimensão de ignorância, uma ignorância de que não é
negativa, que não é simplesmente o avesso da verdade, não é a não verdade; mas que é elemento
constitutivo e faz parte do funcionamento da consciência.
Pergunta: Mas tem outro elemento aí também que diferencia. Porque toda essa tendência, quer o
iluminismo, quer o Marx, o Freud, tem ainda essa ilusão iluminista de fazer da consciência o lugar
da verdade, tem um atributo de valoração da consciência muito profundo. Tanto que neste texto,
que nós estamos lendo, não tem o atributo de positividade. Quanto mais você refina a consciência,
mais você se torna comum no rebanho. Então, é uma diferença muito grande dessa valoração.
Professor: É. Insisto sempre que Nietzsche é propositadamente ambíguo: existem duas coisas: por
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um lado, existe essa identificação entre consciência e gregarismo; e, por outro, e isso não aparece
no texto, mas fica no fundo - um pouco chamando a atenção para pergunta do Dornelis -, existe este
movimento de repô-lo contra si, que a própria consciência faz, que é o patamar, o nível, o registro,
onde se insere a filosofia de Nietzsche. Exatamente este registro não fica na fachada, fica nos
bastidores do discurso. E você precisa, então, saltar para uma espécie de metanível, metaplano
reflexivo para você poder perceber, como o discurso nietzschiano é um discurso que só pode ser
feito a partir exatamente dos progressos da consciência.
Comentário: E aí não tem mais expressão da língua, o que também dá uma dimensão diferente da
consciência, quer dizer, você pode expressar a tua singularidade, por meio de imagens da coisa
poética.
Professor: É precisamente isso.
Comentário: Então, a consciência é simplesmente uma ferramenta e, como tal, pode e deve ser
melhorada, mas ela não é uma finalidade em si mesma, está a serviço do si mesmo. Contudo, para
o rebanho, ela é uma finalidade em si mesma e para quem não é rebanho ela não tem sentido como
finalidade por ser ferramenta.
Professor: Mas é precisamente isso. Acho que esse tema é precisamente aquilo de que trata este
texto e os outros que a gente vai examinar. O caráter da consciência e da linguagem enquanto
signo de comunicação é instrumental só. E se você não ultrapassa o nível da simples
instrumentalidade da consciência e da linguagem como signo de comunicação, você perde
precisamente aquilo que é o singular, o individual, o pessoal. E mais que isso: ao pretender adquirir
alguma espécie de verdadeira vivência neste plano, você não está fazendo outra coisa senão
conseguir com toda eficácia fugir de si mesmo. E, ao mesmo tempo, se fechar na ilusão de que por
meio da linguagem e da consciência você vai ter acesso a algo como sendo a verdade. E não se
esqueçam que aqui vocês já viram isso, já nos referimos a isso.
Há uma expressão "conhecer a si mesmo" que, se eu não me engano, Amnéris tinha chamado a
atenção disso no nosso encontro anterior. Isso é claramente uma indicação irônica, profundamente
maldosa e de um veneno fora do comum, contra a interpretação socrático-platônica do Oráculo de
Delfos. Imagino que vocês todos devem saber o que o Sócrates pergunta: O que o oráculo disse ao
meu respeito? Que o homem mais sábio da Grécia é Sócrates. E ele, então, queria saber bem
porque razão o deus Apolo teria dito isso em relação a ele, na medida em que ele se achava o mais
ignorante de todos. Então, ele falou: Bom, de duas uma, ou deus mentiu ou eu não entendi. Como
Apolo não pode ter mentido; então, eu, com certeza, não entendi. Eu vou procurar saber porque eu
sou o mais inteligente. Então, foi conversar com todos aqueles que eram considerados inteligentes;
ou, pelo menos, com o representante de cada uma dessas categorias: os poetas, os políticos... E
descobriu que todos eles sabiam algumas coisas, mas ignoravam muitíssimas outras. E que mesmo
ignorando muitíssimas outras, julgavam que sabiam tudo. Quer dizer, ignoravam a sua própria
ignorância. E que ele, Sócrates, não; porque ele não ignorava que ignorava tudo. Por conseguinte,
ele sabia mais do que aqueles, que achavam, que nada ignoravam, porque esses sim ignoravam o
fundamental, ou seja, ignoravam a sua própria ignorância. Então, de fato, Sócrates era o homem
mais sábio da Grécia, não porque soubesse mais do que os outros, mas simplesmente porque sabia
que sabia menos do que os outros.
Então, esse primeiro passo, a chamada "douta ignorância", é exatamente o sentido da mensagem
socrática que é o "conhece-te a ti mesmo". Agora, conhece-te a ti mesmo é algo que só é possível
como se nós repetirmos o gesto socrático, ou seja, se nós tomarmos consciência da nossa própria
ignorância e procurarmos, então, fazer tudo o que está ao nosso alcance para conhecer alguma
coisa de verdadeiro. Ora, o que Nietzsche está fazendo aqui, é precisamente subverter esse
oráculo, no sentido de dizer: "Conhece-te a ti mesmo" é precisamente impossível pela consciência e
pela linguagem; eu não posso tomar consciência de mim mesmo, porque ao tomar consciência de
mim, eu me perco; eu me coloco precisamente na perspectiva gregária, na perspectiva do rebanho,
naquilo que há de comum a todos e, por conseguinte, naquilo que é rigorosamente o não eu.
Pergunta: Será que o Sócrates ignorava isso?
Professor: Olha, quando eu disse que aqui há um veneno terrivelmente destilado, é que o Sócrates
está sendo visado simplesmente como o pai da criança. Isso quer dizer que Sócrates está sendo
visado como o pai do racionalismo ocidental. Então, na verdade, aqui a crítica está sendo
endereçada à filosofia no seu conjunto, no seu todo. Não é simplesmente, nem Sócrates e Platão
somente, mas Sócrates está sendo tomado aqui precisamente como aquele que inspira este gesto,
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que inaugura este gesto, do racionalismo ocidental, segundo o qual a razão e, aqui identificada à
consciência, a razão como sinônimo da consciência, ela é capaz de obter um acesso objetivo à
verdade. Ou seja, que a verdade é transparente para a consciência.

Por último, a consciência que cresce é um perigo, e quem vive entre os mais
conscientes europeus, sabe até mesmo que ela é uma doença.

Essa frase é nitidamente uma citação indireta de Dostoiévski, precisamente nas Memórias de
Subsolo. Aquela famosa passagem em que Dostoiévski diz: a consciência, meus senhores, é uma
doença, e aquele que for obsessivamente consciente vai sentir prazer até numa dor de dente. É
mais ou menos isso que o Dostoiévski diz lá e que o Nietzsche cita indiretamente.
Agora eu pediria especial atenção de vocês para essas linhas, porque aqui Nietzsche explicita a sua
crítica, mostra a sua diferença, inclusive, com relação a esta inflexão, algo utilitarista, que parecia
ser a dele no começo do texto ao traçar essa gênese comum da consciência, da linguagem, da
sociabilidade, sobre a forma da utilidade. Ou seja, a consciência e a linguagem só se
desenvolveram porque são úteis.

Não é, como se adivinha, a oposição de sujeito e objeto que me importa aqui: deixo
essa distinção aos teóricos do conhecimento, que ficaram presos nas malhas da
gramática, (a metafísica do povo).

O que existe, na verdade, do ponto de vista daqueles que pretendem fazer teoria do conhecimento,
por conseguinte, estabelecer a diferença entre o sujeito e objeto, é que eles estão enredados nas
malhas da gramática. Ou seja, isso que Nietzsche chama de metafísica do povo. Nós vamos saber
ainda porque é metafísica do povo, ainda nesse texto. Mas eu só queria mostrar aqui o seguinte:
Nietzsche está denunciando como raiz última dos preconceitos da filosofia, ou dos preconceitos da
metafísica, se vocês quiserem, a gramática. Ou seja, a simples idéia clássica da filosofia, de
separação entre a consciência e o seu objeto, entre sujeito e objeto, que é a distinção
epistemológica fundamental é, na verdade, o que? Uma projeção metafísica da sentença gramatical.
Percebem aonde Nietzsche quer chegar? Ou seja, a sentença gramatical, isto é, a estruturação
lógica da sentença básica, o sujeito e objeto. Então, é porque os filósofos e os metafísicos não
perceberam o enraizamento gramatical, em última instância, da suas teorias, é que eles continuam
acreditando em coisas como sujeito, objeto, consciência e verdade, essas coisas que não fazem lá
grande sentido, para quem está um pouco acima da metafísica do povo.
Ou seja: continuar discutindo a nível da epistemologia clássica, a nível da distinção entre fenômeno
e "coisa em si", a nível da distinção entre a consciência e o seu objeto, é não perceber que tudo isso
é simplesmente modo de travestimento inconsciente da estrutura gramatical, lógico gramatical da
sentença. Então, por aqui, vocês percebem o quanto Nietzsche é atual e em que medida Nietzsche
pré-figura todos esses movimentos de crítica da linguagem, tal como nós os conhecemos.

E nem é bem a oposição entre "coisa em si" e fenômeno: pois estamos longe de
"conhecer" o bastante para sequer podermos separar assim. Não temos justamente
nenhum órgão para o conhecer, para a "verdade";

Percebam o uso das aspas aqui.

"sabemos" (ou acreditamos ou imaginamos) precisamente o tanto que, no interesse


do rebanho humano, da espécie, pode ser útil.

Ou seja, não somente nós não podemos separar entre a consciência e o objeto, entre a coisa em si
e o fenômeno, mas nós também não podemos separar entre a verdade e a falsidade, ou, a verdade
e o erro. Não temos justamente nenhum órgão para conhecer, para a verdade. Ou seja, a nossa
distinção entre saber verdadeiro e opinião, é da mesma natureza que a distinção entre coisa em si e
aparência ou fenômeno, ou da mesma natureza que a distinção entre a consciência e o seu objeto.
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Ou seja, a falsa distinção.


Aquilo que nós conhecemos e que nós julgamos ou imaginamos ou cremos ser verdadeiro, é
simplesmente não o contrário do erro, mas uma forma do erro, uma forma do erro que se revela útil,
produtiva, proveitosa para a existência.
Então, nós não temos como separar aquilo que é verdadeiro daquilo que é falso, porque nós não
podemos conhecer nada de verdadeiro. A idéia de que a consciência pode ter um acesso objetivo à
verdade é mais uma forma de ilusão, precisamente essa forma de ilusão que surge com Sócrates.
Pergunta: Então, pela distinção que ele faz é impossível se ter a verdade de um lado, e a não
verdade do outro. E a proposição, então, seria tanto um caminho quanto o outro, tem os dois. É
isso? Tanto a verdade tem erro, como o erro tem verdade.
Professor: É isso. Na verdade, sem trocadilho, a palavra verdade, em termos de Nietzsche, só vai
poder ser usada entre aspas. E a gente vai procurar mostrar porque razão não é possível falar em
verdade. Verdade, em que sentido? Verdade no sentido tradicional do termo, isto é, uma
adequação, termo a termo, entre a consciência enquanto representação, e o objeto dessa
representação. Ou seja, a famosa teoria da adequação entre a consciência, enquanto instância da
representação, e o objeto da representação. Vale dizer, a idéia de adequação entre o intelecto e a
coisa. Verdade no sentido, portanto, de uma acesso objetivo da consciência à natureza da
realidade. O que nós percebemos aqui é que a consciência não pode captar a estrutura ontológica
do real, pelo simples fato de que a consciência, ela própria, já é uma perspectiva, e precisamente a
perspectiva do rebanho. Ora, não existe perspectiva que não seja de um ângulo, logo não existe
uma perspectiva que seja absolutamente neutra, absolutamente objetiva. Ela sempre significa um
certo recorte do real.
Comentário: Ou seja, o que há de comum entre a verdade e o erro são projeções do inconsciente.
Professor: Isso mesmo.
Comentário: Agora ficou melhor, porque eu estava incomodada com a questão do Dornelis falando
de um caminho e outro caminho. Leio Nietzsche e não consigo distinguir um caminho de outro
caminho.
Professor: Ambos os caminhos são projeções, não resta a menor dúvida. Na medida em que você
só pode ter um saber perspectivo, esta perspectiva vai sempre ser obtida a partir de um
determinado ponto, a partir de uma determinada situação. Logo, se todo o tipo de saber é
perspectivo, não existe nenhuma possibilidade de acesso a uma estrutura objetiva de realidade, fora
de uma perspectiva qualquer. Seja a perspectiva da verdade, isto é, seja a perspectiva da
consciência e da gregariedade; vale dizer, do objetivo entendido como acordo comum entre os
diversos interlocutores, seja uma perspectiva, como por exemplo, aquela não gregária, no caso do
Nietzsche um perspectiva artística, por exemplo. É nesse sentido que se justificará a famosa
afirmação nietzschiana, que até hoje produz ou dá ensejo a verdadeiros oceanos de tinta, a arte é
mais verdadeira do que a ciência. O que significa isso? A arte é mais verdadeira do que a ciência
significa simplesmente que a arte é um saber perspectivo que se sabe perspectivo, enquanto a
ciência é um saber igualmente perspectivo, mas que pretende ser mais que isso. Então, neste
sentido, a arte é mais verdadeira do que a ciência, por conseguinte, a arte é preferível à ciência.
Comentário: Por isso que eu acho que a psicoterapia é arte.
Professor: Então, essa é uma das discussões que se insere nesse oceano de tintas, a propósito da
frase nietzschiana. Mas não me parece que isso seja uma afirmação com muito trânsito entre os
terapeutas.
Comentário: Só entre os junguianos, entre os freudianos não.
Pergunta: A perspectiva do Guattari de fazer as ciências sociais, passarem da perspectiva científica
para a perspectiva estética está ancorada nesta discussão?
Professor: Sem sombra de dúvida. Aliás, não por acaso, Guattari teve tanto tempo junto com o
Deleuze, que andou a vida toda junto com Nietzsche.
Comentário: E o pessoal fica fazendo uma briga enorme para considerar as coisas na ciência. Uma
luta para ser reconhecido como ciência.
Professor: Mas é precisamente esta a perspectiva aqui é a perspectiva hegemônica. Na verdade é
esse o problema.
Comentário: É por isso que eu acho que todo o meio acadêmico, universitário, ou a comunidade
científica faz questão desse ponto para garantir emprego.
Professor: Olha, isso é uma coisa que vai muito longe... Isso que você está dizendo vai tão longe
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que na discussão que nós tivemos no Colóquio sobre Heidegger, uma pessoa que me falou, me
parece certamente um psicoterapeuta, tanto é que ele estava falando, um pouco, em termos da
Sociedade Brasileira de Psicanálise. Ele estava dizendo que, do ponto de vista de uma certa
tendência mundial, existe um empenho muito grande em insistir no caráter científico da psicanálise,
estava falando mais da extração freudiana, entre outras razões, para que ela possa ser reconhecida
como tratamento terapêutico legítimo pelos seguros de saúde, tanto no Brasil quanto fora do Brasil;
que é uma maneira de garantir a remuneração do trabalho psicoterapêutico pago por esses grupos,
que dominam cada vez mais, em termos quase que monopolísticos. Isso mostra, mais uma vez, que
a questão não é simplesmente científica ou simplesmente epistemológica, mas passa por outros
caminhos.
Comentário: Eu fico até mais sossegada, porque o que eu sinto é assim, uma forma de subjetivação
tão cristalizada que, realmente, parece que é impossível quebrar. É uma subjetividade em que se
constitui, que acredita naquilo, e que não vê as outras falas, não vê outros vieses. Se fosse só para
segurar emprego, eu acho que seria maravilhoso. Que já está no nível de utilidade pública,
entendeu? O problema, eu acho, é mais sério porque realmente não se demove para outras
perspectivas, pelo contrário, arrasa as outras perspectivas em nome da verdade, de uma forma
religiosa de se conduzir. É quando a ciência vira religião, porque tem a verdade e tem que provar
contra todos os outros, e se não for aceito põe os outros na fogueira. Suporta o outro em nome da
diferença partidária, sei lá o que vem...
Professor: Vocês percebem que o que vocês estão falando é exatamente isso que está sendo dito
nessas 3 últimas linhas aqui? É exatamente isso. Eu não quero interromper, mas inclusive os
termos crença, religião e tal, vai aparecer exatamente aí.

"sabemos" (ou acreditamos ou imaginamos) precisamente o tanto que, no interesse


do rebanho humano, da espécie, pode ser útil:

Lembrem-se que o texto chama-se o Gênio da Espécie. Então, nós sabemos aquilo que é útil para a
espécie.

e até mesmo o que aqui denominamos utilidade...

Parece que o Nietzsche estava aqui navegando em águas de utilitarismo, de extração anglo-
saxônica, e aqui a última pirueta do Nietzsche...

e até mesmo que aqui é denominado utilitarismo, é por último, simplesmente, uma
crença, uma imaginação, e talvez precisamente aquela estupidez, a mais fatal de
todas, de que um dia sucumbiremos.

A tradução do Rubens, aqui, não é muito feliz, porque pode-se notar, de que essa estupidez seria
"de que nós sucumbiremos", mas o que Nietzsche quer de fato dizer, é que em "função da qual",
estupidez em função da qual nós ainda um dia sucumbiremos.
Comentário: Lembra a questão da morte.
Professor: É exatamente isso que tem que ser evitado. Ou seja, pode-se usar o vocabulário de uma
forma de subjetivação que se pretende melhor ou única ou única legítima, e precisamente como
perspectiva que se desconhece enquanto tal, ela nada mais é do que uma forma de estupidez na
qual ou em função da qual, talvez um dia, a gente venha a sucumbir. Sucumbir, por que? Sucumbir
porque a gente perde de vista, precisamente, a pluralidade, a multiplicidade, a inesgotabilidade das
figuras que, em última instância, a consciência humana pode se dar.
Comentário: Isso é um movimento que estamos vendo crescer e me angustia isso.
Professor: Isso que você chama de movimento crescente, Nietzsche chama de mundo moderno.
Pergunta: Sim, o mundo moderno. E aí? Como é que fica professor?
Professor: No caso do Nietzsche, ele faz as suas considerações extemporâneas, quer dizer, um
salto para fora da modernidade.
Pergunta: Mas se o fizermos nos marginalizamos...
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Professor: É, mas a pergunta é saber se, de dentro do movimento, você tem possibilidade de evitar
ser capturado nessa mesma máquina. Ou seja, a questão é saber se uma postura que não seja de
recusa desse ideal de modernidade, pode deixar de ser assimilada, precisamente, na mesma
dinâmica da modernidade. Aí é uma longa discussão sobre como é que fica a posição de Nietzsche,
porque a posição dele é claramente de recusa.
Comentário: Mas se for possível um dia inverter a ordem das coisas, vai ter que ser individualmente.
Só é possível individualmente. Não creio que seja possível decretar uma mudança da maneira de
ser para a humanidade.
Professor: No caso do Nietzsche, radicalmente, é uma coisa individual. Você percebe Dornelis
porque exatamente Nietzsche usa as palavras tão estridentes? Por que em vez dele falar
comunidade, ele fala rebanho? Por que em vez dele falar ilusão, ele fala tolice, estupidez?...
Comentário: Porque é para provocar.
Professor: Exatamente. É propositadamente estridente; é para tomar todo esse discurso consagrado
na modernidade como o discurso legítimo, o discurso, o verdadeiro, o correto, o justo, etc., para
tomar precisamente isso como sendo objeto de crítica. E é por isso que as figuras que o Nietzsche
constrói, por exemplo, a imagem do forte e do fraco, do senhor e do escravo; quer dizer, são todas
elas escolhidas a dedo com o objetivo de caminhar contra a corrente daquilo que são as idéias
modernas, para ele; daquilo que é considerado como bom e justo no mundo moderno. Então, por
exemplo, a crítica feroz dele à leitura de jornal. De vez em quando você se impressiona, por que ele
critica tanto esse negócio de leitura de jornal.
Comentário: Porque é do rebanho.
Professor: Porque, para ele, significa formação massiva da consciência e da opinião.
Pergunta: E o que ele acharia da TV a cabo, da Globo e da globalização?
Professor: Pois é, mas isso é bem avant à la lettre uma crítica da cultura de massa. O que significa
massificação da cultura? Significa, para Nietzsche, a mais extrema negação da cultura. Ou seja,
qualquer tipo de globalização da opinião, significa negação do espírito. Por que negação do
espírito? Porque é a impossibilidade de você pensar por si, você tem sempre que pensar
heteronomamente em função de alguém que determina as coordenadas da sua percepção, do seu
gosto, do seu juízo, enfim.
Comentário: É, qualquer coisa que vai ser dita na Globo, tem que ser dita do jeito que eles querem
que seja dito. E se não disser do jeito deles, não sai...
Professor: Isso. E outra coisa: não somente tem que ser dita do jeito deles, mas o quê eles querem
que seja dito é dito. E há certas coisas que simplesmente não tem nenhum interesse em aparecer.
Veja, o que é que aparece, o que é que faz sucesso, o que é que causa impacto, são apenas coisas
que são resultados, evidentemente, de um processo de seleção. E a questão é quem faz essa
seleção? Não é claramente nenhum sujeito individual, e nem o Sr. Roberto Marinho, nem nada, mas
são grandes jogos suprapessoais de interesses.
Pergunta: Isso é pensando sempre ao nível do coletivo, do político, do gregário, do interesse
econômico... Mas se pensarmos na evolução do indivíduo não sei se esse processo de assassinato,
vamos dizer, da individualidade, não vai levar, um dia, ao suicídio coletivo.
Professor: É justamente o que Nietzsche está dizendo aqui, você percebe?
Comentário: Esse é o perigo.
Professor: Exato. Esse é o perigo. Isso que significa sucumbir. Sucumbir não significa simplesmente
morrer. De jeito nenhum. Sucumbir pode significar precisamente a duração potencialmente eterna
de uma comunidade-rebanho, só, mais nada. Ou seja, o sucumbir significa aqui, desaparecer aquilo
que faz a grandeza possível do humano, ou seja, a possibilidade da sua auto-superação
permanente. Sucumbir significa o congelamento da humanidade nesse nível de identificação entre
felicidade, conforto, igualdade, igualitarismo... É isso que significa sucumbir.
Pergunta: Posso polemizar um pouquinho? Não está embutido aí uma idéia de que não podemos
ser muitos, temos que ser poucos e seletos?
Professor: A idéia aqui é a seguinte: o mundo moderno perdeu a percepção da diferença, não tem
mais lugar legítimo para distância, para o outro, para a diferença no sentido largo. Ou seja, o mundo
moderno transforma a igualdade na uniformidade. E o muito é sempre, na verdade, a figura mais
extrema da pobreza, porque o muito é sempre a reprodução ao infinito do mesmo.
Pergunta: Isso não tem um tipo de germe fascista?
Professor: Bem, você pode certamente ver nesse sentido, desde que você identifique isto com
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categorias sociais e políticas. Coisa que Nietzsche permanentemente se recusou a fazer. Esta
linguagem, de certa maneira, aponta na direção de um arcaísmo. Ela é, na minha opinião,
provocativa, no sentido de mostrar que o discurso contemporâneo se trama, se tece todo em
categorias que torna inaudível certas palavras onde, por exemplo, simplesmente a menção à
diferença e à hierarquia já, por si só, é evitada ou imediatamente rotulada de negativa. Ou seja, do
ponto de vista de Nietzsche, no mundo moderno a diferença de homem para homem, e vale dizer,
por conseguinte, a possibilidade de se pensar numa espécie de hierarquia ou de aristocracia do
espírito - que, para ele, não tem mais sentido em falar de aristocracia social, nem em política -, é
completamente ininteligível, quando não imediatamente suspeito. Agora, onde é que se quer chegar
com isso? Quer se chegar precisamente a idéia deste perigo extremo, que é o perigo do mundo
moderno, de uma identificação entre felicidade, conforto e bem estar; e essa identificação entre
igualdade e uniformidade, que é na verdade uma forma extrema de despotismo, de que isso seja a
última figura do homem. Ou seja, que a humanidade se congele, se fixe, nesta uniformidade, e que
seja incapaz de se elevar para além de si mesmo. É esse o perigo que é pior do que morte.
Comentário: O modelo da sociedade americana.
Professor: Isso. Exatamente. Por que esse perigo é pior do que a morte?
Resposta: Porque ele intimida.
Professor: Não, é porque esteriliza o futuro. Ou seja, a morte mata simplesmente aquilo que nós
somos hoje; esse perigo, ou seja, o perigo envolvido na possibilidade da reprodução infinita do
mesmo, mata qualquer futuro.
Pergunta: E a natureza não tem uma força muito maior que pode superar tudo isso? Ela pode
provocar uma situação que revolucione toda a situação para romper?
Professor: Isso você não tem condições de afirmar, segundo Nietzsche. A não ser que você
disponha de uma teoria da natureza, em que seja uma verdadeira teoria da natureza, que ele não
poderia afirmar mais.
Pergunta: Mas aí o que acontece com o inconsciente?
Professor: Pois é! É justamente a idéia de toda a pregação nietzschiana que é no sentido de fazer
voltar, ou melhor, abrirmos para todas essas dimensões para as quais o nosso discurso moderno, a
nossa consciência moderna, já não é mais receptiva. Como, por exemplo, a dimensão do corpo, do
inconsciente.
Pergunta: Estou pensando assim: Se a consciência é uma forma de representação, se você
cristaliza, se você fica nessa infertilidade, esse inconsciente, esse todo criativo, ele não tem uma
reação? Não acontece nada?
Professor: O problema é que você pode ser muito bem sucedido na cristalização, pode dar muito
certo. E se você pega, por exemplo, para te dar um exemplo atual, se você mobiliza para esses fins,
as possibilidades infinitas do progresso técnico, você pode realmente ir longe demais nisso. Basta
pensar, por exemplo, na questão da globalização mundial da linguagem hoje; e basta você pensar,
por exemplo, na possibilidade, para ser mais trágico, da engenharia genética.
Pergunta: Mas é isso que eu estou falando da natureza, não pode responder a isto? Porque a gente
está chegando num nível, que a natureza não suporta mais. E a gente não vive sem ela.
Professor: Mas esse é o problema. O que significa isto? O que significa que a natureza não suporta
mais? Significa que, talvez nós tenhamos submetido a natureza como objeto do nosso controle
técnico, num limite que não deixa outra perspectiva senão a da catástrofe. Por exemplo, a catástrofe
ecológica. Mas é claro que Nietzsche não poderia ter visto...
Comentário: Mas ele pensa numa superação, ele aponta para o perigo mas pensa na superação....
Professor: Sem dúvida. Nietzsche pensa as duas coisas: ele pensa que é possível superar, mas ele
pensa também que esse ideal aqui, que ele vai chamar no Zaratustra, de o último homem seja
também aquele que triunfe. Ou seja, você tem em Nietzsche duas coisas, você tem o anúncio do
além do homem, mas você também tem o anúncio do mundo moderno como o mundo do último
homem. É esse último nesse sentido que eu estou dizendo aqui.
Comentário: Mas já está havendo também uma aceitação maior das diferenças.
Professor: Desde que elas sejam domesticadas. Desde que elas sejam neutralizadas na sua
periculosidade.
Pergunta: Eu fico sempre preocupada com a questão: a questão da diferença, no discurso da
igualdade, ela é suportável. Quando se fundou a idéia do homem, a igualdade do homem, se fundou
também, com certo esforço, a possibilidade da diferença, de opiniões religiosas, etc. e tal. Agora, a
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idéia da multiplicidade não está vinculada a idéia da desigualdade dos homens? Sem levantar
suspeitas, mas se com os múltiplos, se as subjetividades são múltiplas, somos desiguais.
Professor: É exatamente isso. Somos desiguais. A idéia de uma identidade de natureza, de uma
natureza humana igual para todos, é precisamente isso que está sendo questionado, como uma
forma do discurso religioso. A idéia de uma comunidade de natureza, é exatamente uma idéia, para
Nietzsche, de fundo religioso, uma idéia fundamentalmente socrático-cristã.
A idéia de Nietzsche, não é a idéia de uma superioridade racial ou uma superioridade fundada na
diferença política, econômica ou social; na verdade, o que Nietzsche está estabelecendo aqui é uma
diferença fundada justamente na singularidade de cada indivíduo.
Comentário: Quer dizer, na aparência é politicamente correto.
Professor: Se você quiser tomar o politicamente correto como sendo o respeito pela singularidade
de cada um, sem dúvida. Agora, nada mais anti-nietzschiano do que o politicamente correto; quer
dizer, Nietzsche seria um eterno politicamente incorreto, tanto é que ele vai buscar um vocabulário
de inspiração aristocrática, justamente para se afastar do que era politicamente correto, e do que é
até hoje politicamente correto, que é o discurso igualitário do humanismo. O discurso nietzschiano é
rigorosamente anti-humanista, muito antes de Michel Foucault; muito antes de Michel Foucault
sonhar que o homem era uma invenção do século XVIII, Nietzsche já tinha praticado isso.
Pergunta: Agora essa multiplicidade eu entendi assim: quando ele fala dos homens superiores, são
aqueles que conseguem não ficar no rebanho, então a medida aí é o rebanho, os que estão no
rebanho e os que estão fora do rebanho. Agora, quando ele fala da multiplicidade, não é nem
diferença e nem dificuldade, é uma outra coisa, não é? Porque não tem medida para isso, tem?
Professor: Eu acho que você tem toda a razão. Quando ele está falando do diferente do outro, não é
a partir de uma medida comum.
Comentário: É a partir da igualdade. A medida da multiplicidade é uma mera igualdade, para você
poder avaliá-la.
Comentário: Não é. Também não é a diferença, é multiplicidade.
Comentário: É a multiplicidade, que eu acho que está embasada numa idéia de uma desigualdade
dos homens, e que é um ser insuportável para nós...
Comentário: A desigualdade não foi uma medida, é isso que eu estou querendo dizer...
Comentário: Não poderia ser a singularidade estrutural do ser?
Professor: Essa é a palavra... a singularidade estrutural do ser.
Comentário: E aí é possível respeitar a singularidade de cada um mesmo politicamente.
Professor: Claro. O que eu sugeriria a vocês, porque nós não teremos mais tempo para explorar
essa questão; existe uma ampla exploração desse problema sob a perspectiva da relação entre o
próximo e o amigo, em Nietzsche. Aquilo que Nietzsche chama de amigo é oposto ao que nós, no
Ocidente, chamamos de o próximo. Então, há um belo parágrafo do Zaratustra, exatamente sobre o
amigo, sobre o amigo, o distante; o distante justamente para fugir da idéia do próximo, no sentido de
mostrar o que é que significa ser amigo contrariamente a ser um próximo do seu outro, do seu
amigo. Ser amigo significa exatamente deixar o outro ser, por conseguinte, servir de alguma forma
de estímulo permanente, para que o outro seja o outro mesmo singularmente, e não uma espécie de
reflexo de si. O reflexo de si é a perspectiva do amor ao próximo.
O Conceito de Vontade em Schopenhauer
Pergunta: Posso fazer uma pergunta que me interessa muito pessoalmente? No Schopenhauer a
questão da consciência, ela acompanha essa idéia de uma transparência?
Professor: Olha, a questão, no Schopenhauer, da consciência é a seguinte: Em primeiro lugar, a
consciência é, para Schopenhauer, absolutamente instrumental, ela é o instrumento da vontade, ela
também fica no nível de superfície; e assim como a vontade se vale de instrumentos de várias
ordens e de várias espécies para conseguir os seus objetivos, a vontade também se vale da
consciência. A consciência ou o intelecto é um instrumento da vontade. Ou seja, a vontade é muito
mais ampla, e para obter a concepção dos seus fins, ela precisa do intelecto. Então, o intelecto é o
meio de que a vontade se vale ou se serve, para conseguir tudo aquilo que quer. Isso, tanto o
intelecto quanto a consciência. Então, a consciência, para Schopenhauer, é também algo de
superficial e que se mantém inconsciente da sua função meramente instrumental. Mas, em
Schopenhauer, a consciência pode se desenvolver, de tal maneira e em tal medida, que ela passa a
renegar a sua origem instrumental e servir como que de espelho da vontade.
Comentário: Ai que lindo! É a figura do gênio.
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Professor: É a figura do gênio. O gênio é exatamente esta consciência em que a vontade se projeta
como um espelho. Ou seja, que a essência do mundo, como vontade, toma consciência de si, que é
exatamente isso a obra de arte nas suas diversas figuras e é especialmente a obra do gênio. E mais
ainda: a consciência pode exercer ainda uma função mais elevada do que a artística, que é a
consciência ascética, que é a consciência no caso do asceta e do santo, que é aquela na qual a
vontade não somente toma consciência de si como num espelho, como era o caso do artista, mas a
vontade se nega a si mesmo. Se auto-renega.
Pergunta: Através da consciência ainda?
Professor: Através da consciência. Ela renuncia a si. Mas a consciência, aqui, é associada a uma
espécie de sentimento místico imediato, que não é necessariamente racional no sentido científico, é
uma espécie de vivência ou de consciência imediata da compaixão, ou seja, da igualdade ou da
identidade em tudo aquilo que vive. Vale dizer, por conseguinte, no misterioso sentimento de tomar
parte na dor do outro. O santo ou o asceta é aquele que é capaz de ser compassivo nesse sentido.
Ou seja, ele sentir a dor do outro, não como simplesmente projeção no outro da minha dor, mas
sentir a dor do outro como outro enquanto minha. É somente neste plano é que a vontade pode se
negar a si mesma, ou seja, ela toma consciência da natureza necessariamente sofredora da
vontade. Ora, como a vontade é a essência do mundo, como o mundo é vontade...
Comentário: Então, é sofrimento.
Professor: Então, é sofrimento. Logo a única possibilidade de redenção consiste na auto-negação. É
isso que faz o asceta, é isso que faz o santo, é isso que faz o artista. Só que o artista faz isso de
uma maneira simplesmente temporária, enquanto que o santo e o asceta fazem isso
permanentemente.
Pergunta: Mas isso tem muito de Nietzsche?
Professor: Isso é aquilo que o Nietzsche sentia como sendo o seu outro absoluto, porque em
Nietzsche, na verdade, o mundo é sofrimento, mas esse sofrimento não é negado é afirmado, essa
é a essência da tragédia.
Comentário: Mas o sofrimento é sofrimento porque ele é individuação.
Professor: Ele é individuação, mas o mundo como representação é necessariamente individuação.
Portanto, tudo aquilo que ganha, passa pelo contorno da individuação, necessariamente trás a
marca do sofrimento.
Comentário: Nietzsche é assim, só que afirmado. Para ele também é individuação.
Professor: Para Nietzsche, sem dúvida nenhuma. Só que para Nietzsche o sofrimento não é uma
objeção contra a existência, mas pelo contrário, é um ingrediente a mais, um estimulante a mais,
para a existência.
Pergunta: Mas Nietzsche também não critica esse ponto de partida da vontade de ser só vontade?
Professor: Isso a gente vai ver, talvez ainda hoje mesmo, mas se não for hoje, com certeza nos
nossos próximos encontros. Nós vamos ver a crítica da consciência e a crítica da vontade.
Parágrafo 12 de Além do Bem e do Mal
Passemos para o parágrafo 12, de Para Além do Bem do Mal. Esse texto é um texto do último
período da produção filosófica do Nietzsche, isto é, um texto de 1885, e ele, de fato, consolida em
grande parte a última forma do pensamento filosófico de Nietzsche. Esse parágrafo 12, se insere
precisamente no 1º Capítulo do Livro Para Além do Bem do Mal, capítulo este que se chama Dos
Preconceitos dos Filósofos, e aqui é uma discussão de toda a tradição da filosofia ocidental, de
Platão ou dos pré-socráticos até ele mesmo. Como eu disse é possível fazer a reconstituição da
crítica nietzschiana da subjetividade de várias perspectivas. Nós vimos a primeira delas que foi
aquela ligada ao problema do corpo, para isso nós usamos o Zaratustra, dos Desprezadores do
Corpo. Acabamos de ver agora uma outra perspectiva dessa crítica, que se faz do ponto de vista da
crítica da consciência, e da gênese simultânea entre consciência, linguagem e sociabilidade; e
agora nós vamos ver esta mesma crítica se desenvolver numa outra perspectiva, na perspectiva da
denúncia dos preconceitos dos filósofos. Aqui, neste caso especificamente, a partir da revelação
das bases lógico-gramaticais do pensamento. Então, nós vimos as duas primeiras, agora
começamos nesse movimento de ver a denúncia, ou se vocês quiserem, a genealogia das bases
lógico-gramaticais do pensamento. E aqui nós vamos aprofundar essa crítica da consciência, da
subjetividade, no seu limite praticamente extremo a que Nietzsche a conduz. Eu leio, então, o
parágrafo 12, todos vocês estão com o mesmo texto? Não. Bom, então, eu vou fazer a leitura pela
tradução que eu tenho aqui, seguindo o texto no original, e se eventualmente algum desvio de
20

tradução, a gente pode reconduzir ao texto original.

No que se refere ao atomismo materialista, é uma das coisas melhor refutadas que
existem; e talvez não haja, já hoje, na Europa, entre os doutos, ninguém tão indouto
que continue atribuindo-lhe uma significação séria, exceto para o uso manual e
doméstico, quer dizer, como uma abreviação dos meios expressivos. Graças,
sobretudo, aquele polonês Boscovich, que junto com o polonês Copérnico, foi até
hoje o maior adversário e o mais vitorioso da aparência sensível.

Bom, em primeiro lugar, aqui, apenas informações históricas. Primeiro, Boscovich não era polonês,
aqui é um erro de Nietzsche, Boscovich era croata; e aqui a afirmação de Boscovich como confrade
do Copérnico e como aliado do Copérnico na luta contra a aparência sensível tem como alvo a
crítica do atomismo materialista. O que significa isso? Significa que Nietzsche procura, desde logo,
se prevenir e prevenir aos seus leitores, quanto ao erro imenso que consistiria em confundi-lo como
materialista. Aliás, é muito comum esse erro, Nietzsche denuncia: crítico da religião, crítico da
metafísica; logo ele é materialista. Nós veremos que, para ele, o materialismo é tão metafísico
quanto o espiritualismo. Aqui se trata de denunciar o atomismo materialistas, ou seja, em primeiro
lugar, a idéia de que tudo aquilo que existe é matéria; e em segundo lugar, a idéia de que a menor
partícula ou porção de matéria é o átomo.
Pergunta: Dá para você repetir?
Professor: Bom, o materialismo é a doutrina segundo a qual tudo o que existe é matéria, não há
nenhuma alma e a matéria é infinitamente divisível e a menor porção ou partícula pensável de
matéria é o átomo. Nietzsche vai mostrar aqui como o átomo é uma espécie de sucedâneo leigo da
alma; como átomo, a alma tem a sua raiz na estrutura gramatical da sentença. Ou seja, no conceito
lógico gramatical do sujeito. É mais ou menos isso.
Pergunta: Como ele fala do corpo e valoriza o corpo e diz que é materialismo.
Professor: Exatamente isso que nós vamos ver. Aliás, alguém que toma como ponto de partida a
fisiologia, ele vai dizer isso, especificamente a fisiologia e o corpo, e no entanto não pode ser
chamado de materialista. Por que? Porque materialismo e espiritualismo são correntes opostas da
metafísica, de modo que um só faz sentido em relação ao outro. E o que ele vai querer fazer é
denunciar simultaneamente a ilusão dos dois opostos. Ou seja, quem se mantém num ou noutro
extremo, permanece negativamente ligado ao extremo oposto; por conseguinte, mantém-se a
oposição, que é a metafísica.
Comentário: Mais uma vez ele mostra a sua afiliação ao Espinosa.
Professor: Sem dúvida. Isso nós vamos ver claramente.

Pois enquanto Copérnico nos persuadiu a crer, contra todos os sentidos, que a terra
não está fixa, Boscovich nos ensinou a abjurar a crença na última coisa da terra que
estava fixa, a crença no corporal, na matéria, no átomo, este último resíduo e
partícula terrestre, foi este o maior triunfo sobre os sentidos alcançados até agora
na terra.

Vejam só que frase extraordinária. Quer dizer, o triunfo de Boscovich foi o maior triunfo até hoje
alcançado contra a aparência sensível. Por que? Porque a desconstituição do átomo material é
exatamente aquilo que pega mais fundo em relação ao conhecimento imediato que nós temos; vale
dizer, contra a aparência sensível de que aquilo que nós vemos, somos, tocamos, é matéria. E que
essa matéria é composta, no seu último estrato, de pequenos elementos irredutíveis que são os
átomos. Ou seja, de que todos os corpos materiais são resultado da composição dessas menores
partículas de matéria que existe, que são os átomos. Ou seja, os corpos são compostos de
unidades atômicas, de matéria. Bom, acho que todos nós concordamos que é isso que a gente
efetivamente vê. Só que o Boscovich diz que é possível prescindir da partícula, do átomo como
partícula de matéria. Ou seja, que você pode passar sem isso na ciência e fazer ciência
perfeitamente bem.
Comentário: É, porque se você decompor o átomo, você não tem matéria.
Professor: É isso mesmo. Você não precisa de base material, você não precisa de uma base
21

atômica material onde uma força se expressa. É possível você trabalhar com a noção de força e de
campo de força sem base material. E o que é pior, diz Nietzsche, e é essa a genialidade de
Boscovich, isto não como quem faz arte ou como quem faz pura fantasia, mas como quem faz
Física, Matemática, ou seja, como quem faz ciência. Por conseguinte, trata-se aqui, na prática
científica, de uma denúncia do atomismo materialista como superficial. Ou seja: aquela famosa idéia
de que o verdadeiro fisiólogo é aquele que vai encontrar a alma na ponta do bisturi, é na verdade
uma bobagem superficializante. Não é desta maneira que se refuta a crença na alma; pelo contrário,
a crença no atomismo materialista é uma crença na permanência da alma. É exatamente o que o
texto vai nos mostrar aqui. A denúncia de Boscovich é a que desestabiliza o que estava mais firme
em termos de crença; Nietzsche está falando aqui do materialismo do século XIX . Quer dizer,
aquilo que era exatamente a ordem do dia no mundo da ciência. Isso sim era firme, fixo, todos
estavam de acordo a respeito da crítica do racionalismo espiritualista, estavam todos mais ou
menos de acordo que o materialismo; era a hipótese científica em voga e Boscovich vem e diz: não
é necessário isso. Portanto, é o maior atentado e por que é o maior atentado? Porque é feito de
dentro da ciência.

- Mas é preciso ir mais além no entanto, e declarar a guerra, uma impiedosa guerra
de faca, também à "necessidade atomista", a qual continua sobrevivendo de
maneira perigosa em terrenos onde ninguém a suspeitar, analogamente, como
sobrevive aquela "necessidade metafísica" mais famosa ainda.

Nietzsche coloca aqui a palavra "necessidade atomista" e "necessidade metafísica", entre aspas, e
eu vou tentar dizer porque. Em primeiro lugar, porque a expressão "necessidade metafísica", é uma
expressão de Schopenhauer; e é uma expressão pela qual Schopenhauer dizia que a metafísica
corresponde a uma espécie de impulso natural do homem, que é naturalmente levado a fazer
metafísica, porque em virtude da sua própria natureza, ele tem uma necessidade metafísica. E
Nietzsche vai brincar muito com essas coisas de Schopenhauer; essa é uma espécie quase que de
encantamento ou de congelamento do intelecto; ou seja, você faz metafísica, você tem uma
necessidade metafísica; então, você explica a existência da metafísica em função de uma
necessidade que já supõe a própria metafísica. E aqui ele diz: a mesma coisa acontece em relação
ao atomismo ou a necessidade atomista. Ou seja, você praticamente enxerta na natureza humana
uma certa necessidade da metafísica, assim como uma necessidade do atomismo, para que você
possa explicar porque é que a metafísica existe. Vale dizer, você retira da metafísica e, no caso do
atomismo, a sua natureza, de fato, histórica e você faz com que ele seja dependente de uma fonte
ou de uma necessidade meta-histórica ou a-histórica coincidente com a própria essência da
humanidade. Você transporta a origem de uma coisa, ou de uma teoria, ou de uma faculdade, para
o terreno transhistórico, metahistórico, suprahistórico, das essências. Ou seja, fundamentalmente
você faz metafísica sobre a origem da metafísica. E você transforma o atomismo, ao falar em
necessidade atomista, numa espécie de necessidade metafísica. E Nietzsche vai mostrar como
realmente o atomismo é uma espécie de necessidade metafísica, mas não porque a natureza do
homem exige uma hipótese atomista, é simplesmente porque o homem ocidental fala como fala,
tem a linguagem que tem; e esta linguagem, a estrutura lógico-gramatical dessa linguagem,
engendra, induz a certas teorias como o atomismo.

Primeiro o termo, há que acabar também com aquele outro e mais funesto
atomismo, que o cristianismo melhor e mais prolongadamente ensinou, o atomismo
anímico. Permita-me designar com essa expressão aquela crença que concebe a
alma como algo indestrutível, eterno, invencível, como uma mônada, como um
átomo: essa crença devemos expulsá-la da ciência!

Nietzsche estabelece aqui um paralelismo entre o atomismo materialista e o atomismo anímico. Ele
tenta mostrar como a crença na imortalidade da alma é uma espécie de atomismo, entendida aqui a
alma como algo único, unitário, eterno, indestrutível, como uma mônada; ora, a expressão mônada,
é exatamente característica do vocabulário leibniziano, para expressar a mesma idéia que nós
pensamos como átomo. Ou seja, a unidade última de cuja composição resultou o universo. Então, a
22

crença no atomismo materialista, vale dizer, na idéia do átomo como a menor unidade ou a menor
porção, menor partícula de matéria, é paralela a idéia da alma como mônada, isto é, como princípio
de unidade absolutamente indestrutível, como alma monádica imortal.

Dito entre nós, não é necessário, de modo algum, desembaraçar-se por isto da
própria "alma", e renunciar a uma das hipóteses mais antigas e veneráveis: como
sói ocorrer à inabilidade dos naturalistas, os quais apenas tocam na "alma", a
perdem.

Vejam, renunciar a idéia de alma como mônada ou como átomo, não significa de maneira nenhuma
renunciar a idéia de alma enquanto tal. Significa simplesmente fugir deste preconceito materialista,
de pretender transformar a alma em uma unidade atômica material; significa renunciar a pretensão,
por exemplo, de encontrar a alma na ponta do bisturi. Ou seja, significa renunciar simplesmente a
idéia de se manter congelado, fixado na oposição entre espírito e matéria. Vale dizer, simplesmente,
substituir a crença no espírito pela crença na matéria; mas, exatamente, com as mesmas categorias
mentais, entendendo a matéria, portanto, como composta de átomos; sem perceber que a idéia
mesmo de átomo, é idéia de uma substância única e irredutível. É precisamente isso que constitui o
substrato da idéia de alma. Nesse sentido, o materialismo é tão metafísico quanto espiritualismo. E
é por isso que pode Nietzsche fazer um paralelo, tão termo a termo, entre, por um lado, o atomismo
materialista e, por outro, o atomismo anímico ou atomismo espiritual. É a mesma categoria básica
de unidade, unidade atômica, monádica, que sustenta os dois pólos da oposição. Por conseguinte,
se você simplesmente substituir o pólo espiritual pelo pólo material, você permanece exatamente
trabalhando com as mesmas categorias que trabalhava o espiritualismo. Então, fazer essa crítica
não significa renunciar a idéia de alma, significa sim pensar a alma de outra forma, não como
átomo. Mas, e agora começa a proposição do Nietzsche...

Mas está aberto o caminho que leva à novas formulações e refinamentos da


hipótese da alma: e conceitos tais, como "alma mortal", e como "alma como
pluralidade do sujeito", "alma como estrutura social (gesellchftsbau), dos instintos e
dos afetos", desejam ter, de agora em diante, direitos de cidadania na ciência.

Pergunta: Estrutura social?


Professor: De instintos ou de impulsos (Triebe) e afetos, (Affekte) em alemão. Percebem, eu queria
voltar a essas três designações, aqui, em aspas, para alma, "alma como alma mortal"; por
conseguinte, não mais alma como princípio imortal da filosofia cristã; a "alma como pluralidade do
sujeito"...
Comentário: Esta é ótima. Pluralidade de sujeito...
Professor: É. Aqui está um dos pontos centrais do pensamento de Nietzsche, ou seja, a alma é
entendida, no sentido nietzschiano, não como princípio unitário, mas exatamente como
multiplicidade, como pluralidade; ou seja, como a idéia de uma unidade que resulta da composição
da organização. Ou seja, aquilo que mais ilustra a alma, é o corpo; porque o corpo é precisamente
unidade de organização, o corpo é pluralidade de sujeitos. Se vocês pensam na subjetividade de
cada órgão ou de cada elemento de cada órgão.
Pergunta: Mas daí a gente não cai no atomismo?
Professor: Por que?
Resposta: Cada elemento de cada órgão, cada órgão de cada corpo...
Professor: Então, a idéia é sempre que toda unidade só é unidade como unidade de organização.
Pergunta: Mas mutável?
Professor: Mutável, claro. Permanentemente mutável. Aliás eu estava lendo, vocês leram no
caderno Mais da Folha de S. Paulo, há 15 dias atrás, a hipótese daquele cientista americano sobre
a razão de ser da evolução do homoerectus em função do tamanho do cérebro; quer dizer, a partir
de um determinado momento, a hipótese está até hoje posta sob discussão, mas essa eu acho que
é bem apropriada aqui: a hipótese é que determinados tipos de antropóides desenvolveram um
volume cerebral muito maior, o qual foi desenvolvido sem consumo adicional de energia. Então era
um mistério inexplicável como sem aumentar o ingresso de energia tinha podido se desenvolver em
23

determinadas espécies de antropóides, em especial no homoerectus, o volume da massa cerebral;


e a hipótese a que chegou esse cientista recentemente é de isso se deu em função da diminuição
dos intestinos, aliada a uma espécie particular de dieta ligada ao campo de visão possibilitado pela
postura ereta. Ou seja, o homem deixando de ter uma alimentação fundamentalmente feita a base
de vegetais, não precisava mais de câmaras de fermentação no intestino; com isso o intestino pôde
encolher, diminuir e poupar uma energia que foi aproveitada para o aumento da massa cerebral.
Percebem? Isso significa a alma com pluralidade de sujeitos. A alma entendida aqui bem nesse
sentido a que o Nietzsche está chamando de fisiológico. E você não precisa ter realmente nenhuma
hipótese atomista aqui para que isso funcione.
Pergunta: Nietzsche iria adorar isso... Mas, então, você está falando que não existe diferença entre
alma e corpo?
Professor: Não. A alma é o corpo, mas não é o corpo enquanto volume de matéria, é o corpo
enquanto grande razão, entendida aqui como esse princípio de organização infinitamente complexo,
que mantém permanentemente em oposição, mas reunido cada célula do tecido corporal e o tecido
corporal no seu conjunto. Agora, vejam, isso não significa absolutamente nada monádico, posto que
esta organização é uma organização em mutação permanente. Ela não é redutível a nenhuma
unidade permanentemente idêntica a si mesma, nem a nível do protoplasma, vai dizer Nietzsche.
Pergunta: E, de alguma forma, essa pluralidade poderia incluir o inconsciente coletivo?
Professor: Mas é óbvio, você vai ver como a linguagem, aquilo que foi chamado naquele outro texto,
de metafísica do povo, é uma espécie de registro do inconsciente coletivo.
Pergunta: Diga-me uma coisa: essa alma como multiplicidade ou o corpo está ligado ao
perspectivismo?
Professor: Sem dúvida. Ao perspectivismo que aqui pode ser visto, inclusive, como perspectivismo
de cada órgão, é por isso que eu dei o exemplo do cérebro e do intestino; quer dizer, o corpo
humano é todo ele pensado em termos de uma imensa relação hierarquizada de forças; forças em
que cada uma delas tem a sua própria perspectiva. O importante será exatamente manter junto,
organizadamente, esse arco extraordinariamente tencionado de impulsos ou de afetos, e cada um
deles com a sua própria perspectiva. É óbvio que aqui a consciência vai encontrar o seu lugar
exatamente no interior desse arco, como uma das funções dessa unidade de organização.
Nietzsche prefere aqui a metáfora do orquestrador, talvez, pudesse ser exatamente aquela que
fosse mais corretamente aplicada para esse caráter mais sinfônico do corpo do que propriamente da
consciência. A consciência talvez pudesse ser mais ou menos algo assim como, o maestro, o
dirigente; enquanto o corpo é o conjunto de toda sinfonia.

Alma como estrutura social dos impulsos e afetos, desejam ter, de agora em diante,
direitos de cidadania na ciência.

Peço que vocês prestem atenção na presença do psicólogo aqui, especialmente do novo psicólogo.
O parágrafo, um pouco mais adiante, o 23, vai tratar exatamente da psicologia como caminho que
conduz aos problemas fundamentais, mas só que nós não vamos entrar por aqui.

O novo psicólogo, ao pôr um fim à superstição que até agora proliferava como uma
frondosidade quase tropical em torno da representação da alma, se desterrou a si
mesmo, desde logo, por assim dizê-lo, para um novo deserto e para uma nova
desconfiança. - É possível que os psicólogos antigos vivessem de modo mais
cômodo e mais divertido, mas em definitivo, aquele se sabe condenado cabalmente
por isto, também, aqui, a inventar - e quem sabe?, acaso a encontrar.

Aqui é um jogo de palavras quase impossível de ser vertido para o português entre dois verbos
alemães, um deles Erfinden, e outro Finden. Erfinden significa inventar, Finden encontrar. Erfinden é
um verbo construído a partir do mesmo radical Finden, só que acrescido de um prefixo que reforça,
no sentido desse encontrar Erfinden, é inventar e não encontrar. Nietzsche não está pretendendo
aqui, (isso eu acho fundamental nesse texto), substituir um erro das representações tradicionais ou
das psicologias antigas da alma, por algo que fosse objetivamente verdadeiro, ou se vocês
quiserem, ontologicamente verdadeiro acerca da alma, ele está aqui substituindo uma invenção por
24

outra invenção. Ou seja, é trocar a invenção tradicional da alma pensada como unidade substancial,
pela invenção de uma outra representação da alma pensada como sociedade ou estrutura social
dos impulsos e dos afetos.
Pergunta: E o que tem a ver o novo psicólogo?
Professor: Então, o novo psicólogo é exatamente aquele que ao inventar uma nova representação,
pode talvez encontrar alguma coisa. Ou seja, é aquele para quem talvez não exista mais diferença
entre inventar e encontrar. Ou seja, aquele para quem Erfinden e Finden são movimentos que se
dão no mesmo nível. Ou seja, é muito possível que ao inventar uma nova hipótese sobre a alma,
isso possa servir de meio auxiliar, ou de princípio heurístico para encontrar alguma coisa. E que
essa no fundo é a função das teorias científicas. Elas são invenções que talvez tornem possível
efetivamente algum encontro.
Pergunta: Invenção no sentido de uma fantasia projetiva por trás?
Professor: Isso. Mas sendo de uma hipótese de trabalho, uma hipótese regulativa, ou o princípio
heurístico mesmo. É isso que ele chama de o novo psicólogo e por que o novo? Porque o velho
psicólogo é aquele que continua preso na metafísica do povo, ou seja, nas ilusões da gramática.
Comentário: Ou seja, na verdade e na ciência.
Professor: Isso. Claro.
Pergunta: Então, para ele, é a experiência e a vivência de cada indivíduo, que se estrutura com a
vida do próprio indivíduo e não é mais a imaterialidade, a incorruptibilidade e a personalidade.
Fragmentos Póstumos (Parágrafo 40(21))
Professor: Exatamente. Aliás, como um gancho imediato para isso que vocês está dizendo, eu
pediria que a gente passasse para aqueles Fragmentos Póstumos, para um texto, o fragmento de
número (40)21. É um texto de 1885, contemporâneo desse que nós estamos lendo aqui. É um texto
que Nietzsche não publicou. Eu leio, então, já que vocês não têm esse texto em mãos. O texto é,
portanto, um texto escrito entre agosto e setembro de 1885, contemporâneo desse texto que nós
estamos lendo aqui.

Ponto de partida: do corpo e da fisiologia: por quê? - Nós obtemos a correta


representação da espécie de nossa unidade subjetiva, a saber, como governantes à
testa de uma comunidade, não como ‘almas’ ou ‘forças vitais’; do mesmo modo, da
dependência desses governantes com relação aos governados e às condições da
hierarquia e divisão do trabalho como possibilitação simultaneamente das
singularidades e do todo.

Um texto complexo, mas absolutamente essencial para aquilo que nos interessa. O que significa
tomar como ponto de partida o corpo e a fisiologia?
Resposta: A grande razão.
Professor: Agora vocês são todos perfeitamente instruídos relativamente aos destinatários dessa
polêmica. O ponto de partida é a grande razão. Ora, qual era o ponto de partida cartesiano, que
inaugura a filosofia moderna no Ocidente?
Resposta: O ‘eu penso’.
Professor: Era o ‘eu penso’. E o que significava esse ‘eu penso’? Era a alma. Eu sou uma
substância, cuja essência consiste no pensar. Eu sou uma substância, que é um intelecto, uma
razão, uma alma. Isso é a matriz, esse é o movimento matricial do pensamento filosófico moderno.
Descartes, século XVII, início da filosofia moderna, início da modernidade. E como ela muito bem
lembrou aqui, isto é um movimento que, na verdade, é uma culminância em relação ao antigo ou a
uma antiga tradição, de desprezo do corpo e desprezo dos sentidos. Então, o ponto de partida era
manifestamente o ponto de partida do intelecto ou da alma como unidade subjetiva, unidade
substancial da consciência. Lembram-se disto? Muito bem, Kant dizia: o ‘eu penso’ é a forma da
consciência que deve acompanhar todas as minhas representações, é a unidade originária da
apercepção. Ora, aqui, para começo de conversa, ponto de partida é o oposto disso, é antítese
disso, é exatamente aquilo que foi desprezado por toda essa tradição, é aquilo que foi negado por
Descartes e pelo movimento todo da filosofia idealista.
Comentário: Pode-se chamar assim: "eu tenho um corpo".
Professor: Não, "Eu sou um corpo".
25

Comentário: "Eu tenho um corpo", já parte do princípio que você é antes do corpo, está pensando.
Comentário: Já tem sujeito e objeto.
Professor: É isso mesmo. Ou seja, "eu tenho um corpo", rigorosamente em termo nietzschiano se
estaria ainda preso na metafísica popular. E a gente vai ver como funciona isso.
Comentário: Na verdade, quem pensa primeiro é o corpo, pois é ele que diz primeiro "estou com
fome", "estou com sede"...
Professor: Claro. Ele pensa sem que você saiba... que ele está pensando.
Pergunta: Ele faz filosofia? ...
Professor: Claro. Aliás, a frase do Nietzsche vai ser "toda filosofia é uma espécie de mal entendido
sobre o corpo". Ou seja, toda filosofia foi até hoje um grande mal entendido sobre o corpo. E a idéia
dele vai ser exatamente fazer da filosofia não mais um mal entendido sobre o corpo.
Comentário: Como o pensar naquelas pessoas que têm quadros depressivos que negam parte do
seu corpo...
Professor: O grande mal entendido sobre o corpo leva exatamente a isso: as formas mais
patológicas, mais agudamente patológicas da psicopatia. Bom, então, deixa eu ver se eu consigo
desmontar ainda mais essa frase. Ora, por que é mais importante partir do corpo e da fisiologia?
Porque é exatamente por meio do corpo que nós temos uma correta representação da espécie da
nossa unidade subjetiva; ou seja, nós somos sujeitos, temos a unidade da subjetividade, não sob a
forma da unidade substancial da alma, mas exatamente como uma espécie de governo, ou seja, de
estrutura social. Ora, o que é necessário para que haja governo? É necessário que haja uma
relação hierárquica em que há governantes e governados. Ora, para que possa funcionar uma
unidade de organização do tipo das organizações sociais é preciso que exista uma relação
hierárquica de governantes e governados, isto é, comandantes e subordinados, mas essa unidade,
é uma unidade de dependência dos governantes em relação aos governados. Vale dizer, o
governante, aquele que está à testa da organização, em última instância, depende da hierarquia e
da divisão do trabalho. Ou seja, o fato de que esteja a testa, nada mais é do que uma espécie de
especificação do princípio da divisão do trabalho.
Pergunta: O oposto de Platão?
Professor: Claro. Então, a idéia nietzschiana aqui é a idéia de que a consciência é o governante, de
que a consciência é a função psíquica mais elevada, mas precisamente uma função. Ou seja, uma
função dirigente, uma função de direção e de traçar diretrizes, planificações e tudo mais, mas não
como algo absolutamente autárquico em relação a divisão do trabalho e aos outros elementos da
organização; ao contrário, a função diretora da consciência é, precisamente como função,
dependente propriamente da hierarquia e da divisão do trabalho. Portanto, é essa unidade de
organização fundada na hierarquia e na diferenciação das funções; e mais especificamente é
exatamente a possibilidade desta hierarquia que garante o funcionamento destas funções psíquicas
consideradas superiores. Repito: a superioridade da consciência e das funções diretoras da
consciência não significa uma autarquia em relação as outras funções psíquicas e corporais, mas
significa um elemento a mais nesse sistema, de tal forma que essa posição diretora proeminente da
consciência é inteiramente dependente da hierarquia das forças, da hierarquia das funções e da
divisão do trabalho.
Então, é isto que torna possível, numa unidade de organização, cada uma das partes ao mesmo
tempo que o todo. Para voltar ao nosso exemplo do homoerectus, algo assim como o corpo do
homoerectus, só é possível sob a perspectiva deste concurso simultâneo e competitivo dos
diferentes órgãos e das diferentes funções em função da especificação de uma hierarquia dessas
funções; hierarquia essa na qual, por exemplo, o cérebro levou vantagem.
Comentário: Mas se o resto debaixo não funcionar, nem que seja um em particular, nem o cérebro
lá em cima funciona. Então, ele depende do resto. E um não é mais importante do que o outro...
Professor: Exatamente. Esta correlação complexa de forças que torna possível no interior de uma
determinada unidade, de uma unidade específica de organização, torna possível tanto o
funcionamento e a existência de cada órgão em particular quanto o funcionamento do conjunto
organizado.
O mais importante, nesta frase problemática aqui é o sentido de mostrar que numa determinada
unidade de organização concreta, como é, por exemplo, o corpo humano, é precisamente este
concurso, este atuar conjunto de cada órgão especificadamente numa função ou em algumas
funções, é que torna possível a existência e a permanência dessa unidade, esta determinada
26

configuração. Então, isso possibilita tanto as partes singulares quanto o todo. Então, esta unidade
não é mais a unidade da mônada, é a complexa unidade que resulta da organização.
Pergunta: Sempre mutável?
Professor: Sempre mutável. Mesmo porque as relações de força não podem ser pensadas a não ser
nessa perspectiva.
Comentário: Então, mas eu gosto de pensar o "sempre mutável", porque eu gosto de pensar que o
perspectivismo é, na mesma pessoa, mutável.
Professor: Com certeza absoluta.
Comentário: Ou seja, não é só que a gente vê num prisma diferente, é que a gente pode ver sobre
prismas diferentes dependendo da organização.
Professor: É exatamente isso. Nesse caso, a perspectiva da consciência é a perspectiva de uma
certa posição nessa hierarquia organizacional, mas ela não é de modo nenhum a única. Esta
unidade é o resultado do concurso de infinitas outras perspectivas, de que a consciência é apenas
uma, ou se você quiser, algumas. Eu creio que nós não poderemos terminar a exposição desse
texto hoje, o que lamento muito, mas... Eu acho melhor que a gente, talvez, gaste um pouco de
tempo a mais para ver em profundidade determinadas questões, é preferível do que a gente passar
em sobrevôo o texto, de certa forma, complexo como é esse texto aqui. Então, eu pediria a vocês,
por favor, que no nosso próximo encontro, acho que é daqui a 15 dias, se não me engano, nós
retornássemos a este texto, e que vocês o lessem até lá.
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Prof. Dr. Giacóia é especialista em Nietzsche, filósofo e professor da UNICAMP

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5 AULAS SOBRE NIETZSCHE


2ª aula
Oswaldo Giacóia Júnior
IFCH/UNICAMP

Fragmentos Póstumos (Parágrafo 40(21)) (Cont.)


Se eu não me engano, nós não tínhamos terminado a leitura desse fragmento. Estou na página
nove.

"Ponto de partida: do corpo e da fisiologia: por quê? Nós obtemos a correta


representação da espécie de nossa unidade subjetiva, a saber, como governantes à
testa de uma comunidade, não como ‘almas’ ou ‘forças vitais’; do mesmo modo, da
dependência desses governantes com relação aos governados e às condições da
hierarquia e divisão do trabalho como possibilitação simultaneamente das
singularidades e do todo."

Quer dizer, o problema aqui é precisamente o corpo sendo tomado como ponto de partida, isto é, o
corpo fornecendo o modelo propriamente da unidade do sujeito. Então, imagino que devem estar
suficientemente recordados disso, que tanto para Descartes quanto para Kant, o ponto de partida
era a unidade da consciência entendida como intelecto, enquanto que, precisamente para a toda a
tradição da metafísica, da psicologia racional, esses atributos - simplicidade, unidade e
imaterialidade - era precisamente aqueles que caracterizavam a teoria tradicional da alma ou do
27

sujeito. Percebam que o ponto de partida que Nietzsche toma aqui representa uma inversão da
metafísica tradicional. Não se trata de unidade; pelo contrário, trata-se de multiplicidade; não se
trata de imaterialidade, ou se vocês quiserem, espiritualidade, pelo contrário, trata-se da física, da
questão física do corpo. Então, o corpo é tomado na sua materialidade, na sua multiplicidade
constitutiva e em especial na sua complexidade. Então, são as imagens, a fisiologia entendida como
organização do corpo e, por outro lado, essa metáfora da subjetividade ou da unidade subjetiva,
pensada como corpo e como polis, como comunidade organizada.
Pergunta: Isso que ele chama de governantes e governados?
Professor: Isso. A idéia de uma unidade política, precisamente como uma organização política é
uma unidade. Você tem o um, mas esse um é, na verdade, composto de uma multiplicidade. Você
tem governantes, governados, mas governantes e governados compõem um único organismo, um
único corpo, ou seja, uma comunidade.
Pergunta: Ele estaria se referindo também à cabeça e ao corpo?
Professor: Isso. É extremamente oportuna a sua observação porque essa frase quer dizer
exatamente isto: hierarquia e divisão de trabalho, possibilitação simultânea das partes e do todo;
então, da mesma maneira como você tem o corpo, a cabeça e os membros, e a cabeça tem uma
função diretora em ralação ao restante do corpo, a função de determinar a orientação geral, por
exemplo, o sentido da atividade do corpo, da mesma forma um governante traça o regime do
governo. Porém, isso não significa dizer que o governante ou a cabeça seja possível
autarquicamente, ela é na verdade definida pela sua função no interior dessa organização. Então,
ela cumpre uma parte do trabalho comum e a função que ela cumpre é dependente do todo, e o
todo é garantido precisamente pela divisão do trabalho. Ou seja, assim como numa sociedade você
tem o governante; esse governante é responsável pela manutenção e pelo progresso da
comunidade, mas esse governante não poderia absolutamente nada sem aqueles a quem ele
governa, que por sua vez também se beneficiam das diretrizes gerais do governo. É exatamente
esse o tipo de unidade que Nietzsche diz que é a unidade subjetiva. Então, a cabeça seria a
consciência. Veja, a consciência é metaforicamente expressa como uma espécie de governante
dentro de um estado; ele governa, traça direção, dá as pautas mais gerais da vida em comum, mas
evidentemente não é onipotente. Esse governo é garantido precisamente pelas diversas alianças
que são mantidas dentro do todo estado. Da mesma forma como a consciência não é onipotente em
relação ao restante da vida corporal.

"Do mesmo modo, como as unidades viventes - (por unidades viventes entendam
aqui simplesmente organismos) - permanentemente surgem e morrem e como ao
‘sujeito’ não pertence eternidade; de que também no obedecer e comandar se
expressa o combate e de que à vida pertence um cambiante determinar fronteiras
de poder."

Ou seja, a unidade do sujeito é semelhante à unidade de qualquer organismo. Entre os diferentes


órgão e as diferentes funções existe uma permanente tensão, e essa tensão faz com que as
fronteiras do poder, quer dizer, com que os diferentes ajustes no interior de cada unidade orgânica
varie permanentemente. Nada é estabilizado definitivamente desde que se trate de uma unidade
vivente, ou seja, de um organismo.
Pergunta: Assim como também não é sempre a consciência que vai estar com a predominância?
Professor: Obviamente. O mais importante do texto é a partir deste ponto:

"Pertence às condições segundo as quais pode haver governo certa incerteza em


que o governante deve ser mantido a respeito das disposições particulares e até
das perturbações da comunidade."

O que Nietzsche está dizendo aqui é que há de se valorizar positivamente, inclusive o não-saber, ou
seja, a ignorância:

"Pertence às condições segundo às quais pode haver governo - (ele está tomando o
governo aqui claramente como metáfora da unidade do sujeito) - uma certa
28

incerteza em que o governante deve ser mantido a respeito das disposições


particulares e até das perturbações da comunidade."

Ou seja: para que a unidade subjetiva, pensada segundo o modelo do corpo, possa existir é
necessário que a consciência ignore determinadas perturbações dos demais órgãos que compõem
essa mesma unidade complexa. Ou seja, para que a consciência possa manter e fazer funcionar
adequadamente a sua função diretiva é preciso uma certa ignorância; com a completa transparência
ou com a consciência absolutamente onisciente muito provavelmente não haveria possibilidade de
que pudesse exercer adequadamente a sua função.
Comentário: O que acontece num indivíduo hipocondríaco.
Professor: É justamente isso. Ou seja, uma certa ignorância de base é condição fundamental do
exercício otimizado da função superior da consciência.
Pergunta: Essa ignorância de base é não ter o controle total, é admitir que tem partes que
escapam?
Comentário: E funciona automaticamente. O hipocondríaco quer ter o controle de tudo. Ele quer dar
conta conscientemente de todas as funções dos órgãos ... se uma coisa escapa, ele quer saber
porquê, pois ele não confia que o coração funciona automaticamente, que o intestino funciona...
Professor: Isso mesmo. Nós vamos ver isso de modo preciso em relação a esse texto que eu traduzi
para vocês. Mas, percebam que isso daqui é uma coisa assim extraordinariamente diferente da
posição iluminista tradicional, que justamente apostava o máximo possível na completa
transparência da consciência.
Comentário: Como se a consciência tivesse a total hegemonia!...
Professor: Exatamente. Quanto, na verdade, esse ideal de completa transparência é ele próprio
posto como uma figura da ilusão? A consciência tem a ilusão dessa onipotência, mas essa
onipotência é justamente ilusória. Por quê? Porque a condição para que a consciência possa se
exercitar é essa ignorância que terá de ser mantida a respeito do funcionamento geral do corpo,
basicamente.

"Em resumo: obtemos uma apreciação também para o não-saber, o ver por alto, o
simplificar, o falsear, o perspectivo. O mais importante, porém é: que nós
entendemos o comandante e seus subalternos como sendo de idêntica espécie,
todos sensíveis, volitivos, pensantes e que por toda a parte onde vemos ou
adivinhamos movimento no corpo, nós aprendemos a ‘inferir’ uma vida
complementar, subjetiva e invisível. Movimento é uma simbólica para o olho; ele
indica que algo foi sentido, querido, pensado."

Vejam, o mais importante neste texto aqui, com essa metáfora do governante e o governado, ele
está, no fundo, se referindo à famosa oposição entre impulsos, afeto, paixões, racionalidade,
inteligência, consciência, ou seja, ele está se referindo à diferença, à diversidade da vida psíquica.
Porém, quando ele está dizendo que o mais importante é que o comandante, - isto é, a consciência,
a razão - e seus subalternos, - isto é, os impulsos, os afetos - são de idêntica espécie. Ele está
dizendo que aquilo que nós costumeiramente identificamos com o racional é também impulsivo,
sensitivo, volitivo, ou seja, que na verdade a racionalidade é apenas uma transformação de um
material pulsional, e que o próprio material pulsional, afetivo, etc é também pensante. Ou seja,
existe um componente de pensamento nos impulsos assim como existe um componente pulsional
no pensamento. É precisamente isso que o corpo expressa, ou melhor, dito de outra maneira, é
exatamente isso que o corpo constitui como unidade. A unidade desta acomodação, desse arranjo,
desse ajustamento entre os diferentes componentes da vida, tanto da vida somática, quanto da vida
psíquica.
Comentário: O que Leibniz chama de mônadas.
Professor: Isso. Vindo da tradição leibnitziana você pode dizer que de certa maneira Leibniz também
já dizia mais ou menos a mesma coisa. Acontece que, para Nietzsche, e agora isso vai ficar cada
vez mais claro para nós, espero eu, a própria idéia de mônada como idéia de uma unidade simples
é um equívoco da mesma natureza que o equívoco cartesiano da alma substancial ou da unidade
29

originária kantiana da apercepção.


Pergunta: É possível o senhor repetir?
Professor: Sim. O Dornelis se refere à mônada leibnitziana. O que é a mônada? A mônada é o
átomo, a unidade mínima, a unidade elementar que contém nela mesma todo o universo; a mônada
é para Leibniz tanto apetitus, impulso, quanto percepção. O universo é composto de mônadas. Cada
mônada contém, ela própria, na sua radical singularidade, o universo condensado. Ora,
precisamente porque, para Nietzsche, a idéia de unidade, de unidade simples é ficcional, a
metafísica leibnitziana vai estar presa exatamente no interior da mesma ficção. Agora, o mais
curioso para mim, aliás, não só para mim, mas para todos os estudiosos do Nietzsche que se
dedicam a essa questão, é perceber que a racionalidade é investida pelo elemento pulsional; da
mesma maneira o elemento pulsional, também ele, é investido de uma certa racionalidade, a
racionalidade não da pequena razão, mas da grande razão nos termos dos Desprezadores do
Corpo que nós já examinamos.
Comentário: Mas eu acho que a racionalidade está investida de uma pulsionalidade através do
poder, quando usada através das idéias como um poder.
Professor: Sem dúvida. Ou seja, para Nietzsche fica muito claro desde sempre como existe uma
vontade de poder, inclusive nas formas mais sublimadas da atividade intelectual.
Comentário: Agora, este conceito que ele apresenta aqui é muito próximo do conceito de energia
vital na homeopatia, é uma energia que circula pelo corpo...
Professor: Exatamente. O corpo é um sistema de energia, exatamente o que você está dizendo, e
ele é esta tensão permanente em diferentes centros de força. Ou seja, você não pode ter a idéia de
uma unidade simples se você parte da matriz ou do ponto de partida do corpo, porque o que
Nietzsche está querendo passar aqui é que o corpo fornece uma indicação do tipo de sujeito que
nós somos, na medida em que esse sujeito que o corpo é, é constituído a partir de múltiplos centros
de força.
Comentário: Fica mais fácil pensar isso de um ponto de vista junguiano, porque para Jung, todas as
partes são instintos, todos estão numa fonte comum, cada um tem a sua característica, mas é
sempre o mesmo.
Professor: Para Nietzsche igualmente. Inclusive o pensamento lógico.
Comentário: Para Jung também, inclusive a cultura, a espiritualidade...
Professor: Exatamente. A raiz disso é, do ponto de vista do Nietzsche, e eu não sei até que ponto
Jung o acompanha, é que não há dissociação, é sempre o mesmo elemento, se você quiser, a
mesma materialidade do impulso que se ramifica, que se diversifica indefinidamente, infinitamente;
então, ele se sublima como espiritualidade, mas ele se realiza materialmente como órgão do corpo
e, sobretudo, isso que você está dizendo dos diferentes centros do corpo, cada célula do corpo é
um centro de forças desse ponto de vista, ou seja, cada menor porção do organismo já carrega nela
uma relação de tensão com todas as outras células. Então, é essa complexidade extrema que
constitui a unidade do ser vivo, entendido como organismo. E o curioso é que isto é expresso em
termos de movimento do corpo. Então, a idéia do movimento como simbólica para o olho, a idéia de
uma espécie de semiótica ou semiologia, como sendo precisamente a maneira de interpretar aquilo
que se passa a nível dessa grande unidade subjetiva que é o corpo. Ou seja, em todo o lugar que
há movimento no corpo é preciso interpretar, é preciso descobrir aquilo que é querido, pensado,
sentido.

"O questionar direto do sujeito sobre o sujeito e toda a auto-reflexão do espírito tem
aqui os seus perigos: que o interpretar-se falsamente poderia ser útil e importante
para a sua atividade."

Essa idéia da auto-reflexão - lembrem-se de Kant na Crítica da Razão Pura e de Descartes nas
Meditações - essa idéia de que a consciência pode se tornar inteiramente transparente para si, que
o espírito pode se auto-criticar e, por conseguinte, desfazer os falsos conteúdos de consciência,
essa idéia é que é inteiramente afastada, na medida em que Nietzsche vai dizer: A auto-reflexão do
espírito - isso é, o questionamento direto do sujeito pelo sujeito, da consciência pela consciência -
pode ter o limite preciso nesta ignorância necessária, nessa ilusão necessária da consciência. Ou
seja, a pretensão de completa transparência da consciência é exatamente isso que está sendo
30

posto, aqui, definitivamente em questão. Vale dizer, em última instância: para Nietzsche, é possível
que a consciência tenha efetivamente necessidade da ignorância e da ilusão, e que essa ignorância,
essa ilusão e a distorção da consciência são uma condição para que ela possa ser precisamente
consciência.
Comentário: Então, a ignorância seria constitutiva da consciência.
Professor: Seria constitutivo da função, de tal maneira que essa exigência de que a consciência
pudesse tomar posse absoluta da unidade do sujeito, ou seja, de que a consciência pudesse
funcionar como um núcleo absolutamente transparente da subjetividade, está sendo posta aqui em
questão.
Comentário: Eu não sei se eu estou entendendo direito, mas eu fico pensando assim, as
implicações políticas disso. São terríveis! Porque isso quer dizer que o povo tem necessidade de um
ditador, dos grandes governantes, dos grandes políticos, e que as personalidades psicopáticas tem
que existir porque.... tem a necessidade de uma certa ilusão, de sedução...
Professor: Olha, essa coisa que você está dizendo é tão apaixonante que eu não sei se daria para
acompanhar você e dizer: tem de existir isso do ponto de vista do Nietzsche. Eu acho que o que
Nietzsche diria antes seria: não que isso tem de existir, mas é compreensível que isso exista.
Comentário: Faz parte do mundo.
Professor: Exatamente. Ou seja, faz parte deste jogo aqui. É compreensível que exista e é
compreensível que exista com tanta freqüência. E tem mais um outro ponto que ainda é mais
terrível que isso, que é o seguinte: é ilusão pensar que você pode acabar com isso facilmente, ou
seja, aqui há uma denúncia do otimismo de todas as formas de ilustração, ou seja, desta crença na
onipotência da consciência.
Aliás, se vocês quiserem, isto aqui está tecido em grande medida no Mal Estar na Cultura, de Freud.
Se vocês estão bem lembrados do texto sobre o Mal Estar não a Cultura, quando Freud está
justamente questionando a idéia de que uma organização mais racional da sociedade poderia
acabar definitivamente com as formas de violência, opressão, injustiça, etc., Freud vai dizer: "bom,
eu gostaria muito de acreditar nisso, mas infelizmente eu não posso acreditar nisso, porque há um
componente da natureza humana que é necessariamente agressivo e destrutivo".
Comentário: Com uma diferença, que ele não faz uma crítica da cultura e Nietzsche faz.
Professor: Freud não. Não no mesmo sentido de Nietzsche.
Pergunta: Aí dá uma bela diferença ou não?
Professor: Dá.
Pergunta: Existe um vir-a-ser no Nietzsche que não está comprometido com esse mundo da política
no sentido do que nós pensamos?
Professor: Sem dúvida. Mas, que nos permite, bem no sentido do que ela perguntou aqui, que você
compreenda melhor todas as figuras políticas da vontade de poder. Então, vejam que de repente
podem aparecer figuras extraordinariamente destrutivas, perversas, etc.. É algo que, a partir dessas
coisas que Nietzsche está colocando aqui, você pode compreender. Não acho que devam existir,
não seria isso, mas que isso faz parte da natureza, como você disse, faz parte da ordem das coisas.
Comentário: Eu usei o termo "deve existir", é porque ele diz assim: "poderia ser útil e importante",
então, se é importante deve existir.
Professor: Vou usar um exemplo grosseiro: imagina se você tivesse que acompanhar pela
consciência cada movimento da tua circulação sangüínea, por exemplo. Para que a consciência
possa exercer funções psíquicas superiores é preciso que eu não tenha que me preocupar com o
metabolismo físico. É preciso, portanto, que a ignorância a esse respeito seja condição prévia para
que a consciência possa precisamente ser consciência, possa se exercer como intelecto. A
ignorância não é pura negatividade, é uma condição para que possa haver diferenciação das
funções psíquicas.
Comentário: E aí tem a questão que quanto mais consciência, mais responsabilidade teríamos.
Professor: Isso. No limite, isso é um tema schopenhauriano, a consciência total, a consciência
absoluta mata. Quer dizer, se você permanece inteiramente consciente, o tempo inteiro de todos os
atos da sua própria vida, se você permanece inteiramente consciente do caráter absurdo da
existência, não existe outra alternativa a não ser a morte. Então, justamente por isso você tem
essas grandes figuras da ilusão.

"Por isso nós questionamos o corpo e recusamos o testemunho dos sentidos


31

aguçados: "

Aqui é uma frase francamente provocativa, "testemunho dos sentidos aguçados" é literalmente: a
consciência, a racionalidade, o intelecto. O intelecto é simplesmente um sentido mais aguçado que
os outros. E agora essa frase terrível, talvez uma das razões pelas quais Nietzsche nunca publicou
esse fragmento,

"... nós examinamos, se se quer assim, se os próprios subordinados não podem


entrar em contato conosco".

Pergunta: É uma pergunta ou não?


Professor: Não. É uma idéia lançada, é efetivamente uma frase programática. O que nós queremos
é deixar de fazer exploração direta do intelecto por si mesmo, é sair desse roteiro escrito pelo
idealismo, pelo racionalismo, da auto-reflexão da consciência. Ou seja, o que nós pretendemos é
exatamente apostar nessa simbólica do corpo e do movimento para tentar saber até que ponto nós
podemos entrar em contato com estes outros, com os governados, com os subordinados, com
aquilo que não é a consciência. Esse é o programa.
É preciso saber que é estéril a auto-reflexão da consciência, se permanecemos unicamente nesse
plano. É preciso saber o que quer dizer a simbólica do movimento, o que ela indica. Para isso é
necessário, segundo ele, fazer fisiologia, e fisiologia significa exatamente esta logia, esse logos da
physis como eu expliquei para vocês anteriormente. Quer dizer, esse casamento, este acoplamento
entre o elemento racional do logos e o elemento físico, fisiológico, corporal. Esta é a forma de se
ultrapassar a fronteira da pequena razão para tentar compreender melhor o funcionamento da
grande razão. Aqui, então, começa a aparecer a grande diferença que existe - eu espero que vocês
se lembrem do texto do Zaratustra -, entre o dizer eu e o fazer eu. Este eu que é simplesmente dito,
o eu da consciência é o eu da lógica e da gramática, é o eu fundado na função gramatical da
sentença, do sujeito; é o eu, por conseguinte, do pensamento. O eu do corpo não é o eu da
gramática, não é o eu que simplesmente é a reprodução da função gramatical do sujeito na
proposição. O eu do corpo, antes de ser dito, é realizado justamente nessa forma da unidade
complexa e do múltiplo. Então, o corpo não é propriamente um eu que é dito, senão um eu que é
produzido, feito.
O que ele está querendo dizer aqui é que esta unidade do eu que se funda na lógica e na gramática
é unidade abstrata, é a unidade que decorre da simples função gramatical; enquanto que a unidade
do eu que se realiza no corpo é uma unidade concreta, é uma unidade que se dá a partir de uma
multiplicidade que é sempre mutável.
Fragmento Póstumo de junho/julho de 1885, 38(1)
Vamos tomar o texto que passei para vocês porque eu queria explorar um pouquinho mais esse
ponto antes de passarmos para um outro.

"O pensamento na forma em que acorre, é um signo equívoco, que carece de


interpretação; mais precisamente, de um estreitamento e limitação, até que
finalmente se torne inequívoco. Ele emerge em mim - de onde? por meio do que?
Não sei. Ele advém, independentemente de minha vontade, com freqüência envolto
e ensombrecido por uma multidão de sentimentos, desejos, aversões, também de
outros pensamentos, com suficiente freqüência quase indiferenciável de um ‘querer’
ou ‘sentir’. Nós o retiramos dessa multidão, limpamo-lo, colocamo-lo sobre os
próprios pés, vemos como se mantém em pé, como caminha. Tudo isso num
surpreendente presto e, contudo, totalmente sem o sentimento de pressa: quem faz
isso tudo, - não o sei e seguramente sou mais espectador que autor desse
processo."

Trata-se aqui de uma análise do pensamento e de uma problematização desse eu. Quem é esse eu
do pensamento? Quem é que vocês acham que é esse eu do pensamento?
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Resposta: No meu modo de entender é a grande razão.


Professor: É. Mas, a resposta do Nietzsche é uma resposta francamente desconcertante. Quem é
que faz tudo isso? Resposta: eu não sei e seguramente sou mais espectador do que autor.
Percebem como o texto é um texto cheio de paradoxos? Aqui um eu é o eu do discurso; este eu que
aparentemente é o núcleo da subjetividade, que deveria ser o autor desse processo, deveria ser o
eu que pensa, mas que é muito mais espectador do que autor do processo todo. Aqui é uma outra
maneira de problematizar a pequena razão e a grande razão, você lembrou muito bem disso, quer
dizer, isso que eu chamo de eu não é este eu de que nós estávamos falando aqui, que é o corpo.
Este eu que ocupa o núcleo da subjetividade, isto é, o eu da consciência, não é o autor do processo,
ele é, no máximo, espectador do processo. Quem é, então, o eu? Quem faz isso. Aí a resposta é: eu
não sei. E este eu não pode saber, justamente porque ele não é o autor.
Comentário: O Jung tem uma metáfora talvez, que o pensamento é como os animais na floresta, ele
aparece e desaparece quando lhe dá nas ventas, e o eu não pode se responsabilizar por esses
pequenos animais selvagens. Eles não têm lógica na sua aparição.
Professor: Mas, o processo é o mesmo aqui. Quem é que faz isso tudo? Por que vem esse e não
outro? Eu não sei. Sei que tudo isso acontece, ou seja, que o pensamento que vem nessa forma
vem acompanhado de uma multidão de outros atos, de outros elementos, de outros sentimentos,
aversões, inclinações ... que eu limpo ... mais ou menos como uma criança recém-nascida que você
a lava, enfim, coloca em ordem, mas todo esse processo não é gerido soberana e autarquicamente
pela consciência.
Pergunta: Mas o eu da consciência teria a função organizadora ou não? Ele não é o autor, não é o
verdadeiro comandante... Ele seria uma espécie de supervisor?
Professor: Exatamente. Ele não comanda nada, embora, ele tenha a ilusão de estar dirigindo a
peça. Bom, vamos prosseguir por favor?

"Nós, então, o chamamos a juízo e perguntamos: ‘o que ele significa? O que lhe é
permitido significar? Tem ele direito, ou é injusto?’ - Pedimos auxílio a outros
pensamentos, nós o comparamos. Pensar se demonstra, desta forma, quase como
uma espécie de exercício e ato de justiça, no qual há um juiz, uma parte contrária,
também até uma inquirição de testemunha, de que me é permitido ouvir um pouco, -
na verdade apenas um pouco: a maior parte, ao que parece, me escapa."

Aqui a comparação é uma comparação com outros quadros clássicos do pensar como tribunal e um
dos mais famosos tribunais é do Kant como tribunal da razão, a crítica como tribunal da razão.
Então, aqui Nietzsche está usando de novo todo o quadro imagético da tradição, mas para subvertê-
la inteiramente. Eu me comporto e eu aqui é eu mesmo, a consciência se comporta em relação a
esse pensamento, como um juiz no tribunal e tem uma parte e outra parte contrária, tem uma
inquirição de testemunhas, eu quero saber qual dos dois têm razão, tem um juiz...
Pergunta: Essa é também uma inferência dialética?
Professor: Sim, claro, é todo o quadro. Por isso que eu estou dizendo que é o imagético da tradição
e aparentemente é uma referência de concordância com a tradição, mas aqui há uma colocação,
em parte, irônica porque, na verdade, o mais importante "me escapa".
Pergunta: Por isso é injusto, não? Porque esse conceito de justiça no Nietzsche é bem essa idéia de
uma perspectiva única.
Professor: Exatamente. Agora, o que é fundamental: eu sei pouca coisa do processo, eu ouço um
pouco só, a testemunha que está sendo inquirida, eu não ouço todo o depoimento dela, eu não
posso ouvir o todo, eu só sei parte do processo, não a totalidade...

"- Que todo pensamento, primeiramente, advenha equívoco e flutuante e, em si


mesmo, apenas como motivo para tentativa de interpretação ou para a arbitrária
estabilização; que em todo pensar uma multiplicidade de pessoas pareça tomar
parte -: isso não é, de modo algum, fácil de observar, no fundo, somos mais aptos
no contrário, isto é, em não pensar, ao pensar, no pensar."

Percebem que a idéia da multiplicidade, da unidade de organização é uma coisa que o Nietzsche
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persegue em todos os pontos, quer dizer, no próprio pensar, cada ato do pensar, não existe uma
unidade, não existe a simplicidade do pensamento, cada ato do pensamento já é uma pluralidade de
pensamentos, de sentimentos, de inclinações, de aversões, etc., e cada um deles exige o seu
próprio ponto de vista. É essa a idéia do tribunal. Então, quando nós pensamos, justamente porque
nós quando pensamos não pensamos no pensar, nós temos a idéia equívoca, errônea,
simplificadora da unidade, quando na verdade o pensamento é a multiplicidade dessa pessoas,
digamos assim. Multiplicidade de pessoas quer dizer o quê? A multiplicidade desses pontos de vista
em que os mais diversos elementos psíquicos e somáticos que estão em jogo em cada ato do
pensamento. Ou seja, cada ato do pensamento de que nós tomamos consciência é o resultado
desta longa disputa judicial em que uma parte acaba triunfando sobre a outra. Mas o triunfo de uma
parte sobre a outra não significa que essas partes não tenham tomado parte no processo,
justamente o contrário disso, significa que este pensamento que eu tenho neste momento é só o
resultado dessa batalha, dessa disputa judicial.
Pergunta: Como é que ficaria nisso a questão, assim, das pessoas que têm idéia de outro
pensamento que são os delírios, imposição do pensamento?
Professor: É, isso é engraçado; eu penso que isso seria certamente um elemento interessante para
se discutir e ao mesmo tempo em que eu acho que a idéia do pensamento emergente à
consciência, não como dado imediato, mas justamente como resultado dessa confrontação entre
diferentes pontos de vista coloca questões da ordem, por exemplo, de que qualquer ato da
consciência, qualquer conteúdo da consciência sempre se coloca sobre essa perspectiva da tensão,
do embate, do afrontamento e a consciência só recobre a camada mais superficial, mais exterior
disso; ou seja, ela só tem acesso aos lances finais desse processo todo.
Pergunta: Ela está falando do roubo de pensamento, para mim fica assim, que há uma ruptura entre
esse organismo e os outros num psicótico. Quer dizer, esses outros começam a brigar todos
desordenadamente, não tem nenhum para orquestrar. Então, fica a dúvida de quem roubou... Estou
lembrando do Lang quando ele coloca essa coisa da ruptura do eu, quer dizer, o eu dividido, a
convivência de todos eles sem nenhum organização...
Professor: Isso que vocês duas estão dizendo eu fico pensando mais ou menos nos seguintes
termos: desde que você tenha uma perturbação qualquer neste eu que habita o núcleo da
consciência é possível que essa disputa judicial não possa ser levada a bom termo. Entendeu?
Como você não tem o juiz, então você não tem a sentença final, você tem sempre
permanentemente as prerrogativas e as pretensões se afirmando ao mesmo tempo.
Comentário: Então, a briga que existe interna entre "as várias pessoas que opinam" e que nós
naturalmente não temos acesso e a pessoa que adoece tem. Via de regra nós não nos ocupamos
dessa briga...
Professor: Desculpa eu estar aproveitando o seu exemplo, é que ele é tão bom aqui, a gente não
tem acesso e nem pode ter se não quiser adoecer. Esse é o problema do Nietzsche.
Comentário: Deixa eu colocar uma questão, que caiu de colher, eu estou fascinada com este livro,
eu já te falei que eu adorei, recomendo vivamente porque realmente é uma maravilha, mas ele
coloca uma coisa em relação ao Habermas que eu fiquei assim parada. Ele pergunta o que é a
consciência? Como é o órgão da verdade, isso na tradição, ela é poesia. Aí ele remete para uma
nota de rodapé. Olha aqui o que ele fala do Habermas porque tenho ou não que ficar louco afinal? E
pegando essa questão, ele diz o seguinte:

"Esta passagem ao estético é um ato de desespero, porém significa uma reação e


uma crítica à razão que não poderia ser mais imanente. Ou que nome dar, quando
a razão por seus próprios meios se dá conta do ingrediente de inverdade sem o
qual ela não poderia ser razão? Quem arranja a coisa inversamente, como se
Nietzsche tivesse primeiramente adotado o ponto de vista estético "de uma
subjetividade descentrada, liberada de todas as restrições da cognição e da
finalidade, de todos os imperativos do trabalho e da utilidade" (J. Habermas, Der
philosophische Diskurs der Moderne, Frankfurt-Meno, 1985, p. 148) e daí tivesse
passado a "uma crítica desmascaradora da razão, a qual se põe a si mesma fora do
horizonte da razão" (ibidem, p. 119), este nem se esforçou por acompanhar o
movimento do pensamento de Nietzsche nem logrou ainda fazer a experiência do
escândalo ptolemaico. Involuntariamente, ele dá razão ao louco: "Eu venho cedo
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demais (...) Este enorme acontecimento ainda está a caminho e a vagar - não
chegou aos ouvidos dos homens". Ele está se referindo ao Habermas.

Professor: Certamente, a posição que ele está relatando é do Habermas.


Comentário: E o que ele vê é o ponto de vista estético e não uma crítica imanente da própria razão.
Mas então, o que ele está dizendo é o seguinte: para compreender Nietzsche eu preciso fazer a
experiência do escândalo ptolemaico.
Professor: Esta é a posição do Christoph Türcke o tempo todo no livro. Para você poder
compreender por que Nietzsche é o momento mais extremo da auto-crítica da razão? Porque
Nietzsche tematiza o componente necessário de desrazão presente na racionalidade. Então
Nietzsche significa este ponto da filosofia ocidental em que a razão faz a crítica dela mesma, e
reconhece no interior dela mesma a necessidade do seu contrário.
Pergunta: Então, mas o que ele está falando com a experiência do escândalo ptolemaico, não é um
pouco do que vem a ser essa multiplicidade e ter acesso a ela?
Professor: É exatamente isso, Amnéris. Isto aqui é o escândalo ptolemaico, escândalo no sentido de
pedra de tropeço mesmo, ou seja, é este elemento de desrazão que é necessariamente suposto
para que a própria racionalidade possa funcionar. É isso que eu estava dizendo para ela, quando eu
estou dizendo que eu estou aproveitando de novo o seu exemplo, é que se você obtivesse o acesso
completo a essa disputa, digamos assim, se a consciência pudesse acessar você não teria unidade
mais da consciência.
Comentário: Mas é a única forma de você perceber o funcionamento.
Professor: Claro, radicalmente. Sem dúvida.
Comentário: Então, se você não tem essa experiência você não pode perceber... o Habermas não
pôde perceber.
Professor: Sem dúvida. No caso do Nietzsche o que o Türcke insiste mais aí é que não se tratava
de maneira nenhuma de uma simples questão teórica, tratava-se de um sofrimento físico, corporal
esse escândalo ptolomáico.
Comentário: Mas isso quando colocado no campo filosófico não causa sempre um frisson? A
sensação que eu tenho dos cursos que eu fiz de filosofia é que a experiência deve ficar da porta
para fora, porque aqui estamos no plano teórico, ninguém fala em experiências para viver alguma
coisa teoricamente.
Professor: Não, no caso do Nietzsche e, nesse caso, Türcke tem toda a razão, isso aí foi algo de
profundamente vivido. Seria uma coisa assim muito leviana dizer se realmente isto tem alguma
relação com o colapso mental do Nietzsche, se tem ou não, isso eu não sei, também acho que não
é uma questão tão relevante assim... Percebam, estes dois textos que nós estamos lendo - isso é
importante ser dito -, foram textos que Nietzsche não publicou, são experiências no sentido forte da
palavra, experiências com o pensamento que ele está realizando lá, sentado. Imaginem que esse
mesmo autor tinha dificuldades consideráveis para ver o papel em que ele escrevia, era um sujeito
que nos seus últimos anos estava profundamente abalado, inclusive com o ponto de vista da sua
faculdade visual. Então alguém para quem escrever era extremamente penoso. Então, essas coisas
aqui, esses exercícios que nós estamos acompanhando são exercícios que a razão fazia consigo
mesma, quer dizer, o pensamento fazia consigo mesmo, mas a nível de uma extrema radicalidade,
isso é o que se chamou aí de experiência.
Comentário: E que não se confunde com colapso, acho que é uma afirmação completamente
equivocada, porque você pode ter as experiências ptolomaicas sem chegar a ficar louco.
Professor: Claro. Bom, vocês querem voltar a discutir mais alguma questão a respeito? O seu
exemplo me parece particularmente feliz para justamente mostrar como essa ignorância é positiva,
é constitutiva. Ignorância entendam aqui, entre aspas, não ignorância simplesmente como
desconhecimento; ignorância como não possibilidade de acesso.
Comentário: Para ficar bem didático, a mesma situação como a do hipocondríaco que se preocupa
com o funcionamento dos órgãos, o indivíduo que está delirando, estaria preocupado com o
funcionamento do pensamento na sua parte mais automática.
Professor: Isso que o Nietzsche está chamando aqui de pessoas, essas são as outras pessoas do
pensamento. Aliás é muito comum que em processos de delírio se personalizem certos impulsos.
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Bom, vocês têm experiência nisso muito maior do que eu.


Comentário: Tenho uma paciente que é mãe de um aluno que me liga e diz que não pode ir à
consulta porque as outras não estão deixando ela sair. Então, quando "elas" afrouxarem um pouco,
a paciente vai ver se consegue sair. As outras são sete e ela é a oitava. Cada uma delas é uma
personalidade...
Professor: São fenômenos de dissociação... Continuemos...

"A origem do pensamento permanece oculta; é grande a probabilidade de que ele


seja apenas o sintoma de um estado muito mais abrangente; ..."

Percebem? O pensamento aqui interpretado precisamente como sintoma. Essa é uma idéia
fortíssima no Nietzsche, é a mesma idéia da semiótica, da simbólica, da semiologia. Vejam, ele é
sintoma que exige interpretação, a palavra interpretação vem algumas linhas atrás, inclusive
interpretation, ele usa o termo latino em alemão.

"... que justamente ele advenha e nenhum outro, que advenha justamente com esta
clareza maior ou menor, por vezes seguro e imperioso, por vezes fraco e carente de
um apoio, no total sempre excitante, inquiridor - com efeito, todo pensamento atua,
para a consciência, como um stimulans -: nisso tudo se expressa em signos algo de
nosso estado geral."

É essa a idéia talvez mais forte deste texto aqui. A consciência, é estimulada pelo pensamento, por
qualquer pensamento na verdade. Agora, o mais importante é que precisamente este pensamento
venha, e nenhum outro no seu lugar. Isso não é uma coisa que a consciência possa decidir. Ou
seja, ele é uma expressão simbólica do nosso estado geral.
Pergunta: Simbólica ou semiótica?
Professor: Você pode usar aí as duas coisas. Semiótica aqui no sentido de uma teoria geral do
signo, do símbolo.

"- O mesmo se passa com todo sentimento, em si mesmo ele não significa algo:
quando ele chega, ele é, em primeiro lugar, interpretado por nós e freqüentemente
interpretado de modo tão esquisito!"

Agora, aqui são os exemplos que eu acho mais interessantes.

"Pensemos, com efeito, na quase ‘inconsciente’ constringência dos intestinos, nas


tensões da pressão sangüínea no baixo ventre, nos estados doentios do nervus
sympathicus -: e quanto mais há de que, pelo sensorium commune, mal temos um
vislumbre de consciência!"

Percebem? Aqui o que vale para o pensamento vale também para todo o sentimento e, sobretudo,
por meio da consciência, por meio do senso comum, nós não podemos ter nem sequer uma fagulha,
uma centelha, um vislumbre de consciência de todos esses movimentos corporais.

"- Só o instruído em anatomia adivinha, em tais incertos sentimentos de desprazer,


a espécie e a região das causas; ..."

Percebem que a palavra região está grifada pelo Nietzsche? No fundo, esta semiótica, esta
interpretação de signos aqui é algo que só pode ser feita, digamos, bem feita por alguém que seja
um médico. Nietzsche, é óbvio, não está pensando aqui no médico clínico, está pensando no
médico entendido como semiólogo, ou seja, como aquele que é capaz de interpretar sintomas,
sinais. Nesse sentido, por exemplo, ele se julgava o médico da cultura, era o título que ele se dava a
si próprio, por quê? Porque quem conhece anatomia sabe ou é capaz de interpretar não somente a
espécie das causas dos sentimentos como a região dessas causas. Percebem porque a ‘região’ tem
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uma importância vital aí, porque trata-se do corpo em última instância, e a gente vai ver logo em
seguida o exemplo que ele vai dar aqui, com o qual ele termina este fragmento, que é exatamente
um exemplo de um erro de interpretação.

"... todos os outros, porém, no conjunto quase todos os homens, desde que há
homens, não procuram uma explicação física para essa espécie de dor, mas uma
explicação psíquica e moral, e substituem as efetivas indisposições do corpo por
uma falsa fundamentação, ao apanhar, no círculo de suas experiências
desagradáveis e temores, um motivo para, desse modo, se sentir mal."

Percebem que a indisposição do corpo é má interpretada e se encontra para ela uma causa
psicológica ou moral?
Comentário: A famosa somatização. Ele deveria odiar isso.
Professor: Exatamente. Se você for usar um conceito do nosso vocabulário, é isso mesmo. Porque
eu ignoro as causas corporais do desprazer, do mal-estar, e porque eu não posso prescindir de
encontrar uma causa - isso ele está falando da nossa cultura na verdade - então, nós inventamos
causas psicológicas e morais e acreditamos piamente nelas. Então, todo mundo tem o direito de
encontrar a causa da reto-colite ulcerativa do próximo.

"Sob tortura, quase todo mundo se confessa culpado; sob a dor, cuja causa física
não se sabe, o torturado se questiona a si mesmo tão longa e inquisitorialmente até
que ache culpado os outros ou a si mesmo: - como fez, por exemplo, o puritano
que, conforme o costume, interpretava moralmente o baço afetado por um
insensato modo de vida - isto é, como mordida da própria consciência moral."

Quer dizer que a consciência de culpa, a consciência moral, na verdade não era senão o sintoma de
um baço prejudicado por uma vida insensata e irracional. Apenas que todo o fenômeno da
moralidade, precisamente o puritano enquanto puritano, interpretava o próprio mal-estar a partir da
sua consciência moral, quando na verdade ele deveria fazer, se fosse um médico, se fosse um bom
semiólogo, exatamente o contrário, quer dizer, ele deveria interpretar as exigências
extraordinariamente rígidas da sua consciência moral como sendo as conseqüências de um baço
danificado por uma vida excessivamente licenciosa.
A verdadeira causa não pode ser buscada nos fenômenos morais, ou se você quiser, a nível das
representações conscientes; aquilo que se passa a nível das representações conscientes, é uma
espécie de figuração ou, digamos, reprodução ideológica desses movimentos mais fundamentais
que se dão a nível do corpo. Quer dizer, quando você faz o procedimento tradicional simplesmente
inverte a ordem das causas, você pensa como causa aquilo que não é senão efeito. Você faz uma
má semiologia, na verdade.
Pergunta: Diga-me uma coisa, porque agora me veio uma curiosidade, como é que pensa o homem
do ressentimento?
Professor: Pois então, o homem do ressentimento tem uma lógica toda especial, é isso que a gente
vai tentar ver nessa aula; vou tentar, tanto quanto possível, expor de uma maneira bastante explícita
a lógica do ressentimento.
Comentário: Porque deve ser muito interessante a lógica do ressentimento.
Professor: A lógica do ressentimento é esta que acredita no efeito de causas pura e simplesmente
marginais, ou seja, precisamente a moralidade rígida é algo que é uma conseqüência das
indisposições do corpo.

Aforismo 16 de Além do Bem e do Mal


Bom, ficou claro este texto? Agora, eu pediria a vocês que nós voltássemos para Além do Bem e do
Mal. Nós vamos ficar permanentemente fazendo esse ziguezague aqui do texto publicado ao texto
dos Fragmentos. Vamos pegar o Fragmento de número 16.

"Ainda há ingênuos observadores de si mesmos que acreditam existir "certezas


imediatas"; por exemplo, "eu penso", ou, como era superstição de Schopenhauer,
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"eu quero": como se aqui o conhecimento apreendesse seu objeto puro e nu como
"coisa em si", e nem de parte do sujeito e nem de parte do objeto ocorresse uma
falsificação."

Eu vou deixar a proposição "eu quero" de Schopenhauer para a gente examinar junto com o
aforismo número 19, portanto, aqui eu vou ficar só no "eu penso", sobretudo porque como nós não
lemos Schopenhauer, mas lemos Descartes; a frase "eu penso" fica mais clara para vocês. O que
ele quer dizer com no "eu penso", que o conhecimento coloca ou recebe o seu objeto puro e nu
diante de si como "coisa em si" e que nem do lado do sujeito, nem do lado do objeto ocorria uma
distorção ou uma falsidade na proposição do "eu penso".
Se nós lermos isso desarmados, não conseguimos compreender o que Nietzsche está fazendo aqui,
que é, na verdade, uma espécie de recapitulação do argumento cartesiano. Estão lembrados
quando Descartes dizia "eu penso, eu sou, isto é necessariamente verdadeiro e que não pode haver
nada de falso"? Por que não pode haver nada de falso? Porque justamente quando ele falava "eu
penso", a consciência tinha a si mesma por objeto. Lembram-se disso? Isto é, não havia nada que
pudesse ser opaco nessa presença a si mesma, ou seja, nessa imediatez com que o pensamento
se apresenta a si mesmo. Então, aqui não podia haver absolutamente nada de falso. Por quê?
Porque se tratava de uma intuição em que o objeto era dado imediatamente à consciência. Que
objeto? Ela mesma, o próprio pensamento. Então, no "eu penso" a consciência obtinha um objeto
no interior do qual nada de falso poderia haver, porque esse objeto não era extraído por nenhum
processo, por nenhuma operação, não havia nenhuma mediação, esse objeto era dado de imediato
para a consciência, nela mesma, justamente porque não havia, por conseguinte, nenhum processo
temporal, não se tratava de nenhuma construção discursiva. Nessa imediatez da consciência não
poderia residir nenhum erro. Esse conhecimento era um conhecimento de uma objeto tal como ele é
nele mesmo. Então, não havia perturbação, nem erro, nem da parte do sujeito, nem da parte do
objeto. Por quê? Porque o objeto, na verdade, era a própria consciência. Por isso era certeza
imediata.

"Repetirei mil vezes, porém, que "certeza imediata", assim como e "conhecimento
absoluto" e "coisa em si", envolve uma contradictio in adjecto [contradição no
adjetivo]: deveríamos nos livrar, de uma vez por todas, da sedução das palavras!"

Essas três expressões estão entre aspas: "certeza imediata", "conhecimento absoluto", "coisa em
si". "Coisa em si" é obviamente é uma intenção polêmica relativamente a Kant e a Schopenhauer;
"conhecimento absoluto" ao famoso topus do idealismo alemão de Hegel, Schelling, etc.; e "certeza
absoluta" claramente uma indicação contra Descartes. Percebem aqui, portanto, que Nietzsche tem
a pretensão nada modesta de estar dialogando com a tradição da Filosofia Moderna no seu todo.
Portanto, nem o conhecimento imediato, nem o conhecimento absoluto, nem coisa em si; dizer isto,
e esse é um ponto fundamental para Nietzsche, é uma contradictio in adjecto, ou seja, é uma
contradição nos próprios termos. Precisamos entender o que significa isso para poder entender do
que ele está falando. O que significa uma contradição nos próprios termos? Significa dizer que ao se
falar de certeza, eu já não posso mais falar de imediata; uma certeza imediata seria impossível. Eu
não posso falar de um conhecimento absoluto, se ele é conhecimento, é necessariamente relativo.
E eu não posso falar com sentido de coisa em si, se eu só posso falar de fenômeno.
Pergunta: A certeza não poderia ser imediata por que a certeza é perene?
Professor: Não. Por enquanto isto daqui ainda não ficou completamente claro. Ele vai deixar isso
claro nas próximas linhas, por enquanto, ele só está dizendo o seguinte: olha, aquele que fala numa
certeza imediata, no fundo não sabe do que está falando, ele comete uma contradição nos próprios
termos e para que possa haver certeza é preciso mediação, e ele vai mostrar exatamente que
mediação é essa que vai acontecer. Da mesma forma que nenhum conhecimento pode ser
absoluto, ele sempre será relativo.
Comentário: É, o conhecimento relativo é mais fácil do que a certeza.
Professor: Você vai ver como é que essa certeza se faz. A idéia de uma certeza imediata, esse é o
ponto do Nietzsche: é uma sedução das palavras.
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Pergunta: - E a certeza absoluta?


Professor: Igualmente. Ou seja, a quem permanece enredado, desencaminhado... porque, em
alemão, seduzir é Verfüren. Verfüren é um verbo que é construído a partir do radical füren que
significa conduzir. Então, Verfüren significa seduzir ou desencaminhar, tirar do caminho, conduzir
mal. Então, as palavras com que nós falamos nos desencaminham, nos seduzem e quem não
resiste a essa sedução é desencaminhado, é tirado do caminho e, portanto, continua acreditando
em certeza absoluta, em conhecimento absoluto, em certeza imediata.

"Que o povo acredite que conhecer é conhecer até o fim; o filósofo tem que dizer a
si mesmo: se decomponho o processo que está expresso na proposição "eu penso",
obtenho uma série de afirmações temerárias, cuja fundamentação é difícil, talvez
impossível - por exemplo, se sou eu que pensa, que tem de haver necessariamente
um algo que pensa, que pensar é atividade e efeito de um ser que é pensado como
causa, que existe um "Eu", e finalmente que já está estabelecido o que designar
como pensar - que eu sei o é pensar."

Em primeiro lugar há, aqui, uma observação claramente polêmica e irônica. Ponto número 1: quais
são os dois personagens que estão em jogo aqui?
Resposta: O povo e o filósofo.
Professor: Muito bem. Quem é esse povo? O povo é aquele que acredita que o conhecimento pode
ser um conhecimento absoluto, ou seja, conhecer é conhecer até o fim. Só que esse povo aqui é
nada mais, nada menos, que o povo da tradição da História da Filosofia inteira e esse povo a que
ele está referindo é Descartes, é Kant, é Schelling, é Hegel, Fichte, Schopenhauer, é a filosofia
moderna no seu conjunto, ou seja, o que ele está querendo dizer é que o conjunto da Filosofia
Moderna não é senão a transposição filosófica de um preconceito popular. Basicamente, o que ele
está querendo dizer aqui é que a gramática da linguagem seduz estes filósofos a fazer a filosofia
que eles fazem. Ou seja, a Filosofia Moderna nada mais é do que uma consagração teórica da
crendice popular. E, por outro lado, quem é o filósofo, então?
Resposta: O próprio, é claro. Bem modesto.
Professor: Claro. O filósofo, o que ele vai fazer? Ele vai dividir o processo, ele vai examinar o
processo, ele vai examinar a proposição "eu penso" de novo. Nós vimos aqui que Kant fez isso o
tempo inteiro examinando a preposição "eu penso", mas ele vai dizer: ‘bom, mas o Kant ainda fazia
parte do preconceito popular, como é um desencaminhado, um seduzido, ele não conseguiu
compreender exatamente o que acontece no processo. E o que acontece no processo? Acontece
que quando eu digo "eu penso", ao invés de ter uma certeza imediata, o que tenho é uma série de
afirmações metafísicas infundadas, por exemplo, "que sou eu que penso". Primeiro ponto da
suspeita nietzschiana é essa: "de donde surgiu esse eu? Por que quem pensa é o eu? Por que tem
que haver algo que pensa?"
Comentário: Ah! esse pedaço é fantástico!
Professor: Por que tem que haver algo de que o pensamento seja o efeito, uma propriedade? Por
que eu tenho que pensar necessariamente a relação de causa e efeito como se o pensamento fosse
um efeito do sujeito que pensa, como se o eu fosse a causa de que o pensamento é o efeito? Então,
de onde eu sei o que é pensar quando eu digo "eu penso"? Ou seja, estou pressupondo que já sei o
que é pensar, que já sei o que é o eu, eu sei que o pensamento é o efeito da minha própria
subjetividade. Tudo isso eu sei, eu estou pressupondo quando eu digo "eu penso". Ora, se eu estou
pressupondo tudo isso, então o que acontece? Acontece que o "eu penso" já não é mais nenhuma
certeza imediata, já é o resultado de vários processos de inferência. E por que "eu penso" é uma
certeza imediata? Bom, porque o povo é grosseiro. Como esse pessoal nada mais faz do que
consagrar, teoricamente, um preconceito popular, eu permaneço na grosseria característica do
modo de perceber, falar do vulgo, do populacho.
Comentário: Até aí ele está com Kant: não é uma certeza imediata, é o resultado.
Professor: Não, para o Kant ele é imediato...
Comentário: Mas, ela não aparece como o resultado de uma série de representações?
Professor: Sim. Mas, ele é uma unidade originária. De novo, você tem o problema da unidade posta
por Kant como unidade originária da apercepção. Ele não te dá nenhuma substância, no caso do
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Kant, mas ele é necessariamente pensado como unidade, unidade de síntese.


Pergunta: A certeza imediata, então, para o Nietzsche, não existe?
Professor: Não. Vejam: que eu possa estar certo, absolutamente certo da proposição "eu penso, eu
sou", isso não significa que a consciência seja imediatamente presente a si, mas isso que
aparentemente é imediato é resultado de todos esses processos de inferência, como, por exemplo,
de onde eu tiro o eu, de onde eu tiro a diferença entre pensar e o outro ato qualquer, por que tem
que existir necessariamente uma outra coisa que pensa? Vamos prosseguir.

"Pois se eu já não tivesse me decidido comigo a respeito, por qual medida eu


julgaria que o que está acontecendo não é talvez "sentir" ou "querer"? Em resumo,
aquele "eu penso" pressupõe que eu compare meu estado momentâneo com outros
estados que em mim conheço, para determinar o que ele é: devido a essa
referência retrospectiva a um "saber" de outra parte, ele não tem para mim, de todo
modo, nenhuma "certeza" imediata.

Ou seja, se eu comparo, simplesmente o ato de comparar já necessariamente introduz a mediatez,


é óbvio. Então, se é isso, eu não posso dizer mais que essa presença seja imediata, se eu disser
que ela é imediata estou na verdade simplesmente cometendo uma grosseria, ou seja, eu
simplesmente não sei, eu não refleti suficientemente sobre o meu próprio ato intelectual.
Pergunta: Certeza imediata seria uma intuição, uma intuição que me daria uma coisa imediata?
Professor: Isso. Uma intuição seria imediata, o que Descartes justamente pretendia com o "eu
penso": "olha, isso aqui não é resultado de nenhum raciocínio, de nenhuma inferência, isto aqui é
uma pura e simples presença dada a si mesmo no pensamento". E o Nietzsche está tentando aqui
mostrar como não. Precisamente como, ao contrário do que Descartes julgava, é o resultado de
uma série de processos, sobre os quais, inclusive, a consciência não tem nenhum controle.

"No lugar dessa "certeza imediata", em que o povo pode crer, no caso presente, o
filósofo depara com uma série de questões da metafísica, verdadeiras questões de
consciência para o intelecto, que são: "De onde retiro o conceito de pensar? Por
que acredito em causa e efeito? O que me dá o direito de falar de um Eu, e até
mesmo de um Eu como causa, e por fim de um Eu como causa de pensamentos?"
Quem, invocando uma espécie de intuição do conhecimento, se aventura a
responder de pronto essas questões metafísicas, como faz aquele que diz: "eu
penso, e sei que ao menos isso é verdadeiro, real e certo" - esse encontrará hoje à
sua espera, num filósofo, um sorriso e dois pontos de interrogação. "Caro, senhor",
dirá talvez o filósofo, "é improvável que o senhor não esteja errado, mas por que
sempre a verdade?"

Aquele que tenta responder a essas questões ao modo cartesiano, ou seja, aquele que persevera
ao modo popular de responder a essa questão e diz: "não, quando eu digo eu penso e eu estou
certo de que isso é verdadeiro", ou seja, a idéia de que para duvidar do pensamento, eu teria que
exercer um ato do pensamento que, por conseguinte, eu estaria simplesmente reafirmando o
pensamento como verdadeiro. Nisso, portanto, consiste a intuição da simplicidade, da presença a si
da consciência, para Descartes, Nietzsche diria: "bom, hoje em dia" e o que significa esse "hoje em
dia"? Hoje em dia é no ponto extremo do desdobramento da História da Filosofia, no ponto a que eu
fui conduzido pela História da Filosofia, "hoje uma resposta como essa encontraria simplesmente
um sorriso e dois pontos de interrogação", quer dizer, um sorriso significa: é extremamente ridícula
esta pretensão à imediatez da intuição e dois pontos de interrogação, ou seja, "meu caro senhor é
muito improvável que o senhor esteja certo", mas além disso porque sempre somente a verdade?
Ou seja, a pretensão de Nietzsche é colocar em questão o valor da verdade.
Pergunta: Giacóia, não é neste aforismo que ele falou do "algo em mim pensa", mas tem um
aforismo que ele pergunta "um dia nós conseguiremos, inclusive, abrir mão desse algo..."
Professor: Exatamente o aforismo de número 17 que nós vamos ver na próxima aula, porque hoje
pretendo ler a última carta do Nietzsche. Mas no número 17 é onde ele vai dizer que alguma vez vai
ser possível colocar em suspenso, não somente esse "eu penso", mas também "isto pensa". Todas
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essas questões foram na verdade anunciadas a partir desse enunciado que Nietzsche coloca aqui,
dessa pergunta: de onde eu retiro o conceito de pensar? Por que é que eu acredito em causa e
efeito? O que é que me dá o direito de falar de um eu, de um eu como causa, causa dos
pensamentos? Quer dizer, de onde eu extraio a idéia do eu? De onde eu extraio a relação de causa
e efeito?
Por que eu dou tanta ênfase a isso? Porque essas questões não são questões que Nietzsche
inventou, essas questões já tinham sido problematizadas ao longo da História da Filosofia, tanto
pela tradição do empirismo, Hume por exemplo, quanto pela crítica do ceticismo humeano por Kant.
Logo, Nietzsche tem a pretensão de estar falando de um ponto determinado no desenvolvimento da
História da Filosofia que, para ele, é um ponto de extrema agudização da questão. Ou seja, ele
pretende tomar o problema da unidade da consciência e o problema da lógica e da gramática como
substrato, por assim dizer, dos problemas da metafísica, que é exatamente o ponto aonde a História
da Filosofia foi conduzida tanto pela crítica cética de Hume, quanto pela crítica dessa crítica, pelo
idealismo transcendental de Kant.
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Prof. Dr. Giacóia é especialista em Nietzsche, filósofo e professor da UNICAMP

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5 AULAS SOBRE NIETZSCHE

3ª aula
Oswaldo Giacóia Júnior
IFCH/UNICAMP

Introdução
Passemos direto ao número 17. Vocês devem se lembrar que eu passei a vocês um texto de um
fragmento que eu traduzi avulsamente, eu acho que todos vocês têm essa tradução. Este texto é
uma versão preparatória desse aforismo número 17. Em boa medida ele coincide com o aforismo
número 17, mas evidentemente ele é uma versão preparatória. O curioso em Nietzsche é que, às
vezes, as versões preparatórias são mais claras do que o texto definitivamente publicado. Isto
corresponde a uma maneira muito peculiar de Nietzsche lidar com os seus próprios textos. Ou seja,
Nietzsche é um pensador e ao mesmo tempo um escritor que gosta de produzir determinados
efeitos de estilo, e um desses efeitos de estilo é, na verdade, não apresentar os seus pensamentos
de uma forma absolutamente inequívoca, ou seja, apresentá-los de alguma forma ambígua. Existem
efeitos de fachada nos textos por Nietzsche publicados que enganam muito; as pessoas menos
atentas ficam presas nas fachadas e realmente perdem aquilo que está nos bastidores do texto.
Enquanto que nos textos que são versões preparatórias, ele mostra, ilumina esse bastidores; então
alguns deles ficam muito mais simples, mais claros para você ler um texto não publicado na versão
preparatória do que um texto publicado. Um dos objetivos de eu ter trazido este fragmento para
vocês é exatamente esse, para vocês perceberem as diversas camadas de elaboração do texto que
Nietzsche faz até a sua definitiva publicação. Esse é um efeito absolutamente voluntário e visado,
se vocês pensam, por exemplo, que o subtítulo do Assim Falou Zaratustra: é um livro para todos e
para ninguém, ele tinha plena consciência de que os escritos não seriam completamente entendidos
ou inteligíveis no seu tempo. Portanto, a frase clássica que ele escreve no final da vida, na sua
autobiografia: "Eu nasci póstumo", quer dizer, meu pensamento não é para o meu século é para
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daqui alguns séculos. Isso é muito interessante, no caso dele, porque esse estilo de escrever é algo
que ele cultiva com maestria. Se vocês lerem o prefácio de Para a Genealogia da Moral, ele vai
dizer o seguinte:

"Os meus escritos são compostos de tal maneira que interpretá-los exige uma
faculdade muito especial, que os homens modernos não têm, uma faculdade de
ruminação; para entender os meus escritos precisa ser de alguma forma vaca, isto
é, precisa ter capacidade de ruminar e perder tempo com eles"

Comentário: Ele tem toda a razão. É tão desconcertante a gente ouvir isso, porque li e fiquei tão
abismada, que eu não conseguia achar nada, então fiquei ruminando.
Professor: Ele diz: especialmente nós homens modernos temos a ânsia do tempo, quer dizer, nós
estamos o tempo todo apressados e entendemos, por conseguinte, pela rama, pela superfície.
Agora, para entender os meus escritos é preciso ser capaz de ruminação, de mastigar, devolver,
voltar a mastigar, etc. Então, é por isso que muitos são os exemplos de textos que são
definitivamente publicados numa versão que não é tão clara quanto as versões preparatórias.
Comentário: Por um outro lado teríamos de entender que o pensar não é a função principal de todas
as pessoas e que um indivíduo, que não é tipo pensamento, tem uma grande dificuldade de ficar
ruminando pensamentos, de trabalhar com pensamentos e que esses indivíduos vão por outros
caminhos que não o do pensamento.
Professor: Nietzsche tem isso muito claro para ele; quer dizer, de fato somente algumas pessoas
teriam condição de se apropriar inteiramente dos escritos, mas isso não somente dele, mas de
qualquer texto teoricamente denso, porque, para ele, pelo menos - se a sua teoria tem sentido ou
não, isso é uma outra coisa - o tempo do pensamento é um tempo próprio, a temporalidade do
pensamento é uma temporalidade, digamos, sui generis, e esse é o grande truque da modernidade:
consiste justamente em esterilizar o pensamento por meio da destruição do seu pressuposto
temporal de maturação. Quer dizer então, que não é por acaso que o mundo moderno é mundo da
mídia, o mundo da imprensa, o mundo da opinião pré-fabricada, mas precisamente por isso não é o
mundo do pensamento, não é o tempo da reflexão. E de fato acho que, desse ponto de vista,
Nietzsche tinha toda razão, nós depois da revolução industrial e, sobretudo, depois da ampla
difusão da indústria cultural, de fato nós perdemos, em grande medida, a capacidade da reflexão e
do pensamento original. Os gostos são pré-formados, as opiniões são pré-formadas, os gêneros são
pré-formados, a ponto de hoje em dia a mídia escolher, por exemplo, nosso vocabulário.
Dependendo da forma como você escreve, como você se expressa, você não encontra espaço
absolutamente nenhum em órgão de comunicação, se não usar o vocabulário da moda,
simplesmente você não é ouvido.
[Nota: Houve neste momento uma discussão sobre se o acesso total aos escritos de Nietzsche é
facilitado pelos indivíduos introvertidos ou não. E parece que isso independe um pouco do tipo de
tendência da psique e depende muito mais de se permitir fazer a experiência do pensamento, ou
seja, mergulhar de fato na interioridade de si para buscar a si mesmo e não ser conduzido pela
mídia. É isso que Nietzsche está propondo.]
Professor: Há uma frase de um texto tardio de Nietzsche que diz o seguinte: "Eu não sei o que
significa uma verdade objetiva, todas as verdades são para mim verdades sangrentas". No fundo,
para usar outra imagem do mesmo período, se você não escreve com seu próprio sangue, a sua
relação com aquilo que você escreve, pensa, e eventualmente divulga, é uma relação simplesmente
exterior e artificial. E não é exatamente esse o tipo de leitor ideal para Nietzsche, pois, para ele, o
leitor ideal é aquele que, não necessariamente concorda com aquilo que lê em um autor, mas que
realmente assimila, do ponto de vista das suas vivências mais profundas, aquilo que lê. Ou seja,
aquele para quem o problema da verdade, o problema da autenticidade numa teoria, não é
simplesmente um problema lógico.
Comentário: Às vezes ele faz uma provocação, porque ele rompe com qualquer idéia de
previsibilidade, ele é muito imprevisível. Eu não tinha lido antes e então você vai completamente
leiga neste caso, mas é inteiramente imprevisível e desmonta todas as tuas verdades e não só elas,
mas também sua maneira de pensar e de argumentar. É muito desconcertante... Quando eu
passava naqueles pontos que seriam, politicamente, os mais incorretos, ele fala de homens,
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mulheres e judeus, aquela coisa de louco, eu não conseguia nem ficar na chamada, entendeu?
Então, veja, não dá para entrar numa interpretação literal, que muitas vezes é a maneira mais fácil
de dizer que ele era conservador... etc. É tão desconcertante!...
Professor: É verdade. O primeiro efeito que Nietzsche produz e, talvez seja o mais devastador, é
este de intranqüilizar mesmo, de desestabilizar aquelas trilhas habituais do pensamento, isso
realmente desarruma a casa.
Comentário: Completamente. Eu não conseguia achar nada, a não ser ler.
Aforismo 17 de Além do Bem e do Mal
Professor: Bom, podemos começar aqui no 17 com essa observação acerca do estilo apenas para
introduzir.

"Quanto à superstição dos lógicos, nunca me cansarei de sublinhar um pequeno


fato que esses supersticiosos não admitem de bom grado - a saber, que um
pensamento vem quando "ele" quer, e não quando "eu" quero; de modo que é um
falseamento da realidade efetiva dizer: o sujeito "eu" é a condição do predicado
"penso". Isso pensa: mas que este "isso" seja precisamente o velho e decantado
"eu" é, dito de maneira suave, apenas uma suposição, uma afirmação, e certamente
não uma "certeza imediata". E mesmo com "isso pensa" já se foi longe demais; já o
"isso" contém uma interpretação do processo, não é parte do processo mesmo.
Aqui se conclui segundo o hábito gramatical: "pensar é uma atividade, toda a
atividade requer um agente, logo -".

Esse ponto até onde você leu completa o grande movimento do texto. O texto se perfaz com um
segundo movimento que vai começar logo depois desse traço de separação. A primeira coisa que
eu gostaria de observar para vocês é a primeira frase do texto. Essa primeira frase contém uma
provocação cínica, não sei se vocês identificam essa provocação...
Resposta: Superstição...
Professor: Sim, superstição. Na verdade, ele atribui aos lógicos uma superstição. Ora, a lógica é
exatamente aquela doutrina do espírito que menos tem a ver com a superstição. A lógica, como a
matemática, é a teoria das puras formas, das leis formais do pensamento que abstraem de qualquer
conteúdo, e os lógicos são, dentre todos os teóricos, aqueles que se consideram acéticos por
natureza. Eles nada tem a ver com nenhum objeto do pensamento, apenas têm a ver com a forma
do pensamento e mais nada, com valores veritativos, isto é, com as formas lógicas do juízo. Ora, de
repente, vem alguém dizer que os lógicos são supersticiosos e que principalmente, como
supersticiosos, não admitem isso de bom grado, não confessam a si mesmo essa superstição. É
realmente algo para provocar no mais fundo. E na verdade, essa superstição que os lógicos não
confessam, eles não confessam porque essa "superstição" constitui o pressuposto fundamental da
lógica, isto é, a idéia da autonomia do pensamento. Ora, imagino que todos nós estamos aqui de
acordo; não somente os lógicos pensam assim, mas toda a tradição pensa assim, ou seja, aquilo
que caracteriza o pensamento e, sobretudo, o pensamento na sua condição de racionalidade é a
espontaneidade do seu funcionamento. Ao contrário, por exemplo, da sensibilidade que é
passividade, eu não posso ter nenhuma sensação, nenhuma percepção senão em função de uma
afecção que os órgãos dos sentidos recebem por parte dos objetos ao meu redor, por conseguinte,
a sensibilidade é essencialmente passiva; mas a razão não, a razão é atividade, ou seja, ela é
fundamentalmente uma atividade sintética, combinatória. Então, a lógica que tem a ver com as leis
gerais do pensamento tem a ver com a espontaneidade, por conseguinte, com a atividade, ou seja,
com o lado ativo dos nossos processos mentais, nossos processos de raciocínio, etc. E, por
conseguinte, a lógica está construída, em boa medida, com base nessa autonomia do pensamento
e, sobretudo, autonomia da consciência enquanto sede do pensamento.
E aqui Nietzsche diz exatamente o contrário: o pensamento vem quando "ele" quer, não quando
"eu" quero. A consciência não é o centro autárquico do pensamento, não é de modo nenhum o
centro autônomo do pensar. E dizer que o pensamento vem quando eu quero é uma falsificação da
situação de fato. E como é possível essa falsificação dessa situação de fato? Se vocês observarem
algumas linhas abaixo vocês verão que essa falsificação é tornada possível pela invenção do
sujeito. Nietzsche coloca a palavra "eu" entre aspas aqui. Com essa colocação entre aspas ele quer
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de novo - aprofundando esse movimento de ironia, que ele está desenvolvendo nesse texto aqui -,
marcar o efeito de estranhamento em relação a esse eu, ele quer chamar a atenção para que esse
eu é algo estranho, é algo inventado, não é algo natural. O sujeito eu é a condição do predicado
"penso". Essa é exatamente a fórmula por meio da qual se constrói esta superstição da lógica. Ou
seja, há um processo mental do pensamento, esse processo é remetido a um eu, a um agente que
é, por assim dizer, ao mesmo tempo, substrato e causa do processo. E o mais engraçado é que o
Nietzsche diz:

Isso pensa, mas que precisamente este "isto" seja o velho e conhecido "eu", isso
dito, de maneira suave, é apenas uma hipótese, nenhuma "certeza imediata".

O que está sendo colocado aqui é exatamente a maneira pela qual Nietzsche pretende mostrar,
insinuar, que quando eu digo "eu penso", eu não estou constatando nenhum fato, o que eu estou
fazendo é uma interpretação. Eu tomo um processo, no caso um processo mental, que eu descrevo
como pensamento e atribuo esse estado mental a um sujeito como se esse estado mental, como se
esse pensamento fosse predicado desse sujeito, isto é, eu digo que o sujeito eu é autor e causa do
pensamento. Ele está querendo mostrar que a proposição "eu penso", não é um fato, não é
expressão de um fato, sobretudo, não é uma "certeza imediata", mas ela é uma interpretação de um
processo psíquico. Que interpretação? Uma interpretação que é induzida por um hábito gramatical.
Que hábito gramatical é esse? Eu posso dizer "eu penso" ou eu posso dizer "isto pensa", "ele
pensa", "algo pensa". O que nós queremos dizer quando nós formulamos proposições desse
gênero? A que pergunta nos remete essa atribuição? Se nós fizermos uma reflexão sobre aquilo
que nós efetivamente fazemos quando dizemos "eu penso", ou "isto pensa", nós não estamos
fazendo outro coisa senão nos perguntar pelo agente ou pelo sujeito da ação verbal: quem pensa?
Isto é, nós buscamos um substantivo que possa funcionar, ocupar o lugar de sujeito da ação
expressa pelo verbo. Está claro? Então, eu, isto, ele, etc. remete sempre a esta função subjetiva,
substantiva, que no fundo completa a inteligibilidade da frase expressa na ação verbal. É por isso
que Nietzsche diz: por último, já com este "isto pensa" nós vamos longe demais, este "isto" contém
uma interpretação do processo e não pertence ao próprio processo, quer dizer, esse "isto" é
exatamente a expressão da função gramatical do sujeito na proposição, "isto" é exatamente a
mesma função que o "eu".
Ele está dizendo, portanto, que a proposição "eu penso" ou "isto pensa" não é simples descrição de
um fato objetivo, puro, não é nenhuma certeza imediata, mas ele é o resultado de uma
interpretação, de uma interpretação que se procura pelo sujeito da ação verbal. Nós veremos isso,
com bastante clareza, no exame dos Fragmentos Póstumos. E, sobretudo, não é uma "certeza
imediata". O que é uma certeza imediata? Vocês estão lembrados quando nós examinamos o texto
do Descartes? Descartes diferenciava a dedução enquanto um processo mediato no tempo,
enquanto processo discursivo da intuição entendida como conhecimento imediato de um objeto,
presença a si sem mediação de uma objeto. Então, Descartes, dizia: "eu penso", isto é uma
intuição, isto é uma certeza imediata", isto é a presença direta do pensamento a si mesmo, da
consciência a si mesma. Percebam que o que Nietzsche está fazendo aqui é desconstruir essa
imediatidade, ele está dizendo: Olha, "eu penso" não é nenhuma "certeza imediata", é o resultado
de uma interpretação; logo, aquilo que, para Descartes, era perfeitamente assegurado como pura
transparência já contém uma certa temporalidade, ou seja, um processo que se desenrola com o
tempo. Vejamos esse processo mais de perto:

"Aqui se conclui segundo o hábito gramatical: "pensar é uma atividade, toda a


atividade requer um agente, logo -".

Analisando esta frase nós temos, aqui principalmente, uma caracterização por Nietzsche do
processo que se encontra em curso quando nós fornecemos uma interpretação expressa por uma
proposição do tipo "eu penso", ou seja, o estado mental que eu descrevo chama-se pensamento.
Ora, pensamento é uma atividade, ora toda atividade pertence a um autor, logo a esta atividade
pensar pertence necessariamente o sujeito do pensamento que sou eu. Agora, quem é que garante
que sou eu que pensa? Por que necessariamente pensar tem que ser uma atividade para a qual é
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necessário um autor? Por que o pensamento tem que ser pensado como efeito de um sujeito? Nada
disso Descartes explica na sua famosa "certeza imediata", tudo isso é encoberto exatamente pela
imediatez e certeza de si do cogito mas, no entanto, diz Nietzsche, isso tudo é uma interpretação. E
o que ele está fazendo aqui é mostrar os passos dessa interpretação. Ora, essa frase: "pensar é
uma atividade, a toda atividade pertence um agente", qual é a categoria que está operando aqui?
Que relação existe entre o agente e a atividade? Relação de causa e efeito, percebem? Quer dizer,
todo processo é conduzido por um raciocínio de tipo causa e efeito, que os lógicos chamam de
inferência causal, por isso que ele termina a frase antes do traço de separação com: logo. Ele quer
chamar a atenção para a partícula, para o conectivo lógico, para o sinal de inferência. Com isso ele
quer mostrar que se trata de um raciocínio e não de uma intuição. Trata-se conseqüentemente de
uma dedução e não de uma presença imediata, dada. Portanto, por conseguinte, ou seja, por
conseqüência...
Pergunta: É uma seção gramatical, é isso? Agora, eu gosto muito dessa idéia de concepção
gramatical. Mas, é possível escapar disso?
Professor: Essa é uma grande pergunta.
Comentário: Eu estava ansiosa para chegar nisso...
Professor: Tais categorias são os modos como o pensamento se estrutura. A pretensão deste curso
é explorar e clarificar, tanto quanto possível, isso e, sobretudo, as aporias que isso encerra. Isto que
nós estamos vendo aqui agora é exatamente aquilo que a Amnéris leu no livro de Christoph Türcke.
É isso que Christoph Türcke chama escândalo da razão. Ou seja, é esta operação de reflexão sobre
os limites do pensamento e da linguagem. Apenas para adiantar um pouco, o que nós estamos
vendo aqui é a construção daquilo que nós chamamos de mundo, ou seja, a construção dos objetos
do pensamento. Ora, vai começar a ficar claro, a partir daqui, que o mundo do qual nós falamos, nós
não temos absolutamente nenhuma garantia de que aquilo que nós chamamos de real tenha outra
estrutura que não aquela que é determinada pela raiz lógico gramatical da nossa linguagem. Então,
o que é o mundo objetivo, o que seria o real fora do pensamento é absolutamente inacessível, o real
de que nós falamos é o real que nós construímos e nós o construímos a partir da estrutura
fundamentalmente gramatical da nossa linguagem.
Então, vejam, é possível falar para além desses limites? Não. Por quê? Porque eu só posso falar
aquilo que é gramaticalmente possível. Eu só posso fazer, por conseguinte, um discurso com
sentido sobre os objetos quando eu faço um discurso que respeita as regras fundamentais da lógica
e da gramática, do contrário o meu discurso é sem sentido, é ininteligível. Porém, isso não significa
que eu possa alimentar a pretensão de conhecer a estrutura ontológica da realidade porque essa
estrutura cognoscível para mim, já é filtrada pelos esquemas categoriais, vale dizer, lógico
gramaticais do meu discurso. Então, vejam, que nível de radicalidade está sendo colocado aqui.
Vejam: "isto", ou "eu" são elementos lógicos de identificação. São elementos com os quais eu
preciso operar para poder detectar na realidade algo como o "mesmo", o "outro".
Comentário: Isso que ela perguntou e não dá para fugir disso.
Professor: Não. Nós vamos ver como isso é explicitamente tematizado nos textos de Nietzsche,
quer dizer, para que eu possa falar, para que eu possa compreender o que está acontecendo,
preciso enquadrar os acontecimentos com a ajuda de determinados elementos, que são elementos
de identificação inclusive. É para isso que eu preciso de substantivo, adjetivo, sujeito, predicado,
agente, paciente, causa, efeito. Ou seja, as regras fundamentais da gramática da nossa linguagem
tem essa função identificatória, por exemplo, para que eu possa falar: "isto é uma apostila", eu
preciso que eu já esteja operando com um conceito qualquer que produza identificação, ou seja, é
preciso que eu esteja trabalhando com o conceito de substância, ou para que eu diga: "o livro é
azul", é preciso que eu esteja de novo trabalhando com conceitos a partir dos quais eu torno
possível para mim mesmo congelar, fixar, estabilizar o fluxo das minhas percepções, a ponto de
identificar alguma coisa como idêntica a si mesmo, ou seja, poder identificar algo como o livro ou um
livro, ou qualquer coisa assim. Sem que eu tenha esses conceitos fundamentais não posso, sequer,
estruturar uma determinada ordem de realidade cognoscível para mim; para que eu opere essa
estruturação eu preciso de esquemas, de princípios, e exatamente os mais fundamentais desses
princípios são aqueles que estão depositados na estrutura lógica da nossa gramática. E aqui
Nietzsche está mobilizando dois: a diferença gramatical que é fundamental para a proposição
atributiva entre o sujeito e o predicado, e a categoria de causa e efeito, a gente e paciente. É com o
auxílio destas categorias que Descartes interpretou o fenômeno do pensamento e pôde extrair a
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preposição "eu penso" que, para ele, era uma "certeza imediata", mas que, para Nietzsche, é um
raciocínio, o resultado de um raciocínio. Ora, se para Descartes o "eu penso" só poderia subsistir
porque justamente ele não era um raciocínio, mas uma certeza imediata, uma intuição do
pensamento; e se nós descobrirmos que ele não é intuição, mas sim o efeito de um raciocínio, então
a certeza do cogito está desqualificada. Percebe-se então que o esquema mental seguido por
Descartes é mais ou menos o esquema da causalidade; há uma fenômeno que é pensamento e
para toda e qualquer tipo de atividade tem de se pensar necessariamente um agente, logo eu
penso. Bom, vamos prosseguir?

"Mais ou menos segundo esse esquema o velho atomismo buscou, além da "força"
que atua, o pedacinho de matéria onde ela fica e a partir do qual atua, o átomo;
cérebros mais rigorosos aprenderam finalmente a passar sem esse "resíduo de
terra", e talvez um dia nos habituemos, e os lógicos também, a passar sem o
pequeno "isso" (a que se reduziu, volatizando-se, o velho e respeitado Eu)."

Então aqui, de novo, é mais uma provocação final. Ele está querendo dizer que o próprio atomismo
necessitava, justamente como suporte material da força, o átomo. Então, o átomo era esse princípio
elementar de unidade de que se compunha todo o universo. Então, a unidade elementar e última a
partir da qual toda força atua são os átomos.
Quando ele diz: "cérebros mais rigorosos", está se referindo aqui precisamente aos físicos e
matemáticos e, em especial, a Boscovich, um matemático croata que Nietzsche julgava ser polonês.
Mas o que Boscovich dizia? Dizia o seguinte: "Não é necessário, do ponto de vista da física e da
matemática, postular para força nenhum suporte material", ou seja, os físicos e matemáticos podem
muito bem prescindir do suporte material atômico e mesmo assim continuar trabalhando com a
noção de força e de campos de forças. Isso concerne diretamente ao coração da sua pergunta.
Vejam, para que se possa trabalhar com sentido no domínio da matemática e da física, não é
necessário que eu pense na unidade elementar da matéria ou do átomo, eu posso prescindir de
uma unidade elementar da matéria e ainda assim continuar trabalhando com sentido com a noção
de força e com a noção de campos de força. Ou seja, não é preciso de suporte material nenhum, eu
não preciso encontrar nenhuma unidade última a que eu tenha que reportar o conceito das forças
atuantes em um determinado campo.
Ora, se não preciso do átomo para que preciso do "eu", ou para que preciso do "isto"? Em última
instância, para que preciso deste suporte, desta unidade derradeira, que funciona como suporte ou
substrato do agente na ação? É porque que eu preciso desta unidade garantida pela função
elementar do sujeito da proposição. Ou seja, da mesma forma como os matemáticos, os físicos, os
cérebros mais rigorosos, prescindiram da unidade elementar do átomo, talvez os lógicos possam
prescindir da unidade elementar do "eu", ou seja, desse resíduo de terra que é sustentáculo da
proposição. E aqui eu volto a sua pergunta: será que os lógicos podem prescindir disso? A
esperança é que talvez venha um dia em que eles possam passar sem o "isto" no qual se volatilizou
o antigo e respeitado "eu". Aqui, na minha opinião, Nietzsche não está propondo simplesmente que
os lógicos abram mão da noção de sujeito; o mais fundamental aqui é, ao invés disso, compreender
que aquilo que os lógicos têm que abrir mão não é da noção de sujeito, mas das superstições
metafísicas da noção de sujeito. Ou seja, desta idéia de sujeito como unidade substancial. Vale
dizer, aquilo que os lógicos têm que abrir mão é de toda esta - por isso o sentido da primeira
provocação -, ganga metafísica que a lógica assume ao trabalhar irrefletidamente com essa noção.
Comentário: E pode até continuar usando, mas sabendo...
Professor: Sabendo que é pura função. Ou seja, sabendo que por detrás desta função não se
esconde nenhuma substância.
Comentário: É só uma função gramatical.
Professor: Exatamente. Logo, o que está em discussão aqui? Que este "eu" não é a alma, ou seja,
que este "eu" não garante nenhum princípio de unidade espiritual, que esse "eu" é, repito, uma
função da gramática.
Comentário: Por conseguinte, a própria alma então...
Professor: Por conseguinte a própria alma, tanto quanto o átomo, eles são da mesma natureza,
percebem? Todos eles são travestimentos desta função elementar de unidade identificatória.
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Pergunta: No fundo nos perguntamos: e daí, "quem somos nós?"


Professor: É exatamente essa a pergunta: "quem somos nós?" essa pergunta decorre
necessariamente do que nós estamos vendo aqui: "Nós somos necessariamente aquele que nos
desconhecemos", esse é no fundo o resultado geral deste movimento. Por quê? Porque nós só
podemos saber a nosso próprio respeito a nível da consciência, porque a consciência está toda ela
estruturada sobre a gramática da linguagem, por conseguinte, aquilo que nós sabemos de nós
mesmos diz respeito unicamente a essa superfície aonde se enraíza e até onde, e somente até
onde, atua o pensamento consciente. Logo, tudo o que nós sabemos de nós são esses efeitos de
superfície. De fato, aquilo que se passa no nível de profundidade maior, nós desconhecemos.
Pergunta: Então, também não é possível conhecer?
Professor: Sim, é possível conhecer. Veja que você está tocando com o dedo nos problemas que
Nietzsche está querendo tratar; é possível conhecer sim, só que você tem que renunciar à ilusão de
que esse conhecimento seja o conhecimento que corresponda a uma espécie de estrutura
ontológica do real, ou que seja capaz de conhecer fundamentalmente aquilo que você próprio é.
Esse conhecimento é possível, é realizável. Quando ele está falando dos "cérebros mais rigorosos"
está falando justamente da física e em especial da física que se funda na matemática, nos princípios
mais gerais da mecânica, etc. E todo esse conhecimento é possível e ele é real, se faz
efetivamente. O grande problema é que os lógicos, assim como os metafísicos têm pretensões
maiores, pretendem que o seu pensamento, que as teorias gerais da ciência, correspondam à
estrutura ontológica da realidade. E tudo que está se passando aqui é que o termo "realidade" só
pode ser usado entre aspas, porque não tem nenhuma garantia de que eu fale alguma coisa que
corresponda efetivamente à natureza do real, ou seja, à estrutura do real porque tudo aquilo de que
eu falo é predeterminado, prefigurado pela estrutura lógica do meu discurso. Eu não posso pensar
senão do ponto de vista do pensamento consciente.
Pergunta: Mas isso no nível da gramática não no nível do significado?
Professor: É, as regras são tanto sintáticas quanto semânticas. Veja, se você quiser construir uma
teoria qualquer sobre o quer que seja, você tem que estabelecer em primeiro lugar regras
semânticas para que você se faça inteligível e obviamente você tem que estar trabalhando com a
linguagem que obedece uma certa sintaxe. Então, é óbvio que você pode formular a teoria que você
quiser, mas você tem que ter pelo menos minimamente a garantia de que você só procede diante de
certas regras, que você necessariamente obedece, do contrário o teu discurso não tem nenhum
sentido. Lógico que existem margens de interpretação, margens de ambigüidade, mas há no fundo,
atuando permanentemente, regras que determinam o sentido da sua enunciação e tornam
sintaticamente possível essa enunciação.
Pergunta: Por que gramática e não linguagem?
Professor: Porque a linguagem é composta de vários elementos, dentre os quais a gramática está
presente. Neste caso a gramática diz respeito à sintaxe fundamental de uma língua; é por isso que
ele insiste aqui no caráter normativo da linguagem do ponto de vista dos princípios da articulação
das proposições. Além do que você não tem necessariamente que se limitar naquilo que é dito, a
linguagem pode ter outras modalidades que não uma enunciação discursiva. Por exemplo, a
linguagem gestual, a postura corporal, a dança, tudo isso é linguagem, linguagem entendida nesse
sentido aqui como sistema de representação, de signos.
Comentário: Que não é a gramática.
Professor: Exato. Por exemplo, se você faz uma linguagem de gestos, você não está
necessariamente operando com a gramática, está operando simplesmente com regras, aí sim são
semânticas...
Pergunta: Mas você vai precisar da gramática depois?
Professor: Sim, mas nesse momento você não está trabalhando a gramática.
Comentário: É como o sonho, tem uma linguagem... mas quando você vai falar, você já está usando
a gramática.
Professor: Exato, a gramática aqui está sendo entendida como o conjunto daquelas regras e
funções que determinam o modo de se construir as proposições no interior de uma linguagem. É
nesse sentido. A gramática possibilita o conhecer, o tornar consciente, e para aflorar à consciência
será na estrutura lógico-gramatical do pensamento. Pensar é isso. Quando você toma consciência
já é informado pela estrutura lógico-gramatical do pensamento.
Pergunta: Então, conhecer é de um determinado jeito?
47

Professor: Sim, e só deste jeito, senão, não é conhecer; o que não quer dizer que não seja nada,
esse é o problema.
Pergunta: Mas nós precisamos traduzir nas formas da gramática...
Professor: Claro. Se você não traduzir nas formas da gramática, literalmente você não pensa, isto é,
o pensar consciente é um pensar necessariamente lógico-gramatical.
Comentário: Acho que é por isso que Descartes deu tanta importância...
Professor: Sem dúvida. Eu estou perfeitamente convencido de que se nós não tivéssemos passado
por Descartes e por Kant essa argumentação ficaria um pouco no vazio, porque Nietzsche está
supondo permanentemente esse diálogo. Nós vamos ver isso agora com base no texto.
Pergunta: Mas, ele supõe - desculpe estar insistindo -, que existe algo para fora da linguagem? Ele
aí não recai num dualismo revisitado? Um da verdade verdadeira e outro da verdade
gramaticalmente construída?
Professor: Veja que coisa interessante que você está perguntando. Nós vamos ver esse assunto
aqui e agora com base no texto. Isto que você está perguntando é a pressuposição fundamental do
idealismo, ou seja, nós conhecemos os fenômenos, mas aquilo que não é fenômeno, ou seja, as
coisas em si mesmas nós não podemos conhecer. Isso é Kant. Kant diz isso desde a primeira até a
última linha da Crítica da Razão Pura. Aquilo que nós conhecemos é o que aparece para nós, e isto
é fenômeno para nós, segundo as regras de estruturação do espaço e do tempo e das categorias do
entendimento, como vocês já viram. O que as coisas são nelas mesmas, independente do modo
como elas aparecem para mim, isso jamais eu posso conhecer.
Onde Nietzsche está querendo chegar aqui? Ele está querendo chegar a um passo radicalmente à
frente de Kant dizendo: "A própria idéia de se pensar na separação entre as coisas tal como elas
seriam nelas mesmas e as coisas tal como elas aparecem para mim, ou seja, a própria idéia
tradicional que vem lá desde a Grécia, desde Platão, fazer uma distinção entre essência e
aparência, isso é ilegítimo, isso não tem nenhum sentido. Eu jamais poderia estabelecer esta
diferença porque eu só posso pensar em termos da estrutura lógico-gramatical. Então, "coisa em si
mesmo" e "fenômeno", essência e aparência, verdade e aparência, etc, tudo isto é uma
diferenciação ilegítima, é uma imensa confusão, porque eu não posso jamais falar com sentido, ou
pensar em poder estabelecer uma distinção entre aquilo que é a essência objetiva e aquilo que é
aparência. Por quê? Porque todo o pensar é aparência. Todo pensar já se constrói a partir das
formas e dos princípios da lógica e da gramática, então a própria distinção onde se funda o
idealismo de Platão a Kant é uma falsa distinção, não existe possibilidade de se ultrapassar o nível
da aparência.
Ou seja, usando o vocabulário provocativo do Nietzsche, essa diferenciação entre aparência e
realidade é uma diferenciação ilegítima, não existe realidade, só existe aparência, não existe
verdade, só existe o falso. Ora, se não existe verdade e só existe o falso, então não existe mais o
falso, porque como os termos se definem simplesmente um por oposição a outro, se eu digo que
não existe mais realidade, então eu digo que não existe mais falsidade também. Eu não posso dizer
que existe a objetividade e aparência, só existe aparência. Tudo é aparecer. Nietzsche vai dizer:
"Tudo é perspectiva, cada um vê o mundo a partir do ângulo próprio da sua perspectiva", só que
perspectiva não está sendo pensada aqui perspectiva de um sujeito concreto, individual, mas
macro-perspectivas culturais, grandes modalidades de interpretação do mundo segundo categorias
de uma linguagem comum - aquilo que você estava perguntando. Isso nós vamos ver ponto por
ponto.
Fragmento 40(20) de agosto/setembro de 1885
Retomemos os Fragmentos Póstumos, página 7. Agora nós faremos uma seqüência. Eu estou
lendo o fragmento 40 (20) de agosto/setembro de 1885.

"Sem considerar os governantes, que ainda hoje acreditam na gramática como


veritas eterna e conseqüentemente como Sujeito, Predicado e Objeto, ninguém
mais é hoje tão inocente para estabelecer, a modo de Descartes, o sujeito ‘eu’ como
condição de ‘penso’...."

Isso é uma primeira passagem. Eu vou deixar um pouco de lado essa questão da provocação contra
os governantes aqui, isso é uma questão que interessa um pouco mais remotamente para nós. O
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que o Nietzsche está querendo dizer aqui é que a própria possibilidade de obediência e comando -
por isso os governantes que acreditam na lógica e na gramática - que todas as experiências de
obediência e comando supõem também a lógica e a gramática. Eu não vou tratar dessa questão
aqui, apenas eu vou tratar da segunda parte:

"... ninguém seria tão ingênuo a modo de Descartes para estabelecer o sujeito ‘eu’
como condição de ‘penso’; por meio do movimento cético da filosofia moderna
tornou-se-nos mais admissível o inverso, isto é, considerar o pensar como causa e
condição tanto do ‘sujeito’ quanto de ‘objeto’, ‘substância’, ‘matéria’: o que talvez
seja apenas um tipo inverso de erro.

Vejam, este texto é incrivelmente curioso. É atribuído a Descartes uma ingenuidade imensa que é
ter feito do sujeito a condição do pensar. A lógica de Descartes, nós vimos agora no aforismo que
nós examinamos, é aquela segunda a qual para toda atividade pertence um agente, ora o
pensamento é atividade, logo há que ter um agente do pensamento. Então, o sujeito ‘eu’ é condição
do predicado ‘pensamento’. Nietzsche diz o seguinte:

"o movimento cético da filosofia moderna tornou mais admissível o inverso, isto é, o
pensar como causa e condição tanto do sujeito, quanto do objeto"

Aqui se revela a utilidade de nós termos feito o nosso percurso por Kant. Nietzsche está tentando
argumentar nesse sentido, que o próprio desenvolvimento da História da Filosofia Moderna,
especialmente através das objeções céticas a Descartes, e ele está se referindo aqui de modo muito
específico a David Hume. Então, o desenvolvimento da Filosofia Moderna, via ceticismo, leva
justamente a uma inversão da lógica cartesiana: não é o sujeito que se apresenta como condição do
pensamento, mas é o pensamento que é causa e condição tanto de sujeito, quanto de objeto,
substância, matéria, etc. Se vocês se lembram de Kant, que nós analisamos, vai dizer precisamente
isto: ‘Eu penso’ não é a indicação de uma substância mas é exatamente a função lógica do
pensamento, de tal forma que o ‘eu penso’ se apresenta como a forma geral da consciência. Não
propriamente como condição do pensamento no sentido cartesiano do termo, mas exatamente
como uma função, como a função lógica do pensamento. Então, o próprio pensamento é que se
coloca como condição dessa função. Percebem? O argumento de Nietzsche é no sentido de
mostrar que a lógica do Descartes se encontra defasada pelo próprio desenvolvimento da História
da Filosofia e que o pensamento não é posto mais sob a condição de um ‘eu’ que é a sua causa,
mas exatamente este ‘eu’ aparece como tornado possível justamente por meio do pensamento
como uma função do pensamento. E não somente o ‘eu’, mas o próprio conceito de ‘objeto’, de
‘substância’, de ‘matéria’. E Nietzsche vai dizer aqui que não se trata de dizer que Descartes estava
errado e a tradição cética está certa. Porque isso envolveria um dogmatismo da parte dele. Ele
afirma, então: o que talvez seja apenas um tipo inverso de erro. Nós vamos ver o que ele quer dizer
com isso... talvez Descartes tenha feito um erro e nós estejamos fazendo um outro. Não quer dizer
necessariamente que lá estava a verdade e aqui o erro, ou que aqui está a verdade e lá o erro.
Talvez a gente esteja simplesmente trocando um erro pelo outro.

"Isto, no entanto, é certo: nós abrimos mão da ‘alma’ e conseqüentemente também


da ‘alma do mundo’, da ‘coisa em si’, do mesmo modo que de um começo do
mundo, de uma ‘causa primeira’. O pensar não é para nós um meio para ‘conhecer’,
porém para designar o acontecer, para ordená-lo e torná-lo manipulável para nosso
uso: nós hoje pensamos desta forma sobre o pensar: talvez amanhã de outro modo.
Nós não compreendemos mais propriamente como o ‘compreender’ teve que ser
necessário. Compreendemos menos ainda como ele teve que surgir: e se nos
vemos sempre forçados a tomar em nosso auxílio a linguagem e os hábitos do
entendimento popular, a aparência do permanente contradizer-se não depõe ainda
contra a legitimidade de nossa suspeita."
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Ou seja, o que está sendo considerado por Nietzsche aqui é que o pensar, especialmente o pensar
consciente, estruturado com base nas leis da lógica e da gramática não é um conhecer. O que ele
está querendo dizer com o pensar não é um conhecer? Ele está tocando a noção tradicional de
conhecimento que vem, desde os gregos até nós, como algo de desinteressado, o conhecimento
como contemplação, tanto quanto possível neutra, de um estado de fato, de uma situação objetiva.
Conhecimento como precisamente o contrário do desejo, do interesse, da inclinação, do apetite, da
paixão, o conhecimento como objetividade, ou como busca da objetividade, como, portanto
neutralização de todas as parcialidades, de toda parcialidade do interesse na imparcialidade do
objetivo. Ora, o que Nietzsche está dizendo aqui é que o pensar justamente não é um meio para
conhecer neste sentido, que não existe conhecimento neste sentido, que o pensar é a maneira que
nós temos de ordenar o real, designar aquilo que acontece, tornar o real calculável, manipulável,
previsível; ou seja, o pensamento é a maneira por meio da qual nós podemos introduzir nos
acontecimentos ou naquilo que vem a ser, naquilo que se passa, nós introduzimos ordem,
previsibilidade e, por conseguinte, possibilidade de manipulação. Então, o fim último do pensamento
e do conhecimento não é a cognição da estrutura objetiva da realidade e sim tornar a realidade,
para nós, manipulável, compreensível e previsível. Quer dizer, há uma certa função utilitária do
pensamento e do conhecimento.

"Também no tocante à ‘certeza imediata’, não é mais tão fácil nos satisfazer: nós
não reconhecemos ainda oposição entre ‘realidade’ e ‘aparência’’, nós falaríamos
antes de graus do ser - talvez preferivelmente graus da aparência - e azedaríamos
ainda mesmo aquela ‘certeza imediata’ de que nós pensamos e que,
conseqüentemente, pensar tem realidade, com a dúvida a respeito de que grau tem
esse ser;"

Na medida em que o nosso pensamento e o conhecimento que nele se apoia não é senão um meio
para designação e calculabilidade do real, então, nós não poderíamos mais falar com sentido numa
diferenciação entre realidade e aparência, tudo aquilo que nós pensamos, conhecemos é uma
aparência ordenada, ordenada por meio dessas categorias e processos mentais que são, em última
instância, lógico gramaticais. Logo, não existe realidade de um lado e aparência de outro, mas
existem graus de aparência. E mesmo esta pretensa realidade a que Descartes chega, isto é, a
realidade do pensar, talvez não seja mais do que uma forma da aparência. E aqui Nietzsche faz
uma experiência curiosa com Descartes. Vocês estão lembrados quando Descartes, nas
Meditações, que vocês leram, fala da possibilidade de um deus enganador ou de um gênio maligno?
Seria assim uma espécie de potência universal da falsidade? Então, Nietzsche para mostrar isso
que ele está dizendo agora, ele vai dizer: "bom, talvez eu possa argumentar com o próprio
argumento de Descartes".

"E azedaríamos ainda mesmo aquela mesma ‘certeza imediata’ de que nós
pensamos e que, conseqüentemente, pensar tem realidade, - que é exatamente
aquilo que Descartes queria provar - com a dúvida a respeito de que grau tem esse
ser; talvez fôssemos, como ‘pensamento de Deus’, de fato efetivos, mas voláteis e
aparentes como o são os arco-íris. Suposto que houvesse na essência das coisas
algo de enganador, delirante, mentiroso, nem mesmo a vontade, a melhor das
vontades de omnibus dubitare, à moda de Descartes, nos protegeria das ciladas
desse ser;"

Ou seja, se eu suponho que possa haver efetivamente um princípio falso, um deus enganador,
como fundamento último de tudo aquilo que é, então, talvez até o pensamento que eu tenho a
respeito da minha própria existência possa ser um engano, e não adianta eu querer duvidar de tudo,
do ominibus dubitare, porque é muito provável que este seja uma forma da ilusão, uma forma de
engano que esse princípio do falso produz.
Ele está querendo dizer o seguinte: é muito possível que nós sem questionar que sejamos de fato
efetivos, sem questionar que existamos, talvez essa nossa existência, tal como nós julgamos o
existir, não seja senão algo simplesmente aparente, como o arco-íris. O arco-íris não remete a
50

nenhuma coisa de real, sólida, subsistente, mas simplesmente um efeito luminoso. Então, vejam: se
nós admitirmos como admitiu Descartes, que talvez possa haver uma potência de falsidade na
essência das coisas, então quem é que garante que, na verdade, nós não somos nada mais nada
menos do que pensamentos de Deus? E se eu penso Deus como essa possibilidade universal do
engano, então ao pensar, por causa do pensamento, que eu sou e ao assegurar a minha própria
existência como objeto a partir do pensamento, talvez eu não esteja senão me enganando,
exatamente obedecendo a esta potência universal do falso e fazendo algo assim como se o arco-
íris, exatamente pelo fato de aparecer, possa reivindicar para si uma existência como algo concreto,
como algo substancial. Então, da mesma forma como o arco-íris não deixa de ser ou não deixa de
aparecer sem efetivamente ser alguma, muito provavelmente a ilusão cartesiana do ego é da
mesma natureza, ou seja, parece para mim que eu sou algo, mas na verdade eu não sou senão
uma pura superfície.
E o que Nietzsche está querendo dizer aqui é que no fundo essa pretensão do sujeito cartesiano,
esta pretensão do sujeito metafísico, é demasiadamente onerosa... Nós pretendemos obter para
nós, por força da concepção tradicional do sujeito, algo assim como um estatuto substancial e essa
substancialidade daquilo que nós somos seria dada precisamente pela consciência de si. E o que
Nietzsche está querendo mostrar aqui é que a consciência de si é só fachada, é só arco-íris. Quer
dizer, pretender tomar o arco-íris por alguma coisa efetivamente existente, que você pudesse tocar,
segurar, fixar na unidade de uma substância. Mas ele não é senão efeito visual.
É o que Nietzsche está tomando aqui metaforicamente, usando a imagem do arco-íris, para mostrar
exatamente o que somos nós quando nos pensamos substancialmente como consciência de si. Ou
seja, permanecemos no nível dos puros efeitos imagéticos visuais sem tocar nenhum teor efetivo,
nada que seja substantivo, substancial, embora tendo a ilusão de ser.
Comentário: E tendo a convicção de ser.
Professor: Exato. Essa convicção, segundo o que Nietzsche está dizendo aqui, é uma convicção
forte, fortíssima, só que não resistente a uma análise com os instrumentos da própria lógica. Eu
volto à sua questão, Nietzsche não está usando nada que não seja a própria lógica, entendeu? É
isso que se chama experiência do pensamento ou escândalo da razão: ele está refletindo sobre a
razão a partir da própria razão, sobre a consciência a partir da própria consciência; ele está
mostrando quais são os procedimentos lógicos por meio dos quais eu construo a minha teoria da
subjetividade. Ele está fazendo isso para quê? Para mostrar os limites, precisamente os limites a
que uma análise dessa natureza conduz, e para moderar, por conseguinte, as pretensões da
metafísica.

"Já na medida mesmo em que, na opinião de Descartes, tivéssemos efetivamente


realidade, nós deveríamos, precisamente como realidade, de algum modo tomar
parte naquele enganador e mentiroso fundamento das coisas e em sua vontade
fundamental: - basta, ‘eu não quero ser enganado’ poderia ser o meio de uma
vontade mais profunda, mais refinada, mais fundamental, que quisesse
precisamente o contrário, isto é, enganar-se a si mesma.
In summa, é de se duvidar que o ‘sujeito’ possa demonstra-se a si mesmo - para
isso necessitaria ele justamente ter um ponto de apoio firme fora dele mesmo, e
este falta."

Vou tentar explicar essas frases enigmáticas. Este in summa é definitivo em termos da crítica de
Nietzsche e ele está se voltando contra toda a tradição. Mas, antes de chegar ao in summa, eu vejo
o argumento contra Descartes. Ou seja, Descartes, ele próprio, admitiu a possibilidade de que
pudesse haver uma potência de falsidade na essência do Universo, no fundamento do Universo. A
idéia de um Deus enganador ou de uma gênio maligno seria a idéia de uma causa do Universo que
pudesse ser falsa. Ora, se eu admito que possa haver um princípio de falsidade na causa do real,
na causa daquilo que é, então quanto mais real eu for, tanto mais falso deve ser essa realidade, de
dentro do próprio raciocínio do Descartes. Quer dizer, então, se é possível pensar na figura do Deus
enganador, do gênio maligno como princípio de falso na origem do ser, então, quanto maior for o
sentimento de realidade que eu possua, tanto mais falso vai ser. Vale dizer, por conseguinte, que eu
não quero ser enganado, ou seja, o desejo, a busca incondicional da verdade e da certeza pode ser
51

uma forma da ilusão e talvez uma das mais eficazes formas da ilusão. Ora, o que é a ciência, o que
ela sempre quis? Exatamente certeza e verdade. É possível, então, que a vontade de verdade seja
o mais eficaz meio de engano ou de falsidade, o nosso desejo de conhecer pode ser a mais
prodigiosa faculdade de se iludir.
Pergunta: Mas por que ele troca por "enganar-se a si mesmo"?
Professor: Porque, veja, "enganar-se a si mesmo" é uma forma muito mais radical de engano do
que enganar os outros. Enganar os outros é algo que no fundo depende da vontade do sujeito,
enquanto iludir-se a si mesmo, enganar-se a si mesmo, é algo sobre o qual não necessariamente o
sujeito tem controle. Então, não querer se enganar de modo algum é exatamente o gesto inaugural
de toda a filosofia, um gesto que se torna figura histórica com um radicalidade extrema
precisamente no projeto cartesiano. Qual é a intenção fundamental do Descartes? Não quero me
enganar, eu quero chegar a alguma coisa que seja verdadeira, que não seja simples opinião, que
não seja simples aparência, que seja realidade, que eu possa dizer isso é assim necessariamente.
Isto é a intenção fundamental de Descartes. Ora, diz Nietzsche, talvez isto seja a figura mais
insidiosa da ilusão, não querer enganar-se de modo algum talvez seja a forma mais radical do auto-
engano. Por quê? Exatamente porque este não querer enganar-se de modo algum, significa a
crença fundamental na possibilidade do conhecimento da realidade.
Pergunta: Seria a crença na possibilidade da certeza que já conversamos?
Professor: Isso seria a crença na possibilidade da certeza acerca do real. Exatamente porque nós
temos essa confiança, essa crença, é que nós buscamos conhecer. O conhecimento é o resultado
desse impulso, por assim dizer, em direção à verdade. Ora, se nós aprofundamos a nossa crítica -
vejam a intenção de Nietzsche é aprofundar a crítica no sentido de prolongar aquilo que a própria
tradição da História da Filosofia faz. É por isso que é interessante eu chamar a atenção de vocês
para referência àquilo que é o movimento cético da Filosofia Moderna. Nietzsche não está dizendo
que ele está inventando isso, ele está dizendo que ele está simplesmente levando até às últimas
conseqüências aquilo que é o movimento mesmo da História da Ciência e da História da Filosofia,
ou seja, ele está dizendo: se nós levarmos às suas últimas conseqüências a crítica do
conhecimento, nós vamos chegar aonde? Precisamente na denúncia dessa confiança como ilusão,
ou seja, nós vamos chegar ao ponto de dizer que a crença na possibilidade da verdade é uma forma
do auto-engano. Vale dizer, é ilusório pensar que nós podemos conhecer com certeza alguma coisa.
Agora, vejam, a que grau de radicalidade conduz esta crítica que Nietzsche está fazendo. Diz ele
que é preciso que a crítica do conhecimento dê o seu último passo, que consiste na desconstituição
desse pressuposto fundamental do conhecimento, segundo o qual o conhecimento é possível, ou
seja, o conhecimento entendido como a possibilidade de apreensão da estrutura ontológica da
realidade. Ou seja, a possibilidade de diferenciar o que é realidade do que é aparência. Em termos
do vocabulário da tradição clássica, a possibilidade de estabelecer uma diferenciação entre aquilo
que é opinião e aquilo que é ciência, aquilo que é absolutamente certo e aquilo que é só aparente.
Nietzsche está dizendo que a ciência constrói teorias a partir de processos mentais que têm o
objetivo de estabelecer uma ordenação de fatos, de acontecimentos, com o objetivo de manipular.
Então, a linguagem científica é uma linguagem a partir da qual você pode construir séries,
ordenações, estabelecer relações de causalidade entre eventos e efetivamente construir
experimentos a partir desta ordenação. Ora, isso significa do ponto de vista do Nietzsche que são
técnicas de ordenação e de manipulação do "real", mas nem em função do seu sucesso, não em
função daquilo que ela efetivamente realiza a nível experimental, pode pretender ser mais do que é:
isto é, sistemas de signos. Então, a eficácia experimental das teorias científicas não garante a sua
verdade ontológica, garante pura e simplesmente a sua qualidade de ordenação e possibilidade de
manipulação do conjunto de eventos, nada mais. Então, não é porque a ciência dá certo que ela
seja o contrário da aparência; ela é simplesmente uma aparência como as outras.

"In summa, é de se duvidar que o ‘sujeito’ possa demonstrar-se a si mesmo..."

Está querendo dizer que a auto-reflexão da consciência sobre si não é suficiente para que o sujeito
se demonstre a si mesmo. Ou seja, a reflexão do sujeito sobre ele mesmo não dá nenhuma garantia
de que ele tenha tocado alguma coisa que seja real, que não seja simplesmente ilusório. Para isso,
diz ele, necessitaria o sujeito de algo firme, de um ponto de apoio firme fora dele mesmo. Como
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encontrar esse ponto de apoio firme? Como encontrar a garantia da passagem do mundo mental
para o mundo extra-mental? Percebem aonde conduz a radicalização da dúvida cética? É que eu
não sei se aquilo que eu penso, isto é, se aquilo que aparece para mim do ponto de vista dos
conteúdos do pensamento e do conhecimento, se isso corresponde a algo de real e existente fora
da mente. Eu não sei se existe mundo exterior ou não. Essa é a famosa dúvida cética a respeito da
realidade do mundo externo. Como eu só tenho o mundo mental, o que me permite afirmar que ao
conjunto das minhas idéias correspondem efetivamente objetos realmente existentes. Ou seja,
como é que eu posso diferenciar entre a realidade e a representação da realidade? Como eu
imagino que vocês saibam, todo o esforço de Descartes é justamente no sentido de vencer a dúvida
cética, ele queria dizer: "Não, eu posso chegar a algo efetivamente real e não simplesmente uma
idéia na minha mente". Qual é a primeira realidade a que ele chega?
Resposta: "Eu penso".
Professor: Ele mesmo, a existência do próprio pensamento. O que Nietzsche está dizendo aqui?
Resposta: Que isso é impossível.
Professor: É que a existência do próprio pensamento permanece dentro da realidade mental e, por
conseguinte, falta um ponto de apoio firme, fora do sujeito; vale dizer, o sujeito não se demonstra a
si mesmo enquanto realidade. Precisamente aquilo que seria necessário para que ele se
demonstrasse a si mesmo como realidade é um ponto de apoio que ele não tem, logo é como se
você tivesse dançando sobre a cratera de um vulcão, você não tem absolutamente nenhuma
segurança.
Fragmentos Póstumos 40(23)

"Sejamos mais cuidadosos que Descartes que se manteve preso à armadilha das
palavras. - (retomamos aqui a nossa reflexão sobre a linguagem) - Cogito é
decididamente apenas uma palavra: mas ela significa algo múltiplo: algo é múltiplo
e nós grosseiramente o deixamos escapar, na boa fé de que seja Uno."

Ou seja, o que Descartes fez foi simplesmente ingenuidade, ele se enfeitiçou pela unidade da
palavra cogito e interpretou como uno um processo que, na verdade, é múltiplo. No pensamento
existe uma multiplicidade de coisas que só nominalmente se deixa reunir na unidade da palavra
‘penso’. Descartes ficou enfeitiçado pela unidade da palavra e perdeu a multiplicidade e a riqueza
fundamental do seu próprio objeto.

"Naquele célebre cogito se encontra: - (e ele está enumerando então a


multiplicidade presente no cogito) - 1) pensa-se, 2) eu creio que sou eu que pensa,
3) mesmo admitindo que o segundo ponto permanecesse implicado, - (isto é,
mesmo admitindo que sou eu que pensa) - como artigo de fé, ainda assim o
primeiro ‘pensa-se’ contém ainda uma crença: a saber, que ‘pensar’ seja uma
atividade para a qual um sujeito, no mínimo um ‘isto’ deva ser pensado - além disso,
o ergo sum nada significa!"

Então, vejam, a multiplicidade daquilo que está encoberto pela unidade aparente da palavra ‘cogito’
ou ‘eu penso’: ou seja, em primeiro lugar, um fato, um processo que é o pensamento; em segundo
lugar a atribuição de uma subjetividade para esse processo, a atribuição de um ‘agente’ para o
processo, ou seja, ‘eu creio que sou eu que pensa’. Mesmo admitindo que isto realmente funcione
assim, mesmo admitindo que sou quem pensa, este ‘eu’ do pensamento já é um substantivo. Ou
seja, uma atividade para a qual o sujeito ‘isto’ deva ser pensado, uma certa função identificatória. E
é exatamente estes três passos, a passagem do processo para a interpretação do processo, por
meio da categoria identificatória do ‘eu’, do sujeito, é exatamente isso que torna possível aquilo que
Nietzsche toma cuidado em manter em latim o ergo, ou seja, a conexão que expressa o processo
lógico de inferência, o logo. Então, além disso o ‘logo sou’ nada significa.

"Mas isto é a fé na gramática, já são aqui instituídas ‘coisas’ e suas ‘atividades’ e


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nós nos afastamos da certeza imediata."

A interpretação que nós fazemos do processo do pensamento é inteiramente conduzida pelas


soluções lógicas da gramática, por conseguinte, nós não temos nenhuma certeza imediata, mas
uma operação de raciocínio, ainda que nós o façamos inconscientemente. Ou seja, ainda que nós
tenhamos a ilusão da imediatez e da intuição; na verdade, o que nós fazemos é um raciocínio
inferencial. Daí ergo, logo.

"Deixemos, pois, de lado aquele problemático ‘isto’ - (ou seja, a função de


substantivo, de sujeito da linguagem) - e digamos cogitatur como fato, sem
intromissão de artigos de fé:"

Vamos deixar de lado a voz ativa e vamos falar da voz passiva, em vez de falar ‘penso’ que induz a
inferência ‘eu penso’, como sujeito do pensamento, vamos falar do pensado, do cogitado, do ‘pensa-
se’, "como fato sem intromissão de artigo de fé".

"... dessa forma, nos iludimos novamente,"

Quer dizer, o argumento seguinte vai mostrar que nós nos iludimos do lado do cogito e do lado do
cogitatur,

"... pois também a forma passiva contém princípios de fé e não apenas ‘fatos’:"

Quais são os artigos de fé que contém a forma passiva?


Resposta: Eu penso.
Professor: Exatamente a mesma coisa, você continua trabalhando com base nas categorias
atividade, passividade, causa e efeito, exatamente as mesmas categorias tradicionais.

in summa, precisamente o fato não se deixa estabelecer desnudamente, o


‘acreditar’ e o ‘opinar’ estão introduzidos no cogito do cogitat e cogitatur:"

Quer dizer, tanto na forma passiva quanto na forma ativa, tanto do lado do ‘pensa-se’ quanto do
lado ‘ele pensa’ ou do lado ‘é pensado’, você encontra precisamente a mesma intromissão, diz
Nietzsche, de opinião e de crença. Vale dizer, por conseguinte, que tudo aquilo que você não tem
na proposição ‘eu penso’ é um fato; seja do lado do sujeito, seja do lado do objeto do pensamento
estão funcionando as categorias identificatórias, as categorias de substância, atributo, causa, efeito,
agente, paciente que são próprias da estrutura gramatical da linguagem.

"quem é que nos garante que nós, com ergo, não extraímos algo desse acreditar e
opinar, algo que remanesce: algo é acreditado, logo acredita-se em algo - uma falsa
conclusão!"

Quer dizer, no fundo o ‘penso, logo existo’, é simplesmente uma tautologia. Vale dizer, algo é
acreditado, logo acredita-se em algo, ou melhor, pensa-se, logo existe o pensamento.

"Por fim, já se deveria saber o que é ‘ser’ para retirar do cogito um sum, já se
deveria igualmente saber o que é saber:"

Então, como é que eu sei que eu sou a partir do pensar? O que Nietzsche está tentando fazer aqui
é radicalizar ainda mais a crítica cartesiana, ele vai dizer: "para que eu possa dizer ‘eu penso, logo
eu sou’, este ‘logo eu sou’ supõe que eu já saiba o que é ser para que eu possa dizer que ‘eu sou’.
Supõe igualmente que eu saiba o que é saber para que eu possa saber que eu sei. Está claro? Para
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que eu possa dizer: ‘eu sei com certeza que eu sou’, é preciso saber que eu saiba o que significa
saber, e é preciso que eu saiba o que significa ser. Ora, se eu tenho que supor tudo isso, aonde
está a certeza imediata do ‘eu penso’?

"- parte-se da crença na Lógica, no ergo sobretudo!, - (no logo, na inferência) - e


não apenas no estabelecimento de um factum! É possível ‘certeza’ no saber? Não
seria talvez certeza imediata uma contradictio in adjecto?

Ou seja, a certeza imediata não seria uma contradição nos próprios termos? Na medida em que
certeza é sempre certeza de algo, por conseguinte sempre mediato, jamais imediato?

"O que é conhecer, em relação ao ser? Para aquele que para tais questões já traz
consigo artigos de fé preparados, a prudência cartesiana não tem mais nenhum
sentido: ela chega tarde demais".

Para aqueles que, como Descartes, já trazem respostas prontas para estas questões, não tem mais
nenhum sentido a prudência de duvidar de tudo, justamente porque não é de tudo que ele duvida,
ele não duvida precisamente daquilo que é mais fundamental. E agora a frase que encerra esta
questão.

"Antes da questão do ‘ser’ deveria estar decidida a questão do valor da Lógica."

Sem você colocar isso em questão não tem sentido você proceder ao modo de Descartes. É isso
que eu chamo de desconstrução, vocês percebem que é uma desconstrução do percurso da
filosofia tradicional.

Fragmentos Póstumos 40(24)


Nós prosseguimos aqui com variações em torno do mesmo tema da desconstrução da certeza
imediata à moda de Descartes. Imagino que vocês tenham percebido e eu acho até que eu falei,
Descartes é o principal alvo, mas não é exclusivo. Vocês lembrem-se que ele está falando dos
céticos, dos idealistas, de Kant, quer dizer, de toda a História da Filosofia Ocidental. Descartes é na
verdade o alvo principal porque Descartes é considerado o precursor, aquele que instaurou
propriamente a Filosofia Moderna, o pai da Filosofia Moderna.

""Não se deve embelezar a ingenuidade de Descartes, como o fez, por exemplo,


Spir".

Spir é um historiador alemão da filosofia, que Nietzsche lia com muita freqüência.

"‘A consciência é imediatamente certa de si mesma: o ser do pensamento não pode


ser negado nem duvidado pois a negação ou a dúvida são justamente estados do
pensar ou da consciência, a existência deles demonstra, portanto, aquilo que está
colocado em questão, com o que conseqüentemente retira-se-lhes toda
significação’." Spir I, 26.

É impressionante como essa argumentação é contemporânea. Você não pode duvidar da


consciência porque a dúvida é um ato de consciência e, por conseguinte, ao exercê-la você
simplesmente repõe a certeza a cerca da própria consciência. Duvidar do pensamento é exercer o
pensamento, por meio de uma das suas figuras, logo a certeza da minha existência como
pensamento não pode ser posto em dúvida, isto é absolutamente indubitável. Se quiser traduzir em
termos de uma linguagem mais contemporânea, toda e qualquer dúvida a cerca da consciência é
impossível porque ela é um ato de consciência. Logo, a minha existência enquanto sujeito da
consciência é absolutamente indubitável.
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"‘Pensa-se’, - (e aqui o Nietzsche faz questão de conservar o latim) - ergo, existe


algo, isto é, ‘Pensar’."

Era isso o sentido de Descartes? Ou seja, a pergunta é: será que era precisamente isto que
Descartes tinha em vista? Com certeza, Descartes queria chegar precisamente ao algo indubitável.

"‘Algo imediatamente certo de si mesmo’ é sem sentido. Suposto, por exemplo, que
Deus pensasse através de nós, e nossos pensamentos, na medida em que nos
sentíssemos como causa, fossem uma aparência, assim o ser do pensamento não
seria negado ou posto em dúvida, sim, porém, o ergo sum. Senão ele teria que
dizer: ergo est."

Mais uma outra variação em torno da argumentação do próprio Descartes; ou seja, admitindo-se a
hipótese do gênio maligno, supondo-se que nós fôssemos pensamentos de Deus, já que nós
admitimos a possibilidade do gênio maligno, porque que nós não poderíamos admitir que, na
verdade, nós não seríamos propriamente enquanto sujeitos, mas seríamos puros pensamentos de
Deus? Então, se nós pudéssemos conservar a hipótese do gênio maligno, talvez a nossa existência
fosse uma existência enquanto pensamento de Deus, isto é, nós não estaríamos duvidando do
próprio pensamento, nós estaríamos duvidando da substancialidade do pensamento. Ou seja, nós
estaríamos duvidando do quê? Do ergo sum, quer dizer, do ‘eu’. Não é o pensamento que estaria
sendo posto em questão, mas o sujeito do pensamento.

" - Não há certezas imediatas: cogito, ergo sum pressupõe que se saiba o que seja
‘pensar’ e, em segundo lugar, o que seja ‘ser’: se o est (sum) fosse verdadeiro, ele
seria uma certeza fundada em dois juízos legítimos, acrescida da certeza de que se
possui um direito à conclusão, ao ergo, - portanto em todo caso nenhuma certeza
imediata."

Vocês, como bons leitores da Crítica da Razão Pura terão reconhecido aqui precisamente o mesmo
argumento de Kant. Kant diz algo semelhante contra Descartes, ou seja, se eu pretendo que ‘eu
penso’ é uma proposição que não seja simplesmente vazia, que não indique simplesmente a função
lógica da consciência do juízo, se ‘eu penso’, efetivamente, nos dá algum objeto, então, este ‘eu
penso’ teria que ser o resultado de um silogismo do tipo "tudo que pensa é, eu penso, logo eu sou".
Ora, mas se fosse isso a imediatidade se perde, porque um processo silogístico é uma processo de
inferência, é um processo discursivo e, por conseguinte, não se dá de modo imediato, nenhum
processo discursivo, nenhuma inferência se dá imediatamente. Ora, Descartes pretendia
exatamente que a consciência se dava imediatamente a si no ‘eu penso’, ela era transparente para
si. Não havia nenhuma opacidade, nem da parte do ‘objeto’, nem da parte do ‘sujeito’. Nós estamos
vendo aqui que para que ela pudesse ser uma certeza, teria que provir como conclusão de dois
outros juízos, e essa inferência teria que ser legítima, ou seja, eu teria que poder afirmar que tudo o
que pensa é, eu penso, logo eu sou. Ora, a primeira proposição ‘tudo o que pensa é’, não é
sustentável. Por quê? Por que eu não posso dizer que tudo o que pensa é? Porque senão eu teria
que dizer que todo o ser pensante é necessariamente existente, ou seja, todo ser pensante é causa
de si próprio. E evidente que isso é um absurdo. Nós, por exemplo, somos seres pensantes, e creio
eu que nenhum de nós aqui se considera ser necessário.
Comentário: Quem sabe um dia a gente pode ser...

"No cogito não há apenas um evento que é simplesmente reconhecido - isto no tem
não sentido! - porém um juízo a respeito deste evento determinado, - (Então, não se
trata de um fato, mas da interpretação do fato) - e quem, por exemplo, não
soubesse diferenciar entre pensar, sentir e querer não poderá sequer constatar o
evento."
56

Ou seja, quem não sabe já o que significa pensar, não pode dizer ‘eu penso’. Por que ele diria ‘eu
penso’ e não ‘eu quero’, ‘eu sinto’? É porque ele já sabe o que é pensar, logo, por conseguinte, não
é imediato, tem aí a mediação pelo menos desse saber anterior.

"E no sum ou est se encontra uma tal imprecisão conceitual, que com isso ainda
não está excluído o ‘torna-se’".

Ou seja, é possível que esse ‘é’ possa ser um ‘venha-ser’, um ‘torna-se’.

"‘Aqui ocorre algo’ poderia ser posto no lugar do ‘há algo aqui, aqui existe algo, aqui
está algo’."

Ao invés da percepção estática que brota desta função identificatória da substância, você poderia
pensar numa categoria de movimento. Se quiser pensar em termos de oposição tradicional, ao invés
do ser você pode pensar no vir-a-ser.

Fragmentos Póstumos 40(25)

"A crença na certeza imediata do pensar é uma crença a mais, nenhuma certeza!"

Trata-se, na verdade, sempre de artigos de fé e não de certeza.

"Nós modernos, somos todos adversários de Descartes e nos defendemos de


semelhante leviandade do duvidar. ‘É necessário duvidar melhor do que Descartes’.
Por toda parte onde há homens mais profundos, encontramos o inverso, o contra-
movimento contra a autoridade absoluta da deusa! ‘Razão’. Lógicos fanáticos
fizeram com que o mundo se tornasse um engano e com que somente no
pensamento fosse dado o caminho para o ‘ser’ para o ‘Incondicionado’. Ao
contrário: o mundo me causaria prazer, se ele devesse ser um engano; e os
homens mais perfeitos se divertem sempre a respeito do entendimento dos
sensatos".

Aqui ele está simplesmente fazendo uma terrível provocação a Descartes, ele está dizendo: é
precisamente por causa da crença que está depositada nestas categorias de identificação da lógica,
é que nós podemos estabelecer a diferença entre o mundo da aparência, da ilusão, do engano, e o
mundo da verdade. Vale dizer, a construção de um verdadeiro mundo, de um mundo estável,
estabelecido a partir de regras lógicas e gramaticais de identificação é precisamente uma forma ou
um modo como nós temos estabelecido a diferença entre a realidade e a opinião, entre o ser e o
aparecer. Ora, na verdade, diz Nietzsche, o mundo verdadeiro é o mundo metafísico, e se nós
tomarmos aqui o ponto de vista da não-metafísica, por exemplo, do ponto de vista do artista, o lado
do prazer se dá precisamente na dimensão do engano e não da dimensão estabilizadora do
conhecimento.
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Prof. Dr. Giacóia é especialista em Nietzsche, filósofo e professor da UNICAMP

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5 AULAS SOBRE NIETZSCHE


4ª aula
Oswaldo Giacóia Júnior
IFCH/UNICAMP

Introdução
Hoje nós vamos entrar em uma questão central, decisiva, para compreensão aprofundada do
problema que nós estamos examinando e espero termos a oportunidade de fazer uma explicitação
tão clara e tão exaustiva quanto possível desse nº 19; espero não cansá-los muito com um certo
tipo de jogo de vai e vem; no comentário que farei desse aforismo, vou voltar com alguma
insistência a certas questões que nós já vimos na análise dos aforismos e dos fragmentos
anteriores. Mas essa repetição não é simplesmente um amor obstinado pela repetição em si
mesma, mas acho que nós teremos a oportunidade privilegiada de ter diante dos olhos, de forma
muito viva, determinados tipos de procedimento que Nietzsche utiliza. Ou seja: gostaria de mostrar
para vocês, com uma certa abundância de detalhes, como é que Nietzsche trabalha, precisamente
nesta questão. Qual é a tática ou o procedimento que ele usa; e para que possa isolar esse
procedimento, precisamos vê-lo em ação em alguns momentos, para poder, comparando os dois
textos, mostrar como é o mesmo procedimento que está sendo usado. É por isso que vou ter de
voltar para Fragmentos, que nós já examinamos. Eu tinha dito a vocês também, que toda essa
questão que nós estamos vendo, na verdade, todo o nosso curso, tinha por objetivo a
desconstituição da unidade do sujeito fundada na unidade da consciência, que desembocava em
Nietzsche, em sua raiz última, numa filosofia da linguagem, numa crítica da linguagem. E hoje nós
vamos nos encaminhar decisivamente nessa direção e, se conseguirmos dar conta de tudo aquilo
que eu me propus para hoje, nós vamos ver esta ancoragem da crítica da subjetividade, da crítica
do eu, na análise da linguagem, que é uma coisa extremamente contemporânea. Boa parte da
nossa reflexão filosófica atual está voltada para uma análise da linguagem, para uma crítica da
linguagem. Estou me referindo agora não apenas à boa parte da tradição da filosofia analítica, mas
também à grande parte da chamada linha hermenêutica de interpretação, que se funda nesta
exigência prévia de uma análise da linguagem, de uma crítica da linguagem, como o modo próprio
de se dissolver pseudo problemas, ou seja, como é que uma crítica da linguagem pode evitar que
nós nos envolvamos com problemas que não são problemas, são simplesmente aparências de
problemas. De certa forma, portanto, o que quero dizer aqui é que pode-se encontrar nesse aspecto
particular da filosofia de Nietzsche, uma espécie de antecipação daquilo que vai ser a discussão
filosófica dos nossos dias.
Aforismo 19 de Além do Bem e do Mal
Bom, então, comecemos pela análise do aforismo nº 19.

Os filósofos costumam falar da vontade como se esta fosse a coisa mais conhecida
do mundo, mais ainda Schopenhauer deu a entender que a vontade era a única
coisa que nos era propriamente conhecida, conhecida por inteiro, de todo,
conhecida sem subtração nem acréscimo.

Bem, as primeiras frases do texto nos remetem a relação entre Nietzsche e Schopenhauer; e
aparentemente nós estaríamos, então, num outro domínio de investigação, que não aquele que nós
vínhamos examinando até aqui. Nós, no fundo, nos dedicamos a examinar a relação Nietzsche-
Descartes, Nietzsche-Kant, Descartes-Kant... Por enquanto não vimos nada relativamente a
Schopenhauer. Eu quero mostrar a vocês que, se Nietzsche no aforismo 17 e nos outros aforismos
anteriores, naqueles Fragmentos Póstumos que nós examinamos, se ele tratou do problema do
pensamento e, mais particularmente ainda, da unidade subjetiva fundada na imediatidade a si da
consciência, na substância pensante, agora vai examinar a questão com base na vontade. O que
estabelece a ponte, aqui, entre pensamento e vontade ou, se vocês quiserem, Descartes e Kant de
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um lado, Schopenhauer do outro, é, para Nietzsche, sempre a mesma questão, é que se Descartes
e Kant pensavam a substância ou o pensamento sobre o ponto de vista da unidade, se a unidade do
sujeito se fundava no pensamento, seja a modo cartesiano da substância pensante, seja a modo
kantiano da síntese originária da percepção, Schopenhauer está em busca da mesma coisa, isto é,
Schopenhauer também quer uma unidade, e esta unidade ele vai buscá-la precisamente na
vontade. Então, assim como, para Descartes, era o cogito, o "eu penso", quem estabelecia o
princípio de unidade, lá se encontrava o que Nietzsche está chamando de a única coisa
propriamente conhecida, a coisa inteira, sem acréscimo e nem subtração, Schopenhauer não vai
encontrar isso no pensamento, mas vai encontrá-lo na vontade. E vou, entre parênteses, de forma
muito breve, tentar mostrar, porque é que, para Schopenhauer, esta unidade não pode ser dada no
pensamento. Antes de fazer isso quero deixar claro para vocês qual é o elemento de ligação,
porque o próprio Nietzsche não deixa isso claro aqui. Nós estamos sempre, de certa forma,
gravitando em torno do mesmo problema, o da unidade, onde reside a unidade: de um lado no
pensamento, de outro na vontade; mas no fundo a categoria básica, aquilo que está sendo buscado,
aquilo que se trata de encontrar, de descobrir, é precisamente a unidade, a unidade fundante do
sujeito.
Pergunta: Posso colocar só uma coisinha? O Christopher Türcke, ele fala da unidade, em Nietzsche,
a partir da vontade de saber; e a partir daí derivando a idéia de uma multiplicidade, mas ele aceita
sem problemas que Nietzsche tem uma metafísica.
Professor: Mas isso é muito problemático. Nós vamos verificar aqui o horizonte último dessa
metafísica e mostrar até que ponto Nietzsche pode ir e o que é que ele pode dizer, em última
instância, e a partir de que limite ele não pode dizer mais coisa nenhuma. A partir de que limite a
sua crítica da metafísica necessariamente tem que se deter como que diante da sua última fronteira.
Este tipo de trabalho Türcke faz em parte, não completamente. Acho que nós vamos ter
oportunidade de caminhar, boa parte desse percurso, supondo a leitura do Türcke entre outros
comentadores; não sei quantos que vocês chegaram a ler, mas nós vamos avançar um pouco mais.
Então, peço a vocês um pouco de paciência, uma forte dose de benevolência, mas acho que a
gente chega até lá.
O que gostaria de ver, por exemplo, e agora já começo a fazer os meus saltos para trás, é que se
vocês forem no texto dos Fragmentos de Nietzsche, quando ele se referia a Descartes, na página
10, ele vai dizer: "Pensa-se, logo existe algo pensante". Aqui, desemboca a argumentação de
Descartes, mas não é a realidade de um pensamento que ele queria, pois ele queria, para além da
imaginação, atingir uma substância que pensa e imagina; quer dizer, Descartes queria encontrar
algo de real, algo de efetivamente existente, uma substância, ou seja, isso que o nosso texto aqui
está chamado "algo por inteiro", conhecido integralmente, sem nenhuma distorção. Como é que
Descartes conseguia obter isso, que poderia ser conhecido sem nenhuma distorção? Quando
eliminava todo e qualquer tipo de conteúdo do conhecimento e se reportava unicamente à forma do
conhecimento, à pura forma do pensamento. Ele dizia: independentemente de qualquer tipo de
conteúdo do objeto do pensamento, tudo aquilo que eu penso pode ser falso, mas eu não posso
duvidar do pensamento enquanto pensamento, porque duvidar do pensamento significa exercer um
ato do pensamento, e, por conseguinte, duvidar disso significa reafirmar o próprio pensamento.
Portanto, eu que penso, enquanto penso, sou; eu sou uma substância cuja essência ou natureza
consiste no pensar. Aqui está algo, diz Descartes, essa substância do pensamento, que eu não
posso negar sob pena de reafirmá-la. Então, Descartes encontrava aqui a realidade da qual ele não
precisaria nem acrescentar e nem subtrair coisa nenhuma, porque ela lhe dava ao mesmo tempo
uma espécie de indicativo de realidade plena, ou seja: um conhecimento de que ele não poderia
duvidar de forma nenhuma. Isto que o Nietzsche chama aqui de não apenas o pensamento, mas
uma substância.
Muito bem, nós vimos como Kant, na crítica que faz a Descartes, desconstitui a certeza dessa
substância. Kant vai dizer: Não, não há nenhuma substância. O que a proposição "eu penso", "eu
sou", me dá é simplesmente a forma vazia da consciência, essa função de síntese que eu tenho que
supor desde que haja qualquer pensamento; para que haja pensamento há que haver a unidade da
consciência, mas eu não tenho nenhum objeto, eu não tenho propriamente nenhuma substância,
nenhum dado, nenhuma coisa dada na proposição "eu penso". E Schopenhauer vai dizer, mais ou
menos, o seguinte: "Não, quando eu digo eu penso, eu não encontro nenhuma substância,
nenhuma coisa em si mesma. O que eu encontro quando eu digo eu penso? Ou aquilo que Kant já
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havia dito, isto é, a pura forma da consciência, a unidade de síntese, a unidade transcendental, mas
nenhum objeto; ou se eu encontro o objeto, se eu tenho alguma experiência do meu eu, enquanto
eu sujeito do pensamento, este eu que eu me represento como pensando, é uma experiência
empírica que eu tenho de mim mesmo."
Então a experiência que eu tenho a respeito da minha própria existência, é exatamente da mesma
natureza que a experiência que eu faço em relação a todo e qualquer outro objeto; ou seja:
experimento a mim mesmo como um objeto qualquer; tenho percepção de mim mesmo, como tenho
percepção de qualquer outro objeto. O que significa dizer, em última instância: eu me represento a
mim mesmo. Ora, se eu me represento a mim mesmo, então aquilo que a experiência de mim
mesmo me dá não é eu tal como sou enquanto coisa em si, mas tal como eu me represento, isto é,
eu enquanto elemento da representação. Logo, a experiência do eu, a percepção, a auto-
percepção, não me dá nenhuma coisa em si, mas apenas representações que tenho de mim
mesmo, por meio do meu sentido interno. Assim como as representações do sentido externo me
dão objetos no espaço, a representação do sentido interno me dá a representação de minha própria
existência no tempo. Então, eu não me apreendo tal como eu sou, digamos assim, enquanto
realidade em si independentemente da representação, eu me apreendo enquanto realidade
representada, isto é, no tempo. Ora, como o tempo é uma forma da sensibilidade, então o que eu
tenho de mim mesmo são percepções fenomênicas e não percepção de uma realidade
independente da própria percepção. Logo, o auto-conhecimento não me dá uma realidade sem
subtração e nem acréscimo; a percepção não me dá uma realidade plena independentemente do
sujeito cognocente, a experiência que eu tenho de mim mesmo fornece simplesmente fenômenos,
como o conhecimento que eu tenho dos outros, dos demais objetos. Schopenhauer vai dizer: Bom,
se a auto-reflexão, ou seja, se o conhecimento que eu tenho de mim mesmo enquanto substância
pensante ou enquanto eu pensante não me dá nada mais do que fenômeno, será que eu posso ter
acesso àquilo que não é fenômeno? Ou seja: aquilo que seria o "em si", independentemente da
representação? E Schopenhauer vai dizer sim. Só que isto não pode ser dado pelo pensamento,
mas sim pela vontade. Então, no querer, na experiência do querer, da vontade, eu tenho acesso
aquilo que é propriamente a coisa em si ou a essência do mundo.
Pergunta: Isso através da intuição?
Professor: Da intuição. Na verdade, a experiência, chamemos assim, por meio do que, eu tenho o
acesso aquilo que eu efetivamente sou, exatamente enquanto vontade, e não enquanto
representação.
Pergunta: O que é que ele entende por vontade?
Professor: Vontade não enquanto eu me represento um objeto qualquer, como objeto de uma
aspiração ou de um desejo, mas a vontade é exatamente aquilo cuja materialização é o meu próprio
corpo. Ou seja, o corpo é, tal como nós o vemos, objetivação da vontade. A vontade se faz objeto
no corpo. Ora, isso significa para Schopenhauer, que em todos os atos particulares da vontade, ou
seja: do ponto de vista das carências corporais e representacionais também, se expressa sempre
esse mesmo movimento, essa fratura interna da vontade, que se caracteriza precisamente como
vazio, como ausência, que tem que ser preenchida; como uma carência que tem que ser suprida,
mas cujo suprimento é absolutamente impossível. Por que? Porque essa fratura interna ou essa
carência é impreenchível; todo e qualquer objeto pelo qual eu satisfaça um desejo particular ou
singular, na medida mesmo em que eu o satisfaço, esse desejo se repõe sobre uma outra forma,
sobre uma outra modalidade.
Um Sofrimento ... Metafísico
Comentário: Por isso que a vida é um sofrimento...
Professor: Por isso que a vida é sofrimento. Então, para Schopenhauer, vontade é inevitável e
necessariamente sofrimento, e um sofrimento, por assim dizer, metafísico. Por que? Porque como a
vontade jamais pode ser satisfeita, posto que se ela fosse satisfeita deixaria de ser vontade; então,
a cada satisfação se reproduz a necessidade, a cada desejo satisfeito um outro desejo surge, e
assim infinitamente, nesse círculo infernal da vontade. A vontade é fruição, é necessário que haja
objetos particulares que satisfaçam certas necessidades, e é aí que vem o problema. Para usar uma
linguagem nossa, atual (para Schopenhauer, talvez, não tecnicamente correta), só que o objeto do
desejo que produz satisfação é, na verdade, uma simples aparência de satisfação. Porque essa
estrutura do desejo, definitivamente impossível de satisfazer, se auto-reproduz ao infinito. Então,
você tem um desejo, mas a medida em que esse desejo se satisfaz, você imediatamente tem um
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outro, e este outro satisfeito você tem um outro, um outro, um outro... porque é exatamente desejo,
a estrutura mesma do ser, é o desejo, é a vontade.
Pergunta: Agora, ele diferencia desejo de vontade?
Professor: Diferencia sim, mas não tecnicamente no sentido em que depois farão Freud, Nietzsche,
e mesmo até a psicanálise. Mas, sem dúvida, há uma diferenciação terminológica, inclusive, entre
Wiele e Begehren. Em alemão são duas coisas completamente diferentes; mas para os nossos
desígnios agora, talvez não seja muito interessante distinguir aqui desejo de vontade. Quer dizer,
vontade sempre com esse impulso para fora de si, para se satisfazer no objeto, mas ao mesmo
tempo realizando a experiência da satisfação e insatisfação, isto é, da satisfação com a reprodução
infinita da necessidade. Ou seja: uma satisfação que, na verdade, nunca é satisfação, senão apenas
aparência de satisfação.
A Vontade como Essência do Mundo
Pergunta: Então, essa vontade também não é algo da consciência?
Professor: Não. E é aí que nós chegamos no ponto fundamental. Para Schopenhauer a consciência
é apenas uma espécie de superfície daquilo que definitivamente é o homem e é o universo
enquanto vontade. Então, o fenômeno pelo qual nós temos acesso àquilo que é a coisa mesmo, isto
é, aquilo que é a essência do mundo, não é o pensamento, mas a vontade. É por meio do querer
que nós, de certa forma, mergulhamos e tomamos consciência da essência do universo, da
essência do mundo. Então, aquilo que constitui a essência do mundo e a nossa própria essência, lá
Schopenhauer vai encontrar, portanto, a unidade, (aquilo que Descartes buscara na substância
pensante). E é isso que Nietzsche está dizendo aqui. Então, essa primeira frase nos remete à
seguinte questão: Schopenhauer concordava com Kant, que era impossível sustentar o discurso de
Descartes, mas ele não duvidava - isso Nietzsche não diz, é eu que estou dizendo para vocês aqui,
para fazer a ponte - que fosse possível encontrar essa unidade metafísica. Apenas que, para ele,
esta unidade metafísica era dada na vontade e não no intelecto. E qual era a via de acesso
privilegiada para essa unidade metafísica do universo? Não a consciência, mas o corpo. O corpo
naquilo que ele de fato é, cada um dos nossos movimentos corporais, conscientes ou não, eles são
exatamente tudo aquilo que o corpo é; é vontade, é desejo, é impulso em direção à procura do
prazer e à fuga da dor.
Pergunta: Ele, então procura o corpo e não o intelecto?
Professor: Não, o intelecto é um instrumento do corpo. Agora, confundir esta unidade metafísica da
vontade com o intelecto é o erro do Descartes. Porque o intelecto tem caráter pura e simplesmente
instrumental; vale dizer, ele é um dos órgãos dessa objetivação da vontade que se dá no corpo.
Então, todos os nossos movimentos, voluntários ou involuntários, tudo isto que nós somos, diz
Schopenhauer, é vontade. E como é que eu tenho uma intuição disso? Uma experiência direta
disso? Como é que eu acesso de maneira direta a isso que me constitui mais essencialmente?
Precisamente por meio do corpo, da experiência que eu tenho do meu corpo, do meu corpo como
desejo, e de todos os movimentos do meu corpo, exatamente, como movimentos desejantes ou
volitivos.
Pergunta: Experiência direta, não representacional?
Professor: Não representacional. Na verdade, para fazer inteira justiça à pergunta da Amnéris - e
aqui eu vou ter que pedir de novo a benevolência de vocês -, há duas espécies de experiência de si:
você tem uma experiência do seu corpo enquanto um objeto da representação, exatamente como
eu tenho experiência de outros objetos da representação; eu posso me representar a mim mesmo, o
meu corpo, como objeto. Isso, então, é um acesso mediato, representacional ao corpo. Contudo,
tenho uma outra forma de relação com o meu próprio corpo, que não é a relação do meu corpo
como objeto de representação, ao lado de outros objetos, mas exatamente a vivência do meu corpo
enquanto desejo, vontade, carência. Esta vivência do meu corpo enquanto movimento volitivo,
enquanto desejo permanente, enquanto vontade, enquanto insatisfação, que se reproduz ao infinito,
não é algo que eu represento, mas algo que eu sou. E toda essa gama de movimentos que constitui
o meu corpo e que se expressam nele, não necessariamente passam pela esfera da consciência;
passa, por exemplo, pelo domínio intracelular, pela relação dos diferentes órgãos entre si, pelos
movimentos involuntários, e por todos aqueles outros investimentos pulsionais, impulsivos, que
estão, por assim dizer, às costas da consciência.
O Mundo como Representação da Vontade
Pergunta: A primeira intuição do Freud tem alguma coisa a ver com isso?
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Professor: Diretamente. Caso venhamos trabalhar Freud, uma das coisas que pretendo mostrar é
como o conceito de pulsão, em Freud, é, em grande parte, caudatário da concepção
schopenhaueriana de vontade; inclusive o modelo prazer/desprazer freudiano, manifestamente o
mesmo de Schopenhauer. Aliás, Freud diz isto e não é nenhum coelho que eu tiro da cartola, isso
está nos próprios textos do Freud. Concepção de prazer freudiano é uma concepção negativa de
prazer, precisamente a concepção schopenhaueriana de prazer como cessação de uma experiência
originária, prévia, necessariamente mais primitiva de sofrimento, que carateriza o mundo como
vontade. Daí a famosa frase schopenhaueriana: o acesso direto que eu tenho ao mundo, não como
representação, mas ao mundo como coisa em si, não é a consciência ou a relação sujeito e objeto,
mas é exatamente esse mergulho no interior do meu eu, enquanto um eu desejante, volitivo, e do
meu próprio corpo enquanto objetivação dessa vontade.
Então, se aquilo que pode ser pensado como coisa em si, como o que efetivamente é, como o que é
conhecido sem subtração nem acréscimo, não é representação, não é pensamento, mas é vontade;
então, esta vontade metafísica, à qual o pensamento schopenhaueriano tem acesso, é
necessariamente una; vale dizer, não submetida às categorias da representação. Ela é logicamente
independente das categorias da representação, porque é aí justamente onde se dá a multiplicidade.
De onde nós extraímos a experiência do múltiplo? Simplesmente, como é sabido, da combinação
entre o espaço e o tempo, que nos dá o princípio de individuação. Se a vontade é a coisa em si, se
a vontade é independente da representação, então a vontade não está submetida às categorias da
representação. Se ela não está submetida às categorias da representação, não está submetida ao
tempo e espaço, por conseguinte, não se pode falar em multiplicidade, mas simplesmente que é
uma e a mesma, no meu corpo, e em tudo aquilo que é. Então, todas as coisas que constituem o
universo são representações ou objetivações dessa vontade metafísica fundamental. Mas o
substrato do universo, se você quiser pensar dessa forma, é esta vontade una; e todos os seres
individuais, todas as espécies e indivíduos, tanto do mundo vegetal, quanto do mundo mineral ou
orgânico, tudo isto é esta vontade, enquanto ela é submetida ao princípio de individuação no espaço
e no tempo. Ou seja: tudo o que é, é objetivação ou representação dessa vontade metafísica.
Comentário: Parece que isto é uma pretensão tanto do Descartes quanto Kant e Schopenhauer,
através de uma unidade...
Professor: Maravilha, se isso chegou a ficar claro para vocês nessa frase, então vocês entenderam
precisamente onde é que Nietzsche quer chegar.
Pergunta: E qual que é a frase?
Comentário: Que tanto Descartes quanto Kant e Schopenhauer, na verdade, querem chegar no
mesmo ponto, que é a unidade metafísica.
Pergunta: E Nietzsche vai achar que não há uma unidade, é isso?
Professor: Olha, talvez fosse mais interessante a gente fechar o livro, e vamos continuar
conversando...
Comentário: Não, vamos ler, está muito interessante...
Professor: Estou brincando, mas é a operação de Nietzsche vai consistir justamente em mostrar
como isto que, para Descartes, Kant, Schopenhauer, etc., é o uno fundamental, na verdade não tem
nada de unidade, é uma multiplicidade metafisicamente transformada em um, por meio de uma
espécie de sedução irresistível da linguagem.
Pergunta: Mas para você fazer essa análise, você está baseando-se em que comentador ou essa
idéia é tua?
Professor: Não, não é original minha, vários são os comentadores que já trilharam o mesmo
caminho, ...
Pergunta: Porque, eu conheço pouco, obviamente, mas a camisa de força é o que faz a vontade de
poder, se ela não é o restabelecimento dessa unidade. E a coisa que li e fiquei mais perplexa que
Türcke - porque eu acho que ele realmente me deixou buscando o escândalo ptolemaico e me
deixou enlouquecida -, volta a propor essa unidade metafísica.
Professor: Volta. Vou ter que pedir a indulgência de vocês, nós vamos um pouco mais para frente
de onde Türcke foi.
Pergunta: Será que essa volta, que você está fazendo, não é possível a gente fazer? Retomando
via Jacob Burckhardt, que ele parte de Schopenhauer, ele explode, eu tenho a impressão que essa
vontade como multiplicidade dá, talvez, o caminho para Nietzsche?
Professor: Pode ser. O meu caminho é um pouco diferente, Amnéris; faço um outro percurso, mas
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acho que esse é possível. Acho que a intenção de Nietzsche é mais ou menos a seguinte:
Nietzsche quer chegar até o ponto mais recuado, a partir do qual nós, necessariamente, pensamos
e falamos tudo aquilo que nós podemos pensar e dizer. E aí sim eu acho que o Türcke tem razão
quando diz que no momento em que Nietzsche chega nesse ponto, a racionalidade faz a
experiência do seu escândalo. Escândalo no sentido bíblico do termo, "pedra de tropeço". Ou seja: a
razão faz a crítica da sua própria limitação; a vontade de verdade se reconhece como algo
problemático. E no que consiste esse escândalo? Consiste em que a vontade de verdade terá que
fazer a denúncia dos seus próprios limites, que são limites inevitáveis, que ela não pode deixar de
reconhecer, mas para além dos quais não pode prosseguir. Ela chega na sua extrema fronteira.
Porém, ela não pode deixar de exercer essa vigilância crítica em relação a si mesma e, por
conseguinte, auto-denunciar-se; mas, para auto-denunciar-se, tem que se valer precisamente
daquilo que está sendo posto sob crítica e sob censura. Vale dizer: a crítica da razão não pode ser
feita senão pela própria razão. E para que ela possa se pôr a si mesmo sob crítica tem que fazer
uso exatamente daquilo que ela está criticando. Essa é a aporia, esse é o dilema do qual a filosofia
do Nietzsche, na verdade, não pode sair; e é exatamente lá onde Nietzsche reconhece o seu
derradeiro limite, que não é o limite dele, não é o limite da filosofia de Friedrich Nietzsche, é um
problema invencível da razão, é exatamente a dialética da razão. E, para isso, acho que não há
outro caminho, aliás, pode até haver outro, mas acho este caminho, o da desconstituição das
evidências assentes na História da Filosofia, ou seja, a crítica da vontade e verdade, o mais
essencial. Que não somente é o mais essencial em Nietzsche, mas é aquilo que, a partir de
Nietzsche, será repetidamente praticado na História da Filosofia.
Pergunta: Eu fico ruminando sobre isso tudo que você está falando dos filósofos e me deixa, de
certa forma, angustiado, porque nenhum deles apresenta uma resposta completa. Porque, me
parece claro, cada um acaba enveredando por um único caminho, e não percebe o lado oposto. É
uma colocação manifestamente unilateral. Mais: o filósofo se identifica com o lado que ele escolhe e
ele é só aquele caminho, como o alcoólatra que é o própria vinho e não percebe que ele é o que
bebe. Se a filosofia é um espelho da vida ou uma tentativa de criar consciência da própria vida, essa
maneira de pensar não leva a lugar algum, porque sempre apresenta um caminho capenga. Então,
se olharmos Descartes, Kant e Schopenhauer, eles espelharam um lado só, e não viram o outro.
Professor: Concordo. Agora se você pega Nietzsche, nesse processo todo, o que Nietzsche
pretenderia dizer é, de alguma forma, isso que você está dizendo: "Olha, está vendo o caminho
deles? É unilateral, eles não percebem". Só que tem um complicador aí, a unilateralidade é
inevitável; então, a posição de Nietzsche se torna de extrema ambigüidade, porque ele está
denunciando a unilateralidade da História da Filosofia no seu conjunto, a partir da sua própria
unilateralidade. Compreende? Quer dizer, essa é a questão, a aporia interna. Mas eu proponho que
a gente, primeiro acompanhe aqui o percurso para ver se fica...
Objetivação da Vontade Metafísica
Pergunta: Eu não entendi Schopenhauer. Porque quando discutíamos Descartes e Kant, eu tinha a
impressão que no contato com o mundo o conhecimento estava no sujeito, ou seja, a consciência
conforme a existência etc... Quando você fala de Schopenhauer e fala dessa vontade e termina com
a frase, tudo o que é a objetivação dessa vontade metafísica; e aí eu pergunto se essa vontade
metafísica está dentro do sujeito ou se ela é representação de uma coisa que está no universo. Daí
me lembrou uma discussão de metafísica que já tinha sido feita por Descartes de que o ser humano
está no mesmo universo que os outros, e a vontade está dentro do ser humano. Para Schopenhauer
o ser humano é representação, ou é uma parte, sei lá, de um todo que está fora, - daí a gente
voltaria a pensar em Deus.
Professor: Você está colocando o dedo numa das feridas do pensamento de Schopenhauer; porque,
na verdade, para Schopenhauer, é isso mesmo. Essa vontade é algo que transcende a esfera dos
sujeitos individuais. Ou seja: cada ser existente é apenas uma espécie de fragmentação dessa
vontade única. Essa vontade única - estou usando mal o termo "fragmentação", mas é apenas para
dar uma idéia -, na medida em que se dá no espaço e no tempo, ao dar-se no espaço e no tempo
ela se individua. Por que? Porque espaço e tempo são princípios de individuação. E, sobretudo, se
você entende o princípio de causalidade, causa e efeito, como uma espécie de ação combinada
entre espaço e tempo, tempo e espaço combinados dão causalidade; então a causalidade enquanto
combinação de espaço e de tempo é o modo como esta vontade fundamentalmente única, essa
essência metafísica do universo, se diferencia em gêneros, espécies e indivíduos.
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Então, agora, para você ter uma idéia da profundidade das águas em que você estava navegando,
tudo aquilo que se individua, ou seja, tudo aquilo que se dá como objeto no universo, vale dizer,
portanto, todas as coisas que são, elas são formas de manifestação desta vontade metafísica. Se
você quiser, todas as coisas que são, os diversos gêneros e espécies de entes, são simples
aparência; essencialmente, eles são uma só e mesma coisa, a vontade, a vontade metafísica.
Então, a diferença que os entes, enquanto entes individuais, têm entre si é uma diferença
simplesmente superficial, ou simplesmente aparente; aquilo que eles são essencialmente,
fundamentalmente é a mesma coisa, é vontade.
Compaixão em Schopenhauer
Por isso, para Schopenhauer, o grande sentimento, o único sentimento, que no fundo dá acesso a
identidade entre tudo que é, é a compaixão, é a piedade. O que acontece na compaixão? Por que é
importante, para ele, fazer a análise desse sentimento psicológico em especial? Porque, para ele,
esse é um sentimento muito mais do que psicológico, é um sentimento metafísico. Por que? Porque
na compaixão, em alemão mitleid, quer dizer, exatamente, como compassio, - você conhece latim,
percebe muito bem o que significa isto -, quer dizer: eu não posso sentir a dor do outro, a dor do
outro é dor no outro e não em mim, e no entanto eu sinto a dor do outro como dor do outro. O
grande erro da análise da compaixão, para Schopenhauer, é que a compaixão seria um sentimento
por meio do qual eu sinto a dor do outro como minha dor; impossível, eu não posso sentir a dor do
outro como minha, porque essa dor não dói em mim. Então, o fenômeno psicológico da compaixão
só pode ser satisfatoriamente explicado, se eu faço uma experiência imediata, vivencial, de algo que
permite estabelecer uma correia de identidade entre o outro e eu mesmo, de tal maneira que a dor
do outro, no outro, é sentida por mim. Um mistério completamente inexplicado, a não ser que o
outro não seja outro a não ser em aparência.
Pergunta: Mas daí ele é radicalmente idêntico à Kant?
Professor: Isso só é compreensível a partir de Kant. O próprio Schopenhauer diz: "Minha filosofia
leva Kant para frente. Aonde Kant errou - claro que isso é Schopenhauer -, aonde a filosofia
kantiana demonstra suas insuficiências, aqui eu começo". Tanto é que o primeiro passo da filosofia
de Schopenhauer, é uma crítica da filosofia de Kant.
Pergunta: Então, mas para ele o ser humano está no mesmo nível de qualquer outro animal. Tem a
mesma importância, faz parte da mesma cadeia...
Professor: Você pode estabelecer uma hierarquia: há seres que são mais ou menos complexos...
No ser humano, por exemplo, essa vontade metafísica fundamental chega a representar a si
mesma.
Pergunta: Então, mas não mais importante, porque no Kant tem um diferenciação do ser racional do
não racional, não tem?
Professor: Sem dúvida. Para Schopenhauer esta vontade é una, é a mesma coisa. Então, todos os
seres que são, se diferenciam apenas do ponto de vista da aparência ou da representação,
substancialmente, metafisicamente, eles são o mesmo, vontade. E qual é o acesso que eu tenho a
isso? Por exemplo, o acesso pela via da compaixão. Há outras formas de acesso imediato, a
vontade; uma delas é a obra de arte, eu não vou entrar por aqui, aqui é um pouco mais complicado;
mas, o fenômeno psicológico da compaixão dá bem a medida de que maneira eu posso ter, não por
uma representação intelectual, mas por um acesso vivencial direto, intuitivo, a experiência da
unidade do universo como vontade.
Schopenhauer, Rousseau e Sartre
Pergunta: Schopenhauer lia Rousseau? Porque toda a teoria da compaixão, no Rousseau, é assim.
Professor: Sim, Schopenhauer era um sujeito de extraordinária erudição, e talvez tenha sido um dos
filósofos mais eruditos do seu tempo. Aliás, é por via dele que se torna mais conhecido, na Europa,
os textos orientais, especialmente a filosofia dos vedantas e toda a filosofia hindu.
Pergunta: Eu queria fazer uma pergunta e não tem nada ver com isso. Lembrei do Sartre na hora
que você fala da compaixão. A luta existencial do Sartre tem alguma coisa a ver com essa
impossibilidade...
Professor: Claro, tem a ver com a angústia que Schopenhauer desenvolve sobre o conceito de
vontade, mas, para Sartre, essa experiência da compaixão é dificilmente equacionada, em termo
schopenhaueriano, na medida em que, para Sartre, esse passo aquém da individuação que, para
Schopenhauer, é a experiência mística, não existe. Para Schopenhauer, essa vivência da
compaixão é uma experiência, por definição, mística; ela não passa por nenhuma teorização. Mas
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ela dá acesso a isso que é pré-individual, tomando a palavra "pré" aqui, no sentido metafísico; quer
dizer, ela é necessariamente anterior a toda e qualquer individuação; portanto, necessariamente
anterior a consciência, ao indivíduo empírico que nós somos...
Comentário: Ao sujeito e objeto.
Professor: Não se põe a relação sujeito e objeto aqui, porque a vontade não é, aqui, objeto para
nenhum intelecto, ela é ela própria, a partir do que se determina a diferença no nível da
representação do sujeito e objeto. Bom, fica mais claro um pouquinho, esse percurso do
Schopenhauer.
A Unidade dos Opostos em Nietzsche e nos Românticos
Pergunta: Posso só fazer uma última pergunta, mas é que eu preciso socorrer meu amigo Dornelis
naquela questão dele, porque, desculpe interferir, eu acho que essa questão da unidade dos
opostos só vai ter reposta, dessa forma que me apraz, pelos românticos; realmente, aí é uma
corrente da filosofia que tenta dar conta disso na idéia de uma unidade daquilo que é antagônico e
que não é preocupação do Nietzsche.
Professor: Pelo contrário, nós vamos ver como ele vai fazer exatamente a denúncia dessa unidade,
dessa pretensa unidade, a partir do seu enraizamento lógico-gramatical. O próprio problema da
crença na oposição dos contrários, é isso que no fundo Nietzsche vai colocar em questão. Ou seja:
por que é que nós pensamos que há contrários? E por que nós pensamos necessariamente que há
oposição entre contrários? Ou seja: por que nós não podemos prescindir de certas categorias, por
meio das quais nós estruturamos aquilo que nós pensamos? Por que nós temos que pensar
dialeticamente na oposição dos contrários? Por que nós temos que pensar necessariamente em
termos de sujeito e predicado? Por que nós temos que pensar em termos de causa e efeito? Quem
é que nos garante que com isso nós aprendamos alguma coisa assim como a estrutura ontológica
da realidade? Quem é que me garante que a realidade se dá em termos de oposição de contrários?
Ou seja: quem é que me garante que há contrários?
Comentário: Mas essa é a forma de compreensão da consciência.
Professor: Isso. Perfeito.
Comentário: E aí chegamos num ponto que realmente não dá para prescindir disso.
Professor: Eu estou quase convidando vocês a fechar o livro e vamos discutir livremente, porque é
isto, isto é a forma de compreensão da consciência. Mas é muito mais do que simples forma de
compreensão da consciência: isto é a forma de estruturação do pensamento no discurso.
Comentário: Do homem ocidental.
Comentário: Acontece que para os românticos essa oposição dos contrários, e mesmo a unidade,
não se dá com a consciência. Quer dizer, a fórmula deles é o além da própria consciência.
Professor: Sim, mas a questão do Nietzsche é: de onde eu falo, para poder sustentar legitimamente
essa pretensão? Qual é o estatuto do discurso pelo qual eu postulo esse caráter ontológico, que os
românticos pretendem, para oposição dos contrários? Senão daquilo que constitui, por assim dizer,
a espinha dorsal do meu próprio pensamento. Ou seja: o que é que me garante, em última instância,
que tudo aquilo que eu penso, que tudo aquilo que eu digo, não seja uma espécie de
antropomortização do universo? E mais ainda, para fazer justiça a tua pergunta: até que ponto essa
antropomortização do universo não é uma condição fundamental da vida? Até que ponto vida
significa necessariamente isso, ao menos para nós?
Comentário: Ou seja, escândalo ptolemaico para que possa existir vida.
Professor: É, pelo menos a nossa.
Comentário: Por isso que a vida é um acaso, é um acidente.
Professor: É isso mesmo. É com isso que eu gostaria de terminar o curso. Você não pode explicar,
porque para você explicar, você tem que lançar mão de todas essas estruturas cuja gênese você
está fazendo aqui. Explicar significaria a possibilidade de dar um passo para fora dessa camisa de
força, que é o discurso e o pensamento, dizer: "Olha, isso surgiu assim, assim, assim ..." Mas para
que eu possa fazer um discurso sobre isto é preciso que eu tivesse algum outro instrumento que
não fosse isso, o que eu não tenho. Entende?
Comentário: É pesada...
Professor: Pesada, é muito pesada. Eu tinha avisado antes. É muito pesado.
Pergunta: Como é esse acidente que eu perdi?
Pergunta: Ela diz: "Bom, então, nós existimos por acidente, por acaso; se a nossa vida depende
dessa espécie de antropomortização do real. Em última instância, sim; e este acidente é
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incontornável, porque para que eu pudesse removê-lo, ou seja, para que pudesse explicar qual é a
sua razão de ser, eu teria que ter algum acesso fora desse acidente; quer dizer, eu teria que poder
justificar por outro meio, que não um simples discurso e o simples pensamento, a existência do
pensamento do discurso; coisa que obviamente me é impossível; para que eu pudesse fazer isso,
eu precisaria ter um ponto de apoio fora do discurso, fora do pensamento.
Comentário: Nem se fosse um Deus enganador.
Professor: Nem que fosse um Deus enganador.
Comentário: Voltamos a estaca zero.
Pergunta: Mas, por exemplo, os estados de êxtases não seria uma saída?
Professor: Você vai ver que serão, para Nietzsche, mas eles são incomunicáveis.
Comentário: O problema é esse: calar a boca. Eu cheguei a essa conclusão... O grande achado é
ficar quietinho. Porque para os românticos também a unidade dos opostos não pode ser visível, é
um paradoxo.
Professor: Não. Não é calar a boca. É falar, falar, falar... até o fim. Mas com plena consciência de
que eu não estou dizendo o essencial.
Comentário: Eu não consigo, é dramático demais.
Professor: É, é esse o escândalo... Olha, se vocês quiserem uma expressão mais poética disso...
Comentário: De fato, se chega a um ponto que não dá para falar mais...
Pergunta: O inverso de tudo isto, também não é verdadeiro?
Professor: Como assim?
Comentário: Isso é pesado, isso é trágico, isso é terrível, nós somos um mero acidente, mas se nós
somos um acidente, nós não somos tão responsáveis assim, não precisamos...
Professor: É, isso Nietzsche chama da inocência do devir, inocência do vir a ser.
Comentário: Eu acho que a gente fica um pouco mais humilde diante das coisas...
Professor: Engraçado é que... se você quiser uma imagem poética disso, uma das que eu conheço
que expressa melhor, é do Fernando Pessoa. O filósofo é, mais ou menos, um fingidor, para
Fernando Pessoa; ele chega a fingir que é dor, a dor que efetivamente sente, entendeu? Quer dizer,
você não tem nenhum fundo, todo fundo é um fundo falso. Todo fundamento a que você chega é
necessariamente uma máscara; então, você retira uma máscara, encontra um fundamento, um
rosto, por detrás da máscara, mas aquele rosto que se descobre é uma outra máscara, e assim por
diante...
Comentário: Você vai chegar a anulação da dor.
Professor: Não, para Nietzsche é o contrário; você vai chegar à afirmação trágica da dor. A
anulação da dor é o que você tem em Schopenhauer, que é a vontade que renega a sua própria
natureza.
Comentário: Nietzsche, na verdade, faz a crítica do pensamento e da razão, é óbvio, mas ele não
coloca nada no lugar... Por exemplo, os românticos, eu vou pegar Rousseau; ele faz a crítica do
pensamento e coloca o sentimento como uma via de acesso a algo mais verdadeiro, a essência do
ser; Schopenhauer coloca a compaixão; existem outras faculdades que me levariam para algo mais
verdadeiro. O que Nietzsche faz é não colocar nada no lugar do pensamento. Então, ele faz a crítica
radical do pensamento, mas não tem uma outra faculdade que me levaria para essa experiência do
ser.
Porque a arte vai transformar essa tragédia...
Professor: Existe, digamos assim, a certeza irrecusável, para quem quer ser honesto consigo
mesmo, de que o pensamento e a razão não me dão o essencial, só me dão superfície, só me dão
máscara, só me dão perspectiva. Mas existe também a consciência incontornável de que eu não
tenho nada que não seja isso. Ou seja: eu tenho que saber que isso é só perspectiva e que não há
nada além da perspectiva.
Por isso, para Nietzsche, a arte aparece como uma experiência fundamental. Por que? Porque a
arte vai transformar essa tragédia, que é a existência absurda, a existência casual, não em objeção
contra a existência, não em denegação da existência, mas em transfiguração artística dela. Então,
no fundo, a arte, especialmente a arte trágica, toma essa experiência fundamental do absurdo e a
transfigura, ao invés de negá-la sob a forma, por exemplo, da denegação religiosa, da criação do
além, do metafísico, da outra vida; ou seja, daquilo que Platão e o cristianismo fizeram no Ocidente
de forma exemplar. Ao contrário disso, a arte glorifica precisamente o sofrimento, e a tragédia não é
senão a mais sublime das tentativas de transformar o sofrimento de objeção contra a vida em
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glorificação estética da dor. E aí sim, Amnéris, aí você vê o que há de visceral em Nietzsche.


Nietzsche é aquele que chega ao ponto de dizer: toda a filosofia não foi senão fuga diante do
sofrimento. Era preciso fugir desse absurdo insuportável. O quê inventaram os filósofos então? Os
grandes sistemas de metafísica. Por que? Porque os grandes sistemas de metafísica são formas de
se postular e acreditar numa espécie de mundo verdadeiro, que não é esse mundo da pura
transitoriedade, do sem sentido, do absurdo...
Comentário: E do corpo...
Professor: Exatamente. Esse mundo da alma, esta entidade substancial permanentemente idêntica
a si mesma, ou das formas de vida eterna, redenção, etc., enquanto que a cultura artística,
especialmente a cultura trágica, é esse mergulho, até as últimas conseqüências, precisamente na
finitude, na transitoriedade, na morte, no absolutamente casual, sem que isso sirva de objeção
contra a existência, mas justamente servindo de transfiguração, como eu disse, transformação disso
em obra de arte. Aceitação, mas não uma aceitação de pura resignação. Uma aceitação que
transforma a finitude, isto é, a dor, a morte, o absurdo, em objeto de afirmação.
Comentário: Constatação.
Professor: Mais do que isso, não significa simplesmente constatar, significa afirmar, querer...
Comentário: É mais do que aceitar, é afirmar.
Professor: É querer. Querer mesmo. É a única forma de você redimir a existência enquanto
sofrimento, é você querer a existência enquanto sofrimento. Não sofrimento bruto, vai dizer
Nietzsche, mas artisticamente vivenciado; sempre o mais clássico e claro é exatamente o ápice, o
apogeu do desenvolvimento da tragédia. Por isso que, para Nietzsche, os gregos, de alguma forma,
fornecem uma espécie de modelo, onde isso se faz realidade, do ponto de vista de uma macro
experiência, que é a experiência de uma cultura. Veja, nada do que eu disse até agora tem uma
relação direta com essas 3 linhas que eu li; relação direta tem, na verdade, apenas em função da
explicação da vontade como unidade metafísica, onde Schopenhauer pretende encontrar a essência
última do universo. Quer dizer, é lá onde Schopenhauer pretende ancorar a certeza absoluta a
respeito daquilo que é, essa unidade substancial ou metafísica.
Pergunta: Então, a negação é algo que só o homem pode fazer?
Professor: Sim, e só na ética. Na arte a vontade pode encontrar uma espécie de quietivo; pela
simples contemplação desinteressada do belo, enquanto pura forma, a vontade se aquieta, se
assossega, deixa de ser desejo, passar a ser simplesmente a contemplação sem interesse de uma
forma pura. Essa é a experiência da beleza. Então, na beleza, o puro sujeito contempla a pura idéia.
Mas acontece que a experiência do belo é fugaz; então, a vontade não se nega completamente,
mas se aquieta, por isso a arte, para Schopenhauer, é um quietivo da vontade. Quando é que a
vontade se nega? Na experiência da compaixão. Porque na experiência da compaixão a vontade
toma consciência de si mesma como vontade, ou seja: como impulso assassino e se auto-renega.
Como? Na ascese.
Comentário: Daí vira uma neurose.
Professor: Bom, para Schopenhauer vira santidade. O que é que faz o asceta? O asceta se nega a
si mesmo como corporeidade. Ou seja: ele obstrui as vias, as correntes mais poderosamente vitais
da vontade, que são a sobrevivência e a sexualidade.
Comentário: Volta ao velho problema.
Professor: Claro. Volta a negação da vontade.
Comentário: Mas, por outro lado, poderia se pensar e agir de outra maneira: não é necessário negar
a satisfação da vontade, pode-se aceitá-la sem satisfazer e contê-la. Isso só o ser humano pode
fazer pela consciência.
Professor: Isso é Nietzsche.
Comentário: E é Jung também. Com certeza essa mesma energia, se negada, vai buscar outra
saída. Ela não desiste do seu objetivo.
Professor: Nietzsche diz isso de forma absolutamente explícita em termos teóricos e avança ainda
mais: o fundamental para a cultura não é que a vontade represada encontre qualquer canal de
satisfação, mas que ela encontre um canal de satisfação que seja sublimação, ou seja: que seja
uma transformação qualitativa da sua matéria. No caso da arte, mas também da ciência, da
produção da cultura em geral. O que você pode ter é uma transformação, uma espécie de derivação
dessa corrente de força represada. O que Nietzsche faz, quando faz crítica da cultura, é denunciar
as formas de patologia, por exemplo, o ressentimento, que a gente vai tentar ver de forma mais
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clara.
Pergunta: Você chama isso de sublimação?
Transformar os seus Demônios...
Professor: Quem usa a palavra sublimação é especialmente um autor chamado Walter Kaufman; no
caso de Nietzsche, ele próprio usa algumas vezes a palavra sublimieren, mas no sentido químico da
palavra sublimação. O que é que significa a sublimação em química? Significa transformação de
qualidade de uma certa matéria ou composição de elementos.
Isso que eu estou dizendo, que isso é rigorosamente nietzschiano, esse é o programa de concepção
de cultura para Nietzsche, ou seja: ao invés da castração e da repressão no sentido mais corrente
da palavra; reconhecimento não somente da existência, mas da energia, do vigor dessas correntes,
e contenção, domínio, manutenção sob controle, tanto quanto possível. Ou seja: o programa é
tentar transformar os seus demônios em animais domésticos.
Comentário: Depois de animais domésticos em seres humanos.
Professor: É. Mas, veja, a pior coisa, para Nietzsche, é negar que sejam demônios.
Comentário: E aí dá uma teoria da cultura completamente diferente...
Professor: Completamente diferente. Isso aí a gente pode fazer um exame mais detido nisso, eu
posso trazer textos nesse sentido. Para Nietzsche o homem é tanto mais forte, quanto maior é a
quantidade de impulsos que ele consegue acolher, de certa forma unificar, manter sob o seu próprio
domínio. Ou seja: o homem forte não é aquele que renega aquilo que tem de impulsivo, perigoso,
destrutivo, condenável, mas exatamente aquele que consegue acolher isto como não condenável do
ponto de vista moral; mas sem cair no perigo oposto de uma espécie de libertinagem completa, de
total ausência de domínio.
Comentário: E essa concepção ética é específica do Nietzsche, é uma criação original dele.
Professor: Naquele momento sim. E eu queria só não deixar sem observação essa colocação do
Dornelis sobre a diferença fundamental entre Nietzsche aqui e Schopenhauer. Para Schopenhauer,
a questão é como a vontade é um impulso assassino - eu estou usando a palavra assassino aqui no
sentido forçado -, mas como a vontade é essa disputa pela matéria e portanto ela é
necessariamente violentação, para Schopenhauer; esta violentação é um ciclo infernal que não se
esgota, mas necessariamente se reproduz de forma intensificada. Então, a única possibilidade de
romper o inferno desse ciclo é quando a vontade se contempla a si mesma no espelho, por assim
dizer, da consciência. Vale dizer, por conseguinte, é no homem e, especialmente, no plano da ética,
que a vontade se vê a si mesma como violentação e se auto-renuncia. Ou seja: ela renega a si
mesma como violentação. Porque, se ela não se negar a si mesma, reproduzirá de novo o ciclo
infernal. Qualquer forma de auto-aceitação da vontade, significa reprodução do ciclo infernal de
violentação. Qualquer forma de satisfação da vontade significa reprodução da vontade. Então, só há
um meio de você impedir que o ciclo se reproduza: por meio da auto-negação; é o que faz a ética,
especialmente o que faz a ascese. Eu disse, na arte ela se aquieta, porque a arte é uma
contemplação desinteressada, mas a contemplação artística desinteressada não dura para sempre,
enquanto que o asceta ou o santo consegue isto, precisamente porque ele aniquila as duas
correntes mais vigorosas da vontade, isto é, a sobrevivência e a sexualidade.
Então, isto é Schopenhauer, por um lado. Agora, vejam, e apenas para fazer um pouco mais de
justiça à questão dela: para Schopenhauer esse ciclo infernal da vontade é completamente absurdo.
Por que? Porque eu não posso dar nenhuma explicação da essência do universo entendida como
vontade. Por que? Porque o que é que significa explicar? Explicar significa remeter um fenômeno
qualquer à sua causa ou à algo que possa funcionar como princípio de razão suficiente para
produção desse efeito. Isso significa explicar. Explicar significa dar a razão de ser. O que significa
dar a razão de ser? Precisamente ser capaz de encontrar um motivo, fundamento, causa, razão,
princípio de razão. Ora, o princípio de razão é uma das formas do princípio de causalidade, que por
sua vez só pode subsistir se eu fizer uma profissão de fé anterior, na combinação de espaço e de
tempo. Porque causalidade supõe necessariamente sucessão, sucessão supõe necessariamente
espaço e tempo. Ora, como espaço e tempo são formas da representação só podem valer para o
domínio do fenômeno e não para o domínio daquilo que não é fenômeno, mas coisa em si. Logo, a
vontade pensada como unidade metafísica ou coisa em si, não está submetida ao espaço e o
tempo, e conseqüentemente não está submetida ao princípio de causalidade, portanto, não pode
ser explicável. Logo ela é o absurdo completo. Então, o que fazer para fugir deste absurdo infernal?
Que a vontade se auto-renegue.
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Ora, o que vai acontecer no Nietzsche? Nietzsche vai chegar até onde chegou Schopenhauer e
dizer efetivamente: o mundo é vontade, é vontade de poder; efetivamente o que há é esta guerra,
este inferno da vontade, mas isso não é objeto de negação, e sim de aceitação. E eu preciso ser
suficientemente forte, valoroso, para Nietzsche, íntegro, para perceber que não há fuga possível
diante disso; ou seja: que todas as formas de negação deste dado fundamental de crueldade, é
precisamente uma maneira, velada ou manifesta, de fugir desse real. Ou seja: criar uma forma
qualquer de ilusão, de denegação disso. Schopenhauer por via da mística, outros por via de outras
possibilidades. Agora, como assumir, aceitar, viver isto? Como fazer com que isto não seja uma
objeção contra a vida? Como fazer com que a vida não seja uma objeção contra ela mesma? Para
Nietzsche, vai ser precisamente, transfigurando, ou seja - neste sentido que eu estou dizendo
químico da palavra -, sublimando. Partindo deste dado como dado fundamental e transformando
isso sob a forma da cultura.
Tudo É Perspectiva
Pergunta: Sabe o que me daria paz ao nível intelectual? É uma coisa que eu penso, ao contrário do
Jung - pode ser que a minha leitura seja até equivocada -, mas é a idéia de que há uma
multiplicidade de perspectivas, todas elas válidas, onde eu não tenho condições de falar para uma
pessoa que vive schopenhauerianamente que ela está equivocada, porque o ser dela expressa essa
vontade dessa forma. E eu acho que Nietzsche funda a possibilidade da multiplicidade das
perspectivas, mas, esta convivência light que eu estou querendo, é uma coisa de Jung, na leitura
que ele faz do Nietzsche.
Professor: Sei. Olha, esse é um problema sério, Amnéris. É uma disputa muito grande, inclusive,
dentro das interpretações do Nietzsche. Existem aqueles que defendem a seguinte posição, mais ou
menos, como a sua. Tudo é perspectiva, o universo é perspectiva, e por conseguinte as
perspectivas são, cada uma delas, justas no seu próprio ângulo. Ou vale dizer, todas elas são
injustas. Quer dizer, na medida em que você tem como conceito tradicional de justiça, sair fora do
seu próprio ângulo, para dar a cada um o que é seu em última instância; e como você não pode sair
nunca do seu próprio ângulo, toda perspectiva apreende um campo de visão, mas jamais o próprio
olho, então essa injustiça fundamental de toda perspectiva constitui cada perspectiva como
igualmente justa ou igualmente injusta. Essa é uma visão possível. Uma ampla, uma grande
corrente da interpretação de Nietzsche, diz exatamente isso; outros dizem o seguinte: bem,
Nietzsche diz tudo que há é perspectiva, toda perspectiva é necessariamente injusta inclusive a
minha, mas existe uma certa qualificação da minha perspectiva em relação as outras, e esta
qualificação é a seguinte: eu sou uma perspectiva que se sabe a si mesma perspectiva, enquanto
que os outros são perspectivas que se ignoram a si próprias como perspectiva. Então, porque eu
sei, que sou só perspectiva, e os outros se julgam mais do que simples perspectiva, então a minha
perspectiva é, de certa forma, mais justa do que a deles. Agora, (já falei anteriormente que nós
precisamos ir um pouco além disso), a minha pergunta é: em que medida uma perspectiva pode se
saber a si mesma como perspectiva?
Resposta: Na medida em que eu conheço as outras.
Professor: Isso...
Comentário: E é a realidade. Porque enquanto você está vendo a sua perspectiva, mas, um fato
acontece que sai da sua perspectiva, é assim uma realidade.
Professor: Mas como você pode dizer que algo está fora da sua perspectiva?
Resposta: Quando algo acontece que não cabe dentro dos parâmetros que vocês está colocando.
Professor: Não. Pense em um campo de visão: qualquer fato está dentro do campo de visão.
Comentário: E os outros não existem.
Professor: Claro. Agora, o problema é: como um discurso que diz, que tudo é perspectiva, pode
aspirar-se algo mais do que simples perspectiva, e por conseguinte poder dizer que, enquanto
perspectiva ele é superior ao outro.
Comentário: É exatamente o que o Jung fala dele.
Professor: Esse é um dilema nietzschiano, rigorosamente nietzschiano. O que eu acho, que pode
encaminhar uma resposta nessa direção, em termos de Nietzsche, seria o exatamente o seguinte:
só há perspectiva, não existe absolutamente nada que não seja perspectiva, até aqui eu posso
dizer, todo aquele que diz que há algo mais que simples perspectiva, deve exibir o seu título de
crédito. Ou seja: todo e qualquer outro opositor deve me mostrar que há algo mais do que
perspectiva. Enquanto ele não me mostrar que há uma teoria, que não seja perspectiva, a minha
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teoria vige. Ou seja, eu não posso dizer, que tudo aquilo que existe é necessariamente perspectiva
e que este discurso não é perspectivo, entende? Ou não?
Comentário: Eu penso que teria, mas pela sua expressão, eu não entendi nada ...
Professor: Veja, se eu disser, que o discurso que diz: tudo que existe é perspectiva, é
potencialmente contraditório. Por que? Porque ele está dizendo que há uma perspectiva que
descobre todas as outras como perspectiva, e que essa perspectiva portanto não é perspectiva.
Então, para Nietzsche escapar desse escândalo ptolemaico terá de fazer exatamente o trabalho de
desconstituição e dizer: eu desconstituo aquilo que se pretendia ser real, acesso à estrutura da
realidade, mostro que isso é perspectiva; daí eu digo: não há senão perspectiva. Aquele que
pretende que haja algo mais do que perspectiva, que desconstitua o meu discurso, de tal maneira a
mostrar que existe a possibilidade de um acesso ao real que não seja perspectiva.
Comentário: Eu acho que, por exemplo, o fenômeno não é uma forma de você...
Professor: Perspectiva? Claro, o fenômeno, o que aparece. O fato que você se referia é pura
perspectiva.
Comentário: Mas isso já melhora tanto! Já dá um banho de credibilidade, de democracia, tão grande
para o pensamento.
Professor: Para usar uma expressão que ela usou, eu não sei se vocês chegaram a ler em
Nietzsche: é preciso que nós reinventemos a atitude da modéstia. É preciso ser modesto a ponto de
saber que aquilo que você vê, é uma perspectiva de um ângulo. Agora, Nietzsche não está
entendendo aqui perspectiva simplesmente como o nosso campo de visão, que não é capaz de ver
o seu próprio olho, mas está entendendo perspectiva como também macro perspectiva, isto é,
perspectiva de uma cultura, como a gente vai ver aqui nesse texto. Eu esperava que a gente
terminasse de ver isso hoje...
Comentário: Então, e que toda perspectiva tem uma singularidade, tem uma forma de crescimento...
Professor: Isso.
Comentário: Isso é maravilhoso!
Professor: Isso. Toda perspectiva é de um ângulo, vai dizer Nietzsche.
Comentário: É um filme de Hithcock. Tem muitas perspectivas.
Professor: Tem. Em Hithcock tem. Nietzsche vai dizer: há infinitas perspectivas. Isso ele vai chamar
de o nosso novo infinito; vai dizer: o mundo se tornou infinito outra vez, depois que nós fizermos a
crítica da metafísica. Por que? Porque nós abrimos o espaço para a multiplicidade infinita das
perspectivas. É esse que é o nosso novo infinito, o novo infinito não é o infinito da metafísica, mas o
infinito da perspectividade; infinito não do além, não o infinito transcendente, mas se você quiser
uma construção quase absurda, o infinito da imanência.
Comentário: É como um círculo. São infinitos pontos possíveis.
Professor: É.
Pergunta: Então, como que é que ficaram os opostos, então?
Professor: Pois é, então, é uma outra forma de reflexão, que passa necessariamente por uma crítica
da lógica tradicional; os opostos só têm sentido se você, no caso do Nietzsche, se mantém sob o
círculo de validação da lógica tradicional, que acredita na oposição dos contrários, se você parte da
oposição dos contrários.
Novamente os Românticos
Comentário: Os românticos são espertos, pois quando chegam nesse ponto eles também abrem
mão do pensamento e falam: Bom, mas o que é essa unidade dos contrário, dos opostos? É o
espaço lúdico, diz o Schiller. É a fantasia. Quer dizer, ele saiu do nível da linguagem, senão eles se
tornam prisioneiros.
Professor: É isso que eu estava dizendo agora, há muito elemento de romantismo em Nietzsche,
muito mesmo. Está Schiller, mas outros, por exemplo, Novalis...
Comentário: Mas, então, Nietzsche também chega nesse espaço, nesse além, nesses opostos.
Professor: Isto.
Comentário: Só que os românticos fazem um caminho pela unidade dos opostos, eles acreditam na
unidade dos opostos.
Professor: E Nietzsche desconstitui.
Comentário: Nietzsche desconstitui e desde o começo está fazendo a crítica.
Comentário: Mas ele mesmo trabalha com os opostos, na medida em que...
Professor: Pode não trabalhar, esse é o problema. Aí é que está o escândalo. Se você quer pensar
70

e se você quer falar, você tem que pensar com essas categorias. Quer dizer, o grande problema é o
seguinte: razão não é alma, princípio substancial, razão é lógica e gramática. Aliás, é Logos. Então,
se a gente pensa, pensa assim; se a gente fala, fala desse jeito. Agora, o problema é este terrível
exercício de auto-reflexão da razão sobre si mesma. No caso do Nietzsche isso é claríssimo. Agora,
vejam, porque eu chamo isso de opostos, senão em virtude da minha própria perspectiva.
Comentário: Mas também pode ser pensada na perspectiva da vida que tem muitos opostos, como
agrião e cicuta no mesmo canteiro ou vida e morte ou gerar e matar etc...
Circumambulatio
Professor: Mas a vida provavelmente pode ser pensada também como complementariedade.
Comentário: Mas gente, espera um pouco, o inconsciente não compreende as coisas em termos de
opostos, compreende?
Resposta: Sim. Também.
Comentário: Não, mas ele não organiza. É com aquele quadro do Peticov das frutas sobre a mesa.
Não organiza. A consciência, ela compreende essa unilateralidade, em termos de opostos, ela
divide as coisas para compreensão, não é isso? Então, ela percebe que o inconsciente também está
num outro pólo oposto, dual dela.
Comentário: Mas ao mesmo tempo a consciência é parte do inconsciente. Porque, seguindo a
imagem do quadro do Peticov, as mesmas cores que estão no inconsciente estão na consciência,
porém organizadas.
Comentário: Desculpem, para Nietzsche, não há fatos, só há interpretação. Não existe o que ela
chama realidade, não existe o que você está chamando de inconsciente, e o que ele chama de vida.
Isso aí são todas projeções, interpretações. Aí a gente trabalha com isso como se fosse a realidade,
como se fosse o fato, mas isso não existe.
Comentário: Então, mas quem faz esta interpretação e coloca nesses termos é a consciência ou a
razão, é a maneira como você compreende tudo, não é isso? Então, tem uma outra coisa que é
invisível, ela só se torna visível quando passa pela razão.
Professor: Espera um pouquinho, tem uma outra coisa, quando você disse isso, você já usou de
novo todas categorias da consciência.
Comentário: Está vendo? Não tem como escapar.
Professor: O seu discurso foi até exatamente o limiar de onde é possível. Aí você diz: "Tem". O que
é tem? Ser, uma, outra coisa...
Comentário: Então, você só pode dizer isso quando experiencia alguma coisa que não dá para
expressar, como o sonho, por exemplo.
Professor: É isso mesmo. Vejam, portanto, para que nós possamos falar temos que identificar
coisas, seres, substâncias com atributos, propriedades, relações, e nós estamos de novo no nosso
confortável regime doméstico da gramática.
Comentário: Então, isso é uma linguagem da consciência, não é? É a maneira como a consciência
compreende as coisas. A consciência não pode fugir disso, não tem como.
Professor: É exatamente isso. Você mesma disse, é preciso organizar para compreender. É isso
mesmo. Você não pode fechar a janela dessa consciência e dizer: "Bom, agora eu vou ter acesso a
outra coisa". Porque a outra coisa já não é outra, ela continua sendo a mesma coisa.
Pergunta: A experiência com droga não seria uma tentativa de escapar disso?
Professor: Não sei, porque aí precisaria ver como você vai abordar isso. Se você vai tratar isso
através de experiência você já está dentro de uma certa categoria, que é uma categoria da clínica.
Agora, o que é que você efetivamente quer aproveitar da experiência com droga? Se for
absolutamente singular da experiência, de novo você cai no incomunicável. Isso não te leva
absolutamente a nada.
Comentário: Então, mas o que eu coloco seria uma tentativa de sair dessa prisão, desse mundo da
palavra, de máscaras... A droga seria uma busca...
Professor: Porque necessariamente isto tem que ser vivido só como prisão? Esse é o problema.
Comentário: Bom, mas o que a gente está sentindo aqui é isso.
Professor: Isto é prisão mesmo. Isto é uma camisa de força, isto é uma amarra, isso não é uma
camisa que você pode tirar ou um óculos que você pode trocar...
Comentário: Mas tem o corpo também.
Professor: Mas o corpo não necessariamente tem as mesmas limitações que você tem na
consciência. Isto nós vamos ver nesse texto aqui. A consciência necessariamente supõe uma
71

unidade, que é uma unidade estática; enquanto que a unidade do corpo é uma unidade dinâmica. E,
sobretudo, uma unidade da pluralidade.
Comentário: Por isso que você tem o Self no corpo.
Professor: Exatamente. Agora, eu queria só dizer uma coisa: é possível fazer a experiência da
camisa de força da linguagem, e mesmo assim brincar com ela. Ou seja: é possível você ironizar a
sua própria linguagem. Vale dizer, é possível você fazer a experiência da máscara como máscara; e
quando você faz uma experiência da máscara como máscara, você não tem mais a ilusão que tem,
necessariamente, de chegar num rosto. E porque você tem a experiência da máscara como
máscara e não da máscara como rosto, você tem uma outra forma de relação com a máscara, que
não é a forma da má consciência, a forma do peso, a forma ressentida e negativa. Você tem a
possibilidade de um relacionamento leve, de superfície, com a própria máscara. Ou seja: você tem
dois lados, de um, a denúncia grave da máscara como máscara, e de todas as formas de negar o
caráter superficial de toda máscara - e esse é o lado pesado da filosofia de Nietzsche -, quer dizer,
da denúncia da tradição como formas de ilusão e auto-ilusão, formas de mistificação; e por outro,
esse trato mais leve com a máscara, ou se você quiser, essa dança sobre a superfície, que não tem
ilusão, que não vai chegar em fundo nenhum.
Comentário: Seria aceitar a arte.
Professor: A arte como pura superfície. Por isso, para Nietzsche, a arte é mais honesta do que a
ciência. Por que? Porque a arte é a vontade de ilusão, a vontade de aparência confessada. A arte
não quer outra coisa que não a bela aparência, enquanto que a ciência pretende chegar em alguma
coisa que não seja só a aparência. Logo a ciência é menos honesta do que a arte, porque a ciência
continua achando que existe alguma coisa que não seja aparência. Ou seja, a ciência é pesada.
Comentário: Há uma pintura do Peticov das frutas, que representa muito bem isso. É uma
representação, aparentemente, de uma mesa, que tem frutas organizadas pelo espectro das cores.
Então, Há uma faixa em cima da mesa com as cores organizadas em forma de frutas. E depois, no
resto do quadro, representando o universo, estão as mesmas cores, porém desorganizadas. São os
dois aspectos.
Professor: Isso, sem dúvida, acho que é uma imagem que reproduz maravilhosamente bem o que a
gente está dizendo aqui. Bom, gente, muito obrigado e até a próxima aula.
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Prof. Dr. Giacóia é especialista em Nietzsche, filósofo e professor da UNICAMP

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5 AULAS SOBRE NIETZSCHE


4ª aula
Oswaldo Giacóia Júnior
IFCH/UNICAMP
72

Introdução
Hoje nós vamos entrar em uma questão central, decisiva, para compreensão aprofundada do
problema que nós estamos examinando e espero termos a oportunidade de fazer uma explicitação
tão clara e tão exaustiva quanto possível desse nº 19; espero não cansá-los muito com um certo
tipo de jogo de vai e vem; no comentário que farei desse aforismo, vou voltar com alguma
insistência a certas questões que nós já vimos na análise dos aforismos e dos fragmentos
anteriores. Mas essa repetição não é simplesmente um amor obstinado pela repetição em si
mesma, mas acho que nós teremos a oportunidade privilegiada de ter diante dos olhos, de forma
muito viva, determinados tipos de procedimento que Nietzsche utiliza. Ou seja: gostaria de mostrar
para vocês, com uma certa abundância de detalhes, como é que Nietzsche trabalha, precisamente
nesta questão. Qual é a tática ou o procedimento que ele usa; e para que possa isolar esse
procedimento, precisamos vê-lo em ação em alguns momentos, para poder, comparando os dois
textos, mostrar como é o mesmo procedimento que está sendo usado. É por isso que vou ter de
voltar para Fragmentos, que nós já examinamos. Eu tinha dito a vocês também, que toda essa
questão que nós estamos vendo, na verdade, todo o nosso curso, tinha por objetivo a
desconstituição da unidade do sujeito fundada na unidade da consciência, que desembocava em
Nietzsche, em sua raiz última, numa filosofia da linguagem, numa crítica da linguagem. E hoje nós
vamos nos encaminhar decisivamente nessa direção e, se conseguirmos dar conta de tudo aquilo
que eu me propus para hoje, nós vamos ver esta ancoragem da crítica da subjetividade, da crítica
do eu, na análise da linguagem, que é uma coisa extremamente contemporânea. Boa parte da
nossa reflexão filosófica atual está voltada para uma análise da linguagem, para uma crítica da
linguagem. Estou me referindo agora não apenas à boa parte da tradição da filosofia analítica, mas
também à grande parte da chamada linha hermenêutica de interpretação, que se funda nesta
exigência prévia de uma análise da linguagem, de uma crítica da linguagem, como o modo próprio
de se dissolver pseudo problemas, ou seja, como é que uma crítica da linguagem pode evitar que
nós nos envolvamos com problemas que não são problemas, são simplesmente aparências de
problemas. De certa forma, portanto, o que quero dizer aqui é que pode-se encontrar nesse aspecto
particular da filosofia de Nietzsche, uma espécie de antecipação daquilo que vai ser a discussão
filosófica dos nossos dias.
Aforismo 19 de Além do Bem e do Mal
Bom, então, comecemos pela análise do aforismo nº 19.

Os filósofos costumam falar da vontade como se esta fosse a coisa mais conhecida
do mundo, mais ainda Schopenhauer deu a entender que a vontade era a única
coisa que nos era propriamente conhecida, conhecida por inteiro, de todo,
conhecida sem subtração nem acréscimo.

Bem, as primeiras frases do texto nos remetem a relação entre Nietzsche e Schopenhauer; e
aparentemente nós estaríamos, então, num outro domínio de investigação, que não aquele que nós
vínhamos examinando até aqui. Nós, no fundo, nos dedicamos a examinar a relação Nietzsche-
Descartes, Nietzsche-Kant, Descartes-Kant... Por enquanto não vimos nada relativamente a
Schopenhauer. Eu quero mostrar a vocês que, se Nietzsche no aforismo 17 e nos outros aforismos
anteriores, naqueles Fragmentos Póstumos que nós examinamos, se ele tratou do problema do
pensamento e, mais particularmente ainda, da unidade subjetiva fundada na imediatidade a si da
consciência, na substância pensante, agora vai examinar a questão com base na vontade. O que
estabelece a ponte, aqui, entre pensamento e vontade ou, se vocês quiserem, Descartes e Kant de
um lado, Schopenhauer do outro, é, para Nietzsche, sempre a mesma questão, é que se Descartes
e Kant pensavam a substância ou o pensamento sobre o ponto de vista da unidade, se a unidade do
sujeito se fundava no pensamento, seja a modo cartesiano da substância pensante, seja a modo
kantiano da síntese originária da percepção, Schopenhauer está em busca da mesma coisa, isto é,
Schopenhauer também quer uma unidade, e esta unidade ele vai buscá-la precisamente na
vontade. Então, assim como, para Descartes, era o cogito, o "eu penso", quem estabelecia o
princípio de unidade, lá se encontrava o que Nietzsche está chamando de a única coisa
propriamente conhecida, a coisa inteira, sem acréscimo e nem subtração, Schopenhauer não vai
encontrar isso no pensamento, mas vai encontrá-lo na vontade. E vou, entre parênteses, de forma
73

muito breve, tentar mostrar, porque é que, para Schopenhauer, esta unidade não pode ser dada no
pensamento. Antes de fazer isso quero deixar claro para vocês qual é o elemento de ligação,
porque o próprio Nietzsche não deixa isso claro aqui. Nós estamos sempre, de certa forma,
gravitando em torno do mesmo problema, o da unidade, onde reside a unidade: de um lado no
pensamento, de outro na vontade; mas no fundo a categoria básica, aquilo que está sendo buscado,
aquilo que se trata de encontrar, de descobrir, é precisamente a unidade, a unidade fundante do
sujeito.
Pergunta: Posso colocar só uma coisinha? O Christopher Türcke, ele fala da unidade, em Nietzsche,
a partir da vontade de saber; e a partir daí derivando a idéia de uma multiplicidade, mas ele aceita
sem problemas que Nietzsche tem uma metafísica.
Professor: Mas isso é muito problemático. Nós vamos verificar aqui o horizonte último dessa
metafísica e mostrar até que ponto Nietzsche pode ir e o que é que ele pode dizer, em última
instância, e a partir de que limite ele não pode dizer mais coisa nenhuma. A partir de que limite a
sua crítica da metafísica necessariamente tem que se deter como que diante da sua última fronteira.
Este tipo de trabalho Türcke faz em parte, não completamente. Acho que nós vamos ter
oportunidade de caminhar, boa parte desse percurso, supondo a leitura do Türcke entre outros
comentadores; não sei quantos que vocês chegaram a ler, mas nós vamos avançar um pouco mais.
Então, peço a vocês um pouco de paciência, uma forte dose de benevolência, mas acho que a
gente chega até lá.
O que gostaria de ver, por exemplo, e agora já começo a fazer os meus saltos para trás, é que se
vocês forem no texto dos Fragmentos de Nietzsche, quando ele se referia a Descartes, na página
10, ele vai dizer: "Pensa-se, logo existe algo pensante". Aqui, desemboca a argumentação de
Descartes, mas não é a realidade de um pensamento que ele queria, pois ele queria, para além da
imaginação, atingir uma substância que pensa e imagina; quer dizer, Descartes queria encontrar
algo de real, algo de efetivamente existente, uma substância, ou seja, isso que o nosso texto aqui
está chamado "algo por inteiro", conhecido integralmente, sem nenhuma distorção. Como é que
Descartes conseguia obter isso, que poderia ser conhecido sem nenhuma distorção? Quando
eliminava todo e qualquer tipo de conteúdo do conhecimento e se reportava unicamente à forma do
conhecimento, à pura forma do pensamento. Ele dizia: independentemente de qualquer tipo de
conteúdo do objeto do pensamento, tudo aquilo que eu penso pode ser falso, mas eu não posso
duvidar do pensamento enquanto pensamento, porque duvidar do pensamento significa exercer um
ato do pensamento, e, por conseguinte, duvidar disso significa reafirmar o próprio pensamento.
Portanto, eu que penso, enquanto penso, sou; eu sou uma substância cuja essência ou natureza
consiste no pensar. Aqui está algo, diz Descartes, essa substância do pensamento, que eu não
posso negar sob pena de reafirmá-la. Então, Descartes encontrava aqui a realidade da qual ele não
precisaria nem acrescentar e nem subtrair coisa nenhuma, porque ela lhe dava ao mesmo tempo
uma espécie de indicativo de realidade plena, ou seja: um conhecimento de que ele não poderia
duvidar de forma nenhuma. Isto que o Nietzsche chama aqui de não apenas o pensamento, mas
uma substância.
Muito bem, nós vimos como Kant, na crítica que faz a Descartes, desconstitui a certeza dessa
substância. Kant vai dizer: Não, não há nenhuma substância. O que a proposição "eu penso", "eu
sou", me dá é simplesmente a forma vazia da consciência, essa função de síntese que eu tenho que
supor desde que haja qualquer pensamento; para que haja pensamento há que haver a unidade da
consciência, mas eu não tenho nenhum objeto, eu não tenho propriamente nenhuma substância,
nenhum dado, nenhuma coisa dada na proposição "eu penso". E Schopenhauer vai dizer, mais ou
menos, o seguinte: "Não, quando eu digo eu penso, eu não encontro nenhuma substância,
nenhuma coisa em si mesma. O que eu encontro quando eu digo eu penso? Ou aquilo que Kant já
havia dito, isto é, a pura forma da consciência, a unidade de síntese, a unidade transcendental, mas
nenhum objeto; ou se eu encontro o objeto, se eu tenho alguma experiência do meu eu, enquanto
eu sujeito do pensamento, este eu que eu me represento como pensando, é uma experiência
empírica que eu tenho de mim mesmo."
Então a experiência que eu tenho a respeito da minha própria existência, é exatamente da mesma
natureza que a experiência que eu faço em relação a todo e qualquer outro objeto; ou seja:
experimento a mim mesmo como um objeto qualquer; tenho percepção de mim mesmo, como tenho
percepção de qualquer outro objeto. O que significa dizer, em última instância: eu me represento a
mim mesmo. Ora, se eu me represento a mim mesmo, então aquilo que a experiência de mim
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mesmo me dá não é eu tal como sou enquanto coisa em si, mas tal como eu me represento, isto é,
eu enquanto elemento da representação. Logo, a experiência do eu, a percepção, a auto-
percepção, não me dá nenhuma coisa em si, mas apenas representações que tenho de mim
mesmo, por meio do meu sentido interno. Assim como as representações do sentido externo me
dão objetos no espaço, a representação do sentido interno me dá a representação de minha própria
existência no tempo. Então, eu não me apreendo tal como eu sou, digamos assim, enquanto
realidade em si independentemente da representação, eu me apreendo enquanto realidade
representada, isto é, no tempo. Ora, como o tempo é uma forma da sensibilidade, então o que eu
tenho de mim mesmo são percepções fenomênicas e não percepção de uma realidade
independente da própria percepção. Logo, o auto-conhecimento não me dá uma realidade sem
subtração e nem acréscimo; a percepção não me dá uma realidade plena independentemente do
sujeito cognocente, a experiência que eu tenho de mim mesmo fornece simplesmente fenômenos,
como o conhecimento que eu tenho dos outros, dos demais objetos. Schopenhauer vai dizer: Bom,
se a auto-reflexão, ou seja, se o conhecimento que eu tenho de mim mesmo enquanto substância
pensante ou enquanto eu pensante não me dá nada mais do que fenômeno, será que eu posso ter
acesso àquilo que não é fenômeno? Ou seja: aquilo que seria o "em si", independentemente da
representação? E Schopenhauer vai dizer sim. Só que isto não pode ser dado pelo pensamento,
mas sim pela vontade. Então, no querer, na experiência do querer, da vontade, eu tenho acesso
aquilo que é propriamente a coisa em si ou a essência do mundo.
Pergunta: Isso através da intuição?
Professor: Da intuição. Na verdade, a experiência, chamemos assim, por meio do que, eu tenho o
acesso aquilo que eu efetivamente sou, exatamente enquanto vontade, e não enquanto
representação.
Pergunta: O que é que ele entende por vontade?
Professor: Vontade não enquanto eu me represento um objeto qualquer, como objeto de uma
aspiração ou de um desejo, mas a vontade é exatamente aquilo cuja materialização é o meu próprio
corpo. Ou seja, o corpo é, tal como nós o vemos, objetivação da vontade. A vontade se faz objeto
no corpo. Ora, isso significa para Schopenhauer, que em todos os atos particulares da vontade, ou
seja: do ponto de vista das carências corporais e representacionais também, se expressa sempre
esse mesmo movimento, essa fratura interna da vontade, que se caracteriza precisamente como
vazio, como ausência, que tem que ser preenchida; como uma carência que tem que ser suprida,
mas cujo suprimento é absolutamente impossível. Por que? Porque essa fratura interna ou essa
carência é impreenchível; todo e qualquer objeto pelo qual eu satisfaça um desejo particular ou
singular, na medida mesmo em que eu o satisfaço, esse desejo se repõe sobre uma outra forma,
sobre uma outra modalidade.
Um Sofrimento ... Metafísico
Comentário: Por isso que a vida é um sofrimento...
Professor: Por isso que a vida é sofrimento. Então, para Schopenhauer, vontade é inevitável e
necessariamente sofrimento, e um sofrimento, por assim dizer, metafísico. Por que? Porque como a
vontade jamais pode ser satisfeita, posto que se ela fosse satisfeita deixaria de ser vontade; então,
a cada satisfação se reproduz a necessidade, a cada desejo satisfeito um outro desejo surge, e
assim infinitamente, nesse círculo infernal da vontade. A vontade é fruição, é necessário que haja
objetos particulares que satisfaçam certas necessidades, e é aí que vem o problema. Para usar uma
linguagem nossa, atual (para Schopenhauer, talvez, não tecnicamente correta), só que o objeto do
desejo que produz satisfação é, na verdade, uma simples aparência de satisfação. Porque essa
estrutura do desejo, definitivamente impossível de satisfazer, se auto-reproduz ao infinito. Então,
você tem um desejo, mas a medida em que esse desejo se satisfaz, você imediatamente tem um
outro, e este outro satisfeito você tem um outro, um outro, um outro... porque é exatamente desejo,
a estrutura mesma do ser, é o desejo, é a vontade.
Pergunta: Agora, ele diferencia desejo de vontade?
Professor: Diferencia sim, mas não tecnicamente no sentido em que depois farão Freud, Nietzsche,
e mesmo até a psicanálise. Mas, sem dúvida, há uma diferenciação terminológica, inclusive, entre
Wiele e Begehren. Em alemão são duas coisas completamente diferentes; mas para os nossos
desígnios agora, talvez não seja muito interessante distinguir aqui desejo de vontade. Quer dizer,
vontade sempre com esse impulso para fora de si, para se satisfazer no objeto, mas ao mesmo
tempo realizando a experiência da satisfação e insatisfação, isto é, da satisfação com a reprodução
75

infinita da necessidade. Ou seja: uma satisfação que, na verdade, nunca é satisfação, senão apenas
aparência de satisfação.
A Vontade como Essência do Mundo
Pergunta: Então, essa vontade também não é algo da consciência?
Professor: Não. E é aí que nós chegamos no ponto fundamental. Para Schopenhauer a consciência
é apenas uma espécie de superfície daquilo que definitivamente é o homem e é o universo
enquanto vontade. Então, o fenômeno pelo qual nós temos acesso àquilo que é a coisa mesmo, isto
é, aquilo que é a essência do mundo, não é o pensamento, mas a vontade. É por meio do querer
que nós, de certa forma, mergulhamos e tomamos consciência da essência do universo, da
essência do mundo. Então, aquilo que constitui a essência do mundo e a nossa própria essência, lá
Schopenhauer vai encontrar, portanto, a unidade, (aquilo que Descartes buscara na substância
pensante). E é isso que Nietzsche está dizendo aqui. Então, essa primeira frase nos remete à
seguinte questão: Schopenhauer concordava com Kant, que era impossível sustentar o discurso de
Descartes, mas ele não duvidava - isso Nietzsche não diz, é eu que estou dizendo para vocês aqui,
para fazer a ponte - que fosse possível encontrar essa unidade metafísica. Apenas que, para ele,
esta unidade metafísica era dada na vontade e não no intelecto. E qual era a via de acesso
privilegiada para essa unidade metafísica do universo? Não a consciência, mas o corpo. O corpo
naquilo que ele de fato é, cada um dos nossos movimentos corporais, conscientes ou não, eles são
exatamente tudo aquilo que o corpo é; é vontade, é desejo, é impulso em direção à procura do
prazer e à fuga da dor.
Pergunta: Ele, então procura o corpo e não o intelecto?
Professor: Não, o intelecto é um instrumento do corpo. Agora, confundir esta unidade metafísica da
vontade com o intelecto é o erro do Descartes. Porque o intelecto tem caráter pura e simplesmente
instrumental; vale dizer, ele é um dos órgãos dessa objetivação da vontade que se dá no corpo.
Então, todos os nossos movimentos, voluntários ou involuntários, tudo isto que nós somos, diz
Schopenhauer, é vontade. E como é que eu tenho uma intuição disso? Uma experiência direta
disso? Como é que eu acesso de maneira direta a isso que me constitui mais essencialmente?
Precisamente por meio do corpo, da experiência que eu tenho do meu corpo, do meu corpo como
desejo, e de todos os movimentos do meu corpo, exatamente, como movimentos desejantes ou
volitivos.
Pergunta: Experiência direta, não representacional?
Professor: Não representacional. Na verdade, para fazer inteira justiça à pergunta da Amnéris - e
aqui eu vou ter que pedir de novo a benevolência de vocês -, há duas espécies de experiência de si:
você tem uma experiência do seu corpo enquanto um objeto da representação, exatamente como
eu tenho experiência de outros objetos da representação; eu posso me representar a mim mesmo, o
meu corpo, como objeto. Isso, então, é um acesso mediato, representacional ao corpo. Contudo,
tenho uma outra forma de relação com o meu próprio corpo, que não é a relação do meu corpo
como objeto de representação, ao lado de outros objetos, mas exatamente a vivência do meu corpo
enquanto desejo, vontade, carência. Esta vivência do meu corpo enquanto movimento volitivo,
enquanto desejo permanente, enquanto vontade, enquanto insatisfação, que se reproduz ao infinito,
não é algo que eu represento, mas algo que eu sou. E toda essa gama de movimentos que constitui
o meu corpo e que se expressam nele, não necessariamente passam pela esfera da consciência;
passa, por exemplo, pelo domínio intracelular, pela relação dos diferentes órgãos entre si, pelos
movimentos involuntários, e por todos aqueles outros investimentos pulsionais, impulsivos, que
estão, por assim dizer, às costas da consciência.
O Mundo como Representação da Vontade
Pergunta: A primeira intuição do Freud tem alguma coisa a ver com isso?
Professor: Diretamente. Caso venhamos trabalhar Freud, uma das coisas que pretendo mostrar é
como o conceito de pulsão, em Freud, é, em grande parte, caudatário da concepção
schopenhaueriana de vontade; inclusive o modelo prazer/desprazer freudiano, manifestamente o
mesmo de Schopenhauer. Aliás, Freud diz isto e não é nenhum coelho que eu tiro da cartola, isso
está nos próprios textos do Freud. Concepção de prazer freudiano é uma concepção negativa de
prazer, precisamente a concepção schopenhaueriana de prazer como cessação de uma experiência
originária, prévia, necessariamente mais primitiva de sofrimento, que carateriza o mundo como
vontade. Daí a famosa frase schopenhaueriana: o acesso direto que eu tenho ao mundo, não como
representação, mas ao mundo como coisa em si, não é a consciência ou a relação sujeito e objeto,
76

mas é exatamente esse mergulho no interior do meu eu, enquanto um eu desejante, volitivo, e do
meu próprio corpo enquanto objetivação dessa vontade.
Então, se aquilo que pode ser pensado como coisa em si, como o que efetivamente é, como o que é
conhecido sem subtração nem acréscimo, não é representação, não é pensamento, mas é vontade;
então, esta vontade metafísica, à qual o pensamento schopenhaueriano tem acesso, é
necessariamente una; vale dizer, não submetida às categorias da representação. Ela é logicamente
independente das categorias da representação, porque é aí justamente onde se dá a multiplicidade.
De onde nós extraímos a experiência do múltiplo? Simplesmente, como é sabido, da combinação
entre o espaço e o tempo, que nos dá o princípio de individuação. Se a vontade é a coisa em si, se
a vontade é independente da representação, então a vontade não está submetida às categorias da
representação. Se ela não está submetida às categorias da representação, não está submetida ao
tempo e espaço, por conseguinte, não se pode falar em multiplicidade, mas simplesmente que é
uma e a mesma, no meu corpo, e em tudo aquilo que é. Então, todas as coisas que constituem o
universo são representações ou objetivações dessa vontade metafísica fundamental. Mas o
substrato do universo, se você quiser pensar dessa forma, é esta vontade una; e todos os seres
individuais, todas as espécies e indivíduos, tanto do mundo vegetal, quanto do mundo mineral ou
orgânico, tudo isto é esta vontade, enquanto ela é submetida ao princípio de individuação no espaço
e no tempo. Ou seja: tudo o que é, é objetivação ou representação dessa vontade metafísica.
Comentário: Parece que isto é uma pretensão tanto do Descartes quanto Kant e Schopenhauer,
através de uma unidade...
Professor: Maravilha, se isso chegou a ficar claro para vocês nessa frase, então vocês entenderam
precisamente onde é que Nietzsche quer chegar.
Pergunta: E qual que é a frase?
Comentário: Que tanto Descartes quanto Kant e Schopenhauer, na verdade, querem chegar no
mesmo ponto, que é a unidade metafísica.
Pergunta: E Nietzsche vai achar que não há uma unidade, é isso?
Professor: Olha, talvez fosse mais interessante a gente fechar o livro, e vamos continuar
conversando...
Comentário: Não, vamos ler, está muito interessante...
Professor: Estou brincando, mas é a operação de Nietzsche vai consistir justamente em mostrar
como isto que, para Descartes, Kant, Schopenhauer, etc., é o uno fundamental, na verdade não tem
nada de unidade, é uma multiplicidade metafisicamente transformada em um, por meio de uma
espécie de sedução irresistível da linguagem.
Pergunta: Mas para você fazer essa análise, você está baseando-se em que comentador ou essa
idéia é tua?
Professor: Não, não é original minha, vários são os comentadores que já trilharam o mesmo
caminho, ...
Pergunta: Porque, eu conheço pouco, obviamente, mas a camisa de força é o que faz a vontade de
poder, se ela não é o restabelecimento dessa unidade. E a coisa que li e fiquei mais perplexa que
Türcke - porque eu acho que ele realmente me deixou buscando o escândalo ptolemaico e me
deixou enlouquecida -, volta a propor essa unidade metafísica.
Professor: Volta. Vou ter que pedir a indulgência de vocês, nós vamos um pouco mais para frente
de onde Türcke foi.
Pergunta: Será que essa volta, que você está fazendo, não é possível a gente fazer? Retomando
via Jacob Burckhardt, que ele parte de Schopenhauer, ele explode, eu tenho a impressão que essa
vontade como multiplicidade dá, talvez, o caminho para Nietzsche?
Professor: Pode ser. O meu caminho é um pouco diferente, Amnéris; faço um outro percurso, mas
acho que esse é possível. Acho que a intenção de Nietzsche é mais ou menos a seguinte:
Nietzsche quer chegar até o ponto mais recuado, a partir do qual nós, necessariamente, pensamos
e falamos tudo aquilo que nós podemos pensar e dizer. E aí sim eu acho que o Türcke tem razão
quando diz que no momento em que Nietzsche chega nesse ponto, a racionalidade faz a
experiência do seu escândalo. Escândalo no sentido bíblico do termo, "pedra de tropeço". Ou seja: a
razão faz a crítica da sua própria limitação; a vontade de verdade se reconhece como algo
problemático. E no que consiste esse escândalo? Consiste em que a vontade de verdade terá que
fazer a denúncia dos seus próprios limites, que são limites inevitáveis, que ela não pode deixar de
reconhecer, mas para além dos quais não pode prosseguir. Ela chega na sua extrema fronteira.
77

Porém, ela não pode deixar de exercer essa vigilância crítica em relação a si mesma e, por
conseguinte, auto-denunciar-se; mas, para auto-denunciar-se, tem que se valer precisamente
daquilo que está sendo posto sob crítica e sob censura. Vale dizer: a crítica da razão não pode ser
feita senão pela própria razão. E para que ela possa se pôr a si mesmo sob crítica tem que fazer
uso exatamente daquilo que ela está criticando. Essa é a aporia, esse é o dilema do qual a filosofia
do Nietzsche, na verdade, não pode sair; e é exatamente lá onde Nietzsche reconhece o seu
derradeiro limite, que não é o limite dele, não é o limite da filosofia de Friedrich Nietzsche, é um
problema invencível da razão, é exatamente a dialética da razão. E, para isso, acho que não há
outro caminho, aliás, pode até haver outro, mas acho este caminho, o da desconstituição das
evidências assentes na História da Filosofia, ou seja, a crítica da vontade e verdade, o mais
essencial. Que não somente é o mais essencial em Nietzsche, mas é aquilo que, a partir de
Nietzsche, será repetidamente praticado na História da Filosofia.
Pergunta: Eu fico ruminando sobre isso tudo que você está falando dos filósofos e me deixa, de
certa forma, angustiado, porque nenhum deles apresenta uma resposta completa. Porque, me
parece claro, cada um acaba enveredando por um único caminho, e não percebe o lado oposto. É
uma colocação manifestamente unilateral. Mais: o filósofo se identifica com o lado que ele escolhe e
ele é só aquele caminho, como o alcoólatra que é o própria vinho e não percebe que ele é o que
bebe. Se a filosofia é um espelho da vida ou uma tentativa de criar consciência da própria vida, essa
maneira de pensar não leva a lugar algum, porque sempre apresenta um caminho capenga. Então,
se olharmos Descartes, Kant e Schopenhauer, eles espelharam um lado só, e não viram o outro.
Professor: Concordo. Agora se você pega Nietzsche, nesse processo todo, o que Nietzsche
pretenderia dizer é, de alguma forma, isso que você está dizendo: "Olha, está vendo o caminho
deles? É unilateral, eles não percebem". Só que tem um complicador aí, a unilateralidade é
inevitável; então, a posição de Nietzsche se torna de extrema ambigüidade, porque ele está
denunciando a unilateralidade da História da Filosofia no seu conjunto, a partir da sua própria
unilateralidade. Compreende? Quer dizer, essa é a questão, a aporia interna. Mas eu proponho que
a gente, primeiro acompanhe aqui o percurso para ver se fica...
Objetivação da Vontade Metafísica
Pergunta: Eu não entendi Schopenhauer. Porque quando discutíamos Descartes e Kant, eu tinha a
impressão que no contato com o mundo o conhecimento estava no sujeito, ou seja, a consciência
conforme a existência etc... Quando você fala de Schopenhauer e fala dessa vontade e termina com
a frase, tudo o que é a objetivação dessa vontade metafísica; e aí eu pergunto se essa vontade
metafísica está dentro do sujeito ou se ela é representação de uma coisa que está no universo. Daí
me lembrou uma discussão de metafísica que já tinha sido feita por Descartes de que o ser humano
está no mesmo universo que os outros, e a vontade está dentro do ser humano. Para Schopenhauer
o ser humano é representação, ou é uma parte, sei lá, de um todo que está fora, - daí a gente
voltaria a pensar em Deus.
Professor: Você está colocando o dedo numa das feridas do pensamento de Schopenhauer; porque,
na verdade, para Schopenhauer, é isso mesmo. Essa vontade é algo que transcende a esfera dos
sujeitos individuais. Ou seja: cada ser existente é apenas uma espécie de fragmentação dessa
vontade única. Essa vontade única - estou usando mal o termo "fragmentação", mas é apenas para
dar uma idéia -, na medida em que se dá no espaço e no tempo, ao dar-se no espaço e no tempo
ela se individua. Por que? Porque espaço e tempo são princípios de individuação. E, sobretudo, se
você entende o princípio de causalidade, causa e efeito, como uma espécie de ação combinada
entre espaço e tempo, tempo e espaço combinados dão causalidade; então a causalidade enquanto
combinação de espaço e de tempo é o modo como esta vontade fundamentalmente única, essa
essência metafísica do universo, se diferencia em gêneros, espécies e indivíduos.
Então, agora, para você ter uma idéia da profundidade das águas em que você estava navegando,
tudo aquilo que se individua, ou seja, tudo aquilo que se dá como objeto no universo, vale dizer,
portanto, todas as coisas que são, elas são formas de manifestação desta vontade metafísica. Se
você quiser, todas as coisas que são, os diversos gêneros e espécies de entes, são simples
aparência; essencialmente, eles são uma só e mesma coisa, a vontade, a vontade metafísica.
Então, a diferença que os entes, enquanto entes individuais, têm entre si é uma diferença
simplesmente superficial, ou simplesmente aparente; aquilo que eles são essencialmente,
fundamentalmente é a mesma coisa, é vontade.
Compaixão em Schopenhauer
78

Por isso, para Schopenhauer, o grande sentimento, o único sentimento, que no fundo dá acesso a
identidade entre tudo que é, é a compaixão, é a piedade. O que acontece na compaixão? Por que é
importante, para ele, fazer a análise desse sentimento psicológico em especial? Porque, para ele,
esse é um sentimento muito mais do que psicológico, é um sentimento metafísico. Por que? Porque
na compaixão, em alemão mitleid, quer dizer, exatamente, como compassio, - você conhece latim,
percebe muito bem o que significa isto -, quer dizer: eu não posso sentir a dor do outro, a dor do
outro é dor no outro e não em mim, e no entanto eu sinto a dor do outro como dor do outro. O
grande erro da análise da compaixão, para Schopenhauer, é que a compaixão seria um sentimento
por meio do qual eu sinto a dor do outro como minha dor; impossível, eu não posso sentir a dor do
outro como minha, porque essa dor não dói em mim. Então, o fenômeno psicológico da compaixão
só pode ser satisfatoriamente explicado, se eu faço uma experiência imediata, vivencial, de algo que
permite estabelecer uma correia de identidade entre o outro e eu mesmo, de tal maneira que a dor
do outro, no outro, é sentida por mim. Um mistério completamente inexplicado, a não ser que o
outro não seja outro a não ser em aparência.
Pergunta: Mas daí ele é radicalmente idêntico à Kant?
Professor: Isso só é compreensível a partir de Kant. O próprio Schopenhauer diz: "Minha filosofia
leva Kant para frente. Aonde Kant errou - claro que isso é Schopenhauer -, aonde a filosofia
kantiana demonstra suas insuficiências, aqui eu começo". Tanto é que o primeiro passo da filosofia
de Schopenhauer, é uma crítica da filosofia de Kant.
Pergunta: Então, mas para ele o ser humano está no mesmo nível de qualquer outro animal. Tem a
mesma importância, faz parte da mesma cadeia...
Professor: Você pode estabelecer uma hierarquia: há seres que são mais ou menos complexos...
No ser humano, por exemplo, essa vontade metafísica fundamental chega a representar a si
mesma.
Pergunta: Então, mas não mais importante, porque no Kant tem um diferenciação do ser racional do
não racional, não tem?
Professor: Sem dúvida. Para Schopenhauer esta vontade é una, é a mesma coisa. Então, todos os
seres que são, se diferenciam apenas do ponto de vista da aparência ou da representação,
substancialmente, metafisicamente, eles são o mesmo, vontade. E qual é o acesso que eu tenho a
isso? Por exemplo, o acesso pela via da compaixão. Há outras formas de acesso imediato, a
vontade; uma delas é a obra de arte, eu não vou entrar por aqui, aqui é um pouco mais complicado;
mas, o fenômeno psicológico da compaixão dá bem a medida de que maneira eu posso ter, não por
uma representação intelectual, mas por um acesso vivencial direto, intuitivo, a experiência da
unidade do universo como vontade.
Schopenhauer, Rousseau e Sartre
Pergunta: Schopenhauer lia Rousseau? Porque toda a teoria da compaixão, no Rousseau, é assim.
Professor: Sim, Schopenhauer era um sujeito de extraordinária erudição, e talvez tenha sido um dos
filósofos mais eruditos do seu tempo. Aliás, é por via dele que se torna mais conhecido, na Europa,
os textos orientais, especialmente a filosofia dos vedantas e toda a filosofia hindu.
Pergunta: Eu queria fazer uma pergunta e não tem nada ver com isso. Lembrei do Sartre na hora
que você fala da compaixão. A luta existencial do Sartre tem alguma coisa a ver com essa
impossibilidade...
Professor: Claro, tem a ver com a angústia que Schopenhauer desenvolve sobre o conceito de
vontade, mas, para Sartre, essa experiência da compaixão é dificilmente equacionada, em termo
schopenhaueriano, na medida em que, para Sartre, esse passo aquém da individuação que, para
Schopenhauer, é a experiência mística, não existe. Para Schopenhauer, essa vivência da
compaixão é uma experiência, por definição, mística; ela não passa por nenhuma teorização. Mas
ela dá acesso a isso que é pré-individual, tomando a palavra "pré" aqui, no sentido metafísico; quer
dizer, ela é necessariamente anterior a toda e qualquer individuação; portanto, necessariamente
anterior a consciência, ao indivíduo empírico que nós somos...
Comentário: Ao sujeito e objeto.
Professor: Não se põe a relação sujeito e objeto aqui, porque a vontade não é, aqui, objeto para
nenhum intelecto, ela é ela própria, a partir do que se determina a diferença no nível da
representação do sujeito e objeto. Bom, fica mais claro um pouquinho, esse percurso do
Schopenhauer.
A Unidade dos Opostos em Nietzsche e nos Românticos
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Pergunta: Posso só fazer uma última pergunta, mas é que eu preciso socorrer meu amigo Dornelis
naquela questão dele, porque, desculpe interferir, eu acho que essa questão da unidade dos
opostos só vai ter reposta, dessa forma que me apraz, pelos românticos; realmente, aí é uma
corrente da filosofia que tenta dar conta disso na idéia de uma unidade daquilo que é antagônico e
que não é preocupação do Nietzsche.
Professor: Pelo contrário, nós vamos ver como ele vai fazer exatamente a denúncia dessa unidade,
dessa pretensa unidade, a partir do seu enraizamento lógico-gramatical. O próprio problema da
crença na oposição dos contrários, é isso que no fundo Nietzsche vai colocar em questão. Ou seja:
por que é que nós pensamos que há contrários? E por que nós pensamos necessariamente que há
oposição entre contrários? Ou seja: por que nós não podemos prescindir de certas categorias, por
meio das quais nós estruturamos aquilo que nós pensamos? Por que nós temos que pensar
dialeticamente na oposição dos contrários? Por que nós temos que pensar necessariamente em
termos de sujeito e predicado? Por que nós temos que pensar em termos de causa e efeito? Quem
é que nos garante que com isso nós aprendamos alguma coisa assim como a estrutura ontológica
da realidade? Quem é que me garante que a realidade se dá em termos de oposição de contrários?
Ou seja: quem é que me garante que há contrários?
Comentário: Mas essa é a forma de compreensão da consciência.
Professor: Isso. Perfeito.
Comentário: E aí chegamos num ponto que realmente não dá para prescindir disso.
Professor: Eu estou quase convidando vocês a fechar o livro e vamos discutir livremente, porque é
isto, isto é a forma de compreensão da consciência. Mas é muito mais do que simples forma de
compreensão da consciência: isto é a forma de estruturação do pensamento no discurso.
Comentário: Do homem ocidental.
Comentário: Acontece que para os românticos essa oposição dos contrários, e mesmo a unidade,
não se dá com a consciência. Quer dizer, a fórmula deles é o além da própria consciência.
Professor: Sim, mas a questão do Nietzsche é: de onde eu falo, para poder sustentar legitimamente
essa pretensão? Qual é o estatuto do discurso pelo qual eu postulo esse caráter ontológico, que os
românticos pretendem, para oposição dos contrários? Senão daquilo que constitui, por assim dizer,
a espinha dorsal do meu próprio pensamento. Ou seja: o que é que me garante, em última instância,
que tudo aquilo que eu penso, que tudo aquilo que eu digo, não seja uma espécie de
antropomortização do universo? E mais ainda, para fazer justiça a tua pergunta: até que ponto essa
antropomortização do universo não é uma condição fundamental da vida? Até que ponto vida
significa necessariamente isso, ao menos para nós?
Comentário: Ou seja, escândalo ptolemaico para que possa existir vida.
Professor: É, pelo menos a nossa.
Comentário: Por isso que a vida é um acaso, é um acidente.
Professor: É isso mesmo. É com isso que eu gostaria de terminar o curso. Você não pode explicar,
porque para você explicar, você tem que lançar mão de todas essas estruturas cuja gênese você
está fazendo aqui. Explicar significaria a possibilidade de dar um passo para fora dessa camisa de
força, que é o discurso e o pensamento, dizer: "Olha, isso surgiu assim, assim, assim ..." Mas para
que eu possa fazer um discurso sobre isto é preciso que eu tivesse algum outro instrumento que
não fosse isso, o que eu não tenho. Entende?
Comentário: É pesada...
Professor: Pesada, é muito pesada. Eu tinha avisado antes. É muito pesado.
Pergunta: Como é esse acidente que eu perdi?
Pergunta: Ela diz: "Bom, então, nós existimos por acidente, por acaso; se a nossa vida depende
dessa espécie de antropomortização do real. Em última instância, sim; e este acidente é
incontornável, porque para que eu pudesse removê-lo, ou seja, para que pudesse explicar qual é a
sua razão de ser, eu teria que ter algum acesso fora desse acidente; quer dizer, eu teria que poder
justificar por outro meio, que não um simples discurso e o simples pensamento, a existência do
pensamento do discurso; coisa que obviamente me é impossível; para que eu pudesse fazer isso,
eu precisaria ter um ponto de apoio fora do discurso, fora do pensamento.
Comentário: Nem se fosse um Deus enganador.
Professor: Nem que fosse um Deus enganador.
Comentário: Voltamos a estaca zero.
Pergunta: Mas, por exemplo, os estados de êxtases não seria uma saída?
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Professor: Você vai ver que serão, para Nietzsche, mas eles são incomunicáveis.
Comentário: O problema é esse: calar a boca. Eu cheguei a essa conclusão... O grande achado é
ficar quietinho. Porque para os românticos também a unidade dos opostos não pode ser visível, é
um paradoxo.
Professor: Não. Não é calar a boca. É falar, falar, falar... até o fim. Mas com plena consciência de
que eu não estou dizendo o essencial.
Comentário: Eu não consigo, é dramático demais.
Professor: É, é esse o escândalo... Olha, se vocês quiserem uma expressão mais poética disso...
Comentário: De fato, se chega a um ponto que não dá para falar mais...
Pergunta: O inverso de tudo isto, também não é verdadeiro?
Professor: Como assim?
Comentário: Isso é pesado, isso é trágico, isso é terrível, nós somos um mero acidente, mas se nós
somos um acidente, nós não somos tão responsáveis assim, não precisamos...
Professor: É, isso Nietzsche chama da inocência do devir, inocência do vir a ser.
Comentário: Eu acho que a gente fica um pouco mais humilde diante das coisas...
Professor: Engraçado é que... se você quiser uma imagem poética disso, uma das que eu conheço
que expressa melhor, é do Fernando Pessoa. O filósofo é, mais ou menos, um fingidor, para
Fernando Pessoa; ele chega a fingir que é dor, a dor que efetivamente sente, entendeu? Quer dizer,
você não tem nenhum fundo, todo fundo é um fundo falso. Todo fundamento a que você chega é
necessariamente uma máscara; então, você retira uma máscara, encontra um fundamento, um
rosto, por detrás da máscara, mas aquele rosto que se descobre é uma outra máscara, e assim por
diante...
Comentário: Você vai chegar a anulação da dor.
Professor: Não, para Nietzsche é o contrário; você vai chegar à afirmação trágica da dor. A
anulação da dor é o que você tem em Schopenhauer, que é a vontade que renega a sua própria
natureza.
Comentário: Nietzsche, na verdade, faz a crítica do pensamento e da razão, é óbvio, mas ele não
coloca nada no lugar... Por exemplo, os românticos, eu vou pegar Rousseau; ele faz a crítica do
pensamento e coloca o sentimento como uma via de acesso a algo mais verdadeiro, a essência do
ser; Schopenhauer coloca a compaixão; existem outras faculdades que me levariam para algo mais
verdadeiro. O que Nietzsche faz é não colocar nada no lugar do pensamento. Então, ele faz a crítica
radical do pensamento, mas não tem uma outra faculdade que me levaria para essa experiência do
ser.
Porque a arte vai transformar essa tragédia...
Professor: Existe, digamos assim, a certeza irrecusável, para quem quer ser honesto consigo
mesmo, de que o pensamento e a razão não me dão o essencial, só me dão superfície, só me dão
máscara, só me dão perspectiva. Mas existe também a consciência incontornável de que eu não
tenho nada que não seja isso. Ou seja: eu tenho que saber que isso é só perspectiva e que não há
nada além da perspectiva.
Por isso, para Nietzsche, a arte aparece como uma experiência fundamental. Por que? Porque a
arte vai transformar essa tragédia, que é a existência absurda, a existência casual, não em objeção
contra a existência, não em denegação da existência, mas em transfiguração artística dela. Então,
no fundo, a arte, especialmente a arte trágica, toma essa experiência fundamental do absurdo e a
transfigura, ao invés de negá-la sob a forma, por exemplo, da denegação religiosa, da criação do
além, do metafísico, da outra vida; ou seja, daquilo que Platão e o cristianismo fizeram no Ocidente
de forma exemplar. Ao contrário disso, a arte glorifica precisamente o sofrimento, e a tragédia não é
senão a mais sublime das tentativas de transformar o sofrimento de objeção contra a vida em
glorificação estética da dor. E aí sim, Amnéris, aí você vê o que há de visceral em Nietzsche.
Nietzsche é aquele que chega ao ponto de dizer: toda a filosofia não foi senão fuga diante do
sofrimento. Era preciso fugir desse absurdo insuportável. O quê inventaram os filósofos então? Os
grandes sistemas de metafísica. Por que? Porque os grandes sistemas de metafísica são formas de
se postular e acreditar numa espécie de mundo verdadeiro, que não é esse mundo da pura
transitoriedade, do sem sentido, do absurdo...
Comentário: E do corpo...
Professor: Exatamente. Esse mundo da alma, esta entidade substancial permanentemente idêntica
a si mesma, ou das formas de vida eterna, redenção, etc., enquanto que a cultura artística,
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especialmente a cultura trágica, é esse mergulho, até as últimas conseqüências, precisamente na


finitude, na transitoriedade, na morte, no absolutamente casual, sem que isso sirva de objeção
contra a existência, mas justamente servindo de transfiguração, como eu disse, transformação disso
em obra de arte. Aceitação, mas não uma aceitação de pura resignação. Uma aceitação que
transforma a finitude, isto é, a dor, a morte, o absurdo, em objeto de afirmação.
Comentário: Constatação.
Professor: Mais do que isso, não significa simplesmente constatar, significa afirmar, querer...
Comentário: É mais do que aceitar, é afirmar.
Professor: É querer. Querer mesmo. É a única forma de você redimir a existência enquanto
sofrimento, é você querer a existência enquanto sofrimento. Não sofrimento bruto, vai dizer
Nietzsche, mas artisticamente vivenciado; sempre o mais clássico e claro é exatamente o ápice, o
apogeu do desenvolvimento da tragédia. Por isso que, para Nietzsche, os gregos, de alguma forma,
fornecem uma espécie de modelo, onde isso se faz realidade, do ponto de vista de uma macro
experiência, que é a experiência de uma cultura. Veja, nada do que eu disse até agora tem uma
relação direta com essas 3 linhas que eu li; relação direta tem, na verdade, apenas em função da
explicação da vontade como unidade metafísica, onde Schopenhauer pretende encontrar a essência
última do universo. Quer dizer, é lá onde Schopenhauer pretende ancorar a certeza absoluta a
respeito daquilo que é, essa unidade substancial ou metafísica.
Pergunta: Então, a negação é algo que só o homem pode fazer?
Professor: Sim, e só na ética. Na arte a vontade pode encontrar uma espécie de quietivo; pela
simples contemplação desinteressada do belo, enquanto pura forma, a vontade se aquieta, se
assossega, deixa de ser desejo, passar a ser simplesmente a contemplação sem interesse de uma
forma pura. Essa é a experiência da beleza. Então, na beleza, o puro sujeito contempla a pura idéia.
Mas acontece que a experiência do belo é fugaz; então, a vontade não se nega completamente,
mas se aquieta, por isso a arte, para Schopenhauer, é um quietivo da vontade. Quando é que a
vontade se nega? Na experiência da compaixão. Porque na experiência da compaixão a vontade
toma consciência de si mesma como vontade, ou seja: como impulso assassino e se auto-renega.
Como? Na ascese.
Comentário: Daí vira uma neurose.
Professor: Bom, para Schopenhauer vira santidade. O que é que faz o asceta? O asceta se nega a
si mesmo como corporeidade. Ou seja: ele obstrui as vias, as correntes mais poderosamente vitais
da vontade, que são a sobrevivência e a sexualidade.
Comentário: Volta ao velho problema.
Professor: Claro. Volta a negação da vontade.
Comentário: Mas, por outro lado, poderia se pensar e agir de outra maneira: não é necessário negar
a satisfação da vontade, pode-se aceitá-la sem satisfazer e contê-la. Isso só o ser humano pode
fazer pela consciência.
Professor: Isso é Nietzsche.
Comentário: E é Jung também. Com certeza essa mesma energia, se negada, vai buscar outra
saída. Ela não desiste do seu objetivo.
Professor: Nietzsche diz isso de forma absolutamente explícita em termos teóricos e avança ainda
mais: o fundamental para a cultura não é que a vontade represada encontre qualquer canal de
satisfação, mas que ela encontre um canal de satisfação que seja sublimação, ou seja: que seja
uma transformação qualitativa da sua matéria. No caso da arte, mas também da ciência, da
produção da cultura em geral. O que você pode ter é uma transformação, uma espécie de derivação
dessa corrente de força represada. O que Nietzsche faz, quando faz crítica da cultura, é denunciar
as formas de patologia, por exemplo, o ressentimento, que a gente vai tentar ver de forma mais
clara.
Pergunta: Você chama isso de sublimação?
Transformar os seus Demônios...
Professor: Quem usa a palavra sublimação é especialmente um autor chamado Walter Kaufman; no
caso de Nietzsche, ele próprio usa algumas vezes a palavra sublimieren, mas no sentido químico da
palavra sublimação. O que é que significa a sublimação em química? Significa transformação de
qualidade de uma certa matéria ou composição de elementos.
Isso que eu estou dizendo, que isso é rigorosamente nietzschiano, esse é o programa de concepção
de cultura para Nietzsche, ou seja: ao invés da castração e da repressão no sentido mais corrente
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da palavra; reconhecimento não somente da existência, mas da energia, do vigor dessas correntes,
e contenção, domínio, manutenção sob controle, tanto quanto possível. Ou seja: o programa é
tentar transformar os seus demônios em animais domésticos.
Comentário: Depois de animais domésticos em seres humanos.
Professor: É. Mas, veja, a pior coisa, para Nietzsche, é negar que sejam demônios.
Comentário: E aí dá uma teoria da cultura completamente diferente...
Professor: Completamente diferente. Isso aí a gente pode fazer um exame mais detido nisso, eu
posso trazer textos nesse sentido. Para Nietzsche o homem é tanto mais forte, quanto maior é a
quantidade de impulsos que ele consegue acolher, de certa forma unificar, manter sob o seu próprio
domínio. Ou seja: o homem forte não é aquele que renega aquilo que tem de impulsivo, perigoso,
destrutivo, condenável, mas exatamente aquele que consegue acolher isto como não condenável do
ponto de vista moral; mas sem cair no perigo oposto de uma espécie de libertinagem completa, de
total ausência de domínio.
Comentário: E essa concepção ética é específica do Nietzsche, é uma criação original dele.
Professor: Naquele momento sim. E eu queria só não deixar sem observação essa colocação do
Dornelis sobre a diferença fundamental entre Nietzsche aqui e Schopenhauer. Para Schopenhauer,
a questão é como a vontade é um impulso assassino - eu estou usando a palavra assassino aqui no
sentido forçado -, mas como a vontade é essa disputa pela matéria e portanto ela é
necessariamente violentação, para Schopenhauer; esta violentação é um ciclo infernal que não se
esgota, mas necessariamente se reproduz de forma intensificada. Então, a única possibilidade de
romper o inferno desse ciclo é quando a vontade se contempla a si mesma no espelho, por assim
dizer, da consciência. Vale dizer, por conseguinte, é no homem e, especialmente, no plano da ética,
que a vontade se vê a si mesma como violentação e se auto-renuncia. Ou seja: ela renega a si
mesma como violentação. Porque, se ela não se negar a si mesma, reproduzirá de novo o ciclo
infernal. Qualquer forma de auto-aceitação da vontade, significa reprodução do ciclo infernal de
violentação. Qualquer forma de satisfação da vontade significa reprodução da vontade. Então, só há
um meio de você impedir que o ciclo se reproduza: por meio da auto-negação; é o que faz a ética,
especialmente o que faz a ascese. Eu disse, na arte ela se aquieta, porque a arte é uma
contemplação desinteressada, mas a contemplação artística desinteressada não dura para sempre,
enquanto que o asceta ou o santo consegue isto, precisamente porque ele aniquila as duas
correntes mais vigorosas da vontade, isto é, a sobrevivência e a sexualidade.
Então, isto é Schopenhauer, por um lado. Agora, vejam, e apenas para fazer um pouco mais de
justiça à questão dela: para Schopenhauer esse ciclo infernal da vontade é completamente absurdo.
Por que? Porque eu não posso dar nenhuma explicação da essência do universo entendida como
vontade. Por que? Porque o que é que significa explicar? Explicar significa remeter um fenômeno
qualquer à sua causa ou à algo que possa funcionar como princípio de razão suficiente para
produção desse efeito. Isso significa explicar. Explicar significa dar a razão de ser. O que significa
dar a razão de ser? Precisamente ser capaz de encontrar um motivo, fundamento, causa, razão,
princípio de razão. Ora, o princípio de razão é uma das formas do princípio de causalidade, que por
sua vez só pode subsistir se eu fizer uma profissão de fé anterior, na combinação de espaço e de
tempo. Porque causalidade supõe necessariamente sucessão, sucessão supõe necessariamente
espaço e tempo. Ora, como espaço e tempo são formas da representação só podem valer para o
domínio do fenômeno e não para o domínio daquilo que não é fenômeno, mas coisa em si. Logo, a
vontade pensada como unidade metafísica ou coisa em si, não está submetida ao espaço e o
tempo, e conseqüentemente não está submetida ao princípio de causalidade, portanto, não pode
ser explicável. Logo ela é o absurdo completo. Então, o que fazer para fugir deste absurdo infernal?
Que a vontade se auto-renegue.
Ora, o que vai acontecer no Nietzsche? Nietzsche vai chegar até onde chegou Schopenhauer e
dizer efetivamente: o mundo é vontade, é vontade de poder; efetivamente o que há é esta guerra,
este inferno da vontade, mas isso não é objeto de negação, e sim de aceitação. E eu preciso ser
suficientemente forte, valoroso, para Nietzsche, íntegro, para perceber que não há fuga possível
diante disso; ou seja: que todas as formas de negação deste dado fundamental de crueldade, é
precisamente uma maneira, velada ou manifesta, de fugir desse real. Ou seja: criar uma forma
qualquer de ilusão, de denegação disso. Schopenhauer por via da mística, outros por via de outras
possibilidades. Agora, como assumir, aceitar, viver isto? Como fazer com que isto não seja uma
objeção contra a vida? Como fazer com que a vida não seja uma objeção contra ela mesma? Para
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Nietzsche, vai ser precisamente, transfigurando, ou seja - neste sentido que eu estou dizendo
químico da palavra -, sublimando. Partindo deste dado como dado fundamental e transformando
isso sob a forma da cultura.
Tudo É Perspectiva
Pergunta: Sabe o que me daria paz ao nível intelectual? É uma coisa que eu penso, ao contrário do
Jung - pode ser que a minha leitura seja até equivocada -, mas é a idéia de que há uma
multiplicidade de perspectivas, todas elas válidas, onde eu não tenho condições de falar para uma
pessoa que vive schopenhauerianamente que ela está equivocada, porque o ser dela expressa essa
vontade dessa forma. E eu acho que Nietzsche funda a possibilidade da multiplicidade das
perspectivas, mas, esta convivência light que eu estou querendo, é uma coisa de Jung, na leitura
que ele faz do Nietzsche.
Professor: Sei. Olha, esse é um problema sério, Amnéris. É uma disputa muito grande, inclusive,
dentro das interpretações do Nietzsche. Existem aqueles que defendem a seguinte posição, mais ou
menos, como a sua. Tudo é perspectiva, o universo é perspectiva, e por conseguinte as
perspectivas são, cada uma delas, justas no seu próprio ângulo. Ou vale dizer, todas elas são
injustas. Quer dizer, na medida em que você tem como conceito tradicional de justiça, sair fora do
seu próprio ângulo, para dar a cada um o que é seu em última instância; e como você não pode sair
nunca do seu próprio ângulo, toda perspectiva apreende um campo de visão, mas jamais o próprio
olho, então essa injustiça fundamental de toda perspectiva constitui cada perspectiva como
igualmente justa ou igualmente injusta. Essa é uma visão possível. Uma ampla, uma grande
corrente da interpretação de Nietzsche, diz exatamente isso; outros dizem o seguinte: bem,
Nietzsche diz tudo que há é perspectiva, toda perspectiva é necessariamente injusta inclusive a
minha, mas existe uma certa qualificação da minha perspectiva em relação as outras, e esta
qualificação é a seguinte: eu sou uma perspectiva que se sabe a si mesma perspectiva, enquanto
que os outros são perspectivas que se ignoram a si próprias como perspectiva. Então, porque eu
sei, que sou só perspectiva, e os outros se julgam mais do que simples perspectiva, então a minha
perspectiva é, de certa forma, mais justa do que a deles. Agora, (já falei anteriormente que nós
precisamos ir um pouco além disso), a minha pergunta é: em que medida uma perspectiva pode se
saber a si mesma como perspectiva?
Resposta: Na medida em que eu conheço as outras.
Professor: Isso...
Comentário: E é a realidade. Porque enquanto você está vendo a sua perspectiva, mas, um fato
acontece que sai da sua perspectiva, é assim uma realidade.
Professor: Mas como você pode dizer que algo está fora da sua perspectiva?
Resposta: Quando algo acontece que não cabe dentro dos parâmetros que vocês está colocando.
Professor: Não. Pense em um campo de visão: qualquer fato está dentro do campo de visão.
Comentário: E os outros não existem.
Professor: Claro. Agora, o problema é: como um discurso que diz, que tudo é perspectiva, pode
aspirar-se algo mais do que simples perspectiva, e por conseguinte poder dizer que, enquanto
perspectiva ele é superior ao outro.
Comentário: É exatamente o que o Jung fala dele.
Professor: Esse é um dilema nietzschiano, rigorosamente nietzschiano. O que eu acho, que pode
encaminhar uma resposta nessa direção, em termos de Nietzsche, seria o exatamente o seguinte:
só há perspectiva, não existe absolutamente nada que não seja perspectiva, até aqui eu posso
dizer, todo aquele que diz que há algo mais que simples perspectiva, deve exibir o seu título de
crédito. Ou seja: todo e qualquer outro opositor deve me mostrar que há algo mais do que
perspectiva. Enquanto ele não me mostrar que há uma teoria, que não seja perspectiva, a minha
teoria vige. Ou seja, eu não posso dizer, que tudo aquilo que existe é necessariamente perspectiva
e que este discurso não é perspectivo, entende? Ou não?
Comentário: Eu penso que teria, mas pela sua expressão, eu não entendi nada ...
Professor: Veja, se eu disser, que o discurso que diz: tudo que existe é perspectiva, é
potencialmente contraditório. Por que? Porque ele está dizendo que há uma perspectiva que
descobre todas as outras como perspectiva, e que essa perspectiva portanto não é perspectiva.
Então, para Nietzsche escapar desse escândalo ptolemaico terá de fazer exatamente o trabalho de
desconstituição e dizer: eu desconstituo aquilo que se pretendia ser real, acesso à estrutura da
realidade, mostro que isso é perspectiva; daí eu digo: não há senão perspectiva. Aquele que
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pretende que haja algo mais do que perspectiva, que desconstitua o meu discurso, de tal maneira a
mostrar que existe a possibilidade de um acesso ao real que não seja perspectiva.
Comentário: Eu acho que, por exemplo, o fenômeno não é uma forma de você...
Professor: Perspectiva? Claro, o fenômeno, o que aparece. O fato que você se referia é pura
perspectiva.
Comentário: Mas isso já melhora tanto! Já dá um banho de credibilidade, de democracia, tão grande
para o pensamento.
Professor: Para usar uma expressão que ela usou, eu não sei se vocês chegaram a ler em
Nietzsche: é preciso que nós reinventemos a atitude da modéstia. É preciso ser modesto a ponto de
saber que aquilo que você vê, é uma perspectiva de um ângulo. Agora, Nietzsche não está
entendendo aqui perspectiva simplesmente como o nosso campo de visão, que não é capaz de ver
o seu próprio olho, mas está entendendo perspectiva como também macro perspectiva, isto é,
perspectiva de uma cultura, como a gente vai ver aqui nesse texto. Eu esperava que a gente
terminasse de ver isso hoje...
Comentário: Então, e que toda perspectiva tem uma singularidade, tem uma forma de crescimento...
Professor: Isso.
Comentário: Isso é maravilhoso!
Professor: Isso. Toda perspectiva é de um ângulo, vai dizer Nietzsche.
Comentário: É um filme de Hithcock. Tem muitas perspectivas.
Professor: Tem. Em Hithcock tem. Nietzsche vai dizer: há infinitas perspectivas. Isso ele vai chamar
de o nosso novo infinito; vai dizer: o mundo se tornou infinito outra vez, depois que nós fizermos a
crítica da metafísica. Por que? Porque nós abrimos o espaço para a multiplicidade infinita das
perspectivas. É esse que é o nosso novo infinito, o novo infinito não é o infinito da metafísica, mas o
infinito da perspectividade; infinito não do além, não o infinito transcendente, mas se você quiser
uma construção quase absurda, o infinito da imanência.
Comentário: É como um círculo. São infinitos pontos possíveis.
Professor: É.
Pergunta: Então, como que é que ficaram os opostos, então?
Professor: Pois é, então, é uma outra forma de reflexão, que passa necessariamente por uma crítica
da lógica tradicional; os opostos só têm sentido se você, no caso do Nietzsche, se mantém sob o
círculo de validação da lógica tradicional, que acredita na oposição dos contrários, se você parte da
oposição dos contrários.
Novamente os Românticos
Comentário: Os românticos são espertos, pois quando chegam nesse ponto eles também abrem
mão do pensamento e falam: Bom, mas o que é essa unidade dos contrário, dos opostos? É o
espaço lúdico, diz o Schiller. É a fantasia. Quer dizer, ele saiu do nível da linguagem, senão eles se
tornam prisioneiros.
Professor: É isso que eu estava dizendo agora, há muito elemento de romantismo em Nietzsche,
muito mesmo. Está Schiller, mas outros, por exemplo, Novalis...
Comentário: Mas, então, Nietzsche também chega nesse espaço, nesse além, nesses opostos.
Professor: Isto.
Comentário: Só que os românticos fazem um caminho pela unidade dos opostos, eles acreditam na
unidade dos opostos.
Professor: E Nietzsche desconstitui.
Comentário: Nietzsche desconstitui e desde o começo está fazendo a crítica.
Comentário: Mas ele mesmo trabalha com os opostos, na medida em que...
Professor: Pode não trabalhar, esse é o problema. Aí é que está o escândalo. Se você quer pensar
e se você quer falar, você tem que pensar com essas categorias. Quer dizer, o grande problema é o
seguinte: razão não é alma, princípio substancial, razão é lógica e gramática. Aliás, é Logos. Então,
se a gente pensa, pensa assim; se a gente fala, fala desse jeito. Agora, o problema é este terrível
exercício de auto-reflexão da razão sobre si mesma. No caso do Nietzsche isso é claríssimo. Agora,
vejam, porque eu chamo isso de opostos, senão em virtude da minha própria perspectiva.
Comentário: Mas também pode ser pensada na perspectiva da vida que tem muitos opostos, como
agrião e cicuta no mesmo canteiro ou vida e morte ou gerar e matar etc...
Circumambulatio
Professor: Mas a vida provavelmente pode ser pensada também como complementariedade.
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Comentário: Mas gente, espera um pouco, o inconsciente não compreende as coisas em termos de
opostos, compreende?
Resposta: Sim. Também.
Comentário: Não, mas ele não organiza. É com aquele quadro do Peticov das frutas sobre a mesa.
Não organiza. A consciência, ela compreende essa unilateralidade, em termos de opostos, ela
divide as coisas para compreensão, não é isso? Então, ela percebe que o inconsciente também está
num outro pólo oposto, dual dela.
Comentário: Mas ao mesmo tempo a consciência é parte do inconsciente. Porque, seguindo a
imagem do quadro do Peticov, as mesmas cores que estão no inconsciente estão na consciência,
porém organizadas.
Comentário: Desculpem, para Nietzsche, não há fatos, só há interpretação. Não existe o que ela
chama realidade, não existe o que você está chamando de inconsciente, e o que ele chama de vida.
Isso aí são todas projeções, interpretações. Aí a gente trabalha com isso como se fosse a realidade,
como se fosse o fato, mas isso não existe.
Comentário: Então, mas quem faz esta interpretação e coloca nesses termos é a consciência ou a
razão, é a maneira como você compreende tudo, não é isso? Então, tem uma outra coisa que é
invisível, ela só se torna visível quando passa pela razão.
Professor: Espera um pouquinho, tem uma outra coisa, quando você disse isso, você já usou de
novo todas categorias da consciência.
Comentário: Está vendo? Não tem como escapar.
Professor: O seu discurso foi até exatamente o limiar de onde é possível. Aí você diz: "Tem". O que
é tem? Ser, uma, outra coisa...
Comentário: Então, você só pode dizer isso quando experiencia alguma coisa que não dá para
expressar, como o sonho, por exemplo.
Professor: É isso mesmo. Vejam, portanto, para que nós possamos falar temos que identificar
coisas, seres, substâncias com atributos, propriedades, relações, e nós estamos de novo no nosso
confortável regime doméstico da gramática.
Comentário: Então, isso é uma linguagem da consciência, não é? É a maneira como a consciência
compreende as coisas. A consciência não pode fugir disso, não tem como.
Professor: É exatamente isso. Você mesma disse, é preciso organizar para compreender. É isso
mesmo. Você não pode fechar a janela dessa consciência e dizer: "Bom, agora eu vou ter acesso a
outra coisa". Porque a outra coisa já não é outra, ela continua sendo a mesma coisa.
Pergunta: A experiência com droga não seria uma tentativa de escapar disso?
Professor: Não sei, porque aí precisaria ver como você vai abordar isso. Se você vai tratar isso
através de experiência você já está dentro de uma certa categoria, que é uma categoria da clínica.
Agora, o que é que você efetivamente quer aproveitar da experiência com droga? Se for
absolutamente singular da experiência, de novo você cai no incomunicável. Isso não te leva
absolutamente a nada.
Comentário: Então, mas o que eu coloco seria uma tentativa de sair dessa prisão, desse mundo da
palavra, de máscaras... A droga seria uma busca...
Professor: Porque necessariamente isto tem que ser vivido só como prisão? Esse é o problema.
Comentário: Bom, mas o que a gente está sentindo aqui é isso.
Professor: Isto é prisão mesmo. Isto é uma camisa de força, isto é uma amarra, isso não é uma
camisa que você pode tirar ou um óculos que você pode trocar...
Comentário: Mas tem o corpo também.
Professor: Mas o corpo não necessariamente tem as mesmas limitações que você tem na
consciência. Isto nós vamos ver nesse texto aqui. A consciência necessariamente supõe uma
unidade, que é uma unidade estática; enquanto que a unidade do corpo é uma unidade dinâmica. E,
sobretudo, uma unidade da pluralidade.
Comentário: Por isso que você tem o Self no corpo.
Professor: Exatamente. Agora, eu queria só dizer uma coisa: é possível fazer a experiência da
camisa de força da linguagem, e mesmo assim brincar com ela. Ou seja: é possível você ironizar a
sua própria linguagem. Vale dizer, é possível você fazer a experiência da máscara como máscara; e
quando você faz uma experiência da máscara como máscara, você não tem mais a ilusão que tem,
necessariamente, de chegar num rosto. E porque você tem a experiência da máscara como
máscara e não da máscara como rosto, você tem uma outra forma de relação com a máscara, que
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não é a forma da má consciência, a forma do peso, a forma ressentida e negativa. Você tem a
possibilidade de um relacionamento leve, de superfície, com a própria máscara. Ou seja: você tem
dois lados, de um, a denúncia grave da máscara como máscara, e de todas as formas de negar o
caráter superficial de toda máscara - e esse é o lado pesado da filosofia de Nietzsche -, quer dizer,
da denúncia da tradição como formas de ilusão e auto-ilusão, formas de mistificação; e por outro,
esse trato mais leve com a máscara, ou se você quiser, essa dança sobre a superfície, que não tem
ilusão, que não vai chegar em fundo nenhum.
Comentário: Seria aceitar a arte.
Professor: A arte como pura superfície. Por isso, para Nietzsche, a arte é mais honesta do que a
ciência. Por que? Porque a arte é a vontade de ilusão, a vontade de aparência confessada. A arte
não quer outra coisa que não a bela aparência, enquanto que a ciência pretende chegar em alguma
coisa que não seja só a aparência. Logo a ciência é menos honesta do que a arte, porque a ciência
continua achando que existe alguma coisa que não seja aparência. Ou seja, a ciência é pesada.
Comentário: Há uma pintura do Peticov das frutas, que representa muito bem isso. É uma
representação, aparentemente, de uma mesa, que tem frutas organizadas pelo espectro das cores.
Então, Há uma faixa em cima da mesa com as cores organizadas em forma de frutas. E depois, no
resto do quadro, representando o universo, estão as mesmas cores, porém desorganizadas. São os
dois aspectos.
Professor: Isso, sem dúvida, acho que é uma imagem que reproduz maravilhosamente bem o que a
gente está dizendo aqui. Bom, gente, muito obrigado e até a próxima aula.
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Prof. Dr. Giacóia é especialista em Nietzsche, filósofo e professor da UNICAMP

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