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capa

TÍTULO ORIGINAL:
Generation One

EQUIPE DE TRADUÇÃO:
JOHN DC
FELLIPE FERNANDES
GUSTAVO ANDRADE
MARCOS ZIMMER
ALINE MARQUES

REVISÃO E CRIAÇÃO DO E-BOOK:


RENATO SANCHES
Os últimos sobreviventes de Lorien – a Garde – foram enviados à
Terra ainda crianças. Espalhados através dos continentes, eles desen-
volveram seus poderes extraordinários, conhecidos como Legados, e
se prepararam para defender o planeta que os adotou.
A Garde frustrou a invasão Mogadoriana na Terra. Durante esse
processo, eles mudaram a natureza do planeta. Os Legados começa-
ram a se manifestar nos seres humanos.
Essa nova Garde assusta algumas pessoas, enquanto outras pro-
curam uma forma de manipular a forma como eles devem usar seus
dons.
E embora os Legados tenham o propósito de proteger a Terra,
não são todos os Gardes que vão usar seus poderes para o bem.
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CAPÍTULO UM

KOPANO OKEKE
LAGOS, NIGÉRIA

Udo, vendeu a televisão. Apesar das fortes orações de sua mãe


para que seu pai encontrasse um emprego, Udo estava desem-
pregado, e eles estavam com três meses de aluguel atrasado.
Kopano não se importava com isso. Ele sabia que uma televisão
nova apareceria logo. A temporada de futebol estava chegan-
do e seu pai não a perderia.
Quando as naves alienígenas apareceram, a família in-
teira de Kopano se espremeu no apartamento de seu tio. A pri-
meira reação de Kopano foi sorrir para seus dois irmãos mais
novos.
— Não sejam estúpidos – Kopano declarou. — Isso é
apenas um filme americano mal feito.
— Está em todos os canais da TV! – Obi gritou em res-
posta.
— Calem a boca vocês dois – mandou o pai de Kopano.
Eles assistiram ao vídeo de um homem de meia idade,
supostamente extraterrestre, dando um discurso em frente ao
prédio das Nações Unidas, em Nova Iorque.
— Viu? – Kopano disse. — Eu disse. É um ator. Qual é o
nome dele?
— Shh – seus irmãos reclamaram em uníssono.
Logo depois a cena se transformou em um caos. Nova
Iorque estava sob o ataque de seres humanoides pálidos, que
sangravam preto e viravam cinzas quando eram mortos. Então
alguns adolescentes, dotados de poderes que pareciam efeitos
especiais, apareceram e começaram a lutar contra os alieníge-
nas. Os adolescentes eram apenas alguns anos mais velhos que
Kopano e, apesar da loucura que a chegada deles causou, Ko-
pano se encontrou torcendo por eles. Nos dias que viriam, Ko-
pano aprenderia os nomes dos dois lados. Os Lorienos contra os
Mogadorianos. John Smith e Setrákus Ra. Não havia dúvidas de
quem eram os mocinhos.
— Incrível! – Kopano disse.
Não eram todos que compartilharam o entusiasmo de
Kopano. Sua mãe se ajoelhou e começou a rezar, murmurando
fortemente sobre o Dia do Julgamento, e o pai de Kopano gen-
tilmente começou a escoltar seus irmãos para fora da sala.
Seu irmão mais novo, Dubem, estava assustado e agarrou
a perna de Kopano, então ele pegou o menino e o segurou no
colo. Kopano era pequeno e forte igual seu pai, com exceção
dos músculos, já que seu pai era barrigudo. Ele deu tapinhas
nas costas de Dubem. — Não tem nada com o que se preocu-
par, Dubem. Isso tudo está acontecendo bem longe.
Eles permaneceram colados na TV do tio até à noite.
Nem mesmo Kopano podia continuar demonstrando coragem
quando eram exibidas as filmagens mostrando a destruição de
Nova Iorque. Os âncoras mostraram um mapa mundi com pe-
quenos pontos vermelhos pairando sobre mais de vinte diferen-
tes cidades. Todas tomadas por naves alienígenas.
O pai dele bufou quando viu o mapa. — Cairo? Joha-
nesburgo? Esses lugares têm naves alienígenas e a gente não?
Ele bateu palmas. — Nigéria é a gigante da África! Onde está
o respeito?
Kopano mexeu a cabeça. — Você não sabe o que está
dizendo, meu velho. O que você faria se os Mogadorianos apa-
recessem aqui? Se esconder debaixo da cama, provavelmente.
Udo levantou sua mão, como se fosse bater em seu filho,
mas Kopano nem hesitou. Eles ficaram se encarando até Udo
bufar e voltar sua atenção para a TV.
— Eu mataria muitos – Udo murmurou.
Kopano sabia que seu pai era um homem orgulhoso e
arengueiro que não se arrependia. Já fazia anos desde que
Kopano respondera os grandes discursos de Udo com algo além
de uma risadinha. Entretanto, Kopano não riu nem um pouco
quando seu pai falou sobre matar Mogadorianos. Ele sentia isso
também. Tinha vontade de fazer alguma coisa, de salvar o
mundo, como aqueles garotos que ele viu lutar na frente do
prédio das Nações Unidas. Ele se perguntou o que acontecera
com eles. Ele esperava que todos ainda estivessem por aí, lu-
tando, fazendo esses alienígenas otários virar poeira.
Os Lorienos. Que foda.
Na segunda noite da invasão, Kopano estava do lado de
fora da varanda do seu tio. Lagos nunca havia ficado tão qui-
eta. Todos estavam segurando a respiração, esperando algo
terrível acontecer.
Kopano voltou para dentro. Seus irmãos e seu tio esta-
vam sombriamente assistindo a TV, vendo uma reportagem hor-
rível sobre um ataque chinês, que falhou, contra uma nave de
guerra Mogadoriana. Seu pai deu um soco no braço do sofá,
bufando. Exausto, Kopano se jogou na cama.
Ele sonhou com o planeta Lorien. Na verdade, foi mais
como uma visão do que um sonho, a coisa toda se desenrolando
como num filme. Ele viu a origem da guerra que chegou à Terra,
aprendeu sobre o líder Mogadoriano, Setrákus Ra, e sobre a
corajosa Garde que lutou contra ele. A saga pareceu algo reti-
rado de uma revista em quadrinhos sobre mitologia.
E então, de repente, ele acordou. Mas Kopano não esta-
va na cama de seu tio, em Lagos. Ele estava sentado em um
auditório gigante ao lado de vários outros adolescentes de di-
ferentes países. Alguns deles estavam conversando, a maioria
estava assustada, porém, todos confusos. Todos haviam experi-
mentado a mesma visão. Kopano ouviu um menino dizer que no
momento anterior ele estava em casa jantando, e que sentiu
uma sensação estranha cair sobre ele, e que agora estava aqui.
— Que bizarro esse sonho – Kopano disse em voz alta.
Alguns adolescentes próximos murmuraram em assentimento.
Uma garota japonesa que estava sentada ao lado dele se virou
para respondê-lo.
— Mas esse sonho é meu ou seu? – ela perguntou.
Então novas pessoas surgiram do nada, todas sentadas
na mesa ornamental, no centro do auditório. Todos reconhece-
ram John Smith e os outros Lorienos da TV e do Youtube. Per-
guntas eram gritadas – “O que está acontecendo? Por que nos
trouxeram aqui? Vocês vão salvar nosso planeta?” – mas Kopa-
no ficou em silêncio. Ele também estava admirado e queria sa-
ber o que esses novos heróis tinham a dizer.
John Smith falou com eles. Ele parecia confiante de um
jeito honesto. Kopano gostou dele imediatamente. Ele disse –
para os humanos sentados no auditório – que todos nós tínha-
mos Legados.
— “Eu sei que isso parece loucura” – John Smith disse. —
“Provavelmente também pode não parecer justo. Há alguns dias
vocês viviam vidas normais. Agora, sem aviso, há alienígenas em
seu planeta e vocês podem mover objetos com a mente. Certo?
Quero dizer... quantos de vocês já desenvolveram a telecinese?”
Muitas mãos se ergueram no ar, incluindo a da garota
japonesa. Kopano olhou ao redor, enciumado e desapontado
consigo mesmo. Esses outros adolescentes estavam desenvolven-
do telecinese enquanto ele estava sentado na sala vendo TV.
Uma garota loriena, que brilhava e falava com uma voz
estranha ecoando, exibiu um mapa da Terra com locações mar-
cadas. Loralite, uma pedra nativa de Lorien, que agora crescia
naqueles lugares. Aqueles com Legados – os Gardes Humanos,
como supostamente era Kopano – poderiam usar essas pedras
para se teleportar através do planeta. Eles poderiam se juntar
à luta.
— “Eu, obviamente, não posso forçar vocês a se juntarem
a nós” – disse John Smith. — “Dentro de alguns minutos, vocês
acordarão dessa reunião e voltarão para onde quer que esti-
vessem. Onde é seguro, assim espero. E talvez aqueles que
queiram lutar, talvez os exércitos do mundo, todos nós... talvez
seja o suficiente. Talvez possamos ganhar dos Mogadorianos
lutando e salvar a Terra. Mas se falharmos, mesmo se vocês fi-
carem no banco de reserva desta batalha... eles irão atrás de
vocês. Então estou pedindo a todos, mesmo que não me conhe-
çam, e embora nós realmente tenhamos agitado suas vidas – se
juntem a nós. Ajudem-nos a salvar o mundo”.
Kopano comemorou. Ele batia o punho cerrado na palma
da mão. Ele estava pronto.
De repente, o malvado Setrákus Ra estava gritando
ameaças, seus olhos negros olhando todos na sala, seu olha ras-
treando todo mundo. E as pessoas começaram a desaparecer,
saindo do sonho. Kopano acordou de repente, suado, sua cabe-
ça doendo.
O pequeno Dubem era o único ainda acordado, e ele es-
tava encarando o irmão. — Kopano – Dubem sussurrou. — Vo-
cê estava brilhando!
No dia seguinte, com sua família mais uma vez reunida
ao redor da televisão, Kopano se pronunciou.
— Os Lorienos visitaram meu sonho. O próprio John Smith
pediu para que eu me junte a ele em defesa da Terra. Eles me
mostraram um mapa do mundo com a localização de pedras
que eu posso usar para me teleportar até eles. Uma delas está
localizada em Zuma Rock. Eu preciso ir lá imediatamente para
encontrar meu destino.
Dubem assentiu solenemente, enquanto o resto da família
de Kopano o encarava. Então seu pai e seu tio começaram a
gargalhar, e logo seu irmão, Obi, se juntou a eles.
— Ouçam essa criança – o pai dele gritou. — Encontrar
o destino dele! Cale a boca agora, não conseguimos ouvir as
notícias.
— Mas eu vi! – Dubem disse, sua pequena voz trêmula.
— Kopano estava brilhando.
A mãe deles fez o sinal da cruz. — Um demônio invadiu
nossa casa.
Udo considerou seu filho através de olhos semicerrados.
Kopano se levantou, com o peito estufado, esperando acontecer
alguma coisa.
— Tudo bem, senhor super-herói – disse Udo miseravel-
mente. — Se você é um ET agora, por favor, nos mostre seus
poderes.
Kopano respirou fundo. Ele olhou para suas mãos. Ele não
se sentia nada diferente do que no dia anterior, mas isso não
significava necessariamente que os grandes poderes lóricos não
estavam fluindo dentro dele, certo?
Com alguns movimentos rápidos imitando as artes marci-
ais, Kopano esticou suas mãos na direção de seu pai. Ele espe-
rava que sua telecinese fosse aparecer e derrubar seu velho da
poltrona. Mas enquanto Udo se arrepiou com o movimento re-
pentino, nada além ocorreu.
O tio de Kopano riu novamente e bateu nas costas de
Udo. — Sua cara! Você pareceu que ia cagar nas calças!
Udo franziu o cenho, e então bufou na direção de Kopa-
no. — Viu? Nada— de repente o rosto do pai dele se contor-
ceu em angústia. Udo bateu contra seu peito, seus pés chutando
o ar em espasmos. Seus olhos se arregalaram de pânico. —
Meus órgãos! – ele gritou. — Meus órgãos estão fervendo!
A mãe de Kopano gritou.
Kopano e seus irmãos correram em direção ao pai. O tio
deles deu um passo para trás, assustado. Kopano agarrou o
braço de Udo.
— Pai, me desculpe! Eu não sei o que...
O pai dele deu um tapa na lateral a própria cabeça e
riu. Desse jeito ele foi milagrosamente curado e já estava
olhando novamente para a TV. Uma piada.
— Seu garoto estúpido, eu estou bem. Ou talvez meus
poderes alienígenas são melhores que os seus, hem? – ele ace-
nou para Kopano se afastar. — Vá em frente. Veja sua mãe.
Você a assustou para caramba.
Kopano se afastou. Será que realmente foi um sonho? E
se ele não tivesse desenvolvido nenhum Legado? Um garoto de
Lagos correndo para salvar o mundo? Nem mesmo Bollywood
fazia filmes desse jeito.
O pequeno Dubem bateu palmas.
— Eu acredito em você, Kopano – seu irmão mais novo
sussurrou, — Você vai salvar todo mundo.
Pelo menos durante alguns dias, depois de seu pronunci-
amento vergonhoso, a família de Kopano estava grudada de-
mais à TV para aborrecê-lo. E então a invasão terminou, de
repente e de forma brutal, com as nações da Terra se reunindo
para simultaneamente atacar cada nave de guerra Mogadori-
ana.
Enquanto isso, a Garde, aqueles que invadiram o sonho
de Kopano e lhe prometeram coisas maiores que Lagos, foi pa-
ra a base secreta dos Mogadorianos em West Virginia e mata-
ram Setrákus Ra. Kopano imaginou estar lá, lutado ao lado da
Garde, e derretendo Setrákus Ra com seu bafo de fogo.
Bafo de fogo, decidiu Kopano, será seu Legado.
Quando as notícias anunciaram que a Terra foi salva,
eles celebraram nas ruas. Seu pai o abraçou forte enquanto
eles dançavam na rua, fogos de artifício explodindo acima. Ko-
pano não se lembrava da última vez que Udo o havia abraça-
do daquele jeito. Não desde que ele era uma criança.
Mas no dia seguinte tudo começou.
“Filho ET, vá até o supermercado antes da escola e com-
pre algumas coisas que eu estou pensando agora! Use sua tele-
patia!”
“Filho ET, você acabou seu dever de casa?”
“Filho ET, use sua telecinese para me trazer uma bebi-
da?”
Kopano riu de tudo isso, mas por dentro estava triste. Seu
pai, estando desempregado, não tinha nada melhor para fazer
do que ficar sentado em casa e pensar em coisas para humilhá-
lo.
Pior ainda, seu irmão linguarudo, Obi, espalhou o que
aconteceu para a escola inteira. Logo os amigos de classe de
Kopano estavam zoando ele também.
Uma tenda no supermercado tinha começado a vender
máscaras de borracha de Mogadorianos, coisas cinza gigantes,
com olhos negros e dentes amarelos. Um grupo de amigos mais
velhos caçaram Kopano pela escola usando as máscaras, e
quando o pegaram no campo de futebol, usaram rolos de fita
para cegá-lo, e chutaram bolas nele.
Até que Kopano parou uma das bolas de futebol no meio
do ar. Quando aquilo aconteceu todos correram gritando.
— Finalmente – Kopano sussurrou para si mesmo enquan-
to se soltava. — Finalmente.
Já fazia três meses desde a invasão. Acabou se desco-
brindo que Kopano era um dos atrasados.
Naquela tarde, ele entrou correndo dentro do aparta-
mento de sua família e encontrou seu pai tirando um cochilo no
sofá. Com seus irmãos mais novos observando, Kopano usou sua
telecinese para levitar o sofá acima do chão. E então ele come-
çou a gritar: “Fogo! Fogo! Pai, acorda!”
Seu pai acordou de repente, jogou suas pernas para fo-
ra do sofá, e caiu de dois metros de altura. Enquanto ele res-
mungava e se levantava, olhava sombriamente para o sofá que
ainda flutuava sobre ele. Obi e Dubem caíram na risada. Ko-
pano apenas sorriu para seu pai, dando de ombros, da mesma
forma nobre que recebera naquela manhã humilhante, meses
atrás.
— Está vendo, meu velho? O que eu te disse?
Udo tropeçou até seu filho, um grande sorriso surgindo
em seu rosto. Ele agarrou as bochechas de Kopano. — Meu fi-
lho ET lindo, você é a resposta para todos nossos problemas.
Muitos meses depois, quando Kopano finalmente chegou
à América, a psicóloga Linda Matheson o perguntou como a
vida era em Lagos, antes de ele vir para a Academia da Gar-
de Humana.
Kopano pensou numa resposta por um bom tempo antes
de respondê-la.
— Bem – ele disse. — Eu acho que por um algum tempo
eu fui um criminoso.
SOBREVIVENTES DE
PATIENCE CREEK –
LOCALIZAÇÃO NÃO REVELADA

chamada de John Smith, logo após a visão, a invasão não foi


tão gloriosa como Kopano invejosamente imaginou.
A história de Patience Creek não foi reportada nas notí-
cias. A batalha lá não fez parte de nenhuma retrospectiva feita
após a invasão. Foi mantida em segredo. Lembrada apenas pelos
sobreviventes.
Patience Creek era uma base secreta governamental, em
Michigan, onde os Lorienos se esconderam após a invasão, tra-
mando o contra-ataque aos Mogadorianos. Juntaram-se a eles o
pessoal militar e alguns Gardes Humanos, aqueles que responde-
ram de imediato o pedido telepático de John Smith ou que de
alguma forma cruzou o caminho dele.
Daniela Morales. Raio petrificante.
Nigel Barnaby. Manipulação sônica.
Caleb Crane. Duplicação.
Ran Takeda. Detonação cinética.
Havia outros, mas eles não sobreviveram ao ataque quan-
do os Mogadorianos descobriram Patience Creek. A maioria dos
militares não sobreviveu também. O próprio John Smith quase
foi morto. Foi algo brutal e sangrento, e nada heroico. Tudo isso
mostrou a John Smith que, talvez, os humanos que ele recrutou
não estivessem prontos para uma guerra de escala global.
Eles precisavam de treinamento que os Lorienos não ti-
nham tempo para dar. Não naquela época pelo menos. Os hu-
manos precisavam de proteção.
Então, John Smith os mandou para longe.
— A baía sangrenta de Guantánamo – Nigel lamentou.
Daniela rolou os olhos. — Aqui não é Cuba, cara.
Nigel se abaixou e juntou uma boa quantidade de areia
branca brilhante. Ele abriu os dedos e deixou os grãos caírem no
oceano azul-cristalino. Os raios de sol o atingiram – circulando
sua pele ossuda e pálida, uma queimadura de sol crescendo em
torno de seu moicano branqueado, suas bochechas pipocadas em
insistentes espinhas. Ele vestia uma camisa regata preta por cau-
sa do calor. Ele gesticulou das ondas para a base militar austera
que fica a duzentos metros de distância – as acomodações deles
pelos próximos dias – e olhou de volta para Daniela.
— Uma base militar sinistra numa ilha tropical – Nigel
argumentou. — Onde você acha que estamos?
— Não é sinistra – Caleb disse. Ele passou a mão sobre um
de seus cortes e atirou uma pedra no oceano. Biscuit, o Chimaera
de Daniela, um animal mutante de Lorien que preferia a forma
de um gold retriever, se atirou na água atrás da pedra. — Há uma
lanchonete.
— Não é sinistra para você, camarada – Nigel respondeu.
— Você cresceu em um desses lugares, não foi? E, além disso, seu
tio está no comando.
— É para Guantánamo que eles trazem os caras ruins e os
merdas – Daniela respondeu para Nigel. — Não somos prisionei-
ros. Esse é apenas um ponto de parada – ela olhou para Caleb. —
Certo?
O tio de Caleb era o General Lawson. Ele foi chamado da
aposentadoria e colocado no comando dos exércitos da Terra,
junto com os Lorienos, durante a invasão. Desde então pareceu a
Caleb que seu tio estava esperando ordens. Como se ele não sou-
besse o que acontecerá agora.
Lá em Patience Creek, Caleb atuava como guarda-costas
de seu tio. — Em caso de qualquer um desses extraterrestres ex-
trapolarem, você é meu truque debaixo da manga – Lawson dis-
se para o sobrinho. Caleb não pensava que ele fosse lutar cara a
cara com John Smith ou algum outro Garde de Lorien, mas ele
não discutiu. Foi ideia do se tio Caleb agir como se tivesse um
irmão gêmeo. Ele estava tendo problemas em controlar seu Le-
gado de duplicação – um segundo corpo surgia dele sem qual-
quer aviso – então era melhor que seu clone se escondesse à vista
de todos.
Desde que eles chegaram à ilha, Caleb jantou com seu tio
todas as noites no escritório sem janelas do tio. Essas refeições
foram silenciosas, especialmente depois que uma das duplicações
de Caleb se manifestou e lançou um prato de comida na cara do
tio. Desde que saíram de Patience Creek, os clones estavam difí-
ceis de ser controlados. Mais inquietos. Com suas próprias men-
tes.
Caleb não disse isso para ninguém, ele manteve sua boca
fechada, como um soldado.
Para Daniela, ele simplesmente assentiu. — Você prova-
velmente está certa.
Nigel bufou. Ele não acreditou em nada do que Caleb dis-
se. Ele se virou, observando seu próprio Chimaera, o guaxinim
chamado Bandit, procurando conchas marinhas.
Daniela bateu palmas. — Eu só quero voltar para Nova
Iorque, cara – ela disse. — Encontrar minha mãe. Fazer algo útil.
Todos eles assentiram em concordância, até mesmo a si-
lenciosa Ran Takeda, a garota japonesa que estava sentada por
perto, junto com sua Chimaera em forma de tartaruga, Gamora,
enquanto passava carinhosamente as mãos sobre o casco do ani-
mal. Essa era a vida deles – observar os canais de notícias sobre
os acontecimentos pós-invasão, comer comida militar requentada
em micro-ondas e passear pela praia.
Algumas vezes, eles praticavam sua telecinese, copiando
os jogos rudimentares que Nove havia hostilmente ensinado,
durante o pequeno período de treino que deu para eles. Eles es-
tavam ansiosos, esperando que, eventualmente, pudessem ser
úteis. E eles faziam de tudo para não pensar em Patience Creek.
Daniela e Caleb se afastaram, deixando Nigel e Ran sozi-
nhos na praia.
— Então, o que você acha, silenciosa e violenta? – ele per-
guntou. — Nós somos príncipes e princesas ou prisioneiros?
Ran olhou para Nigel. — Eu não acho que alguém saiba o
que somos – ela disse após uma longa pausa.
Nigel sorriu. Ele ainda não conseguia acreditar que Ran
falava um inglês perfeito. Ele pensou que ela era muda na pri-
meira vez que se encontraram, na pedra de Loralite das Cataratas
do Niágara, até chegarem a Patience Creek. Todos presumiram
que ela não sabia falar inglês.
Ela salvou a vida dele lá em Patience Creek, talvez mais de
uma vez, e por isso ele se aproximou dela. Ele começou a perce-
ber os olhos afiados dela durante as conversas que aconteciam ao
seu redor.
E então ele a pegou sorrindo durante um de seus discur-
sos. Ele a confrontou e ela admitiu que sabia falar inglês. Por que
ela não disse nada antes? Porque ninguém se incomodou em
perguntá-la. Até onde Nigel sabia os outros ainda pensavam que
ou ela era muda, ou ela não podia entendê-los, ou as duas coisas.
Foi assim que a aliança deles começou. Nos dias depois da
confissão dela, com nada para fazer além de sentar na praia e
esperar por notícias, Nigel e Ran se conheceram melhor. Ele con-
tou para ela sobre o passado aborrecido dele em Londres, e ela
contou sobre a vida quebrada dela em Tóquio. Eles descobriram
que tinham coisas em comum.
Nenhum deles tinha uma vida para voltar.
Nigel se agachou perto de Ran e coçou o queixo de Gamo-
ra. — Claro que eles te deram o Chimaera com o nome inspirado
num filme do Godzilla, né? Meio estereótipo, né não? Pensei que
os refugiados de uma sociedade alienígena avançada seriam me-
lhores que isso.
— Eu não me importo. Eu sempre gostei de tartarugas –
ela olhou para ele. — Você não precisa reclamar de tudo, Nigel.
Nigel suspirou, olhando por cima do ombro na direção em
que Daniela e Caleb foram. — Mas você concorda comigo, mes-
mo assim. Que essa situação em que nos encontramos é loucura.
— Sim – Ran respondeu.
— Então, você podia falar sobre isso – Nigel pediu. — Me
defender quando o soldadinho me disser coisas chatas. Quero
dizer, você precisa começar a conversar com os outros logo, não
acha?
Ran olhou para as ondas, pensando.
— Eu não achei que sobreviveria à invasão – ela disse por
fim. — Tudo o que eu queria fazer era lutar. Não havia motivos
para conversas, para fazer amigos – ela pausou. — Depois de
termos vindo para cá, eu continuei assim para que o General
Lawson e aqueles que estão nos observando pudessem falar li-
vremente perto de mim. Nossa situação é estranha, como você
disse. Nós precisamos saber em quem podemos confiar, nakama1.
Os quatro passaram semanas na ilha num clima estranho
enquanto o resto do mundo se recuperava da invasão aos pou-
cos.
Então, finalmente, eles observaram da praia enquanto um
esquadrão de quatro helicópteros pretos chegou à base. Os veícu-
los carregavam militares e pessoas elegantes vestidas em ternos
com equipamentos de alta tecnologia.
— O triunvirato profano – Nigel observou. — Soldados,
senadores e cientistas.
— Alguma coisa vai acontecer hoje – Caleb disse.
— Não brinca – Daniela respondeu.
O General Lawson passou o dia todo em reunião com os
recém-chegados. Os Gardes torceram os dedos até o anoitecer,
quando Lawson finalmente os chamou para dentro de uma das
salas de conferência da base. Arranjados sobre a mesa havia um
monte de folhetos brilhantes, todos eles exibindo uma linda garo-
ta loira no meio do processo de levitação de uma rocha de con-
creto acima dela, livrando uma família que estava presa embaixo.
Lia-se: “NOSSO PLANETA – NOSSOS PROTETORES – A
GARDE TERRESTRE”.
— Uma delegação das Nações Unidas chegou hoje – o Ge-
neral começou sem estardalhaço. — Uma decisão foi feita a res-
peito...
— Espera aí – Daniela interrompeu, pegando um dos fo-
lhetos. — Porque essa garota me parece tão familiar?
— Essa é Melanie Jackson – Caleb respondeu.
Daniela olhou para ele depressa.
— A Primeira filha? Sabe, do nosso presidente – ele expli-
cou.
— Hum – Daniela disse. — Ela é forte, huh?
Nigel olhou para sua cópia do panfleto da Garde Terres-
tre. — Muita maquiagem para um ato espontâneo de heroísmo.
O General Lawson coçou a ponta de seu nariz e continu-
ou. — A senhorita Jackson é a primeira inscrita no programa
Garde Terrestre, uma iniciativa coordenada para treinar e im-
plantar os TALs, perdão, os Gardes Humanos.
TALs foi o primeiro termo usado pelo exército norte-
americano, possivelmente inventado pelo próprio Lawson. De-
pendendo a quem se perguntava, significava Terráqueos Afeta-
dos por Legados ou Terráqueos Aprimorados por Legados.
Daniela sorriu. — É disso que eles estão nos chamando
agora? Gardes Humanos?
Lawson suspirou. — É simples e menos... ofensivo do que
TALs, aparentemente. Há outros envolvidos. Não é minha área.
— Ei – Nigel interrompeu. — Você disse implantar? Tipo,
como em tropas?
Lawson começou novamente. Sua paciência, por estar
sendo interrompido, cresceu exponencialmente desde que ele
começou a trabalhar com a Garde. —Países participantes, inclu-
indo a Inglaterra e o Japão— ele olhou na direção de Nigel. —
Ah, droga. Esqueci-me de chamar o intérprete para ela.
—Não é necessário – Ran disse. —Por favor. Continue.
Todos olharam para ela, com exceção de Nigel, que come-
çou a rir. O General Lawson mexeu a cabeça, ignorando a revela-
ção de Ran.
— Como eu estava dizendo, o programa Garde Terrestre
foi acordado pela maioria dos membros da ONU. Todos os Gar-
des Humanos nativos dos países participantes serão requisitados
para se inscrever na Garde Terrestre, para começar um treina-
mento e ficar sob observação na Academia da Garde Humana,
que está atualmente em construção, na Califórnia – Lawson des-
lizou pacotes através da mesa, cheios de formulários e contratos
gigantes. — Os detalhes legais estão aí. Vocês podem falar com
seus pais antes de assinar qualquer coisa.
— Isso é besteira – Nigel disse com um bufo, olhando as
páginas.
Caleb trocou olhares com seu tio, então assentiu com a
cabeça. — Tudo bem.
Ran e Daniela não disseram nada, já que não se comunica-
ram com suas famílias desde a invasão.
— Assim que vocês acabarem os treinos na Academia e
provarem que não são um perigo para a sociedade, vocês serão
implantados numa Unidade da Garde Terrestre. Não como tro-
pas – Lawson disse, dando uma olhadela na direção de Nigel. —
Ninguém vai entrar em combate se tiver menos de dezoito anos
e, esperançosamente, até lá os Mogadorianos restantes serão pre-
sos e o mundo será uma utopia de merda – os militares sorriram.
— Conforme descrito, o tempo de vocês como Gardes Terrestres
será gasto fazendo trabalhos comunitários.
— Atualmente, Melanie Jackson está ajudando as equipes
de limpeza em Nova Iorque. Daniela, eu sei que você é de lá e já
demonstrou excelente controle de seus poderes. Eu já providen-
ciei para que você pulasse a parte da Academia e fosse direto
para a Garde Terrestre. Ajudar a reconstruir sua cidade.
Os olhos de Daniela arregalaram. Embora ela não tenha
falado muito, todos sabiam que ela ainda tinha esperanças de
que sua mãe seria encontrada em algum lugar de Manhattan. Os
hospitais de lá estavam sobrecarregados, muitos bairros ainda
estavam sem energia e os sobreviventes ainda estavam sendo
encontrados. Era possível.
Ela olhou para os outros três Gardes. Lá em Patience Cre-
ek, ela prometeu a John Smith que ela os protegeria. Mas a inva-
são acabou. Ela manteve sua palavra. Nigel sorriu para ela, e Ran
assentiu uma vez.
Daniela pegou uma caneta. — Onde eu assino?
Nigel se inclinou para trás em sua cadeira e observou
Lawson. — Certo. Quem vai estar no comando dessa coisa de
Academia? Você?
Lawson mexeu a cabeça negativamente. — Não. Meu tra-
balho era com a guerra, e ela acabou. A ONU encontrou alguém
melhor para treinar pessoas com habilidades únicas.
— Então? Quem é?

Os estadunidenses concordaram em ser sede da Academia. Com


tudo o que os Estados Unidos fizeram para coordenar o contra-
ataque às naves de guerra Mogadorianas, nenhum dos outros
líderes mundiais estava em posição para contrariar. A Academia
estaria tecnicamente em território internacional, a coisa toda fun-
dada pela ONU, com pacificadores como seguranças do local.
A cinquenta quilômetros de São Francisco, um lugar cer-
cado, Point Reyes, foi escolhido como locação para a Academia.
As pessoas da Califórnia e do Serviço Nacional generosamente
cederam o local para as Nações Unidas. Com a promessa de ser
eco sustentável, a construção começou imediatamente nas colinas
da costa do local reservado.
— Caraca, mano. O lugar vai ser enorme – disse um garo-
to jovem, enquanto supervisionava a construção, que já tinha
centenas de homens limpando o solo e construindo as fundações,
tratores e escavadeiras roncando através do local. — Quantos
estudantes esperamos, em média?
O homem mais velho ao lado dele olhou para seu tablet.
Ele empurrou seus óculos para cima do nariz. — De acordo com
a última contagem há mais de cem Gardes Humanos registrados.
A cada dia novos são encontrados.
O jovem assobiou. Seu cabelo preto longo estava amarra-
do em um rabo de cavalo. Estava ventando e ele continuava a ter
que tirar os fios rebeldes da frente dos olhos. Ele havia visto as
plantas do projeto e agora, olhando para o local, ele tentava ima-
ginar como a Academia se pareceria.
Dois prédios dormitórios capazes de acomodar quinhen-
tos alunos, um conjunto de casas para universitários, um prédio
escolar equipado com computadores potentes e laboratórios, um
centro de recreação, um complexo de treinamento projetado pe-
los militares, um campo para esportes, energia solar e um gera-
dor poderoso. Tudo isso posto entre árvores nativas e penhascos
rochosos da Baía de Drake. Nada incomum, uma escola particu-
lar no meio do nada, embora essa será cercada por quilômetros
de cerca elétrica e seu perímetro patrulhado.
— No que está pensando, professor? – Dr. Malcolm Goode
perguntou, enfatizando o título que seu amigo jovem havia ne-
gociado, apesar de nunca nem ter se formado no ensino médio.
O jovem garoto coçou o local onde seu braço mecânico se
juntava com seu ombro. A coisa ainda coçava como nunca.
— Não é minha cobertura – Nove disse. — Mas acho que
dá para o gasto.
TAYLOR COOK
CONDADO DE TURNER –
DAKOTA DO SUL

durante a invasão foi quando uma caminhonete cheia com garotos


do condado deslocou-se até a fazenda de sua família e perguntou
se o pai dela queria ir para a guerra.
— Estamos indo para Chicago, ver se o exército precisa de
nossa ajuda – disse Dale, o motorista e dono da loja de conveni-
ência do condado. — Matar alguns daqueles alienígenas desgraça-
dos.
— Uh-uhu – respondeu Brian, o pai de Taylor. — Certeza?
Brian estava em pé na varanda, seus braços cruzados de
modo cético. Ele e Taylor tiveram que cuidar da fazenda sozinhos
desde que a mãe dela se foi. Ela sabia o que a posição do pai signi-
ficava – era a mesma que ele usava quando um dos empregados
fazia algo estúpido. Ele tinha uma paciência e tanto para idiotices,
que Taylor não herdou nem um pouco dele.
A alguns passos atrás de seu pai, Taylor avaliou os ocupan-
tes da caminhonete. Havia três homens espremidos na cabine e
mais quatro empoleirados na caçamba, todos carregando rifles e
vestindo uniformes camuflados. Havia algo quase que cômico so-
bre esse bando prosseguir à caçada de alienígenas e lutar contra
eles com refletores laranja brilhantes colados em seus ombros. O
dia inteiro de hoje – naves de guerra, invasores, superpoderes –
pareceu um sonho maluco para Taylor. Ela estava assustada, com
certeza, seria maluca se não estivesse. Mas isso não a impediu de
sorrir ao ver os seus vizinhos vestidos daquele jeito.
Um dos garotos no fundo da caminhonete percebeu o sor-
riso. — Acha alguma coisa engraçada? – ele perguntou. Ela reco-
nheceu Silas, o empregado principal de seu pai. Ele estava em seus
vinte anos, com cabelo castanho lambido para trás graças ao gel,
além de um cigarro pendurado em seus lábios. Taylor jogou seus
cabelos loiros por cima do ombro e cruzou seus braços, copiando
seu pai de forma não intencional.
— Você viu o tamanho daquelas naves de guerra? – ela
perguntou, encarando Silas. — O que os rifles de caça de vocês
vão fazer contra elas? Jesus, eles têm caras que podem voar.
— O garoto voador está do nosso lado – Silas respondeu.
— Que seja – Taylor disse. — Tenho certeza de que ele
está esperando você chegar lá para salvá-lo, Silas.
— Melhor do que ficar sentado por aí sem fazer nada – ele
murmurou.
— Ir para lá para se matar, é isso o que estão fazendo –
Taylor disse. — Vocês provavelmente vão cair da caçamba da
caminhonete antes mesmo de chegar à fronteira estadual.
Alguns dos outros garotos no fundo da caminhonete riram.
Silas agitou-se e ficou em silêncio.
— A galera dos jornais disse que devemos ficar em nossas
casas – Brian disse calmamente, dando uma olhadela em Taylor
por cima do ombro. — Vão para suas famílias, pelo amor de
Deus. É uma viagem de dez horas até Chicago e quem sabe o quê.
É mais seguro ficar de fora.
— É o fim do mundo – Dale argumentou, seu braço car-
nudo caindo do lado de fora de janela. — Pelo menos nós vamos
juntos. Pensei que seria falta de educação se não parássemos aqui
e perguntássemos se queria se juntar a nós.
— Bem, - Brian respondeu com um suspiro, — você me
perguntou. Vou ficar aqui, com minha filha. Se vocês insistirem
em ir fazer essas coisas perigosas, droga, estarão em minhas ora-
ções. Espero ver vocês novamente.
— Bom ter conhecido você, Brian – Dale disse, dando par-
tida na caminhonete.
— Eu não vou trabalhar amanhã, Sr. Cook – Silas gritou
enquanto se distanciavam.
— Não esperaria que você viesse, filho – Brian respondeu.
Taylor e seu pai ficaram em silêncio, observando a cami-
nhonete passar através da estrada de terra deles e voltar por onde
veio. Quando sumiu de vista, a terra deles estava em paz nova-
mente. Uma borboleta passou voando. Os porcos roncaram pro-
fundamente no celeiro. Para Taylor, não parecia que o planeta
estava em perigo.
— Você não acha que seja o fim do mundo de verdade,
acha? – ela perguntou para o pai.
— Não sei, filha – Brian disse calmamente. Nada abalava o
pai dela, nem mesmo esses tais de Mogadorianos. — Você quer
sorvete? Devemos mesmo tomá-los, para não derreterem se fi-
carmos sem energia.
Então, Taylor e seu pai assistiram a invasão da televisão da
casa deles, colados nas notícias das principais cidades. Quando os
canais de notícia ficavam ocasionalmente fora do ar, eles jogavam
jogos de raciocínio, como Connect Four e Scrabble. Com exceção de
alimentar os animais, eles deixaram as outras tarefas de lado, e, em
vez de trabalhar, comeram toda a junk food da casa. Taylor tentou
enviar mensagens para alguns de seus amigos para ver como eles
estavam, mas o sinal do celular estava fraco. A fazenda começou a
parecer como uma ilha muito distante das batalhas que ocorriam
em todo o mundo.
E de repente, de uma hora para outra, tudo acabou. O líder
Mogadoriano foi morto, as naves foram derrubadas e os Lorienos
foram saudados como heróis. O número de mortos estava alto,
especialmente nas metrópoles, mas estes números pareciam inven-
tados para Taylor, como se a invasão inteira tivesse acontecido em
um universo diferente. Ninguém do condado de Turner morreu.
Quando Silas voltou para a fazenda, uma semana depois da inva-
são, ela ficou sabendo que ele e os imbecis que foram para Chica-
go naquela caminhonete foram mandados de volta pela Guarda
Nacional, em um posto de gasolina na fronteira de Minnesota.
Eles passaram a invasão se embebedando.
Dentro de algumas semanas, as coisas praticamente volta-
ram ao normal, pelo menos na parte do mundo de Taylor. Ela
conheceu histórias sobre adolescentes humanos que desenvolve-
ram Legados, sobre Mogadorianos travando guerrilha na Rússia,
sobre novas leis que versavam sobre como os extraterrestres (co-
mo os Lorienos) deveriam se comportar na Terra. Nada disso
mudou sua rotina. Uma guerra contra seu despertador, algumas
tarefas rápidas, escola, jantar, tarefa de casa, repetir.
Na escola, eles instauraram uma assembleia – todos os 158
alunos do ensino médio se reuniram no ginásio – para falar sobre
os Gardes Terráqueos. Havia uma lei agora que dizia que todos
que desenvolvessem Legados precisavam se reportar para as auto-
ridades locais. Taylor leu sobre a Academia que eles estavam cons-
truindo para os Gardes Humanos, na Califórnia. Ela não entendeu
por que a ONU teve que construir aquilo nos Estados Unidos, ou
por que o presidente e outros políticos levaram isso a sério. Qual-
quer um com Legados era tirado de sua escola regular e enviado
para lá.
O conselheiro perguntou se algum dos estudantes havia
experimentado “visões” ou “experiências fora do corpo”, porque
aparentemente eram comuns agora. Taylor não acreditava que os
professores estavam falando sobre essas coisas de forma tão natu-
ral, como se eles tivessem acabado de ser arrancados de uma HQ.
Logo após, alguns garotos fizeram piadas sobre suas “vi-
sões noturnas” e Taylor suspirou ao rolar os olhos, sentindo-se
secretamente aliviada por todos de sua escola serem pessoas nor-
mais.
— Vamos pegar a estrada para Chicago nesse fim de sema-
na para ver os destroços da nave de guerra – a amiga de Taylor,
Claire, contou no ônibus alguns meses após a invasão.
— Oi? – Taylor respondeu. — Sério?
— Eu vi algumas garotas no Instagram, elas chegaram tão
perto, com aquela nave horrenda bem atrás delas. Tiveram tantos
likes. – Claire continuou. — Talvez se eu chegar perto suficiente,
eu consiga alguns Legados.
Taylor suspirou. — Eu não acho que seja assim que funci-
one.
— Eles são poderes alienígenas! Ninguém sabe como fun-
cionam! – Claire riu e cutucou as costelas de Taylor. — Qual é?
Como se você não quisesse desenvolver telecinese ou coisa do
tipo.
— E ser mandada embora para aquela Academia extrater-
restre esquisita? – Taylor fungou. — Não, obrigada.
— Você provavelmente conheceria o John Smith – Claire
respondeu. — Ele é gostoso.
— Sério? Ele sempre pareceu que estava prestes a chorar
em todas aquelas fotografias.
— Ele é sentimental! Você é tão depressiva – Claire disse
sem malícia alguma. — Então, você quer vir com a gente esse fim
de semana ou o quê?
Taylor não sabia como explicar para Claire que ela gostava
da bolha pacífica delas, que era o Condado de Turner, sem pare-
cer uma idiota. Então ela mentiu dizendo ter muito trabalho a fa-
zer devido à ajuda que ela precisava dar a seu pai. Ela não precisa-
va dar uma olhada pessoalmente numa nave de guerra extraterres-
tre. Muita realidade.
— É que tipo, todo mundo já está tratando o que aconte-
ceu como se fosse totalmente normal – Taylor disse para seu pai
durante o jantar daquela noite.
Seu pai deu de ombros. — São apenas pessoas, querida. Se
tiverem um espaço de tempo suficiente, se adaptam a qualquer
coisa. Há mais ou menos cem anos atrás, se você mostrasse para o
pessoal um avião ou um celular, a cabeça deles iria explodir. Eu
pensei que trazer internet sem fio aqui para a fazenda seria a coisa
mais inspiradora que eu vi na minha vida. Me enganei feio.
— Não foi tão legal para todas aquelas pessoas que morre-
ram – Taylor disse, colocando alguns milhos em seu prato.
— Não, isso é verdade – seu pai respondeu de forma gen-
til. — Mas é muita coisa para pensar. Estamos seguros aqui. Você
sabe disso, certo? Não há ninguém incomodando o velho e pe-
queno Condado de Turner.
Seu pai estava certo. Taylor estava conformada que o Con-
dado de Turner permaneceu quase sem mudança alguma, compa-
rado a este novo mundo. Os artigos que ela leu, sobre os adoles-
centes com Legados, especulava que todo mundo que iria herdar
as habilidades já as tinha desenvolvido – que era um efeito colate-
ral da guerra provocada pelos Lorienos e que agora iria parar.
Eles estavam errados sobre isso.
E eventualmente, seu pai seria provado ao contrário a res-
peito do Condado de Turner.
ALVO #1
VILA DE ARNHEM, AUSTRÁLIA

vila aborígene, procurou e plainou antes de pousar no solo are-


noso. Perto dali um grupo de aldeões se amontoavam em volta
de uma fogueira e preparava uma recém-abatida tartaruga mari-
nha para o jantar. Eles fizeram buracos com uma lança no casco
do animal e colocaram galhos, e então enterraram o casco em
brasa para que a carne de dentro cozinhasse. Eles pausaram seu
serviço para trocar olhares enquanto o motor do avião roncou
até ser desligado. Estava anoitecendo e eles não esperavam visi-
tantes.
Para essa vila, pequeno talvez fosse um eufemismo. Ape-
nas cinquenta aborígenes moravam ali, nas casas com formato de
vagões de trens a apenas poucos metros do Mar Timor. As pare-
des eram feitas de metal enrugado, tudo isso pintado com ima-
gens vívidas de arraias, tartarugas, pontos e tiras coloridas. Cães
selvagens e domesticados, que cruzavam a linha entre as man-
gueiras e bananeiras, latiam para o avião.
Jedda, a matriarca da vila, olhou para o avião cautelosa-
mente, da porta de sua casa, fumando um cachimbo. Ela tinha a
posse do único telefone via satélite da vila.
Mesmo se ela tivesse ligado pedindo ajuda naquele mo-
mento, eles não chegariam a tempo.
De dentro do avião, Einar observou os aldeões sussurra-
rem. Ele podia dizer que eles estavam desconfortáveis. Ele tam-
bém estava nervoso. Esta era sua primeira operação em nome da
Fundação e ele queria muito que tudo ocorresse de forma tran-
quila. Precisava correr de forma tranquila. Ele se perguntou se
essa pequena vila ao menos soube que havia ocorrido uma inva-
são alienígena, se eles sabiam o quanto o mundo havia mudado
nos últimos quatro meses. Ele podia ver o brilho de uma televisão
dentro de uma das casas. Eles não estavam totalmente desconec-
tados da sociedade por aqui.
Ainda assim, ele se perguntou se eles ao menos entendiam
o que possuíam.
O olhar de Einar mudou dos aldeões para uma árvore onde
as folhas grandes pareciam driblar o vento. Não eram folhas.
Eram morcegos. Dúzias deles dormindo de cabeça para baixo,
pendurados nos galhos finos.
Ele sentiu um arrepio. Não seria bom demonstrar fraque-
za. Não quando considerava seus companheiros de voo.
Espremidos com Einar dentro do avião havia seis homens
com aparência nojenta. Mercenários. Todos eles vestidos com
uma armadura preta e carregando grandes armas automáticas
em excesso. O líder deles era um norueguês chamado Jarl, com
barba ruiva e pescoço musculoso, uma cicatriz que começava em
um dos olhos e ia até o canto da boca. Ele e seus homens não
foram muito sociáveis durante a viagem. O Grupo dos Blackstone
não estava acostumado a ter um garoto de dezessete anos os
liderando. Einar se perguntou quanto a Fundação estava pagando
para eles.
Einar estava de pé e delicadamente levantou as mangas de
sua camisa. Ele olhou para Jarl. Os homens sabiam os comandos;
ele não precisou repeti-los. Em vez disso, ele apontou para a faca
de combate que estava no cinto de Jarl.
— Eu posso? – Einar perguntou.
Jarl entregou primeiramente o cabo da faca. Sem hesitar,
Einar rangeu seus dentes e arrastou a faca através da carne de
seu antebraço.
Os aldeões foram pegos de surpresa quando Einar trope-
çou para fora do avião. Um jovem garoto magrelo e pálido, vesti-
do com uma calça apertada e uma camisa branca, carregando
uma mala elegante, seu cabelo castanho dividido ao meio. Algum
riquinho cujo avião se perdeu? Algum estagiário das empresas de
mineração que estavam sempre querendo comprar a terra deles?
Sangrando profundamente de um ferimento em seu bra-
ço, com a camisa encharcando, o garoto levantou o braço.
— Olá? Desculpem-me. Alguém pode me ajudar?
Apenas alguns dos aborígenes falavam inglês, mas todos
eles entenderam o pedido. Eles trocavam olhares. Um dos garo-
tos que estava próximo à tartaruga – não mais do que quatorze
anos, com o cabelo negro ondulado – começou a andar imedia-
tamente na direção de Einar. Jedda rosnou alguma coisa para ele
em Yolngu Matham, um aviso, mas o garoto a ignorou.
— Eu sou Einar – ele disse. — Você fala inglês?
— Sim, sou Bunji – o aborígene respondeu. Ele pegou o
braço de Einar, tocando-o com cuidado, apesar dos calos em suas
mãos. — O que você está fazendo por aqui?
— Estou perdido – Einar respondeu. — Perdido e machu-
cado, como pode ver.
— Não por muito mais tempo – Bunji declarou, incapaz de
manter o orgulho e a animação fora de seu tom de voz.
Alguns dos outros aldeões se aproximaram. Eles sempre
queriam ver Bunji usar seu dom, que ele descobriu pela primeira
vez quando seu irmão mais velho cortou a mão por acidente nu-
ma linha de pesca.
Benji pressionou sua mão em cima do machucado de Ei-
nar, não se importando com o sangue. Ele se arrepiou e sentiu
uma onda de energia quente se espalhar sobre ele. A sensação
que seguiu pode ser comparada ao prazer.
Quando Bunji retirou sua mão, o corte de Einar havia de-
saparecido. Seu braço havia sido curado.
— Extraordinário – Einar disse, sorrindo para Bunji. —
Amigo, você pode fazer isso?
Einar levantou sua mala, e então a soltou. A mala ficou
flutuando na frente deles, suspensa no meio do ar por telecinese.
Alguns dos aldeões suspiraram. Bunji sorriu.
— Você! Você é como eu! – o aborígene alcançou algumas
pedras que estavam próximas com sua telecinese. Ele as flutuou
ao redor de ambos como se fossem pequenos meteoritos orbi-
tando um planeta.
— De fato – Einar disse, e abriu sua mala flutuante, pe-
gando uma arma tranquilizadora e atingindo Bunji no pescoço.
Todas as pedras que levitavam caíram no chão.
Ao passo que elas acertaram o chão, Jarl e seus homens
pularam do avião, suas armas fazendo barulho enquanto eram
disparadas. Eles cuidaram dos aldeões enquanto Einar carregou
Bunji para dentro do avião.
A Fundação ficará grata.
SOBREVIVENTES DE
PATIENCE CREEK
LOCALIZAÇÃO NÃO REVELADA

dos Gardes Humanos passou três longos meses na ilha da base


militar, basicamente sem fazer nada, enquanto esperavam a cons-
trução da Academia acabar. Ran e Nigel jogaram muito xadrez,
usando a telecinese para mover as peças sobre o tabuleiro. Caleb
deixou seu cabelo crescer. O quarto de Ran era ao lado do de Ca-
leb e, à noite, ela podia ouvi-lo falar com ele mesmo – discutindo
com algum de seus clones – mas ela nunca mencionou isso para
ninguém.
Nada de mais aconteceu na base. Aparentemente o único
trabalho dos militares que estavam lá era vigiar os três. Ao redor
do mundo, outros Gardes Humanos recém-descobertos estavam
sob a mesma vigilância, esperando a Academia ser aberta ofici-
almente.
Até que, dois dias antes da partida deles para a Califórnia,
eles vieram pelos Chimaera.
— O Coronel Ray Archibald foi convocado para liderar a
segurança na Academia. Ele é um bom homem. Assegurou a No-
ruega durante a invasão. Eu confiei a ele as três criaturas extra-
terrestres que você e os outros têm a posse. É a opinião do coro-
nel – e os Gardes Humanos concordam com ele nisso – que os
animais representam uma responsabilidade.
O General Lawson disse tudo isso para Caleb detrás de
sua mesa. Caleb estava sentado do lado oposto, prestando aten-
ção, como de costume. Regal, seu Chimaera em forma de falcão,
estava pousado em seu antebraço, suas garras numa pressão gen-
til. Retribuindo, Caleb acariciou de leve as penas de seu Chimae-
ra.
Dois cientistas enviados pela ONU estavam pairando num
canto da sala. Um deles segurava uma gaiola de vidro à prova de
balas, os buracos de ar nas laterais menores que furos de agulhas.
O outro usava luvas de látex e tinha uma seringa cheia de algum
tipo de sedativo. Ambos observavam Regal apreensivos, embora
o Chimaera mal prestasse atenção neles.
— Oh – Caleb conseguiu dizer ao seu tio.
— Dentro das próximas seis semanas, aquela Academia
estará repleta com mais de cem Gardes Humanos, todos adoles-
centes rebeldes, de vários países diferentes. Será um pesadelo
fazer a logística da segurança daquele lugar sem adicionar as
criaturas que mudam de forma. Você me entende?
Caleb assentiu.
— Ademais, não sabemos quais doenças esses Chimaerae
podem estar carregando. Eles podem se transformar em qualquer
santa coisa. Os Lorienos não pensaram muito em nosso ecossis-
tema quando soltaram todas essas criaturas – Lawson continuou.
Caleb olhou para o rosto de Regal. O pássaro cutucou sua
cabeça e flexionou o bico. Ele não parecia doente para Caleb, mas
seu tio provavelmente tinha razão.
— Okay – Caleb disse, incapaz de manter um tom sombrio
fora da voz.
— É apenas temporário – Lawson disse. —Até os profissi-
onais terem uma chance de consultar essas bestas, para ter certe-
za de que eles não são um risco. Você terá Regal de volta aqui
assim que tudo for feito.
— Eu entendo – Caleb respondeu, engolindo em seco. —
Eu... você já disse para Nigel e Ran? Eles não vão... eu... não acho
que eles vão gostar muito dessa ideia.
— Eu esperava que você se oferecesse para me ajudar a
convencê-los – Lawson disse. —Aqueles dois são... cabeças du-
ras.
Caleb bufou. — Eles não vão me ouvir.
— Bem, não estamos tendo de fato uma discussão – Law-
son concluiu. — É assim que vai ser. Eles vão ter que aceitar.
Com um sinal de Lawson, os dois cientistas se aproxima-
ram de Caleb e Regal. Caleb sentiu as garras de Regal apertarem
em seu braço. Ele esticou sua mão livre na direção do homem
que segurava seringa.
— Melhor me deixar fazer - disse. — Ele não confia em
vocês.
O doutor pareceu aliviado em entregar a injeção para Ca-
leb. Os olhos negros de Regal piscaram, sua cabeça fez um mo-
vimento, enquanto ele olhava de Caleb para a seringa.
— Desculpe, amigão. Eu sei que isso é um saco – Caleb
sussurrou para seu Chimaera, esperançoso de que seu tio não
ouviria, ou pelo menos não o julgaria por ser carinhoso. — É pelo
seu bem, eu acho.
Regal soltou um grasnido quando a seringa o perfurou.
Caleb pensou que soou mais como de tristeza do que de dor, mas
afastou o pensamento. Assim como afastava os seus clones que
tentavam pular para fora dele.
Assim que Regal estava em paz na sua gaiola, eles foram
procurar os outros Gardes e seus Chimaerae. Caleb teve proble-
mas quando seus ombros começaram a tremer.
Eles encontraram Nigel primeiro, descansando na rede
que ele estendeu em seu quarto, escutando algum rock pesado
através de um par de fones de ouvido enormes. Bandit, parecen-
do carrancudo como seu dono, descansava na barriga de Nigel
com suas perninhas para o ar.
— Sr. Barnaby, nós precisamos de um momento— Lawson
começou.
Nigel viu os cientistas – suas luvas, a gaiola, a seringa. Ele
interpretou o olhar mal-humorado na cara dos dois Caleb que
chegaram junto. Ele entendeu a cena rapidamente.
— Que merda! Corra, Bandit! Fuja dos cientistas fascistas!
Bandit entendeu. Ele pulou da barriga de Nigel e se trans-
formou no meio do ar, se encolhendo para um rato. Ele correu
rapidamente para uma das passagens de ar, os cientistas ficaram
chocados demais com a transformação para reagir.
Diferente de Caleb. Ele tinha ordens. Com sua telecinese,
ele fechou a passagem de ar, interrompendo a rota de fuga de
Bandit. Então ele pegou o Chimaera fujão, segurando ele no ar
telecineticamente, as perninhas dele chutando o ar. Bandit come-
çou a se transformar numa criatura mais larga – pelos negros,
presas e garras. Antes que as coisas pudessem piorar, Lawson
tomou a seringa da mão do cientista congelado e a jogou na parte
traseira da transformação de Bandit.
— Meu jovem, eu aprecio sua lealdade a esse animal, mas
a Garde Terrestre determinou...
Lawson conseguiu dizer apenas isso em seu discurso antes
de Nigel socá-lo no queixo.
Nigel era magro e não tinha dado muitos socos em sua vi-
da, mas esse em especial foi incrível. Sem contar o elemento sur-
presa. O choque pegou Lawson de surpresa e fez o velhote tro-
peçar para trás. Ele acabou por cair em cima da rede de Nigel,
suas pernas apontadas para o ar num ângulo esquisito.
Dois clones surgiram de dentro de Caleb e agarraram Ni-
gel pelos braços, o encurralando contra a parede.
— Você apenas está piorando as coisas, Nigel! – Caleb gri-
tou, seus clones ecoando suas palavras.
— Cala sua boca, seu idiota – Nigel respondeu. Então ele
respirou fundo e gritou, seu Legado de manipulação sônica fa-
zendo suas próximas palavras soarem altas o suficiente para agi-
tar as paredes, sem mencionar que fez todos na sala estremece-
rem e cambalearem.
— RAN! ELES ESTÃO ROUBANDO OS CHIMAERAE!
O grito de Nigel, parecido com uma sirene, alcançou Ran
na praia. Ela estava sentada de pernas cruzadas, em paz até esse
momento. Gamora estava tomando sol perto dela. Ao ouvir o
grito de Nigel, Gamora olhou para Ran. Ela franziu a testa de
forma pensativa, gentilmente coçando Gamora embaixo do pes-
coço.
— Melhor você ir para dentro da água – ela disse a ele em
japonês. — Me encontre quando for seguro, meu amigo.
Gamora pareceu entender. Ele rolou até a margem da
praia, olhou para trás uma vez e então entrou graciosamente no
oceano. Ran suspirou.
A partida para a Academia não podia ter começado me-
lhor.
KOPANO OKEKE
LAGOS, NIGÉRIA

espalhou rápido. Kopano ficou famoso. Os valentões de ontem


eram os falantes de hoje, espalhando para todo mundo que o
garoto Kopano alienígena era real. Apesar de ter sido maltra-
tado por eles, Kopano não alimentou nenhum ressentimento
àquelas testemunhas de seu grande dia. De fato, ele os encarou
com tranquilidade, como um passarinho relutante vê sua mãe
cruel que o jogou do ninho. Kopano não guardou nenhum ran-
cor.
Todo mundo queria ver o que Kopano podia fazer. —
Prove – eles continuavam a dizer, o mesmo desafio, de novo e
de novo. — Prove.
Quando chegou o fim do dia de aula, o rosto de Kopano
estava doendo de tanto sorrir. Ele passou a maior parte do dia
fazendo truques – levitando mesas, jogando objetos, até mesmo
levitando alguns amigos de classe, que gritavam através do
refeitório. Seus professores estavam temerosos, incertos de qual
era o protocolo para o caso de abuso de superpoderes. Kopa-
no era um dos melhores alunos, usualmente quieto e educado,
então eles o deixaram ter seu dia. Depois da aula, o diretor o
chamou.
— O que está acontecendo com você é muito bom – ele
disse. — Você será um orgulho para a Nigéria. Mas por favor,
Kopano, você deve entender que esse é um local de aprendi-
zagem. Você deve tentar não distrair os outros alunos.
— Não se preocupe – Kopano disse. — Logo estarei me
juntando à Garde na América do Norte.
Kopano foi para casa e contou para sua família sobre o
que o diretor havia dito. A mãe dele mexeu a cabeça cansa-
damente. Ela passou o dia todo na igreja. Ela disse para Kopa-
no que estava rezando pela segurança dele, mas Kopano tinha
certeza que ela quis dizer que estava tentando fazer com que
os Legados dele sumissem.
— Tome cuidado, Kopano – sua mãe o advertiu. — Se
você continuar fazendo espetáculos, eles vão vir te buscar. Ou
pior.
Kopano sabia do que sua mãe estava falando. Desde a
invasão, ele devorou cada pedacinho das notícias sobre os Lori-
enos e sobre as mudanças que eles forjaram.
Ele implorou para seu pai o levar até Zuma Rock, onde
uma pedra de Loralite cresceu, mas Udo disse que seria uma
perda de tempo, já que o Conselho de Segurança da ONU
montou uma base lá, e não iria deixar ninguém se aproximar.
Também, Udo disse, o governo pode pegá-lo se formos até lá.
A perspectiva animou Kopano. Os norte-americanos aca-
baram de finalizar a construção de uma escola com o apoio da
ONU e eventualmente todos os Gardes Humanos dos países
participantes vão ser requisitados para estudar lá. Era apenas
uma questão de tempo antes dele ir embora e começar seu
treinamento com os outros Gardes.
Era isso que preocupava a mãe dele.
— Eles vão levar meu filho para a América do Norte e
torná-lo um daqueles alienígenas – ela suspirou.
— Eu quero ir, mãe – Kopano disse. — Ninguém vai me
transformar em um alienígena.
Os pais dele o ignoraram, Udo dispensando as preocu-
pações de sua esposa com um movimento das mãos. Ele andava
para frente e para trás no meio da sala de estar, um homem
possuído por uma grande ideia.
— Não temos que nos preocupar – Udo disse. — Porque
Kopano não vai a lugar algum.
— Não seja bobo! Você sabe como as pessoas em Lagos
falam. Todos já sabem o que ele é...
— Sim, eles falam, é verdade. Mas eu sei o que fazer
para que ninguém ouça. As boas pessoas de Lagos vão respei-
tar a privacidade da nossa família – Udo concluiu. Kopano sa-
bia que isso significava que seu pai iria, generosamente, subor-
nar o tanto de pessoas que fosse necessário, embora ele não
tivesse certeza de onde o velho homem iria arrumar o dinheiro.
— E se esse diretor não quiser nosso filho na escola dele? – Udo
bateu com os pés no chão. Então daremos ao homem o que ele
quer.
Kopano suspirou, decidindo não discutir. A Academia
ainda não estava aberta, de qualquer forma. Deixe que eles
façam do jeito deles agora; eventualmente a Garde Terrestre
viria buscá-lo, não importe quantas mãos seu pai apertar.
No dia seguinte, Udo fez valer o que prometeu. Em vez
de ir para a escola, Kopano se encontrou sentado no banco de
passageiros do velho Hyundai de seu pai, preso no tráfego da
manhã de Lagos. O sol já estava quente acima das cabeças. O
ar condicionado do carro precisava ser consertado.
— Tudo bem, eu vim junto – Kopano disse com um suspi-
ro. — Agora me diga o esquema maluco que você planejou.
— Não é um esquema! – Udo gritou, batendo na buzina
quando um motorista o fechou. — Você tem uma reputação
agora, Kopano. Seremos estúpidos se não tirarmos vantagem
disso.
— O que eu tenho que fazer?
— Nada! Isso é o que é bom por ter reputação – Udo
olhou para a direção de seu filho. — Sim. Isso é bom. Faça essa
expressão carrancuda sempre.
Kopano se virou para olhar pela janela. Seu olhar seguiu
até uma tenda no acostamento da rua, onde um homem magro
com olhos pequenos vendia o que ele chamava de autênticos
artefatos alienígenas. Para Kopano, eles pareciam partes que-
bradas de eletrônicos comuns – torradeiras, peças de TVs, celu-
lares derretidos – o tipo de coisa que se encontraria num depó-
sito de lixo.
Eles seguiram através da ponte até a Ilha da Vitória, os
prédios atolados e superlotados do bairro de Kopano substituí-
dos por arranha-céus brilhantes, muitos ainda em construção.
Alguns dos adolescentes mais ricos que iam para a escola com
Kopano moravam nessa ilha. Kopano também sabia que esse
era o lugar onde muitas das empresas estrangeiras se instala-
vam – os bancos e companhias de óleo e desenvolvedores es-
taduais. Um banner estava esticado sobre a rua, onde se lia
SEJA BEM-VINDO À BIG APPLE2 DA ÁFRICA. Kopano rolou os
olhos.
O pai dele estacionou o carro em frente a um prédio he-
xagonal. As janelas eram de ouro matizado, o brilho delas re-
fletindo na calçada e na rua. Udo pediu para Kopano esperar,
saiu do carro e seguiu até os seguranças da entrada. Ele voltou
com uma mochila nas costas, que ele jogou no banco de trás.
— O que há lá dentro? – Kopano perguntou, assim que
voltaram para a pista.
— Nada que seja do seu interesse – seu pai disse. —
Somos apenas entregadores.
TAYLOR COOK
CONDADO DE TURNER –
DAKOTA DO SUL

feira de manhã, quando ela tentava alcançar seu despertador e aci-


dentalmente atirou a coisa através de seu quarto. O relógio se des-
troçou contra a parede, fazendo um som gritante como se fosse um
ganso morrendo e então tudo ficou em silêncio. Taylor tinha noven-
ta e nove por cento de certeza de que ela não tinha colocado um
dedo naquilo.
— Tudo bem, se acalme – ela disse a si mesma. — Você ain-
da estava meio que dormindo. Foi um acidente. Você está se deses-
perando por nada.
Taylor levantou sua mão na direção do despertador quebrado,
suspirando quando a coisa levitou e flutuou de volta para ela.
— Pai! – ela gritou.
Brian não ouviu. Ele já estava fora da casa. Taylor escancarou
a janela de seu quarto e procurou através da pequena fazenda deles.
As portas do celeiro estavam abertas, seu pai provavelmente estava
lá dentro, alimentando os porcos.
Uma caminhonete adentrou o terreno deles pela estrada de
terra. Era Silas. Ele saiu da caminhonete, seu cabelo lambido para
trás como sempre, um maço de cigarros preso em sua manga, como
uma versão pobre de um astro do cinema. Nos últimos meses, desde
que ela falou com ele durante a invasão, ele começou a olhar para
Taylor de uma forma diferente, uma forma assustadora. Ele sempre
fazia questão de dizer para ela o quanto ela cresceu. Ele a viu obser-
vando e acenou.
Taylor fechou sua janela. Deu um passo para trás.
— Isso não está acontecendo – ela disse a si mesma.
Já faz quase um ano desde que o mundo ficou louco. As coi-
sas estavam normais por aqui, assim como Taylor esperava. Ela até
havia se conformado com a ideia de que alienígenas e superpoderes
existiam. Mas agora...
— Eu... eu não posso ser um deles.
Mas ela era. Taylor percebeu que ela não havia usado suas
mãos para fechar a janela até então. Ela havia usado sua mente. Ela
foi até o vidro, espiando, rezando para que Silas não tivesse percebi-
do. Taylor o viu entrar no celeiro como se nada tivesse acontecido e
suspirou em alívio.
— Tudo bem, tudo bem – ela olhou para suas mãos. Estavam
tremendo. — Nada tem que mudar.
Taylor decidiu então que ela agiria como se nada tivesse acon-
tecido. Ela se preparou para ir para a escola. Limpou o vapor do es-
pelho do banheiro, após o banho, e observou seu reflexo. Olhos
azuis, cabelo loiro ondulado, um nariz pequeno e arredondado e bo-
chechas cheias. Ela não parecia diferente de ontem, e se sentiu agra-
decida. A cada dia ela parecia mais e mais com sua mãe, um fato que
irritava Taylor. Mas não havia nenhuma manifestação física de sua
telecinese.
Telecinese. Há um ano, essa palavra era estrita apenas ao vo-
cabulário de HQs e dos fãs de ficção científica. Agora estava em to-
da parte. O sinal revelador de um Garde desenvolvendo seus pode-
res. Havia anúncios de serviços públicos na TV sobre o que fazer se
você avistasse alguém usando telecinese. Taylor nunca pensou que
seria um deles.
Ela se esconderia. Havia menos de dez mil pessoas em todo o
Condado de Turner. Essas pessoas do governo que ela viu na TV
nunca iriam até Dakota do Sul procurar um dos que eles chamavam
de Gardes Humanos. Seu pai havia dito que ninguém incomodaria
sua pequena cidade.
— Indo para a escola! - ela gritou para o celeiro enquanto
caminhava pela estrada onde o ônibus esperava. Normalmente ela
nunca sairia sem dar um abraço e um beijo em seu pai, mas Silas es-
tava lá, parado na entrada do celeiro, esperando para levar o trator, e
embora Taylor soubesse que ele estava apenas olhando para ela com
seu jeito pervertido, ela se sentiu mais exposta naquela manhã e não
conseguiria se aproximar.
Taylor dormiu em sua aula de história, sonhando acordada
com as imagens ardentes que ela vira da invasão, se imaginando lá,
flutuando desajeitadamente em torno de um despertador quebrado
enquanto os alienígenas pálidos atiravam nela com lasers. Ela res-
mungou, e seus colegas de classe riram depois que o professor cha-
mou seu nome cinco vezes. No almoço, seus amigos disseram que
ela parecia distraída e Taylor os despistou, dando uma desculpe que
não havia dormido bem. Quando o garoto na frente dela pegou o
último chá gelado de pêssego do refrigerador de bebidas, Taylor
quase usou sua telecinese para pegar a garrafa dos dedos dele, então
imediatamente sentiu vergonha. Sempre que ela precisava alcançar
algo, ela podia sentir a telecinese instando-a a usá-la. Ignorar a capa-
cidade era como não coçar uma coceira. A assustava o quanto a tele-
cinese já parecia ser uma parte dela, um instinto com que ela tinha
que lutar.
— Vai ficar mais fácil – ela prometeu a si mesma ao olhar pa-
ra seu reflexo no espelho do banheiro, enquanto lavava as mãos.
Então ela flutuou um papel toalha para si mesma, e gritou em frus-
tração, batendo os pés ao mesmo tempo.
Cedo ou tarde, ela iria estragar com tudo e alguém a veria. A
menos que ela aprendesse como enterrar esse poder bem fundo den-
tro dela, fazer parecer que ele não existe. Mas isso a fazia sentir co-
mo se tivesse uma arma amarrada nas costas.
No ônibus de volta para casa, Taylor olhou fixamente para
fora da janela, muda, enquanto Claire tagarelava sobre algum garoto.
Ela observou o Condado de Turner se deslizar do lado de fora e
imaginou o ônibus a carregando adiante, em direção à Califórnia e
para aquela Academia da Garde Humana bizarra. Se eles a pegassem,
é para onde ela acabaria indo.
Ela se prometeu que nunca sairia do Condado de Turner.
Inevitavelmente, isso levou Taylor a se lembrar da última vez
que ela viu sua mãe. Ela tinha nove anos na época e eles estavam no
terminal rodoviário de Ashburn. Sua mãe vestia um jeans que Taylor
achava muito apertado, uma blusinha de alças e uma bandana verme-
lha nos cabelos. Todas as outras roupas de sua mãe estavam guarda-
das nas caixas que ela carregava em seus ombros.
— Você vai voltar, né? Isso não é para sempre – Taylor disse
para sua mãe.
— Ah, querida – a mãe de Taylor disse, e a tocou gentilmente
nas bochechas. — Você pode ir me visitar quando quiser. Minnea-
polis é apenas a algumas horas de distância.
A jovem Taylor olhou por cima dos ombros onde seu pai es-
tava sentado no caminhão, observando-as, um boné de algum time
de baseball com a aba para frente, escondendo seus olhos. Ela olhou
de volta para sua mãe.
— Mas como eu vou chegar lá? – ela perguntou. — Tenho
nove anos.
A mãe dela sorriu. — Um dia você vai descobrir, Tay. Uma
pessoa não pode ficar no Condado de Turner para sempre. Mesmo
que doa agora, você irá entender quando for a hora.
Minneapolis foi apenas a primeira parada da mãe de Taylor
depois de Dakota do Sul. Ela continuou indo cada vez mais para o
oeste, depois de Minneapolis veio Madison, depois Chicago, e o úl-
timo lugar que Taylor ficou sabendo foi a Filadélfia. Taylor acabou
que nunca visitou qualquer destes lugares. Sua mãe havia prometido
que um dia ela iria entender, mas ela não queria que esse dia chegasse
porque significaria que ela era igual sua mãe. Ela tomaria conta da
fazenda de seu pai, assim como ele tomou conta para o pai dele.
O pai dela fez batatas fritas com patty melts para o jantar da-
quela noite. Ela estava com um pressentimento de que ele percebeu
que ela havia saído rápido demais naquela manhã, e pensou que tal-
vez ela estivesse brava com ele, por isso ele fez o prato favorito dela.
Taylor o abraçou enquanto ele estava fritando os hambúrgueres.
— Aí está minha garota – seu pai disse, parecendo aliviado.
Durante o jantar, Taylor estudou seu pai. Ele era um homem
bonito com meia barba crescendo, cabelos castanhos se esbranqui-
çando nas têmporas, magro e bronzeado graças a todas as tarefas ao
redor da fazenda. Ele nunca se casou novamente, nem mesmo na-
morou alguém, até onde Taylor sabia, embora as mulheres solteiras
do condado ainda enviassem biscoitos e tortas para ele. Seus olhos
lacrimejaram quando ela imaginou um cenário onde ela teria que
dizer adeus e deixá-lo sozinho.
Brian percebeu Taylor olhando para ele e passou a mão nas
bochechas dela. — O que houve? Meu rosto está sujo?
Ela sorriu. — Não, você está limpinho, pai.
— Se você diz – ele continuou olhando para ela. — E você,
está bem?
Ela assentiu. — Sim, estou bem. Apenas cansada.
Então ela tentou pegar o saleiro e o pequeno vidro se desli-
zou através da mesa até a palma da mão de Taylor.
Eles trocaram olhares.
Depois de um longo silêncio, Brian disse: — Bem, vou me
ferrar. – Finalmente, Taylor começou a chorar, e seu pai veio até ela
para abraçá-la. — Calma. Eu sempre soube que você era especial e
isso é apenas mais uma prova disso.
— Eu não... eu não quero ser especial! – Taylor respondeu
através de suas lágrimas. — Eu gosto da nossa vida aqui! Não quero
nada além disso!
O pai de Taylor a abraçou mais forte. — Se acalme – ele disse
quase em silêncio. — Eu os vi dizendo na TV que aqueles que de-
senvolvessem poderes são os melhores dentre nós. Que eles estão
destinados a serem pessoas importantes.
— Eu vi o mesmo programa, pai! Foi a mulher que disse toda
essa baboseira, e o cara falou que era tudo aleatório. Uma loteria
alienígena. E eu não queria ganhar!
— Bem – seu pai disse com calma, — eu prefiro acreditar na
pequena parte sobre ser coisa do destino.
— Você não está entendendo? Eu não quero um destino
grandioso. Eu gosto daqui. Com você. Eu não quero ir para aquela
Academia tosca deles.
— Então você não vai – o pai dela assentiu uma vez, como se
isso fosse uma decisão. — Você não tem que fazer nada contra sua
vontade.
— Mas é lei agora. Você deveria... – ela engoliu em seco. —
Você deveria me reportar para as autoridades.
Brian mexeu a cabeça. — Nem em um milhão de anos.
— Mas alguma outra pessoa poderia ver – Taylor disse. —
Você não sabe como foi difícil para mim me controlar hoje à tarde
na escola. O dia todo, eu queria usá-lo. Eu vou acabar demonstran-
do.
Brian considerou isso por um momento, estudando Taylor,
que estava olhando para as próprias mãos, que de repente se torna-
ram coisas de outro mundo.
— Somos apenas nós e os porcos lá fora, na maioria do tem-
po – seu pai disse. — Talvez se você praticar usar seu dom alieníge-
na pela casa, será mais fácil de controlar quando você estiver em pú-
blico.
— Ah, por favor. Não chame de dom alienígena.
— Desculpe. Seu Legado.
Taylor franziu a testa. Durante todo o dia, ela ficou pensando
em várias maneiras de suprir sua telecinese. Talvez seu pai tivesse
razão. Talvez em vez de ignorar o poder, ela poderia usá-lo em mo-
mentos que eram seguros, para aprender a controlar.
— Vale a pena tentar – ela admitiu.
— Além disso – seu pai disse, pegando o saleiro e balançan-
do-o no ar, — eu acho bem legal de se ver.
Durante um mês o plano de Brian funcionou. Taylor usou
sua telecinese por toda a casa – ela flutuou seus livros da escola na
sua frente enquanto estudava, encheu copos de água para ela na co-
zinha enquanto estava na sala de estar e colocou açúcar no café do
seu pai enquanto fritava ovos para o café da manhã. Seu controle
passou a ser mais preciso, as coisas que ela conseguia fazer eram
mais complicadas, os objetos que ela podia flutuar cada vez mais
pesados. E enquanto parecia que uma parte dela dormia quando ela
ia para a escola ou quando Silas e os outros funcionários estavam
por perto, Taylor achava cada vez mais fácil controlar o Legado em
público.
Mas então veio o dia do acidente.
NIGEL BARNABY
ACADEMIA DA GARDE HUMANA
– POINT REYES, CALIFÓRNIA

Nigel ouviu assim que ele entrou no consultório da Dra. Linda.


Cordas de violão arrumadas delicadamente e assobios... que
eram de um oboé? Nigel não conseguia tolerar isso, então,
usando seu Legado, ele alcançou e segurou as ondas de som
que saiam do amplificador da Dra. Linda e as distorceu até
elas formarem um barulho fora de sintonia.
Dra. Linda estreitou os olhos para ele e desligou o am-
plificador. — Nigel, já conversamos sobre isso. Se você não
gosta da música, você pode me pedir para trocá-la.
— Onde fica a graça nisso, amor? – Nigel respondeu
enquanto se jogava na poltrona confortável da Dra. Linda,
abraçava um travesseiro contra o peito e colocava suas botas
de combate sobre os braços da poltrona.
O consultório da Dra. Linda ficava no último andar do
prédio administrativo, as janelas de vidro azul voltadas para o
sul, com uma visão cativante da baía. Ela mantinha a sala
aberta e brilhante, as paredes cobertas de pinturas absurdas e
abstratas destinadas a evocar as reações de seus pacientes.
Seus diplomas, um em psiquiatria e outro em psicologia do
desenvolvimento, ambos de Stanford, pendurados por ela cui-
dadosamente atrás da escrivaninha.
— Nós também conversamos sobre o respeito no meu
escritório – Dra. Linda o advertiu, olhando para as botas dele.
Ela era uma mulher baixa, mal tinha um metro e sessenta,
com um rosto redondo, cabelos grisalhos num corte Chanel,
com óculos grossos que a faziam parecer uma bibliotecária
malvada. Nigel gostava dela, e era por isso que ele foi encher o
saco dela.
— Sobre o que vamos falar essa semana? – Nigel per-
guntou enquanto ele colocava os pés no chão. Ele se inclinou
para baixo, suas pernas longas alcançaram o espaço para que
ele quase pudesse tocar os pés da Dra. Linda. Não que ele fa-
ria. Ele agitou futilmente a argola em seu septo – seu mais
novo piercing – o décimo terceiro só em sua cabeça. — Talvez
sobre a mudança na sua vida amorosa, hem, doutora? Estou
entediado falando sobre “eu, eu, eu” o tempo todo.
Dra. Linda o olhou direto nos olhos. — Você sabe que eu
gravo as sessões, certo Nigel?
— Claro. Aí você vai poder se lembrar de tudo quando
for começar a escrever seu best-seller, não é? – Nigel usou seu
Legado, mudando o tom e o timbre de voz para que ele soasse
quase que exatamente como a Dra. Linda. — Eu forcei duzen-
tos Gardes adolescentes a discutir o despertar molhado deles.
Aqui estão minhas conclusões.
Dra. Linda estava, como de costume, imperturbável com
a manipulação sônica dele. — Eu não faço você ou qualquer
um dos outros discutirem os “despertares molhados” que vocês
têm – ela disse. — Entretanto, nós podemos, se você quiser.
— Bem, você certamente diria que eu estou blefando –
Nigel disse, sorrindo enquanto ele enrolava no dedo a alça da
camisa regata suicida que ele usava.
— Quando eu tentei ouvir nossa sessão da semana pas-
sada, eu não consegui entender nada da gravação – Dra. Lin-
da continuou como se não tivesse sido interrompida. — Você
tem alguma coisa a ver com isso, Nigel?
Nigel puxou o piercing dos lábios, sem saber se deveria
falar a verdade ou mentir. Casualmente, ele tirou o sorrisinho
diabólico com o qual anda por aí e assentiu. — Desculpe por
isso, doutora. Não percebi que meu Legado iria desorientar
seu gravador.
— O que você fez, exatamente?
— Uma coisa bem legal, na verdade. Eu coloquei a gente
dentro de uma bolha de som – Nigel foi incapaz de manter o
orgulho fora de sua voz; esta era uma nova forma de usar seu
Legado de manipulação sônica. — Fiz isso para que ninguém
de fora do nosso pequeno círculo de confiança pudesse ouvir.
A Dra. Linda inclinou a cabeça. — Você está preocupado
que as pessoas possam estar ouvindo nossas sessões? Eu asse-
guro a você: elas são completamente confidenciais.
Nigel abaixou seu queixo e olhou para a terapeuta com
um olhar cético. — Se você diz, doutora, tudo bem. Você mora
no campus, certo? Na pequena vila universitária? – ele sabia
que ela morava, então ele continuou. — E você nunca tem a
sensação de que está sendo observada? Como se cada espelho
tivesse um cara escondido com uma prancheta do outro lado?
— Essa é uma observação interessante – respondeu a
Dra. Linda. Essa era a resposta neutra que ela dava sempre
que Nigel disparava um de seus alarmes terapêuticos. Ele se
chutou por dar a ela algo para trabalhar. — Você acha que
esses sentimentos paranoicos podem estar enraizados desde o
tempo que ficou no internato?
Nigel gemeu. Ele estava vendo a Dra. Linda todas as
semanas, desde que ele chegou a Academia da Garde Huma-
na. Você não conseguiria ver uma mulher como a Dra. Linda
com essa frequência, por quase um ano, e não deixar segredos
escaparem às vezes.
Então, para o seu grande arrependimento, Nigel contou
a Dra. Linda sobre a Academia Preparatória dos Cavalheiros
Jovens de Pepperpont. — Depois disso, ir para uma escola de
treinamento de super-heróis é moleza - disse ele na época. Ni-
gel contou os detalhes de seus quatro anos em Pepperpont
sombriamente - os uniformes, os professores rígidos, as tarefas
domésticas, os nós de gravata muito particulares. — Mas você
poderia aprender tudo isso com Dickens3, não é mesmo? Ele
entrou nos detalhes mais obscuros. Os meninos ricos ouvindo
músicas de mau gosto. Os meninos ricos que queriam fazer
experimentos com ele, e depois fingir que nada aconteceu, en-
tão limpar o mijo que urinaram nele todos os dias durante me-
ses. A interminável provocação, apelidos, abuso. A vez que
eles o amarraram, rasparam o cabelo dele e o atiraram de
uma janela do segundo andar.
— Era como uma prisão – ele explicara — com exceção
de que em vez de saber como transformar uma escova de den-
te numa arma, todos aqueles caras conheciam as regras do
jogo. Futuros advogados e corretores, todos eles.
Quando a invasão aconteceu e Nigel descobriu que ele
havia desenvolvido telecinese, ele se libertou da custódia da
Pepperpont. Ele encontrou um estúdio de tatuagem aberto
para alargar suas orelhas, que haviam começado a fechar,
trocou seu guarda-roupa para um mais moderno em uma loja
de segunda mão, e prometeu viver o resto de seus dias como o
punk rocker alienígena que vivia dentro dele, o mesmo gorila
fodão que as pessoas agradáveis da Pepperpont demasiado
tentaram domar.
Havia uma nave de guerra em Londres. Era lá que seus
pais viviam, embora na época estivessem em Zurique em uma
viagem de esqui com sua irmã mais velha e o noivo da bolsa de
valores. Se eles tentassem telefonar para ele durante a
invasão, “— Certamente, eles tentaram localizá-lo; você é o
filho deles" – dissera a Dra. Linda – mas Nigel já estava bem
longe quando eles telefonaram. Ele não os viu desde então.
Havia dias de visita na Academia, mas Nigel se recusou a
adicioná-los à lista. Ele não podia perdoá-los por Pepperpont.
— Talvez você tenha ansiedades persistentes dos seus
dias lá – disse a Dra. Linda no presente. Nigel se afastou. —
Mesmo que você esteja a salvo aqui, talvez você ainda sinta a
necessidade de manter uma parte de você murada.
— Sim, você entendeu, doutora – respondeu Nigel. —
Impacto sangrento.
A Dra. Linda levantou uma sobrancelha. — Como está
indo com o seu colega de quarto?
Uma mudança repentina de assunto. Nigel odiou quan-
do ela perguntou isso.
— Tudo bem – disse ele. — O mesmo. Tanto faz. Per-
gunte a ele você mesma. Capitão América com sua cabeça en-
colhida tem consulta agendada logo depois de mim, não é?
— Você saiu com ele? Na semana passada, você prome-
teu visitar o refeitório com ele pelo menos uma vez por sema-
na.
Nigel cruzou os braços. Qualquer chance dele se tornar
o melhor amigo de Caleb foi jogada pela janela naquele dia na
ilha, quando ele ajudou a entregar seus Chimærae para o
governo. Nigel segurou o rancor, mas a Dra. Linda era
persistente sobre tentar consertar esse relacionamento. — Ele
pediu desculpas a você, não pediu? – a Dra. Linda pressionou
quando Nigel permaneceu em silêncio.
Nigel grunhiu. — E daí?
— Então, acho que o perdão pode ser uma boa
habilidade para você trabalhar, Nigel.
Nigel franziu o cenho. Ele pensou em Caleb e nos meses
que passaram juntos na Academia, cercados por dezenas de
outros Gardes Humanos. Nigel era popular no campus - seus
colegas de classe se lembraram dele da visão compartilhada
durante a invasão, e eles sabiam que ele tinha ido lutar contra
os Mogs. A lenda sobre como ele e Ran derrubaram um
escumador Mogadoriano nas Cataratas do Niágara cresceu e
cresceu – em cada versão eles mataram cada vez mais Mogs,
lutaram contra maiores pretensões. Os outros Gardes que
estavam lá – Fleur e Bertrand, que morreram em Patience
Creek – foram omitidos da história. Nigel não impediu que o
conto circulasse. Ele gostava de ter um reputação, mesmo que
isso acontecesse à custa de alguma dor na vida real.
E talvez ele deixasse escapar, quando conhecia outro
Garde Humano, que Caleb era uma espião do governo que
reportaria todas as ações aos administradores da Garde
Terrestre. E daí? Era verdade, não era? Caleb passava mais e
mais tempo sozinho em seu quarto do que com seus colegas da
Garde.
Bem, sozinho não é exatamente o correto. Caleb tinha
seus clones, afinal.
— Ele não tem amigos. Ainda. Depois de todo esse
tempo – reclamou Nigel.
— E é por isso que você deveria se aproximar dele.
— O que é que eles dizem sobre caras assim, hein? Um
otário que não pode fazer amigos...
— Você acha que os meninos de Pepperpont pensavam
em você dessa maneira, Nigel?
— Ah, isso é um golpe baixo, doutora. Cenário
totalmente diferente.
A Dra. Linda o encarava uniformemente. — É?
— Eu nunca fiz nada tão ruim para aqueles imbecís
quanto o que Caleb fez comigo – disse Nigel defensivamente.
Enquanto ela olhava para ele, sem falar, Nigel ouviu seu tom
de voz mudar. Isso não era seu Legado em ação; foi apenas o
sinal da escola aristocrata tocando. — Esta é minha hora de
terapia ou do Caleb? Estou começando a me perguntar.
— Sobre o que você gostaria de falar, Nigel?
— Que tal sobre eu ter que vir te ver todas as semanas?
– ele respondeu bruscamente. — Eu, Ran e Caleb – somos os
únicos no campus que vemos você o tempo todo. As pessoas
podem começar a pensar que somos anormais.
— Eles não vão.
— Eles definitivamente já pensam isso do Caleb.
— Você sabe muito bem porque você é monitorado mais
de perto do que os outros. Precisamente porque você foi
exposto a um cenário de vida e morte.
— Não foi nem tão traumático – murmurou Nigel,
voltando à brutal luta em Patience Creek. — Eu nunca penso
nisso.
— Sem mais pesadelos? - perguntou-lhe a Dra. Linda.
Outro pequeno fato que Nigel nunca deveria ter deixado
escapar; ele teve um sonho recorrente de estar sendo
perseguido num corredor esfumaçado por aquela mulher
Mogadoriana louca que os havia caçado.
— Não – ele mentiu.
— Então, suponho que você esteja curado – respondeu a
Dra. Linda. — Vejo você na proxima semana.
Na elegante sala de espera, fora do consultório da Dra.
Linda, Nigel encontrou Caleb esperando por sua consulta,
sentado ao lado de um de seus clones. Os dois estavam
próximos, aparentemente em uma profunda conversa
sussurrada que acabou logo que notaram Nigel. Parecia que
Caleb tinha repreendido seu clone.
— Ele queria escutar - disse Caleb timidamente,
gesticulando para seu clone.
— Uh-huh – respondeu Nigel, levantando uma
sobrancelha. — Você vai querer cortar essa merda,
companheiro. Não é terapia para casais. Não queira que a
doutora pense que você é uma aberração.
Caleb concordou com a cabeça. — Sim, Linda diz que eu
não deveria... – ele parou, olhando para o clone. — Deixa para
lá. Ele já estava de saída.
O clone manteve o olhar em Nigel, mesmo quando Caleb
começou a absorvê-lo. O processo ainda fazia Nigel se
arrepiar. O clone ficou transparente, como um fantasma, e
então voltou lentamente para dentro de Caleb. Havia sempre
um momento em que eles estavam juntos de volta, mas ainda
se sobrepunham ligeiramente, que dava a Caleb um olhar
embaçado de quatro olhos, como uma pessoa se separando.
Nigel suprimiu em estremecimento. Ele não era o único no
campus que Caleb deixava nervoso, como evidenciado pela
Dra. Linda, forçando Nigel para ser amigo do duplicador
solitário.
Quando havia apenas um deles, Caleb se levantou. Ele
deu um tapinha de companhirismo nos ombros de Nigel –
esses americanos estavam sempre tocando, batendo as mãos,
dando tapinhas nas costas – e então passou por ele, seguindo
para o consultório da Dra. Linda. — Te vejo em casa – disse
Caleb, quando fechou a porta.
Nigel se perguntou, não pela primeira vez, se esta noite
seria o dia em que um exército de Calebs o segurariam na
cama e o sufocariam.
TAYLOR COOK
CONDADO DE TURNER –
DAKOTA DO SUL

ensolarado. — Tive sorte com a chuva - o pai de Taylor comentou.


— Tempo bom para enfardar.
Os Cooks adquiriam dez acres de campo de feno, o bastante
para alimentar seus próprios animais, todos os anos, e talvez vender
as sobras para seus vizinhos. No fim de semana anterior, Brian e
Silas cortaram os seus campos, arrastaram os talos em fileiras e os
deixaram para secar. Hoje, Brian iria prender a pequena enfardadeira
ao trator e passar pelas fileiras, enquanto Silas e alguns agricultores
iriam atrás, recolhendo os recém-feitos fardos e os arrastando para o
celeiro. Como sempre, o trabalho de Taylor seria comandar o trânsi-
to. Deixados por conta própria, Silas e os outros iriam empilhar os
fardos de qualquer forma, como no ano em que eles empilharam o
feno logo no local em que o trator sempre é estacionado. O pai dela
não percebeu, até que os outros agricultores tivessem ido embora, e
teve que mover cada fardo sozinho antes que pudesse colocar o tra-
tor no celeiro.
— Sabe – o pai dela comentou no café da manhã, — poderí-
amos fazer tudo isso sozinhos, você e eu. Provavelmente iríamos
levar apenas uma tarde. Nem iríamos suar.
— Pai – Taylor revirou os olhos.
— Minha agricultora superpoderosa seria a inveja de todos os
nossos vizinhos – ele disse com uma risada. Brian coçou seu queixo
de repente, em pensamento profundo. — Provavelmente nos pou-
paria muito, na verdade. Poderia usar para alguns daqueles projetos
que estive deixando de lado. Bem, de qualquer forma você poderia, e
eu poderia supervisionar – ele piscou para Taylor. — Este lugar tal-
vez possa se tornar um verdadeiro lucro.
— Nós estamos bem – Taylor disse. — Além de que, se você
despedir Silas, como ele poderia pagar aquelas tatuagens horríveis?
Brian riu. — Ah, qual é... não jogue a “obra de arte” desse ga-
roto pra cima de mim. Me faz pensar que eu deveria demiti-lo pelo
seu próprio bem.
— Então, você teve ao menos uma ideia inteligente essa ma-
nhã – Taylor respondeu com um sorriso.
Taylor percebera pela primeira vez a última tatuagem de Silas
apenas alguns dias antes, quando ele fez um show sentando à mesa
da cozinha, tirando o curativo e aplicando um pouco de pomada
sobre a carne rosa em seu antebraço. A tatuagem mostrava uma ser-
pente enrolada saindo de dentro de um círculo, as presas gotejantes a
mostra; como em resposta ao surgimento da serpente, uma foice
cortava a garganta do réptil. Taylor olhou de forma cética para a ta-
tuagem. Ela imaginou Silas andando pelos campos, torcendo as ca-
beças das cobras por diversão.
— Você gostou? – ele a pegou olhando para a tatuagem e
imediatamente se animou.
— Na verdade não – ela disse, e saiu da cozinha, mas não an-
tes de ver a expressão de desapontamento no rosto dele.
Os agricultores chegaram enquanto Taylor estava lavando a
louça. Havia o Silas, claro, junto com Brent e Teddy. Brent tinha
idade próxima a do pai dela, gordo, com uma barba castanha espes-
sa. Ele era um primo distante dela, por parte de mãe, contudo eles
não eram próximos. Ele esteve ajudando com a fazenda desde antes
de Taylor nascer; Brent e o pai dela tinham uma camaradagem,
mesmo com o pai dela, às vezes, chamando Brent de “desajeitado”
pelas costas. Teddy, por outro lado, era um cara que teria ido para a
faculdade local com Silas, musculoso, quieto e doce, trabalhador,
basicamente o contrário de Silas. Foi Silas quem trouxe Teddy para a
fazenda Cook, e Taylor sempre suspeitou que Silas soubesse que
poderia colocar parte do seu próprio trabalho sobre os largos om-
bros de Teddy, devido ao seu jeito gentil.
Naquela tarde, Silas insistiu em trabalhar sem camisa, mesmo
com o feno fazendo sua pele pinicar. Taylor observou da varanda
enquanto ele e os outros arrastavam os fardos de volta para o celei-
ro. Assim que começou a suar, seus músculos ficaram cobertos de
sujeira e manchas douradas de feno, e Silas saltou para a varanda
para beber água. Taylor se encolheu.
— Você machucou meus sentimentos outro dia – ele disse a
ela.
— Como é? – ela respondeu com um olhar.
Silas ergueu o braço com a tatuagem da serpente. — Fazendo
piada com a minha tatuagem. Esta aqui é importante para mim, sa-
bia?
— O que representa? Alguma banda de death metal?
— Não, nada deste tipo.
— Olha, tudo bem quantas tatuagens você fizer, ok? – Taylor
disse, esperando que a conversa terminasse. — Apenas não me inte-
resso por esse tipo de coisa.
Silas se inclinou contra o corrimão da varanda. — Você gosta
do tipo certinho, é isso? Como os garotos com quem você vai para a
escola?
A pele de Taylor se arrepiou, mas ela olhou de volta para ele
sem desviar o olhar. No passado, ela teria sofrido com as grosserias
de Silas em silêncio. Mas agora, mesmo mantendo seu poder em se-
gredo, a telecinese a fez se sentir segura. Ousada.
— Talvez você devesse fazer um daqueles caracteres chineses
na próxima.
Silas se animou. — Ah é? Você gosta daqueles?
— Claro, talvez devêssemos pegar um dicionário Inglês-
Chinês e ver se eles têm um símbolo para “esquisito”.
Silas forçou uma risada, então fez questão de dar a Taylor
mais uma chance. — Qual é... não sou nenhum esquisito. Não há
nada de errado em apreciar as coisas belas da vida.
Antes que Taylor pudesse responder, ambos ouviram gritos
vindos do campo.
— Socorro! Silas! Socorro!
Era Teddy gritando. Taylor estava fora da varanda num piscar
de olhos, correndo em direção ao campo, Silas em seus calcanhares.
O pneu do trator estourou e começou a rolar. O pai de Tay-
lor havia ou sido empurrado ou pulou para fora do caminho. De
qualquer maneira, ele estava deitado alguns metros longe, imóvel,
com o rosto na sujeira. Para piorar as coisas, Teddy estava muito
perto da enfardadeira quando o trator se soltou e prendeu sua manga
na máquina. A enfardadeira poderia puxá-lo para dentro e arrancar a
pele dele se não fosse cuidadoso, especialmente por não estar na
posição correta. Já havia marcas sangrentas se formando nos braços
de Teddy onde ele ficou preso contra a enfardadeira; Brent estava
com os braços na cintura de Teddy, fazendo tudo ao seu alcance
para evitar que Teddy fosse fatiado.
— Filho da puta! - Silas gritou quando se juntou a Brent ten-
tando libertar Teddy. — Desligue essa coisa! - ele gritou para Taylor.
Sem nem mesmo pensar sobre isso, Taylor usou sua telecine-
se para empurrar a alavanca da enfardadeira. A máquina tremeu até
parar. Os três agricultores ficaram aliviados quando o braço de
Teddy saiu livre, com ele chorando lágrimas de alívio.
Por sorte, em meio ao caos, os agricultores não perceberam
que Taylor havia usado seu Legado. Ela correu até seu pai, caiu de
joelhos ao seu lado e o virou de barriga para cima, sua telecinese aju-
dando com o peso. Taylor viu um corte na testa dele onde ele havia
caído sobre uma pedra. Havia muito sangue — um lado do rosto de
seu pai estava coberto de lodo cor de cobre. Precisará de mais do
que alguns pontos. Taylor pensou poder ver um pedaço do osso em
meio a toda sujeira e sangue.
Uma calma estranha tomou conta dela.
Ela sabia o que fazer. Taylor pressionou a mão na testa de seu
pai, sentiu uma energia quente fluir de sua mão para ele e observou
enquanto a ferida se fechava milagrosamente. Segundos depois, os
olhos dele se abriram e ela respirou aliviada.
— Diabos, o que aconteceu? – ele perguntou sombriamente.
Taylor sentiu olhos postos nela. Ela se virou lentamente, viu
três agricultores, todos parados ali a encarando. Seus olhos estavam
esbugalhados, suas bocas abertas. Eles viram o que ela havia feito.
— Você é... você é um deles! – Silas exclamou.
— Espera aí, posso explicar – Taylor respondeu, sua mente
procurando uma mentira convincente.
Silas partiu, correndo o mais rápido que podia na direção da
casa. Taylor e os outros observaram intrigados, enquanto ele correu
até seu caminhão e foi embora levantando poeira.
— Isso vai ser um problema – disse o pai dela, se sentando.
Ele tocou a frente de sua camisa, empapada de sangue, e balançou a
cabeça em descrença.
— Não entendo o que aconteceu com ele. Não vi nada com
que se assustar – disse Brent, o primo dela se virando significativa-
mente para Teddy. — Você viu alguma coisa, Ted?
Teddy continuava encarando Taylor, sua boca aberta. Brent
deu uma cotovelada nele.
— Sim, uh, quero dizer, não – disse Teddy. — Não vi nada.
— Hoje o pagamento é em dobro – disse o pai dela para
Teddy enquanto ele ficava de pé lentamente. — Pelo problema.
Taylor ficou quieta apesar de tudo, seus olhos postos no ras-
tro de poeira levantada pela saída rápida de Silas. Ela deveria estar
encantada com o que havia feito – curar uma ferida grave com ape-
nas um toque! – exceto que havia uma pesada semente de ansiedade
crescendo em seu estômago. A forma que Silas tinha olhado para ela,
não havia nada além de repulsa...
Bem, o segredo vazou, ela pensou, surpresa por sentir um
pequeno vislumbre de alívio. O que quer que aconteça a seguir, ao
menos não havia mais o que esconder.
Taylor voltou sua atenção para Teddy quando ele andou timi-
damente até ela, segurando seu braço ensanguentado. — Talvez eu
também pudesse não ver você fazer sua mágica comigo, Taylor? –
ele deu um sorriso trêmulo. — Por favor?
Por uma semana, Taylor e seu pai esperaram a bomba cair. Si-
las parou de aparecer para trabalhar e não retornava as ligações. Tay-
lor continuava esperando que um batalhão de soldados surgisse e a
levasse em custódia, mas depois de outra semana passar como se
nada tivesse acontecido, ela começou a ter esperanças.
— Talvez ele não tenha contado para ninguém – ela disse ao
pai durante o café da manhã, ainda que as palavras fossem vazias.
A testa de seu pai se franziu. Ele empurrou o prato com a
comida, seu apetite havia diminuído desde o acidente.
— Não é ele ter contado que me preocupa – disse o pai dela
depois de um momento. — É para quem ele contou.
Alguns dias depois Teddy apareceu na fazenda. Ele pegou os
turnos de Silas desde que ele havia desaparecido, mas era domingo, o
dia em que os Cooks não tinham ajuda. Brian se encontrou com ele
na varanda, e Taylor espiou pela porta.
— Eu fui a Sioux Falls na noite passada – Teddy explicou. —
Vi Silas. Ele estava com um grupo de caras estranhos, senhor Cook.
Ele me viu, se aproximou, começou a perguntar sobre a Taylor.
— Tipo os do governo – o pai dela perguntou.
— Não – Teddy respondeu. — Você sabe aqueles tipos mis-
sionários que vão de porta em porta às vezes, dedicados ao seu tra-
balho? Aqueles caras pareciam com eles, porém... mais malvados.
Me deixaram nervoso, então eu saí de lá rápido. Então, esta manhã,
eu vi alguns dos mesmos caras dirigindo pela cidade. Pensei que seria
certo vir aqui e avisar você.
Depois que Teddy foi embora, o senhor Cook pegou sua es-
pingarda no armazém. Ele sentou na varanda com a arma em seu
colo e esperou.
— Quem você acha que eles são? – Taylor perguntou.
O pai dela fez uma careta. — Não sei – ele pausou e ela po-
deria dizer que ele estava pensando o quanto dizer a ela. Ele tocou o
ponto em sua testa onde deveria haver uma cicatriz da queda do tra-
tor. — Quando tudo isso aconteceu com você, eu fiz uma pesquisa...
você sabe, como as coisas são agora. Têm algumas pessoas lá fora,
pessoas doidas, com ideias nojentas sobre adolescentes com seus
dons.
As mãos de Taylor tremiam. — Talvez devêssemos chamar
alguém. Ao menos a polícia.
— Eles iriam te levar para longe – ele olhou por cima do om-
bro. — Você quer isso, Tay?
Ela balançou a cabeça. Ela não queria aquilo. Mas ela também
não queria que seu pai se machucasse.
— Esta é a terra de nossa família – o pai dela concluiu resolu-
to. — E ninguém vai me obrigar a nada em nossa terra.
Eles vieram no cair da noite.
O pai dela a apressou para dentro quando os primeiros faróis
ficaram à vista. Ela não foi para longe — ela é quem tinha Legados,
afinal — seu pai tinha apenas sua espingarda e uma única caixa de
munição. Taylor olhou pela janela da porta, assistindo aos veículos se
aproximarem.
Eles fizeram um show de condução, se aproximando lado a
lado como se estivessem em formação, andando sobre os campos.
Havia um par de RVs, algumas caminhonetes, várias motos e uma
van grande, como as que os policias colocam seus prisioneiros. Pin-
tado com spray, de ambos os lados e no teto, em tons vermelhos,
estava o desenho de cobra e foice que Silas tinha tatuado no braço.
Seu pai ficou de pé na varanda com sua arma pronta enquan-
to os homens saiam de seus carros e cercavam o perímetro. Taylor
assumiu que a maioria eram homens, de qualquer forma — ela não
podia ver seus rostos. Muitos deles usavam máscaras de gás. Alguns
usavam simplesmente bandanas cobrindo o nariz e a boca, como os
fora da lei. Taylor não sabia o que pensar sobre os capacetes de me-
tal que alguns usavam. Parecia quase como chapéus de papelão. Tay-
lor avaliou a multidão, mas não conseguiu distinguir Silas no grupo.
Eram cerca de trinta deles.
— Este lugar é particular, vocês estão invadindo! – o pai dela
gritou. Ele fez esforço para sua voz parecer firme, mas Taylor podia
dizer que ele estava assustado.
Os homens estavam armados. Pistolas, metralhadoras e rifles
de assalto. A espingarda de seu pai estava carregada com munição de
caça.
Um homem saiu do meio da multidão. Ele usava uma banda-
na preta, uma bandeira pintada de carvão e nenhum chapéu idiota.
Seu cabelo cacheado era grisalho. Ele levantou as mãos como se qui-
sesse manter as coisas calmas.
— Senhor Cook, não é? Brian Cook? Posso chama-lo de Bri-
an?
O pai dela carregou a espingarda em resposta.
— Agora, Brian, não faça nada por impulso. Não viemos aqui
para machucar você. Ao contrário! Viemos proteger você.
— Me proteger do quê?
— Daquilo que está vivendo em sua casa – o homem res-
pondeu.
Taylor pensou sobre os vídeos que assistiu da Garde lutando
durante a invasão. Eles usavam sua telecinese para arrancar as armas
das mãos dos inimigos. Ela poderia fazer isso se se concentrasse.
Exceto que eram muitas armas lá fora.
Ela olhou para baixo e engoliu em seco. Havia um ponto pre-
to em seu peito. Alguém a havia visto pela janela. Ela se abaixou
atrás da soleira da porta, seu coração palpitando.
— Eles nos disseram na escola dominical que o diabo vive
embaixo, mas nós sabemos que não é o caso, não é, Brian? – o ho-
mem estava dizendo. — Eles vieram das estrelas. Descendo como
Lúcifer fez. Semeando o mundo com seus pecados. Agora a corrup-
ção está crescendo se manifestando de maneiras que desafiam a or-
dem natural. Satã, ele quer que vocês vejam estes poderes como mi-
lagres. Ele quer que adorem esses supostos anjos da guarda. Mas eu
conheço minha bíblia, eu me lembro da palavra para os Coríntios...
— Jesus – disse o pai de Taylor. — Você nunca cala a boca?
O pregador suspirou. — Estamos aqui para colher o pecado,
senhor Cook. Sua filha, ela não escolheu que essa imundice a possu-
ísse. Isso é um negócio horroroso e vergonhoso. Mas temos que
fazer o que Deus ordena e erradicar esses falsos profetas antes que
tenham chance de crescer. Siga em frente e fique de fora, para po-
dermos fazer a vontade de Deus.
Enquanto o homem discursava, o pai de Taylor se virou um
pouco e sussurrou na direção dela. — Taylor, corra pelos fundos,
agora.
— Não, pai.
— Eu amo você, agora corra!
O pai de Taylor mirou sua arma no pregador. Ele atirou. E,
ao mesmo tempo, outras dúzias de armas atiraram de volta. Pop-pop-
pop. A fazenda pacífica era agora uma zona de Guerra.
E então, momentos depois, o céu noturno ficou preenchido
com fogo.
KOPANO OKEKE
ZUMA ROCK, NIGÉRIA

A mãe de Kopano o encarou. — O que você acha?


Ela dirigia o carro emprestado por um de seus amigos da
igreja, Kopano segurando firme ao lado dela. Ele não conse-
guia se lembrar da última vez que viu sua mãe dirigindo. Ela
virou o volante, os nós dos dedos brancos. Ela continuava verifi-
cando o retrovisor, preocupada que eles estivessem sendo se-
guidos.
Era Akuziem, a mãe dele, cuja mão fria cobriu a boca de
Kopano e o acordou no meio da noite.
Ela já havia feito as malas para ele.
Ela o conduziu pela sala, na ponta dos pés de um jeito
que Kopano achou muito dramático. Seu pai estava desmaiado
na poltrona, meia garrafa de agongoro numa mão, seu celular
apertado na outra. Finalmente, cansado de se desculpar sobre
a entrega perdida, Udo havia bebido até chegar ao estupor.
Quando Kopano parou de encarar seu pai, Akuziem agarrou
seu braço e o puxou para a entrada.
— Diga adeus para seus irmãos - a mãe dele cochichou.
Kopano olhou para ela alarmado. — Estamos em apuros,
mamãe?
— Estou resolvendo isso - ela sussurrou de volta, e então
eles acenaram impacientes para ele seguir. — Precisamos ser
rápidos.
Kopano entrou no estreito quarto que seus irmãos peque-
nos dividem. Obi se esticou e soltou um ronco ressonante sob
suas costas, enquanto o pequeno se amontoava junto à parede
com um travesseiro colocado sobre a cabeça. Kopano beijou a
testa de Obi, o garoto nem mesmo se mexeu. Ele não podia
alcançar o rosto de Dubem, aninhado como estava sob o traves-
seiro, então ele sacudiu o pequeno braço do irmão mais jovem.
Dubem rolou imediatamente, seus olhos cansados tentando en-
trar em foco.
— Kopano? Qual o problema?
— Nenhum - Kopano respondeu rapidamente, forçando
um sorriso. — Apenas dizendo boa noite.
Dubem o olhou ceticamente. Ele logo percebeu a mochila
pendurada nos ombros de Kopano. — É isso? Você está indo
para América?
Kopano sentiu a sombra de sua mãe observando da por-
ta. Apenas então tudo se esclareceu para Kopano que enviá-lo
para a Academia da Garde Humana era exatamente o plano
de sua mãe. Ele esperou meses por esse dia, mas nunca esperou
que fosse tão abrupto. Ele tinha imaginando uma festa de des-
pedida com todos os vizinhos e amigos de escola, e então um
adeus repleto de lágrimas com toda sua família no aeroporto.
Quando ele iria ver seus pais novamente? E seus irmãos? Iriam
ficar bem sem ele? Kopano passou as costas de sua mão sobre
seus olhos.
— Sim - ele disse a Dubem. — Não conte ao pai até de
manhã. Ele ficará enlouquecido.
— Vou manter seu segredo - disse Dubem, então se sen-
tou para abraçá-lo. — Boa sorte, irmão. Escreva-me.
As ruas de Lagos estavam mais vazias depois da meia
noite, livre do tráfego de para-choques e motoristas audaciosos
da luz do dia, porém, os enormes buracos que requeriam cui-
dadosa direção quando havia sol se tornavam ainda mais peri-
gosos agora. Kopano achou as ruas desertas sinistras. Havia tão
poucos carros que ele se perguntou que tipo estranho de pessoa
estaria se escondendo atrás de cada par de faróis. Em sua
mente, ele criava histórias para eles — criminosos, vigilantes e
fugitivos como ele. Estaria o garoto que tentou afugentá-lo diri-
gindo por ali, procurando vingança?
— O pai nos colocou em problemas, não foi? - disse Ko-
pano quebrando o silêncio.
— Não apenas seu pai, hmm? - sua mãe respondeu, ajus-
tando o espelho retrovisor. — Ou ele forçou você a se juntar em
seus esquemas estúpidos? Você, com seus poderes...
Kopano cruzou os braços. — Eu pensei... precisávamos do
dinheiro. Eu não esperava que isso fosse acontecer.
Ela sacudia a cabeça, desconsiderando as palavras de
Kopano. — Agora é tarde, meu filho. Você e seu pai deixaram
algumas pessoas realmente más com muita raiva. Pessoas pode-
rosas. E tudo que seu pai consegue pensar é em beber, chorar
no telefone e implorar por misericórdia. Então, você e eu vamos
arrumar isso. Nós conhecemos pessoas mais poderosas do que
esses que se intitulam grandes homens.
— Quem? Quem nós conhecemos?
— As Nações Unidas - a mãe dele respondeu firme. —
Seu amigo John Smith.
Kopano a encarou como se ela tivesse enlouquecido. —
Eles vão me levar para a Academia na América, Mamãe, não o
resto de vocês.
— Eu sei disso. Eu também li os artigos que dizem que as
famílias do seu tipo serão protegidas. Então você vai para a
América e seus novos guardiões nos levarão para algum lugar
seguro.
Kopano preferiu não ligar para o modo como sua mãe
disse “seu tipo”, como se ele não fosse mais um Okeke, não fos-
se um nigeriano, não fosse humano.
Eram mais de dez horas dirigindo na A22 para Zuma
Rock, onde a pedra de Loralite havia crescido e as Nações Uni-
das feito seu quartel general. Kopano se ofereceu para assumir
o volante, mas sua mãe recusou. Ele relaxou depois de deixar
Lagos para traz. Ambos relaxaram.
Kopano dormiu e acordou ao som dos cascos. Era manhã.
Um grupo de garotos levou seus cavalos para o acostamento,
correndo contra o carro, gritando e batendo no flanco de suas
magras montarias. Akuziem buzinou irritada e pisou no acelera-
dor até deixar os jóqueis para trás. Eles estavam na parte rural
do país, que Kopano nunca tinha visto antes. Ele nunca esteve
fora de Lagos. Novamente, a realidade da situação o atingiu.
Ele estava indo para a América.
Eles pararam apenas duas vezes, ambas para abastecer.
Sua mãe ainda não queria deixá-lo dirigir. Ela não havia com-
prado nada para comer — e então Kopano comprou um paco-
te de chips e duas grandes laranjas de uma quitanda, quando
passaram por Auchi — mas Akuziem apenas bebeu profunda-
mente as garrafas de água que ela havia colocado na baga-
gem. Sua mãe estava com um olhar cansado, estreitando os
olhos contra o Sol. Ela tinha se lembrado da água, mas esque-
ceu de seus óculos escuros. Para Kopano, ela parecia uma mu-
lher em missão. Dirigia em alta velocidade.
— Você quer tanto se livrar de mim? - Kopano perguntou
a sua mãe, apenas uma meia piada.
Os lábios de sua mãe se apertaram numa linha. — Você
é meu filho - ela disse, mas Kopano podia sentir a dúvida em
sua voz. Akuziem deve ter percebido isso também, porque ela
agarrou a mão de Kopano e repetiu para si mesma com mais
convicção. — Você é meu filho. Eu queria que nada disso tivesse
acontecido com você. Mas você está numa jornada de Deus
agora. Precisamos aceitar isso.
De tarde, eles se aproximaram de Abuja. A rodovia es-
tava lotada, contudo, nada como o trânsito de Lagos, e Kopano
se sentiu confortavelmente anônimo. Seu estômago se revirou
quando Zuma Rock surgiu em sua vista. Por um longo trecho, a
estrada seguia direto para um monólito de pedra, Zuma Rock
lançando uma sombra, sua superfície cinza tapando o sol. Ao
redor de Zuma Rock a terra era verde e acidentada, não mon-
tanhosa como seria de se esperar, o que fez com que o monólito
de 725 metros de altura se sobressaísse. Para Kopano, Zuma
Rock parecia como se Deus tivesse deixado cair um meteoro no
meio da África e o deixado lá. Fazia sentido que os alienígenas
tivessem escolhido Zuma Rock como o lugar para a Loralite
crescer. Era o único lugar parecido com outro mundo que se po-
dia encontrar na Terra.
Quando chegaram mais perto, o prédio mais novo feito
pelo homem em Zuma Rock chamou a atenção de Kopano. Um
pedaço do parque ao redor da pedra gigante havia sido con-
vertido recentemente numa base militar. Andaimes percorriam
toda a lateral da pedra; mesmo desta distância, ele podia ver
um pequeno elevador indo e vindo do topo da Zuma Rock. Um
helicóptero sobrevoava o lugar.
A expressão de Akuziem não mudou quando se aproxi-
maram. Na verdade, ela pareceu ainda mais determinada do
que nunca, seus olhos focados nos pontos de inspeção colocados
à frente.
Havia placas de desvio. Grandes avisos em diversas lín-
guas de que a Zuma Rock estava fechada ao público. O trânsi-
to diminuiu ao redor deles, os outros motoristas seguiam a curva
ao redor da Zuma Rock para a capital de Abuja. A mãe de
Kopano seguiu em frente, ignorando as placas. Não tardou pa-
ra ser o único carro na pista.
Eles dirigiram em direção a um grupo de soldados nige-
rianos descansando em seus Humvees, seus veículos organizados
formando uma barreira. Kopano olhou para sua mãe. Ela dimi-
nuiu a velocidade, mas não mostrou nenhum aviso de parar.
— Você disse para alguém que estávamos vindo? - Ko-
pano perguntou.
— Não - sua mãe respondeu.
Kopano olhou para os soldados, que agora prestavam
atenção no pequeno carro. Eles estavam guardando um lugar
de grande poder. Kopano estava preocupado que começassem
a atirar a qualquer momento.
A mãe de Kopano abaixou o vidro e acenou. Os solda-
dos acenaram de volta, e ela simplesmente dirigiu até eles. Ko-
pano acenou com a cabeça para um deles ao passar. O solda-
do fumava um cigarro.
Kopano riu de alívio. — Como o pai sempre dizia! Se vo-
cê agir como se pertencesse ao lugar, pode ir a qualquer lugar.
— Eu fiz as malas para você, Kopano - sua mãe respon-
deu rigidamente. — Não deixei lugar para a sabedoria de seu
pai.
Os soldados no próximo ponto de inspeção não estavam
tão desinteressados. Eles usavam as boinas azuis claro dos di-
plomatas da ONU e controlavam um pesado portão de ferro
que bloqueava a estrada para a Zuma Rock. Um homem muito
pálido com feias queimaduras de sol e sobrancelhas vermelhas
levantou uma mão enluvada para pará-los e se aproximar do
carro.
— Você tem que dar meia volta, senhora - disse o solda-
do com o que Kopano pensou ser um sotaque irlandês. — O
lugar está fechado até futuras ordens.
— Meu filho é um deles - Akuziem retrucou rigidamente.
— Ele tem Legados.
O soldado olhou de relance para Kopano e então revi-
rou os olhos. Aparentemente, isso tem acontecido muito. — Cla-
ro que ele tem. Olhe, não tem nenhuma recompensa, entende?
Você tem um belo garoto aqui, verdade, mas os doutores vão
dar uma olhada nele e vão saber que você esteve desperdi-
çando o tempo de todo mun...
Antes que o soldado pudesse terminar, Kopano usou sua
telecinese para fazer a boina dele flutuar. O soldado deu um
passo para trás, seus olhos arregalados, acenando as mãos em
cima e embaixo da boina, como se checasse que não havia fios.
— Eu poderia levantar algo maior, se quiser - Kopano
ofereceu com um sorriso.
— Não será necessário - disse o soldado, já pegando
seu walkie-talkie.
Os soldados levaram o carro deles até o portão e permi-
tiram que eles estacionassem a sombra da Zuma Rock. Um ban-
do de homens e mulheres — alguns soldados, mas também cien-
tistas com jalecos de laboratório e algumas pessoas com trajes
de negócios — andando rápido na direção do carro.
— Amo você, Kopano, não importa o que aconteça - dis-
se a mãe dele.
— Amo você também - respondeu Kopano.
Kopano não falaria com a mãe novamente por algum
tempo. Ele estava feliz que tivessem tido este momento, mesmo
se as palavras de sua mãe continham uma ponta de dúvida,
como se ela não estivesse completamente convencida de que
Kopano ainda era Kopano.
O que aconteceu depois foi um vendaval de atividade.
Eles foram recebidos com entusiasmo pelos representantes da
ONU e rapidamente separados. As pessoas de terno foram em
direção à mãe de Kopano. Havia documentos para ela assinar
em nome de Kopano — visto, acordo de emancipação, pesqui-
sa sobre quais vacinas ele tinha recebido. Os engravatados
perguntaram o endereço em Lagos, o nome do pai e dos irmãos
e asseguraram que seriam levados para um lugar seguro.
— Vai haver uma cura, certo? - Kopano ouviu a mãe
perguntar a um dos homens. — Toda essa pesquisa com eles é
para achar uma cura eventualmente, né?
O coração de Kopano afundou, mas logo a montanha de
perguntas dos cientistas o fez esquecer as palavras da mãe.
Qual a sua idade? Quando seus poderes se manifesta-
ram pela primeira vez? Há tanto tempo? Todo esse tempo, bem
aqui, debaixo dos nossos narizes! Você participou da visão do
John Smith? Esteve praticando sozinho? Por que não veio antes?
Kopano teve o pressentimento de que a equipe de cien-
tistas posicionados na Zuma Rock não teve muito que fazer. Eles
o estavam assustando, concordando, sorrindo e anotando tudo o
que ele dizia, mesmo que não tivesse importância. Eles mostra-
ram a ele o acampamento, e então o levaram a um laboratório
de alta tecnologia que era meticulosamente limpo.
Algum sentimento estranho ou saúde frágil? Depressão?
Ansiedade? Usou seus Legados em situações hostis?
Kopano descreveu o ataque do dia anterior. Os cientistas
não o julgaram pelo seu ano gasto como correio superpoderoso.
Um deles, a única nigeriana na sala, além de Kopano, balança-
va a cabeça com simpatia. Ela entendia.
Um par de doutores administrou o que pareceu ser um
exame físico muito comum. O único choque ocorreu quando eles
tentaram tirar uma amostra do sangue de Kopano. A agulha
perfurara apenas a primeira camada da pele de Kopano
quando o Legado se manifestou. A seringa foi triturada e amas-
sou antes de atingir a veia. Foram três tentativas com o mesmo
resultado.
— Será que você pode tentar desligar isso? - um dos
doutores perguntou.
— Eu não sei - disse Kopano. — Esse é novidade para
mim.
— Nos disseram que quando estamos lidando com Lega-
dos, é útil tentar visualizar o resultado desejado - um dos cien-
tistas que observava sugeriu. — Talvez tente imaginar que você
queira ver seu sangue sendo colhido para a amostra.
— Eu quero ajudar - Kopano respondeu com um sorriso.
— Mas quem nesse mundo tem a imaginação tão forte a ponto
de poder fingir gostar de agulhas?
Todos riram. Depois de mais algumas agulhas quebradas,
os médicos desistiram, estabelecendo amostras de cabelo e pe-
le, mais algumas amostras de unhas. Aparentemente, suas unhas
não eram do mesmo material duro que espreitava sob sua pele.
Com o exame físico completo, o tumulto inicial de sua
chegada se dissipou, muitos dos cientistas saíram silenciosamente
para avaliar seus dados ou fazer vídeo conferência sobre o
garoto com pele impenetrável. Kopano foi deixado sozinho com
a cientista nigeriana.
— Eles estão muito animados - ela disse, fazendo gesto
para os outros cientistas. — Você é o primeiro Garde Humano
que nós vimos aqui.
Kopano estufou o peito. — Estou animado também.
O nome dela era Orisa, e ela devia ter uns trinta anos,
com grandes olhos castanhos e tranças. Ela era funcionária da
Organização Mundial da Saúde, que se voluntariou para ser
transferida para Zuma Rock quando a "manifestação alieníge-
na" ocorreu.
— Você quer vê-la? - ela perguntou.
Eles foram de elevador até o topo da Zuma Rock, a pe-
quena gaiola brilhando ao vento. No topo eles cumprimentaram
um par de soldados, ambos armados com armas automáticas e
vários livros.
— Acho que guardar uma pedra no topo de outra pedra
não requer muita atenção - pontuou Kopano.
Orisa sorriu. — Honestamente até você chegar, esta era
a instalação mais chata de todas.
O afloramento de Loralite cresceu no topo da Zuma Rock
como uma árvore de pedra. Veias de substância azul cobalto
brilhante se espalharam sob os pés de Kopano. A Loralite cres-
ceu até sete metros de altura e lembrava a Kopano uma onda
de maremoto da forma como se erguia repentinamente e se
curvava sobre si mesma. Ele lembrou o que John Smith disse na
visão, meses atrás — “imagine outro lugar com a pedra, toque
a superfície brilhante e a Loralite irá te teleportar pelo globo”.
Kopano não pôde evitar. Ele seguiu em frente, a mão es-
tendida.
Orisa o puxou.
— Não faça isso - ela disse. — Você pode se teleportar
para longe por acidente.
— Eu voltaria num segundo - Kopano prometeu com um
sorriso torto.
— Nem toda Loralite cresceu em lugares seguros como
este – ela disse. — De qualquer forma, eles dizem que vocês
Gardes têm que visualizar para onde querem ir.
— Eu posso visualizar a América. É para onde eu vou,
certo?
— Sim, mas não teleportando. Você vai voar para lá -
ela percebeu o olhar de desapontamento de Kopano. — Anti-
quado, eu sei. Mas ao menos o avião é particular.
— Meu pai ficaria com inveja - Kopano murmurou com
um sorriso. Ele levou as mãos em direção à pedra, não para
tocá-la, mas como aqueceria a mão numa fogueira.
— Você sente alguma coisa? - Orisa perguntou, pegando
um bloco de notas em seu jaleco.
— Sim - Kopano respondeu, lutando a princípio para
transformar a sensação em palavras. — Ela me atrai. Eu sinto...
eu olho para ela e sei que ela não pertence a este lugar. Eu
deveria pensar nela como algo estranho e alienígena - da mes-
ma forma que minha mãe olhou para mim, ele pensou, mas não
acrescentou. — Mas ao invés disso, parece natural. Eu conheço
essa pedra como eu conheço o céu.
Havia uma montanha de papéis esperando por Kopano
escada abaixo. Eles pediram para Kopano ler o que ele pensou
a princípio ser um livro, mas era um contrato, um enorme docu-
mento que tinha estampado o logo da ONU, escrito em juridi-
quês e cheio de subseções atrás de subseções. Ele olhou para
Orisa procurando ajuda.
— Basicamente diz que você aceita entrar na custódia
das Nações Unidas e que, depois do período de treinamento e
uma vez que você atingir os dezoito anos, você será recrutado
para os diplomatas da divisão da Garde Terrestre pelo perío-
do de cinco anos - a cientista resume. — E também estabelece
as leis que a Garde deve seguir, que você aceita ser responsa-
bilizado por suas ações e que você não responsabilizará seu
país de origem ou as Nações Unidas por qualquer coisa que
aconteça a você.
Kopano concordou com a cabeça, foi até a última página
do imenso contrato e assinou no lugar indicado.
— Posso ver minha mãe agora? - ele perguntou. — Eu
queria dizer adeus.
As sobrancelhas de Orisa se juntaram. — Oh, eu pensei
que vocês já tinham... ela se foi, Kopano. Os soldados a leva-
ram para um hotel em Abuja. Depois que ela nos contou de seus
problemas, o resto de sua família está sendo retirado enquanto
conversamos - ela olhou para o relógio. — Seu avião deve es-
tar chegando logo, mas eu posso trazê-la de volta...
Kopano balançou a cabeça. — Não precisa - ele disse, e
forçou um sorriso.
Ela o havia deixado. Ele iria começar sua grande jorna-
da sozinho.
TAYLOR COOK
CONDADO DE TURNER –
DAKOTA DO SUL

fantasiados com suas tatuagens de cobras com foices ainda estavam


adentrando na fazenda, enquanto seu pai estava sozinho na varanda
sentado com sua arma no colo e observando, Taylor decidiu ligar
para o telefone de emergência.
— Você ligou para a Garde Terrestre da América do Norte,
em que posso ajudar? – uma atendente disse, seu tom de voz gentil,
porém neutra.
Taylor sentou no chão encostando-se na sua cama, cobrindo
sua boca ao redor do celular, embora não havia chances do pai dela
escutar. Eles informaram esse número na TV, nas contas e por toda
a internet. Os comerciais estrelavam jovens usando telecinese ou
acidentalmente colocando fogo em árvores com seus Legados.
Qualquer Garde Humano ou atividade extraterrestre deveria ser re-
portada.
— Estou ouvindo sua respiração – a moça disse. — Alô?
Taylor umedeceu sua boca, e finalmente falou.
— Eu sou um deles – ela disse. — Um Garde.
— Tudo bem, querida – a operadora respondeu rapidamente.
— O que lhe faz pensar isso?
— O que... o que me faz pensar isso? – Taylor piscou. — Eu
posso mover coisas com minha mente. Meu pai, ele cortou a cabeça
e eu o curei.
— Quantos anos você tem?
— Quinze.
— Estou vendo que sua localização é na Dakota do Sul. Está
correto?
— Sim, mas escute, nós precisamos...
— O que você terá que fazer é pedir para seus pais te levarem
até Denver. Lá é o centro de avaliação mais perto de você. Eles vão
te consultar lá, presumindo que o que você diz é verdade. Nós cos-
tumávamos enviar investigadores, mas havia muitos trotes. Se você
tem um vídeo evidenciando seus Legados, você pode enviar no nos-
so site. Deixa eu lhe passar o endereço...
Taylor estava boquiaberta, petrificada pela calma da mulher, a
sofisticação de tudo. Ela aumentou seu tom de voz, suas mãos se
movimentando no ar.
— Você não entendeu! Há pessoas... – ela se controlou e co-
meçou a sussurrar. — Há pessoas vindo para nos machucar. Para me
machucar.
Houve uma pausa. Quando ela falou de novo, a voz da ope-
radora não estava com tanto desdém. Ela deve ter reconhecido o
tom de provocação na voz de Taylor.
— Se você está em perigo, deveria ligar para o nove-um-um.
— Eu sei, eu sei. Mas... meu pai estava com medo de vocês
aparecerem e me levarem para longe se ligássemos. Tudo começou
com um idiota com uma tatuagem esquisita...
— Fique na linha, por favor. Estou contatando os serviços de
emergência da sua área.
— Espere!
A ligação ficou em silêncio, com exceção dos chiados. Segun-
dos se passaram. Taylor sentiu suas mãos começarem a suar.
— Tudo bem, isso é estranho – a operadora disse, de repente
de volta nos ouvidos de Taylor. Seu tom superficial foi substituído
por um tom de gravidade que confundiu Taylor. — Não consegui-
mos uma resposta da delegacia do xerife da sua área.
— Ai Deus.
— A ajuda está a caminho – a operadora disse. — Se você
puder ficar em um local seguro, deve fazer isso.
Uma hora depois, os Ceifadores estavam na casa deles. O pai
de Taylor ficou sozinho na varanda, com o rifle na mão, ouvindo o
pregador vestido como um fora da lei dar um sermão improvisado
sobre a condição “pecaminosa” de Taylor.
A ajuda ainda não havia chegado.
Armas foram levantadas. Seu pai soltou um tiro. Dúzias de
Ceifadores dispararam de volta, o som como uma detonação. Taylor
caiu no chão, amontoou-se contra a parede ao lado da porta da
frente. Ela esperava o vidros quebrando. Ela esperava ouvir o pá-pá-
pá das balas comendo as paredes de madeira da sua casa. Ela
esperava não conseguir sobreviver nos próximos segundos.
Em vez disso, houve um súbito silêncio.
E um brilho. Um brilho aconchegante e alaranjado, como
fogo. Era como se o sol tivessse nascido.
Taylor olhou através do vão da porta. No estranho e ardente
brilho, Taylor percebeu o que ela primeiro tomou por um enxame de
mosquitos pendurados a poucos centímetros do rifle de seu pai. A
munição dele, ela percebeu, estava suspensa no ar, e as de prata, mais
pesadas, disparadas pelos Ceifadores também ficaram brilhantes
sobre o pátio da frente. Taylor olhou para as mãos - por um
momento, ela se perguntou se o estresse fazia com que seus Legados
se desencadeassem, como o dia do acidente de seu pai com o trator.
Mas não, ela percebeu, ela não era capaz de um feito tão espetacular
de controle telecinético.
O jovem garoto brilhando acima de sua garagem era.
Taylor ouviu o ruído de chuva. Eram as balas, caindo
inofensivas no chão.
— Joguem as armas no chão ou eu as jogarei para vocês – a
figura brilhante disse.
Taylor o reconheceu imediatamente. O mundo inteiro conhe-
cia o rosto de John Smith. Seu cabelo loiro havia crescido, diferente
da foto que eles sempre usavam nas notícias, e uma barba por fazer
cobria suas bochechas. Vendo ele ali, flutuando a cinco metros de
altura, suas mãos em chamas que se espalhavam pelos seus braços,
era como se uma revista em quadrinhos tivesse se tornado realidade.
Até os Ceifadores, que momentos atrás pareciam ameaçadores, se
espantaram com o líder dos Lorienos. Foi dito que ele possuía cada
Legado possível, seus poderes quase o faziam um deus, e que ele
havia destruído sozinho pelo menos uma nave de guerra mogadoria-
na durante a invasão.
Que diabos ele estava fazendo na Dakota do Sul?
Bem, a operadora disse que mandaria ajuda.
Brian jogou sua arma como foi pedido, o som de seu rifle
atingindo o chão da varanda quebrou o silêncio.
Os Ceifadores não pareceram que iriam obedecer.
— O próprio satã está entre nós, irmãos e irmãs! – o prega-
dor gritou através da sua bandana. — A fonte da infecção que cor-
rompeu nossos jovens!
Os Ceifadores apontaram suas armas para John Smith. Ele
nem se encolheu. Um segundo depois, em vez de uma explosão de
tiroteio, gritos de surpresa encheram o ar. Com sua telecinese, John
Smith arrancou as armas da multidão, vários dedos de gatilho
quebrados no processo. Os Ceifadores, desarmados, observavam
como cada uma das armas caíam e se torciam até não serem nada
além de metais inúteis.
— Vocês não podem nos machucar! – alguém gritou. Isso era
verdade. As Nações Unidas publicaram uma resolução em que qual-
quer Garde – Lorieno ou Humano – não poderia usar seus Legados
contra outros humanos, com exceção de legítima defesa.
Com um movimento do pulso, John Smith jogou as armas
comprimidas na direção dos carros dos Ceifadores. Antenas quebra-
ram, pneus explodiram, para-brisas quebraram.
— Não estou machucando vocês, apenas destruindo seus
equipamentos – John Smith disse para os Ceifadores.
Mesmo com os rostos escondidos, Taylor percebeu o medo
dos Ceifadores. Muitos começaram a se afastar em direção a seus
veículos danificados. Eles se esqueceram completamente dela e de
seu pai.
John Smith flutuou suavemente até o chão.
— Deitem-se – ele ordenou aos Ceifadores. — As
autoridades estarão aqui em breve.
Eles correram.
Um tremor retumbou de onde John Smith estava parado. Foi
afastado de sua casa, mas Taylor ainda podia sentir as reverberações.
Os caminhões e RVs forma virados como tartarugas. Todos os
Ceifadores foram derrubados no chão. Alguns deles se deitaram
como John Smith comandou, mas outros tropeçavam e corriam para
a estrada. Ela notou o pregador fugindo de sua propriedade, um
Ceifador de cada lado carregando-o por baixo dos braços.
Taylor estava ao lado de seu pai, observando a ação da
varanda. Ela estendeu a mão e agarrou a dele.
— Uau - disse Brian.
— Eu... eu liguei para eles – disse ela. — Eu me entreguei.
— Você salvou nossas vidas – disse Brian.
— Ele salvou nossas vidas – respondeu Taylor. — Ele...
Taylor parou quando percebeu que John Smith estava
olhando para ela. Ele não estava perseguindo os Ceifadores que
estavam fugindo. No início, ela pensou que ele não queria deixá-la
sozinha com o pai e com aqueles que se renderam. Mas havia algo
no olhar dele – ele ficou parado, olhando para Taylor, quase como se
tivesse visto um fantasma.
As luzes dos carros de polícia apareceram distantes, vindo em
direção da casa. Os Ceifadores não iriam muito longe. Ela esperava.
— Ei – Taylor disse, agitando uma mão na frente do rosto de
John Smith.
Ele mexeu a cabeça, piscou e empurrou qualquer que fosse a
lembrança que havia tomado conta dele e focou.
— Desculpe – ele disse depois de um momento. — Você...
me lembra uma pessoa. Vocês estão bem?
Taylor e seu pai assentiram juntos, ambos impressionados.
John Smith olhou para os carros revirados. — Desculpem pe-
la bagunça – ele disse. — Eu vou ajudar a tirar essas coisas da sua
propriedade.
Brian sorriu em descrença com isso.
— Você salvou nossas vidas – Taylor disse.
John Smith deu de ombros. — A Garde Terrestre não tinha
uma equipe próxima e eu estava por perto.
— Você estava na Dakota do Sul? – Taylor exclamou.
— No Canadá, na verdade.
— Estava bem perto.
Ele sorriu. — Acho que sim.
Taylor manteve o olhar sobre os Ceifadores derrotados
enquanto ela andava cautelosamente na varanda. John Smith parecia
amável e, de certa forma, Taylor não podia explicar, profundamente
melancólico. Ela havia lido um artigo sobre o tempo que ele ficou
escondido em uma pequena cidade em Ohio, antes da invasão, e
como ele tentou viver uma vida normal. Talvez ele entenda...
— Ei – ela disse, mantendo a voz baixa para que os
Ceifadores não ouvissem. — É possível dizer...? Eu não sei... que
isso foi um grande mal-entendido? Podemos dizer às autoridades
que na verdade não tenho Legados?
John Smith levantou uma sobrancelha. — Mas você os tem.
— Sim, mas... não quero ir para a Academia - Taylor olhou
por cima do ombro. — Eu não quero deixar meu pai sozinho.
John Smith estudou Taylor por um momento, apertou a boca
e depois olhou para os pés. Ele balançou sua cabeça.
— Desculpe – ele respondeu. — Isso está além do meu
poder.
Taylor nunca conseguiu ver se John Smith cumpriu a sua
palavra de ajudar a retirar os veículos dos Ceifadores para fora da
propriedade. Uma armada de policiais e o FBI apareceram –
aparentemente, a delegacia do xerife local havia sido tomada por
uma segunda equipe de Ceifadores, então a ajuda teve que descer de
Sioux Falls – e eles logo ficaram acompanhados por um helicóptero
de governo disfarçado. Um par de representantes da Garde Terrestre
estava no helicóptero, as autoridades policiais locais imediatamente
adiantaram-se a eles. Eles instruíram Taylor a arrumar uma mala, que
ela fez de forma lenta e relutante e com muita ajuda de seu pai.
Então, foram empurrados para o helicóptero.
Taylor deixou a fazenda para trás. Quando o helicóptero se
levantou, olhou os restos da batalha. Ela viu de relance John Smith
dando autógrafos para um grupo de policiais locais. Ela pensou que
ele havia olhado para cima em sua direção, mas não podia ter certe-
za.
Taylor e seu pai foram levados para o centro de processamen-
to em Denver. O prédio estava localizado na base de Pikes Peak,
local escolhido porque uma pedra de Loralite havia crescido no topo
da montanha. Eles foram recebidos por um grupo de advogados de
fala rápida, militares e cientistas hiper curiosos. Eles coletaram o
sangue de Taylor e pediram-lhe que usasse sua telecinese para em-
purrar um pistão com a força que pudesse para que pudessem medi-
la. Ela sentiu uma estranha mistura de alívio e desapontamento
quando vislumbrava um pesquisador que fez um “x” no quadradi-
nho para "média" ao lado da "força telecinética". Depois disso, havia
os formulários, uma infinita pilha deles – promessas, acordos e re-
núncias.
— Devemos ter um advogado presente para essas coisas? –
perguntou seu pai, olhando fixamente o documento mais recente na
frente dele. Os dois não tiveram a chance de dormir e Taylor não
tinha certeza se isso era um descuido ou de propósito.
— Sr. Cook, eu sou seu advogado – respondeu o homem de
meia-idade sentado em frente a eles na sala de conferências.
— Ah – disse seu pai. Taylor podia dizer que estava sobrecar-
regado com tudo o que tinha acontecido. Ele era um homem confi-
ante, inteligente, mas lento e atencioso com suas palavras. Ele estava
completamente fora de seu elemento aqui. E Taylor – bem, para ela,
toda a experiência era como um pesadelo de vigília. Ela pensou em
todas as coisas que restavam: seu trabalho na fazenda, seu ensaio
sobre Othello. Ela nem tinha chegado a despedir-se de seus amigos.
— E se eu me recusar a assinar essa porcaria? – perguntou ao
suposto advogado. — Eu vou ir para casa?
O advogado tirou os óculos e os limpou, uma desculpa para
não olhar Taylor nos olhos. — Por lei, se você não assinar os acor-
dos na íntegra, sua condição exigirá um período de quarentena.
— Quarentena? – exclamou seu pai. — Mas você não ouviu?
Ela cura as pessoas!
— Sim, mas isso pode não ser tudo o que ela pode fazer –
respondeu o advogado com artilharia. — Ainda há muito, não sa-
bemos sobre a condição de Taylor. A saúde do público em geral de-
ve ser levada em consideração.
— Quanto tempo eu teria que estar em quarentena? – Taylor
pressionou obstinadamente.
— Indefinidamente – respondeu o advogado. — Você seria a
primeira, então o processo exigiria algumas... descobertas. Na Aca-
demia, por outro lado, você terá uma educação de classe mundial e
receberá o treinamento adequado para seus legados. Você não terá
permissão para sair do campus até ter 18 anos completos, mas seu
pai terá permissão para visitá-la uma vez por mês.
Taylor pensou em usar sua telecinese para apertar lentamente
a gravata do advogado. Ela provavelmente poderia sair dali lutando.
Mas o que aconteceria? Anos como uma fugitiva? A vida de seu pai
seria arruinada? Mais Ceifadores?
— A fazenda da sua família também será protegida – conti-
nuou o advogado, como se estivesse lendo sua mente. — Então, um
incidente como o da noite passada pode ser evitado.
Com lágrimas nos olhos, Taylor assinou a papelada. Ela agora
era propriedade das Nações Unidas. Uma inscrita na Academia da
Garde Humana.
Ela ainda estava massageando sua mão direita quando a leva-
ram para um campo de guerra militar cercado, nos arredores de
Denver. Havia um jato privado à sua espera.
Taylor pressionou seu rosto na camisa de seu pai. Ela estava
lutando contra as lágrimas durante todo o processo, e agora podia
senti-las derramando. Ele a abraçou, sussurrando em seu ouvido.
— Tudo bem. Não deixe que essas pessoas a vejam chorar.
Você deve ser forte, Tay.
— Eu não quero ir – ela disse, suas palavras abafaram-se no
peito dele. — Eu não quero deixá-lo sozinho.
— Ah, vou ficar bem – ele respondeu, embora ela tenha
detectado um tremor na voz dele. — Imagine todo o bem que você
pode fazer, junto com aquele cara, John Smith, e sua equipe. Você
vai me deixar tão orgulhoso.
E então era hora. Eles a conduziram pelo meio da pista, na
direção de uma escada retrátil. Taylor olhou de volta para o pai,
acenou e logo entrou. Minutos depois, encolhida em uma cadeira de
couro, Taylor estava sem chão, a caminho da Califórnia, em um jato
particular. Menos de vinte horas se passaram desde que Teddy tinha
vindo à fazenda para avisá-los sobre os Ceifadores. Para Taylor,
pareceu como se fossem dias. Estava exausta, mas ansiosa demais
para dormir. Havia uma outra pessoa no banco de passageiros com
ela. Ele era moreno, musculoso como um atleta, bonito, com os
olhos arregalados que o faziam parecer curioso. Ela não se sentia tão
mal olhando para ele porque ele estava olhando para ela, um sorriso
grande no rosto.
— Olá – disse o menino finalmente. Seu inglês tinha um
ligeiro sotaque, quase britânico.
— Oi – Taylor respondeu com incerteza, quase cansada de se
socializar.
— Eu sou Kopano – continuou o menino. — Qual o seu
nome?
— Taylor.
Ele mudou para o assento ao lado dela e, com entusiasmo,
sacudiu a mão.
— Eles me disseram que estávamos fazendo um desvio para
Dakota do Sul para pegar outro passageiro – que alívio! Estive
sozinho aqui por mais de meio dia. Muito chato – ele ergueu as mãos
como se estivesse tirando a foto dela. — Minha primeira amiga
americana. Assim como a garota bonita que colocam nas caixas de
cereais. Muito clássico.
Taylor se sentiu corando, sem saber por que razão. Não podia
pensar em caixas de cereais com garotas da idade dela. — E você é
da...? – ela perguntou, mudando de assunto. — Inglaterra?
— Nigéria – o menino disse com orgulho. — Então, você é
Garde também, né? Nunca conheci ninguém como eu.
— Eu também não – Taylor fez uma pausa. — Na verdade,
eu conheci sim. John Smith, na noite passada, mas acho que é um
pouco diferente.
— John Smith! – gritou Kopano. — Meu heroi! Quão alto ele
era? Mais alto que eu? Você podia me contar tudo, Taylor.
Imediatamente.
Então ela disse a ele, a partir do dia em que ela descobriu seus
Legados pela primeira vez. Com o enorme sorriso de Kopano e
assentimentos entusiasmados, foi fácil para Taylor contar sua
história. Foi saindo naturalmente. Taylor ficou surpresa porque
conseguiu contar sem chorar.
— Eu vi John Smith uma vez, durante o sonho telepático.
Seu discurso era extraordinário...
— Desculpe – interrompeu Taylor. — O quê?
— Durante a invasão, quando fomos chamados à ação –
disse Kopano. Ao ver o olhar de dúvida de Taylor, ele bateu no
joelho. — Oh! Você se tornou Garde após a guerra. Então, mais de
nós ainda estão aparecendo, huh? Muito interessante. Muito legal.
Deixe-me dizer o que aconteceu!
Kopano contou a ela sobre o que ele havia visto durante a
invasão, quão ansioso ele tinha ficado para ajudar a lutar, e como
seus Legados demoraram para se desenvolver. Ele contou a ela
como ele tinha sido arrolado para trabalhar um emprego sombrio
com seu pai até finalmente fugir para a Academia. Taylor pensou que
ela tinha controlado suas emoções, mas quando Kopano contou a
ela sobre a maneira como sua mãe olhou para ele, como se ele fosse
algo de outra dimensão, Taylor ficou engasgada. Ela tentou se
segurar, mas um grande soluço escapou e então ela começou a
chorar de novo.
— O que foi que eu disse? O que eu disse? – perguntou
Kopano em pânico.
— Você não... – Taylor disse, limpando o rosto. — É tudo
demais. Não deveríamos passar por isso. Odeio o que aconteceu
conosco. Gostava da vida que tinha! Eu não quero deixar tudo para
trás para ir a esta estúpida Academia, onde não conheço ninguém...
— Você vai me conhecer – declarou Kopano. — Nós
seremos parceiros na busca do nosso grande destino como as
estrelas anunciaram!
— Que estrelas? – ela olhou para ele. — Eu não quero um
grande destino.
Kopano sorriu e Taylor percebeu que estava brincando sobre
as estrelas e o destino. Bem, se não estivesse brincando, então não
estava sendo completamente sério. Kopano trocou olhares com ela e
fez uma expressão esquisita.
— Um grande destino para mim então, e um destino comum
e chato para você. Juntos, acredito que podemos conseguir isso.
Taylor sorriu. — Você está louco.
Kopano estendeu a mão. — Vamos tornar essa aliança oficial.
Uma vez que chegarmos à Califórnia, vamos cuidar um do outro.
Você se certificará de que eu permaneço no caminho da grandeza
histórica, e eu me certificarei de que sua vida seja tão excitante
quanto possível.
Taylor sorriu. — E daí? Se eu encontrar um gato preso em
uma árvore ou algo assim, você quer que eu vá buscá-lo
imediatamente?
— Sim! Exatamente! Donzelas em perigo, particularmente –
Kopano coçou o queixo. — Eu gostaria que elas se tornassem minha
especialidade.
Taylor revirou os olhos.
— E em troca – continuou Kopano, — eu me certificarei de
que você receba tarefa de casa extra dos novos professores. Eu
ficarei constantemente atento aos acontecimentos espetaculares e
garantirei que você esteja longe, muito longe, quando acontecer.
— Ok, Kopano – disse Taylor com outra risada. Ela apertou
sua mão. — Você tem um acordo.
— Excelente! – ele respondeu. — Isto, eu acredito, é o
começo de uma grande amizade!
Quando eles chegaram na Califórnia, Taylor já tinha pegado
no sono, com sua cabeça encostada nos largos ombros do garoto.
ISABELA SILVA
ACADEMIA DA GARDE HUMANA –
POINT REYES, CALIFÓRNIA
ALVO #3
MANILA, FILIPINAS

as Filipinas. Era de 6.2 na escala Richter. O terremoto resultou em


pesadas ondas ao largo da costa, quase próximas do nível de um
tsunami. Quinhentos morreram durante os tremores e mais durante
as inundações subseqüentes, sendo pior as vítimas nos bairros
densos de Tondo e San Andrés. Milhares ficaram feridos, muitos
mais do que os deslocados.
O mundo enviou ajuda. A Cruz Vermelha, Médicos Sem
Fronteiras, UNICEF, Equipe de Ajuda Internacional e outros estavam
em cena, cuidando dos feridos e ajudando a reconstrução do local.
A Garde Terrestre também estava lá. Dois jovens Gardes Humanos,
juntamente com trinta de seus manipuladores da paz da ONU.
Era exatamente a oportunidade pela qual a Fundação estava
esperando.
Einar sentou-se em uma cafeteria ao ar livre, no meio da
movimentada cidade de Manila. Se não fosse pela janela quebrada
atrás dele, nunca se saberia que houve um terremoto lá. Os
edifícios nas partes mais ricas da cidade foram reforçados, a história
ensinando os habitantes a se preparar para o pior. Einar tomou um
gole de café e admirou a arquitectura de patchwork - edifícios
modernos coloridos deixando evidente que competem com a antiga
arquitetura espanhola e francesa.
O ar era úmido e pegajoso, e não o clima preferido de Einar.
Ele puxou o colarinho de sua camiseta azul em prol da Habitat For
Humanity. Olhando para si mesmo - a camisa idiota, o short de cor
caqui, os chinelos marrons - Einar teve que sufocar um gemido. Ele
odiava a roupa, mas pelo menos o manteve anônimo. Apenas outro
jovem de bom coração aqui para se voluntariar.
Ele olhou para a garota sentada na mesa ao lado. Outra
estrangeira. Da Árabia-Saudita. Um hijab com a impressão de uma
zebra enquadrava seu rosto bonito, seu vestido de mangas
compridas com a mistura das cores preto e prata. Ela tomou um
gole delicioso de uma xícara de chá.
— Este calor não a incomoda? - disse Einar, afastando o café
dele.
— Eu estou acostumada a isso - Rabiya respondeu
levemente. Ela se encolheu quando um homem correndo pela
calçada bateu em sua mesa. — São as multidões que me
incomodam.
— Não durará muito.
Einar preferia mil vezes trabalhar com Rabiya do que com os
brutais mercenários de Blackstone. Sua primeira missão em nome
da Fundação os levou a Xangai. A China não participou do programa
da Garde Terrestre, preferindo manter o controle da sua própria
Garde. No entanto, a invasão seguida pelos problemas em curso
com os insurgentes Mogadorianos na fronteira com a Mongólia
impediram a China de organizar e garantir adequadamente a sua
Garde. Graças ao Legado de Rabiya, eles acessaram facilmente a
estação de pesquisa chinesa e adquiriram seu alvo - Jiao Lin, que
desenvolveu o Recupero5. A missão ficou ainda mais simples
quando eles descobriram que Jiao realmente queria dissidir, a
menina querendo receber o estilo de vida que a Fundação poderia
oferecer.
Era sempre melhor quando os alvos viam a razão, pensou
Einar, sua mente a caminho de Bunji e o que se tornou do menino
australiano desde que Einar o arrancou do interior.
Ele tinha a sensação de que o alvo de hoje poderia não ser
cooperativo.
— Você acha que será suficiente? – Rabiya perguntou. —
Suficiente... poder de cura?
Einar olhou ao redor. — Tenha cuidado com o que você diz
em público - Einar a advertiu gentilmente. Seu primo estava doente,
morrendo lentamente, e Einar sabia que isso pesava demais sobre a
mente de Rabiya. Ele sorriu para ela, usando seu Legado para se
certificar de que Rabiya encontrou suas palavras e os gestos
tranquilizadores adequadamente.
— Isso será suficiente. Eu sei disso.
É melhor ser, pensou Einar. Atacar a Garde Terrestre
diretamente, mesmo que seus rastros fossem adequadamente
encobertos, trará consequências.
O fone de ouvido de Einar ganhou vida. — Alvo entrando em
vista - disse a voz grave de Jarl. Einar olhou para os telhados
próximos, onde sabia que os mercenários estavam posicionados. Ele
não podia vê-los; estavam muito bem escondidos.
— Pronto - respondeu Einar no microfone escondido no
colarinho da camisa. Rabiya, sobreouvindo, afastou o chá e puxou
sua bolsa volumosa para o colo. Ela assentiu com a cabeça para
Einar.
De dentro de um dos bolsos - ele precisara deixar sua mala
em casa para esta missão, infelizmente - Einar pegou uma caixa
acolchoada. Dentro havia um pequeno dispositivo, o tamanho e a
forma de um grande alfinete. Ele furou o polegar na ponta afiada,
depois bateu a unha na extremidade que deixava a coisa extra
dolorida para remover depois. Ele sabia o que sentia. Ele resistiu ao
impulso de tocar sua própria têmpora e suprimiu um
estremecimento - Rabiya o estava observando.
— Você vai pôr um chip nele – ela disse.
Einar assentiu. — Jeito mais seguro.
Rabiya mexeu a cabeça em desaprovação. — Eu não gosto
disso.
Einar não disse nada. Ele olhou para seu polegar na ponta do
do dispositivo - o microchip e a fonte de energia - e encontrou-se
pensando em Bunji novamente. Eles tiveram que chipar o menino
aborígene quando o trouxeram para a Fundação. Ele estava fora de
controle. Isso foi há meses, e houve... efeitos colaterais infelizes.
— Alvo localizado – Jarl disse em seu ouvido.
— Eu os vejo – Einar respondeu rangendo os dentes.
Era impossível despistar a equipe da Garde Terrestre. Vários
SUVs pretos se dirigiram até o hotel do outro lado da rua. Uma
multidão já estava se acumulando lá. Era a mesma coisa que ontem
e anteontem, desde que Einar chegou aqui, observando e
esperando.
— Eles amam a atenção – ele murmurou.
Melanie Jackson saiu de um dos caminhões, sorrindo
brilhantemente para os camera-man que acenavam
freneticamente. Havia manchas de sujeira em suas bochechas
devido ao trabalho nos locais de reconstrução, mas seu cabelo loiro
encaracolado parecia perfeito. A protagonista dos cartazes por
excelência da Garde Terrestre nunca perde a oportunidade de posar
para uma foto. Ela tirou selfies com a multidão, até mesmo levantou
alguns deles com sua super-força. A pesquisa da Fundação indicou
que a força melhorada era um dos Legados mais comuns - comum,
mas não desejável. Não é como curar.
O parceiro de Melanie, Vincent Labruzzi, demorou mais para
sair do caminhão e menos entusiasmado para interagir com a
multidão. O italiano parecia exausto, drenado após um longo dia de
cura aos feridos nas favelas. O garoto tinha apenas dezoito anos, de
rosto redondo e um pouco cheio, com uma juba de cabelos pretos e
uma barba por fazer. Os relatórios da Fundação indicaram que ele
recebeu o infeliz apelido de "Vinnie Almondegas" pelo professor
que dirige a Academia. Einar supôs que ele podia ver o motivo.
Com sua telecinese, Einar começou a flutuar o microchip. Era
como uma bala atravessando o ar. Ninguém notou isso. Não até o
pequeno dispositivo penetrar na têmpora de Vincent.
Ele gemeu e deu um tapa no rosto, mas o gemido
rapidamente se transformou em um grito. Seus membros se
estremeceram quando o chip liberou um choque eletromagnético
em seu cérebro, o sinal projetado especificamente para perturbar a
parte do cérebro do Garde que era ativada quando ele usava sua
telecinese. O chip induzia convulsões, perda de controle muscular e,
às vezes, cegueira temporária.
— Vincent? - Melanie gritou, afastando-se de seus fãs, agora
amedrontados. Ela estendeu a mão para o colega, mas parou
quando três dardos tranquilizantes atingiram-na no pescoço e nos
ombros. Eram Jarl e seus atiradores de Blackstone.
— Telhados! Telhados! - gritou um dos Pacificadores. Eles
pagaram as armas de fogo e tentaram proteger os Gardes
atordoados, empurrando-os de volta à segurança dos carros.
Uma lata de gás caiu de um telhado, quebrando um para-
brisa. Uma segunda passou, e houve uma explosão no meio da rua.
A multidão estava gritando agora - entrando em pânico e sendo
sufocados pelos gases lacrimogéneos, sendo pisoteandos, criando
confusão que atrapalhava os Pacificadores.
Todos no café estavam correndo para cobertura, exceto
Einar e Rabiya. Ela abriu sua bolsa, e pegou duas máscaras de gás,
colocando uma. Então, entregou uma para Einar e ele a colocou.
— Vamos? - perguntou Einar.
Os dois entraram no gás laranja, indo na direção onde viram
Vincent cair.
Todos os civis em fuga que entraram em seu caminho foram
empurrados por explosões de telecinese. Eles encontraram Vincent
caído na estrada, babando, seu corpo se torcendo. Dois
pacificadores ficaram de pé, protetoramente, lágrimas escorrendo
de olhos inchados pelo gás. Os dois soldados ainda conseguiram
levantar suas armas na direção de Einar.
Com sua telecinese, Einar cruzou os braços deles. Os
soldados apontaram suas armas um na cabeça do outro e
dispararam antes mesmo de saber o que estava acontecendo.
Einar se ajoelhou e tocou a parte de trás do pescoço de
Vincent. O menino estava soluçando. — Quieto agora - Einar disse.
— Você está entre amigos.
Rabiya estendeu a mão, e então um estranho brilho azul
emanou de sua palma, visível mesmo através do espessa camada de
gás. Segundos depois, eles haviam sumido.
ISABELA SILVA TAYLOR COOK
ACADEMIA DA GARDE HUMANA –
POINT REYES, CALIFÓRNIA
RAN TAKEDA
ACADEMIA DA GARDE HUMANA –
POINT REYES, CALIFÓRNIA

semanal de ajuste ao Novo Mundo, da Dra. Susan Chen. A Dra.


Chen tinha seus trinta anos, bonita, com seu cabelo sempre arru-
mado delicadamente numa trança. Ela era chinesa e veio do Cana-
dá, e, como a maioria dos professores da Academia, era uma aca-
dêmica impressionante, tendo dois PhDs: um em literatura mundi-
al e outro em ciência comportamental. Ran gostava das aulas de
literatura da Dra. Chen, mas gostava ainda mais dos encontros se-
manais do Novo Mundo. As discussões eram sempre livres e abran-
gentes; na semana passada eles gastaram a sessão inteira deba-
tendo sobre os acampamentos de Mogadorianos no Ártico. Ran
não era do tipo participante, mas ela gostava de ouvir os debates e
especialmente a forma com que a Dra. Chen fazia com que compli-
cados problemas de vida e morte do mundo real parecessem ser
resolvidos ali mesmo – numa sala de aula e num debate racional.
Esta semana, Dra. Chen havia escrito “Usos Construtivos vs.
Destrutivos dos Legados” no quadro. Ao lado de Ran, Nigel bocejou
dramaticamente.
— Olhe ao redor para seus colegas de classe – Dra. Chen
começou. — O que a maioria de vocês tem em comum?
Ran tirou sua franja negra da frente dos olhos e fez o que ela
havia dito.
Ela olhou primeiro para Nigel. Seu nakama. O literalmente
punk falastrão, que Ran sabia ser secretamente frágil. Nigel falava,
Ran ouvia. Nigel a pegou olhando para ele e fez uma careta. Ran
levantou uma sobrancelha sutilmente. Na linguagem de expressões
faciais secreta deles, Nigel iria interpretar corretamente como di-
vertimento.
No assento ao lado de Nigel estava Lisbette. Da Bolívia. Ca-
paz de criar e atirar gelo.
Caleb Crane. América. O duplicador.
Omar Azoulay. Marrocos. Imune ao fogo e capaz de soltá-lo
como um dragão.
Lofton St. Croix. Canadá. Sua pele projeta espinhos de quiti-
na ao seu comando.
Nicolas Lambert. Bélgica. Força aumentada.
Maiken Megalos. Grécia. Velocidade aumentada.
E um por um, Ran percorreu a sala, até chegar a si mesma.
Ran Takeda. Japão. A garota que explode coisas.
— Combate – Ran disse calmamente.
Nigel levantou sua mão, obtendo a atenção da Dra. Chen.
— Oh, eu entendi, Susan – ele disse, e a boca de Ran se aper-
tou em desaprovação. Ela não gostava da forma desrespeitosa que
ele insistia em usar ao se referir a seus instrutores, mas Nigel era
Nigel. — Somos considerados o bando de fodões, não somos? Você
poderia dominar o mundo com esse grupinho aqui, não é?
Algumas risadas surgiram do resto da sala. Dra. Chen con-
cordou pacientemente ao tumulto de Nigel.
— Exatamente, Sr. Barnaby – ela disse. — Esses seminários
não são feitos em grupos aleatoriamente. Esse grupo em particular,
intencionalmente, inclui aqueles com controle avançado de seus
Legados, que a Garde Terrestre considera orientada para combate.
Em breve, quando o treinamento de vocês estiver completo, serão
colocados numa divisão de pacificadores da Garde Terrestre e, po-
tencialmente, enviados para situações perigosas. Zonas de guerras,
tumultos, insurgências Mogadorianas. Este é o futuro de vocês.
— Diabos, se esse é o caso, não deveríamos ter essa aula no
centro de treinamento? – Lofton disse em seu tom preguiçoso de
surfista.
Ran sentiu suas orelhas ficarem vermelhas. Graças a sua co-
lega de quarto, Isabela, e a acústica inadequada da Academia, o
mero som da voz de Lofton fazia com que ela corasse em descon-
forto.
— É. Depois da sua aula sobre todas as coisas horríveis que
iremos enfrentar, a maioria de nós provavelmente poderia usar o
tempo extra treinando – disse Lisbette. Ela lançou um olhar de in-
veja na direção de Ran. — Alguns de nós nem completou a corrida
de obstáculos do professor Nove.
— Correção. Apenas um de nós fez sozinho – Nigel disse,
também olhando na direção de Ran, seu rosto repleto de orgulho.
Ela fingiu não os notar.
— Mas é exatamente por isso que estamos aqui – disse a
Dra. Chen. — Só porque esperam que vocês sejam soldados, não
significa que tem que ser toda a vida de vocês. Como eu disse an-
tes, vocês devem se lembrar de que não são armas. São pessoas. E
como todas as pessoas, especialmente como pacificadores, vocês
devem aspirar algo acima da violência. Hoje, eu quero que vocês
pensem sobre como seus Legados violentos possam ser usados de
formas não convencionais, em direção a propósitos altruístas ou
benéficos. Algum de vocês já considerou isso?
Toda a sala ficou em silêncio. Ran olhou para suas mãos,
ambas colocadas sobre a mesa.
— Simplifiquem a pergunta – a doutora pressionou. — Qual
a forma de usar seus Legados sem que ninguém saia ferido?
— Eu posso levantar coisas pesadas – Nicolas disse por fim,
com incerteza na voz. — Tipo, ajudar a construir casas e coisa do
tipo, certo?
— Bom – a Dra. Chen respondeu. — Isso é um começo.
— Todos nós podemos fazer isso, camarada – Nigel respon-
deu. — É para isso que a telecinese serve, certo? – com um olhar
vindo de Nicolas, Nigel levantou suas mãos. — Não me entenda
mal. Diferente de mim, você é forte o bastante para erguer vigas
num arranha-céu. O predecessor dos músculos de Bruxelas7. Mas o
que você consegue erguer com as mãos que o restante de nós não
pode erguer com as nossas mentes? Nah, parceiro. Esse seu legado
é bom para socar. Socar estritamente.
— Obrigado, Nigel – interrompeu a Dra. Chen. —Você tem
alguma ideia sobre seus próprios Legados?
— Ah, essa é fácil. Posso ajudar surdos a ouvir. Posso gritar
avisos de tornado em pequenas cidades. Posso auto sintonizar raps.
— Esculturas de gelo – Lisbette disse de repente.
Dra. Chen se virou na direção dela. — O que foi isso?
— Hum, eu tenho feito esculturas de gelo no meu tempo li-
vre – Lisbette elaborou. — Por diversão. Posso fazer isso.
— Auto sintonizar? Esculturas de gelo? A Dra. Chen não está
perguntando sobre truques inúteis – Maiken zombou. — Existem
países com escassez de água, Lisbette. Deus. Gelo derrete. Você
pode criar água.
— Oh – Lisbette disse. — Isso também.
Dra. Chen ergueu as mãos. — Agora, se acalmem. Não va-
mos desconsiderar aplicações artísticas. Alguns poderiam argu-
mentar que arte é um uso altruísta com intangíveis benefícios para
a sociedade.
— É – disse Nigel. — Eu prefiro ficar com os Sweet8 a brincar
com água, com certeza. Siga seu instinto artístico, Lizzy.
Caleb ergueu a mão. — Doações de órgãos.
A doutora se virou para ele. — Pode explicar melhor, Caleb?
— Bem, eu posso me duplicar – Caleb explicou. — Então, um
cirurgião poderia realizar uma operação em um dos meus clones,
pegar os órgãos e dar para quem precisasse.
Lofton fez uma cara. — E por um acaso seus clones têm ór-
gãos, cara?
Caleb piscou. — Quero dizer, eu obviamente não dissequei
um, se é o que está perguntando.
Nigel olhou para Ran, com o mesmo olhar de boca aberta e
olhos apertados que ele faz sempre que seu colega de quarto faz
alguma coisa esquisita. Ela inclinou a cabeça gentilmente em res-
posta, lembrando Nigel que ele supostamente deveria fazer um
esforço com Caleb. Diferente de Nigel, ela nunca culpou Caleb pelo
episódio ocorrido meses atrás com as Chimærae. Ele estava apenas
seguindo ordens.
— Colega – Nigel começou num tom mais gentil do que o
que havia usado com Nicolas. — Seus clones não desaparecem
quando você se distancia muito delas?
— Sim – Caleb respondeu. — Mas meu alcance está ficando
maior...
Nigel esfregou a nuca. — Certo. Mas, hum, presumindo que
seus clones tenham corações, fígados e essas coisas, os órgãos não
desapareceriam quando você os absorvesse novamente? Você dei-
xaria alguém com um buraco na barriga.
Caleb concordou devagar. — Não tinha considerado isso.
— Isso é grosseiro - reclamou Maiken.
— Talvez precisemos trabalhar melhor nessa ideia em parti-
cular – disse a Dra. Chen diplomaticamente a Caleb. — Contudo,
Caleb está no caminho certo. Esse é exatamente o tipo de coisa
fora da caixa, pensamento não tradicional que espero inspirar vocês
– o olhar da Dra. Chen a levou até a mesa de Ran. — E você, Ran?
Alguma ideia?
Ran ficou tensa.
— Não – disse calmamente.
A Dra. Chen sorriu. — Vamos lá, Ran. Não tem resposta er-
rada aqui. Deve ter alguma coisa que você possa acrescentar a dis-
cussão.
Ran sentiu os olhos dos seus colegas de classe sobre ela. Ela
percorreu seu cérebro em busca de alguma coisa para dizer. Com
um toque ela poderia tornar as moléculas de um objeto instáveis.
Quando ela soltasse o objeto carregado, ele iria explodir com a for-
ça de uma granada. Quais são as aplicações benéficas e altruístas
que isso poderia ter?
Então lhe ocorreu um flash. Tudo de uma vez, a mente de
Ran começou a trabalhar rápido e ela estava de volta a Tóquio. En-
terrada sob uma pilha de entulho, o teto do que costumava ser o
pequeno apartamento de sua família sobre ela, seu irmão mais no-
vo chorando em um lugar próximo. Preso. Sufocando. Ela se em-
purrou contra os detritos com toda sua força. A telecinese que Ran
ainda não tinha descoberto se ativou, e os pedaços de telhado voa-
ram para longe dela. Alguns deles, os que ela havia tocado, explodi-
ram. Ela cambaleou, seus olhos cobertos de sangue, não tendo cer-
teza do que tinha acabado de fazer.
Ran era a única Garde conhecida que havia manifestado sua
telecinese e o primeiro Legado ao mesmo tempo. Esse fato trivial
não significa nada para Ran agora e significava ainda menos em
Tóquio.
— Ran?
Ela não podia ouvir seu irmão chorando.
— Ran? – a doutora chamou novamente.
A visão passou. Ela estava de volta na sala de aula, todos
olhando para ela. Sua mesa vibrava entre seus dedos. Ran olhou
para baixo, viu que ela havia começado a carregar a madeira polida.
Com uma inspiração longa, ela retraiu a energia para dentro de si,
evitando uma explosão.
— Não – ela disse novamente, com firmeza dessa vez. A Dra.
Chen aceitou a respostas. A professora seguiu em frente, mas não
sem lançar um persistente olhar de preocupação a Ran.
Depois do seminário, Ran caminhou propositalmente atra-
vés do gramado em direção ao dormitório das garotas. Fazia algu-
mas semanas desde que ela experimentara um flashback como o
que teve na aula. Tonta, ela achou que as visões de Tóquio durante
a invasão estivessem sumindo, relegadas para um pesadelo ocasio-
nal. Pelo jeito não. Ran queria que ela fosse mais forte. Ter mais
controle.
Nigel a alcançou. Ele enlaçou sua mão no braço dela, acom-
panhando o passo.
— Tudo bem, então – ele disse casualmente. — Ótimo dia
para uma corrida rápida pelo campus, né?
Ran não respondeu. Nigel, entretanto, já era expert em in-
terpretar os silêncios dela. Ela não se importava com a presença
dele.
— Como é a nova colega de quarto? – ele perguntou, cada
um deles havia ganhado novos colegas em suas suítes, no fim de
semana. — O meu é realmente um amor. Do tipo animado. Me dis-
se que vão escrever sobre nós nos livros de história. Posso me acos-
tumar com isso. Uma mudança em relação ao velho Caleb, quem eu
posso muito bem encontrar tirando as entranhas de um clone
quando eu voltar para o nosso quarto.
— A minha parece amável – Ran respondeu. — Sobrecarre-
gada. Muito cansada.
— Ter feito o tour com a Isabela cansaria até um maratonis-
ta.
— Sim – Ran respondeu de forma prudente. — Ela pode cu-
rar. Um bom Legado.
A atmosfera ao redor deles mudou. Era sutil, os sons dos es-
tudantes passando ficou abafado e difuso, enquanto o som de seus
passos na grama soavam mais altos, graças ao silêncio do entorno.
Nigel estava usando seu Legado de manipulação sonora. Ele os co-
locou numa bolha onde ninguém poderia ouvi-los.
— Vamos falar sobre o que houve na aula, amor? Ou vamos
apenas dançar por aqui?
Ran pressionou seus lábios. Ela sabia que Nigel ia tocar nisso
quando ela entrasse em sua própria natureza robótica.
— Eu não danço – ela respondeu rigidamente.
Nigel bufou, mas ainda lançando a ela seu olhar de preocu-
pação. — Você teve um daqueles episódios, não teve?
— Sim.
— Você está tomando os remédios que a Dra. Linda prescre-
veu?
— Não.
— Por que não?
Ran parou. Ela se virou para ele. — Você está tomando os
seus?
Depois de saber o que aconteceu a eles durante a invasão, a
Dra. Linda tinha prescrito aos dois, Ran e Nigel, o mesmo remédio
para ansiedade. Ran se lembrou de como Nigel bateu os vidros
idênticos de pílulas um no outro como se estivessem brindando.
Agora, um sorriso malicioso passou por seu rosto.
— Nah. Você sabe que eles me deixam cansado. Tenho que
ficar funcionando.
— Eu também – Ran disse.
— Então nós dois estamos cheios de Cukoo’s Nest 9 – Nigel
observou com um dar de ombros. Então, seu rosto ficou sério de
novo, uma expressão que Ran não estava acostumada a ver em su-
as bochechas sardentas. — Olha, Você sabe que te conto todas as
minhas bobagens...
— Sim – Ran disse.
— Mas se eu estiver falando demais, se você precisar tirar al-
guma coisa do seu peito, você sabe que sou seu homem, certo?
Ran sorriu. Uma coisa rara. Ela colocou ambas as mãos nos
ombros ossudos de Nigel, evitando cuidadosamente os espinhos
costurados ao colete de denim.
— Você é meu homem – ela disse. — Não se preocupe comi-
go.
Nigel gargalhou bruscamente e olhou para longe. — Tudo
bem. Tivemos nosso momento, não tivemos? Vamos voltar para a
silenciosa repressão de nossos sentimentos, ok?
Ran deixou as mãos caírem e eles retomaram sua caminhada
pelo campus. As palavras de Nigel ficaram presas em sua cabeça,
algumas frases aleatórias que levavam a uma grande inspiração.
Continuar funcionando.
Reprimindo nossos sentimentos.
Ran parou de andar.
— Tenho que voltar e ver a Dra. Chen – ela disse de repente.
— Huh? Sobre o quê?
Mas Ran já estava correndo de volta para o prédio da admi-
nistração. — Vejo você no jantar! – ela gritou sobre o ombro.
Ran encontrou a Dra. Chen ainda na sala de seminário, pre-
parando a próxima aula. A corrida até lá não chegou nem perto de
um vendaval, e Ran tinha o hábito de entrar nas salas de aula silen-
ciosamente. Quando ela finalmente falou, sua voz suave fez a Dra.
Chen saltar.
— Eu tenho uma resposta.
— Oh, nossa, Ran. Você me assustou.
— Eu sinto muito pela aula hoje – Ran disse, acreditando que
a Dra. Chen estava se referindo à quase explosão da mesa.
— Está tudo bem – Dr. Chen respondeu gentilmente. — En-
tão, você deu a minha pergunta um pouco mais de atenção?
— Sim – Ran disse, com uma ponta de excitação na voz. — A
melhor forma de usar meu Legado em benefício da sociedade... a
única maneira... eu acredito, será eu parar de usá-lo completamen-
te.
— Bem, Ran, esse não é exatamente o objetivo do exercício.
— Por favor, informe aos outros professores – Ran concluiu.
Sua mensagem foi entregue, e ela já estava no meio do caminho
até a porta. — Eu não vou explodir mais nada.
TAYLOR COOK
ACADEMIA DA GARDE HUMANA –
POINT REYES, CALIFÓRNIA

tão corridas que ela quase se esqueceu de sentir saudades de casa.


Depois de um encontro com a Dra. Chen para avaliar onde
ela se encontrava academicamente, Taylor recebeu um horário de
aulas. Ela começava todos os dias a aula dupla brutal de química or-
gânica e trigonometria, aulas em que ela se sentiu imediatamente
sobrecarregada. Os professores da academia eram diferentes daque-
les que tinha em casa, falavam rápido, afiados, entusiasmados e exi-
gentes.
Uma vez que seu cérebro estava devidamente amaciado, Tay-
lor terminava seus dias na escola com história europeia e literatura
clássica. Taylor adquiriu o hábito de se sentar no fundo durante a
aula de história, mantendo sua cabeça baixa, onde era seguro. Às
vezes havia objetos voando literalmente pela sala. Com uma popula-
ção bem diversa, as discussões em sala esquentavam em intensos
debates. No segundo dia, Taylor testemunhou uma garota congelar
as mãos de seu vizinho na mesa durante uma discussão sobre socia-
lismo.
Taylor gostava das aulas de literatura. Ela sempre tinha gosta-
do mais dessa aula, mas em casa seus colegas de sala não eram parti-
cipantes entusiastas. Na Academia, muitas das crianças sempre ti-
nham algo a dizer, contudo suas discussões sobre os livros eram
muito mais maduras do que as próprias histórias.
— Eu lembro que a Sra. Reynolds costumava chamar as pes-
soas para falar sobre “A carta escarlate” – contou Taylor ao pai no
telefone, relembrando a professora de inglês da nona série. — Era
como arrancar um dente. Eu costumava ficar envergonhada por le-
vantar a mão tantas vezes.
— Caramba – o pai dela respondeu, sua risada audível. — Eu
costumava ficar de cabeça baixa, fingindo estar dormindo até que o
professor prosseguisse. Porém, naquele tempo eles iriam te bater
com uma régua...
— É tão diferente aqui – disse Taylor. Ela baixou a voz, ainda
que a linha dos telefones compartilhados da Academia estivesse si-
lenciosa. — Essas crianças têm muito a dizer. Teve um cara que dis-
cutiu com a professora porque ele pensa que Shakespeare não existiu
de fato. Ninguém viria com uma teoria doida como essa em Turner,
nem mesmo discutiria com a professora sobre isso.
— Então, espera – disse o pai dela. — Shakespeare é real ou
não?
— É como se eles fossem tão seguros de si – Taylor continu-
ou. — Tipo, por causa dos Legados, tudo sobre eles de repente é
marcado pela grandeza.
— Bem, os superpoderosos como você são os escolhidos –
disse o pai. Taylor começou a rir. — Não sei por que está rindo, fi-
lha. Você é um deles.
Taylor ainda não conseguia acreditar nisso.
— Você sabe que eles gravam todas as ligações, não é? – Isa-
bela disse com desdém na noite em que Taylor voltou de uma con-
versa noturna com o pai. — É por isso que não temos celulares. Não
tem privacidade. A internet, também. Pense nos recursos que essa
Academia tem, hmm? Todos nós deveríamos ter notebooks. Dois
notebooks! Mas temos que ir ao laboratório de informática como as
pessoas do terceiro mundo dos anos noventa. Assim podem nos
vigiar.
Ao longo do discurso, Isabela se recostou no sofá da sala
comunal, suas pernas em cima de Lofton. Durante suas poucas se-
manas na Academia, Taylor entendeu que ele era algum tipo de aces-
sório ao redor da suíte delas. Ela começou a pensar nele como uma
mobília bonita.
— Espera – Lofton disse. — Eles continuam rastreando nos-
so uso da internet?
Isabela levantou uma sobrancelha. — Por que você parece
tão preocupado, hmm? O que você andou pesquisando?
— Nada – ele disse rapidamente.
— Pervertido – Isabela respondeu com um aceno desdenho-
so com a mão. — Não me toque.
— De qualquer forma – Taylor disse, afastando a conversa
sobre os hábitos de pesquisa de Lofton. — Eu estava só falando
com meu pai. Eu não ligo se eles ouvirem, se é que é verdade.
— Claro que é verdade! – Isabela disse. E prosseguiu rapida-
mente. — Seu pai vem te visitar em breve, né?
— Mês que vem – Taylor respondeu franzindo a testa. A
Academia permitia vistas da família apenas uma vez por mês e ela
chegou logo depois da mais recente. Faz muito tempo desde que ela
viu seu pai pessoalmente.
— O pai da Taylor é um fazendeiro musculoso e solteiro. Es-
tou muito ansiosa para conhecê-lo – Isabela explicou a Lofton.
Taylor suspirou. — Você é nojenta. Eu tenho lição para fazer.
E ela realmente tinha lição. Redação, trabalhos e relatórios de
laboratório, mas também anotações menos importantes. Toda noite
era pedido que ela usasse sua telecinese para levitar grãos de arroz –
não todos de uma vez, e sim um por um – e então continuar con-
tando quantos ela conseguia levitar antes de deixar um cair. Precisão
da telecinese: Taylor logo aprendeu que era muito mais difícil do que
uma força brusca. Ao fim da segunda semana ela já conseguia mais
de trinta e sete.
— Muito bom! – Kopano disse entusiasmado quando ela
contou a ele. — Eu consigo apenas vinte e nove. Arroz! Preferia co-
zinhá-los e comê-los.
Outro dia, outras seis horas de aula, seguida de mais algumas
horas de rigorosa atividade física no centro de treinamento. Taylor e
Kopano não tinham nenhuma aula juntos, então normalmente se
encontravam durante o treino. Eles treinavam a telecinese jogando
objetos para frente e para trás, conversando sobre o dia deles nesse
novo estranho lugar. Nenhum deles tinha permissão para a pista de
obstáculos ainda, um assustador percurso com cordas e arame far-
pado, poços e armadilhas de água, alimentando por uma inteligência
artificial com lançador de projéteis que se adapta a suas habilidades.
Eles assistiam das arquibancadas enquanto seus colegas de sala ten-
tavam o percurso e voltavam machucados e ensanguentados, nunca
capazes de alcançar o fim.
Havia exercícios normais, também, sob os cuidados da equipe
de profissionais da Academia, que possuíam credenciais tão impres-
sionantes quanto os professores. Kopano seguia Taylor na esteira,
bufando, incapaz de acompanhar seu ritmo. Por sua vez, Taylor
olhou admirada quando Kopano levantou os pesos.
Kopano piscou para ela. — Meus músculos estão bocejando
– ele disse a ela enquanto se esforçava para levantar outro peso de
150 libras. — Esses pesos devem estar quebrados. Ou então sou o
garoto mais forte aqui. O que provavelmente é verdade. Eles acham
que meu Legado é o Fortem, como o de Nicolas, mas o meu está se
manifestando de forma diferente.
Taylor colocou suas mãos na cintura. — Eu vi Nicolas levan-
tar muito mais do que 150.
— Eu estava só me aquecendo! – Kopano respondeu. Ele
abaixou as mãos e Taylor notou que a barra continuou suspensa no
ar.
Ela o encarou, entendendo tudo. — Você está usando teleci-
nese, trapaceiro!
— Eu não! – Kopano respondeu ofendido. — Vem ver.
Taylor se aproximou e colocou uma das mãos no topo da
barra do haltere. Ela tentou puxá-la para baixo. Em vez disso, ela
acabou por ser levantada junto com o peso, levitada pela telecinese
de Kopano.
— Um novo recorde para o poderoso Kopano! – ele gritou.
— Me coloque no chão! – Taylor riu.
No outro dia, eles tiveram aula de yoga, mas com uma mu-
dança. Ao longo dos alongamentos, o instrutor deles pediu que man-
tivessem um ovo flutuando sobre suas cabeças com a telecinese.
Taylor achou que ela era boa no exercício. Ela se movia fluidamente
entre as posições, do cão deitado para outras, e então se sustentou na
pose da árvore. Sua mente ficou vazia e seu aperto gentil no ovo se
tornou uma segunda natureza. Ela deixou o seu ovo apenas quando
Kopano explodiu o seu ovo violentamente na posição do arco, o
quarto ovo que ele que quebrava, e ela não pode mais segurar o riso.
— Então, eles ainda não entenderam exatamente como seu
Legado funciona? – Taylor perguntou depois da aula. Eles já esta-
vam na Academia há mais de uma semana.
Kopano arrancou um pedaço de ovo seco dos cabelos. —
Ainda não. Eles sabem que sou duro como aço quando tentam me
espetar com suas agulhas, mas eles não sabem se é meu inconsciente
ou se posso controlar – Kopano sorriu. — O professor Nove quer
atirar em mim.
Os olhos de Taylor se esbugalharam. — O quê? Kopano, isso
é loucura!
— Concordo. Ainda assim estou animado com isso – ele
olhou para ela. — Eu meio que quero saber o que pode acontecer.
Taylor apertou a mão dele. — Kopano. Por favor. Não deixe
ninguém atirar em você, okay?
Taylor havia tido em primeira mão uma experiência com feri-
das de tiros. Para treinar seu Legado de cura, era permitido que Tay-
lor deixasse o campus uma vez por semana. Acompanhada pelo Dr.
Goode e sua equipe sem expressão facial de pacificadores com ar-
mas escondidas, ela viajava até um hospital em San Francisco. Sob o
disfarce de um "estudo clínico", Taylor viu uma variedade de pacien-
tes com diferentes ferimentos. Quando algum deles percebeu o que
ela era, eles solicitaram um médico de verdade, mas a maioria das
pessoas com que ela lidou era doce e ansiosa para ficar bem.
— Eu tenho alguma experiência com Legados como o seu –
disse o Dr. Goode durante a primeira visita deles, antecipando seu
nervosismo. — Uma vez eu sofri um ferimento extremamente dolo-
roso que foi curado por um Lorieno. O processo não machuca o
paciente e eu não sofri nenhum efeito de doença desde então. O que
eu quero dizer é que você pode apenas fazer o bem hoje, Taylor.
Ela olhou para suas mãos. — Eu... eu vou fazer o que eu pu-
der, eu acho.
— Eu também entendo que os seus Legados têm limites, es-
pecialmente numa iniciante. Ninguém está esperando que você cure
todos nesse hospital. Parte do que estamos tentando descobrir com
essas visitas é apenas quais são os seus limites e até que ponto você
consegue ultrapassá-los – continuou o Dr. Goode. — Quanto ao
processo em si, eu acredito que ajuda visualizar o corpo e... ah... em-
purrar energia positiva para fora do seu corpo.
Taylor não pôde evitar um suspiro com “energia positiva.” A
frase soou como um dos livros da Nova Era que sua mãe costumava
ler antes de ir embora. Contudo, quando ela focou em seu primeiro
paciente, um homem entre os vinte anos que havia fraturado a perna
ao cair de um píer, ela pôde sentir a aura da qual o Dr. Goode disse
que fluiria a partir dela.
Os cortes e arranhões eram os mais fáceis de curar. Ela podia
visualizar como a pele deveria parecer, canalizar sua energia morna
da mão para o paciente e a carne iria se juntar de baixo da ponta de
seus dedos.
Ossos quebrados eram mais difíceis. Os médicos que a ob-
servavam mostraram a Taylor nos raios X onde estavam as fraturas.
Isso ajudou um pouco. Taylor visualizou o preenchimento sombrio
quebrado no osso e, devagar, seu Legado deu conta. Começou a pa-
recer que Taylor podia sentir o dano. Visualizando ou não, seu Le-
gado sabia que alguma coisa estava faltando e deu a ela o poder de
consertar. Quando uma garota cujo braço havia sido quebrado num
acidente envolveu Taylor num abraço de urso, ela não pôde evitar o
sorriso bobo em seu rosto.
Taylor encontrou seu desafio numa paciente com câncer de
meia idade. A mulher estava frágil, a cabeça dela coberta por lenços
coloridos, seus olhos marejados com esperança. Linfoma, os médi-
cos disseram. A mulher não estava mais fazendo tratamento; tudo
havia falhado. Taylor engoliu em seco e pressionou as palmas das
mãos contra o abdômen da mulher.
A energia curativa fluiu de Taylor, mas foi vencida pela doen-
ça que crescia dentro da mulher. Antes, quando ela terminava de
curar uma pessoa, Taylor sentia uma sensação de satisfação da reco-
nexão, o corpo do paciente inteiro novamente, seu Legado respondia
em resposta. Mas agora, com o câncer, seu Legado apenas pedia
mais e mais energia, fluindo para a mulher, mas fazendo pouco pro-
gresso.
O Dr. Goode se aproximou. — Taylor, talvez isso seja o bas-
tante por hoje.
Taylor havia se perdido no trabalho. Cinco minutos haviam
se passado. Ela estava suada, ainda assim sua nuca estava fria. Na
verdade, ela estava completamente gelada.
— Está tudo bem, docinho – a mulher disse. Ela afastou uma
mexa do cabelo cacheado do rosto de Taylor. — Eu sei que você fez
o que pôde.
— Eu vou continuar tentando – ela prometeu a mulher. —
Vou ficar melhor. Nós duas vamos melhorar.
Mais tarde, Taylor sentou na sala de jantar e olhou para um
livro de anatomia. Talvez se ela pudesse entender melhor o corpo
humano, ela poderia aperfeiçoar o potencial da sua cura.
— Olhem para ela, fazendo trabalho extra – Kopano obser-
vou, sentando em frente a ela. — Cadê a garota que há algumas se-
manas nem queria estar aqui? Embora, suponho que quisesse algo
chato e, bem – Kopano semicerrou os olhos para um esquema do
sistema nervoso. — Parece que você achou.
— Não faça piadas – Taylor respondeu. — Isso é sério. Eu
senti como... como se eu realmente tivesse feito algo de bom hoje.
A expressão de Kopano se endureceu imediatamente. — Eu
não quis fazer piada – ele disse. — Você já é uma heroína do jeito
que eu apenas havia imaginado. Você está mudando vidas. Não é
incrível?
— É... – Taylor sentiu o rosto corar. Ela não podia fazer nada
além de concordar. — Meio que foi. Sim.
— Aha! Ao menos você admite isso! – Kopano respondeu,
com seu sorriso irreprimível.
Taylor balançou a cabeça. — Eu só... tenho que melhorar. É
difícil de explicar, mas... eu podia sentir o poder dentro de mim... e
pude o sentir enfraquecer gradativamente, quanto mais eu o usava.
— Eu conheço a sensação – Kopano disse. — Como as dores
de cabeça que a gente tem quando usamos demais a telecinese.
— Eu nunca senti algo assim.
— Não? Bem, você nunca fez seu irmãozinho flutuar por aí
durante oito horas.
— Essa sensação era diferente – disse Taylor, procurando as
palavras certas. — Meu Legado, era como um sol dentro de mim. E
toda vez que eu curava alguém, ele ficava um pouco mais escuro,
mais perto de apagar. Então, ao final do dia, eu ainda conseguia sen-
tir o calor do Legado, mas... mas era como a noite, sabe? Eu sabia
que o sol voltaria eventualmente, mas eu não conseguia trazer mais
luz. Faz algum sentido?
Kopano a encarou. — Faz sim. É como poesia.
— Sim, sim – Taylor disse gesticulando as mãos. — A ques-
tão é que preciso encontrar uma maneira de fazer com que esse sol
fique mais brilhante.
— Não tenho dúvidas de que vai conseguir – Kopano disse
firmemente.
Deitando na cama àquela noite, Taylor percebeu que estava
realmente animada para a próxima manhã. Sobre as aulas estranhas
(e às vezes rebeldes), seu treinamento, sua amizade com Isabela e
Kopano. Ela se sentiu quase culpada quando pensou no pai, por que
ela estava começando a se estabelecer.
Então, é claro, foi quando os pesadelos começaram.
No sonho, Taylor se encontrava novamente na fazenda. A
grama estava alta e balançando ao redor de suas pernas. Alguma coi-
sa chamou sua atenção – rios de sangue nas lâminas verde esmeralda.
— Pai? – ela chamou.
A fazenda parecia decrépita. As paredes chamuscadas, as per-
sianas penduradas na janela, o teto havia cedido. Havia alguma coisa
na varanda. Na cadeira de balanço de seu pai. Aquilo era um corpo?
Um esqueleto? Era...?
Alguém atrás dela riu. Ela se virou. Ela viu o pregador Ceifa-
dor em suas vestes, uma bandana negra cobrindo a parte inferior do
rosto. Ele conduzia alguma coisa numa coleira – uma criatura, de
pele cinza e reptiliana, mas era desajeitado, como se fosse um enor-
me gorila. A coisa salivava, se lambendo, a língua roxa através de
seus dentes finos em formato de lâmina. Aquilo a observava voraz-
mente com os vazios olhos negros.
— Abominação! – o pregador gritou.
Ele largou a coleira. A fera avançou para ela. Taylor tentou
correr, mas...
Taylor acordou com um grito estridente, com falta de ar, sua-
da. Tremendo, Taylor tropeçou para fora do quarto, ainda meio so-
nolenta. Na sala comunal ela foi até o minibar e agarrou uma garrafa
de água. Suas mãos ainda tremiam. Ela queria ligar para seu pai, mas
a união estudantil estaria fechada a essa hora.
Ao invés disso, ela bateu gentilmente na porta de Isabela. Ela
lembrou a política de troca de segredos no meio da noite – não so-
mos crianças! – mas isso não era o que Taylor tinha em mente. Ela
precisava que a amiga brasileira dissesse que ela estava sendo estúpi-
da, e falar para ela voltar para cama. Ela precisava de companhia,
apenas por alguns minutos.
Quando Isabela não respondeu, Taylor empurrou gentilmente
a porta. — Isabela? Você está acordada? – Taylor sussurrou.
Taylor abriu um pouco mais a porta até ela bater em alguma
coisa. A mesa de cabeceira – empurrada para perto da porta por al-
guma razão. E, quando Taylor a empurrou, um sino de metal soou
agudo. Era como se Isabela tivesse colocado uma armadilha no quar-
to.
— Izzy? Que porra é essa? – Taylor sussurrou para si mesma,
um momento antes que uma forma escura saísse da cama de Isabela.
Por um momento, Taylor pensou que ainda estava em seu pesadelo.
À luz da lua, através da abertura da porta, Taylor não podia ter certe-
za do que havia visto. A forma parecia com Isabela – seu corpo es-
guio, os selvagens cabelos negros – mas o rosto estava distorcido e
errado, cheio de cicatrizes, como uma horrível máscara de Hallo-
ween.
A aparição gritou para Taylor em uma língua que ela não po-
dia entender. Aquilo era português? Com um violento impulso tele-
cinético, a porta bateu no rosto de Taylor.
Taylor deu um passo atordoado para trás.
— Está tudo bem?
Ran ficou na porta de seu quarto, seu cabelo desgrenhado.
Nas semanas em que estiveram vivendo juntas, Taylor não havia
interagido muito com Ran. A garota japonesa era educada e prestati-
va, mas geralmente ficava na dela e tinha pouco a dizer. Isabela disse
a Taylor para não levar para o lado pessoal; Ran era assim com todo
mundo. Bem, todos com exceção daquele garoto britânico, Nigel.
Taylor olhou de relance para a porta fechada de Isabela, in-
certa do que havia acabado de ver ou do quanto dizer a Ran. Even-
tualmente, ela assentiu, apertando os olhos.
— Sim, tudo bem. Eu só... tive um sonho ruim. Desculpe
acordar você.
— Eu já estava acordada – disse Ran.
— Okay. Bem, boa noite.
Ran não disse nada, mas continuou na entrada do quarto.
Sentindo que já tinha experimentado muitas coisas estranhas por
uma noite, Taylor se arrastou para seu quarto de cabeça baixa.
Quando Taylor estava quase na porta de seu quarto, Ran dis-
se calmamente. — Eu também tenho pesadelos.
Taylor se virou. — Sério? Você?
Ran concordou. — Desde a invasão, por que isso te surpre-
ende?
— Eu não sei. Você parece ser tão... – Taylor deu de ombros.
— Durona, eu acho.
Ran estudou Taylor por um momento. Então, deu um passo
para o lado, convidando-a para o seu quarto. — Gostaria de conver-
sar sobre o que sonhou?
— Eu... – a oferta pegou Taylor de surpresa, mas depois de
considerar por um instante ela concordou. — Okay. Claro.
Naquela noite, amontoada ao lado de Ran na cama dela, Tay-
lor contou a sua colega de quarto sobre a fazenda, os Ceifadores e a
horrível criatura que a atacou. Ran ficou quieta durante toda a histó-
ria. Ao final, Ran ainda estava de olhos fechados. Taylor presumiu
que ela tivesse caído no sono. Ela bocejou, seus próprios olhos fi-
cando pesados.
— Esses sonhos, são criações da escuridão – Ran sussurrou
sem abrir os olhos. — Quando falamos sobre eles, nós os arrastamos
para luz. Percebemos que não podem mais nos machucar. Taylor
esperava que fosse verdade.
RAN TAKEDA
ACADEMIA DA GARDE HUMANA –
POINT REYES, CALIFÓRNIA

para Taylor não funcionava com a própria Ran. Noites em que nem
várias horas de meditação podiam silenciar os ecos de seu passado
– os choros de seus irmãos, as paredes da casa de sua família cain-
do, as explosões. Noites quando, deitada na cama, Ran se sentia
perseguida, como se os Mogadorianos que quase a mataram em
Patience Creek ainda estivessem lá fora, caçando ela.
Nessas noites, ela corria.
Apenas algumas noites depois de ter consolado Taylor, Ran
encontrava-se nervosa e ansiosa. Ela se desenrolou dos lençóis
suados e colocou a roupa de treino, deslizando silenciosamente
para fora da suíte. Os alunos tinham um toque de recolher à meia-
noite, mas não estava claro exatamente quando isso foi
estabelecido. De qualquer forma, não importava para Ran.
Ninguém a incomodou sobre as corridas que ela fazia às quatro da
manhã. Ela nem tinha certeza se alguém já tinha percebido.
Ran correu primeiro ao redor dos dormitórios, aumentando
a velocidade quando atingia o caminho que levava à floresta.
Quando ela alcançou a margem das árvores, ela estava em alta
velocidade. Ela se virou – ainda estava muito escuro para atravessar
a floresta - então ela acelerou pela borda, seus passos respondendo
ao constante zumbido dos grilos. Em seu estado de desconforto,
ela imaginava as sombras tortuosas dos galhos de árvores como
garras, alcançando-a. Ela correu até suas pernas doeram e seus
pulmões queimarem, e então ela se esforçou para ir mais rápido. Se
ela fosse suficientemente forte, talvez ela pudesse escapar da
escuridão às suas costas.
Eventualmente, a camisola suada e fria enconstava na
coluna vertebral, e Ran voltou para o campus. As luzes estavam
acesas no centro de treinamento. Isso era incomum. O professor
Nove às vezes realizava sessões antes da aula, mas não cedo.
Curiosa, Ran correu naquela direção.
Quando Ran se aproximou, ela ouviu o barulho da pista de
obstáculos em movimento. Alguém estava correndo, o que não era
permitido sem professores e supervisão médica.
Essa regra, obviamente, não se aplicava ao professor Nove.
Ran espiava o ginásio no momento que Nove parou um
estouro de estilhaços de borracha com sua telecinese e
redirecionou os fragmentos para que eles derrubassem um saco de
areia balançando sobre sua cabeça. Nove usava apenas um par de
tênis e shorts de ginástica, então Ran podia ver onde a prótese de
seu braço se encontrava com o coto de seu ombro, a pele vermelha
e levantada, atravessada por cicatrizes negras.
Enquanto Ran observava, Nove saltou para a trave de
ginástica e correu através dela, esquivando-se sob uma série de fios
electrificados. Um triturador de tijolos alimentado por pistão
esperava Nove no final da trave. Ele colocou o ombro nele,
deixando rachaduras na pedra enquanto ele se afastava.
Um dos canhões montados na parede do percurso apontou a
mira para a direção de Nove, rastreando seu movimento e
disparando explosões de balas de borracha mais rápido que a sua
telecinese poderia impedir. Nove esquivou-se delas ao correr pela
parede mais próxima, seu Legado antigravidade entrando em ação.
O computador se ajustou e pedaços da parede começaram a
derramar graxa sob os pés de Nove, dificultando o progresso
vertical. Ele desacelerou e o fogo do canhão começou a alcançá-lo,
então Nove pulou pela academia, em direção à parede oposta, mas
não alcançando.
Seus dedos roçaram a superfície da parede, não
conseguiram ficar e ele caiu. Ele pousou em uma pilha estranha no
chão do percurso e foi rapidamente salpicado por balas de
borracha. Ran fez uma careta.
Nove tentou usar seu Legado de antigravidade para ir de
uma parede para outra, mas se esqueceu da sua prótese. Seu poder
não funcionou através dos dedos metálicos.
Ran saiu de fininho quando Nove socou o chão com
frustração, não querendo mais invadir a privacidade do Lorieno.
Seu estômago roncou e então Ran foi para o refeitório. As
portas estavam trancadas – o turno do café da manhã começaria
dentro de duas horas – mas isso não era problema para Ran e sua
telecinese. Depois de tirar o parafuso, ela pausou brevemente na
frente do quadro de avisos da sala de jantar, lendo o informativo
anunciando o próximo evento da Academia: os Jogos de Guerra. Os
estudantes estarão enfrentando os pacificadores da ONU em
algum tipo de cenário de batalha com a Garde Terrestre presente
para observar. Ela sabia que Nigel estava entusiasmado com isso, e
também decepcionado que eles não estariam trabalhando juntos
como um time.
Ran andou nas pontas dos pés na cozinha, pegou um ovo da
geladeira e foi em direção à saída de serviço. Circundando o ovo em
suas mãos, ela caminhou pela triha que a levou à praia da
Academia. Estava frio perto água, mas Ran não se importou. Ela se
sentou na areia e esperou o sol nascer. Ela gostava de como o sol
viria por trás dela, aquecendo a areia primeiro e tornando a água
lentamente roxa.
Segurando o ovo, Ran usou seu Legado. Ela jurou parar de
explodir as coisas, era verdade, mas ninguém precisava saber sobre
esse truque bobo, que nem sequer valia a pena mencionar no
seminário da Dra. Chen. Ela usou apenas a energia cinética
suficiente no ovo para que ela pudesse sentir as moléculas
vibrando, deixando o ovo ficar nesse estado agitado por alguns
segundos e então sugava a energia de volta para si mesma. Esse
processo – recuper a energia que ela produziu – pinicou suas
palmas e fez Ran se arrepiar.
O resultado final era ovo cozido. Ela quebrou a casca com a
unha e começou a descascá-lo.
— Achei que você tivesse abandonado seu Legado – disse
uma voz atrás dela.
Ran se virou. Era o professor Nove. Não o tinha ouvido
caminhar – o grande lorieno era surpreendentemente furtivo. Ran
se perguntou se ele sabia que ela o estava observando antes. Ele se
sentou ao lado dela, secando o suor com uma toalha.
— Eu tive que apresentar um relatório para a Garde
Terrestre sobre você – continuou Nove quando Ran não respondeu
de imediato. — Esses caras estavam muito decepcionados. Eu acho
que eles tinham uma lista de coisas para você explodir.
Ran colocou um pedaço de ovo na boca. — Você pode dizer
à Garde Terrestre que eu usarei meu Legado apenas para fins de
café da manhã.
Nove bufou. Ele olhou para Ran por um longo momento e
ela podia ver que ele queria dizer algo. Ela esperou em silêncio,
olhando as ondas.
— Olhe, meu trabalho aqui é ter certeza de que você e os
outros aprendam a controlar seus Legados para que você possa
viver sem machucar ninguém. Quero dizer, alguém que você não
queira machucar – Nove fez uma pausa. — Depois que se formar
aqui, se você quiser ser a fodona da Garde Terrestre, e isso é legal.
Da mesma forma que se você quiser viver uma vida chata e
entediante como uma chef de cozinha, legal também.
— Hmm – Ran respondeu de forma incompetente.
— Quero dizer que, se você não quiser usar seus Legados
com a Garde Terrestre, está bom por mim. Não sei se os robôs da
ONU ficarão felizes sobre isso, mas cruzaremos essa ponte quando
chegarmos lá. Mas o que eu quero saber é que se depois de
graduada na Academia, se você se encontrar em uma situação
específica, se sua vida ou a vida de outra pessoa depender deles –
eu preciso saber que você não hesitará em descartar todo esse lado
pacificista e que vai explodir alguns bandidos. Porque gostando ou
não, você é uma Garde, e situações como essa tendem a acontecer
conosco.
Ran considerou as palavras de Nove.
— Eu não vou hesitar – disse ela calmamente.
Nove assentiu uma vez, ficou satisfeito e se levantou. Ele
colocou sua toalha na areia e começou a tirar sua prótese. Ran
percebeu que planejava nadar.
— A propósito – disse ele, — como está a nova colega de
quarto?
Ran inclinou a cabeça. — Taylor? Ela está bem. Se
adaptando, eu acho.
— Bom – respondeu Nove, e colocou a prótese na toalha. —
Fique de olho nela, huh? Você não sabe, mas os que desenvolveram
o Recupero ficaram pior do que os valentões. Toda essa coisa de
poder curar pode mexer com eles.
Havia algo no tom da voz de Nove – quase como um aviso,
quase como se ele não estivesse dizendo exatamente o que ele
queria dizer. Antes que Ran pudesse lhe fazer mais perguntas, ele
correu para a água e mergulhou nas ondas.
CALEB CRANE
ACADEMIA DA GARDE HUMANA –
POINT REYES, CALIFÓRNIA

Caleb Crane mexeu com a cabeça. Não. Ele não sabia qual
era o problema dele.
— Você não tem bolas. Esse é o seu problema.
A testa de Caleb se enrugou. Ele cresceu junto com seus
dois irmãos mais velhos e um pai que era treinador. Ele estava
acostumado com esse tipo de conversa. O que não significava que
ele gostava.
— Você gosta daquela garota, a Taylor, certo? Mas já se
passaram semanas e você não disse nada a ela. Isso é patético,
cara. Não estou nem dizendo que você deveria flertar com ela. Eu
não tenho certeza de que você seria capaz disso sem se
envergonhar.
Caleb esfregou a parte de trás do pescoço. Ele sentou no pé
de sua cama, fechando a porta do quarto. Esse sermão - sobre o
como ele era um dos maiores perdedores - já estava acontecendo
há algum tempo.
— Você poderia falar tipo "Ei, como vão as suas aulas?” ou
"Que tipo de música você gosta?”, “Quais são os seus filmes
favoritos?” - eles chamam isso de puxar conversa, seu patético.
Quero dizer, se ela lhe fizer essas perguntas, você terá que mentir
porque o seu gosto é uma merda e sua vida também, mas enfim.
De qualquer forma, provavelmente é melhor mentir, basta dizer
que você gosta do que ela gosta. Sempre concorde com ela. Essa é
uma boa estratégia. Quão difícil é isso, hein cara?
— Não é realmente o meu estilo - respondeu Caleb. — Ser,
hum, manipulador.
— Você não tem um estilo! Olha, eu sei que sua confiança é
pouca por causa de seus irmãos te colocando para baixo o tempo
todo e as crianças na escola zombando de você por conta das
suass orelhas grandes...
Isso era verdade. Caleb tinha sido zombado sem piedade na
escola primária por conta de suas orelhas – com os quais ele
sempre conviveu. Seus colegas de classe colocavam os braços
diante de seus rostos como uma tromba de elefante e faziam
ruídos com a boca. Isso estava marcado nele.
—… mas você é bonito agora. Quero dizer, você está bem.
Suas roupas não. Podemos melhorar isso. Mas ouça, tudo o que
você precisa fazer é ser legal, conversar com ela um pouco - e
então, boom, você se torna amigo dela.
— A friend zone - disse Caleb. — Ouvi dizer que era ruim.
— O que? Você leu isso em alguma revista feminina? Não
diga “friend zone”. Nunca. Olha, sonso, isso é o que um cara com
suas cantadas limitadas tem que fazer. Você chega. Puxa
conversa. E então — bem, a escola aqui é estressante. Ela
provavelmente é emocional. A maioria das meninas é. Você
espera ela abaixar a guarda, até que ela precise chorar um pouco -
e de quem é o ombro amigo que ela vai procurar?
— Meu?
— Bingo!
— Mas... – a testa de Caleb enrugou de novo. — O
objetivo é fazê-la chorar?
— Não! O objetivo é aproveitar de uma situação
emocional. Deus, você é um caso sem esperança. Por que eu me
incomodo?
Caleb olhou para si mesmo. Um clone. Ele mesmo... porém
era diferente. Um conversador, malvado, com opiniões altamente
questionáveis sobre o sexo oposto.
— Eu acho que é hora de você ir - disse Caleb.
A duplicata levantou as mãos. — Epa, pera aí...
Caleb se levantou. Ele o reabsorveu sem colocar as mãos
em volta do pescoço do clone, mas este realmente tinha ficado
nervoso.
— Ack-! Pare!
E então ele se foi. O quarto ficou quieto. Caleb estava
sozinho.
Do lado de fora, na sala comum, Caleb encontrou Kopano
assistindo um filme de artes marciais. O nigeriano sorriu e
acenou.
— Esta parte é boa - disse Kopano. — Vocês deviam vir
assistir.
Caleb olhou por cima do ombro. — Sou só eu.
— Oh - disse Kopano, prestando mais atenção ao filme do
que Caleb. — Eu pensei ter ouvido você falar com alguém lá.
— Não - disse Caleb. Ele observou alguns segundos do
filme, depois se dirigiu para a porta. — Eu tenho uma consulta
com a Dra. Linda agora. Até depois.

A Dra. Linda empurrou os óculos de leitura no nariz e olhou para


o arquivo de Caleb, fazendo notas sobre suas atividades de
treinamento recentes. — Vejo aqui que você conseguiu criar nove
clones esta manhã - disse ela. — Um novo recorde pessoal.
Caleb sentou-se diante da Dra. Linda no sofá, de costas
retas, com as mãos nas coxas. — Sim - afirmou.
— E você teve algum problema com controle?
— Não senhora - respondeu Caleb, depois franziu a testa.
— Bem, não durante o treinamento, de qualquer maneira.
A Dra. Linda levantou os olhos do arquivo. — O que
aconteceu, Caleb?
— Depois, no meu quarto, eu dupliquei sem perceber -
confessou Caleb. — Um minuto eu estava pensando sobre... Eu
não sei. Coisas. E no minuto seguinte ele estava lá. Ele era um
idiota. Realmente foi multo desprezível comigo.
A Dra. Linda tocou a caneta contra o queixo. — Você está
com raiva de você mesmo, Caleb?
— Oi? Não.
— Já falamos sobre isso antes, lembra?
— Já falamos?
— As duplicatas estão completamente sob seu controle -
disse Linda, se levantando. — Quando um deles fala com você,
quando responde - é você conversando consigo mesmo.
Caleb sacudiu a cabeça. — O que aquele cara estava
dizendo - eu não diria nada assim.
A Dra. Linda foi até o armário. — Não. Você não diria.
Mas e seu subconsciente? Seria capaz de se comunicar sem um
filtro? Pode-se imaginar que tipos de verdades podem sair. Parece
que exagerar no uso de seus poderes pode sumentar esses
incidentes. Cansaço, estresse, tensão - essas condições criam
reações comportamentais adversas em pessoas comuns. Em
alguém com seu Legado, o problema é - sem trocadilhos -
multiplicado.
Caleb cruzou os braços. — Não é só eu estar cansado. Ou,
se for, é porque eu os crio e depois perco o controle. Eu juro, Dra.
Linda, eles têm mentes próprias.
— Eles literalmente não têm.
A Dra. Linda entregou a Caleb uma pasta fina. Ele já
conhecia o conteúdo; ela havia mostrado para ele durante a última
sessão. Há algumas semanas - estimulada pela persistente
insistência de Caleb em que os clones tinham mentes próprias,
bem como a discussão de anatomia em uma de suas aulas - o Dr.
Goode e a equipe médica da Academia fizeram em um dos clones
de Caleb uma ressonância magnética. Não só a atividade do
cérebro não foi detectada, mas o clone pareceu ser feito a partir de
uma substância que apenas se aproxima da carne humana. Havia
algo não muito correto nas moléculas, mas as amostras se
mostraram difíceis de examinar porque continuavam sendo
reabsorvidas em Caleb. Ao mesmo tempo, os pesquisadores
deram a Caleb sua própria ressonância. Eles descobriram que seu
cérebro respondia sempre que um clone agia ou era estimulado.
Na última sessão, os resultados deram uma pausa para
Caleb. No entanto, ele teve uma semana para pensar sobre eles.
Ele colocou o arquivo na mesa sem olhar para ele.
— Com todo o respeito, Dra. Linda, porque eu certamente
aprecio tudo que vocês tentaram fazer para me ajudar, mas... -
Caleb olhou para o chão. — Desde que estamos lidando, sabe,
com poderes extraterrestres e coisas estranhas? A ciência daqui
não pode estar errada? Talvez meus clones consigam pensar de
uma maneira que está além do que suas máquinas podem
registrar.
A Dra. Linda estreitou os olhos por um momento. Caleb
conhecia aquele olhar. Ele a desapontou.
— Em minha opinião, e na opinião unânime dos médicos e
cientistas que trabalham aqui, simplesmente não é esse o caso.
Caleb assentiu com firmeza. Esse era seu hábito sempre
que um adulto dissesse algo com autoridade, mesmo que ele não
concordasse necessariamente.
— Talvez - continuou a Dra. Linda, uma vez que ficou
claro que Caleb não diria mais nada. — Talvez você possa trazer
um de seus clones para a nossa próxima sessão. Você acha que
isso pode ajudá-lo a se expressar melhor?
Caleb sacudiu a cabeça. — Oh não, eu não penso assim.
Com outro deles aqui, não acho que eu conseguiria me expressar.

De volta em seu quarto, o clone não estava feliz com ele.


— Falando bobagens sobre nós com sua terapeuta. Isso é
muito legal, mano.
Era o mesmo clone que antes - o agressivo. Ele começou a
pensar nele como Kyle, seu irmão. O clone andava de um lado
para o outro, agitado, enquanto Caleb novamente sentou no pé de
sua cama.
— Você sempre foi um linguarudo - grunhiu o clone. Ele
balançou a cabeça com zombaria. — Veja. Isso está ficando
patético. Você deveria me deixar dominar por um tempo. Veria o
quanto melhor eu farei da sua vida. Você vai amar.
— Eu não sei. Eu acho que a Dra. Linda pode estar certa -
disse um segundo clone. Este estava ao lado das prateleiras de
Caleb, examinando a pequena coleção de romances de ficção
científica de bolso que ele colecionava. O razoável. Ele não
aparecia muitas vezes. Caleb ficou feliz por sua presença.
— Dra. Linda é uma maldita cadela - disse o Caleb-
Agressivo, olhando para o colega.
— Pelo contrário - Caleb-Razoável respondeu. — Ela
parece saber o que está fazendo. Eu diria que há uma chance justa
de simplesmente sermos invenções manifestadas da imaginação
de Caleb. Ou aspectos de sua personalidade que ele reprime. Você
lembrará que sua infância - nossa infância - não teve muito espaço
para nos expressarmos - o Caleb-Razoável se virou para sorrir
suavemente para o seu homólogo. — Talvez lhe fizesse bem,
amigo, considerar sua própria existência com uma mente mais
aberta.
O Caleb-Agressivo respondeu dando um soco no rosto do
outro clone.
E de repente eles estavam brigando. Os clones derrubaram
os livros de Caleb e caíram sobre sua mesa. Ele não conseguia
mais distinguir quem era quem. Caleb suspirou e se levantou.
— Tudo bem, já chega - disse ele, concentrando-se
brevemente para poder reabsorver os clones. — É hora do jantar.

Caleb preferiu comer cedo, antes que o refeitório ficasse lotado


demais. Assim que ele se sentou em uma mesa, na parte de trás,
com sua bandeja, ele notou Taylor no outro lado do salão.
Normalmente ela comeria com Isabela ou Kopano, mas esta noite
ela estava sozinha, exceto pelo enorme livro esparramado na
frente dela.
Esta era a oportunidade que Caleb estava esperando.
Ambos estavam sozinhos e em um ambiente casual e sem pressão.
Por que eles não poderiam jantar juntos? Ele poderia fazer-lhe
todas as perguntas que estivera catalogando em sua cabeça: Que
música ela gostava? Quais filmes? Como era crescer na Dakota do
Sul? O coração de Caleb vibrou com as possibilidades.
E então, ele estava sentado de frente para ela. Ele
realmente estava! Taylor sorriu para ele - casual, relaxada, feliz
por vê-lo - e ele podia sentir o cheiro do seu shampoo ao lado dele
da mesa.
Ela era como um oásis neste deserto de adolescentes
estranhos e mutantes. Uma garota como as de onde ele viera.
Aquelas com quem ele nunca se deu conta de falar. Mas este era
um novo Caleb.
— E aí - disse ele.
— Oi - ela respondeu. — Como está? Caleb, certo?
— Em carne e osso.
Com exceção de que não era.
Caleb observou como seu clone se sentou em frente a
Taylor. Ele podia ver a partir dos olhos do clone e ouvir através
dos ouvidos dele. Isso criava um efeito de eco desorientador, mas
Caleb se acostumara há muito tempo com isso.
— Como você tem ido até agora? – o clone perguntou a
Taylor. — Mudança muito grande comparada a sua casa, né?
— Ah, está bem. Você disse que era de...
— Nebraska.
— Certo, certo - Taylor fechou seu livro e sorriu para
Caleb. — É muito louco. Muito diferente de casa, com certeza.
— Sem brincadeiras – o clone respondeu com um bom
humor casual que Caleb invejava. — Eu nunca estive no Canadá
antes disso e agora estamos, tipo, no maior programa de
intercâmbio de estudantes do mundo.
Taylor riu. — Eu estava realmente intimidada no começo.
Eu não queria estar aqui. Mas estou começando a me acostumar.
Uma bandeja de jantar foi jogada na mesa em frente de
Caleb, surpreendendo-o. Nigel se sentou com seu habitual sorriso
arrogante. Caleb piscou para ele.
— Noite, meu bom homem - disse Nigel. — De boa se eu
jantar com você, companheiro de quarto?
Caleb percebeu que ultimamente Nigel parecia mais social.
O britânico estava fazendo questão de convidar Caleb para
assistir filmes com ele e Kopano, ou para comerem juntos, ou para
ir à aula. Caleb suspeitava que isso fosse trabalho da Dra. Linda.
Se ela conseguiu que Nigel finalmente o perdoasse pelo que
aconteceu na ilha - o que seu tio o fez fazer - então isso era um
alívio. Mas este foi um momento muito ruim.
— Hum, eu gostaria de ficar sozinho, na verdade.
Taylor ergueu uma sobrancelha confusa. — Hah - mas
você não se sentou comigo?
Caleb estreitou os olhos. O clone tinha falado as palavras
que ele pretendia dizer para Nigel. Através dos olhos de seu
clone, Caleb podia ver que Taylor agora usava um dos olhares
estranhos que ele conhecia lá de Nebraska.
— Agora não é uma boa hora – ele disse a Nigel por
entredentes.
— Desculpe, eu estava pensando alto - disse o clone para
Taylor, falando rapidamente. — Meu colega de quarto está
sempre explodindo esta droga de death metal em nosso quarto. Eu
estava pensando naquilo. Eu tenho dois irmãos mais velhos, então
estou acostumado a compartilhar o espaço, mas cara, nosso pai
nunca nos permitiu ouvir música naquele volume.
— Oh. Entendi – Taylor respondeu com um sorriso de
benefício-de-dúvida. Ela encolheu os ombros. — Eu sou filha
única e na verdade não me importo com os colegas de quarto,
eles...
Caleb não ouviu o resto do que Taylor disse. Nigel o
distraiu.
— Não é um bom momento? – perguntou Nigel com uma
risada. — Como se você nunca estivesse sentado aqui sozinho,
pra variar. Claro que é um bom momento! Quando Caleb
respondeu com o silêncio, Nigel começou a olhar ao redor da sala
de jantar. — A menos que você esteja esperando alguém...?
Nigel levou apenas um momento para notar Taylor e o
clone envolvidos numa conversa no salão. Lentamente, ele
voltou-se para Caleb com uma expressão de perplexidade
explícita.
— Que diabos você está fazendo, Caleb? Isso é como os
velhos programas de TV em que o homem se esconde nos
arbustos ajudando, por pontos no ouvido, no que seus
companheiros tem que dizer?
— Por favor, Nigel, fique quieto – implorou Caleb.
— Algum ritual estranho de namoro? – Nigel continuou,
rindo agora. — Você enviou seu clone macabro lá para se passar
por você? É isso? Ele perguntamdo para aquela esquisita: já
conheceu meu companheiro Caleb?
Do outro lado da sala, Taylor gritou: — Eu posso ver
através de você!
Primeiramente, Caleb interpretou aquelas palavras
metaforicamente – ela viu ele e Nigel, descobriu que ele não era
homem o suficiente para falar com ela por conta própria. Mas
não, Taylor falou literalmente - o clone dele tinha ficado
transparente, fantasmagórico, enquanto a concentração de Caleb
dissipava. Um momento depois, o clone simplesmente piscou para
fora da existência. Taylor gritou de novo.
— Uh-oh – disse Nigel.
Todos os estudantes do salão olhavam na direção de
Taylor. Ela, no entanto, olhou para Caleb, percebendo-o
finalmente na mesa de trás. Nigel colocou o dedo sob o colarinho
de sua camiseta e deslizou para fora da mesa de Caleb
inocentemente.
— Que diabos foi isso? – Taylor gritou para Caleb.
Em resposta, Caleb levantou-se do banco e fugiu.

Depois do jantar, enquanto Nigel cruzava o prédio voltando para


os dormitórios, o clone o alcançou.
— Ei! Você realmente me ferrou lá, idiota!
Antes que Nigel pudesse se virar, o clone o empurrou pelas
costas. Desprevinido, Nigel tropeçou alguns metros e caiu forte,
se apoiando nas mãos e nos joelhos. Ele rolou, os braços magros
se estendendo em defesa, o sangue gotejando de um arranhão no
cotovelo.
— Ei! Que diabos, Caleb?
— Eu não sou Caleb, companheiro – respondeu o clone,
seus olhos impiscáveis olhando para Nigel. Os punhos do clone se
fechando enquanto ele se aproximava do britânico. — Você gosta
de falar demais... talvez eu deveria te ensinar...
Do nada, Caleb correu pelo gramado e derrubou o clone no
chão com seus ombros. O clone gritou enquanto Caleb
mergulhava em cima dele. Caleb começou a derrubar sua imagem
espelhada, dando soco após o soco. O clone não sangrou; mas os
punhos de Caleb deixaram escoriações na cabeça da coisa como se
ele estivesse batendo os dedos em argila. Nigel observou tudo
isso com os olhos arregalados, se arrastando igual um caranguejo
para trás.
O golpe final de Caleb acertou o chão. O clone ficou
transparente e desapareceu. Sem fôlego, ele se virou para Nigel.
— Sinto muito por isso – disse ele. — Eu... eles estão fora
de controle ultimamente.
Caleb se levantou, e depois se abaixou para ajudar Nigel.
Nigel deu uma palmada na mão dele e se levantou sozinho,
afugentando-se.
— Você perdeu a chance, cara – grunhiu Nigel. — Eu
estava tentando relevando cada vez mais, porém você está louco,
não é? Chega para mim.
— Eu não estou. Eu não tenho problemas com você.
Aquele – ele não era eu.
Nigel bufou. — A Dra. Linda quer que eu acompanhe você,
pensa que precisa de um amigo. Mas você tem já tem amigos, não
é? – Caleb se encolheu enquanto Nigel tocava sua própria testa.
— Seus amigos estão todos aqui, não estão? Louco. Eles devem
mandar em você.
— É verdade – Caleb respondeu suavemente. — De que
preciso de um amigo, quero dizer.
Os lábios de Nigel ficaram enrolados em um sorriso de
desprezo que lentamente desapareceu frente a lástima de Caleb.
— Ah, pelo amor de Deus, Caleb...
— Desde que isso aconteceu, desde que desenvolvi meus
Legados... – Caleb passou os dedos através dos nódulos que
estavam sangrando. Seus olhos estavam ficando aquosos. —
Quanto mais forte eu ficar, mais eu permanecerei aqui – eles ficam
cada vez mais difíceis de controlar. Eu não sei mais quem sou. E
aquelas... essas coisas. Eles simplesmente saem de mim. Sem
minha permissão.
Depois de um momento de relutância, Nigel colocou uma
mão no ombro de Caleb. — Ouça, eu também mudei, quando eu
desenvolvi meus legados. Eu... – Nigel sacudiu a cabeça,
afastando-se. — Todos nós estamos passando por isso,
companheiro. Estamos todos ferrados. Seu dano está apenas
mostrando cada vez mais como seus poderes funcionam.
— Eu não sei o que fazer – disse Caleb calmamente.
— Vou dizer o que você deve fazer – respondeu Nigel. —
Na próxima vez que um clone idiota aparecer, você vai até mim,
seu amigo Nigel, e eu vou dar uma surra nele que ele não vai
esquecer.
ISABELA SILVA
ACADEMIA DA GARDE HUMANA –
POINT REYES, CALIFÓRNIA
KOPANO OKEKE
ACADEMIA DA GARDE HUMANA –
POINT REYES, CALIFÓRNIA

savam as grandes janelas do ginásio. Kopano se equilibrava


enquanto seguia através de várias cordas que estavam pendu-
radas ao teto. Cautelosamente, ele conseguiu atravessar o per-
curso de obstáculos deserto do centro de treinamento. O percur-
so ainda não estava ativado, o que significava que não haveria
bolas sendo atiradas ou descargas elétricas sendo disparadas
em sua direção. Mas ainda assim, havia perigo. Um ataque
aconteceria. E logo.
Porque Kopano não estava sozinho.
— ÁÁÁÁ!
O grito o alertou segundos antes que o professor Nove
caísse do teto em cima dele. O joelho dele acertou o ombro de
Kopano e o deixou sem fôlego. Na sua mão metálica, Nove
empunhava uma faca de combate. Ele afundou a lâmina entre
os ombros de Kopano.
A faca se entortou em contato com a pele dele. Com um
resmungo, Nove jogou longe a faca entortada, Kopano fez uma
cambalhota debaixo de Nove e o golpeou com força no ester-
no. O velho Garde saiu voando para trás.
Os punhos do Kopano eram duros como tijolos. Nove ten-
tava recuperar o fôlego enquanto Kopano tentava se levantar.
— Te machuquei? – Kopano perguntou sorrindo.
— Sim – respondeu Nove. Do bolso de trás da calça, ele
pegou uma arma. — Pergunto o mesmo.
Bam! Bam! Bam!
Kopano levantou as mãos. Ele conseguiu desviar uma das
balas de borracha com sua telecinese. As outras duas o acerta-
ram no peito. Kopano sentia agora aquela familiar sensação de
pressão na sua pele enquanto ela se endurecia para diminuir o
impacto. Ele não podia ser ferido.
— Sem dor – gritou para Nove, alegremente. Então, ar-
rancou a arma de Nove com sua telecinese, a jogando para
longe.
Nove se afastou. Kopano o perseguiu. Suas pernas sem-
pre pareciam mais pesadas depois que sua invencibilidade ter-
minava. Cuidadosamente, destruiu uma pilha de troncos, parte
do percurso de obstáculos. Seu corpo ficou mais leve, e ele au-
mentou a velocidade. Essa batalha com o professor Nove havia
se tornado parte da sua rotina. Três vezes por semana, bem
cedo. Nove o acertava, tentava machucá-lo e só de vez em
quando conseguia.
— Lembre-se – gritou Nove por cima do ombro. — Con-
trole seu Legado! Pense no que está fazendo!
Nove chegou até a linha lateral do percurso de obstácu-
los, onde havia um contêiner de lixo que às vezes servia como
cobertura para os ataques de projéteis lançados pelo sistema.
Com uma força que ainda impressionava Kopano, Nove arran-
cou uma placa de metal do lado do contêiner e a segurou na
sua frente como um escudo.
Kopano juntou os punhos, sabendo que assim ficariam du-
ras logo que golpeasse o metal. Acertou na mosca – pum! – deu
um soco no escudo improvisado do Nove, quase acertando o
metal diretamente na cara do professor.
Nove se recuperou rapidamente. Fez o metal girar sobre
a cabeça do Kopano, revidando. Kopano se agachou, mas o
movimento foi feito apenas para distraí-lo. Nove pulou sobre o
contêiner, escapando de novo. Levantou a mão em direção à
passarela que cruzava o centro de treinamento.
— Arma! – pediu Nove.
Lá de cima, algo branco caiu. Nove pegou o objeto e
suspirou.
— Muito obrigado – disse secamente.
Kopano semicerrou os olhos enquanto subia atrás de No-
ve, que segurava uma almofada na sua frente.
— Vai tirar uma soneca, professor? – perguntou Kopano
com um sorriso enquanto encarava o professor Nove.
— Menos conversa, mais ação – Nove respondeu. Ele pu-
lou sobre a tampa desgastada do contêiner de lixo, balançan-
do a almofada na sua frente.
— Como quiser – Kopano respondeu.
Ele devia saber que era uma armadilha.
Kopano executou um gancho de direita em Nove. O pro-
fessor levantou a almofada para bloquear o golpe. Kopano
sentiu seus dedos acertaram a superfície fofa – e então seus
dedos se quebraram. Ele gritou de dor e surpresa.
A almofada estava cheia de pedras. Pior ainda, o Lega-
do do Kopano não o protegeu.
— Parem! Isso é tudo! – Dr. Goode disse da passarela.
Kopano achou que tinha quebrado alguns dedos. Chutou
o contêiner com força, mais por frustração do que pela dor. Es-
sa era a terceira vez que saía ferido da prática, sempre por-
que o professor Nove conseguia de alguma forma surpreendê-
lo.
— Você está bem? – Nove perguntou. Ele soltou a almo-
fada cheia de pedras.
— Estou bem – Kopano murmurou, segurando a mão ma-
chucada. Olhou para Nove com os olhos cheios de lágrimas. —
Por que não funcionou? De que serve ser invencível só às vezes?
— Claramente, você não é invencível – respondeu Nove,
e pulou do contêiner. Kopano o seguiu. — Ou talvez você possa
ser, mas você está deixando que seus instintos façam o trabalho
em vez de controlar o Legado.
— Já escutei todos esses sermões – Kopano respondeu,
envergonhado do desespero em sua voz. — Sobre a meditação
e a visualização da energia dentro de mim. Mas não há nada
para visualizar, professor. E não sinto nenhuma energia. Sim-
plesmente acontece ou não.
— Não está tentando o suficiente, garoto – respondeu
Nove bruscamente.
Kopano franziu a testa e começou a arrancar os sensores
de plástico que o Dr. Goode sempre colocava no seu corpo an-
tes da prática. Nessa hora, o cientista desceu da passarela,
examinando os resultados no tablet.
— Alguma informação, Malcolm? – perguntou Nove.
O Dr. Goode coçou o queixo e olhou para Kopano. —
Na verdade, consegui uma leitura interessante – ele disse, e o
coração de Kopano acelerou. — Quando seu Legado se ativou
corretamente, seu peso aumentou por um momento. Mas voltou
ao normal quando foi perseguir o Nove. Você sentiu isso, Kopa-
no?
Kopano assentiu com a cabeça, se lembrando do peso
em seus ossos quando perseguiu Nove. — Sim. Isso acontece às
vezes.
Nove estalou os dedos. — É isso aí, cara. Isso é o que eu
quero que faça a partir de agora. Pensar que você é gordo.
Kopano franziu a testa. O Dr. Goode lhe deu uns tapi-
nhas no ombro.
— Vai dar tudo certo, Kopano – disse. — Procure Taylor
para ela olhar essa mão.
Enquanto Kopano se afastava da pista de obstáculos,
Nove o chamou. — Kopano! Mostre-me algo hoje, cara. Conto
com você.
Kopano assentiu em resposta, e então se virou rapida-
mente para esconder seu sorriso. Nove contava com ele! Não
queria que o professor visse como isso o deixava feliz. Tinha
que ser legal e macho, como Nove.
Ele mostraria algo bem legal para o Nove.
Ele vai ganhar os Jogos de Guerra de hoje, mesmo que
tenha que fazer isso sozinho.

— Como você fez isso?


— Soquei algumas pedras.
— Que tolice.
— Estavam escondidas dentro de uma almofada.
— Mais tolice ainda.
Kopano riu baixinho. Taylor segurou sua mão, deixando
que sua energia curativa e morna fluísse entre os dedos que-
brados. Em questão de minutos, o inchaço desapareceu e Kopa-
no pôde flexionar os dedos sem dor. Inclinou-se dramaticamente
diante de Taylor.
— Obrigado – disse.
— Sim, sim – respondeu ela, balançando a cabeça en-
quanto soltava a mão dele.
Os dois eram parte de um grupo bem maior a caminho
da zona florestal ao sul do campus. Mesmo que a participação
nos Jogos de Guerra fosse totalmente voluntária, todos os estu-
dantes da Academia deviam assistir. Vários dos instrutores esta-
vam caminhando para os bosques também. Os estudantes fala-
vam entusiasmados, discutindo o possível desafio que o profes-
sor Nove havia projetado junto com o Coronel Archibald e os
Pacificadores. A Garde teve muito tempo de treinamento entre
si e na pista de obstáculos, mas hoje seria a primeira vez que
qualquer um deles enfrentaria oponentes de fora. A atmosfera
lembrou Kopano de quando sua escola enfrentava um rival nos
esportes.
— Você realmente está animado com isso, não é? – disse
Taylor. Não tinha percebido que ela estava observando ele.
— Sim! Você não?
— Na verdade não – Taylor baixou a voz. — Mesmo
que seja apenas fingimento, não te parece estranho que as pes-
soas que supostamente deveriam nos proteger querem lutar
contra nós?
— O professor Nove disse que tudo isso é para nos aju-
dar e treinar – Kopano respondeu encolhendo os ombros. —
Talvez essa violência vá contra o seu instinto natural por conta
do Legado de cura. Eu entendo – Kopano bateu em sua mão
aberta. — Mas o meu instinto natural é ser um guerreiro!
Taylor riu e balançou a cabeça. — Hoje uma almofada
te deu uma surra, guerreiro.
Viram Nigel e Ran entre a multidão e foram até eles.
— Bom, grandão – Nigel disse em um cumprimento e
apertou o bíceps do Kopano. — Pronto para chutar alguns tra-
seiros?
Kopano sorriu. Ele gostava do seu companheiro de quar-
to – seus dois companheiros de quarto, na verdade, mesmo que
Caleb fosse um pouco estranho – e sempre se sentia encorajado
pelas palavras perspicazes de Nigel.
— Ah, o Kopano todo poderoso está pronto – Taylor
respondeu para Nigel revirando os olhos. Olhou para Ran. —
Estou surpresa em te ver aqui.
Ran inclinou a cabeça. — É obrigatório.
— Ela pode até ser uma dissidente de Legados, mas isso
não significa que vai perder uma aula – disse Nigel.
Kopano balançou a cabeça. Escutou rumores de que Ran
tinha jurado não usar mais seus Legados, assim como ouviu falar
de como ela supostamente era poderosa. Nunca havia tido a
oportunidade de vê-la em ação.
— Como você vai melhorar se não usa seus Legados? –
perguntou para Ran, perplexo.
— Por que eu deveria melhorar algo que não tenho in-
tenção de usar? – Ran respondeu.
Kopano piscou. — Qual é! Não acha que você tem Lega-
dos por algum motivo? Lorien nos escolheu por algum motivo!
— E talvez esse motivo tenha acabado.
— Mas e o que acontecerá se não tiver acabado?
— Então vou esperar até que apareça um novo motivo –
disse Ran friamente.
Nigel jogou os braços ao redor dos dois. — Não deixe
ela chover no seu desfile, amigo. Ran e eu já vivemos bastante.
Ela só quer tirar umas férias, não a culpo.
Kopano franziu a testa. — Eu deveria ter estado lá. De-
veria ter aceitado o convite de John Smith.
As expressões de Nigel e Ran se escureceram.
— Irmão, não tenho certeza se isso é verdade – disse
Nigel.
Antes que pudessem dizer algo mais, um assovio agudo
chamou a atenção deles. Com a centena de estudantes final-
mente reunidos, Nove parou na frente deles. O coronel Archi-
bald se uniu a eles, o rosto vermelho por ter feito a barba, o
uniforme impecável. Perto deles estava um homem que Kopano
nunca tinha visto: de meia idade, mas com cara de bebê, cabe-
lo castanho e um terno elegante. O recém-chegado segurava
um tablet, digitando frequentemente com um lápis óptico.
— Escutem! – gritou o professor Nove. Ele gesticulou para
o homem bem vestido. — Temos um convidado especial para a
atividade de hoje. Esse é Greger Karlssom, um avaliador da
Garde Terrestre. Ele é um dos caras que vai decidir para qual
tipo de missão vocês serão mandados assim que eu decidir que
estão prontos para se formarem. Deem uma boa impressão! Ele
é sueco e ouvi dizer que ele realmente gosta quando se faz
essa voz de marionetes, não é Greger?
Greger sorriu educadamente para Nove e inclinou a ca-
beça para os estudantes, e seu olhar já estava avaliando. Ko-
pano estufou o peito.
— Agora escutem, sou obrigado por algumas leis a di-
zer-lhes que esse é um exercício entre os membros da Academia
e os Pacificadores das Nações Unidas. A participação é absolu-
tamente opcional. Para aqueles que decidirem participar, serão
tomadas todas as precauções necessárias para garantir a segu-
rança de vocês, mas a segurança em si não pode ser garantida.
Que merda, não é? – ele olhou por cima do ombro para o co-
ronel Archibald. — Satisfeito chefe?
Archibaldi assentiu com a cabeça. Kopano olhou ao seu
redor – as expressões dos seus companheiros de sala iam do
medo à excitação. Deu uma cotovelada em Taylor.
— Pode ser que você fique muito ocupada hoje – sussur-
rou.
Ela deu uma dura olhada nele. — Você me prometeu que
seria um tédio, Kopano.
— Essa é a situação – continuou o professor Nove, apon-
tando para o bosque. — A uma meia milha de árvores, há uma
cabana vigiada pelos Pacificadores. A missão de vocês é che-
gar até essa cabana e resgatar o refém preso lá dentro. Nosso
bom Dr. Goode se ofereceu como voluntário para desempenhar
o papel de refém, então, se não resgatarem ele, a aula de ci-
ências será mais chata.
— Os soldados que estão no bosque, vigiando a cabana,
estão armados com armas não letais – disse o coronel Archi-
bald. — Meus homens e mulheres apreciarão muito que vocês
tomem o mesmo cuidado com seus poderes como nós estamos
tomando com nossas armas.
— Sim. Não machuquem muito eles – disse Nove. — O
objetivo desse exercício não é apenas lutar contra alguns sol-
dados. Também é para avaliar o trabalho de vocês em equipe
e habilidades de estratégia. Poderia dizer a melhor forma de
tirar esses estúpidos, mas não vou fazer isso. Eu também pode-
ria dividir vocês para formar as equipes mais eficientes, mas
não vou fazer isso. Tudo isso vai depender de vocês. Qualquer
pessoa que conseguir fazer isso ganhará... hmm... digamos que
vinte horas de lazer extra. São três dias livres.
Assim que Nove terminou sua explicação, as dezenas de
jovens Gardes começaram a conversar entre si, formando gru-
pos. Kopano olhou ao seu redor ansiosamente.
A maioria dos estudantes com Legados não úteis em
combate e os tweebs, que ainda não tinham desenvolvido seus
primeiros Legados, já estava se reunindo na orla do bosque
para assistir, enquanto a Garde mais ousada, com Legados
mais violentos, se dividiu.
— Com certeza o professor Nove daria um prêmio muito
bom pela força bruta – se queixou Isabela enquanto se dirigia
para o seu pequeno grupo. Simon a seguiu, cumprimentando a
todos.
— Literalmente não há como eu participar nisso – disse
Simon. — Talvez na próxima vez a competição não seja tão
violenta.
Taylor sorriu.
— Você está convidado para se unir aos pensadores.
— Quero essas horas extras de lazer – murmurou Isabe-
la. — Não é justo.
— Sim. E eu quero mostrar para esse homem da Garde
Terrestre do que sou capaz – acrescentou Kopano, olhando ao
redor.
— Pelo menos você já sabe do que é capaz? – perguntou
Nigel.
— Bem, não exatamente – respondeu Kopano. — Mas
mesmo assim gostaria de tentar!
Taylor cutucou o ombro de Ran, apontando discretamente
para Greger. — Está te observando.
Ran já havia notado como o representante da Garde
Terrestre estava vigiando ela. Ela encolheu os ombros. — Ele
vai ficar decepcionado.
— Olhe esse grupo de idiotas! – disse Lofton St. Croix
animado enquanto se aproximava. Atrás dele estavam Caleb, o
respirador de fogo Omar Azoulay, Nicolas Lambert (o belga
fortão) e o musculoso e rápido Maiken Megalos. — Ran e Nigel,
vamos, se juntem ao Time do Lofton.
Nigel bufou. — Veja isso. Você simplesmente escolheu to-
do mundo da aula da Dra. Chen.
Kopano sentiu um momentâneo flash de decepção por
não ter sido escolhido para essa equipe.
— Claro que sim – respondeu Lofton para Nigel. — Sa-
be, já recebi minha ligação da Garde Terrestre. Vou ir em uma
semana. Se conseguir as vinte horas livres, posso ficar tranquilo
até lá.
Nigel olhou para Ran. Ela balançou a cabeça.
— Desculpe amigo, mas temos um trato – disse Nigel pa-
ra Lofton. — Se Ran está fora, eu também.
Lofton revirou os olhos. — Mano, tipo, o seu... Legado de
canto não ajudaria o time de qualquer jeito. O que realmente
queremos é a garota durona que explode coisas e que uma vez
derrubou uma nave de guerra Mogadoriana.
— Era apenas um Escumador – corrigiu Ran.
— Sério? – perguntou Kopano.
Ran assentiu com a cabeça. — E não estou brincando.
Foi apenas um golpe de sorte.
Lofton suspirou. Antes que pudesse expressar seu descon-
tentamento, Isabela se aproximou dele.
— Não se preocupe, amorzinho. Estarei na sua equipe.
Lofton começou a rir. Ele deu um beijo na testa de Isabe-
la.
— Claro, obrigado pela oferta, docinho, mas vamos ten-
tar um ataque frontal. Você não é exatamente o que tenho em
mente.
— Grande plano – disse Taylor. Isabela cruzou os braços
e ficou emburrada em silêncio.
— Essas armas do exército nunca enfrentaram nada co-
mo nós – disse Lofton com desdém. — Vamos diretamente até
eles. Não estarão preparados.
Caleb falou pela primeira vez, tendo passado o começo
da conversa evitando desajeitadamente olhar para Taylor. —
Na verdade, hum, tenho algumas ideias que poderíamos...
Lofton cumprimentou Caleb no ombro, cortando ele. —
Tranquilo irmão. Você só precisa criar o máximo de iscas que
conseguir, além de chutar alguns traseiros.
— Posso me juntar a você? – perguntou Kopano.
Lofton levantou uma sobrancelha e o observou. — Supos-
tamente você é à prova de balas, não é?
— Eu diria que invencível – disse Kopano. — Também te-
nho muita força.
— Ele é sólido – disse Caleb.
Lofton encolheu os ombros. — Bom, pelo menos não vie-
mos aqui em vão. Está dentro.
Kopano sorriu. Virou-se para Taylor enquanto o resto da
equipe de Lofton seguia para a orla do bosque. — Me deseje
sorte.
— Não deseje sorte para esses idiotas machistas – ex-
clamou Isabela.
— Boa sorte, guerreiro – disse Taylor com um sorriso, ig-
norando sua companheira de quarto. — Tenho a impressão de
que vai precisar.

Eles se alinharam na orla do bosque. Kopano estava entre Nico-


las e um dos clones do Caleb. Todos os clones – havia meia dú-
zia deles – estavam prontos para a batalha. Eles foram a pri-
meira equipe a tentar.
— Vamos ir diretamente até a cabana – disse Lofton. —
Tirem qualquer coisa do nosso caminho. Quero ele livre.
Todos assentiram em acordo. Kopano esfregou as mãos e
se concentrou. Procurou a sensação de peso que o Dr. Goode
mencionou. Nada. Sentia-se tragicamente normal. Mas Kopano
estava convencido de que seu Legado viria quando fosse neces-
sário; já que sempre vinha.
O professor Nove soou um apito e eles começaram.
A equipe de Lofton correu bosque adentro. Durante os
primeiros cem metros, não viram nenhum rastro dos soldados. As
árvores se agrupavam mais perto até se entrelaçarem. Kopano
sentiu adrenalina dentro dele – estava em uma missão – avan-
çando até o objetivo! Esse era o tipo de experiência heroica
que tinha imaginado.
Logo a cabana apareceu na vista – parcialmente visível
–através de um véu vibrante de folhagem verde. Kopano per-
cebeu movimento nas janelas, mas não teve a oportunidade de
examiná-lo mais de perto.
— Inimigos! – gritou Caleb, seus seis clones repetindo su-
as palavras um momento depois. Três soldados saíram de trás
das árvores. O grupo do Kopano parou a uma boa distância
dos seus oponentes. Cada um dos soldados segurava o que pa-
recia uma escopeta tradicional.
— Livrem-se deles! – gritou Lofton. Espinhos afiados cres-
ciam a seu comando – saindo de sua pele – rasgando sua cami-
sa. Tirou alguns e os jogou contra os soldados.
Os soldados se dispersaram para se protegerem enquan-
to os espinhos de Lofton voavam na direção deles, mas não an-
tes de cada um atirar. Kopano esticou as mãos e criou uma bar-
reira telecinética. Seus amigos que estavam perto fizeram o
mesmo. É o que foram treinados para fazer. Nenhum deles po-
dia parar com segurança as balas por conta própria – não
agora pelo menos – mas juntos eram fortes o suficiente para
fazer com que os projéteis parassem.
Kopano franziu a testa. Esperava uma bala de borracha
como a que o professor Nove tinha usado essa manhã, mas o
que foi atirado era muito diferente. Cada uma das escopetas
havia atirado um objeto esférico metálico do tamanho de um
saco de feijão. Brilhavam e emitiam um som cada vez mais fre-
quente.
Uma contagem regressiva.
— Explosivos! – gritou Caleb. Nesse momento, Kopano se
lembrou de que seu companheiro de quarto era o que os ameri-
canos chamavam de “pirralho do exército”. Provavelmente tinha
experiência com táticas militares e exercícios como esse.
Talvez devessem ter planejado melhor, mas a bravura de
Lofton havia sido contagiante e agora era tarde demais.
As esferas se partiram com um chiado penetrante. Cada
uma descarregou uma nuvem grossa de gás laranja.
Imediatamente, a garganta de Kopano se fechou e seus
olhos arderam. O aroma ardente de pimenta vermelha enchia
seus pulmões.
Lofton disse em meio à tosse: — Precisamos recuar!
— Não! – gritou Caleb. — Estamos comprometidos! De-
vemos continuar! Maiken, use sua velocidade para fazer um
efeito funil.
Os clones de Caleb não precisavam respirar. Atravessa-
ram a nuvem de fumaça e começaram a bater nos soldados.
Enquanto isso, Maiken, tossindo muito, começou a dar voltas ao
redor em círculo, criando bastante vento para soprar o gás pa-
ra longe deles.
Foi quando o resto dos soldados atacou por trás. Na sua
pressa para chegar até a cabana, a equipe de Lofton havia
passado exatamente por esse esquadrão escondido. Estavam
cercados.
Kopano ouviu um ruído metálico. Deu meia volta bem a
tempo de ver um soldado segurando o que parecia ser uma
balista de alta tecnologia. A arma disparou um aro de metal
unido a um longo arame de tração. Com os olhos ardendo, Ko-
pano não conseguiu que sua telecinese funcionasse rápido o
suficiente. O aro o acertou diretamente no pescoço, se abriu no
impacto e se fechou ao redor da garganta como um colar.
Uma descarga elétrica o atingiu através do pescoço. Ko-
pano caiu de joelhos.
Com telecinese, Kopano tentou arrancar a balista elétrica
das mãos do soldado. Mas então, outro pacificador disparou
uma arma estranha. A arma se parecia com uma velha escopeta
e encheu o ar com centenas de minúsculos projéteis, girando e
piscando. O efeito causou estragos no controle da telecinese.
Um trio de dardos – possivelmente tranquilizantes – atin-
giu o peito de Kopano. Seu Legado entrou em ação, impedindo
que a munição perfurasse a pele. Uma pequena vitória.
Ao seu redor, seus companheiros de equipe estavam so-
frendo ataques similares. Omar já tinha caído, cheio de dardos,
Lofton e Maiken haviam sido vítimas dos colares, como Kopano.
Enquanto isso, Nicolas havia sido preso com algemas nas mãos e
nos pés, as correntes se magnetizaram juntas de modo que até
sua força aumentada não podia evitar que se contorcesse. Só
Caleb e seus clones ficaram de pé, e estavam perdendo terreno
constantemente.
— Oh, isso é ruim – gemeu Kopano. Ele envolveu as mãos
ao redor do arame que o atava à balista elétrica do soldado,
mas a voltagem que corria pelo seu corpo apenas aumentou.
Foi demais.
Quando Kopano caiu pela primeira vez de cara na terra,
viu o professor Nove, Greger e o coronel Archibald na orla da
batalha. Archibaldi sorria, Greger anotava em seu tablet, e
Nove franzia a testa.
A equipe Lofton nem sequer se aproximou da cabana.
Mostre-me algo, havia dito o professor Nove.
A única coisa que Kopano mostrou aos administradores
foi o quão facilmente ele podia ser nocauteado.
PROFESSOR NOVE
ACADEMIA DA GARDE HUMANA –
POINT REYES, CALIFÓRNIA

voltando até o coronel Archibald e Greger. O sorriso de Archibald


estava exasperante. Greger, ocupado complementando arquivos
em seu tablet, olhou para cima.
— Para onde você foi, Nove? – ele perguntou.
— Tirar água do joelho – Nove respondeu. Ele olhou para
baixo e fechou o zíper.
— Estamos prontos para acabar com isso logo? – Archibald
perguntou.
Nove olhou para o militar. O dia não foi produtivo para seus
alunos. Depois que o primeiro grupo da Garde falhou
espetacularmente para chegar à cabine - muitos de seus lutadores
mais talentosos – outros quatro grupos que empregaram táticas
conservadoras foram igualmente desmantelados pela equipe de
pacificadores de Archibald e seu armamento de alta tecnologia. Ele
havia deixado sua decepção com a Garde óbvia, embora seu
discurso de insultos tivesse acabado cerca de vinte minutos atrás,
acabou por se transformar em decepção.
— Eu, por um lado, tenho uma visão interessante – disse
Greger.
— Não pense nisso como uma falha, Nove - disse o coronel
Archibald com presunção. — Pense nisso como uma experiência de
aprendizagem. Agora você sabe como pode aprimorar seus
métodos de ensino.
Antes que Nove pudesse responder, Nigel aproximou-se da
borda da floresta. Atrás dele, o corpo estudantil abatido sentou-se
na grama, muitos deles com lesões menores. O britânico com a
cabeça raspada e usando seu colete junto com botas de combate
não pareceu a figura mais impressionante, mesmo quando estralou
os dedos e o pescoço.
— Posso tentar? – ele perguntou.
O coronel Archibald levantou uma sobrancelha. — Apenas
você sozinho, filho?
— O que posso dizer? – respondeu Nigel. — Eu acredito em
mim.
Nove cruzou os braços e fixou Nigel com um olhar severo. —
Você tem certeza de que sabe respeitar as regras, Nigel?
— Ah, é claro, chefe.
— Não letal – disse Nove com firmeza. — Lembre-se. Esses
soldados têm famílias. Eles estão do nosso lado. Isso é apenas um
jogo.
Archibald e Greger deram a Nove um olhar estranho. Nigel
ergueu a mão em uma promessa solene.
— Juro, eu serei gentil.
— Tudo bem – disse Nove. — Vamos ver do que você é
capaz.
Sem qualquer senso de urgência, Nigel entrou na floresta.
Como fizeram com todas as outras tentativas na cabine, Nove e os
outros observadores seguiram atrás a uma distância segura. Pelo
canto do olho Nove assistiu Greger puxando o dossiê da Garde
Terrestre sobre Nigel. Ele leu o arquivo rapidamente, os lábios
franzidos.
— Perdoe-me, professor – começou Greger. — Mas por que
você enfatizou a atividade não letal com o Sr. Barnaby? Vejo que os
poderes dele são de manipulação sônica. Não tenho anotações aqui
sobre serem mortais.
Nove mordeu o lábio. — Uh, bem, é algo que acabamos de
descobrir. O garoto atingiu uma frequência outro dia que causou
aneurismas em ratos.
A boca de Greger se abriu. — Você está brincando.
— Não – respondeu Nove. — Alguns dos pesquisadores
também relataram dor de cabeça depois. Um deles estava com
sangramento no cérebro. Por sorte, descobrimos isso a tempo.
Malcolm não enviou um memorando sobre isso?
— Não – disse Archibald bruscamente. — Ele não enviou.
— Fascinante – disse Greger, já fazendo revisões no arquivo
em seu tablet.
— Sim, bem, não é algo que ele conseguiu repetir. Não que
seja algo que tentamos repetir, sabe? Provavelmente apenas uma
coisa estranha.
Enquanto Nigel continuava floresta adentro, ele caiu na
mesma armadilha que todas as outras equipes. Ele passou pelo
primeiro grupo de soldados – camuflados e escondidos em árvores
– e estes caíram atrás dele. Eles poderiam derrubá-lo aqui e ali, mas
os homens de Archibald estavam sob ordens de não se engajar
prematuramente; eles queriam ver o Garde encurralado. Logo, eles
formaram um perímetro apertado em torno dele. Nigel não parecia
estar ciente. Ou, talvez com mais precisão, ele não se importava.
Quando a cabana apareceu, o grupo de soldados que a
guardavam sairam para completar a armadilha. Isso era o mais
longe que qualquer das equipes tinha conseguido.
Nigel levantou as mãos na rendição.
— Tudo bem, chapas, aqui está minha estratégia – disse ele.
— Vou pedir a vocês gentilmente que liberem o refém e me deixem
vencer, beleza? Ninguém tentou isso ainda. Estou achando que
talvez este seja um daqueles testes em que devemos falhar, sabem?
Ou procurar uma solução diplomática e externa? O que vocês
dizem?
Alguns soldados trocaram olhares e riram.
Archibald não estava interessado. Ele falou em seu walkie-
talkie: — Peguem-no.
Um soldado rápido atrás de Nigel disparou um dardo
tranquilizante. Nigel conseguiu chicoteá-lo a tempo de desviar o
projétil com sua telecinese. Porém, ele não conseguiu ser rápido o
suficiente para se defender de outro soldado flanqueador, este
lançando um daqueles colares de choque ligados por um fio. Assim
que o colar estava ao redor do pescoço de Nigel, o soldado apertou
um botão em sua besta que enviou uma explosão de alta tensão até
Nigel.
O corpo inteiro de Nigel se contorceu de dor. Sua cabeça
voltou ao normal e ele deixou escapar um gemido trêmulo.
Pássaros nas árvores voaram em pânico. Greger deixou cair
seu tablet enquanto tentava cobrir suas orelhas, mas já era tarde. O
queixo do coronel Archibald foi ao peito como se ele tivesse sido
atingido. Muitos dos soldados se encolheram e tentaram se abrigar.
Alguns deles descarregaram acidentalmente suas armas na chão.
Apesar da dor em sua cabeça, Nove seguiu em frente. O grito
que surgia de Nigel era incontrolável, alto como uma sirene de
tornado amplificada por um megafone. Ele pulou até o garoto e
rapidamente o empurrou com a mão de metal. Nigel caiu no chão, o
grito enlouquecido finalmente cessando.
— Foi isso, não foi? – gritou Nove, seus ouvidos zunindo. —
Essa era a frequência!
O grogue Nigel olhou para Nove, o pânico lentamente
tomando conta de sua expressão. — Eu não sei! Eu... aquela coisa
estava me dando choque e... e eu perdi o controle!
Greger deu um passo para trás. — Nós fomos... fomos
expostos a alguma coisa?
— Não sei – grunhiu Nove, olhando ao redor. Muitos dos
soldados haviam tirado suas capacetes e massageavam suas
têmporas ou beliscavam as pontas dos narizes. Nove percebeu que
um soldado que estava perto de Nigel limpou um pouco de sangue
de sua orelha.
— Cristo - disse Archibald, massageando o lado da cabeça. —
Qual é o protocolo aqui?
— Voltar para os outros – Nove disse a um dos soldados. —
Traga Taylor Cook aqui. Ela pode curar - ele olhou para a cabine e de
volta para Archibald. — Traga todos os seus homens para dentro.
Qualquer um que estava no alcance do som precisa ser examinado.
Ele observou os soldados. — Alguém se sente tonto? Ou com
sangramentos nasais?
Os soldados, desconfortáveis e sem saber o que fazer,
trocaram olhares. Um deles levantou a mão. — Eu estou, estou me
sentindo um pouco tonto, senhor.
— Eu também - acrescentou outro.
— Rapazes, tenho certeza que não é nada - disse Nigel
suplicantemente. — Eu, hum, essa frequência assassinou apenas
alguns roedores certa vez e nem tenho certeza se foi a mesma...
— Pare de falar – disse Nove. — Merda. Eu sabia que essa
era uma má idéia, Archibald.
— Não coloque a culpa em mim só porque seus alunos não
podem se controlar! - Archibald gritou de volta.
— O quê? - Greger perguntou, inclinando a cabeça para o
lado. — O quê? Eu literalmente não consigo ouvir o que vocês dois
estão dizendo.
Taylor correu até o local junto com o soldado que foi buscá-
la. Seus olhos se arregalaram quando ela viu Nigel no chão,
sangrando pela boca, ainda preso a um colar de choque. Nove
estalou os dedos na frente do rosto dela.
— Preciso que você examine todos esses homens - disse ele.
— Examiná-los? Para quê?
— Para descobrir, tipo, danos cerebrais – Nove respondeu.
— Veja se eles precisam ser curados. Talvez tenhamos sorte, mas...
– ele a encorajou diante dos soldados. — Basta examiná-los. Por
precaução.
— O que está acontecendo? - perguntou o Dr. Goode
enquanto descia da cabana junto com o grupo de pacificadores
entediados que passaram o dia todo protegendo-o sem realmente
ver nenhuma ação. Ele olhou de Nigel atingido para Taylor ocupada
e, finalmente, para Nove. — Aconteceu alguma coisa?
— Você não ouviu o grito? – perguntou Nove.
— É claro que nós ouvimos, mas...
— Isso que ouviram foi a frequência da morte – disse Nove
sombriamente. — Nigel usou sua frequência mortal.
— Acidentalmente! – Nigel grunhiu. Ele esfregou a garganta,
recém-liberto do colar de choque.
— Ele...? – o Dr. Goode olhou fixamente para Nove. — É o
quê?
Antes que Nove pudesse responder, Taylor ofegou e se
afastou de um dos soldados. Ele era jovem – na casa dos vinte –
com um rosto de bebê e uma barba vermelha a fazer, e seus olhos
se arregalaram alarmados com a reação de Taylor.
— O que... o que há de errado? – perguntou o soldado.
Todos ficaram em silêncio e observavam. Taylor tentou
pressionar as mãos nas têmporas do soldado. Seus olhos se
estreitaram em concentração. Ela sacudiu a cabeça de repente e
girou para encarar Nove.
— Ele está... há algo errado. Seu cérebro está - eu não sei – é
como se houvesse uma escuridão? Uma hemorragia talvez? Está
além do que posso lidar.
O soldado visivelmente empalideceu. — Mas... mas eu me
sinto bem. As orelhas estão zunindo um pouco.
— Precisamos levá-lo de volta ao campus – disse Nove
resolutamente. — Todo mundo, vamos.
Como um grupo, soldados e Gardes voltaram pela floresta.
Mesmo que seu grito tenha cessado, todos ficaram longe de Nigel,
com exceção de Taylor. Ela caminhou ao lado dele, cuidando dos
machucados menores que ele havia recebido durante a atividade.
Embora o soldado ruivo parecesse estar visivelmente bem, não
impediu que alguns dos seus amigos o carregassem para fora da
floresta.
Dr. Goode rapidamente alcançou os passos de Nove.
— Desculpe, Nove, mas não entendo o que aconteceu – disse
Malcolm. — O que foi aquilo sobre uma freqüência mortal?
— Eu gostaria que a garota me examinasse, se ela estiver
livre... – Greger disse nervosamente, olhando por cima de seu
ombro para Taylor.
— O que há para entender, Goode? – disse Archibald. —
Você deveria ter enviado um memorando.
— Um memorando? Coronel, não tenho ideia do que você
está falando – protestou Malcolm. — Algum tipo de ruído agudo
capaz de produzir sangramento no cérebro? Eu... hesito em usar a
palavra "absurdo", mas... – ele olhou novamente para o Nove
silencioso. — Nove, o que está acontecendo?
Lentamente, um sorriso sorrateiro atravessou o rosto de
Nove.
A frente, o grupo de alunos cansados apareceu. Muitos
levantaram-se da grama, surpresos ao ver o Garde emergir da
floresta com um completo conjunto de soldados abalados.
Nenhum deles ficou mais surpreso do que Nove, que estava
entre os alunos, no meio de uma conversa com Kopano.
— Que diabos! – disse Nove, em saudação. — Você não
poderia ter esperado eu acabar de mijar? – Nove estava prestes a
dizer mais, porém sua boca se abriu em confusão. Ele estava
olhando para si mesmo do outro lado do gramado.
Archibald, Greger, Goode e todos os soldados se viraram
para olhar para o Nove que os acompanhou para fora da floresta.
Somente Nigel e Taylor não ficaram surpresos. Na verdade, eles
estavam sorrindo.
Em um borrão de movimento, a prótese do braço de Nove
voltou a se transformar em carne, as unhas revestidas de um
lustroso esmalte rosa. Aquela mão se fechou ao redor do cabo de
uma pistola tranquilizante, tirou-a do cinto de um soldado
atordoado e encravou o cano sob o queixo do Coronel Archibald.
Tudo isso aconteceu enquanto sua forma ainda estava em transição
- cada vez mais delicada, diminuindo os músculos, cachos morenos
brotando da cabeça de Nove.
Isabela ficou com uma arma apontada para Archibald. A
outra mão deu uns tapinhas no ombro de Malcolm.
— O refém foi resgatado – declarou. — E também
capturamos o líder inimigo. Eu acredito que isso vale mais de vinte
horas extras de lazer, estou certa?
OS FUGITIVOS
ACADEMIA DA GARDE HUMANA –
POINT REYES, CALIFÓRNIA

ma oisa no momento em que Lofton a rejeitou no time dele. Ran


reconheceu o brilho no olhar de Isabela – metade competitiva, me-
tade vingativa.
Ela aprovou.
O plano tomou forma quando o Time Lofton estava sendo
dividido pelos pacificadores. Isabela iria tomar a forma do professor
Nove. Com a ajuda de Nigel, ela iria plantar a história sobre a “fre-
quência mortal” do Legado dele. Taylor iria aparecer no final e con-
firmar os rumores após seu Legado falhar.
— Nós vamos ganhar sem nem termos que lutar – Isabela
declarou.
Nigel bufou. — Claro, com exceção da minha pessoa, né?
Um contra o time todo.
— Pare de reclamar e aja como um homem – Isabela
respondeu, gesticulando com as mãos.
— Será que estaremos trapaceando de alguma forma? –
Taylor perguntou.
— Não! – Isabela respondeu rapidamente. — Eu não ouvi
citarem nenhuma regra. Então como pode ser trapaça?
Ran permaneceu em silêncio durante a discussão, pelo
menos até Nigel olhar questionador na direção dela.
Solidariamente a ela, Nigel havia anunciado que não participaria da
competição. Ele não sabia como agir em relação à renúncia do
Legado dela – Nigel estava tentando apoiá-la, mas ele ainda amava
usar seus Legados. Apesar de todo seu cinismo, ele ainda queria ser
um herói. Ano passado, ele foi o primeiro voluntário a se juntar com
a Garde original na luta contra os Mogadorianos. Deixando de lado
seu próprio voto quanto a usar seu Legado, Ran nunca negaria a
seu amigo a oportunidade de participar dos Jogos de Guerra – algo
que ele claramente queria fazer.
Ran assentiu com a cabeça para Nigel. — É um bom plano.
Você deveria executá-lo.
Todos sorriram, especialmente Isabela, com a aprovação
dela.
Agora, tudo o que eles precisavam fazer era esperar que o
professor Nove se afastasse de Archibald e Greger.
Sem camisa, Kopano estava no sofá da sala comum e socava o
ar. — Qual é o nome dessa banda? – ele gritou para ser ouvi-
do através da música que explodia do iPod de Nigel.
— The Dead Kennedys, amigo – Nigel respondeu, já esco-
lhendo a próxima música de sua coleção.
— Eu não consigo entender nada do que eles dizem! –
Kopano gritou.
— Eu sei! Não é hilário?
— É! Me faz querer jogar esse sofá pela janela!
A porta de sala abriu de repente. Isabela entrou,
dramáticamente cobrindo as orelhas. Taylor e Ran chegaram
atrás dela.
— Ugh, desligue essa música horrível – Isabela reclamou.
Com um sorriso malicioso, Nigel usou seu Legado para
conter a música. O grito dos Dead Kennedys foi reduzido a um
zumbido contínuo, como se estivesse saindo de um par de fones
de ouvido simples. Ele se abaixou na cadeira e olhou para as
três garotas. Enquanto isso, Kopano pulou do sofá e começou a
procurar sua camisa.
— Estamos interrompendo algo? – perguntou Taylor com
um sorriso.
— De modo algum, claro que não – Nigel piscou para
Ran. — É uma ocasião rara para nós sermos agraciados por
todas as três amáveis senhoritas do quarto 308. A que devemos
o prazer?
— Oh, pare de flertar quando você não quer de
verdade – Isabela disse com desdém. Ela colocou as mãos nos
quadris, examinando o ambiente de vida bagunçado dos
meninos. — É realmente nojento aqui.
— Eu já iria começar a limpar – disse Kopano,
injustamente intimidado. Ele começou a reunir algumas roupas
soltas. Isabela deu uma sacudida das mãos.
— Pare com isso – disse ela. — Tarefas mais tarde. Hoje
à noite, vamos sair.
Nigel inclinou-se para a frente, cotovelos apoiados nos
joelhos. — Como assim?
Isabela explicou o plano para fugir da Academia. Seu
tom deixou claro que a ideia dos meninos se juntarem à elas
era uma conclusão inevitável.
— Ora, ora, ora – disse Nigel. Ele olhou para Ran. —
Você faz mesmo parte disso?
Ran cruzou os braços. — Nós estamos encarcerados aqui
faz muito tempo, não é?
— Com certeza, eu poderia pedir meia cerveja – disse
Nigel, seu sorriso torto. — Quando nós saimos?
— Bem, à noite – disse Isabela. — Obviamente.
— Eu sempre quis conhecer os Estados Unidos – disse
Kopano sonhadoramente. Ele finalmente encontrou uma camisa
que estava limpa o suficiente e a colocou. — Eu pensei que eles
nos mostrariam mais quando chegasseamos à Academia.
Deveria haver passeios.
— Sim. Em vez disso, eles trazem militares para
acabarem com a gente – acrescentou Taylor. — Nós merecemos
uma noite depois daquela provação de hoje.
Kopano sorriu para ela. Ele gostava do brilho rebelde
que ele via nos olhos de Taylor. Ele falou com ela em um tom de
virtude falsa. — É meu dever avisá-la, Taylor, que esta
atividade não parece muito chata.
Ela sorriu para ele. — Não. Não é nada chata.
Naquele momento, todos ouviram um estrondo alto vindo
do quarto de Caleb, seguido por um par de vozes idênticas
sussurrando com agitação. Todos lentamente se viraram para a
porta fechada do quarto. Exceto Isabela. Ela se virou para
olhar Nigel.
— Seu companheiro de quarto louco esteve aqui? O
tempo todo?
Nigel passou a mão por em seu moicano, trocando um
olhar com Kopano. — Nós, ah... Não verificamos.
Isabela pisou forte no chão e gritou para a porta
fechada. — Espião! Saia daí!
Lentamente, a porta do quarto de Caleb se abriu e ele
colocou a cabeça para fora.
— Eu não ouvi nada – ele disse.
Isabela gemeu e balançou os braços. — Esse aqui! Ele é
o famoso tagarela. Devemos amarrá-lo e amordaçá-lo até
voltarmos.
Kopano riu até Isabela virar-se para olhar para ele. —
Espera. Você tá falando sério?
Taylor observou Caleb com cautela, seu estranho
encontro na semana anterior ainda não esquecido. Ran e Nigel,
entretanto, trocaram um olhar sutil. Por sua parte, Caleb
parecia se arrepender por ter caído de paraquedas em todo o
plano. Ele ergueu as mãos.
— Eu não direi nada. Eu prometo – disse ele.
— Não. Ele não é confiável – respondeu Isabela.
De repente, Caleb tropeçou para a frente. Um clone
escondido atrás dele o empurrou para fora do quarto. — Diga
a eles que você quer ir, bobão – o clone sussurrou.
Nigel suspirou e deu um passo à frente. — Caleb,
companheiro, o que conversamos sobre os clones?
Caleb olhou por cima do ombro, depois absorveu o clone.
Isabela estremeceu.
— Desculpe – disse Caleb.
— Nosso colega de quarto tem dificuldades em se
expressar – declarou Nigel, voltando-se para encarar o resto
do grupo. — Um pouco estranho, não é? Ele deve isso a sua
educação rígida e a sua infâmia problemática ou coisa do tipo.
— Hum, não precisamos entrar nesse assuno, obrigado,
Nigel – disse Caleb calmamente.
— Eu presumo que todos aqui temos histórias
semelhantes? – Nigel continuou. — Ou tiveram algum problema
em adaptar-se a esta droga de Academia?
— Eu não sou esquisita – declarou Isabela.
Taylor sorriu. — Você não é?
Isabela olhou para Taylor. — Não.
Kopano encolheu os ombros com alegria, como se tivesse
perdido a maior parte da discussão. — Você deveria vir
conosco, Caleb. Vamos para São Francisco!
— Eu... – Caleb olhou incerto para Isabela. — Quero
dizer, eu iria se...
— Seis é demais – disse Isabela, pisando forte no chão.
— Eu não posso esgueirar um pequeno exército.
— Sim, você pode – disse Ran, quebrando o longo
silêncio.
Isabela olhou para Ran. A menina japonesa olhou
fixamente de volta, impassível. Depois de alguns segundos,
Isabela cedeu, jogando seus cabelos para trás.
— Tudo bem – disse ela. — Ótimo. Eu farei isso porque
meu coração é grande e cheio de caridade.
ALVO #4
MAR A VISTA - CALIFÓRNIA

rangeu seus dentes até sua mandíbula começar a doer. A sala fedia
– uma mistura de suor com fumaça de cigarro. Suas pernas doíam
por ele ter ficado em pé, mas ele se recusava a se sentar com os
outros ao redor da mesa de jantar desbotada. Não até o Reverendo
Jimbo ter terminado com seu estudo da Bíblia.
Ele odiava o Reverendo Jimbo.
Ele odiava a mobília nojenta daquele lugar.
Ele odiava os americanos.
Ao fundo, o Reverendo Jimbo lia uma passagem lentamente.
Einar observou o velho homem sem escutar – cabelo grisalho fino
caindo até a metade de sua nuca, cicatrizes no rosto, os olhos relu-
zentes de um crente. Um grupo de seguidores do Reverendo Jimbo
se amontoou ao redor dele, extasiados, prestando atenção, embora
Einar tenha percebido que o reverendo poderia estar lendo qual-
quer coisa – O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa – por exemplo,
um dos livros favoritos da infância de Einar – e eles estariam ouvin-
do como se fosse religioso.
Todos os seguidores de Jimbo tinham a mesma tatuagem
estúpida. Uma foice cortando uma serpente, formando um círculo.
Não se precisa pensar muito no simbolismo.
Os Ceifadores, eles se intitulavam.
Einar olhou ao redor do trailer. Haviam pregados nas paredes
vários pedaços de jornais sobre a vida extraterrestre, mapas feitos à
mão sobre avistamentos de Óvnis e fragmentos da Bíblia. Empilha-
dos contra uma das paredes havia um mural com rifles.
Essas pessoas não eram profissionais. Comparando-as com
as pesquisas e recursos da Fundação, o grupo de Jimbo era cômico.
Embora eles olhassem para ele como se fosse uma criança,
Einar sentia falta da eficiência de Jarl e seus mercenários de Blacks-
tone. Eles foram banidos das operações no solo americano, o que
significava um grande risco tentar trazê-los para os Estados Unidos
para participarem dessa operação. Seus empregadores tiveram que
usar os recursos que estavam disponíveis. Nesse caso, a pequena
organização que acreditava que os Lorienos eram demônios feitos
de carne e osso e que qualquer humano que eles tocaram foram
irreparavelmente corrompidos.
Ele e Rabiya estavam sozinhos nessa. Um risco calculado pela
Fundação, Einar supôs. Mesmo com a adição do Garde Terrestre
italiano que podia curar, os patrões ainda precisavam de mais poder
de cura. Einar sentiu que o problema estava se tornando desespero.
Se os Ceifadores soubessem realmente quem Einar e Rabiya
eram, eles certamente tentariam matá-los. Einar percebia o jeito
que Jimbo e alguns dos seus seguidores olhavam para ele. Eles já
tinham suspeitas. Mas a presença dele havia chegado com uma ge-
nerosa contribuição para a igreja móvel do reverendo, tanto em
dinheiro quanto em armas. Sem mencionar que Einar os prometeu
violência, deu-lhes propósito. Isso assegurou que os Ceifadores não
ficassem xeretando muito sobre ele e sua parceira. Pelo menos até
agora.
As armas que foram fornecidas por Einar não eram como
nada que os Ceifadores já tivessem visto antes. Elas foram
projetadas especificamente para lutar contra a Garde e estavam
atualmente disponíveis apenas para agências governamentais
escolhidas à dedo. Para as agências governamentais escolhidas e
para a Fundação. Einar e Rabiya estavam se apresentando como
representantes da Sydal Corp, a fabricante de armas, passando o
tempo com os Ceifadores para que eles pudessem testar a
tecnologia anti-Garde. Isso fez com que os Ceifadores se sentissem
especiais.
— Essa é uma corporação multinacional cristã, estão ouvin-
do? – o reverendo Jimbo havia dito para seus seguidores quando ele
apresentou Eirnar. — Não estamos apenas irritando o vento aqui.
Os poderes estão começando a aparecer.
Que Einar e Rabiya eram um pouco jovens demais para
representar um promitente fabricante de armas como a Sydal Corp
não pareceu ocorrer aos Ceifadores. E que ambos eram obviamente
estrangeiros também não levantou nenhuma bandeira vermelha.
Jimbo havia sublinhado apenas a multinacional, afinal.
E qual lugar melhor para testar essas armas do que aqui, na
costa da Califórnia? Eles só tiveram que esperar um alvo adequado
aparecer. Um retardatário. Isso foi o que Einar havia dito a Jimbo e
aos outros, de qualquer forma.
Eles não precisavam saber que ele e Rabiya estavam
esperando por alguém em particular.
Einar arrancou um pedaço de fiapo do seu botão preto. Os
Ceifadores haviam emprestado a eles o que Einar considerava trajes
pós-apocalípticos tolos – couro, máscaras de gás, bandanas
proibidas. Ele os fez companhia usando um terno cinza fino e
mocassins. Apesar da preponderância de mofo no banheiro
apertado do trailer do reverendo Jimbo, Einar conseguiu ficar
impecavelmente limpo. Ele manteve os cabelos castanhos claros
com o penteado que os separavam dos lados. Não havia uma
porção de sujeira debaixo das unhas.
Ele e Rabiya estão aqui há uma semana. Vivendo entre os
vermes. Esperando.
Um walkie-talkie zumbiu, ganhando vida. — Estou vendo um
que vai à sua direção – disse a voz rouca de um Ceifador. Diferente
do reverendo, Einar não se incomodou em aprender nenhum dos
nomes deles. — Furgão branco. Parece uma outra operação de
abastecimento.
Einar rapidamente pegou sua mala. Ele se virou para o
reverendo e seus discípulos, que haviam parado a leitura.
— Eu vou dar uma olhada – disse Einar. — Preparem-se.
— Com a orientação do Senhor, estamos sempre prontos –
respondeu o reverendo. Ele fez um gesto para um dos Ceifadores –
um homem jovem e musculoso com cabelos pretos lisos – para se
juntar a Einar. O reverendo sempre dava um jeito para que alguém
o observasse.
Einar seguiu para fora, o ar fresco da noite se tornando um
alívio após os odores abafados do trailer. Seu acompanhante o
seguiu. Do lado de fora havia mais uma dúzia de Ceifadores e suas
motocicletas. Eles haviam pulado o estudo da Bíblia para beber
cervejas e grelhar o que provavelmente eram bifes, mas Einar
imaginava ser esquilos.
O acampamento deles estava em um cume que tinha vista
para a estrada cênica de Mar a Vista. Nas décadas anteriores a
Academia locar este pedaço da Califórnia, Mar a Vista era popular
entre turistas e surfistas.
Agora, de acordo com a fonte da Fundação dentro da
Academia, essa era a rota que os pacificadores usavam quando
queriam viajar sem serem observados. Ao contrário da vizinha
Shoreline Highway, esta estrada era isolada. Normalmente, sem
tráfego. Perfeito para viagens discretas, mas também ótima para
uma armadilha.
Graças à sua fonte, Einar sabia exatamente onde os pontos
de controle de segurança da Academia estavam localizados. Os
Ceifadores mantinham um punhado de motoqueiros que pareciam
mendigos por perto, longe o suficiente para evitar a detecção, mas
perto o suficiente para observar as idas e vindas. Foi um deles que
falou no rádio.
Além disso, havia uma pequena equipe mais ao sul na
rodovia, pronta para criar um obstáculo ao comando de Einar.
Rabiya estava lá embaixo, supervisionando essa parte da operação.
Se descobrissem que eram da Garde e os Ceifadores
partissem para cima, era melhor que Einar tivesse com a maior
parte do grupo. Ele poderia lidar com eles. A fonte de Einar
assegurou à Fundação que o alvo fez visitas frequentes a São
Francisco, onde ela usou suas habilidades em um hospital local. Ela
viria por aqui. Com toda certeza, ela estaria acompanhada por
pacificadores e alguns dos funcionários da Academia. Todos são
dispensáveis.
Sempre que um veículo saia da Academia pela Mar a Vista,
eles verificaram. Até agora, não houve sinal de seu alvo.
Eventualmente, os pacificadores detectariam a presença
deles. Eles não podiam acampar aqui para sempre sem atrair a
atenção. Todos os dias, muito para o desgosto de Einar, o número
de Ceifadores aumentara. A palavra estava se espalhando, um
pequeno exército sendo formado. A atmosfera ao redor do terreno
do reverendo ficou cada vez mais parecido como uma festa. Mas
Einar podia dizer que os Ceifadores estavam ficando inquietos.
Em breve, eles vão querer alguma ação, seja com a
aprovação de Einar ou não. Ele já ouviu os idiotas ponderando uma
invasão à Academia. Muitas conversas ousadas.
A operação teria que ser abortada se os Ceifadores se
tornassem demasiado indisciplinados. Ele não havia sido enviado
aqui para um ataque sem sentido à Academia.
Toda a missão estava sendo mais arriscada do que Einar
esperava. Mais arriscado, ainda, do que foi sequestrar o chique
garoto italiano nas Filipinas. Atuar tão perto da Academia iria trazer
certas consequências. Com certeza seus patrões sabiam disso.
Provavelmente executaram dezenas de análises sobre o custo-
benefício.
Adquirir o alvo valia a exposição.
E, se tudo correr bem, toda a responsabilidade da operação
simplesmente cairá sobre os Ceifadores.
Três dias atrás foi o décimo oitavo aniversário de Einar. Ele
“comemorou” em meio aos cretinos fedorentos. Ele não contou a
ninguém, nem mesmo para Rabiya. Como um presente atrasado,
ele esperava ver alguns desses Ceifadores morrerem.
Einar acelerou-se em direção ao cume com o Ceifador que o
acompanhava. Chegando lá, ele se agachou na grama, com cuidado
para não sujar seu terno. Ele abriu sua mala e pegou os óculos. Eles
eram grandes e Einar se irritava com os elásticos que ficavam presos
na orelha.
— Aqui, deixe-me ajudar – disse o Ceifador. Ele endireitou a
alça na parte de trás da cabeça de Einar antes que ele pudesse detê-
lo.
Einar se virou para observar o Ceifador. Seus olhos pareciam
saltados e enormes com os óculos de proteção.
— Obrigado – disse Einar com frieza.
— Sem problema – disse o cara. — Esse sotaque. Você é
russo ou o quê? Me desculpa a pergunta.
— Islandês – respondeu Einar.
Ele se virou para observar a estrada, esperando a van
aparecer. Os óculos não tinham visão noturna. Eles não ampliavam
a visão de Einar. Ele olhou para a escuridão.
Se seu alvo entrasse em seu caminho, ele saberia.
— Nunca conheci ninguém da Islândia antes – continuou o
Ceifador. — Isso é legal.
— Qual o seu nome? – perguntou Einar.
— Silas.
— Você fala bastante, Silas – observou Einar. — O escuro te
deixa nervoso?
Silas riu. — Óbvio que não cara. Estou apenas conversando.
Einar se concentrou no jovem. As palmas de Silas começaram
a suar. Seu estômago embrulhou, como se fosse um nó. Seu
coração estava batendo rápido agora. Houve movimento na grama?
O que eram aquelas sombras? Einar sorriu finamente quando sentiu
que Silas se encolhia um pouco mais perto dele, como se fosse uma
proteção.
— Na verdade, é um pouco estranho aqui – disse Silas, sua
voz tremendo. — Merda, cara. Estou me sentindo estranho.
— Fique calmo – disse Einar, e parou de olhar para o
Ceifador. Era tão fácil colocar o medo nas pessoas quando eles não
sabiam o que estava acontecendo.
Os faróis apareceram na distância. Einar voltou sua atenção
para a estrada abaixo. A van se aproximou...
— O que...? – Einar murmurou.
Ele tocou o lado de seus óculos com o calcanhar da mão. O
que ele viu não pareceu possível. Ele verificou o diagnóstico no
canto inferior esquerdo da tela. Tudo parecia normal; as baterias do
óculos estavam totalmente carregadas.
A leitura tinha que estar correta.
Os lábios de Einar se curvaram em um sorriso confuso.
Através dos óculos, ele observou seis pontos vívidos de energia azul
passando na estrada.
Ele puxou o walkie-talkie do quadril. — Rabiya?
Sua parceira respondeu um momento depois, sua voz suave
como sempre. — Sim, Einar?
— Há seis indo em sua direção. Confirme se o alvo está entre
eles antes de se envolver.
— Sim, Einar.
Calmo, Einar guardou de volta os óculos na mala. Ele
percebeu os olhos de Silas sobre ele, a boca dele aberta.
— Você disse seis, cara? – Silas perguntou. — Seis daquelas...
coisas lá embaixo na van?
— Sim. Seis deles, sem qualquer escolta – respondeu Einar.
Ele levantou e seguiu de volta para o acampamento. — Seus
homens devem se armar e se preparar para se envolver.
TAYLOR COOK
MAR A VISTA – CALIFÓRNIA

assim que as luzes traseiras apareceram na vista.


Eles estavam dirigindo em uma estrada ao sul da Academia.
Provavelmente era linda à luz do dia, porém era vazia e sinistra à
noite. Taylor não conseguia entender de onde vinha a ansiedade. Ela
cresceu em lugares vazios e grandes como esse. Ela nunca se sentiu
nervosa com relação a extensos espaços solitários.
Isso foi antes do ataque em sua fazenda. Antes dos pesadelos.
Isabela ligou o rádio. Música pop que parecia estar em
desacordo com a noite. Nigel concordava.
— Desligue esse lixo – ele reclamou várias vezes.
— Eu sou a motorista – respondeu Isabela. — Isso significa
que eu escolho a música.
— Merda, me deixe dirigir então.
— Não. Você mataria todos nós. Dirijir no lado errado da
estrada ou algo assim. Ou envenenar nosso espírito com seu terrível
punk rock.
— Ah, seu espírito já está envenenado o suficiente, querida.
— Você deveria ampliar seus horizontes, Isabela – disse
Kopano. — A música de Nigel é fantástica – Isabela lhe lançou um
olhar irritante e ele levantou as mãos. — O que você está ouvindo
também é fantástico.
Taylor olhou por cima do ombro. Ran sentou-se de pernas
cruzadas na parte de trás, a estrada acidentada não perturbava sua
meditação. Caleb se sentou ao lado dela, sua mão segurando uma das
tiras de couro, para que ele não perdesse o equilibro sempre que
Isabela virava uma curva muito rápido. Ele a estava observando.
Taylor ainda não sabia o que pensar dele. Será que ele teve uma
paixonite por ela? Ele estava mentalmente perturbado? Ele era uma
espécie de garoto desonesto do Centro-Oeste? Ela captou a atenção
dele e imediatamente se preocupou com a possibilidade de seu olhar
ser mal interpretado.
— Tudo bem? – Caleb perguntou a ela. Ele deve ter
percebido seu mal-estar no rosto.
— Sim – ela respondeu, e forçou um sorriso.
— Os Estados Unidos é muito maior do que eu pensava –
observou Kopano alegremente. Ele se encaixou entre Isabela e
Taylor, sua bunda escorada no apoio de braços do banco de Isabela,
enquanto seu braço estava na parte de trás do banco de Taylor. —
Você sabia que eu costumava pensar que alguém poderia dirigir de
Nova Iorque para a Califórnia em um dia?
Taylor riu enquanto olhou para ele, relaxando um pouco. —
Talvez, se você dirigisse igual a Isabela.
Isabela assentiu com firmeza. — Sim. Eu poderia fazer isso.
— Já estamos chegando? – perguntou Kopano.
— Deus, você parece uma criança – Isabela criticou. —
Faltava uma hora quando você perguntou isso cinco minutos atrás.
Faça a matemática, garotão.
— Não a faça capotar o carro – disse Taylor com um sorriso
malicioso.
— Olhem! – disse Kopano, apontando para o para-brisa. —
Um acidente?
As luzes traseiras.
Kopano foi o primeiro a vê-los. Em frente, um furgão estava
estacionado no meio da pista. O capô apareceu, os faróis estavam
acesos, duas silhuetas visíveis enquanto olhavam para o motor. Uma
onda de vapor ou fumaça emanava do capô aberto.
Imediatamente, Isabela pisou nos freios. Enquanto a van
diminuia, Isabela abaixou a música.
— Parece que fundiu – disse Caleb.
— Deveríamos ajudar – Kopano propôs.
— Eu realmente conheço algumas coisas sobre carros –
acrescentou Caleb. — Costumava andar com os mecânicos da base...
— Deveríamos realmente parar? – perguntou Taylor,
envergonhada pelo mal-estar trêmulo em sua voz. — Nós não
conhecemos essas pessoas.
Kopano deu-lhe um olhar surpreso. — Sério? Vamos
simplesmente passar por eles?
— Preciso lembrá-lo de que não deveríamos estar longe da
Academia? – disse Isabela bruscamente. — Em São Francisco, nos
misturaremos na multidão. Mas aqui fora? E se for alguém da escola?
Caleb observou os faróis enquanto a van diminiua e
aproximava. — Se eles são da Academia, provavelmente irão nos
reconhecer, de qualquer maneira.
Nigel olhou para Ran. Ela olhou através do para-brisa com
uma sobrancelha arqueada, os lábios franzidos. Ele se virou para os
outros. — Se eles não são da Academia, então, o que eles estão
fazendo aqui?
— Dirigindo – disse Kopano com uma risada. — Indo para a
praia? Fazendo trilhas? Vocês estão sendo paranóicos.
— Eu pensaria melhor já que queremos evitar sermos vistos
perto da Academia – disse Ran.
Isso resolveu o assunto para Isabela. Ela se inclinou sobre o
volante. — Todo mundo se abaixa e eu vou nos levar adiante.
Antes que Isabela pudesse fazer isso, uma das pessoas que
estava junto ao furgão se jogou na frente dos faróis e acenou. Taylor
relaxou um pouco quando viu que era apenas uma garota, não mais
do que alguns anos mais velha que ela. O rosto bonito da menina
estava emoldurado por um hijab, um tecido escuro e deslumbrante.
Ela usava um vestido que a cobria do pescoço ao tornozelo,
obviamente caro e na moda. Completamente normal, pensou Taylor.
— Ei! Você pode nos ajudar? – gritou a garota, de pé no
caminho.
Kopano riu. — Uma menina necessitada! E vocês sendo
cruéis ao querer fugir da situação.
Isabela estacionou o carro e abaixou o vidro. A menina se
aproximou, sorrindo docemente enquanto ela ficou na ponta dos pés
e olhou dentro da van.
— Obrigado, obrigado – disse ela sem fôlego. — Meu pai e
eu estamos presos aqui há quase uma hora. Nós só precisamos de
uma mãozinha.
— Eu não sei o que é isso – disse Isabela.
Enquanto elas conversavam, Taylor percebeu não estar
olhando para a garota, mas para a estranha figura que supostamente
era o pai dela. Ela não pôde ver muito, além de perceber que ele
tinha um moicano. Enquanto ele mexia no motor, seus braços
brevemente entraram na luz. Taylor viu uma estranha mancha de
gordura no antebraço dele. Ela se inclinou para frente, tentando
conseguir uma melhor visão...
— Vocês têm cabos? – perguntou Caleb. Ele se levantou e
abriu a parte de trás da van. — Espere. Deixa eu dar uma olhada.
Quando Caleb passou por ele, Nigel se pressionou contra a
janela. Ele inclinou a cabeça. Algo se movia lá fora. Ele estava certo
disso. Ele colocou as mãos em seus olhos, tentando ver através do
vidro, apesar da escuridão.
— Ei, Ran... – ele disse calmamente.
A menina japonesa se levantou e foi até o lado dele.
— Alguém está lá fora – sussurrou Nigel.
Enquanto Caleb saia da parte de trás da van, a menina acenou
para o pai. — São eles, pai! Eles vão nos ajudar! "
São eles. Que maneira estranha de dizer isso. As palavras da
menina desencadearam o detector de besteira sintonizado de Isabela.
Ela lançou um olhar na direção de Taylor, mas ela estava muito
ocupada olhando para o "pai" da menina para perceber.
O homem se levantou da posição encurvada sobre o furgão.
Ele acenou para sua filha e seu braço entrou completamente na luz.
Taylor imediatamente reconheceu o símbolo tatuado no antebraço.
Círculo. Serpente. Foice.
— Isabela! Nós temos que ir! – Taylor gritou.
Mas era tarde demais.
Enquanto Taylor se virava para Isabela, em pânico, a outra
garota tirou suavemente uma pistola das dobras do vestido e
disparou no pescoço de Isabela.
EINAR
MAR A VISTA – CALIFÓRNIA

escura, indo na direção do caos. Gritos, barulho de motores rugindo, o


zumbido eletrônico do inibidor-2a. Os faróis de dúzias de motocicle-
tas acenderam, criando um efeito de luz eletroboscópica na outrora
noite tranquila. Einar coçou o queixo, pensativo. Talvez ele devesse ter
esperado por uma oportunidade melhor para fazer seus movimentos.
Os Gardes da Academia estavam encurralados. Eles desceram
da van que estavam dirigindo, afastando-se da primeira onda de Ceifa-
dores. Enquanto isto, uma dúzia de motoqueiros pilotava ao redor da
área, cercando-os.
Se ele estivesse com o grupo de Blackstone em vez desses trou-
xas do trailer, esse trabalho já estaria terminado.
O reverendo Jimbo tinha mais ou menos cinquenta homens a
seu dispor. Einar estava ficando preocupado com a crescente quantida-
de deles.
De repente, eles não pareciam suficientes.
— Eu pensei que você tinha dito que havia apenas seis deles! –
o reverendo Jimbo gritou nos ouvidos de Einar. O velhote andava per-
to dele, nervoso, porém animado, brandindo uma arma cromada. Silas
estava do lado dele, observando a briga com os olhos arregalados.
Apenas. Einar bufou. Como se seis Gardes, mesmo mal treina-
dos, pudessem ser derrotados facilmente. Ótimo. Não demoraria mui-
to agora. De um jeito ou de outro, a missão dele na América estava
acabando. Depois daquela noite, ele iria poder lavar suas mãos e se
livrar dos Ceifadores e da ignorância deles.
— Há apenas seis deles – Einar respondeu para o reverendo.
— Então por que eu vejo... – o reverendo estreitou os olhos,
tentando contar a distância. — Um bando deles?
— Um deles se duplica – Einar disse.
— Ele faz o quê?
— Ele cria clones de si mesmo.
— Essa é a coisa mais demoníaca que eu ouvi até agora.
Einar suprimiu um suspiro. Ele havia lido o arquivo de Caleb
Crane e achou seu Legado invejável. De acordo com seu dossiê, Caleb
era autoritário e seguia as instruções prontamente. Estranho, então,
encontrá-lo aqui, aparentemente envolvido na tentativa de escapar da
Academia. Einar lembrou sobre alguma menção de instabilidade no
menino. Possível desordem de personalidade múltipla. Isso faria senti-
do, considerando o Legado dele...
— Se você conseguir isolar o verdadeiro garoto e mantê-lo in-
consciente, os clones vão desaparecer – Einar disse.
— Eles vão fazer muito mais do que render aquela abominação
– o reverendo respondeu. Ele pegou sua arma.
Einar se virou para olhar para o reverendo.
— Eu te disse. Nada de armas letais até eu conseguir o que vim
buscar.
— Certo, certo. Sua preciosidade – o reverendo Jimbo disse
com um grunhido. — Filho, estou grato por todo apoio e tudo mais,
mas eu não posso lhe prometer que meus garotos não vão se cansar de
ficar cercando os demônios com seus brinquedinhos.
Einar se aproximou do reverendo, focou seu poder e provocou
uma sensação de medo no velhote. Intimidação. Se ele pressionasse
mais, poderia fazer o reverendo se ajoelhar no chão e rezar para ele.
Mas não era hora para isso.
Com uma mão trêmula, o reverendo Jimbo abaixou a mão que
segurava a arma.
— Eu vou... eu vou assegurar que meus homens não passem
dos limites – ele disse, mansinho. Ele enviou Silas e outro Ceifador
para a batalha. — Me desculpe – ele murmurou para Einar, claramente
incerto do motivo pelo qual estava se desculpando.
— Hum – respondeu Einar de forma incomparável. Ele se vi-
rou para observar um motociclista robusto se esgueirar em um dos
Calebs e atirar um dardo do Inibidor-2a nele.
O Inibidor versão 2a. Uma das melhores criações da Sydal
Corp. Em seguida, disparou um colar feito de uma liga exclusiva à base
de mercúrio que se encaixou em torno do pescoço do alvo e fechou a
auto solda. Se derrubado – digamos, por telecinese - os sensores da
arma automaticamente são recalibrados na garganta do alvo, fazendo
uma pressão forte na artéria carótida. Uma vez anexado, o colar per-
maneceu conectado à arma por um fio de tração de alta resistência,
enviando choques para o alvo, através de comandos. As explosões elé-
tricas são suficientes para interromper qualquer Legado.
Einar saberia; ele estava presente na recreação, muitas vezes, du-
rante o teste da arma. Ele lembrou amargamente como uma versão
inicial quase o havia decapitado.
O Inibidor disparado pelo motociclista acertou o pescoço de
Caleb. Ele viu o garoto convulsionar por conta do choque. Então, o
colar caiu inutilmente no chão e Caleb havia desaparecido. Um clone.
Não era o verdadeiro.
Enquanto o motociclista puxava de volta seu inibidor, ele foi
atingido no peito por um soco. O motociclista voou para trás, bateu
contra o furgão que a Garde estava dirigindo e desmaiou.
Foi Kopano Okeke quem deu o soco. O conhecimento de Ei-
nar sobre ele estava longe de ser completo. A natureza exata dos Lega-
dos do nigeriano era desconhecida pela Academia e, portanto, desco-
nhecida para o empregador de Einar. Einar não precisava de relatórios
que diziam que a força de Kopano fora aprimorada. Ele podia ver isso
sozinho.
Isso seria útil.
Mais dois Ceifadores armados com armas tranquilizantes da
Sydal Corp dispararam contra Kopano. Os dardos caíram inofensiva-
mente após atingi-lo. Um momento depois, um orbe incandescente
aterrissou nos pés dos dois Ceifadores. Eles mal tiveram a chance de
perceber o projétil antes de ele explodir, jogando os dois motoqueiros
para o acostamento da estrada.
Ran Takeda. E se ela está aqui, então é provável que Nigel Bar-
naby também esteja. Combatentes qualificados, sobreviventes do mas-
sacre em Patience Creek. Einar talvez não tivesse iniciado esta operação
se ele soubesse que eles estavam presentes. A dupla se agachou para se
proteger na parte de trás do furgão, usando as portas como escudo.
Enquanto Einar observava, Ran pegou um punhado de cascalho e os
carregou com seu Legado. Ela jogou as pedras em outro grupo de Cei-
fadores, a explosão resultante derrubando-os de suas motocicletas. A
informação que chegou à Fundação era de que Ran tinha jurado parar
de usar seus Legados. Aparentemente, ela escolheu esta noite para fazer
uma exceção.
— Os meus homens estão sendo destruídos lá! – o reverendo
Jimbo gritou.
— Estão. Eles são demasiado mal treinados – Einar respondeu
enquanto ele continuava a observar o campo de batalha.
Lá. Perto da porta do lado do motorista da van, Einar podia
ver um trio de três Calebs de pé ombro a ombro. Um muro humano.
Eles estavam protegendo alguém. Através de suas pernas, Einar podia
ver um corpo na estrada, uma segunda pessoa agachada sobre ele. Uma
pessoa ferida e alguém a curando.
— Eu vejo você, Taylor – disse Einar a si mesmo. Ele esperou
o momento em que um Ceifador em uma motocicleta passou, então,
atravessou o perímetro e dirigiu-se para a batalha.
— Onde você está indo? – o Reverendo Jimbo gritou.
— Terminar isso.
O tempo era a essência. Nessa hora, os Ceifadores frustrados e
assustados estavam abandonando as armas não letais que ele havia for-
necido e estavam se voltando para métodos de agressão mais convenci-
onais e mais mortíferos. Embora quaisquer lesões certamente seriam
atribuídas aos Ceifadores, um grupo da Garde morto não seria algo
bem-vindo. Esta missão já trouxe muita atenção.
Um grupo de Ceifadores armados com bastões de baseball e es-
tacas de ferro seguiu na direção de Kopano.
Ele bloqueou cada um dos ataques com o antebraço ou com o
ombro – mas, em uma das vezes, com o rosto dele. Nenhum dos gol-
pes o machucou. Einar observou, um a um, Kopano derrubando os
Ceifadores com poderosos golpes.
— Nos deixe em paz! – o jovem gritou, um tom de medo em
sua voz, apesar da sua invulnerabilidade. — Nos deixe...!
Kopano hesitou. Ele notou Einar caminhando em sua direção.
Uma visão estranha - um jovem de terno e gravata, segurando uma
pasta, caminhando calmamente através da briga.
Enquanto isso, um Ceifador avançou em Kopano por trás. Ele
carregava uma espingarda antiquada. Einar se perguntou se isso seria
suficiente para furar a pele grossa de Kopano.
Todos os Gardes estavam ocupados com outros Ceifadores.
Einar suspirou. Ele alcançou sua mala, tirou a arma e disparou uma
explosão concentrada de energia. Kopano se abaixou enquanto o raio
vermelho passava por cima de sua cabeça e acertou bem no rosto do
Ceifador.
A arma de Einar estava longe de ser não letal; o Ceifador caiu
morto, seu rosto virou uma bagunça carbonizada. O canhão era de
origem mogadoriana, um pequeno item de colecionador da invasão.
Einar apreciava qualquer chance de usá-lo.
— Quem é...? – Kopano começou a perguntar, cerrando seus
punhos.
— Eu sou seu único amigo – disse Einar, aproximando-se. Ele
alcançou Kopano com seu Legado e encheu o menino de sentimentos
de carinho e confiança.
— Certo – disse Kopano. — Sim! Bom te ver!
— Todas essas pessoas querem nos machucar. Todos eles –
disse Einar. — Ferre com eles antes que eles possam nos ferrar.
Raiva. Einar a fez fluir através de Kopano. Foi uma simples re-
ação química: abaixe a serotonina e aumente a adrenalina. Especialmen-
te fácil com os homens, na verdade. Os olhos de Kopano se arregala-
ram, seus lábios se encurralaram em um rosnado feroz, os punhos im-
possivelmente apertados.
Com um rugido, Kopano se moveu e derrubou o Ceifador mais
próximo. Enquanto aquele homem tentava recuperar o fôlego no chão,
Kopano pulou em cima de um Caleb e golpeou o clone com tanta for-
ça que a cabeça girou 180 graus antes de desaparecer.
— Bom garoto – disse Einar.
Manipulação emocional. Não era o Legado mais fascinante,
mas tinha suas utilidades.
Kopano atropelou outro par de clones, e depois derrubou um
Ceifador que fugia. Todos na batalha – Gardes e Ceifadores – estavam
prestando toda a atenção ao nigeriano.
Bem, nem todos.
Einar demorou muito tempo admirando sua obra. Algo caiu
nos seus pés. Uma pedra brilhante.
— Merda – disse ele.
Ele sentiu um puxão na parte de trás de sua jaqueta e deixou
seu corpo ficar leve. Assim que a bomba de Ran explodiu em seus pés,
Einar voou para trás em uma ligação telecinética. Ele pousou na estra-
da, raspando os cotovelos. Ele tinha sido puxado para trás por Rabiya,
que estava escondida atrás do pneu do furgão quebrado que eles usa-
ram como um obstáculo. Um Ceifador inconsciente estava caído ao
lado dela.
Einar se encolheu, limpando uma lágrima no casaco.
— Estou todo sujo – ele reclamou.
— Está. Mas pelo menos não foi explodido em pedaços – Ra-
biya repreendeu.
Os dois se encolheram quando uma motocicleta voou sobre su-
as cabeças, obviamente impulsionada pela telecinese e brilhando com a
energia cinética de Ran. Ela caiu bem no meio dos Ceifadores pilotan-
do em círculos em torno da batalha e explodiu, derrubando alguns
deles de suas motocicletas e fazendo outros se retirarem.
— Isso está indo mal – observou Rabiya. — Nós deveríamos
ter esperado. Teria sido mais fácil levá-la com os pacificadores do que
com esses outros Gardes.
— Imprevistos – Einar respondeu com uma onda desdenhosa.
— Além disso, não sabíamos se eles estavam planejando voltar para a
Academia. Eles poderiam estar fugindo.
Einar olhou por trás do carro. Pela van, a fúria de Kopano esta-
va diminuindo um pouco. Normalmente, demorava alguns minutos
para o controle de Einar se desgastar, mas o ataque de Ran deve ter
abalado seu Legado. Concentrou-se em Kopano e aumentou a sua
adrenalina, a raiva dele, e depois sorriu quando o nigeriano esmiuçou
as cabeças de dois Ceifadores juntos, com uma ferocidade renovada.
— Kopano! Ei! O que você está fazendo?
Deve ser Caleb. O verdadeiro Caleb. Ele ficou na frente do me-
nino maior, tentando acalmá-lo. Ele não poderia saber o que Einar
tinha feito com a mente de Kopano, como levaria tempo para ele se
livrar das manipulações.
Kopano agarrou Caleb pela frente de sua camisa e o jogou para
trás – no para-brisa da van. O vidro triturou como uma teia de aranha
quando Caleb o atingiu, rolou sobre o capô e caiu na parte de trás da
estrada. Um momento depois, os clones que aglomeravam o campo de
batalha piscaram para fora da existência.
— Nós fazemos nosso movimento agora – disse Einar a Rabi-
ya. — Prepare nossa saída.
— Depressa, por favor – disse Rabiya. Ela estendeu as mãos.
Um brilho azul começou a emanar de suas palmas.
Einar saiu de trás do carro, o canhão apontado para frente dele.
Com os clones desaparecidos, ele pôde ver Taylor inclinada sobre um
de seus amigos. Quem era aquela? Ele não sabia e não importava. Ela
estava inconsciente ou morta. Provavelmente morta, com base nas cica-
trizes vermelhas escuras que cobriam seu rosto e pescoço. Um dos
condenados Ceifadores deve tê-la queimado. Taylor estava focada em
derramar energia curativa nela, mas, da perspectiva de Einar, o esforço
parecia em vão.
Enquanto Einar seguia até Taylor, Nigel entrou no meio do
caminho e começou a gritar.
O nível de decibéis era como nada que já experimentara. Ele se
curvou e vomitou, sua cabeça girando. Parecia que seus olhos sairiam
de sua cabeça. Os Ceifadores que permaneceram de pé durante a fúria
de Kopano agora caíram, contorcendo-se e tapando os ouvidos.
O mesmo aconteceu com Kopano. Na verdade, ele foi atingido
com mais força pelo grito de Nigel. O ataque parecia ter ele como al-
vo.
Com a mão trêmula, Einar conseguiu levantar seu canhão ape-
nas o suficiente para acertar Nigel na perna. A dor abrasadora o sur-
preendeu e interrompeu o grito dele. Nigel caiu de joelhos, mas imedi-
atamente voltou a gritar. Einar agarrou uma pedra com sua telecinese e
atirou na cabeça de Nigel. O golpe não foi suficiente para matá-lo, mas
isso garantiu que ele não causaria mais interrupções sônicas durante
pelo menos alguns minutos.
Einar sentiu uma sensação de puxão nos seus dedos. Um se-
gundo depois, seu canhão foi arrancado de sua mão. Ele olhou para a
direita e viu Ran Takeda. Ao contrário dos Ceifadores, ela ainda estava
de pé. Einar olhou para Rabiya, mas não a viu. Ela deve ter caído
quando Nigel gritou. Einar se ajoelhou com esforço e observou en-
quanto Ran caminhava até ele.
Bang! Bang! Bang!
Uma bala roçou o ombro de Ran. Ela se esquivou para se pro-
teger atrás da van enquanto o reverendo Jimbo entrava em cena, com
sua arma em mãos. Ele veio com um pequeno contingente de Ceifado-
res. Eles pareciam mais preocupados em reunir os feridos do que com
continuar a luta contra a Garde.
Graças à distração do reverendo, Einar conseguiu se levantar. O
caminho até Taylor estava livre. Ela também tinha sido afetada pelo
grito, e estava limpando os olhos, tentando se recobrar para que pudes-
se voltar a curar sua amiga morta.
Einar puxou uma arma tranquilizante de sua mala e atingiu
Taylor no pescoço. Ela caiu.
— Finalmente – murmurou Einar.
Einar ergueu a mão, levantando Taylor com sua telecinese. Pelo
canto do olho, viu Ran espiar com a cabeça por trás da van. Ele dispa-
rou um dardo em sua direção, sem saber se acertou o alvo.
— Rabiya! Você está pronta? – gritou Einar quando ele se vi-
rou. Ele não podia ter certeza de que ela havia ouvido. O zumbido em
seus ouvidos era estrondoso.
A garota estava de pé, pelo menos. Seu lenço estava uma bagun-
ça, havia sangue pingando de um lado dele. Ela deve ter caído e batido
sua cabeça no para-choque do furgão.
Rabiya estendeu as mãos e se concentrou. Um fluxo de energia
azul cobalto fluiu de suas palmas e atingiu o pavimento. Lentamente, a
energia se acumulou em uma pirâmide escarpada de pedra.
Loralite. Rabiya podia produzir essas coisas à vontade. Agora,
tudo o que tinham que fazer era imaginar a pedra escondida no quintal
de Einar, tocar a Loralite e eles estariam fora dessa bagunça.
— Mentirosos! – o reverendo Jimbo gritou. Einar podia ouvir
sua voz em expansão mesmo através do toque intenso. — Nós fomos
infiltrados pelas abominações!
O reverendo viu Rabiya usando seu Legado. Ele provavelmente
também presumiu que Einar era quem estava flutuando Taylor no ar.
O reverendo apontou seu revólver para Einar. Rapidamente,
Einar puxou Taylor para ele, e logo ele estava carregando a menina por
cima do ombro.
O reverendo disparou um tiro. Einar o afastou com sua teleci-
nese.
Ele começou a disparar novamente.
Einar agarrou o braço do homem com sua telecinese e o torceu.
O braço estalou no cotovelo. Jimbo gritou. Ele ainda conseguia puxar
o gatilho.
Mas a arma estava apontada para seu próprio queixo.
O líder dos Ceifadores entrou em colapso, sua cabeça explodi-
da. Seus homens recuaram com terror. Einar não podia negar a satisfa-
ção que sentia por ter feito isso.
Ele alcançou a pedra assim que Rabiya acabou de criá-la. —
Podemos sair daqui? – perguntou ela. Estendeu a mão para Einar. —
Seu quintal, certo?
Uma roda de moto foi lançada com força telecinética e atingiu
Rabiya no estômago.
Ela se dobrou e caiu para trás. Einar olhou por cima do ombro,
viu Ran carregando um objeto, viu Caleb se movimentando no percur-
so da estrada, viu Nigel levantando de novo.
Ele olhou para Rabiya, recuperando o fôlego, agora muito lon-
ge da pedra. Ele começou a usar sua telecinese.
Uma rocha brilhante flutuava em sua direção.
Um dos últimos Ceifadores mergulhou em cima de Rabiya. Ele
a agarrou e esmagou seu rosto no pavimento.
Tudo estava acontecendo muito rápido.
— Me desculpe – disse Einar a Rabiya, embora tenha certeza
de que ela não podia ouvi-lo. Ele tocou a pedra de Loralite e, com
Taylor, se teleportou para a segurança.
ISABELA SILVA
BIG BOX – STOCKTON,
CALIFÓRINA
TAYLOR COOK
UM QUARTO COM VISTA –
HOFN, ISLÂNDIA

minar o que haviam começado lá na Dakota do Sul.


Aquela garota estranha que estava com eles. Ela matou Isabe-
la. Atirou no pescoço dela com algum tipo de veneno que derreteu o
rosto dela.
Não. Não... ela estava em pânico. Acalme-se, Taylor.
Isabela não estava morta, apenas inconsciente. As cicatrizes
no rosto dela não foram resultado da arma da garota; eram as mes-
mas que Taylor havia visto naquela noite no dormitório. Elas eram o
que Isabela estava tentando esconder.
Tudo parecia tão óbvio para ela agora, ao passo que Taylor
relembrava das coisas. Entretanto, naquele momento, ela havia de-
sesperadamente despejado energia de cura no corpo de Isabela. Era
tudo o que ela conseguia pensar em fazer enquanto o caos se desen-
rolava ao redor dela.
— Eu protejo você – Caleb disse, com um trio de seus clones
cercando-a.
E então, Kopano com saliva escorrendo pela boca, irritado e
com raiva – como nada que Taylor tinha visto antes – jogou Caleb
no para-brisa da van. Ele estava fora de controle.
Um grito poderoso fez Taylor ficar zonza. Sentiu uma dor
aguda na parte de trás do pescoço. Isso foi um dardo?
Então ela flutuou. Carregada por telecinese. Era difícil manter
os olhos abertos. Uma pedra brilhante no meio da estrada...
Taylor acordou gritando. Suas têmporas latejavam. Zonza, ela
se sentou em uma cama que não era dela, empurrando lençóis de
seda para fora de seu corpo.
Espera. Lençóis de seda?
Taylor prendeu a respiração e olhou em volta. Ela estava em
uma cama box, os lençóis azuis escuros eram incrivelmente macios,
o colchão mais confortável do que qualquer outro em que alguma
vez dormira. O quarto parecia uma suíte de hotel elegante. Direta-
mente em frente a ela, uma televisão de tela plana pendia sobre uma
lareira decorativa. Uma estante equipada com livros clássicos; uma
mesa de trabalho; uma janela enorme com as cortinas estampadas.
Um incenso de camomila queimava na mesa de cabeceira.
— O quê? – Taylor disse em voz alta. — Que diabos?
Este quarto não parecia nada com a imagem dos Ceifadores.
Eles eram motoqueiros ou camponeses, ou ambos.
Eles não investiriam em cópias de capa dura das obras de Al-
bert Camus.
Cautelosamente, Taylor afastou os pés da cama. Ela usava a
calça de um conjunto de pijama e uma camiseta de algodão. Alguém
tomou a liberdade de trocar a roupa dela. Ela estremeceu com esse
pensamento.
Do outro lado do quarto havia uma espessa porta de madeira.
Taylor foi até ela. Somente quando ela estava bem na frente, perce-
beu que não havia nenhuma maçaneta no lado de dentro.
Ela usou sua telecinese para tentar empurrar a porta. Nem
tremeu. Deve ser reforçada de alguma forma.
Taylor correu para a janela e abriu as cortinas. Ela ofegou.
A vista do lado de fora era de outro mundo. A janela de Tay-
lor percorria um lago da água mais azul que ela já havia visto. Peda-
ços de gelo tremiam na superfície, vapor subindo entre eles, emba-
çando a paisagem. Além disso, havia uma montanha coberta de gelo
– uma geleira? Uma camada de gelo? – que era percorrida por veias
azuladas que brilhavam a luz do sol nebuloso.
Aqui definitivamente não era a Califórnia.
Taylor apertou seu rosto contra a janela, olhando para baixo.
Ela estava no segundo andar. Abaixo, pedras de obsidiana lisas lutam
uma batalha contra montes teimosos de capim pelo controle do solo.
Não havia outra casa à vista. No entanto, ela notou um pequeno
barco a remo encalhado na borda do lago congelado.
Taylor não sabia como tinham trazido ela aqui ou onde ela es-
tava. E também não tinha a intenção de espiar por aí para descobrir.
Ela poderia pular. Encontrar algum local seguro. Ir para casa.
Taylor procurou por uma tranca na janela. Assim como a por-
ta, não havia como abri-la.
Bem, fugir secretamente estava fora de questão. Era a hora de
uma aproximação direta.
Sem hesitar mais, Taylor levantou a mesa para trabalho com
sua telecinese e a jogou contra a janela.
Nem sequer um arranhão.
Os olhos de Taylor se encheram com lágrimas de raiva. A ja-
nela era sólida. Provavelmente a prova de balas. Isso não a impediu
de tentar de novo. E de novo.
Ela bombardeou a janela com a mesa até esta se tornar uma
pequena pilha de madeira no chão aos seus pés. Ela passou seus de-
dos na janela. Macia como os lençóis.
Talvez algo mais afiado seria suficiente?
Enquanto Taylor olhava seu arredor, ela ouviu uma série de
beeps vindos do outro lado da porta.
Alguém estava prestes a entrar.
Rapidamente, ela pegou uma das pernas quebradas da mesa e
a segurou como um taco. Ela avançou para a porta, com a real inten-
ção de atingir quem quer que entrasse. Ela ouviu um ruído hidráulico
e então um som metálico enquanto os pinos do metal reforçado
eram soltos. Taylor levantou sua mão, posicionando-a para trás. A
porta abriu...
A pequena garota gritou quando Taylor avançou sobre ela.
Taylor foi capaz de evitar acertá-la nos últimos segundos. A garota
quase derrubou a bandeja de metal que carregava.
— Não me machuque! – a garota gritou. Ela tropeçou alguns
passos para trás. Taylor, com a boca aberta, brandindo o taco de
madeira, percebeu que ela deveria estar parecendo uma psicopata
por completo.
A garota não parecia ter mais de dez anos. Ela usava uma
blusa branca e uma longa saia preta. Ela era pálida, de cabelos escu-
ros, com os olhos arregalados de medo. Sobre sua bandeja havia um
copo alto de água, alguns comprimidos de Advil e uma muda de
roupas meticulosamente dobradas.
— Quem é você? – embora o tremendo esforço que fazia pa-
ra tentar se manter calma, o tom de voz de Taylor estava trêmulo.
Ela abaixou o taco. — Onde estou?
A criança engoliu seco, e então observou Taylor. Ela encarou
a mesa destruída por um momento, e então colocou a bandeja em
cima da cama.
— Me chamo Freyja – a criança disse nervosamente, com seu
sotaque forte no inglês. — Você está na Islândia.
— Islândia? – Taylor exclamou. — Você quer dizer, tipo... –
ela tentou lembrar onde a Islândia se localizava num mapa, e imagi-
nou um grande bloco de terra em algum lugar da Europa. — Islân-
dia? – ela repetiu.
— Sim – Freyja disse. — Se sua cabeça estiver doendo, eu
trouxe remédios.
Taylor encarou a garotinha. Sua cabeça de fato doía, mas ela
não estava a fim de engolir qualquer coisa vinda dessa criança estra-
nha que guardava sua cela de prisão.
— Eu também lhe trouxe uma muda de roupas – Freyja con-
tinuou.
Freyja parecia tão esquisita quanto Taylor imaginava. Taylor
olhou mais de perto para ela. A menina usava uma gargantilha com
uma pedra preciosa vermelha bulbosa na garganta. A joia brilhava ao
sol – ou, pelo menos, o que Taylor pensava a princípio. Após uma
observação mais detalhada, Taylor percebeu que havia um pulsar
constante dentro da pedra, como luzes em um computador.
— Freyja, o que estou fazendo aqui? – Taylor perguntou, seu
tom de voz agora sob controle.
A criança desviou o olhar. — O homem lá embaixo vai expli-
car. Também, haverá um café da manhã.
Taylor olhou para a porta aberta. Então, ela se ajoelhou na
frente da criança assustada.
— Você está com problemas? – Taylor perguntou. — Eles
também te sequestraram?
Freyja deu um puxão em sua gargantilha, o que, Taylor per-
cebeu, não parecia ter um fecho para abri-la. Ela assentiu devagar,
seu olhar aquoso agora fixado em Taylor.
— Se você estiver bem – murmurou Freyja, — nada de ruim
acontecerá comigo.
— Se... eu estiver bem? – a garganta de Taylor se apertou. Ela
levantou. — Sim, isso não soa nada sinistro.
Novamente agarrando a perna da mesa quebrada, Taylor dei-
xou a criança amedrontada para trás para ir ver o “homem lá embai-
xo”. Fora do quarto, o ambiente tornou-se mais claro. Ela estava em
uma cabana de madeira modernizada, o corredor decorado com pin-
turas e esculturas. Havia alguns quartos idênticos aos dela, mas com
as portas reforçadas abertas. Ninguém havia dormido nas camas. No
final do corredor, perto das escadas, havia um banheiro com acessó-
rios dourados, azulejos de obsidiana e uma jacuzzi. Havia uma pe-
quena porta fechada num dos cantos, presumivelmente era o quarto
principal.
Quem fosse o pervertido que vivia aqui, tinha gostos extrava-
gantes.
Taylor seguiu para baixo. Ela ouviu música – uma série de
sinfonia dos anos oitenta tocava em um volume respeitoso. Seu es-
tômago roncou; ela sentia o cheiro de bacon e panquecas. As escadas
levaram a uma área de estar com vários cômodos luxuosos e uma
televisão de tela plana de bom gosto montada acima de uma lareira.
Todo o andar de baixo era aberto. Ela podia ver a cozinha – todas as
brilhantes bancadas em aço inoxidável, além de polidas.
O chamado “homem lá embaixo” estava sentado na bancada
da cozinha, lendo um livro e tomando uma xícara de café. Ele não
parecia nada com um homem para Taylor, parecendo mais um ado-
lescente como ela. Ele tinha pequenos músculos, além de seus cabe-
los castanhos severamente penteados para trás. Ele usava um suéter
branco e calças impecavelmente apertadas.
Taylor não esperou que fosse notada. Ela jogou a perna da
mesa nele.
Ele ergueu a mão e o pedaço de madeira parou no ar. Teleci-
nese.
Ele era Garde. Mas se ele também fosse um Ceifador... isso
não fazia nenhum sentido.
Taylor não perdeu tempo pensando nisso.
— Por que diabos você me trouxe aqui, seu imbecil assusta-
dor? – ela gritou. Ao mesmo tempo, ela pegou um trio de frigideiras
de metal e uma faca de açougueiro da cozinha com sua telecinese.
Ela jogou esses objetos no rapaz, que nem teve oportunidade de
responder.
Ele se desviou cada um deles, exceto da faca de açougueiro. A
lâmina atingiu sua caneca, quebrando-a e derrubando todo o café em
seu suéter branco. Ele franziu a testa.
Algo atingiu Taylor por trás das pernas. Um sofá. Ele a der-
rubou em cima do objeto. Ela caiu para trás, sentada suavemente.
— Pare – o cara ordenou.
Ela não obedeceu. Mais uma vez com sua telecinese, pegou
os fragmentos da caneca dele. Logo, eles estavam zumbindo ao re-
dor do rosto dele como um enxame de zangões de porcelana. O cara
estava tendo dificuldade em afastá-los.
Taylor ouviu um grito e um baque. Ela virou-se a tempo de
ver Freyja caindo pelas escadas. O corpo da menina pequena rolou
para baixo, sua testa atingindo o chão com força.
— Não! – Taylor gritou e tentou se levantar do sofá. O san-
gue já estava se acumulando abaixo da cabeça de Freyja.
Mas Taylor não conseguia se levantar. Ou... ela não queria.
Uma profunda sensação de calma se instalou sobre seu corpo. Há
momentos, ela estava tensa, durante o ataque. Agora, seus músculos
estavam relaxando, seu ritmo cardíaco diminuindo. Ela sentiu-se
como se tivesse acabado de sair de um banho especialmente quente,
como se ela pudesse simplesmente derreter.
Sentindo a cabeça pesada, ela olhou para o cara na bancada da
cozinha. Ele olhou para ela. Concentrou-se nela.
Havia uma mancha de sangue na bochecha onde ela conse-
guiu cortá-lo.
— O que... você está fazendo comigo? – Taylor perguntou,
de repente sentindo sono.
— Estou te deixando calma – ele disse, seu sotaque seme-
lhante ao de Freyja. — Meu nome é Einar. Não estou aqui para te
machucar. De fato, não importa o que faça aqui, você não será ma-
chucada – ele apontou para o outro lado da sala, em direção ao cor-
po pequeno de Freyja. — Ela será machucada no seu lugar.
Taylor piscou. Analiticamente, a ameaça sobre a vida de uma
criança era repudiante para ela, mas a situação terrível não penetrou
o bastante em sua sensação de tranquilidade. Ela só queria relaxar e
flutuar.
— Eu acho... – Taylor deu de ombros. — Eu acho que eu
deveria curá-la ou algo assim, certo?
Einar a estudou. — Eu vou deixar você fazer isso em um
momento, mas primeiro você precisa aceitar a realidade de sua situa-
ção.
Taylor colocou os pés no sofá. — Com certeza. Eu aceito.
Einar revirou os olhos. — Eu acalmei você demais. Espera
um pouco.
As vibrações suaves que tinham lavado Taylor como uma on-
da gentil recuaram, como se um tubarão subisse de repente na água.
Sua adrenalina voltou, seu coração acelerou. Ela disparou do sofá,
deu a Einar um olhar horrorizado e correu para o lado de Freyja. O
fato de que ela não tinha feito isso imediatamente horrorizou Taylor
– como ela pôde simplesmente ficar sentada lá no sofá?
Não era ela. Este tal de Einar fez alguma coisa com ela.
— Ela é apenas uma garotinha – disse Taylor quando ela se
ajoelhou ao lado de Freyja.
— Sim. Ela é apenas uma menina pequena comum tirada de
uma pequena aldeia de pescadores na costa. Os pais dela a amam.
Eles gostariam que ela voltasse. Se você se comportar, isso pode ser
possível – explicou Einar. O discurso soava praticado.
— Você é... você é um monstro – disse Taylor sobre o om-
bro.
Ela segurou a cabeça de Freyja em suas mãos e curou um cor-
te na base do crânio. A menina, ainda inconsciente, soltou um pe-
queno gemido. Taylor a examinou rapidamente; ela se machucou por
conta da queda da escada, mas nenhum de seus outros ferimentos
parecia ameaçar a vida dela.
Taylor se levantou e procurou Einar. Ele havia voltado para a
cozinha e estava pegando outra xícara de café.
Ela foi até ele. — Eu não sei que tipo de culto doentio e psi-
copata isso é...
Einar riu. — Você acha que sou um daqueles Ceifadores idio-
tas? Isso é... na verdade, isso é bastante insultante.
Taylor pegou um pedaço quebrado da caneca de Einar. Ela
brandiu o fragmento como se fosse uma faca.
— Eu não me importo com quem você é – disse Taylor. Ela
fez um esforço para manter seu tom de voz firme, mesmo com seus
joelhos tremendo. — Eu vou embora e eu estou levando a criança
comigo. Se você tentar nos impedir, eu juro por Deus que corto sua
garganta.
— Deus, vocês americanos sempre gostam de repetir algo
que viram num filme de ação – disse Einar. Ele tirou um pedaço da
caneca quebrada de um prato de panquecas e bacon, afastou-o e des-
lizou o prato na direção de Taylor. — Eu fiz isso para você. Coma e
então poderemos conversar.
Ele estava tão calmo que isso assustou e irritou Taylor ao
mesmo tempo. — Você não está ouvindo...
— Não. Você que não está ouvindo.
Taylor sentiu uma forte pressão sobre o queixo e depois sua
cabeça estava sendo agarrada. Ele a pegou com sua telecinese. Ele
era forte – mais forte do que ela. Com Einar controlando a cabeça,
Taylor não teve escolha senão virar o corpo e seguir a direção. Ele
forçou seu olhar para cima, para um canto da sala.
Uma câmera de segurança.
— Não sou eu que machuco a garota – disse Einar. — Eles
estão nos observando. Este lugar está vigiado. Se eles perderem a
conexão, se você se comportar mal ou se você recusar os pedidos
deles – então eles matarão a garota. Depois, eles trarão alguém. Ou-
tro inocente impotente. Um após o outro, até você se comportar. Se
o destino de estranhos não funcionar com você, eles vão mudar para
pessoas que você conhece – a voz de Einar tremeu. Ele fez uma
pausa, pigarreando. — Você não quer ter isso em sua consciência,
quer, Taylor?
Einar liberou a telecinese que estava sobre ela. Taylor soltou
um suspiro e caiu na bancada, com dor no pescoço. Ela olhou para
ele.
— Quem... quem são eles?
— A Fundação para um Mundo Melhor – disse Einar. —
Eles são uma empresa privada que recruta pessoas como nós – Gar-
des – cujos poderes podem ter um impacto positivo na sociedade.
— Você me sequestrou – Taylor rebateu. — Isso não é recru-
tamento.
— O clima político atual obriga a Fundação a operar usando
métodos pouco ortodoxos – disse Einar, quase como se estivesse
lendo de um comunicado de imprensa.
Taylor continuou a encará-lo. Ele era imperturbável, quase
robótico. Ela queria correr, mas sentiu que seria considerado um
mau comportamento.
Einar a observou de volta. Ele pegou um pedaço de bacon do
prato que ele preparou para ela. — Você se importa? – ele pergun-
tou, antes de morder.
— O que... o que eles querem de mim? – perguntou Taylor
baixinho.
— Essa é a boa notícia, Taylor – disse Einar com um sorriso.
— Eles só querem que você faça o que faz de melhor. O que acon-
tece naturalmente. Eles querem que você cure as pessoas.
KOPANO OKEKE CALEB CRANE
FRESNO, CALIFÓRNIA

apenas algumas horas.


— Alguém vai reportar o furto – Isabela explicou. — O
pessoal da Academia provavelmente já está procurando por
nós. Não queremos que os policiais locais entrem na busca tam-
bém. Sem falar que aquele nerd no estacionamento do merca-
do deve ter relatado a pequena cena com os clones.
— Eu posso conseguir outro carro – ofereceu Caleb. Ele
dirigia sem tirar os olhos da estrada, sempre no limite certo de
velocidade. — Não será um problema.
— Não pode ser qualquer carro – Isabela disse. — Pre-
cisamos do carro certo. Um que ninguém irá sentir falta.
Kopano achava que a brasileira parecia muito com seu
pai. Um golpista talentoso. Aqueles dois se dariam bem. Imagi-
ne os presentes que Udo poderia ter pegado se Isabela fosse
sua filha. Ele imaginou os dois trabalhando juntos, o sonho acor-
dado acabava com Isabela – de temperamento curto – repre-
endendo seu pai. Em um dia diferente, o pensamento teria feito
Kopano sorrir.
Ele olhou pela janela, ainda pensando na noite passada.
O cara de terno e gravata tinha feito algo com ele, disso
Kopano não tinha dúvidas. Kopano pensou que ele fosse um
amigo – ele queria fazer uma pausa no meio da luta para
abraçar esse estranho bem vestido! – mas agora sentia apenas
o vazio para com ele.
E então a raiva. Refletindo sobre o que ele fez, era como
se ele tivesse tido uma experiência fora do corpo. Ele lembrou
a violência que sentiu como uma pressão se acumulando dentro
dele. Foi tão bom se livrar dela. Derrubando aqueles Ceifado-
res, esmagando seus rostos com punhos sólidos como pedra.
Quando eles não foram suficientes para saciá-lo, ele foi até
Caleb e seus clones.
Qualquer que tenha se aproximado, ele atacou com toda
sua força. Eles tentaram revidar, mas sua raiva era incontrolá-
vel.
Kopano mordeu o lábio. Ele nunca pensou em si mesmo
como uma pessoa violenta. O que ele fez na noite passada...
isso não foi heroico. O diabo com sua pasta o obrigou a agir
dessa maneira.
Mas o próprio fato de que seus Legados o tornaram ca-
paz de tais atos... ele agora podia entender por que Ran tinha
jurado renunciar aos seus poderes por um tempo. E se alguém
fizesse aquilo novamente?
Seus amigos estavam olhando para ele de forma dife-
rente. Com espanto. Kopano percebeu.
Teria matado algum daqueles homens? Ele não estava no
controle de suas ações e eles certamente estavam tentando
matá-lo, mas isso não o fazia esquecer os corpos que ele deixa-
ra quebrados na estrada. Foi legítima defesa. Foi controlado
mentalmente. Aquilo foi...
Kopano esfregou os dedos. Tentou não pensar nisso.
— Ali! – Isabela gritou, apontando para uma placa de
rodovia para o Aeroporto Internacional de Fresno Yosemite. —
Lá será perfeito!
Caleb guiou a minivan para a saída. Isabela se virou em
seu banco e estendeu a mão para Nigel.
— Eu vou precisar de um pouco de dinheiro – declarou.
Nigel cavou no bolso e pegou o dinheiro que ele havia
furtado de um dos Ceifadores. O olhar de Kopano ficou sério;
sua brutalidade havia feito isso possível, seu companheiro de
quarto saqueando os gravemente feridos.
— Não estamos exatamente ricos – disse Nigel, contando
as notas. — Mas precisamos ter certeza de ter dinheiro para a
gasolina se quisermos chegar ao Novo México.
Nigel colocou uma parte do dinheiro de lado e entregou
a Isabela o resto. Ela contou as notas.
— Isso serve – disse ela.
— Entusiasmado por ouvir isso – respondeu Nigel.
Eles dirigiram para o aeroporto, onde Caleb e Isabela
saíram. Kopano assumiu a direção. Ele não tinha estado atrás
do volante desde seus dias de entregador ilícito em Lagos. Ele
voltou para o posto de gasolina que acabaram de passar – o
último antes do aeroporto – onde eles concordaram em se en-
contrar novamente quando Caleb e Isabela houvessem adquiri-
do um novo veículo.
— É bom ter ela por perto, não é? – disse Nigel, referin-
do-se a Isabela.
— Sim – Ran concordou. — Temos sorte de ter alguém
assim... Eticamente flexível.
— Falando nisso, o que vocês acharam daqueles dois da
noite passada? - perguntou Nigel. — O rapaz elegante de ter-
no e sua companheira produtora de Loralite.
As mãos de Kopano apertaram no volante com a menção
do controlador de mentes.
— Não eram da Garde Terrestre – Ran disse simples-
mente.
— Sim, isso é óbvio – respondeu Nigel. Ele coçou o cura-
tivo em sua panturrilha. — Mas quem eram, então? Caçadores
de recompensa? Reconheço que ele atirou em mim com um ca-
nhão Mogadoriano.
— Sim – Ran concordou. — Isso foi estranho.
— Eu pensei que a Academia estava com todos que ha-
viam desenvolvido Legados como nós – Nigel continuou pensati-
vo. — Eu sei que alguns países não se juntaram à festa, mas
achei que nossa gente, pelo menos, tinha controle sobre eles.
Espiões ou coisa assim. Então, existe algum outro grupo lá fora?
Alguma Academia das Sombras que não conhecemos? Uma
cheia de nerds que usam ternos?
A imagem que Nigel imaginou – uma turva, onde nem to-
dos os Gardes trabalhavam juntos para o bem da humanidade
– deixou Kopano muito perturbado. Ele estacionou ao lado do
posto de gasolina, levando a minivan mais para dentro do que
o necessário. Ele sentiu tanto Nigel quanto Ran observando-o.
— Vou entrar – anunciou Kopano. Sem esperar por uma
resposta, saiu da van e bateu a porta.
Ele pensou nos corpos na estrada, Taylor sendo levada
por um Garde estranho com intenções maliciosas. A raiva bor-
bulhou dentro dele. Não a raiva violenta que o controlador de
mentes tinha derramado nele, mas uma fúria justa motivada por
essas coisas tão terríveis que poderiam acontecer. Este mundo
não era como ele imaginava.

— Qual é a sensação? Fingindo ser alguém que não é?


Isabela e Caleb estavam andando pelo longo
estacionamento do Aeroporto Internacional de Fresno. Apenas
dois passageiros que haviam perdido seu carro de vista. Isabela
havia mudado sua aparência mais uma vez. Ela parecia uma
mulher por volta dos trinta, com cabelos pretos amarrados e
óculos, vestindo roupas profissionais e coloridas.
Ela lançou um olhar para ele ao ouvir a pergunta, então
aumentou a distância de seus passos para que ela pudesse andar
mais rápido que ele.
— Eu já tive essa conversa com os outros – ela disse, um
tom de irritação em sua voz. — Não estou fingindo ser ninguém.
Aquela sou eu. Pelo menos, é quem eu deveria ser. Quem eu cos-
tumava ser.
— Ah, eu não quis dizer isso – Caleb explicou rapidamen-
te. — Eu me referi quando você fingiu ser o professor Nove ou...
ou como agora. Como você está, hum, parecendo uma professora
de espanhol atraente, eu acho?
Isabela sorriu e levantou uma sobrancelha. — Você tinha
uma quedinha por sua professora de espanhol, Caleb?
— Eu fazia alemão.
— Claro que fazia.
Caleb não entendeu o que aquilo significava, mas ele sentiu
como se fosse um insulto. Ontem à noite, ele e seus clones ficaram
de pé ao redor do corpo de Isabela, protegendo-a, enquanto Tay-
lor tentava curá-la. Mas ele não esperava nenhum tratamento
especial por parte da brasileira. Do que seu irmão mais velho cos-
tumava chamá-lo? Um imã para zombaria? Foi exatamente o que
aconteceu.
— Uma mulher de meia idade e seu filho pateta vai chamar
menos atenção do que dois adolescentes – Isabela disse simples-
mente.
— Oh, entendi – Caleb franziu a testa, mas não discutiu
sobre a parte do pateta.
Eles vagaram pelas filas de carros. Isabela tocou os dedos
no queixo, procurando pelo veículo perfeito. Caleb pensou que
tinha terminado de falar, mas ficou surpreso quando Isabela deci-
diu continuar.
— É libertador ser alguém diferente – ela disse. — Além
de ser interessante. Ver o mundo através de olhos diferentes. Ver
o jeito que o mundo olha de volta para você, e que isso pode ser
bem diferente dependendo do rosto que está usando.
Caleb assentiu, sentindo um pouco de inveja. — Sim. Ima-
gino como deve ser libertador.
Ela olhou por cima do ombro para ele, uma sobrancelha
erguida. — Qual é a sensação de ser capaz de confrontar fisica-
mente as partes de si mesmo que você não gosta, hum?
Caleb bufou. — Como é? Eu não sei.
— Claro que sabe. Todos aqueles clones. Alguns são maus,
outros são nerds, há também os estranhos, além dos pervertidos –
ela sorriu. — Há partes de mim que eu adoraria bater na cara, se
elas fossem capazes de sair do meu cérebro por apenas um minu-
to.
— Sério? – Caleb sorriu.
— Não, eu sou perfeita – Isabela respondeu. Ela ficou na
ponta dos pés e encostou um dedo na testa de Caleb. — Como é aí
dentro? Eles sempre estão calados?
Caleb desviou o olhar. — Não. Na verdade não.
— Humm. Sabe, eu ouvi você antes dos jogos de guerra
começarem, dizendo ao Lofton suas ideias de estratégias. Ele não
ouviu porque é um idiota. Mas não eram ideias ruins. Não eram
tão boas quanto as minhas, claro, mas eram boas – ela bateu gen-
tilmente nas bochechas de Caleb. — Acho que você deveria prati-
car ser uma das vozes mais altas do grupo. Ou, pelo menos, ser a
voz mais alta dentro da sua cabeça. Certo?
— Certo – Caleb concordou. — Tudo bem.
— Ótimo – Isabela disse, batendo palmas. Ela apontou
para um Cadillac preto reluzente. — Agora, me furte aquele car-
ro.

Dentro do posto de combustível, Kopano estava girando uma


prateleira móvel de cartões postais. Fresno, Death Valley, Salt
Lake City, Las Vegas, Reno – todos esses lugares coloridos pas-
saram rápido. Ele queria escolher alguns para enviar para seus
irmãos mais novos. Ele escrevia para eles todas as semanas,
contando-lhes sobre seus dias na Academia. Com cada cartão
postal, os detalhes sobre o treinamento de Kopano começaram
a parecer, para ele, mundanos e rotineiros. Mas seus irmãos
sempre escreveram de volta com entusiasmo, ansiosos por mais
detalhes.
Sua mãe e seu pai eram menos falantes nas respostas.
Algumas sentenças aqui e ali. Um detalhe sobre um primo dis-
tante que ficou rico ou adoeceu. Uma oração. A Garde Terres-
tre havia fornecido um novo apartamento na Victoria Island, um
lugar seguro onde eles estariam protegidos. Sua mãe só escre-
veu que era "muito grande".
Finalmente, Kopano tinha alguma coisa animadora para
contar para seus parentes. Uma história de aventura contada
num cartão postal. Uma emboscada no meio da estrada, segui-
da por uma incrível batalha.
Mas a aventura no mundo real – o verdadeiro e feio
mundo real – não parecia tão glamourosa.
Ele se lembrou do que aconteceu depois que ele e seu
pai foram atacados em Lagos. Como ele queria apenas estar
na sua casa para dormir. Ele queria poder fazer isso agora.
Kopano deu um pulo quando Nigel o cumprimentou com
um tapa nas costas. Ele não tinha ouvido seu companheiro de
quarto se aproximar, por estar tão perdido em seus pensamen-
tos.
— Você está bem, cara?
— Não. Eu acho que não estou bem.
— Você quer se sentar no meu colo para podermos con-
versar sobre isso?
Kopano olhou para o pequeno Nigel perto dele, erguen-
do uma sobrancelha.
— Eu estou falando sério.
— Estou apenas tentando aliviar a tensão – Nigel res-
pondeu. Ele olhou por cima do ombro. O atendente do posto de
combustível – um cara por volta dos cinquenta anos usando um
uniforme esquisito – os observava com os olhos estreitos. Eles
certamente pareciam uma dupla suspeita. Nigel cutucou Kopa-
no. — Chega aí. Vamos ir para a privacidade do corredor de
salgadinhos.
Kopano deu uma última olhada nos cartões postais e se-
guiu Nigel. Eles estavam cercados de todos os lados por paco-
tes coloridos, batatas fritas gordurosas e doces. O estômago de
Kopano roncou. Ele ignorou isso.
— Minha mãe nunca quis que eu comesse coisas assim.
Ela disse que foi assim que meu pai ganhou a barrigona gorda
– disse Kopano, passando os dedos sobre um pacote que tinha
um desenho de um gato e queijos.
— Minha mãe também era obcecada com coisas saudá-
veis. Também é um verdadeiro obstáculo, pense nisso – Nigel
colocou as mãos nos quadris e olhou para Kopano. — Você
quer algumas batatas fritas? É por isso que está assim?
Kopano continuou como se não tivesse ouvido Nigel. —
Quando desenvolvi meus poderes pela primeira vez, minha fa-
mília ficou orgulhosa. Todos menos a minha mãe. O jeito como
ela olhava para mim mudou. Ela me viu como... como uma abo-
minação. Algo contra Deus. Taylor me contou sobre os Ceifado-
res, sobre as coisas que eles pregavam. Acho que, se ela tivesse
nascido americana, minha mãe poderia ter sido um deles.
Nigel se encostou contra a prateleira, para olhar melhor
Kopano. — Irmão, eu duvido disso. Aqueles Ceifadores imbecis
não criam jovens bons como você.
— Estou começando a pensar... – Kopano hesitou. — Es-
tou começando a achar que talvez minha mãe tenha razão em
me olhar desse jeito. Eu pensei que a Academia seria como um
desses filmes de super-herói, sabe? Mas agora vejo do que sou
capaz. Agora vejo como o mundo funciona. Para o resto de nos-
sas vidas, teremos que lutar como fizemos na noite passada.
Nigel mordeu o interior de sua bochecha, juntando seus
pensamentos. — Eu sei do que você está falando, irmão. Os
julgamentos. Meus pais costumavam me julgar bastante antes
mesmo de eu ter desenvolvido Legados. Eles não conseguiam
me entender, ou não queriam. Enviaram-me para um internato
com um monte de burros rudes e odiosos.
Kopano se virou lentamente para olhar para Nigel. — Is-
so é ridículo.
Nigel assentiu. — Certo. Não via a hora de sair daquele
lugar. Então John Smith me liga telepaticamente e eu saio de
Pepperpont mais rápido que um piscar de olhos. Eu me senti
como você – como se fosse o começo de uma grande aventura
sangrenta e eu era o personagem principal. Todos aqueles anos
de sofrimento levaram a isso – Nigel olhou para o chão. — Vivi
essa experiência durante a invasão. Os Mogs vieram ao nosso
esconderijo, mataram alguns dos meus novos amigos e muitos
soldados. Coisas brutais. Homens adultos gritando e chorando,
arrastando-se com membros mutilados. Não é como nos quadri-
nhos, entende?
— Não – disse Kopano calmamente. — Não parece na-
da com os quadrinhos.
Nigel agarrou o ombro de Kopano com força suficiente
para que Kopano sentisse seu Legado quase entrando em ação.
— Mas escute, fiquei doido depois daquilo, tendo pesadelos e
tudo mais. Assim como Ran.
— Ela jurou não usar mais os Legados.
— Ah, então, foi outra japonesa quietinha que explodiu
tudo na noite passada? – perguntou Nigel. — Ela fez o que ti-
nha que fazer, quando precisou. Para salvar vidas. O mundo
não é bonito, como esperávamos, companheiro, não há fantasi-
as nem lantejoulas.
Kopano fez uma careta. — Eu não imaginei lantejoulas.
— Pelo menos um não imaginou, né? – Nigel sorriu. — A
questão é que não precisamos responder violência com violên-
cia. Podemos ser a mudança que queremos ver no mundo. Você
conhece esse maldito clichê? Os lorienos não nos tornaram mons-
tros, nem heróis. Eles apenas nos deram Legados e disseram
para aproveitarmos. Nós escolhemos o que acontece depois.
Kopano assentiu com a cabeça durante a maior parte do
discurso de Nigel, mas ainda não conseguiu se livrar da memó-
ria dos corpos quebrados que ele deixara no meio da rodovia.
— Eu não pude escolher ontem à noite – ele disse calmamente e
passou a mão pelo rosto. — E se conseguiram me controlar pa-
ra fazer aquilo... talvez minha mãe esteja certa. Talvez não de-
vêssemos ter tais poderes, talvez...
— Eu queria te dizer algo – interrompeu Nigel. — Aque-
les idiotas que você derrubou estavam todos vivos quando os
deixamos na estrada. Eu percebi. Eu fui o único com a ideia de
ver o que eles tinham nos bolsos.
As sobrancelhas de Kopano se levantaram. — Mesmo? Eu
não...?
— Nem, companheiro. Alguns deles não vão andar direi-
to por um tempo, mas eles ainda estão ocupando espaço no
nosso planeta infeliz. Mesmo agindo como o Hulk, seu coração
ainda é grande o suficiente para pegar leve nos socos.
Lá fora, uma buzina de carro soou. Kopano esticou a ca-
beça para além do corredor dos salgadinhos e viu Isabela sen-
tada em um enorme SUV. Um Cadillac. Seu pai costumava falar
sobre comprar um carro assim quando ficasse rico. Isabela pen-
durou o braço fora da janela. Ela viu Kopano olhando para ela,
acenou e piscou.
Pela primeira vez naquele dia, Kopano sorriu.
Ele se virou para Nigel.
— Sim – disse Kopano. — Estou pronto. Vamos salvar
Taylor – ele fez uma pausa, depois colocou a mão no ombro do
amigo. — Obrigado, Nigel.
— Não foi nada, amigo.
Kopano saiu do corredor, indo para o SUV. Nigel demo-
rou um pouco. Ran, que estava ouvindo do próximo corredor,
apareceu calmamente ao lado dele.
— Você mentiu para ele – Ran observou. — A maioria
daqueles homens certamente estava morta.
O olhar severo de Nigel se aprofundou. — Você quer di-
zer isso ao garotão?
Ran sacudiu a cabeça. — Saber de tal coisa não lhe fa-
ria bem.
TAYLOR COOK
HOFN, ISLÂNDIA

eles mandassem. Esse era o trato.


— Em troca, – explicou Einar, — vão cuidar de você. Assim
que provar sua lealdade à Fundação, eles vão construir um lugar co-
mo esse para você. Não te faltará nada.
Taylor estava de pé do outro lado da bancada de mármore.
Ainda segurava uma das facas de cozinha. Segurá-la lhe deixava cô-
moda e Einar parecia não se importar. Ele se sentou em um banco e
escolheu um dos pratos de comida que tinha preparado para ela.
Atrás dele, Freyja estava deitada no sofá, esfregando o lugar em sua
cabeça onde estava a fratura.
A televisão de tela plana, o home theater, as estantes de livros
variando desde romances pretensiosos até histórias de detetives,
além da enorme coleção de Blu-Rays. Quanto mais olhava ao seu
redor, mais via esse lugar como uma extensão de Einar, uma casa
dos sonhos para um jovem estudioso solitário.
— Então eles construíram esse lugar para você – ela pergun-
tou. — Porque você se provou leal?
Ele assentiu.
— Eles me tratam bem.
— Então suponho que não te sequestraram, né?
Ele ergueu uma sobrancelha.
— Meu recrutamento não foi sem dor.
— Mas você se rendeu, então eles te sequestraram.
Einar não respondeu. Cortou um pequeno pedaço de uma
panqueca fria e o encharcou em um quase vazio pote de molho.
— Então se eu me comportar bem, eles vão construir para
mim e para o meu pai uma fazenda de 500 hectares na Dakota do
Sul? Vão nos deixar viver tranquilos exceto quando tiver que ir curar
alguém?
Einar abaixou o garfo. — Tenho certeza que isso da fazenda
pode ser feito. Mas você deverá viver em algum lugar fora da jurisdi-
ção da Garde Terrestre.
— Onde seria? Islândia, China, Rússia... Oriente Médio?
— Venezuela – acrescentou Einar. — Muitas outras nações.
— Oh, tantas opções tentadoras – Taylor disse secamente.
— Melhor que ser um prisioneiro obrigado a lutar em guerras
secretas para uma agência corrupta do governo – respondeu Einar.
Taylor levantou uma sobrancelha. — Ah, você não é um pri-
sioneiro?
— Não. Não como você é.
Depois de se controlar, Taylor foi capaz de observar melhor
o seu redor. Tinha muito mais câmeras além das que Einar mostrou.
Havia pelo menos uma em cada cômodo. De onde estava Taylor
podia ver a câmera posicionada sobre a geladeira, a que estava debai-
xo da televisão e a que estava escondida num canto, apontando em
direção à porta principal e à escada. Suspeitava que a joia brilhante
no colar da Freyja também era uma câmera.
— Devem confiar bastante em você, – ela disse. — Para te
deixarem viver sozinho sem supervisão.
Einar seguiu o olhar de Taylor até a câmera. E zombou. —
Por favor, como se você não fosse consciente da vigilância na Aca-
demia.
O estômago de Taylor se retorceu em um nó. Acordar aqui
foi tão desorientador, seu breve confronto com Einar tão desgastan-
te, não tinha parado para pensar no destino dos seus amigos.
— O que aconteceu...? – seus dedos se apertaram em volta do
cabo da faca. — O que aconteceu com as pessoas com quem eu es-
tava?
Einar encolheu os ombros
— Não sei.
— Isso é tudo? – Taylor perguntou. — É tudo o que pode
dizer? São meus amigos.
— Se te serve de consolo, aqueles Ceifadores tontos eram
muito mal treinados – disse Einar. — Apostaria que pelo menos um
dos seus amigos sobreviveu.
Taylor lutou com sua vontade de apunhalar ele olhando para
Freyja. A pequena criança tinha se deitado como uma bolinha sobre
o sofá. Olhando para o nada.
Outro detalhe surgiu em sua mente: Isabela com um dardo
cravado na nuca, cortesia de uma garota com um hijab.
— E a sua amiga? – Taylor perguntou. — Onde ela está?
A expressão de Einar se escureceu. Ela havia cutucado a feri-
da.
— Não sei – Einar disse suavemente.
— Você a abandonou?
— Ela conhecia os parâmetros da missão.
Um silêncio tenso caiu sobre ele. Einar pegou de novo o gar-
fo, mas não comeu nada. Taylor o observou, se perguntando quanto
mais poderia pressioná-lo. Um pouco mais, decidiu.
— Deve ser bem solitário estar aqui por sua conta. Por que
esses caras da Fundação não sequestram uns amigos para você?
— Tenho amigos – Einar disse na defensiva. — Há outros,
nós... ocasionalmente nos socializamos.
— Até você se desfazer deles.
— Cale a boca. Você estava inconsciente. Não sabe o que
aconteceu.
Taylor tentou que sua voz soasse o mais compreensível pos-
sível. — Sabe, eu era meio contra sobre a Academia. Não queria ir.
Tem algumas coisas que ainda me incomodam, como o treinamento
do tipo militar. Mas isso? Ser sequestrada por alguma... caridade?
Corporação...?
— Um grupo de investidores privados – Einar disse rigida-
mente
— Que seja. Quero dizer, isso é ridículo – Taylor deu uma
olhada em Freyja. — A Academia nunca ameaçou uma criança para
me obrigar a ir.
— Eles não precisariam – Einar respondeu. — Simplesmente
te pegaram e aprisionaram. Obrigaram-te a renunciar seus direitos.
— E sobre os direitos dela? – Taylor gesticulou na direção de
Freyja, se dando conta de que ainda tinha a faca na mão e finalmente
soltando-a. — A Academia nunca matou ninguém.
Einar riu entre dentes. — Certeza? Para que você acha que é
o treinamento de combate? Contra o que você acha que a Garde
Terrestre luta?
Taylor pensou em Kopano... o bem do qual falava que tinha
que fazer, os inimigos imaginários que algum dia levaria à justiça.
— Bandidos – disse, se dando conta de que suas palavras soa-
ram ridículas.
— Esse é um termo sem significado – Einar respondeu com
outro grunhido incômodo. — Nós, a Garde Humana, ainda somos
jovens. O que você acha que vai acontecer quando formos maiores?
As guerras entre países serão lutadas com pessoas como nós, serão
decididas por nossa espécie. A Garde Terrestre quer monopolizar
isso.
— Não é o que sua preciosa Fundação também quer?
Einar se levantou, pegou o prato de comida e jogou em um
cesto grande de lixo.
— A Fundação só intervém nos Gardes com Legados não
violentos – disse, lhe dando as costas. — Os outros são considera-
dos ameaças para a raça humana.
— Intervêm – Taylor repetiu com uma sacudida de mão. Es-
perou que Einar se virasse na sua direção para estudá-lo. — Sério,
você está agindo como se isso não fosse ilegal e insano. Fizeram la-
vagem cerebral em você ou algo assim?
— Não – ele respondeu bruscamente. — Sinta-se livre para
usar minha casa. Sabe o que acontecerá se tentar algo estúpido. Vou
tirar um cochilo.
— Um cochilo. Você vai tirar um cochilo?
Einar assentiu e rodeou a bancada – tomando o caminho
mais distante, para se manter fora do alcance de apunhaladas – e foi
em direção às escadas. — Temos um compromisso mais tarde. Bom,
você é que tem. Vai querer estar descansada também.

Taylor não podia descansar. Agora que os efeitos do tranquilizante


tinham passado, se sentia muito agitada. Em vez disso, explorou o
esconderijo islandês de Einar.
De todos os filmes, livros e aparelhos caros, a primeira coisa
que Taylor notou foi que faltava um computador no lugar. Talvez
houvesse um notebook ou algo assim no seu quarto, mas Taylor
suspeitava que esse não fosse o caso. Assim como a Academia con-
trolava o uso de internet, essa suspeita Fundação fazia o mesmo.
Depois de investigar o lugar por um tempo, Taylor foi à porta prin-
cipal. Sua mão parou sobre a maçaneta. Estava autorizada a sair?
Supôs que deveria haver algum tipo de fechadura hidráulica, como a
do seu dormitório, se sair ao ar livre não fosse permitido. Taylor gi-
rou a maçaneta. A porta se abriu facilmente.
O ar frio soprou para dentro. Depois de uns meses na Cali-
fórnia, Taylor não estava acostumada ao frio. E ainda estava usando
o pijama de flanela com que tinha acordado. Abriu um guarda-roupa
próximo e encontrou um par de sapatos forrado de pele e uma pesa-
da jaqueta de couro. Eram de Einar. Pôde sentir o cheiro do perfu-
me de flores na jaqueta e quase mudou de opinião sobre sair. Suspi-
rou, colocou a jaqueta e saiu no frio abrasador.
Curiosamente, o isolamento fez com que se lembrasse de ca-
sa. Olhou ao redor da paisagem rochosa enquanto se distanciava da
cabana de Einar... não se via nenhuma outra casa. Havia um carro
azul escuro estacionado ao lado da casa. Poderia usá-lo como veículo
de fuga, se as coisas piorassem.
Taylor riu amargamente. As coisas já não estavam piores?
Quando desenvolveu seus Legados, não poderia ter imaginado um
destino mais estranho. Tinha ficado aborrecida de ter que ir à Aca-
demia, mas pelo menos estava se instalando lá. Os instrutores eram
gentis, tinha amigos, estava aprendendo sobre si mesma. Esta... esta
situação da Fundação, estava em um nível completamente diferente
de estranheza e perturbação.
Ouviu passos atrás dela. A pequena Freyja a tinha seguido,
enrolada em uma manta. Uma parte escura na mente da Taylor se
lembrou de que mal conhecia essa garota. Ela podia sair correndo.
Se ela conseguisse viver com Freyja na consciência...
Não. Ela não poderia. Nunca poderia conviver com ela mes-
ma se deixasse a criança. Taylor olhou mais uma vez o carro. Não
teria como fugir. Não, se não descobrisse como salvar a garota tam-
bém. Taylor olhou para o que imaginava ser a janela de Einar. Per-
guntou-se como a Fundação o havia convencido a se unir a eles. Ele
também teria uma Freyja? Ele foi tão frio, parecia improvável.
— Obrigada – disse Freyja em voz baixa, chegando ao seu la-
do. — Por me curar.
— De nada – respondeu Taylor. — Sinto muito que tenha
que passar por isso.
— Eu também – disse Freyja. — Você sabe quando eu vou
voltar para casa?
— Não, não sei.
— Quando você der a eles o que querem, certo?
— Acho que sim.
— Isso vai acontecer logo?
— Não sei.
As duas caíram em um melancólico silêncio. Taylor caminhou
com dificuldade até o lago cristalino; Freyja a seguiu alguns passos
atrás. Um vento frio corria pela água, balançando os pedaços de gelo
azul que flutuavam sobre a superfície. Podia ouvir o barulho e o mo-
vimento do gelo enquanto os blocos se chocavam entre si.
— Pelo menos aqui é bonito – disse Taylor.
Freyja não disse nada. Taylor a olhou, viu que ela estava ten-
tando separar o colar com o dedo indicador.
— É tão gelado contra minha pele – disse Freyja com um
suspiro.
— Você se lembra do que aconteceu antes? – perguntou Tay-
lor. — Quando você caiu da escada?
— Isso... isso me deu um choque – disse Freyja, deixando a
mão cair longe do pescoço como se estivesse assustada de que acon-
tecesse de novo. — E desmaiei.
— Jesus Cristo – murmurou Taylor. — Isso é doentio.
Taylor se distanciou do lago congelado e se dirigiu a um lado
da casa. Queria ver o lugar por todos os ângulos.
— O que você está fazendo? – perguntou Freyja, obediente-
mente seguindo ela.
— Só estou olhando ao redor.
— Para quê?
— Ainda não tenho certeza.
Na parte de trás da casa, Taylor encontrou um pequeno gal-
pão de madeira avermelhado coberto por uma fina camada de gelo.
A varanda dava para um jardim de pedras. As pedras polidas se em-
pilhavam em cima das outras, algumas delas decoradas com trepadei-
ras. Uma pequena fonte se encontrava no meio de tudo, apesar de
estar desligada nesse momento. Depois do jardim de pedras, havia
uma cerca alta de madeira. Taylor se aproximou, caminhando para
perto da cerca. Era um quadrado de uns vinte metros em cada dire-
ção. No lado mais perto da varanda tinha uma porta com um teclado
como o do quarto da Taylor.
— O que será que tem aí? – perguntou Taylor em voz alta.
— Não sei – respondeu Freyja, batendo os dentes.
— Se está com frio, pode entrar – disse Taylor.
Freyja continuou teimosamente perto. Será que tinha medo
de Taylor tentar escapar se deixasse de vê-la por um momento? Tay-
lor não podia culpá-la.
Com a telecinese, Taylor golpeou uma das esculturas de pedra
e flutuou um bloco grande de granito sobre a cerca. Freyja saiu do
caminho com um pulo.
— O que está fazendo? – perguntou Freyja.
Taylor pulou sobre a pedra. Se pulasse dali, poderia alcançar a
parte superior da cerca.
— Quero ver o que tem ali dentro.
Pulou se agarrando na parte de madeira com as duas mãos.
Impulsionou-se o resto do caminho, conseguindo balançar uma per-
na para ficar em cima da cerca.
Abaixo, dentro do quadrado da cerca, havia apenas outra pe-
dra. Mas não qualquer pedra. Esta brilhava com uma cor azul cobal-
to, mas em um tom diferente ao do gelo no lago. A pedra fez com
que algo dentro da Taylor vibrasse. Estava chamando ela.
Loralite. Aquela pedra era Loralite.
Taylor conhecia as histórias. Tudo o que tinha que fazer era
se abaixar e tocar a pedra alienígena, visualizar a localização de outra
pedra e a Loralite teleportaria ela pelo mundo. Deve ter sido assim
que Einar a trouxe até aqui.
Freyja soltou um grito agudo. Taylor virou a cabeça a tempo
de ver a menina com os olhos abertos apertando o colar.
— Me... me deu choques! – gritou Freyja.
Com um murmúrio frustrado, Taylor desceu da cerca. Ater-
rissou ao lado de Freyja e acariciou suavemente o ombro da garota.
— Me desculpe. Acredito que quem quer que seja que está
nos vendo queria me dar uma advertência.
Freyja não disse nada. Esfregou o pescoço e ficou olhando
com tristeza para Taylor.
— Vamos – disse Taylor. — Vamos para dentro.
Na metade do caminho de volta, as duas pararam. Escutaram
um trepidar de cascalho e o barulho de um motor.
Alguém estava dirigindo pela pista vazia.
Sem pensar, Taylor correu pelo lado da casa, Freyja a alguns
passos atrás. Não tinha certeza do que ia fazer, exatamente. Se se
tratava de um policial islandês qualquer ou do carteiro, não podia
envolvê-los sem arriscar a vida deles. No entanto, queria ver quem
tinha vindo até esse remoto lugar. Talvez desse uma ideia para ela.
Taylor viu o carro descendo pela pista justo quando ela pas-
sava pelo canto da cabana. Algo no veículo a fez parar. Era um jipe
verde, com respingos de barro e amassado, além de correntes nas
rodas. Havia quatro homens no interior, mas do seu ponto de vista,
Taylor podia distinguir só o que tinha a escopeta. Seu cabelo era cas-
tanho avermelhado, tinha uma barba grossa e músculos grandes no
pescoço. Até nessa distância, Taylor podia ver a grande cicatriz que
corria de seu olho até o lado da boca.
Esses não eram vizinhos amistosos.
O jipe parou na frente da casa. Taylor esperou alguns segun-
dos, escondida em um canto, curiosa para ver o que fariam. Nada.
Os homens só se sentaram lá. Um deles abaixou uma janela para
fumar um cigarro.
Freyja estava do seu lado, uma das mãos no braço de Taylor.
— Quem são? – ela sussurrou, então deu uma olhada pelo canto
para ver por si mesma.
A menina quase tropeçou nos próprios pés na presa para vol-
tar. O rosto da Freyja tinha ficado branco como um fantasma. Tinha
reconhecido eles, Taylor percebeu.
— Quem são eles? – perguntou Taylor.
— Esses são os homens – respondeu Freyja. — Os homens
que me sequestraram.
ISABELA SILVA
ARREDORES DA SILVER CITY –
NOVO MÉXICO
TAYLOR COOK
HOFN, ISLÂNDIA

Einar aumentar seu tom de voz no segundo andar. Ele estava gritan-
do com alguém.
Ela subiu as escadas rapidamente, porém, da forma mais si-
lenciosa que pôde. Freyja ficou na sala de estar, furtivamente espian-
do os homens no jipe através das cortinas.
No final do corredor do andar de cima, a porta de Einar esta-
va entreaberta. Taylor andou nas pontas dos pés até lá. Através da
abertura, viu Einar andando de um lado para o outro, obviamente
agitado. A TV de tela plana em sua parede estava sintonizada numa
videoconferência. Taylor podia ver apenas o canto inferior direito da
tela – uma mulher, com cabelo loiro em um prumo apropriado, ves-
tindo uma camisa branca e uma jaqueta, de forma profissional. Ver
apenas a boca e os ombros da mulher não seria suficiente para iden-
tificá-la, se Taylor um dia conseguir sair daqui. Ela se aproximou.
— Por favor, me explique por que tem uma equipe de ho-
mens de Blackstone estacionada do lado de fora da minha casa –
Einar esbravejou.
— Você sabe o motivo – ela respondeu profissionalmente. O
sotaque dela era britânico. — Temos suspeitas de que sua casa esteja
comprometida.
— Bobagem.
— Rabiya sabe como chegar até você, verdade? Você perdeu
Rabiya. Assim, sua localização está comprometida. Os homens de
Blackstone estão aí simplesmente por precaução.
— Se você tivesse permitido que eu os levasse comigo na
missão em vez daqueles Ceifadores, isso nunca teria acontecido –
Einar respondeu.
Taylor chegou mais perto, tentando captar uma melhor ima-
gem da mulher. Uma tábua de madeira rangeu sob seus pés.
— Agora, Einar – disse a mulher, ignorando o rangido. —
Sempre é o pobre artesão que culpa suas ferramentas. Rabiya é mui-
to valiosa para a Fundação. Não conseguimos catalogar outro Garde
capaz de produzir pedras de Loralite até o momento.
— Por semanas vocês só ficaram falando sobre como conse-
guir outra droga de Garde que desenvolveu o Recupero – Einar sil-
vou. — Eu a consegui para vocês. Se eu não tivesse – se eu não ti-
vesse voltado quando fiz aquilo, todos nós teríamos morrido.
— Foi o que disse em seu relatório – a mulher respondeu
amargamente. — Apesar disso, foi descuidado. A Garde Terrestre
está realizando inquéritos. Por isso, estamos mantendo os homens
de Blackstone para o caso de precisarmos liquidar a parte da Islândia
da nossa operação.
Taylor não gostou de como isso soou. Por ter se aproximado
mais, conseguiu mais detalhes sobre a mulher da Fundação. Olhos
azuis, rugas delicadas, talvez com mais ou menos cinquenta anos...
— Por favor, escute – Einar disse implorando, obviamente
descontente com a conotação de “liquidar” tanto quanto Taylor. —
Você não entende como foi que...
— Nós mudamos a sua visita. Os outros estão se teleportan-
do para aí – a mulher o interrompeu amargamente. — Arrume sua
casa, Einar. Ela está entreouvindo.
A tela ficou abruptamente branca. Taylor olhou para cima,
viu a câmera apontada na direção dela e xingou baixinho. Então,
aquela era a mulher do outro lado das câmeras de segurança. Ela
desejou poder ter visto uma imagem melhor.
Einar parou no vão da porta, olhando para ela, seu rosto
inexpressivo. Ele havia mudado de roupa, agora usando um terno
imaculadamente cinza. Taylor de repente se sentiu nua usando pija-
mas e um casaco de couro emprestado.
— Vamos dar uma festa? – ela perguntou.
— Se troque – ele simplesmente respondeu. — Estamos de
saída.
— Quem era aquela mulher? Sua babá britânica malvada?
— Talvez você chegue a conhecê-la um dia, se a coisas conti-
nuarem bem. Ela é uma visionária.
— Ai, Deus, você promete? – Taylor respondeu bufando. Ela
trancou seu olhar com os de Einar, procurando por fraquezas como
Isabela faria. — Você está com problemas, não está?
— Não.
— Você estragou tudo na Califórnia. Eu a ouvi. Fez uma ba-
gunça e tanto. Eles vão liquidar você.
— Não eu – Einar respondeu com um olhar significante.
— Claro, claro. Eu posso curar. Parece que sou mais valiosa
que você – ela fez questão de gesticular para a câmera no corredor.
— Você preferiria dar uma festa comigo a com esse pessoal, né?
Einar deu um passo na direção dela. — Pare.
— Eles não se importam com você – Taylor disse baixinho.
— Ou comigo. Mas a Academia pode nos proteger. E eles estarão
me procurando...
Einar riu da cara dela. Ela quase conseguiu tirar alguma coisa
dele, mas pressionou demais na direção errada.
— Eu já disse. Vá se trocar.
Os músculos de Taylor ficaram tensos. Seu coração batia
mais rápido, com o estômago embrulhando. De repente, sentiu me-
do. Taylor deu um passo para trás, na direção do quarto dela. É me-
lhor fazer o que ele disse ou então...
Não. Ela notou a maneira como Einar a olhava. Concentrado
nela. Era o Legado dele novamente. Ele estava manipulando suas
emoções. Saber disso não fez com que o medo ficasse mais fácil de
resistir.
— Pare... pare com isso – disse ela.
— Vá – ele ordenou.
As palmas de Taylor começaram a suar e seus joelhos quase
se dobraram. Ela apertou os dentes, mas não conseguiu evitar que
seu corpo reagisse. Com um grito, ela correu para o quarto, batendo
a porta atrás dela, como se houvesse um monstro a seguindo nos
calcanhares. De certa forma havia, ela pensou.
O medo não diminuiu até ela começar a mudar a roupa que
Freyja trouxera para ela naquela manhã. Uma blusa cor de pêssego e
uma longa saia preta. A roupa estava amassada e não se ajustou exa-
tamente a ela. Ela teve que enrolar as mangas. Havia também uma
longa faixa de seda escura que ela não tinha ideia de como usar.
Ela saiu do quarto e encontrou Einar ainda esperando do la-
do de fora. O medo havia desaparecido, ressentimento surgindo em
seu lugar.
— Você é um idiota – ela disse.
Einar franziu a testa. Ele estendeu a mão e tirou a seda dela.
Então, antes que Taylor pudesse detê-lo, ele se aproximou e come-
çou a colocar o lenço em sua cabeça. Taylor teve que resistir ao dese-
jo de dar um soco na boca dele. Assim que sua cabeça estava devi-
damente coberta, Einar recuou para apreciar seu trabalho.
— Existe um código com roupas para onde estamos indo –
disse ele.
— E para onde vamos?
— Abu Dhabi.
— O que? É sério?
Einar foi para o andar de baixo, forçando Taylor a segui-lo.
Freyja ainda estava envolta nas cortinas, observando atentamente os
homens parados lá fora. Taylor olhou na direção dela e fez uma care-
ta. Einar ignorou completamente a jovem, seguindo em direção aos
fundos.
— E ela? – a perguntou Taylor.
— Quem?
— Freyja. Você sabe, sua outra prisioneira.
— Ela vai ficar aqui – ele respondeu. — Se você tentar ter al-
guma ideia para fazer algo estúpido, a imagine morrendo grosseira-
mente.
Einar empurrou a porta dos fundos e atravessou seu quintal
coberto de gelo. Taylor correu atrás dele, grato por Freyja estar fora
do alcance de sua voz.
— Isso não vai acontecer de qualquer jeito? – perguntou ela.
— Ouvi àquela senhora da Fundação usar a palavra "liquidar".
Einar fez uma pausa e se virou para olhar para ela. — Isso
não vai acontecer.
— Mas se acontecer... – Taylor gesticulou para o pátio da
frente. — Aqueles caras lá fora vão matá-la, certo?
Antes de responder, Einar olhou por cima da cabeça de Tay-
lor, observando a câmera montada atrás da porta. Pareceu a Taylor
que ele não tinha certeza do quanto deveria dizer.
— Isso não acontecerá – repetiu Einar. — Nós somos muito
valiosos.
Ele não parecia inteiramente convencido.
Einar atravessou o jardim de rochas e se aproximou do cer-
cado de madeira que continha a pedra de Loralite. Taylor observou
por cima do ombro enquanto ele colocou um código de acesso de
quatro dígitos, não fazendo nenhum esforço em escondê-lo.
— Tudo bem – disse Taylor resignadamente. — Então, o que
vamos fazer em Abu Dhabi?
— Você e os outros vão curar o príncipe de uma das famílias
reais – respondeu Einar, empurrando o portão de madeira.
Taylor piscou. Tantas perguntas. — Quais outros? – pergun-
tou primeiro.
— Você é a quarta com esse Legado que a Fundação adqui-
riu.
— Quarta – repetiu Taylor. Ela era a única com esse Legado
inscrita na Academia. — Você sequestrou quatro...
Quando se aproximaram da Loralite, o pedaço de pedra de
cobalto pulsou em saudação, o brilho indo e vindo como um bati-
mento cardíaco.
— O príncipe tem leucemia – continuou Einar de forma na-
tural. — Os outros até agora não conseguiram curá-lo. Espero que a
adição do seu poder seja suficiente – ele colocou a mão sobre a pe-
dra de Loralite, então hesitou, mordendo o interior de sua bochecha.
— Tem que ser suficiente – disse ele, — ou toda essa operação será
tida como falha.
Liquidar. A palavra ecoou na mente de Taylor e uma sensação
de nervosismo vibrou em sua barriga.
Ela pensou na paciente com câncer que não conseguiu curar
na Califórnia. O fracasso aqui significaria punição? A morte de
Freyja? Alguma outra consequência inimaginável? Sua mente funcio-
nava febrilmente – ela precisava salvar Freyja e escapar – mas não
viu nenhuma saída. Tudo o que ela podia fazer era continuar a jogar
este jogo.
Einar estendeu a mão com impaciência. — Não vai vir?
Taylor fez uma careta, querendo ter certeza de que Einar vira
seu olhar de repugnância, antes de pegar a mão dele.
O mundo girou e a realidade dobrou. Taylor estava inconsci-
ente quando eles se teleportaram, então esta foi a primeira experiên-
cia dela com o processo alienígena. Pareceu que seu corpo se dissol-
veu – não de forma desagradável –, mas de uma forma suave, como
se fosse um sonho.
A única coisa que ela ainda podia sentir era a mão de Einar,
como uma âncora que a arrastava para seu destino. Ela sentiu tontu-
ra, um ponto de areia soprado no vento. Por um momento, sua vi-
são escura foi preenchida por milhares de pontinhos de luzes azuis
brilhantes. Outras pedras de Loralite, outros locais. Os vagalumes de
cobalto giraram ao redor dela e então...
O calor atingiu Taylor de uma só vez. Essa poderia ter sido a
parte mais desorientadora – ter o frio da Islândia apagado tão rapi-
damente, substituído por um calor seco que fez Taylor imediatamen-
te suar. Parecia que estava cozinhando.
Ela protegeu os olhos do sol. Ao contrário da nublada Islân-
dia, aqui o sol vermelho pendia no céu. Taylor surpreendentemente
se sentiu grata pelo lenço enrolado em sua cabeça.
Ela e Einar estavam no pátio de um palácio genuíno. Ao re-
dor dele havia estátuas de leões e mulheres, douradas com o que ela
supôs ser ouro real. Um trio de fontes flanqueadas por palmeiras
bem aparadas complementavam o caminho de paralelepípedos na
frente deles.
Taylor olhou para cima, com um pouco de admiração, para a
construção de quatro andares – cortinas de seda penduradas nas ja-
nelas e cúpulas cobertas de pinturas a óleo de aparência antiga, além
das varandas cheias de homens segurando metralhadoras.
Os guardas fizeram Taylor parar. Havia dezenas deles, tanto
em cima como ao longo da borda do pátio, todos vestidos de forma
idêntica, com calças brancas compridas e óculos de sol espelhados.
Um pequeno exército. Taylor engoliu em seco; ela esteve rodeada
por muitos grupos de homens armados recentemente.
— Eles não confiam totalmente em gente como nós aqui –
disse Einar calmamente, seguindo o olhar de Taylor. — O pai do
príncipe...
— O rei? – perguntou Taylor.
— Sheik, na verdade – respondeu Einar. — Ele é um genero-
so defensor da Fundação. Mas nem todos os seus irmãos e sobri-
nhos veem a nossa... utilidade – Einar ajustou sua gravata. — Com-
porte-se. Lembre-se de Freyja.
Taylor suspirou, olhando todas as armas ao redor. Ela olhou
de volta para a pedra de Loralite. Tentar alguma coisa aqui prova-
velmente a mataria. Ela seguiu Einar pela trilha de paralelepípedos,
em direção à entrada do palácio.
— Estava na hora.
Uma garota asiática e magrela que estava na sombra de uma
das palmeiras fumando um cigarro de um elegante suporte dourado
os interrompeu antes de entrarem no palácio. Os guardas observa-
vam essa garota da mesma maneira incomum que Einar e Taylor, o
que significava que ela deveria ser Garde.
Como Taylor, ela usava um hijab, embora o dela estivesse de-
corado com cavalos-marinhos. Ela usava sapatos de salto alto que
faziam os pés de Taylor doerem só de pensar, um blazer curto e uma
elegante saia lápis. Suas unhas foram pintadas de vermelho e preto
para combinar com sua roupa. Embora ela parecesse apenas um ou
dois anos mais velha, Taylor imediatamente percebeu que essa garota
era bem mais velha que isso.
— Jiao – disse Einar, como se fosse uma saudação. Quando
ele tentou desviar dela, a menina simplesmente parou na frente dele.
Ela ignorou Taylor completamente.
— Nós precisamos conversar.
— Precisamos?
— Você me disse, você me prometeu, que a Fundação iria ti-
rar minha família de Shenzhen.
— Isso vai acontecer – disse Einar com um suspiro. — Você
precisa ser paciente.
Taylor teve a sensação de que não era a primeira vez que eles
tinham essa conversa.
Eles entraram no palácio, os saltos de Jiao ecoando alto con-
tra os pisos de mármore. O ar estava muito mais frio do lado de den-
tro. Taylor tentou prestar atenção a seus arredores – pinturas que
provavelmente deveriam estar em museus, dezenas de cômodos,
mais e mais guardas – enquanto também ouvia Einar e Jiao.
— Já faz meses – disse Jiao bruscamente.
— As extradições levam tempo – respondeu Einar. — Eu
prometo. Vou checar para você.
— É melhor checar mesmo – disse Jiao. — Diga para aquela
britânica estúpida que esta é a última missão que estou participando
até eles cumprirem o que prometeram.
Einar assentiu com firmeza e não disse nada. Jiao lançou um
olhar sobre o ombro, observando Taylor por uma fração de segun-
do.
— Esta é a nova garota? Ela é que vai nos colocar no topo?
— Sim – respondeu Einar.
— Hmpf – Jiao lançou a Taylor outro olhar, depois se voltou
para Einar. — Onde está Rabiya?
— Não conseguiu.
Jiao estudou Einar por um momento, obviamente esperando
que ele explicasse. Taylor não ofereceu nenhuma informação. Se ela
estivesse procurando um aliado para ajudá-la a escapar, não seria
essa garota. Ela quase pareceu mais estúpida que Einar.
— Conversa maravilhosa Einar, como sempre – disse Jiao
amargamente, depois acelerou os passos pelo corredor domado do
palácio. Ela sabia para onde estava indo e não queria chegar junto
com eles.
Depois de um momento, Taylor riu. Einar olhou em sua dire-
ção, seus lábios franzidos.
— Eu finalmente entendi – disse Taylor.
— Entendeu o que?
— Costumavam ter esses grupinhos na minha escola, as me-
ninas malvadas que eram alguns anos mais velhas que eu. Todas tra-
balhavam na mesma loja no shopping. Isso... bem, você provavel-
mente não tem isso na Islândia. É como uma loja popular onde eles
vendem calças jeans e camisolas com grandes logos da loja costura-
dos neles.
Logo à frente, Jiao empurrou um conjunto de portas duplas
esculpidas à mão e entrou na sala no final do corredor. Einar desace-
lerou e depois parou, se virando para encarar Taylor. Os guardas os
seguiram – os cercando, na verdade – e pararam numa distância res-
peitável.
— Chegue ao ponto, por favor – disse Einar.
— Está bem. Essas garotas eram realmente próximas até uma
delas ser promovida para supervisora e então ela ficou toda séria,
mandando nas outras, basicamente agindo como se fosse importan-
te. Um pouco de poder subiu direto para a cabeça dela – ela apontou
para Einar. — Esse é você, cara. Você é como... o estagiário do ge-
rente. O quão triste é isso?
Einar fechou os olhos por um momento, depois os reabriu.
— Você já terminou?
— Bem, a moral da história é que a loja fechou e todas tive-
ram que encontrar novos empregos de verão, mas a amizade já esta-
va totalmente arruinada – disse Taylor com um sorriso brilhante. —
Então, aplique esse conselho no que vale a pena.
Einar pegou Taylor pelo braço e a conduziu para a sala em
que Jiao tinha entrado. — Essas tentativas de tentar fazer minha ca-
beça não a levarão a lugar algum – disse ele. — Eu não sou uma va-
dia tola da sua escola.
— Não estou tentando fazer sua cabeça – insistiu Taylor. —
Estou tentando fazer você ver quão estúpida é sua situação.
— Cale a boca, agora – mandou Einar.
Einar a conduziu pelas portas duplas. Os olhos de Taylor le-
varam um momento para se ajustarem – o resto do palácio tinha
sido absorvido pela luz do sol, mas este quarto era mantido de forma
intencionalmente escura, todas as cortinas fechadas, velas cintilando
em suportes na parede.
O quarto era grande, com um teto abobadado que mostrava
um mosaico de pássaros entre árvores. Incenso queimava em um
canto, onde um grupo de mulheres estava reunido, todas cobertas
dos pés à cabeça, ajoelhadas e com as testas tocando o chão em ora-
ção. Espalhados ao redor do quarto havia mais guardas com mais
armas. Taylor engoliu em seco.
Um homem mais velho com uma grossa barba branca estava
sentado numa pequena mesa, uma taça de vinho escuro não muito
longe de sua mão. Ele usava uma túnica dourado e branco, e Taylor
podia dizer imediatamente que ele estava no comando aqui, o humor
da sala parecia se dobrar em volta dele.
Este deve ser o sheik. Ele lançou a ela e a Einar um olhar se-
vero quando eles entraram, seus dedos tamborilando na mesa, mas
não disse nada. Ao seu lado, havia uma mulher árabe, que não estava
vestida dos pés à cabeça como o grupo do canto, mas sim com um
hijab e um jaleco de laboratório. Uma médica tradicional. Ela se aga-
chou ao lado do homem mais velho e lhe mostrou um gráfico, expli-
cando algo em árabe.
— Estamos atrasados – disse Einar calmamente para Taylor.
— Eu tive essa impressão.
A atenção de Taylor se voltou para a cama box que dominava
o centro da sala. Deitado lá estava o príncipe doente. Ele parecia
uma versão mais nova e mais bonita do sheik. Sua barba e os cabelos
estavam cortados meticulosamente.
Ao contrário do bronzeado saudável de seu pai e dos guarda-
costas, a pele do príncipe estava cinza, as bochechas secas, seu corpo
magro e emaciado debaixo dos lençóis. Ele estava ligado a uma vari-
edade de equipamentos médicos, os sinais sonoros em constantes
zumbidos, criando um estranho coro com as orações na parte de trás
da sala. Se não fosse pelo lento movimento do peito, Taylor teria
pensado que o príncipe estava morto.
Jiao já estava na cabeceira do príncipe. — Apresse-se, novata
– disse ela.
Havia outros dois jovens ao redor da cama do príncipe. O
primeiro era um menino gorducho com uma juba de cabelos encara-
colados. Seus olhos estavam vermelhos, um dos lados de seu rosto
estava cheio de hematomas recentes.
Ele olhou para Taylor com entusiasmo e depois desviou o
olhar. Outro prisioneiro da Fundação. Taylor se lembrou de Isabela
mencionando um garoto com o Recupero que já havia se formado
na Academia e trabalhava na Garde Terrestre, e que era italiano...
poderia ser ele? Vincent, ela pensou que fosse o nome dele.
Na frente de Vincent estava um menino ainda mais jovem
com pele escura, cabelos brancos espetados e sem pernas. Ele estava
sentado em uma cadeira de rodas e parecia completamente fora de si
– sua cabeça se movia de um lado para o outro, os olhos vazios.
Um par de microchips estranhos estava preso em suas têm-
poras. Uma mulher mais velha vestida de forma conservadora estava
atrás da cadeira de rodas, com a mão descansando suavemente no
ombro do garoto. Taylor se viu olhando esta pobre alma, simpatia
misturando-se com apreensão.
— A Fundação é generosa – disse Einar em seu ouvido, sur-
preendendo Taylor. — Mas, como você vê, eles também podem ser
cruéis.
Ele a empurrou para a cama do príncipe. Taylor acabou pa-
rando no pé da cama, Jiao na cabeceira, e os dois meninos um de
cada lado. Taylor olhou nervosamente para os meninos traumatiza-
dos, pelo menos até Jiao estalar os dedos.
— Concentre-se – ela bufou. — Siga minha energia.
A testa de Taylor enrugou. — Seguir sua... me desculpe. Eu
nunca fiz isso em grupo antes.
Ela sentiu o sheik se mexer impaciente atrás dela, mas o igno-
rou.
Jiao revirou os olhos. — Você saberá o que fazer assim que
começarmos – ela gesticulou na direção do menino aleijado. — Até
um vegetal consegue fazer.
Não prestando atenção à observação de Jiao, a mulher que li-
dava com a cadeira de rodas abaixou-se e sussurrou algo na orelha
do garoto sem pernas. Roboticamente, ele estendeu a mão e apertou
o pulso do príncipe adormecido. Vincent, ainda evitando o olhar de
Taylor, fez o mesmo com o outro braço do príncipe.
— Está vendo? – disse Jiao, e colocou as mãos em ambos os
lados do rosto do príncipe. Ela fechou os olhos e começou a traba-
lhar.
Taylor podia sentir todos eles usando seus Legados. O resto
das pessoas na sala podem não perceber, mas para Taylor, a energia
curativa emitia uma aura quente.
Com cuidado, ela afastou o lençol e colocou as mãos sobre os
pés do príncipe.
Ela sentiu movimento. O príncipe abriu os olhos. Ele olhou,
piscando, para Taylor, e um pequeno sorriso se formou em seus lá-
bios. Ele quase pareceu calmo. Havia algo bom em sua expressão –
gentileza.
— Você é uma boa pessoa?
As palavras surgiram antes que Taylor pudesse detê-las. Ela
sentiu uma mudança inquieta dos muitos guardas da sala e sentiu
Einar avançar atrás dela. Ao mesmo tempo, os dedos do sheik de
repente pararam de tamborilar na mesa.
O príncipe lutou para conseguir juntar as palavras: — ... O
que?
— Você é uma boa pessoa? – repetiu Taylor. — Por que, sa-
be, todos nós fomos basicamente sequestrados para curá-lo. Alguns
provavelmente foram torturados. Então, eu quero saber se você,
sabe, vale o constrangimento...
Vincent tremeu, mas fingiu não ouvir, os olhos fechados. O
menino sem pé permaneceu caído sobre o príncipe, despejando sua
energia de cura. A mulher que cuidava dele lançou um olhar severo
para Taylor. Jiao lentamente abriu os olhos, seus lábios se curvaram
com desdém.
O príncipe espreitou ao redor de Taylor, procurando por seu
pai. Ele parecia confuso. Algo sem comunicação verbal aconteceu
entre ele e seu pai. Finalmente, ele olhou para ela e lentamente ba-
lançou a cabeça.
— Eu... não posso responder isso – disse o príncipe.
— Bom, pense nisso quando estiver melhor – disse Taylor.
— Porque esta coisa de Fundação é totalmente uma merda e alguém
precisa fazer algo a respeito.
Com isso, Taylor fechou os olhos e apertou os pés do prínci-
pe. Ela sentiu a doença que espreitava dentro dele, assim como sen-
tia três faróis de luz pulsantes tentando queimá-la. Ela adicionou sua
energia de cura, dando o máximo que pôde, como se sua vida e não
a do príncipe dependesse disso.
CALEB CRANE
APACHE JACK’S – NOVO MÉXICO

Jack’s num silêncio desconfortável. Os Ceifadores pareciam ter


terminado os preparativos em sua efígie de cobra, um punhado
deles estava reunido em torno da estrutura de madeira, alguns
segurando tochas, ansiosos para o que aconteceria em seguida.
Mais deles estavam caminhando ao redor dos fundos do bar.
Caleb se lembrou de uma cena de quando ele tinha quator-
ze anos e seu irmão mais velho pediu para ele buscá-lo em um dos
bares perto da base. Ele nem tinha idade suficiente para dirigir,
mas ele foi, independentemente da ameaça de apanhar caso ele
não fosse. A atmosfera lá - pessoas bêbadas à procura de proble-
mas – lembrou-lhe muito da Apache Jack’s.
Isabela tinha ido há vinte minutos.
Não deveríamos ter a deixado ir lá sozinha.
Nós deveríamos pedir ajuda agora. Ligar para a Academia.
Nós podemos ganhar deles. Ficar escondido é monótono.
Mate todos lá embaixo.
Prove a si mesmo.
Eles nem gostam de nós. Corra na direção oposta. Deixe-os.
CALE A BOCA! – Caleb insistia.
Na escuridão, Caleb viu Nigel olhando em sua direção. Ele
percebeu que estava rangendo os dentes, as veias do pescoço es-
tavam saltadas. Ele se forçou a relaxar.
O som abafado de tiros surgiu do interior do bar. Os Gar-
des pularam de susto, assim como os Ceifadores lá embaixo. Eles
pareciam inseguros – alguns deles seguiram para o bar, outros se
afastaram. Aqueles que tinham armas as levaram.
— Vocês ouviram isso? – Caleb perguntou aos outros.
— Sim – respondeu Ran.
Segundos depois, uma bola de fogo explodiu pela porta dos
fundos do Apache Jack’s. A força arrancou a porta das dobradiças
e explodiu as janelas dos fundos do bar. Vários Ceifadores foram
arremessados para fora da varanda, e os que estavam mais distan-
tes se apressaram para ajudá-los. O fogo crepitava sobre a moldu-
ra da porta e fumaça negra subia para o céu noturno. Um moto-
queiro saiu correndo pela porta dos fundos e se jogou no chão
numa tentativa de apagar as chamas em suas costas.
— Caramba! – observou Nigel. — Imagino que isso seja
um sinal de socorro, né?
— Nós temos que ir lá – disse Kopano com firmeza, come-
çando a seguir em frente.
Caleb o segurou pelo braço, parando-o. — Espere um pou-
co. Deixe-me ir primeiro – ele fez uma pausa. — Quer dizer, dei-
xe eles irem primeiro.
Uma dúzia de clones pulou para fora de Caleb. Seus três
amigos recuaram, dando-lhe espaço enquanto o local com as ár-
vores ficava repentinamente lotado. Caleb ficou agradecido pela
oportunidade de ser útil com seus clones, isso acalmou as vozes
em sua cabeça. Mentalmente, ele ordenou que se espalhassem. Ele
os manteve abaixados – mesmo que houvesse poucas chances de
serem vistos pelos Ceifadores, já que toda a atenção estava no
fogo – e os clones se espalharam pela floresta.
— Eu vou atacá-los por todos os ângulos – disse Caleb. —
Mantenha-os ocupados.
Ran não tirou os olhos do caos no bar. Ela girava uma pi-
nha em sua mão, uma pequena quantidade de coisas sendo reco-
lhidas para perto de seus pés.
— Eu não a vejo lá embaixo – disse Ran. — Eu não acho
que a explosão foi pura diversão. Isabela pode estar presa lá.
— Eu vou ficar de olho nela – disse Caleb.
Nigel colocou uma mão em seu ombro. — Você pode con-
trolar todos aqueles clones?
Caleb assentiu, embora não tivesse completamente certeza.
Uma dúzia de uma vez só era mais do que ele conseguiu durante a
luta na noite passada e aquilo o deixou destruído, como se seu
corpo estivesse sendo esticado para muito longe.
Dane-se isso. Precisavam encontrar Taylor.
Ele ordenou que os duplicados seguissem adiante. Focan-
do, ele dividiu sua atenção entre os clones, fazendo com que eles
se movessem com cautela.
Os clones se espalharam através das árvores para que eles
não entregassem a posição de Caleb e dos outros. Alguns se
aproximaram do Apache Jack’s pelas laterais. O objetivo era loca-
lizar Isabela, e ela poderia estar em qualquer lugar dentro do bar.
A visão de Caleb ficou turva. A visão de cada um dos clones era
como uma imagem transparente de um filme sendo colocado em
um ângulo diferente. Se Caleb se concentrasse, ele poderia isolar
uma visão de cada vez, mas isso significaria perder controle sobre
os outros clones.
— Estou os mandando entrar – ele disse através dos den-
tes. Em toda a floresta, os clones sussurraram suas palavras.
— Nós estamos te dando cobertura, cara – disse Nigel,
aproximando-se.
Uma dúzia de Calebs seguiu para o Apache Jack's. Os Cei-
fadores não os viram chegar. Eles estavam muito focados no fogo
e tudo o que estava acontecendo dentro do bar. Ele atingiu os
retardatários primeiro, os mais próximos do bosque. Dois dos
clones abordaram um motoqueiro com excesso de peso e o derru-
baram, deixando-o inconsciente.
Uma Ceifadora próxima – estava vestida como um vaquei-
ro e segurando uma espingarda – ouviu a agitação e se virou. Um
terceiro clone estava lá nesse momento e arrancou a arma das
mãos dela. O clone girou com força a arma numa posição de tiro e
apontou.
Este clone queria matar, mas Kopano os encorajou a evitar
o derramamento de sangue. Então Caleb assumiu o controle. Ele
esbofeteou a Ceifadora no rosto com o cano da arma e depois a
jogou na floresta.
Seus clones começaram a avançar. Eles eram como uma
onda, pegando os Ceifadores por trás e os esmagando no chão.
Uma mulher que estava trabalhando na efígie ouviu um grito
abafado e se virou logo antes de um dos clones pular sobre ela.
Ela empurrou sua tocha na direção dele, queimando seu rosto. A
dor não se transferiu para Caleb, apenas a vaga sensação de que
esse clone em particular não era mais completo.
— Estamos sob ataque! – gritou a mulher.
Um homem sem camisa que estava tentando apagar o fogo
se virou com o grito da mulher. Ele puxou uma pistola da parte
de trás do jeans e atirou no clone queimado no rosto.
Não há mais o elemento surpresa. Mas pelo menos os clo-
nes haviam acabado com um punhado de Ceifadores antes de se-
rem descobertos.
Caleb sentiu algo atravessá-lo quando o clone se desinte-
grou e voltou para ele.
Imediatamente, ele rangeu os dentes e manifestou o clone
novamente, enviando-o correndo pela floresta para atacar o bar
por um novo ângulo.
— As abominações nos seguiram, irmãos e irmãs! – gritou
um Ceifador encolhido nos fundos do bar. — Os derrotem pelo
Reverendo Jimbo!
Um dos clones pulou sobre a cerca da varanda e deu um
soco na boca dele. Segundos depois, um Ceifador de cabelos com-
pridos, que parecia ter passado os últimos cinco anos vivendo na
floresta, emergiu da porta por onde saía a fumaça. Tossia de for-
ma irregular, mas carregava um rifle automático.
O Ceifador começou a pulverizar balas de forma selvagem.
Ele matou três clones e possivelmente alguns dos seus próprios
amigos. As balas chegaram até às árvores. Ran e Kopano se abai-
xaram para se proteger, enquanto Nigel puxou o focado Caleb
para o chão.
Com uma respiração aguda, Caleb sentiu os clones voltan-
do para ele. Ele imediatamente os soltou novamente, os forçando
a correr de volta à batalha.
— Por quanto tempo você consegue manter isso? – per-
guntou Nigel.
— Não tenho certeza – respondeu Caleb, uma enxaqueca
rasgando seu cérebro. Ele estava se perguntando quem ficaria
sem munição primeiro – ele ou o homem na varanda dos fundos.
Os Ceifadores que estavam perto da varanda dos fundos se
protegiam atrás dos estilhaços quebrados de madeira da grade.
Eles estavam presos entre o fogo e os clones, mas estavam come-
çando a se organizar. Estavam derrotando os clones de Caleb
mais rápido do que ele os podia fazer. Alguns de seus clones pe-
garam rifles e retornaram ao fogo. A situação era muito desespe-
radora para lidar gentilmente. Precisavam encontrar Isabela e
sair dali.
Na escuridão da floresta Caleb não conseguiu ver se Kopa-
no estava com um olhar de desaprovação. Caleb trocou de visão,
passando a olhar através dos olhos de um clone que se deslocava
ao lado do Apache Jack’s. Ele olhou através de uma janela suja.
No interior, um grupo de Ceifadores em pânico estava con-
trolando o fogo – parecia estar localizado em torno da porta dos
fundos, onde Caleb podia ver morangos carbonizados e objetos
torcidos, que costumavam ser garrafas de combustível. Outros
Ceifadores haviam aberto um alçapão que continha um estoque de
armas, e o barman estava distribuindo rifles a quem quer que pe-
gasse. Logo, eles estariam com sérios problemas.
Foi quando Caleb notou o freezer. Na parte de trás do bar,
perto de onde aconteceu a explosão, havia uma porta de aço pesa-
da. Um trio de motoqueiros ameaçadores em máscaras de gás se
revezava arrombando a porta com machados, tentando abri-la.
Naquele momento um dos Ceifadores recém-armados veio
da frente do bar, indo para a parte de trás. Ele viu o clone de Ca-
leb e, sem hesitação, atirou na cabeça dele. Caleb ofegou. — Ela
está trancada em um freezer – ele anunciou sem fôlego. Ele apon-
tou para a entrada de trás. — Bem ali.
— Você tem certeza? – Ran perguntou.
— Tem que estar – disse ele. — Os Ceifadores estão ten-
tando arrombar a porta para entrar.
— Eu vou buscá-la – disse Kopano, estralando os dedos.
— As balas deles não podem me machucar.
— Eu vou com você – Ran respondeu.
Nigel colocou uma mão no ombro de Caleb. — Você vai fi-
car bem aqui, cara?
Caleb assentiu. Na verdade, ele estava começando a se sen-
tir despedaçado, como se seu corpo estivesse se separando. Mes-
mo assim, ele criou outro clone e o enviou para a briga. — Vou
continuar criando os clones pelo tempo... pelo tempo que eu pu-
der – disse ele.
Nigel assentiu e se virou para Kopano. — Garotão, deixe
eu e Ran criar uma pequena distração antes de você ir para cima
eles, beleza?
Os três começaram a avançar, aproximando-se pelas som-
bras e pelas árvores para evitar balas perdidas. Naquele momen-
to, os Ceifadores estavam muito preocupados com os clones res-
tantes para perceberem a nova abordagem. Caleb manteve seu
clone mais recente com seus três colegas, querendo ter certeza de
poder ver e ouvir o que estava acontecendo com eles.
Um dos Ceifadores tinha deixado cair uma tocha acesa na
grama. Ainda estava acesa. Ran ou Nigel – ele não podia ter cer-
teza de quem – usou telecinese para pegar a tocha e flutuá-la dire-
tamente na efígie.
A escultura de serpente de madeira embebida em combus-
tível explodiu em chamas com um poderoso whoosh! - e mesmo
do bosque, Caleb podia sentir o calor. Aqueles Ceifadores para-
ram de atirar por um momento, confusos com esse último aconte-
cimento.
A confusão se tornou terror quando a ardente efígie de co-
bra levitou do chão. Deve ter sido preciso que Kopano, Ran e Ni-
gel trabalhassem juntos para realizar o feito telecinético, mas lo-
go a cobra pairava sobre os fundos de Apache Jack’s, e vaga-
lumes de madeira ardente choviam sobre os Ceifadores. Alguns
deles dispararam sem sentido na efígie.
— SUAS BALAS NÃO PODEM ME MACHUCAR,
MORTAIS!
A voz aterrorizante surgiu da cobra. Fora Nigel, usando
seu Legado para transmitir a voz e fazê-la soar tão alta quanto
possível. Tão desesperado quanto à situação, Caleb não pode evi-
tar um sorriso.
— SEUS IMBECÍS! USARAM MEU NOME EM VÃO
MUITAS VEZES! – a cobra em chamas gritou. — AGORA VOU
DAR UMA BARRIGADA NOS SEU TRASEIRO IDIOTA!
Muitos Ceifadores na varanda já haviam começado a se es-
palhar e o resto logo se juntou a eles quando a efígie ardente caiu
na parte de trás do bar. Brasas encheram o ar, queimando a ma-
deira, pequenos incêndios começando em todos os lugares. Os
Ceifadores se afastaram, muitos se perdendo na poeira, onde os
clones remanescentes de Caleb podiam atacá-los e desarmá-los.
Os que conseguiram ficar de pé se depararam com pinhas
brilhantes no chão. As explosões concussivas os lançaram para
trás.
De repente houve uma pausa na luta e um caminho limpo
se abriu para o Apache Jack’s – bem, claro, exceto por toda a fu-
maça e os pedaços de madeira queimados.
Kopano seguiu por esse caminho, desviando os detritos pa-
ra os lados com sua telecinese. Nigel e Ran seguiam atrás dele,
com o clone de Caleb na retaguarda. Eles corriam abaixados para
evitar a fumaça que agora estava em todos os lugares. O calor dos
pequenos incêndios fez todos – exceto o clone – começarem ime-
diatamente a transpirar.
O trio de Ceifadores com suas máscaras de gás haviam pa-
rado de tentar arrombar a porta do freezer e agora estavam a pos-
tos. Eles viram Kopano e um deles se posicionou. Seu machado foi
lançado na direção do antebraço de Kopano, e o nigeriano o der-
rubou com um gancho de direita bem executado. Uma pinha in-
candescente explodiu contra o peito de um segundo Ceifador, lan-
çando ele e seu machado sobre uma mesa próxima. Nigel usou sua
telecinese para virar a máscara de gás no rosto do terceiro. En-
quanto o homem tirava as cintas da máscara de seus olhos, Kopa-
no o derrubou com um chute no esterno.
— Mamão com açúcar – observou Nigel, olhando para o
clone. Ele bateu na porta do freezer amassado severamente. — Ei,
Isabela! Você está aí?
Eles ouviram um som de moagem do outro lado da porta –
algo sendo solto. Um momento depois, o freezer se abriu. Isabela
estava encurvada diante deles, o rosto enegrecido com cinzas, sua
bochecha respingada com sangue. Ela falou algo em português.
— Ahn? – Nigel respondeu.
Isabela gemeu. Ela levantou a pulseira que Simon havia
carregado para ela, balançando-a na frente do rosto de Nigel e
jogou fora.
— O inglês dela já era – observou Ran.
— Momento perfeito para isso acontecer – disse Nigel sar-
casticamente.
Ran colocou a mão no ombro de Isabela, olhando para o
que parecia ser uma ferida de bala. — Quão ruim você está ma-
chucada?
Isabela olhou para baixo, depois inclinou a mão para frente
e para trás, como se quisesse dizer mais ou menos. Ela apontou
para trás, falando rapidamente em português.
Caída no chão do freezer estava a garota da rodovia. Ela
havia sido espancada brutalmente, mas estava consciente. Um
pedaço de teto de metal que parecia ter sido recentemente arran-
cado estava preso a seus pulsos, por um par daquelas algemas
magnetizadas que os pacificadores haviam usado no evento da
noite anterior. Ela lutou para se sentar.
Nigel e Ran foram até a menina. Caleb manteve seu clone
na entrada, segurando Isabela. Kopano ficou de guarda na porta,
observando os Ceifadores.
— Meu lindo amorzinho. Eles arregaçaram você, hein -
observou Nigel enquanto agarrava o braço da garota e, com a
ajuda de Ran, conseguiu levantá-la. — Qual o seu nome?
— Rabiya – a garota gemeu. Sangue pingava do queixo de-
la.
Enquanto eles a arrastavam para fora do freezer na direção
da fumaça dos restos do Apache Jack’s, Nigel percebeu que havia
estranhos microchips triangulares afixados nas têmporas de Ra-
biya. — O que são eles? – perguntou, ajustando um deles.
Rabiya levantou as mãos para tocar os microchips e quase
se atingiu no rosto com o pedaço do teto. — Eles... neurotrans-
missores. Eles acabam com minha telecinese.
Nigel levantou uma sobrancelha e trocou um olhar com
Ran. — Aposto que você gostaria que nós tirássemos isso, hein?
— Sim.
— Você sabe quem somos, então?
Ela assentiu devagar.
— Você pegou a nossa amiga – continuou Nigel. — Quase
nos matou. Mas aqui estamos, chegando ao seu sangrento resga-
te.
— Obrigado... obrigado – disse Rabiya.
— Não me agradeça ainda. Você pode fazer Loralite, né?
Esse é o seu dom? – ele fez uma pausa para permitir que Rabiya
assentisse. — Você sabe para onde aquele seu colega elegante-
mente vestido de terno levou Taylor? Você pode nos levar para
lá?
A boca de Rabiya se abriu enquanto procurava palavras. —
Eles são pessoas perigosas.
Quando eles atravessaram os escombros em chamas, na
parte de trás de Apache Jack’s, a faca de um Ceifador voou na di-
reção deles. Kopano desviou a faca com a mão aberta e depois
derrubou o Ceifador com um gancho.
— Somos pessoas perigosas – disse Ran com frieza.
Rabiya olhou para Ran, sua expressão se endureceu lenta-
mente. — Ele era... eles deveriam ser meus amigos – Rabiya disse
calmamente. — Em vez disso, me deixaram para morrer. Nós
deveríamos levar sua amiga para uma casa segura na Islândia. Eu
posso levá-los para lá. Mas vocês têm que soltar minhas mãos.
Nigel olhou para Ran. A menina japonesa sacudiu a cabeça.
Ela soltou um dos braços de Rabiya e a garota quase afundou na
varanda arruinada.
— Eu não acredito nela – disse Ran. — Deixe-a aqui. Dei-
xe esses animais acabarem com ela.
Mesmo através dos ouvidos do clone, Caleb podia dizer
que Ran estava blefando. Era um caso clássico de policial bonzi-
nho. O clone estava olhando para Isabela, que ainda estava segu-
rando. Se ela pudesse entender o inglês, Caleb tinha certeza de
que a brasileira apreciaria um pouco dessa ceninha.
Rabiya mordeu a isca. — Por favor! – ela gritou, sua voz
rouca. — Eu nunca quis participar da Fundação! Eles me obriga-
ram... eles...
Ran agarrou Rabiya pelas algemas. — Isso vai doer – ad-
vertiu ela.
Com um toque, Ran carregou as algemas segurando os
pulsos de Rabiya. Ela não colocou tanta energia no metal como
costumava fazer quando criava uma granada, mas o objeto de alta
tecnologia ainda explodiu com força suficiente para jogar Rabiya
para trás. Ela se sentou de volta, esfregando os pulsos que já es-
tavam inchados.
— Eu acho que você quebrou minha mão – ela disse cal-
mamente.
— Que pena que você sequestrou justo quem podia te cu-
rar – respondeu Nigel enquanto a ajudava a se levantar. Rabiya
estendeu a mão para tirar os microchips em suas têmporas. Nigel
deu um tapa nas mãos.
— Pode tirar o cavalinho da chuva. Sem telecinese até você
provar que não está blefando.
Ela não discutiu. Em vez disso, gesticulou para a grama ao
lado da varanda esfumaçada. — Lá. A Loralite só cresce do chão.
Naquele momento, um tiro saiu do interior do bar. A bala
atingiu Kopano, que devolveu o fogo, telecineticamente, empur-
rando um par de cadeiras para o corredor atrás deles. Os Ceifado-
res começaram a se reagrupar. Eles fugiram para frente do bar
quando a efígie caiu, mas ainda estavam armados e eram estúpi-
dos. Eles voltariam a atacar em breve.
Kopano esfregou nervosamente a mancha no ombro onde a
bala o atingiu. — Rápido!
Caleb rapidamente mudou a visão para outro de seus clo-
nes que estava vigiando o lado do bar. Ele podia ver os Ceifadores
se afastarem, planejando um novo ataque.
— Depressa, depressa – disse seu clone, ajudando Isabela a
descer da varanda. Nigel e Ran seguiram apoiando Rabiya entre
eles. Kopano chegou por último, usando sua telecinese para con-
gestionar a porta dos fundos com móveis e escombros.
Naquele momento, um sentimento gelado caiu sobre Ca-
leb. Não era necessariamente um sentimento desagradável. Era
como um entorpecimento se espalhando sobre suas pernas. De
início, ele pensou que fosse uma sensação proveniente do corpo de
um dos clones. Mas não, isso estava acontecendo em seu corpo
verdadeiro.
Algo estava errado.
Caleb tentou avançar e caiu de joelhos. Suas pernas esta-
vam pesadas.
Elas viraram pedra. Literalmente.
Com um gemido, Caleb caiu. Ele sentiu movimento nas ár-
vores atrás dele e percebeu um brilho de energia prateado.
— Ah, e aí, Caleb?
Daniela.
Ele não via a menina há mais de um ano, não desde que ela
foi enviada diretamente para a Garde Terrestre em vez da Aca-
demia. Daniela parecia a mesma de sempre, com exceção de sua
roupa – ela usava um macacão preto apertado que sinalizava seu
corpo magro, e suas tranças geralmente rebeldes estavam amar-
radas em um rabo de cavalo espesso. Ela ficou de pé na frente de
Caleb, e uma equipe de pacificadores com óculos de visão noturna
se aproximavam pelas árvores atrás deles.
— Como... como você nos encontrou? – Caleb balbuciou.
— Nós não encontramos vocês, encontramos eles – Dani-
ela respondeu, acenando na direção do bar e dos Ceifadores. —
Todos estão procurando por vocês, fico feliz por estarem juntos.
Os outros estão bem?
Caleb não respondeu imediatamente. Em vez disso, ele
olhou através dos olhos de seu clone, parando ele onde estava
enquanto seus amigos arrastavam Rabiya pelo campo em direção
ao bosque.
— Parem! – ele fez o clone gritar. — A Garde Terrestre
está aqui! Eles estão comigo.
À distância, o whup-whup-whup de helicópteros tornou-se
audível.
— Merda – disse Nigel. Ele largou Rabiya. — Se apresse.
Faça agora a Loralite.
Rabiya olhou nervosamente por cima do ombro, preocupa-
da com o fato de que os Ceifadores pudessem chegar a eles a
qualquer momento. — Aqui?
Daniela chacoalhou o ombro de Caleb e ele se concentrou
nela. Ela se agachou ao lado dele enquanto os soldados pacifica-
dores continuavam na direção do Apache Jack's.
— Ei, cara, onde você foi?
— Por que você me petrificou? – respondeu Caleb. — Eu
posso ajudar.
— Ah, desculpe por isso – ela respondeu. — A Garde Ter-
restre está executando esta operação e você não está autorizado a
participar. Não posso arriscar que machuquem você – ela tocou
um rádio fixado em seu ombro começou a falar. — Estou com o
Caleb Crane aqui em baixo... - ela ouviu uma resposta e depois
sorriu para Caleb. — Pô, cara... o professor Fortão não está nada
feliz.
— Nove? Nove está aqui?
Os helicópteros apareceram. Três deles, todos circulando.
Seus holofotes varreram pela encosta arborizada em torno do
Apache Jack's.
Caleb observava com o clone escondido na frente do bar.
Muitos dos Ceifadores estavam fugindo, pegando suas motocicle-
tas e caminhões e acelerando para a estrada. Alguns deles foram
iluminados pelos holofotes dos helicópteros. Eles foram rapida-
mente derrubados com os tiros do atirador de elite.
— Ceifadores recuando, Garde Terrestre se aproximando
– relatou Caleb através de seu clone.
Um redemoinho de energia azul cobalto começou a sair
das palmas estendidas de Rabiya e atingiu o chão. Com um gemi-
do da terra, uma pilha afiada de Loralite lentamente começou a
crescer.
A luz azul chamou a atenção de um dos pilotos dos heli-
cópteros. Eles abriram o foco ao redor, iluminando o grupo de
Gardes, e logo o helicóptero estava quase sobre eles.
— Quanto você precisa fazer? – Kopano perguntou a Ra-
biya.
— Quase... – disse ela com cansaço. — Quase lá.
— Que porra é essa? – Isabela disse, apontando para o he-
licóptero.
Alguma coisa havia caído da porta aberta do helicóptero.
THOOM! Nove atingiu o chão com uma explosão de poei-
ra e pedaços de madeira quebrados. Ele pousou bem na frente de
seus alunos. Todos os olhos se arregalaram para a cratera rasa
que ele criou, e fez Rabiya gritar, interrompendo seu processo de
criação da pedra de Loralite. Nove sorriu quando ele se endirei-
tou.
— Já passou da hora de dormir, molecada.
Nigel foi o primeiro a recuperar o juízo. — Legal te encon-
trar aqui, prof.
Nove os olhou rapidamente, procurando por lesões. Talvez
satisfeito depois que viu que ninguém estava gravemente ferido,
ele colocou as mãos nos quadris. Seus olhos se arregalaram um
pouco quando ele notou Rabiya e a crescente pilha de pedras bri-
lhantes no chão.
— Isso é Loralite – disse Nove, e todos podiam dizer que a
cabeça do professor estava trabalhando. — Nós encontramos al-
gumas no local onde vocês foram emboscados, estava tentando
descobrir de onde... - ele deu um passo na direção de Rabiya. —
Qual o seu nome? De onde você veio?
Ran se colocou entre Nove e Rabiya. Ele parou, levantou
uma sobrancelha.
— Continue – Ran disse a Rabiya por cima do ombro.
— Nós vamos encontrar Taylor – disse Kopano a Nove.
— Não, nós vamos encontrar Taylor – insistiu Nove, gesti-
culando para os pacificadores e a Garde Terrestre. Havia sons de
um pequeno tiroteio na parte da frente do bar. Enquanto isso,
Daniela ajudou o Caleb petrificado a sair da floresta, a equipe de
pacificadores se revelando. Caleb e seu clone trocaram um olhar.
— Fez um ótimo trabalho passando informações para eles,
satisfeito? – perguntou Nigel.
Nove levantou uma sobrancelha. — Nós o encontramos,
não foi?
— Vocês tropeçaram em nós – disse Caleb.
Nove gesticulou. — Mesma coisa.
— Nós sabemos onde ela está – disse Kopano. — Ela está
na Islândia. Vamos buscá-la.
— Não. Vocês não vão.
Nove deu outro passo à frente. Ou, pelo menos, ele tentou.
Como se fossem um, Nigel, Ran e Kopano estenderam as mãos,
empurrando suavemente Nove para trás com sua telecinese. Isa-
bela, ainda segurando a parte lateral ferida do corpo com a mão,
juntou-se a eles um segundo depois.
— Ah, me poupem dessa merda – disse Nove. Ele forçou
os calcanhares e avançou. Caleb olhou com um aperto crescente
em seu peito. Nove era forte. Ele provavelmente poderia quebrar
a força telecinética deles, se quisesse.
— Pare, professor – apelou Kopano. — Vamos trazer Tay-
lor de volta. Eu prometo.
— Como se o seu grupo nunca tivesse se separado para
salvar a vida de alguém – acrescentou Nigel.
— Eu não posso deixar vocês irem – Nove respondeu, as
palavras soando vazias. — O que vocês estão fazendo não é segu-
ro. Tenho certeza de que também está violando algum daqueles
estúpidos estatutos da Garde.
— Lugar algum é seguro para nós – disse Ran. — Patience
Creek é uma prova viva disso.
— Aquilo foi durante a guerra – respondeu Nove. — É di-
ferente agora.
— Não parece tão diferente – disse Nigel. Ele olhou para a
direção dos pacificadores que se aproximavam, observando que
alguns deles estavam armados com os objetos não-letais que ha-
viam usado durante a atividade. — Você quer nos dizer como es-
ses Ceifadores retardados tiveram acesso às mesmas armas que
seus amiguinhos do exército?
— Eu não sei – Nove disse. — Estamos investigando isso.
— Tá. Certo. Então, continue fazendo isso, atrás da sua
mesa – respondeu Nigel. — Vamos lidar com a merda do heroís-
mo – Nove zombou e começou a dizer algo, mas Ran o cortou.
— Você sabia – ela disse de repente, como se o fato tivesse
acabado de surgir para ela. — Naquela noite na praia. Você estava
me avisando. Me disse para que eu ficasse de olho em Taylor. Vo-
cê sabia que alguém poderia estar atrás dela.
— Eu... – Nove olhou para o helicóptero que circulava
acima. — Há muita coisa acontecendo que vocês desconhecem.
Rabiya respirou fundo e caiu contra Nigel. A pedra de Lo-
ralite estava feita, o azul cobalto refletindo os pequenos incêndios
que ainda pairavam no bar.
— Cara, você pode brigar com a gente quando voltarmos –
disse Nigel. — Em quem você confia para ir buscar Taylor? Em
nós ou nesses caras da Garde Terrestre?
Nove suspirou. Através dos olhos de seu clone, Caleb viu
algo parecido com nostalgia na expressão do lorieno. Ele estava
cedendo.
Caleb tentou arrastar os pés, o que não era fácil, conside-
rando que eles estavam cobertos de pedra. Ele queria desacelerar
Daniela e os pacificadores, dar aos outros a chance de convence-
rem Nove e escaparem.
— Vamos voltar – disse Kopano solenemente, lendo a hesi-
tação no rosto de Nove. — Vamos ficar bem.
— Isso – acrescentou Nigel. — Só vamos passear um pou-
co na Islândia. Não é nada demais. Se as coisas piorarem, você
pode ir nos buscar.
Nove baixou a voz enquanto ele tomava a decisão. — Pelo
menos façam parecer certo – ele empurrou o queixo na direção de
Isabela. — Mas ela não vai. Ela está muito ferida.
— Estou bem! Eu quero ajudar! – Isabela pisou o pé com
frustração quando os outros simplesmente a encararam, então se
virou e cedeu ao clone de Caleb. — Talvez não. Vão... vão...
Ran assentiu uma vez para Nove e então empurrou Rabiya.
— Nos leve até lá.
Rabiya alcançou a Loralite. Ran segurava o braço dela. Ni-
gel segurou a mão de Ran, e colocou a outra no ombro de Kopa-
no.
Nove fez uma dramática ceninha, tentando impedi-los.
O clone de Caleb o impediu.
Isabela ficou ali, parecendo intrigada, segurando seu corpo
machucado.
Em um flash de luz azul vívida, os quatro teleportaram.
NIGEL BARNABY
HOFN, ISLÂNDIA

Ele era o grande pioneiro em teleporte, graças a Deus. Ele


foi o primeiro Garde Humano a usar a pedra de Loralite
durante a invasão. A sensação de tontura de pular de um
ponto do mundo para outro instantaneamente a procura de
aventuras – ele sentiu falta.
Era o que ele sempre quis. Fazer a diferença. Agir.
Entrar em ação.
Assim como ele havia contado a Kopano no posto de
combustível, nem sempre era glamouroso. Nigel ainda tinha
flashbacks do massacre em Patience Creek. Ele ainda sen-
tia um gosto amargo na boca quando pensava nos corpos.
Mas a realidade da luta – seja contra Mogadorianos,
contra Ceifadores ou contra um Garde de aparência superfi-
cial vindo de um país deserto e congelado – não assustou
Nigel ou o fez questionar seus Legados. A feiura só o fez
querer lutar mais e com mais força. Ele passara tantos anos
como um ninguém, ignorado por seus pais, implacavelmente
implicado em Pepperpont – e, finalmente, finalmente mes-
mo, ele iria tomar seu lugar legítimo no mundo.
Por isso, quando chegaram à Islândia, Nigel sorriu.
A mudança foi impactante. Primeiro, estava frio aqui,
e a camiseta de Nigel estava empapada com suor da bata-
lha com os Ceifadores. O fôlego dele era visível em sua fren-
te e o vapor o incomodava. Também era bem cedo. Embora o
céu estivesse nublado e cinzento, a luminosidade incomodou
seus olhos. Mesmo assim, Nigel sorriu.
Talvez fora o sorriso meio louco de Nigel que fez com
que o grande homem usando armadura hesitasse a usar a
marreta. Nigel gostava de pensar assim. Mas provavelmen-
te fora o fato de quatro adolescentes se manifestarem bem
diante dele que momentaneamente atordoou o sujeito inti-
midante.
Esse era o comitê de boas-vindas. Um cara de aparên-
cia malvada estava pronto para descer a marreta contra a
pedra que eles usaram para se teleportar. Ele hesitou ape-
nas por um momento, depois continuou o movimento, não
parecendo se importar com a cabeça de Nigel agora no ca-
minho.
Kopano segurou o martelo com a palma da mão, pro-
vocando um baque metálico. Então, com o punho pesado e
duro, Kopano socou o cara no rosto. Ele caiu no chão, in-
consciente, com seu queixo quebrado.
— Ele não parecia amigável – disse Kopano.
Nigel deu um tapinha nas costas dele. — Ele certa-
mente não era nem um pouco amigável.
Eles estavam dentro de um pequeno cercado de ma-
deira. O portão estava aberto, pegadas na neve que vinham
da casa até o fortão, agora inconsciente. A casa era pitores-
ca e fofa, uma cabana de madeira, com um jardim de pedra
do lado de fora. Parecia completamente pacífico.
Ran colocou o antebraço sob o queixo de Rabiya e a
pressionou contra a parede. — Onde estamos? Para onde
você nos trouxe?
Rabiya gaguejou, seus olhos escorrendo. Nigel tocou o
ombro de Ran e ela diminuiu a pressão.
— Eu disse a vocês! Islândia! – Rabiya disse com voz
rouca. — Esta é a casa de Einar. Ele pegou a amiga de vo-
cês – seu olhar se dirigiu para o homem que Kopano tinha
apagado, e seus olhos se arregalaram.
Nigel chutou o homem inconsciente. — Quem é esse,
então? Você o reconhece?
— Blackstone – disse Rabiya. — Mercenários. Se eles
estão aqui, este lugar será queimado. Sua amiga se foi ou já
está morta. Devemos ir ou eles também nos matarão.
Nigel olhou para o mercenário inconsciente. — Este
imbecil não será capaz nem de comer alimentos sólidos em
um sonho, muito menos matar qualquer um.
— Existem outros.
Ran se virou para olhar Nigel e Kopano. — Como de-
vemos...?
No segundo que Ran desviou sua atenção, Rabiya fez
um mergulho para a pedra de Loralite.
Se ela não tivesse sido gravemente ferida pelos Ceifa-
dores, ela poderia ter conseguido. Seu corpo movia-se muito
devagar, e Ran colocou o cotovelo na parte de trás do pesco-
ço de Rabiya. A garota caiu no chão, a ponta dos dedos a
pouca distância da pedra de Loralite.
— Droga – disse Kopano.
— Poderíamos deixá-la ir – disse Nigel encolhendo os
ombros. — A coitadinha já passou por muita coisa.
— A Academia não conhece o suficiente sobre essas
pessoas – disse Ran. Ela arrastou o corpo de Rabiya para a
parte de trás do recinto e a colocou gentilmente contra a
parede. — Estou certa de que eles terão perguntas.
— Aquela merda que ela disse sobre Taylor... – Nigel
começou a dizer.
— Nós devemos verificar – respondeu Kopano.
Assim que ele saiu do recinto, Kopano foi saudado por
uma explosão de disparos de metralhadoras. Ele grunhiu
quando as balas o atingiram no meio do peito. Elas não pe-
netraram, mas seu Legado foi demasiado lento para entrar
em ação. Ele vai ter contusões. Droga.
Um segundo mercenário se agachou atrás de uma pi-
lha de pedras. Quando viu que suas balas não prejudicaram
Kopano, largou a metralhadora e pegou uma arma diferente
do cinto. Uma arma de energia. Mogadoriana.
— Onde está Taylor? – Kopano rugiu.
Ele correu pelo quintal antes que o mercenário pu-
desse disparar um tiro. Kopano agarrou o homem com as
duas mãos, o encurralou e continuou correndo com ele pen-
durado em sua frente. Ele atravessou a porta dos fundos da
casa usando o corpo do mercenário como um aríete11.
— Não há muito trabalho em equipe na abordagem
dele, mas é eficiente – comentou Nigel.
Os lábios de Ran se curvaram em um quase sorriso.
— Vamos – disse ela.
Os dois emergiram do cercado de madeira com um
pouco mais de cautela do que Kopano havia demonstrado.
Eles não eram à prova de balas. Eles podiam ouvir os sons
dos objetos quebrando dentro da casa, e Kopano repetida-
mente gritando o nome de Taylor.
— Isso é o que você esperava? – perguntou Nigel, es-
tudando o lugar.
— Absolutamente negativo – respondeu Ran.
— Também não – Nigel acenou com a cabeça para a
parede acima da porta dos fundos. — Vê aquilo?
— Câmeras – disse Ran.
Nigel estralou os dedos. — Me pergunto quem está
assistindo.
Foi um golpe de sorte. Se Nigel não tivesse voltado
sua atenção para a câmera, Ran talvez não teria olhado pa-
ra cima e visto o brilho da luz ser refletida numa janela
aberta no andar de cima.
Uma escopeta. Um atirador com rifle.
— Cuidado! – Ran gritou e empurrou Nigel para o la-
do.
Ffft! Ffft! Ffft!
Os tiros surgiram como sopros de ar, disparados atra-
vés do silenciador de um rifle de alta potência. Pedaços de
terra e gelo atingiram as pernas de Nigel, uma das balas
atingindo o lugar onde ele estava de pé segundos atrás. Ele
e Ran correram em direções opostas. Nigel se aproximou da
casa e virou em um dos cantos, enquanto Ran se abaixou
atrás de uma pilha de pedras.
— Ran! Você está bem?
— Sim – ela respondeu, mas Nigel ouviu um tom de
dor em sua voz.
Ffft! Outro tiro explodiu uma pedra perto da cabeça
de Ran.
— Estou encurralada – gritou Ran.
— Entendi! – Nigel respondeu.
De dentro da casa, Nigel ouviu o barulho de uma me-
sa sendo derrubada. Ele espiou através de uma janela pró-
xima. Kopano estava lutando contra um homem grande que
tinha uma barba grossa e um rosto cheio de cicatrizes, lu-
tando numa cozinha planejada. Kopano socou o mercenário
nas costelas, mas sua armadura absorveu o golpe.
O homem pegou uma faca de combate e deslizou na
garganta de Kopano. O corte apenas provocou um som de
esmerilhar, porém, não cortou a pele impenetrável de Ko-
pano.
— Hah! – Kopano gritou, atacando novamente.
Entretanto, o ataque com faca fora apenas uma van-
tagem. Com a mão livre, o mercenário pegou um par de al-
gemas de seu cinto. Enquanto ele se esquivava do golpe de
Kopano, o mercenário colocou o grilhão ao redor do pulso do
garoto. Imediatamente, as algemas emitiram uma vibração
e Kopano foi derrubado, seu braço preso ao lado da geladei-
ra de aço inoxidável.
Kopano rugiu, tentando libertar seu braço, o que fa-
lhou, depois tentou levantar completamente a geladeira,
mas percebeu que ela era muito pesada. Rapidamente, o
homem tirou uma pistola do coldre preso a sua coxa.
— Vamos ver se seus olhos são à prova de balas – ele
resmungou.
— Boo!
Nigel projetou sua voz para que parecesse que ele es-
tava atrás do mercenário. Ele se virou, não encontrando
ninguém. Nigel aproveitou a oportunidade para arrancar a
arma da mão dele. O homem disparou um tiro que inofensi-
vamente atingiu um sofá.
Kopano aproveitou o momento para agarrá-lo com o
colar do pescoço usando o braço que não estava preso à ge-
ladeira. Ele bateu a cabeça do cara contra a bancada, depois
o levantou usando sua telecinese, o empurrou de costas con-
tra o teto e, finalmente, o deixou cair no chão.
Enquanto isso estava acontecendo, Nigel entrou pela
janela. Ele olhou pela porta dos fundos – Ran ainda estava
abaixada atrás de algumas rochas. Enquanto observava, ela
usava sua telecinese para atirar uma pedra brilhante no
segundo andar da cabana, mirando cegamente no atirador.
Uma breve explosão aconteceu em seguida. O ar ain-
da estava instável por um momento. Ran levantou a cabeça
para espiar – ffft! – e gritou quando outra bala quase deca-
pitou a cabeça dela. O tiro roçou sua bochecha, abrindo um
corte profundo.
— Atirador no andar de cima! – Nigel gritou para Ko-
pano enquanto ele correu para as escadas.
— Estou preso!
— Uma coisa de cada vez, cara!
Nigel subiu os degraus, dois de cada vez. Sua teleci-
nese estava na ponta dos dedos – pronta para desarmar o
atirador logo que ele aparecesse. Ele correu pelo corredor,
contando as portas para combinar com as janelas do lado de
fora.
Ele entrou correndo no quarto onde o atirador deveria
estar. A janela estava vazia.
— Onde...
O atirador encurralou Nigel por trás. Virou-lhe e po-
sicionou o rifle na ponta do seu nariz.
Nigel caiu de costas com um grito, sangue escorrendo
pelo rosto. O atirador posicionou sua arma novamente, sor-
riu e apontou.
Nigel gritou. O som era penetrante e agudo o sufici-
ente para que o vidro na mira do rifle fosse quebrado. O
mercenário estremeceu e tampou suas orelhas.
Isso era tudo o que Nigel precisava. Com sua teleci-
nese ele puxou o rifle para longe do mercenário, segurou-o
no ar e puxou o gatilho.
Ele atirou diretamente no peito do atirador. A bala
cravou em sua armadura e o jogou para trás no corredor,
onde ele caiu contra a parede. Nigel se levantou, ainda se-
gurando o rifle, e ficou de pé sobre o homem enquanto ele
respirava profundamente.
— Não deveria atirar contra todos que se teleportam
para o seu quintal, companheiro – disse Nigel. — Talvez
estivéssemos chegando para tomar uma xícara de chá, hein?
Acho que você nunca vai saber.
Nigel poderia ter matado o mercenário – o cara atirou
em Ran e certamente teria feito o mesmo com ele se tivesse
chance. Mas um movimento que pegou com o canto do olho
o distraiu.
Uma menininha estava em pé no fim do corredor.
Amedrontada e pálida, encarava Nigel com os olhos arrega-
lados. Ao redor de seu pescoço, havia um colar estranho que
ela puxava nervosamente.
Em vez de atirar no mercenário, Nigel suspirou e
abaixou a arma como se estivesse balançando um taco de
golfe. Um golpe rápido na têmpora deixou o atirador incons-
ciente. Nigel então usou sua telecinese para dobrar o cano
da arma em algo inutilizável, um truque que ele aprendeu
com Nove.
Finalmente, ele se virou para a menina. —Você é al-
gum tipo de assassina minúscula?
— Não... – a menina respondeu com uma mexida de
cabeça.
— Não achei que fosse.
— Você está aqui para me salvar?
Nigel olhou em volta. — Claro, docinho.
A menina se aproximou dele com cautela, ainda pu-
xando aquele colar estranho. Nigel observou mais câmeras
instaladas ao longo do corredor e nos quartos. Que tipo de
merda estranha aconteceu nessa cabana nórdica?
— Quantos desses caras estavam aqui? – ele pergun-
tou, cutucando o mercenário inconsciente com o pé.
— Quatro – disse a garota.
Nigel contou rapidamente. — Certo então. Acabamos
com todos – ele se agachou para olhar melhor a garota no
rosto. — Qual o seu nome?
— Freyja.
— Freyja, há outra menina escondida aqui? Minha
idade, americana, bonita e coisa assim.
— Taylor – disse Freyja, então balançou a cabeça. —
Ela estava aqui, mas ele pegou...
Um grito no andar de baixo distraiu Nigel do resto da
frase de Freyja. Essa voz não parecia com Ran ou Kopano.
Parecia com Taylor.
Independentemente disso, gritar era um sinal ruim.
— Fique aqui – ele falou para Freyja, e voltou a descer as
escadas.
A primeira coisa que Nigel viu quando ele desceu os
degraus foi Kopano, ainda preso pelo pulso na geladeira
graças às algemas magnetizadas. Um sentimento incômodo
caiu sobre Nigel. Havia medo nos olhos de Kopano – não era
uma emoção que ele tinha visto no garotão antes.
— Nigel Barnaby – disse uma voz suave e acentuada.
O cara da estrada – Einar, Rabiya o nomeou – estava
na porta dos fundos. Ele usava calças cinza e uma camisa
branca, a última salpicada com sangue fresco. Ele sorriu
para Nigel de uma maneira que fez sua pele arrepiar.
— Você não tem ideia do quanto estou feliz em vê-lo.
TAYLOR COOK
ABU DHABI, EMIRADOS ÁRABES UNIDOS
HOFN, ISLÂNDIA


havia um comando. — Acorde.
Taylor abriu os olhos devagar. O corpo dela estava cansado,
seus dedos e palmas das mãos ainda estavam formigantes por ter
prolongado o uso do seu Legado de cura. Sua boca estava seca, as-
sim com suas narinas. Ela tossiu, sentando-se no divã onde ela havia
desmaiado.
Einar lhe entregou um copo de água. — Você esteve dor-
mindo por quase seis horas – ele disse. — Eu acho que já é o sufici-
ente.
Taylor umedeceu a boca. — Você não teve que curar nin-
guém. Como sabe que é o suficiente?
Einar não respondeu. Ele simplesmente a pegou pelo braço e
a ajudou levantar. Eles estavam em um dos muitos quartos de hós-
pedes do palácio. Este foi decorado com fotos do sheik – sombrio,
da mesma forma que ele olhou para Taylor na primeira vez – ao lado
de uma variedade de carros caros. Taylor esfregou os olhos.
— O que acontece agora?
— Nós vamos para casa – Einar disse.
Taylor deu uma olhada.
— De volta a minha casa – corrigiu Einar.
— E então, o quê? Esperar até que a tal Fundação escolha
outro riquinho para eu curar?
Einar levantou uma sobrancelha. — Você não gostou? Usar
seu Legado para salvar uma vida? Para fazer o impossível?
Taylor hesitou. Ela e os outros com o Legado de cura cura-
ram a leucemia do príncipe. Arrancaram-na para fora do corpo dele.
O câncer estava aprofundado nas células do príncipe. Ela pô-
de sentir isso. Sozinha, Taylor não teria sido capaz de produzir ener-
gia curativa suficiente para curar a doença – mas com o grupo, era
possível. Vincent tinha uma força semelhante a Taylor; a energia de
cura de Jiao foi a mais focada e precisa; o garoto aleijado era uma
fonte de poder bruto. Depois de superar suas presunções iniciais,
Taylor se entregou ao trabalho, sua energia se misturou com a dos
outros, combatendo a corrupção que infestava o corpo do príncipe.
O processo de cura demorou quatro horas. Depois todos eles
estavam exaustos e prontos para desmaiar. Estranhamente e apesar
do fato de que eles eram estranhos para ela, agora que ela havia se
afastado dos outros que tinham o Recupero, ela sentia falta do calor
da energia deles.
Taylor não contou nada disso para Einar. — Sabe, a Acade-
mia também me pediu para curar pessoas – disse ela em vez disso.
— Eles não escolheram casos especiais. Eles me deixaram curar
quem estava precisando.
— O príncipe é um aliado valioso. Sua família ajuda a manter
esta região do mundo estável.
— Quem te contou isso? A Fundação?
Einar não disse nada, o que Taylor entendeu como um sim.
Ele saiu do quarto de hóspedes, forçando Taylor a segui-lo.
— Essas pessoas para quem você está trabalhando, eles que
decidem quem será curado? Eles controlam a cura? É isso mesmo? –
Taylor o pressionou.
— Tenho certeza de que podemos providenciar para que vo-
cê faça algum tipo de caridade, se isso irá fazer você se sentir melhor
– Einar disse.
— Me faria sentir melhor não ter uma organização estranha
controlando minha vida.
Einar parou, olhando ao redor. Os corredores do palácio es-
tavam mais claros do que quando chegaram; não parecia haver um
esquadrão de guardas responsável por eles. Também não havia câ-
meras instaladas em todas as portas.
— Eu gostei do que você disse ao príncipe... "você é uma boa
pessoa?" – Einar riu baixinho. — Faz bem a essas pessoas serem
lembradas, de vez em quando, que elas realmente detêm o poder.
Taylor começou a dizer algo, mas percebeu que Einar estava
sendo genuíno. Se abrindo, mesmo. Ela fechou a boca e deixou-o
continuar falando.
— A Fundação, a Garde Terrestre, a Academia. Todos são
apenas maneiras de nos controlar – disse Einar. — Nós somos jo-
vens agora e não somos fortes o suficiente para trilharmos nosso
próprio caminho. Um dia, porém, seremos. Enquanto isso, somos
forçados a escolher quem permitimos nos explorar. A Fundação... –
Einar encontrou seu olhar. — ... eles proporcionam uma boa vida.
Lutar contra eles, neste momento, seria inútil.
Einar retomou a caminhada pelo corredor. Taylor seguiu atrás
dele, refletindo sobre suas palavras. Então ele não era cegamente leal
à Fundação. Mas eles o corromperam até o ponto em que ele fará
sua oferta. Ela não concordou com o que Einar disse sobre a Aca-
demia – que sentia como se fosse a casa dela, o que a surpreendeu.
Taylor não queria ir para lá no começo, mas agora queria muito vol-
tar. Ela precisava encontrar uma saída. Uma maneira de se libertar,
junto com Freyja, do alcance dessa tal de Fundação.
Quando entraram no pátio que continha a pedra de Loralite,
Taylor começou a remover os lenços de cabeça; eles ficaram irrita-
damente desconfortáveis depois que ela desmaiou. Ela e Einar para-
ram. Uma dúzia de guardas estava no pátio, bloqueando o caminho
deles para a pedra de Loralite. Todos estavam armados e, embora
suas armas não estivessem erguidas, todos pareciam prontos para
agir.
Taylor engoliu em seco. Talvez o sheik não tenha apreciado
sua insolência.
— O que é isso? – perguntou Einar, aparentemente tão sur-
preso quanto Taylor ao ver o caminho deles barrado.
Jiao emergiu da multidão de guardas. Ela parecia recuperada e
acordada – um forte contraste com a sensação de Taylor após a ses-
são de cura prolongada. A menina chinesa, vestida elegantemente,
sorriu para Taylor como se fossem velhas amigas, então fixou Einar
com um olhar seco.
— Você não pode ir, Einar – ela disse simplesmente.
— Como é? – ele respondeu. — O que você ainda está fa-
zendo aqui, Jiao?
— A Fundação me pediu para ficar no caso de você não ser
mais necessário. Mas você será um bom garoto, não vai? – ela balan-
çou os dedos na direção de Taylor. — Vamos lá, querida. Você vai
voltar para casa comigo.
— Hum, o quê? – Taylor respondeu.
— Einar permanecerá aqui como um convidado do sheik –
disse Jiao.
Einar deu um passo à frente e colocou uma mão sobre Tay-
lor, impedindo-a de ir até Jiao. Não que ela tenha feito qualquer mo-
vimento, de qualquer maneira.
— Eu não estou entendendo – disse Einar sem rodeios.
Jiao bufou. — Realmente, cara? Você perdeu Rabiya. Prova-
velmente a matou.
— Eu fiz a cura do príncipe se tornar possível – retrucou Ei-
nar.
— Sim, e suponho que seja por isso que o sheik ainda não
decapitou você – respondeu Jiao. — Não significa que ele esteja feliz
por você ter jogado a sobrinha dele para os lobos.
— Ela pertencia à Fundação – disse Einar bruscamente. —
Esse era o acordo. Nós iríamos curar seu filho amado e ganharíamos
os serviços de sua sobrinha em troca.
Jiao deu de ombros alegremente. — Acho que você deveria
contar isso ao sheik.
Lentamente, Taylor juntou as peças. A menina com o hijab da
rodovia era parente do sheik. Einar a havia perdido na missão do
sequestro de Taylor. Agora, ele estava com problemas. Ela se lem-
brou da conversa que ouviu entre Einar e a britânica.
Taylor ignorou a mão estendida de Jiao, não fazendo nenhum
esforço para sair do lado de Einar. Esta era uma boa oportunidade
para fazer alguma coisa, mas para qual lado ela deveria ir? Estava
congelada.
— Depois de tudo o que fiz para a Fundação – disse Einar
amargamente. — Uma cagada e...
— Ah, pare – disse Jiao. — Você sabe como as coisas funci-
onam – Jiao fez um gesto e dois guardas deram um passo à frente.
Um deles carregava um par de rifles, e o outro dois microchips iguais
aos que Taylor havia visto no garoto aleijado.
Os dois guardas chegaram a cinco metros de Einar antes que
ambos começassem a chorar histericamente. Eles caíram de joelhos,
agarrando os rostos, soluçando incontrolavelmente.
Einar estava brincando com as emoções deles.
— Einar... – Jiao começou a dizer.
E então o tiroteio começou.
Os tiros partiram de dois guardas mais distantes, nos fundos.
Suas armas dispararam, acertando a areia no chão. Taylor percebeu
que eles pareceram surpresos. Não foram eles que puxaram os gati-
lhos.
Foi Einar.
Os outros guardas se viraram assustados, erguendo suas ar-
mas – e então Einar foi puxando telecineticamente todos os gatilhos
de uma vez, começando um fogo cruzado, os guardas do sheik ma-
tando uns aos outros.
Jiao gritou. Foi atingida no joelho por uma das balas. Ela caiu
no chão. Taylor permaneceu travada no lugar que estava.
— Eu acho isso muito desrespeitoso com meus talentos –
disse Einar. Ele levantou Jiao com sua telecinese e a atirou através de
uma das janelas do segundo andar.
Então, ele agarrou Taylor pelos cabelos.
— Desculpe – disse ele. — Mas você precisa vir comigo.
Taylor estava atordoada demais, encarando os corpos san-
grentos dos guardas assassinados, para reagir de imediato. Ou talvez
fosse Einar, tornando-a dócil.
Ele a arrastou para a pedra de Loralite e tocou a superfície de
cobalto. A sensação de giro. Luzes azuis piscando. O repentino frio
da Islândia.
Finalmente reagindo, Taylor se afastou de Einar assim que
eles estavam dentro do cercado de madeira. Ele não pareceu notar.
Einar estava muito focado no corpo apoiado contra a parede. Ela
estava tão cansada e exausta que Taylor levou um momento para
reconhecer Rabiya.
Einar riu, olhando para a menina inconsciente. — Isso é tre-
mendamente irônico.
— Seu doente, o que isso significa...? – Taylor ofegou. Do la-
do de fora do cercado, Ran estava deitada de costas, escondendo-se
atrás de uma pilha de pedras. Ela ficou atônita ao ver sua colega de
quarto lá – e em ação. Ran tinha um corte na bochecha e uma ferida
de bala em sua coxa.
— Se abaixa! – Ran gritou para ela enquanto Taylor começa-
va a correr pela grama. — Atirador de elite!
Taylor ignorou as instruções de sua amiga, pulando o corpo
inconsciente de um dos mercenários de Blackstone enquanto ela
seguia para o lado de Ran. Nenhuma bala veio da janela do andar de
cima.
— Você está ferida – Taylor disse enquanto deslizava ao lado
de Ran. — Como você...?
Mas então, tudo fez sentido. Rabiya. Eles conseguiram tele-
portar com ela para cá.
— Nós viemos salvá-la – disse Ran. Ela olhou por cima do
ombro de Taylor, ficando tensa quando viu Einar.
Einar afastou-se do cercado com mais cautela do que Taylor,
examinando a sua cabana.
Rapidamente, Ran agarrou uma pedra, carregou-a com sua
energia explosiva e jogou na direção de Einar.
Ele olhou bem a tempo, desviando a pedra com sua telecine-
se. Seus lábios se encolheram de irritação e ele esticou a mão na dire-
ção de Ran.
Taylor recuou enquanto o corpo inteiro de Ran começou a
tremer. Veias em seu pescoço saltaram, todos os músculos sendo
apertados. Sangue escorria do corte em sua bochecha contra o lado
de seu rosto. Parecia que Ran estava tentando se sentar, mas não
podia. Seus olhos estavam arregalados e assustados.
Einar estava usando sua telecinese para triturá-la no chão.
— É engraçado como nosso instinto é de usar nossa telecinse
para jogar coisas em nossos inimigos – disse Einar de forma con-
vencional. — Até os lorienos se comportam desse jeito. Você pode
ver isso nos vídeos deles lutando durante a invasão. Eles arrancam
armas, lançam carros. Mas o corpo é um objeto, como qualquer ou-
tra coisa. Minha teoria é que o lorienos tinham um instinto próprio
dentro deles, para não usar a telecinese um no outro diretamente –
Einar encolheu os ombros. — Eu fui treinado de maneira diferente.
— Solta ela! – Taylor gritou.
— Qual é a sensação, Ran Takeda? – perguntou Einar. — Pa-
rece com Tóquio novamente? O sentimento de ser esmagado?
Se Taylor pensou que havia um pouco de humanidade em
Einar, ela se equivocou terrivelmente. Ele estava louco.
Com sua telecinese, ela pegou uma marreta que estava perto
da pedra de Loralite e atirou nele.
A cabeça do martelo atingiu Einar diretamente entre as omo-
platas. Ele gritou e abaixou suas mãos, seu aperto em Ran foi que-
brado. Ela abraçou suas costelas, tentando recuperar o fôlego.
Taylor pegou o martelo do ar. Ela ficou de pé na direção de
Einar e levou os braços para trás.
— É mais gratificante acertar as pessoas com coisas – disse
ela. — Você vai ver.
Ela quase derrubou o martelo. Mas então uma sensação de
profunda simpatia se derramou sobre ela. Quem sabe o que a Fun-
dação tinha feito com essa pobre criança. Ele não era ruim. Ele não
queria machucá-la. Tudo era apenas um mal-entendido.
Não. Era Einar. Manipulando-a.
Quando Taylor percebeu isso, tarde demais. Einar se levantou
e arrancou o martelo das mãos dela. Ele bateu no rosto de Taylor
com a alça de madeira, derrubando-a.
— Hmm – disse Einar. — Você está certa.
Ele ergueu o martelo e o lançou no tornozelo de Taylor. Ela
gritou quando os ossos se destruíram e quase desmaiou.
— Isso deve mantê-la ocupada – disse Einar. Ele jogou o
martelo no quintal, passou por Ran e entrou na casa.
Lágrimas encheram os olhos de Taylor. O sangue quente es-
correu pelo lado do rosto por conta de um corte na sobrancelha.
Parecia que havia vários pedaços de vidro sobre a pele do seu torno-
zelo.
— Tay... Taylor.
Era Ran. Ela lutou para se sentar, agarrando uma pedra pró-
xima. Pedaços de grama e de gelo se pendiam dos ombros onde ela
tinha sido jogada no chão. Ela arqueou as costas estranhamente e
ergueu a cabeça para trás, engolindo o ar.
Ou tentando, pelo menos.
— Eu... não consigo... respirar... – disse Ran.
Einar deve ter quebrado uma de suas costelas ou esmagado
um dos pulmões. Taylor olhou para Ran aturdida, tentando se con-
centrar apesar da imensa dor e na cabeça zonza.
— Espere um pouco – Taylor disse, sua voz falhada.
O mais rápido que pôde, Taylor se arrastou pelo quintal até
Ran. Os lábios dela estavam ficando azuis. Taylor precisava chegar
lá. Precisava curá-la. Lutar contra isso.
Enquanto isso, de dentro da casa, Taylor vagamente ouviu a
voz de Kopano gritando.
Eles vieram aqui para salvá-la. Todos os amigos dela.
E Einar estava matando todos eles.
KOPANO OKEKE
HOFN, ISLÂNDIA

zada da lateral da geladeira quando viu Einar entrar. Uma


sensação de temor tomou conta dele quando o jovem lançou um
olhar em sua direção. Ele estava aliviado por estar preso.
Se Kopano continuasse preso, Einar não poderia fazê-lo
machucar seus amigos.
Einar se aproximou de Kopano devagar, concluiu que ele
estava preso e o ignorou. Ele foi até a sala e puxou uma mala
de debaixo do sofá. Com ela em mãos, ele seguiu para a porta
de trás.
Foi quando Nigel desceu a escada.
Einar parou. Ele sorriu lentamente.
— Nigel Barnaby. Você não faz ideia do quanto estou
feliz em ver você.
Nigel respirou profundamente, enchendo seus pulmões de
ar, preparando-se para libertar um de seus gritos sônicos.
Sua boca se fechou de repente, seus dentes batendo uns
contra os outros. Einar o havia forçado a fechá-la com sua tele-
cinese. Os olhos de Nigel se arregalaram com surpresa. Kopano
poderia dizer que Nigel estava resistindo, mas não podia inter-
romper o aperto telecinético de Einar.
Kopano empurrou Einar com sua telecinese. Einar vacilou
por um instante, mas rapidamente recuperou o equilíbrio. Uma
poderosa força telecinética superou a de Kopano e ele foi em-
purrado contra a geladeira.
— Eles precisam ensinar melhor o controle telecinético
nessa escola de vocês – disse Einar.
Impotente, Kopano observou enquanto seu dedo indica-
dor era dobrado para trás, na direção do punho. O osso se
quebrou. Kopano gritou de dor.
— Pele impenetrável, huh? Mas não ossos inquebráveis –
Einar encarou Kopano. — Fique quieto ou vou te espedaçar.
O medo apertou o estômago de Kopano. Ele repousou
sua mão machucada perto da barriga. Seu lábio estremeceu
enquanto observava Einar, incapaz de fazer qualquer outra
coisa.
A raiva tinha sido ruim. O medo era pior.
Einar olhou para uma das câmeras da sala. — Espero
que você esteja assistindo – ele disse para quem quer que fosse
estar do outro lado. Então ele passou um braço pelos ombros
de Nigel.
O garoto britânico, sempre tão confiante, expressando
arrogância – seu rosto amassado em uma máscara de total tris-
teza. Toda a postura mudou – os ombros caíram para dentro, o
queixo caiu na direção do peito, os olhos ficaram baixos e
aquosos. Ver seu amigo assim não fazia sentido algum para
Kopano.
— Eu quero que você pense em Pepperpont – disse Einar
suavemente. — Todos esses anos, sem um único amigo. Abando-
nado por seus pais. Um pedaço inútil de merda esquecida. Algo
que os meninos maneiros usaram como brinquedo, hmm? Você
lembra aqueles dias, Nigel?
Nigel estremeceu, mas não disse nada. Kopano encarava.
Como Einar sabia tanto sobre Nigel?
— Eles vão te prender na cama esta noite e bater em
você? Eles vão te trancar num armário? Eles irão forçá-lo a to-
mar banho com a água fervendo? – os lábios de Einar estavam
quase contra a orelha Nigel. Ele levou Nigel em direção à por-
ta. — É melhor acabar com isso, não é? É melhor desistir do que
suportar outro dia?
— Não... – gritou Kopano, as palavras estavam difíceis
de sair contra o terror que o pressionava. Ele queria encolher
dentro de si mesmo, ficar pequeno..., mas ele não podia deixar
esse bastardo imbecil entrar na cabeça de Nigel. — Não o es-
cute, Nigel! Não escute!
Mas Nigel não ouviu. Ou, se o ouviu, os gritos de Kopano
não penetraram na depressão esmagadora que Einar estava
forçando Nigel a sentir.
— Tudo acabará rapidamente – disse Einar. — Apenas
saia e deixe o frio tomar conta de você.
Ele conduziu Nigel para fora da cabana. Kopano podia
ouvir os passos dele cruzando o cascalho.
Havia um lago gelado lá fora.
— Nigel! – gritou Kopano. — Ran! Alguém!
Nenhuma resposta. O quintal estava em silêncio.
O medo desapareceu. Sumiu de uma vez, dando a Ko-
pano uma sensação de náuseas à medida que os músculos do
abdômen voltavam ao normal. Einar deve ter se afastado de-
mais dele. Os efeitos do controle dele desapareceram.
O medo foi substituído pelo desespero.
Ele tinha que salvar seus amigos.
Com um grito, Kopano usou sua telecinese para levantar
a geladeira. Comida caiu para fora quando as portas se abri-
ram – uma garrafa de leite se quebrou no chão. Kopano atra-
vessou os cacos de vidro, carregando o eletrodoméstico como
um albatroz, o pulso ainda dolorido por conta das algemas que
o prendiam na geladeira.
Kopano avançou pela sala de estar. A geladeira se cho-
cou contra uma cadeira, derrubando-a. Ele esmagou uma TV,
quebrando a tela e a derrubando da parede. Não importava.
Ele manobrou o melhor que pôde em direção à porta da frente.
Ele podia ver Nigel. Seguindo pelo gelo. Como um zumbi.
Einar o observava da margem do lago com os braços cruzados.
Num segundo Nigel estava lá, no momento seguinte, ele
se foi. O gelo quebrou sob os pés de Nigel e a água o sugou.
Kopano gritou. Ele tentou atravessar a porta da frente,
mas a geladeira ficou presa no vão. Ele a puxou, usando a for-
ça que restava em seu braço algemado e todo o poder que ele
conseguiu reunir com sua telecinese. O metal do eletrodoméstico
rangeu e dobrou; a porta de madeira estralou e quebrou.
Mas ele estava preso. No final, todo o esforço de Kopa-
no fez com que a geladeira ficasse pior. Seu pulso estava in-
chado, a pele sangrando na parte em que ele fazia força con-
tra as algemas.
Nigel estava debaixo d’água há trinta segundos.
Ele olhou cautelosamente ao redor da margem do lago.
Einar tinha desaparecido. Estava fora de vista.
Kopano tinha que libertar seu braço. Usar força bruta
não estava surtindo efeito. Ele tentou deslizar o pulso, mas esta-
va bem apertado.
Ele puxou e puxou. A algema tinha que ceder. Ou então,
deixar seu braço deslizar através do metal. Ou arrancar sua
mão. Ele poderia alcançar Nigel, salvar seu amigo e se preocu-
par com isso depois. Kopano rosnou, apoiando um de seus pés
contra a geladeira, ignorando a dor enquanto ele empurrava a
algema com todas as suas forças.
Kopano caiu de costas com um baque.
Funcionou. Ele estava livre.
Seu pulso estava inteiro. A algema estava intacta.
Não fazia sentido.
Ele não parou para pensar nisso.
Nigel estava debaixo d'água há um minuto. Talvez mais.
Kopano correu para o lago cristalino. Durante o treino, o
Dr. Goode havia dito a Kopano para pensar que era mais pe-
sado. Isso parecia ajudá-lo a controlar seu poder – ele geral-
mente se concentrava nesse sentimento, tornando sua pele impe-
netrável e suas mãos duras como tijolos. Mas ele não queria ser
pesado agora. Ele precisava ser leve. Ágil.
Ele pisou no lago gelado rapidamente, a água congelan-
te ensopando seus tênis. A superfície já estava rachada por on-
de Nigel havia caminhado sobre ela. Com seus passos longos e
seu corpo musculoso Kopano deveria ter afundado imediata-
mente na água.
Mas não afundou. De alguma forma, os pés de Kopano
estavam leves como penas. Ele praticamente flutuava através
do gelo. Ele estava se movendo tão rápido que o gelo não ti-
nha tempo de quebrar? Era sorte? Algo mais?
Kopano não se importava. Ele viu o buraco escuro onde
Nigel tinha caído. Esse era o objetivo dele.
Ele respirou fundo, o máximo que pôde, e mergulhou.
A água estava tão fria que atordoou Kopano e ele qua-
se ofegou. Ele foi atingido por pontadas e formigamento, à
medida que mergulhava mais fundo. Ele nunca fora um nadador
ágil e a água estava escura. Ele não conseguia ver Nigel. Ele
procurou bolhas, mas não viu nenhuma.
Kopano precisava ir mais fundo. Ele se deixou ficar mais
pesado, como o Dr. Goode lhe aconselhara. Ele afundou mais
para baixo, sofrendo uma pressão no peito.
Tonto, Kopano começou a se guiar por sua telecinese. Ele
não segurou nada em particular, apenas agitou a água em vol-
ta dele. Ele criou uma banheira de hidromassagem consigo
mesmo no centro.
Dois minutos? Três minutos? Há quanto tempo Nigel esta-
va aqui? Os pulmões de Kopano começaram a arder.
Um pedaço quebrado de um antigo barco a remo foi su-
gado para perto de Kopano. Um cardume de peixes passou
por ele. As pedras negras e lisas do lago começaram a desfo-
car sua visão.
Lá! Parecia uma água viva loira flutuando para frente e
para trás, quase brilhando na água escura. O moicano esbran-
quiçado de Nigel.
Kopano alcançou. O garoto não estava se mexendo, in-
consciente, e sua boca estava aberta. Kopano o agarrou pela
parte de trás da camisa.
Mais leve, pensou Kopano. Seja mais leve. Para cima, para
cima, para cima.
Arrastando Nigel com ele, Kopano impulsionou os pés e
acelerou para a superfície. Ele ficou surpreso com o quão leve
ele estava; parecia que a própria água estava tentando em-
purrá-lo para a superfície.
A fina camada de gelo tornou-se visível acima dele. O
coração de Kopano acelerou, seus pulmões gritando por ar.
Quando menino, ele lia histórias de aventura sobre um jovem
que viajava pelo mundo; sempre, quando estava em climas
frios, alguém acabava preso sob um pouco de gelo. Seus olhos
penetrantes não conseguiram encontrar a abertura no gelo pela
qual ele mergulhou.
Kopano estendeu a mão livre contra o gelo – sua mão fe-
rida, com o dedo quebrado pendurado, fora ignorado com a
pressa em resgatar Nigel. Ele se preparou para quebrar o gelo
com sua telecinese, pronto para atingir a superfície.
Ele não precisou. A mão de Kopano passou através do
gelo, como se ele fosse um fantasma. Seus olhos se arregala-
ram, desconhecendo o que estava acontecendo. Todo o seu cor-
po flutuava para cima, transparente, passando através da ca-
mada de água congelada. Ele podia sentir algo acontecendo
nele – uma sensação nova, como se as células do corpo estives-
sem se separando para permitir que o gelo passasse. Ele olhou
para baixo e viu que Nigel também havia ficado transparente.
Então, Kopano estava na superfície gelada novamente,
sentindo seus pés leves contra a camada frágil de gelo. Seu
Legado – ele desbloqueou algo, descobriu alguma coisa por
conta de seu desespero.
Kopano não tinha tempo para saborear a vitória. Nigel
não estava respirando. Seu rosto estava azulado, e seu corpo
gelado.
Recuperando o fôlego, Kopano segurou o britânico em
seus braços e correu com ele para a margem.
— Kopano!
O nigeriano soltou um gemido de alívio quando viu Tay-
lor e Ran correrem da casa na direção dele. Nenhuma delas
parecia bem – as roupas de Ran estavam manchadas com san-
gue fresco, e Taylor estava mancando e sangrando por conta
de uma ferida na cabeça – mas elas estavam vivas. Elas esta-
vam vivas e saberiam o que fazer com Nigel.
Kopano colocou Nigel na costa rochosa do lago. Suas
roupas estavam geladas e encharcadas e ele se sentiu pesado
de repente, de uma forma insuportável.
— Ele não... ele não está respirando – disse Kopano. —
Aquele bastardo o fez... fez ele...
Kopano não conseguiu terminar. Ele olhou em volta fe-
rozmente procurando Einar, com os punhos cerrados. Taylor se
ajoelhou ao lado de Nigel, imediatamente pressionando as
mãos no peito do amigo. Ran captou o olhar enlouquecido de
Kopano e colocou uma mão fraca em seu braço.
— Einar escapou – disse ela. — Ele se teleportou com
Rabiya enquanto Taylor estava me curando.
Ran parecia abalada e com raiva. Ela se agachou ao la-
do de Nigel e segurou a mão dele, esfregando-a entre as suas.
Kopano se inclinou sobre o ombro dela, olhando entre Nigel e
Taylor.
— Você pode...? – ele tentou recuperar o fôlego. — Vo-
cê pode curá-lo?
Taylor não respondeu. Ela estava concentrada em Nigel.
Havia olheiras sob seus olhos, sua pele estava pálida. Ela havia
sido sobrecarregada num curto espaço de tempo desde seu se-
questro. Kopano se perguntou por quanto tempo ela poderia
ficar tentando curá-lo.
Uma bolha se formou nos lábios de Nigel. A água que
ele engoliu lentamente começou a escorrer pela boca, retirada
de seus pulmões pelo Legado de cura de Taylor. Kopano soltou
um suspiro de alívio.
Mas Taylor não parecia feliz. Ela colocou a orelha contra
o peito de Nigel.
— Ele não está respirando – ela disse, sua voz falhando.
— Seu coração não está... não sei como curar isso. Ele não está
machucado, só está... parado.
Lágrimas começaram a escorrer das bochechas de Tay-
lor. Nigel ainda inerte, nenhuma coloração voltando em suas
bochechas.
— Se afaste – disse Ran.
Taylor fez o que ela pediu. Ela tropeçou até Kopano e
ele instintivamente envolveu seus braços ao redor dela, grato
pelo calor do pequeno corpo dela em seus braços. Seus dentes
estavam tremendo.
— Não cheguei rápido o suficiente – disse Kopano cal-
mamente.
— Não é culpa sua – respondeu Taylor.
Ran tocou a face fria de Nigel. Os ombros dela tremiam.
Ela curvou a cabeça por um momento, sussurrando uma oração.
Então, ela abriu a camisa de Nigel.
— Ran...? – Taylor disse, assustada.
Ran colocou a mão no peito de Nigel. Ela derramou seu
Legado no tórax dele. Ele começou a brilhar. Seu corpo, a vi-
brar.
— Ran! – Taylor gritou, preocupada. — O que você está
fazendo?
— Acordando... o corpo dele – ela respondeu, com os
olhos brilhando de energia. — Fazendo... café da manhã.
Kopano deu um passo atrás, levando Taylor com ele. O
corpo de Nigel pulsava com energia de cor carmesim. Kopano
podia ver a energia de Ran emergindo dos poros de Nigel, das
narinas e dos olhos dele.
E então, ela puxou tudo de volta para si mesma.
A força de sugar toda aquela energia de Nigel a empur-
rou para trás. Agindo rapidamente, Kopano a pegou com sua
telecinese.
O corpo inteiro de Nigel se convulsionou com força, tre-
mendo contra as rochas.
E então ele gritou.
Tossindo rapidamente, com as mãos no peito, Nigel se vi-
rou de barriga para baixo. Taylor colocou a mão sobre a boca
e Kopano saltou com um elogio. A cor voltava lentamente para
as bochechas de Nigel. Ele estremeceu, olhando para seus ami-
gos com seus olhos azuis.
Ran o agarrou num abraço, apertando-o. As mãos e an-
tebraços dela estavam arroxeadas por conta das contusões cri-
adas ao retirar a energia dele, mas a dor não parecia incomo-
dá-la.
— Eu encontrei um uso não-violento para o meu Legado –
disse ela.
— Caramba, Ran – disse Nigel. — Me conte sobre isso
mais tarde, beleza?
Então, ele desmaiou.
OS SEIS
ACADEMIA DA GARDE HUMANA –
POINT REYES, CALIFÓRNIA

Novo México, onde Isabela, Caleb e o professor Nove ainda espera-


vam. Houve muita comoção sobre a quantidade de sangue que havia
nas roupas deles, mas Taylor havia curado a maior parte dos feri-
mentos. Ela fez um excelente trabalho, apesar de estar com o pró-
prio tornozelo quebrado – ela havia posto apenas o tanto de energia
curativa o suficiente para os ossos se juntarem ao ponto de permiti-
rem que ela andasse – então ela precisou se apoiar em Kopano.
Ele não se importou.
Eles trouxeram Freyja com eles. Estranhamente, eles desco-
briram que o colar simplesmente caiu do pescoço dela. A garotinha
dizia que “simplesmente aconteceu”. Taylor se perguntava o que
aquilo significava. Pareceu que a Fundação havia permitido que eles
escapassem.
Freyja foi entregue aos pacificadores da ONU. Ela teria um
longo voo para casa, mas eles a reuniriam com sua família novamen-
te. Ela agradeceu a Taylor e Nigel antes que os pacificadores a levas-
sem embora, mas Taylor ficou desapontada ao ver medo nos olhos
dela. A criança tinha medo da Garde. Era difícil culpá-la, a menina
tinha visto em primeira mão o que de pior a espécie deles podia fa-
zer.
Kopano se ofereceu para teleportar os pacificadores e a Gar-
de Terrestre de volta à Islândia para que pudessem apreender os
mercenários e investigar a casa de Einar. Demorou trinta minutos
para eles obterem autorização para tal operação, mas eventualmente
aceitaram a oferta dele.
Mas quando estavam prontos, Kopano descobriu que não
poderiam ir. A pedra de Loralite no quintal de Einar tinha desapare-
cido. Alguém deve tê-la esmagado.
— Posso te mostrar uma coisa? – Caleb perguntou a Nigel, cerca
de um mês depois de terem retornado da Islândia.
— Essa pergunta me deixa nervoso, amigo – respondeu
Nigel com um sorriso malicioso. — Mostrar o quê?
— Está lá em cima.
Nigel seguiu Caleb três andares até uma das seções
desocupadas dos dormitórios. Tecnicamente, eles não eram
autorizados a ir até lá, mas mesmo com os protocolos de
segurança mais rigorosos que foram implementados desde a
pequena excursão deles, os dormitórios permaneceram, em
grande parte, livre para todos. Os pisos inocupados eram um
ponto de encontro popular se você tivesse um companheiro de
quarto dividindo o mesmo dormitório.
— Caleb, cara, você é um bom rapaz e tudo..., mas eu não
sinto aquilo por você.
— O que? Não! - Caleb olhou por cima do ombro para
Nigel e corou. — Eu não sou... quero dizer... está tudo bem que
você é, mas eu... sou...
— Relaxe, amigo. Estou brincando contigo.
— Eu sei – disse Caleb, relaxando.
Ele parou na frente de uma porta no final do corredor.
Nigel percebeu que almofadas de insonorização haviam sido
colocadas na superfície.
— Pronto? – perguntou Caleb.
— Não tenho muita certeza, irmão.
Caleb abriu a porta.
Dentro havia um conjunto de instrumentos músicais que
amoleceu o coração de Nigel. Um kit de bateria de cinco peças,
um baixo, uma guitarra elétrica e um teclado. Cada um dos
instrumentos e a mesa de som que gerenciava o volume estavam
ocupados pelos clones de Caleb.
— Sério? – disse Nigel. — Uma banda de clones?
— Quase ninguém usa a sala de música, então comprei
algumas coisas e trouxe aqui – explicou Caleb. — É o nosso
espaço de treino.
— Você pode tocar todos esses instrumentos?
Caleb encolheu os ombros. — Quero dizer, não tão bem.
Mas estamos aprendendo. Ajuda muito eu poder ter cada clone
praticando cada instrumento por conta própria.
Nigel ergueu uma sobrancelha ao ouvir isso. — Sério?
— Sim – ele caminhou para dentro da sala e pegou o
suporte do microfone. Ele o inclinou na direção de Nigel. — A
coisa é que, precisamos de um vocalista.
Nigel sorriu.

— Temo que estivemos fazendo todo o seu treinamento de


forma errada – disse o Dr. Goode a Kopano, com um tom de
desculpas. Ele estava com o jovem nigeriano ligado a uma série
de máquinas que produziram uma variedade de leituras, todas
elas estranhas para Kopano.
— Eu não sei – disse Kopano alegremente. — Eu acho
que você esteve fazendo um trabalho sólido.
O Dr. Goode sorriu. — Sim, bem, como havia lhe dito,
acreditávamos que seu Legado era uma variação do Fortem
que estava preso na sua pele. Que você criou, de alguma
forma, uma camada subdérmica impenetrável.
— Mas eu não fiz isso – respondeu Kopano. — Certo?
— Não, é muito mais surpreendente que isso – disse o Dr.
Goode. — Seu Legado está em todas as suas células, Kopano.
Nos átomos, de fato, que compõem suas células. Para
simplificar, com base em minhas conclusões preliminares, você
pode separar ou contrair suas células em um nível subatômico.
Você pode alterar sua densidade. Você pode se tornar muito
pesado e duro ou sem peso algum até o ponto de
transparência. Agora, é apenas uma questão de aprender a
controlá-lo.
Kopano olhou para as mãos dele. — Não fui capaz de
fazer o que fiz desde... desde o gelo.
— Oh, vamos mudar isso, garotão – disse o professor
Nove, entrando na sala. Na sua frente, fez flutuar um cubo
completamente enrolado com arame farpado. Ele deixou o
objeto estranho no ar na frente de Kopano.
— O que é isso? – perguntou Kopano.
— Essa é uma caixa com um cupcake dentro – disse
Nove. — Eu a envolvi com arame farpado. Se você quiser o
cupcake, terá que passar através dos armes farpados e da
caixa. Quebre seus átomos e se delicie com um cupcacke. Ou
vai cortar sua mão. Vamos. Tente.
Kopano olhou a caixa cautelosamente. — Qual o sabor
do cupcake?
Demorou semanas para Kopano finalmente dominar o
jogo de Nove com a caixa de arame farpado. Quando ele
finalmente conseguiu, ele escreveu uma carta para seus pais,
descrevendo a função de seu Legado.
Ele ainda não tinha recebido uma resposta.

Eles não deveriam falar sobre o que aconteceu no Novo


México e na Islândia, mas isso não se estendia às sessões
semanais de terapia com a Dra. Linda.
— Você tem esses sentimentos com freqüência, Nigel?
– perguntou a doutora com seu jeito habitual, e Nigel se
espalhou no sofá em frente a ela. — Os sentimentos que
sentiu quando você caiu no gelo?
— Não.
— Você está sendo sincero?
Os lábios de Nigel se enrolaram. Ele coçou a parte de
trás do pescoço.
— Talvez eu costumasse me sentir desse jeito às
vezes. Como um caso perdido e sem esperança. Mas eu não
tive aquela escuridão na minha vida até certo ponto. Não
tive desde que cheguei aqui – seu olhar ficou distante
quando ele pensou sobre o que aconteceu na Islândia. — Foi
aquele imbecíl, aquele que eu contei para você. Ele colocou
aqueles sentimentos em mim.
— Eu gostaria muito de conhecer aquele jovem –
respondeu a Dra. Linda. — O Legado dele... é bastante
interessante.
— Sim. Bastante – disse Nigel secamente. — Eu
também gostaria de vê-lo novamente. Tirar algumas coisas
do meu peito.
— Agora, Nigel, esses pensamentos de vingança não
são saudáveis.
Nigel sorriu torto. — Eu me sinto bem, Dout. Mas
você está certa. Eles não serão saudáveis. Para ele.
— É muito improvável que você venha a cumprir
essas fantasias de vingança – disse a Dra. Linda. — Se você
as deixar se espalhar dentro de você...
Nigel não respondeu. Seu sorriso cavalheiro não
transparecia nada.
Mas havia algo que a Dra. Linda não sabia.

O Dr. Goode e Nove haviam conduzido pessoalmente seus


estudantes rebeldes de volta do Novo México para a Academia.
Todos estavam exaustos e feridos, traumatizados em graus
variados, mas Taylor se lembrou de como eles estavam felizes por
estarem juntos. O quão próxima ela se sentiu de todos eles.
Ela contou tudo a eles. Einar, Islândia, a Fundação, Jiao, o
sheik, os Recuperos, a britânica esquisita. Tudo.
Quando ela terminou, Nove e Malcolm trocaram um olhar.
O Dr. Goode encostou o carro. Nove virou para olhar seus
alunos. Atrás deles, o sol estava começando a nascer.
— Ouça, isso pode parecer estranho, mas acho melhor se
você manter a maioria dos detalhes do que aconteceu entre nós –
disse ele.
A testa de Taylor se enrugou. — O que? Por quê?
— Nós estamos desconfiados de que há pessoas dentro da
Academia... – o Dr. Goode hesitou. — Nós acreditamos que
estamos comprometidos.
— Um espião – disse Nigel calmamente.
— Como num filme policial – acrescentou Kopano.
— Nós ficamos sabendo sobre esses otários da Fundação
faz um tempo, mas não sabíamos quem eram – continuou Nove.
— Nós só sabíamos que eles estavam constantemente tentando
invadir nosso sistema – Nove trocou um olhar com Malcolm. —
Mas temos algumas pessoas inteligentes com computadores. Nós
conseguimos evitar a invasão, na maioria das vezes...
— Eles sabiam coisas sobre mim – disse Nigel. — Coisas
que não deveriam saber.
— Sobre mim também – disse Ran.
Malcolm assentiu. — De fato. Com os esforços para
acessarem nosso sistema sempre falhando, desconfiamos que eles
mudaram de tática, implantando agentes. Talvez sejam
professores. Ou alunos.
— Falta muito para chegar? – Isabela perguntou em
português, olhando ao redor confusamente, não entendendo a
discussão.
— Nós vamos expulsar essas pessoas – Nove disse de
repente, olhando para eles, um de cada vez. — Nós vamos expô-
los. E vocês podem nos ajudar.
— Como? – perguntou Caleb.
— Para começar, mantendo a boca fechada – disse Nove.
Taylor pensou nessa conversa muitas vezes nas semanas
seguintes ao seu retorno à Academia. Ela pensou em todas as
coisas que tinha visto desde que se tornou uma Garde. A bondade
e o heroísmo de seus amigos; a estúpidez dos Ceifadores; a
crueldade da Fundação. Os outros da Garde, seja aqui na
Academia, seja espalhados pelo mundo, todos têm desejos e
compromissos, com o potencial de moldar o futuro.
Quando ela desenvolveu seus Legados, ela queria escondê-
los. Mas agora, Taylor sabia que não era uma opção. Ela não
conseguiu se contentar com uma vida chata. Ela precisava estar
aqui. Ela precisava estar onde poderia fazer a diferença.
Um pacote chegou para ela, cheio de cartas dos alunos de
sua antiga escola. Pelo menos aqueles que não achavam que ela
era uma aberração. Eles eram gentis, desejando que ela ficasse
bem, pedindo detalhes e fofocas, perguntando como John Smith
era em pele e osso. Taylor leu cada uma delas, mesmo que sentisse
que não conhecesse mais algumas pessoas e, o mais importante,
como se não fosse possível a eles conhecê-la.
Dentre as cartas dos alunos do ensino médio havia um
pacote de uma agência cara, grande e de cor creme, coberto por
uma delicada letra cursiva. Imediatamente, Taylor percebeu que
esta carta não pertencia aos antigos amigos.

Querida Taylor,

Espero que esta carta lhe encontre bem. Obrigado por sua ajuda
em Abu Dhabi e na Islândia. Realmente pedimos desculpas pelos
inconvenientes que aconteceram com seu responsável. Eu temo que
esse mau exemplo lhe fez criar uma imagem horrível sobre nossa
organização. Eu espero, no futuro, que você nos dê uma segunda
chance.
O mundo é um lugar melhor com seus esforços. O princípe nos
pediu para lhe enviar saudações. Um número gigante de doações foram
feitas em seu nome para uma variedade de hospitais precários naquela
região. Salvando uma vida, você conseguiu salvar outras milhares.
Estamos ansiosos para trabalharmos com você no futuro
novamente, se você aceitar tal oportunidade.

Atenciosamente,
B.
A Fundação.

A mulher britânica que ela conseguiu quase ver na tela da


TV de Einar. Tem que ser ela.
Os dentes de Taylor rangeram. Ela quase amassou a carta
em suas mãos.
Então, ela seguiu direto até a sala do professor Nove. Ele
estava de pé na janela, observando os estudantes indo dos dormi-
tórios para o centro de estudos. Taylor jogou a carta na mesa dele.
— Eles me querem de volta – ela disse. A dureza e o jeito
que o tom da voz dela saiu a surpreendeu.
Nove pegou a carta e a leu rapidamente.
— Eles têm espiões aqui – Taylor disse. — Talvez devês-
semos enviar alguns para lá.
CAPÍTUL

O BÔNUS
ele podia observar a parte a céu aberto da academia reservada
para os treinos. Ele observou vários Gardes Humanos praticando
telecinese lá embaixo, fazendo notas mentais de quem parecia ter
precisão e quem estava parecendo descuidado. Os que estavam
com precisão seriam insultados por ele mais tarde; os que esta-
vam tendo problemas seriam chamados para uma conversa moti-
vadora.
O professor Nove tinha seus próprios métodos.
Ele coçou a parte onde seu braço costumava estar e suspi-
rou. O membro fantasma estava especialmente dolorido hoje. Ele
viu seu reflexo na janela e fez uma careta.
— Meu caro. Que diabos você está fazendo aqui? – ele
perguntou a si mesmo.
Verdade seja dita. Nove nunca esperou viver tanto assim.
Ele nunca imaginou uma manhã onde ele acordaria numa cama
aconchegante e familiar, andasse até um escritório particular, e
ficasse entediado o dia todo. Ele era apenas alguns anos mais ve-
lho do que os alunos que ele treinava, mas sua experiência de vida
o fazia se sentir décadas mais velho. Por muito tempo ele viveu
como um fugitivo, com um refugiado extraterrestre, sendo cons-
tantemente caçado pelos Mogadorianos. E então, na semana pas-
sada, enquanto pegava seu almoço no refeitório, Nove sentou de
costas para a saída. Um grande descuido; qualquer ataque surpre-
sa o pegaria de jeito. Seu próprio mentor – seu Cêpan, Sandor –
teria acabado com ele por aquele tipo de comportamento distraí-
do. Nove estava se tornando descuidado.
Nove olhou para si mesmo. Sua camiseta parecia mais
apertada do que deveria. Seria aquela uma gordurinha se forman-
do em seu abdômen esculpido? A comida era boa aqui. E ele esta-
va se tornando preguiçoso. Ele mexeu a cabeça.
Nove subiu pela parede usando seu Legado de antigravida-
de e começou a fazer abdominais enquanto estava pendurado no
teto. Ele estava chegando a cem quando o Dr. Malcolm Goode
entrou em seu escritório.
— Hora de reunião! – Malcolm anunciou alegremente. Ele
olhou ao redor, e então finalmente para cima. — Oh, você está aí
em cima.
Nove desceu do teto, chegando levemente ao chão, e en-
tão sorriu para o velho homem. — Olha só. Nem perdi o fôlego.
— Ótimo – Malcolm disse, deixando a xícara de café na
mesa.
— Temos dois novatos hoje, né?
Malcolm assentiu. — Uma Recupero, da Dakota do Sul, e
um jovem de Lagos, cujos Legados ainda são incertos.
Malcolm fez uma pausa. — Lagos fica na Nigéria, a propósi-
to.
— Eu sei disso – Nove disse.
Nove se jogou no sofá do lado oposto de Malcolm. Ele nun-
ca usou a mesa do seu escritório – parecia torná-lo mais sério. A
reunião semanal acontecia ali, os assentos para o alto-escalão da
Academia foram arrumados na frente do sofá em que Nove tirava
seus cochilos.
— Então, qual é o problema com o Legado desse garoto? –
Nove perguntou. — Por que vocês não têm certeza?
— Relatórios iniciais do escritório nigeriano descreveu a
pele dele como sendo impenetrável. Aparentemente, ele se en-
volveu em uma briga de rua com uns caras e eles quebraram uma
faca nele. Mas...
— Espere – os olhos de Nove se estreitaram. — Ele pode...?
— Não – Malcolm respondeu rapidamente, detectando o
tom na voz de Nove. — Ele não é como nosso velho amigo Cinco.
A pele dele não muda ao entrar em contato com qualquer subs-
tância. De fato, os primeiros exames e raios X mostraram que a
pele dele não mudou nada. É necessário um estímulo negativo –
uma faca ou uma injeção – para ativar a reação.
— Hum – Nove disse, se inclinando para trás. — Já tenta-
mos atirar nele?
— Ainda não – Malcolm respondeu secamente. — Vamos
descobrir.
Nove assentiu. Com o passar do último ano, ele e Malcolm
desenvolveram uma equipe única para identificar e aperfeiçoar
Legados. Nove preferia testes físicos enquanto Malcolm preferia
testes científicos. Eles ainda não encontraram um poder que não
puderam identificar.
O coronel Ray Archibald foi o próximo a chegar para a reu-
nião semanal. O homem de meia-idade era careca, e seu uniforme
sempre estava amarrotado.
— E aí, Archie – Nove disse quando o coronel entrou no
escritório.
Archibald respondeu com um sorriso seco e se sentou. No-
ve imediatamente desgostou do homem, ele foi o tipo de militar
ultra sério durante a invasão. O sentimento parecia ser recíproco.
Pela forma que a Academia foi estruturada, foi pedido ao coronel
Archibald para tratar o jovem Nove como um igual. Graças à sua
audição aguçada, Nove ouviu Archibald se referir a ele como um
“imaturo” ou “trapaceiro” várias vezes.
— Você teve mais tempo para pensar sobre a minha suges-
tão para jogos de guerra? – Archibald perguntou a Nove, com uma
sobrancelha erguida em tom de desafio.
Nove sorriu. O coronel estava sempre tentando o fazer
concordar na junção dos exercícios de seus estudantes com os
pacificadores que trabalhavam lá. Archibald argumentava que se-
ria bom para todos os envolvidos, mas Nove tinha uma sensação
persistente de que Archibald queria que seus homens praticassem
para matar a Garde.
— Sim, sim. Ainda estou pensando nisso – Nove respondeu.
— Nós finalmente encontramos outra pessoa com o Recupero
hoje, então seus homens não precisam se preocupar com ossos
quebrados.
— Você parece confiante, garoto – o coronel respondeu. —
Estamos dentro?
— Mais uma vez, eu devo insistir na minha discordância
com essa ideia bárbara – disse a Dra. Linda Matheson, a psicóloga
da Academia, enquanto ela se juntava à reunião.
—Ah, por favor, doutora. Acabar com a droga dos militares
é como um ritual de passagem para um Garde – Nove disse com
um sorriso feroz.
— Não é estritamente verdade – Malcolm interveio.
Chegando logo depois da Dra. Linda estava a Dra. Susan
Chen. A reitora dos alunos tendia a ficar quieta durante essas reu-
niões. Entretanto, Nove assistiu algumas de suas aulas, onde ela
era uma pessoa completamente diferente – vívida, animada e su-
perinteligente. Os alunos gostavam dela assim como Nove. Ela
quase conseguiu convencê-lo de se formar no ensino médio.
— Todos vocês que têm PhD12 são pacifistas – o coronel re-
clamou.
— Hmm – Dra. Linda respondeu. — Você diz isso como se
fosse uma coisa ruim.
—Vamos revistar a ideia dos jogos de guerra? Tal tipo de
exercício seria bem útil para mim – disse Greger Karlsson enquan-
to ele se espremia para dentro do escritório com os outros.
Greger era suíço, com cabelo castanho claro que estava
sempre penteado para trás. Ele lembrou a Nove um daqueles fi-
nancistas chatos que sempre acabavam indo para a cadeia alge-
mados por baixo de seus casacos. Mas o passado de Greger não
era finança, era política. Antes da invasão ele era um embaixador.
Nos dias de hoje, ele representa a Garde Terrestre na Academia.
Greger observou as várias atividades na escola, mantinha o rastro
dos preguiçosos e enviava vários relatórios para seus chefes na
ONU sobre o progresso e potencial deles. Quando os alunos de
Nove estiverem prontos, eles serão enviados para Greger, um
processo que Nove ainda tinha sérias dúvidas. Confiar a Garde aos
caprichos de uma organização política, mesmo uma diversificada e
com boas intenções como a ONU, fazia os pelos da nuca de Nove
se arrepiarem. Esse era o mundo que ele vivia agora – em vez de
alienígenas hostis, ele lidava com burocratas e administradores.
— Enquanto a segurança dos nossos jovens puder ser ga-
rantida, eu não vejo problema em uma pequena competição ami-
gável com os pacificadores – Greger continuou, enquanto ele pu-
xava uma cadeira. —Pode ser divertido.
— Eu estive comandando exercícios de guerra desde muito
antes do “professor” ter nascido – coronel Archibald disse com
um aceno na direção de Nove. — Nunca vi um soldado que aca-
bou com algo além de arranhões. Eles vão é ficar machucados
com aquele percurso de obstáculos maníaco que instalamos lá
embaixo.
Nove se inclinou, sentindo satisfação. Ele teve grande par-
ticipação no projeto de treinamento da Academia para os jovens
Gardes praticarem seus Legados, grande parte baseada na sala
que seu Cêpan havia construído para ele uma vez.
— Eu não quero questioná-lo, coronel – Malcolm disse, —
mas algum dos seus antigos exercícios envolveram jovens capazes
de quebrar as leis da física?
O coronel olhou para Malcolm com um olhar intimidante.
— Não, óbvio que não.
— Enquanto estiver bem supervisionado, eu realmente não
vejo problema com aquele tipo de exercício – Dra. Chen disse. —
Eu acho que não sou tão pacifista, afinal.
Dra. Linda ergueu uma sobrancelha. — Susan, estou real-
mente surpresa por ouvir isso...
— Eu sei que tentamos olhar para nossos alunos como se
fossem adolescentes normais – Dra. Chen continuou, — mas as
vidas deles serão bem diferentes daqueles com quem costumá-
vamos trabalhar. Precisamos nos lembrar disso. Se estivermos
sendo realistas, a defesa própria nunca vai deixar de ser parte da
vida deles. É nosso trabalho prepará-los propriamente em todos
os aspectos sobre ser um membro da Garde Terrestre.
— Bem colocado – Greger disse.
Dra. Linda mexeu a cabeça. — Eu apenas me preocupo que
um exercício com humanos normais contra a Garde vai resultar
numa redução de empatia pelos envolvidos.
O coronel Archibald coçou a ponta do nariz. — Oh, Deus.
Aqui vamos nós.
Enquanto Dra. Linda e Archibald discutiam, Lexa entrou no
escritório. Ela sentou no sofá, ao lado de Nove, e abriu seu note-
book. Lexa era provavelmente da mesma idade das duas outras
mulheres da sala, mas não parecia, sua pele era morena e lisa e
não tinha um fio de cabelo branco em seus cabelos negros. Ela era
Lorena, assim como Nove – eles não envelheciam no mesmo rit-
mo que os humanos. Lexa era a sobrevivente mais velha da raça
Lórica e a única que não possuía os Legados da Garde.
Ela passou anos na Terra como uma hacker, se escondendo
dos Mogadorianos e tentando proteger Nove e seus amigos sem
se revelar. Quando a Garde ficou conhecida após a invasão, a exis-
tência de Lexa foi mantida, na maioria das vezes, fora dos radares.
Além de Malcolm, ninguém na sala sabia que ela era loriena. Para
os humanos trabalhando na Academia, ela era simplesmente a
técnica em informática.
— Legal da sua parte em aparecer – Nove disse com um
sorriso.
Lexa olhou para ele. — O que eu perdi?
Nove bocejou em resposta. Essas reuniões semanais sem-
pre aconteciam do mesmo jeito. Cada um dos administradores
tentava empurrar a Academia de acordo com seu ponto de vista
pessoal, eles discutiam sobre política por um tempo, e Nove sairia.
Qualquer coisa significativa iria para votação. Com Nove, Malcolm,
e Lexa sempre votando juntos, era difícil uma ideia que eles não
gostassem ser aprovada. O mundo dos adultos era chato.
Com todos presentes, a reunião finalmente começou. O co-
ronel Archibald começou com relatos recentes de ameaças à se-
gurança do campus. — Resumindo: não há nenhuma – ele disse.
— Tudo está calmo.
— Qual é a versão não resumida? – perguntou Nove.
O coronel franziu os lábios. — Temos relatos de que aque-
les Ceifadores violentos realizaram uma manifestação em São
Francisco. Quase não foi ninguém e foi interrompida pelas autori-
dades locais. Ainda assim, é algo para ficarmos de olho.
— É por isso que a Academia deveria ter sido construída na
Europa. Essas manifestações são problemas únicos norte-
americanos – Greger disse. Isso lhe custou um olhar tenso de Ar-
chibald.
Depois a Dra. Chen resumiu sobre um grupo os estudantes
que estavam causando problemas na Academia. A lista era curta
essa semana – os costumeiros: Isabela Silva e Lofton St. Croix.
— Ambos parecem estar distraídos com... – Malcolm pigar-
reou. — Devemos dizer, atividades extracurriculares?
Nove estava no piloto automático. Suas respostas eram
grunhidos e levantava sua mão para votar “sim” sempre que Mal-
colm o fazia, deixava seus pensamentos se transformarem em um
devaneio, e então...
Bem, então seu escritório estava vazio. Reunião encerrada.
Em seu devaneio, Nove tinha seus dois braços e estava
usando eles para matar Mogs. Ele suspirou.
Nove lembrou a si mesmo que ele estava fazendo um bom
trabalho aqui. Treinando a próxima geração. Ele tinha uma mesa
agora, mas não a usava. Ele ainda era rebelde.
Cinco minutos depois que os administradores saíram, Mal-
colm e Lexa voltaram. Eles fecharam a porta.
— Tudo bem – Nove disse. —Agora podemos começar a
verdadeira reunião.
— Você precisa ser cuidadoso com o coronel Archibald –
Malcolm o advertiu, retomando seu lugar à frente de Nove. —
Você pega muito no pé dele.
— Tá, tá – Nove gesticulou e olhou para Lexa. — O que vo-
cê tem aí?
Lexa sentou na cadeira da mesa de Nove, seu notebook
aberto em sua frente. Ela mexeu a cabeça. — Nada bom.
— Esses Ceifadores que o Archibald falou?
— Quem dera. Aqueles caras são uma piada – Lexa respon-
deu. — Houve um incidente na Malásia que eles não estão nos
contando.
O “eles” nesse caso era as Nações Unidas. Assim que os
alunos se formavam na Academia, Nove e os outros ficavam meio
por fora. Foi por isso que Nove pediu para Lexa invadir sistema
interno da ONU e monitorar os relatórios sobre a Garde Terrestre.
Os novos Gardes podem ter se graduado no programa deles, mas
isso não significava que Nove estava deixando de observá-los.
— A Garde Terrestre enviou uma equipe lá para serviços
comunitários. Construção de casas, coisas do tipo – Lexa continu-
ou. — Eles foram atingidos pelo que foi descrito como uma equipe
de mercenários bem treinados.
Nove cerrou os punhos. — Casualidades?
— Nenhuma, na verdade – Lexa respondeu. — Esses caras
não usaram nada letal, tudo foi especificamente projetado para
contra-atacar os Legados da equipe da Garde Terrestre.
— Isso é definitivamente preocupante – Malcolm disse. Ele
deu a volta na mesa de Nove para espiar o relatório sobre os om-
bros de Lexa. — Sugere uma preparação de alto nível.
— Fica pior – Lexa continua. — Se lembra de Vincent Ia-
bruzzi?
— Claro que sim – Nove disse. Ele se lembrava de cada
nerd desastrado que ele colocou em forma e enviou para o mun-
do. — Vinnie Almôndegas! Não me diga que aconteceu algo com
o Vinnie Almôndegas, Lexa.
— Eles o pegaram – Lexa disse tristemente. — As Nações
Unidas acham que a operação teve especificamente ele como al-
vo. Eles não têm informação alguma do que aconteceu com ele.
— Filho da mãe – Nove respondeu, passando as mãos em
seus cabelos com frustração. — Que diabos eles estão fazendo lá
fora?
— Me lembrem de quais são os Legados de Vincent? –
Malcolm pediu.
— Ele desenvolveu o Recupero – Lexa respondeu. — Se
lembra de meses atrás? Daquela história que recebemos dos abo-
rígenes na Austrália?
Nove estreitou os olhos. — Houve rumores sobre alguém
com o Recupero ser sequestrado, não é?
Lexa assentiu. — Ninguém confirmou que essa pessoa com
esse Legado existiu de fato. E houve tantos relatórios falsos na-
quela época, não demos muita atenção. Mas então...
— China – Malcolm disse.
— Sim – Lexa respondeu. — Um chinês com o Recupero foi
sequestrado em Beijing. Bem... são indícios. Como não há partici-
pação da Garde Terrestre, os detalhes são escassos.
— Eles não haviam nos culpado por aquilo? – Nove pergun-
tou.
— Sim. Mas depois deles terem feito as acusações iniciais e
a ONU ter negado envolvimento, o governo chinês colocou um
ponto final na história. Fingiram que nunca havia acontecido –
Lexa disse. — Independentemente, se presumirmos que há algu-
ma verdade no relato australiano, isso faz com que três jovens
com o Recupero tenham sido sequestrados nos últimos seis me-
ses.
— E a moda está pegando – Malcolm disse. — Atacar uma
equipe da Garde Terrestre... – ele mexeu a cabeça.
Nove atravessou o escritório até chegar à janela. — Não
acabamos de receber alguém com o Recupero hoje?
— Taylor Cook – Malcolm confirmou.
— Precisamos ficar de olho nela – Nove disse.
Lexa digitou algumas coisas em seu notebook rapidamente.
— Há outra coisa.
— Deus – Nove grunhiu. — Agora são as notícias boas, né?
— Receio que não. Tivemos outra tentativa de invasão on-
tem à noite.
Periodicamente, desde que a Academia abriu, a base de
dados deles têm sido alvo dos hackers. Até agora, ninguém conse-
guiu passar pelo sistema de segurança de Lexa. Entretanto, ela
não conseguiu localizar o local de onde os hackers estão traba-
lhando. Foi um impasse.
— Eles tentaram ganhar acesso ao banco de dados que
armamos – Lexa continuou.
Os olhos de Nove se arregalaram. — Merda.
Malcolm suspirou, desapontado. — Então nossas suspeitas
estavam corretas.
Duas semanas antes, em uma reunião exatamente igual à
que eles tiveram hoje, Lexa mencionou que ela estaria transferin-
do os dados da Academia para um novo servidor. O anúncio foi
inofensivo e passou despercebido.
Também foi uma mentira.
Lexa criou uma conta falsa no novo servidor que ela menci-
onou, mas na verdade nunca transferiu os dados. Ninguém, com
exceção dos que estavam na reunião, sabia sobre a mudança de
servidor. Essa era a armadilha.
— Temos um espião – Nove declarou. — Que merda. Apos-
to que é o Archibald.
— Trabalhando para quem? – Malcolm perguntou. — E
para qual propósito?
Nove encostou-se na janela, olhando para o exterior. Ainda
havia batalhas para serem lutadas. Inimigos espreitando pelas
sombras, que não iriam revelar facilmente suas identidades para
que ele pudesse arrancar as cabeças deles.
— Não sei – Nove disse, rangendo os dentes. — Mas com
certeza vamos descobrir.
1
Companheiro, em japonês.
2
Grande maçã – apelido de Nova Iorque.
3
Romancista inglês da era vitoriana.
4
Sinônimo de testículos.
5
Legado de cura.
6
Apelido dado aos Gardes “atrasados” no desenvolvimento de Legados.
7
Referência ao lutador Jean-Claude Van-Damme.
8
Banda de rock britânica.
9
Seriado norte americano.
10
Representação de algum objeto ou imagem.
11
Máquina de guerra utilizada na Antiguidade e Idade Média para abrir bre-
chas em muralhas e portões de castelos.
12
Philosophiæ Doctor ou Doutor da Filosofia, o último e mais alto título aca-
dêmico recebido por um indivíduo.

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