TÍTULO ORIGINAL:
Generation One
EQUIPE DE TRADUÇÃO:
JOHN DC
FELLIPE FERNANDES
GUSTAVO ANDRADE
MARCOS ZIMMER
ALINE MARQUES
417
CAPÍTULO UM
KOPANO OKEKE
LAGOS, NIGÉRIA
para Taylor não funcionava com a própria Ran. Noites em que nem
várias horas de meditação podiam silenciar os ecos de seu passado
– os choros de seus irmãos, as paredes da casa de sua família cain-
do, as explosões. Noites quando, deitada na cama, Ran se sentia
perseguida, como se os Mogadorianos que quase a mataram em
Patience Creek ainda estivessem lá fora, caçando ela.
Nessas noites, ela corria.
Apenas algumas noites depois de ter consolado Taylor, Ran
encontrava-se nervosa e ansiosa. Ela se desenrolou dos lençóis
suados e colocou a roupa de treino, deslizando silenciosamente
para fora da suíte. Os alunos tinham um toque de recolher à meia-
noite, mas não estava claro exatamente quando isso foi
estabelecido. De qualquer forma, não importava para Ran.
Ninguém a incomodou sobre as corridas que ela fazia às quatro da
manhã. Ela nem tinha certeza se alguém já tinha percebido.
Ran correu primeiro ao redor dos dormitórios, aumentando
a velocidade quando atingia o caminho que levava à floresta.
Quando ela alcançou a margem das árvores, ela estava em alta
velocidade. Ela se virou – ainda estava muito escuro para atravessar
a floresta - então ela acelerou pela borda, seus passos respondendo
ao constante zumbido dos grilos. Em seu estado de desconforto,
ela imaginava as sombras tortuosas dos galhos de árvores como
garras, alcançando-a. Ela correu até suas pernas doeram e seus
pulmões queimarem, e então ela se esforçou para ir mais rápido. Se
ela fosse suficientemente forte, talvez ela pudesse escapar da
escuridão às suas costas.
Eventualmente, a camisola suada e fria enconstava na
coluna vertebral, e Ran voltou para o campus. As luzes estavam
acesas no centro de treinamento. Isso era incomum. O professor
Nove às vezes realizava sessões antes da aula, mas não cedo.
Curiosa, Ran correu naquela direção.
Quando Ran se aproximou, ela ouviu o barulho da pista de
obstáculos em movimento. Alguém estava correndo, o que não era
permitido sem professores e supervisão médica.
Essa regra, obviamente, não se aplicava ao professor Nove.
Ran espiava o ginásio no momento que Nove parou um
estouro de estilhaços de borracha com sua telecinese e
redirecionou os fragmentos para que eles derrubassem um saco de
areia balançando sobre sua cabeça. Nove usava apenas um par de
tênis e shorts de ginástica, então Ran podia ver onde a prótese de
seu braço se encontrava com o coto de seu ombro, a pele vermelha
e levantada, atravessada por cicatrizes negras.
Enquanto Ran observava, Nove saltou para a trave de
ginástica e correu através dela, esquivando-se sob uma série de fios
electrificados. Um triturador de tijolos alimentado por pistão
esperava Nove no final da trave. Ele colocou o ombro nele,
deixando rachaduras na pedra enquanto ele se afastava.
Um dos canhões montados na parede do percurso apontou a
mira para a direção de Nove, rastreando seu movimento e
disparando explosões de balas de borracha mais rápido que a sua
telecinese poderia impedir. Nove esquivou-se delas ao correr pela
parede mais próxima, seu Legado antigravidade entrando em ação.
O computador se ajustou e pedaços da parede começaram a
derramar graxa sob os pés de Nove, dificultando o progresso
vertical. Ele desacelerou e o fogo do canhão começou a alcançá-lo,
então Nove pulou pela academia, em direção à parede oposta, mas
não alcançando.
Seus dedos roçaram a superfície da parede, não
conseguiram ficar e ele caiu. Ele pousou em uma pilha estranha no
chão do percurso e foi rapidamente salpicado por balas de
borracha. Ran fez uma careta.
Nove tentou usar seu Legado de antigravidade para ir de
uma parede para outra, mas se esqueceu da sua prótese. Seu poder
não funcionou através dos dedos metálicos.
Ran saiu de fininho quando Nove socou o chão com
frustração, não querendo mais invadir a privacidade do Lorieno.
Seu estômago roncou e então Ran foi para o refeitório. As
portas estavam trancadas – o turno do café da manhã começaria
dentro de duas horas – mas isso não era problema para Ran e sua
telecinese. Depois de tirar o parafuso, ela pausou brevemente na
frente do quadro de avisos da sala de jantar, lendo o informativo
anunciando o próximo evento da Academia: os Jogos de Guerra. Os
estudantes estarão enfrentando os pacificadores da ONU em
algum tipo de cenário de batalha com a Garde Terrestre presente
para observar. Ela sabia que Nigel estava entusiasmado com isso, e
também decepcionado que eles não estariam trabalhando juntos
como um time.
Ran andou nas pontas dos pés na cozinha, pegou um ovo da
geladeira e foi em direção à saída de serviço. Circundando o ovo em
suas mãos, ela caminhou pela triha que a levou à praia da
Academia. Estava frio perto água, mas Ran não se importou. Ela se
sentou na areia e esperou o sol nascer. Ela gostava de como o sol
viria por trás dela, aquecendo a areia primeiro e tornando a água
lentamente roxa.
Segurando o ovo, Ran usou seu Legado. Ela jurou parar de
explodir as coisas, era verdade, mas ninguém precisava saber sobre
esse truque bobo, que nem sequer valia a pena mencionar no
seminário da Dra. Chen. Ela usou apenas a energia cinética
suficiente no ovo para que ela pudesse sentir as moléculas
vibrando, deixando o ovo ficar nesse estado agitado por alguns
segundos e então sugava a energia de volta para si mesma. Esse
processo – recuper a energia que ela produziu – pinicou suas
palmas e fez Ran se arrepiar.
O resultado final era ovo cozido. Ela quebrou a casca com a
unha e começou a descascá-lo.
— Achei que você tivesse abandonado seu Legado – disse
uma voz atrás dela.
Ran se virou. Era o professor Nove. Não o tinha ouvido
caminhar – o grande lorieno era surpreendentemente furtivo. Ran
se perguntou se ele sabia que ela o estava observando antes. Ele se
sentou ao lado dela, secando o suor com uma toalha.
— Eu tive que apresentar um relatório para a Garde
Terrestre sobre você – continuou Nove quando Ran não respondeu
de imediato. — Esses caras estavam muito decepcionados. Eu acho
que eles tinham uma lista de coisas para você explodir.
Ran colocou um pedaço de ovo na boca. — Você pode dizer
à Garde Terrestre que eu usarei meu Legado apenas para fins de
café da manhã.
Nove bufou. Ele olhou para Ran por um longo momento e
ela podia ver que ele queria dizer algo. Ela esperou em silêncio,
olhando as ondas.
— Olhe, meu trabalho aqui é ter certeza de que você e os
outros aprendam a controlar seus Legados para que você possa
viver sem machucar ninguém. Quero dizer, alguém que você não
queira machucar – Nove fez uma pausa. — Depois que se formar
aqui, se você quiser ser a fodona da Garde Terrestre, e isso é legal.
Da mesma forma que se você quiser viver uma vida chata e
entediante como uma chef de cozinha, legal também.
— Hmm – Ran respondeu de forma incompetente.
— Quero dizer que, se você não quiser usar seus Legados
com a Garde Terrestre, está bom por mim. Não sei se os robôs da
ONU ficarão felizes sobre isso, mas cruzaremos essa ponte quando
chegarmos lá. Mas o que eu quero saber é que se depois de
graduada na Academia, se você se encontrar em uma situação
específica, se sua vida ou a vida de outra pessoa depender deles –
eu preciso saber que você não hesitará em descartar todo esse lado
pacificista e que vai explodir alguns bandidos. Porque gostando ou
não, você é uma Garde, e situações como essa tendem a acontecer
conosco.
Ran considerou as palavras de Nove.
— Eu não vou hesitar – disse ela calmamente.
Nove assentiu uma vez, ficou satisfeito e se levantou. Ele
colocou sua toalha na areia e começou a tirar sua prótese. Ran
percebeu que planejava nadar.
— A propósito – disse ele, — como está a nova colega de
quarto?
Ran inclinou a cabeça. — Taylor? Ela está bem. Se
adaptando, eu acho.
— Bom – respondeu Nove, e colocou a prótese na toalha. —
Fique de olho nela, huh? Você não sabe, mas os que desenvolveram
o Recupero ficaram pior do que os valentões. Toda essa coisa de
poder curar pode mexer com eles.
Havia algo no tom da voz de Nove – quase como um aviso,
quase como se ele não estivesse dizendo exatamente o que ele
queria dizer. Antes que Ran pudesse lhe fazer mais perguntas, ele
correu para a água e mergulhou nas ondas.
CALEB CRANE
ACADEMIA DA GARDE HUMANA –
POINT REYES, CALIFÓRNIA
Caleb Crane mexeu com a cabeça. Não. Ele não sabia qual
era o problema dele.
— Você não tem bolas. Esse é o seu problema.
A testa de Caleb se enrugou. Ele cresceu junto com seus
dois irmãos mais velhos e um pai que era treinador. Ele estava
acostumado com esse tipo de conversa. O que não significava que
ele gostava.
— Você gosta daquela garota, a Taylor, certo? Mas já se
passaram semanas e você não disse nada a ela. Isso é patético,
cara. Não estou nem dizendo que você deveria flertar com ela. Eu
não tenho certeza de que você seria capaz disso sem se
envergonhar.
Caleb esfregou a parte de trás do pescoço. Ele sentou no pé
de sua cama, fechando a porta do quarto. Esse sermão - sobre o
como ele era um dos maiores perdedores - já estava acontecendo
há algum tempo.
— Você poderia falar tipo "Ei, como vão as suas aulas?” ou
"Que tipo de música você gosta?”, “Quais são os seus filmes
favoritos?” - eles chamam isso de puxar conversa, seu patético.
Quero dizer, se ela lhe fizer essas perguntas, você terá que mentir
porque o seu gosto é uma merda e sua vida também, mas enfim.
De qualquer forma, provavelmente é melhor mentir, basta dizer
que você gosta do que ela gosta. Sempre concorde com ela. Essa é
uma boa estratégia. Quão difícil é isso, hein cara?
— Não é realmente o meu estilo - respondeu Caleb. — Ser,
hum, manipulador.
— Você não tem um estilo! Olha, eu sei que sua confiança é
pouca por causa de seus irmãos te colocando para baixo o tempo
todo e as crianças na escola zombando de você por conta das
suass orelhas grandes...
Isso era verdade. Caleb tinha sido zombado sem piedade na
escola primária por conta de suas orelhas – com os quais ele
sempre conviveu. Seus colegas de classe colocavam os braços
diante de seus rostos como uma tromba de elefante e faziam
ruídos com a boca. Isso estava marcado nele.
—… mas você é bonito agora. Quero dizer, você está bem.
Suas roupas não. Podemos melhorar isso. Mas ouça, tudo o que
você precisa fazer é ser legal, conversar com ela um pouco - e
então, boom, você se torna amigo dela.
— A friend zone - disse Caleb. — Ouvi dizer que era ruim.
— O que? Você leu isso em alguma revista feminina? Não
diga “friend zone”. Nunca. Olha, sonso, isso é o que um cara com
suas cantadas limitadas tem que fazer. Você chega. Puxa
conversa. E então — bem, a escola aqui é estressante. Ela
provavelmente é emocional. A maioria das meninas é. Você
espera ela abaixar a guarda, até que ela precise chorar um pouco -
e de quem é o ombro amigo que ela vai procurar?
— Meu?
— Bingo!
— Mas... – a testa de Caleb enrugou de novo. — O
objetivo é fazê-la chorar?
— Não! O objetivo é aproveitar de uma situação
emocional. Deus, você é um caso sem esperança. Por que eu me
incomodo?
Caleb olhou para si mesmo. Um clone. Ele mesmo... porém
era diferente. Um conversador, malvado, com opiniões altamente
questionáveis sobre o sexo oposto.
— Eu acho que é hora de você ir - disse Caleb.
A duplicata levantou as mãos. — Epa, pera aí...
Caleb se levantou. Ele o reabsorveu sem colocar as mãos
em volta do pescoço do clone, mas este realmente tinha ficado
nervoso.
— Ack-! Pare!
E então ele se foi. O quarto ficou quieto. Caleb estava
sozinho.
Do lado de fora, na sala comum, Caleb encontrou Kopano
assistindo um filme de artes marciais. O nigeriano sorriu e
acenou.
— Esta parte é boa - disse Kopano. — Vocês deviam vir
assistir.
Caleb olhou por cima do ombro. — Sou só eu.
— Oh - disse Kopano, prestando mais atenção ao filme do
que Caleb. — Eu pensei ter ouvido você falar com alguém lá.
— Não - disse Caleb. Ele observou alguns segundos do
filme, depois se dirigiu para a porta. — Eu tenho uma consulta
com a Dra. Linda agora. Até depois.
rangeu seus dentes até sua mandíbula começar a doer. A sala fedia
– uma mistura de suor com fumaça de cigarro. Suas pernas doíam
por ele ter ficado em pé, mas ele se recusava a se sentar com os
outros ao redor da mesa de jantar desbotada. Não até o Reverendo
Jimbo ter terminado com seu estudo da Bíblia.
Ele odiava o Reverendo Jimbo.
Ele odiava a mobília nojenta daquele lugar.
Ele odiava os americanos.
Ao fundo, o Reverendo Jimbo lia uma passagem lentamente.
Einar observou o velho homem sem escutar – cabelo grisalho fino
caindo até a metade de sua nuca, cicatrizes no rosto, os olhos relu-
zentes de um crente. Um grupo de seguidores do Reverendo Jimbo
se amontoou ao redor dele, extasiados, prestando atenção, embora
Einar tenha percebido que o reverendo poderia estar lendo qual-
quer coisa – O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa – por exemplo,
um dos livros favoritos da infância de Einar – e eles estariam ouvin-
do como se fosse religioso.
Todos os seguidores de Jimbo tinham a mesma tatuagem
estúpida. Uma foice cortando uma serpente, formando um círculo.
Não se precisa pensar muito no simbolismo.
Os Ceifadores, eles se intitulavam.
Einar olhou ao redor do trailer. Haviam pregados nas paredes
vários pedaços de jornais sobre a vida extraterrestre, mapas feitos à
mão sobre avistamentos de Óvnis e fragmentos da Bíblia. Empilha-
dos contra uma das paredes havia um mural com rifles.
Essas pessoas não eram profissionais. Comparando-as com
as pesquisas e recursos da Fundação, o grupo de Jimbo era cômico.
Embora eles olhassem para ele como se fosse uma criança,
Einar sentia falta da eficiência de Jarl e seus mercenários de Blacks-
tone. Eles foram banidos das operações no solo americano, o que
significava um grande risco tentar trazê-los para os Estados Unidos
para participarem dessa operação. Seus empregadores tiveram que
usar os recursos que estavam disponíveis. Nesse caso, a pequena
organização que acreditava que os Lorienos eram demônios feitos
de carne e osso e que qualquer humano que eles tocaram foram
irreparavelmente corrompidos.
Ele e Rabiya estavam sozinhos nessa. Um risco calculado pela
Fundação, Einar supôs. Mesmo com a adição do Garde Terrestre
italiano que podia curar, os patrões ainda precisavam de mais poder
de cura. Einar sentiu que o problema estava se tornando desespero.
Se os Ceifadores soubessem realmente quem Einar e Rabiya
eram, eles certamente tentariam matá-los. Einar percebia o jeito
que Jimbo e alguns dos seus seguidores olhavam para ele. Eles já
tinham suspeitas. Mas a presença dele havia chegado com uma ge-
nerosa contribuição para a igreja móvel do reverendo, tanto em
dinheiro quanto em armas. Sem mencionar que Einar os prometeu
violência, deu-lhes propósito. Isso assegurou que os Ceifadores não
ficassem xeretando muito sobre ele e sua parceira. Pelo menos até
agora.
As armas que foram fornecidas por Einar não eram como
nada que os Ceifadores já tivessem visto antes. Elas foram
projetadas especificamente para lutar contra a Garde e estavam
atualmente disponíveis apenas para agências governamentais
escolhidas à dedo. Para as agências governamentais escolhidas e
para a Fundação. Einar e Rabiya estavam se apresentando como
representantes da Sydal Corp, a fabricante de armas, passando o
tempo com os Ceifadores para que eles pudessem testar a
tecnologia anti-Garde. Isso fez com que os Ceifadores se sentissem
especiais.
— Essa é uma corporação multinacional cristã, estão ouvin-
do? – o reverendo Jimbo havia dito para seus seguidores quando ele
apresentou Eirnar. — Não estamos apenas irritando o vento aqui.
Os poderes estão começando a aparecer.
Que Einar e Rabiya eram um pouco jovens demais para
representar um promitente fabricante de armas como a Sydal Corp
não pareceu ocorrer aos Ceifadores. E que ambos eram obviamente
estrangeiros também não levantou nenhuma bandeira vermelha.
Jimbo havia sublinhado apenas a multinacional, afinal.
E qual lugar melhor para testar essas armas do que aqui, na
costa da Califórnia? Eles só tiveram que esperar um alvo adequado
aparecer. Um retardatário. Isso foi o que Einar havia dito a Jimbo e
aos outros, de qualquer forma.
Eles não precisavam saber que ele e Rabiya estavam
esperando por alguém em particular.
Einar arrancou um pedaço de fiapo do seu botão preto. Os
Ceifadores haviam emprestado a eles o que Einar considerava trajes
pós-apocalípticos tolos – couro, máscaras de gás, bandanas
proibidas. Ele os fez companhia usando um terno cinza fino e
mocassins. Apesar da preponderância de mofo no banheiro
apertado do trailer do reverendo Jimbo, Einar conseguiu ficar
impecavelmente limpo. Ele manteve os cabelos castanhos claros
com o penteado que os separavam dos lados. Não havia uma
porção de sujeira debaixo das unhas.
Ele e Rabiya estão aqui há uma semana. Vivendo entre os
vermes. Esperando.
Um walkie-talkie zumbiu, ganhando vida. — Estou vendo um
que vai à sua direção – disse a voz rouca de um Ceifador. Diferente
do reverendo, Einar não se incomodou em aprender nenhum dos
nomes deles. — Furgão branco. Parece uma outra operação de
abastecimento.
Einar rapidamente pegou sua mala. Ele se virou para o
reverendo e seus discípulos, que haviam parado a leitura.
— Eu vou dar uma olhada – disse Einar. — Preparem-se.
— Com a orientação do Senhor, estamos sempre prontos –
respondeu o reverendo. Ele fez um gesto para um dos Ceifadores –
um homem jovem e musculoso com cabelos pretos lisos – para se
juntar a Einar. O reverendo sempre dava um jeito para que alguém
o observasse.
Einar seguiu para fora, o ar fresco da noite se tornando um
alívio após os odores abafados do trailer. Seu acompanhante o
seguiu. Do lado de fora havia mais uma dúzia de Ceifadores e suas
motocicletas. Eles haviam pulado o estudo da Bíblia para beber
cervejas e grelhar o que provavelmente eram bifes, mas Einar
imaginava ser esquilos.
O acampamento deles estava em um cume que tinha vista
para a estrada cênica de Mar a Vista. Nas décadas anteriores a
Academia locar este pedaço da Califórnia, Mar a Vista era popular
entre turistas e surfistas.
Agora, de acordo com a fonte da Fundação dentro da
Academia, essa era a rota que os pacificadores usavam quando
queriam viajar sem serem observados. Ao contrário da vizinha
Shoreline Highway, esta estrada era isolada. Normalmente, sem
tráfego. Perfeito para viagens discretas, mas também ótima para
uma armadilha.
Graças à sua fonte, Einar sabia exatamente onde os pontos
de controle de segurança da Academia estavam localizados. Os
Ceifadores mantinham um punhado de motoqueiros que pareciam
mendigos por perto, longe o suficiente para evitar a detecção, mas
perto o suficiente para observar as idas e vindas. Foi um deles que
falou no rádio.
Além disso, havia uma pequena equipe mais ao sul na
rodovia, pronta para criar um obstáculo ao comando de Einar.
Rabiya estava lá embaixo, supervisionando essa parte da operação.
Se descobrissem que eram da Garde e os Ceifadores
partissem para cima, era melhor que Einar tivesse com a maior
parte do grupo. Ele poderia lidar com eles. A fonte de Einar
assegurou à Fundação que o alvo fez visitas frequentes a São
Francisco, onde ela usou suas habilidades em um hospital local. Ela
viria por aqui. Com toda certeza, ela estaria acompanhada por
pacificadores e alguns dos funcionários da Academia. Todos são
dispensáveis.
Sempre que um veículo saia da Academia pela Mar a Vista,
eles verificaram. Até agora, não houve sinal de seu alvo.
Eventualmente, os pacificadores detectariam a presença
deles. Eles não podiam acampar aqui para sempre sem atrair a
atenção. Todos os dias, muito para o desgosto de Einar, o número
de Ceifadores aumentara. A palavra estava se espalhando, um
pequeno exército sendo formado. A atmosfera ao redor do terreno
do reverendo ficou cada vez mais parecido como uma festa. Mas
Einar podia dizer que os Ceifadores estavam ficando inquietos.
Em breve, eles vão querer alguma ação, seja com a
aprovação de Einar ou não. Ele já ouviu os idiotas ponderando uma
invasão à Academia. Muitas conversas ousadas.
A operação teria que ser abortada se os Ceifadores se
tornassem demasiado indisciplinados. Ele não havia sido enviado
aqui para um ataque sem sentido à Academia.
Toda a missão estava sendo mais arriscada do que Einar
esperava. Mais arriscado, ainda, do que foi sequestrar o chique
garoto italiano nas Filipinas. Atuar tão perto da Academia iria trazer
certas consequências. Com certeza seus patrões sabiam disso.
Provavelmente executaram dezenas de análises sobre o custo-
benefício.
Adquirir o alvo valia a exposição.
E, se tudo correr bem, toda a responsabilidade da operação
simplesmente cairá sobre os Ceifadores.
Três dias atrás foi o décimo oitavo aniversário de Einar. Ele
“comemorou” em meio aos cretinos fedorentos. Ele não contou a
ninguém, nem mesmo para Rabiya. Como um presente atrasado,
ele esperava ver alguns desses Ceifadores morrerem.
Einar acelerou-se em direção ao cume com o Ceifador que o
acompanhava. Chegando lá, ele se agachou na grama, com cuidado
para não sujar seu terno. Ele abriu sua mala e pegou os óculos. Eles
eram grandes e Einar se irritava com os elásticos que ficavam presos
na orelha.
— Aqui, deixe-me ajudar – disse o Ceifador. Ele endireitou a
alça na parte de trás da cabeça de Einar antes que ele pudesse detê-
lo.
Einar se virou para observar o Ceifador. Seus olhos pareciam
saltados e enormes com os óculos de proteção.
— Obrigado – disse Einar com frieza.
— Sem problema – disse o cara. — Esse sotaque. Você é
russo ou o quê? Me desculpa a pergunta.
— Islandês – respondeu Einar.
Ele se virou para observar a estrada, esperando a van
aparecer. Os óculos não tinham visão noturna. Eles não ampliavam
a visão de Einar. Ele olhou para a escuridão.
Se seu alvo entrasse em seu caminho, ele saberia.
— Nunca conheci ninguém da Islândia antes – continuou o
Ceifador. — Isso é legal.
— Qual o seu nome? – perguntou Einar.
— Silas.
— Você fala bastante, Silas – observou Einar. — O escuro te
deixa nervoso?
Silas riu. — Óbvio que não cara. Estou apenas conversando.
Einar se concentrou no jovem. As palmas de Silas começaram
a suar. Seu estômago embrulhou, como se fosse um nó. Seu
coração estava batendo rápido agora. Houve movimento na grama?
O que eram aquelas sombras? Einar sorriu finamente quando sentiu
que Silas se encolhia um pouco mais perto dele, como se fosse uma
proteção.
— Na verdade, é um pouco estranho aqui – disse Silas, sua
voz tremendo. — Merda, cara. Estou me sentindo estranho.
— Fique calmo – disse Einar, e parou de olhar para o
Ceifador. Era tão fácil colocar o medo nas pessoas quando eles não
sabiam o que estava acontecendo.
Os faróis apareceram na distância. Einar voltou sua atenção
para a estrada abaixo. A van se aproximou...
— O que...? – Einar murmurou.
Ele tocou o lado de seus óculos com o calcanhar da mão. O
que ele viu não pareceu possível. Ele verificou o diagnóstico no
canto inferior esquerdo da tela. Tudo parecia normal; as baterias do
óculos estavam totalmente carregadas.
A leitura tinha que estar correta.
Os lábios de Einar se curvaram em um sorriso confuso.
Através dos óculos, ele observou seis pontos vívidos de energia azul
passando na estrada.
Ele puxou o walkie-talkie do quadril. — Rabiya?
Sua parceira respondeu um momento depois, sua voz suave
como sempre. — Sim, Einar?
— Há seis indo em sua direção. Confirme se o alvo está entre
eles antes de se envolver.
— Sim, Einar.
Calmo, Einar guardou de volta os óculos na mala. Ele
percebeu os olhos de Silas sobre ele, a boca dele aberta.
— Você disse seis, cara? – Silas perguntou. — Seis daquelas...
coisas lá embaixo na van?
— Sim. Seis deles, sem qualquer escolta – respondeu Einar.
Ele levantou e seguiu de volta para o acampamento. — Seus
homens devem se armar e se preparar para se envolver.
TAYLOR COOK
MAR A VISTA – CALIFÓRNIA
Einar aumentar seu tom de voz no segundo andar. Ele estava gritan-
do com alguém.
Ela subiu as escadas rapidamente, porém, da forma mais si-
lenciosa que pôde. Freyja ficou na sala de estar, furtivamente espian-
do os homens no jipe através das cortinas.
No final do corredor do andar de cima, a porta de Einar esta-
va entreaberta. Taylor andou nas pontas dos pés até lá. Através da
abertura, viu Einar andando de um lado para o outro, obviamente
agitado. A TV de tela plana em sua parede estava sintonizada numa
videoconferência. Taylor podia ver apenas o canto inferior direito da
tela – uma mulher, com cabelo loiro em um prumo apropriado, ves-
tindo uma camisa branca e uma jaqueta, de forma profissional. Ver
apenas a boca e os ombros da mulher não seria suficiente para iden-
tificá-la, se Taylor um dia conseguir sair daqui. Ela se aproximou.
— Por favor, me explique por que tem uma equipe de ho-
mens de Blackstone estacionada do lado de fora da minha casa –
Einar esbravejou.
— Você sabe o motivo – ela respondeu profissionalmente. O
sotaque dela era britânico. — Temos suspeitas de que sua casa esteja
comprometida.
— Bobagem.
— Rabiya sabe como chegar até você, verdade? Você perdeu
Rabiya. Assim, sua localização está comprometida. Os homens de
Blackstone estão aí simplesmente por precaução.
— Se você tivesse permitido que eu os levasse comigo na
missão em vez daqueles Ceifadores, isso nunca teria acontecido –
Einar respondeu.
Taylor chegou mais perto, tentando captar uma melhor ima-
gem da mulher. Uma tábua de madeira rangeu sob seus pés.
— Agora, Einar – disse a mulher, ignorando o rangido. —
Sempre é o pobre artesão que culpa suas ferramentas. Rabiya é mui-
to valiosa para a Fundação. Não conseguimos catalogar outro Garde
capaz de produzir pedras de Loralite até o momento.
— Por semanas vocês só ficaram falando sobre como conse-
guir outra droga de Garde que desenvolveu o Recupero – Einar sil-
vou. — Eu a consegui para vocês. Se eu não tivesse – se eu não ti-
vesse voltado quando fiz aquilo, todos nós teríamos morrido.
— Foi o que disse em seu relatório – a mulher respondeu
amargamente. — Apesar disso, foi descuidado. A Garde Terrestre
está realizando inquéritos. Por isso, estamos mantendo os homens
de Blackstone para o caso de precisarmos liquidar a parte da Islândia
da nossa operação.
Taylor não gostou de como isso soou. Por ter se aproximado
mais, conseguiu mais detalhes sobre a mulher da Fundação. Olhos
azuis, rugas delicadas, talvez com mais ou menos cinquenta anos...
— Por favor, escute – Einar disse implorando, obviamente
descontente com a conotação de “liquidar” tanto quanto Taylor. —
Você não entende como foi que...
— Nós mudamos a sua visita. Os outros estão se teleportan-
do para aí – a mulher o interrompeu amargamente. — Arrume sua
casa, Einar. Ela está entreouvindo.
A tela ficou abruptamente branca. Taylor olhou para cima,
viu a câmera apontada na direção dela e xingou baixinho. Então,
aquela era a mulher do outro lado das câmeras de segurança. Ela
desejou poder ter visto uma imagem melhor.
Einar parou no vão da porta, olhando para ela, seu rosto
inexpressivo. Ele havia mudado de roupa, agora usando um terno
imaculadamente cinza. Taylor de repente se sentiu nua usando pija-
mas e um casaco de couro emprestado.
— Vamos dar uma festa? – ela perguntou.
— Se troque – ele simplesmente respondeu. — Estamos de
saída.
— Quem era aquela mulher? Sua babá britânica malvada?
— Talvez você chegue a conhecê-la um dia, se a coisas conti-
nuarem bem. Ela é uma visionária.
— Ai, Deus, você promete? – Taylor respondeu bufando. Ela
trancou seu olhar com os de Einar, procurando por fraquezas como
Isabela faria. — Você está com problemas, não está?
— Não.
— Você estragou tudo na Califórnia. Eu a ouvi. Fez uma ba-
gunça e tanto. Eles vão liquidar você.
— Não eu – Einar respondeu com um olhar significante.
— Claro, claro. Eu posso curar. Parece que sou mais valiosa
que você – ela fez questão de gesticular para a câmera no corredor.
— Você preferiria dar uma festa comigo a com esse pessoal, né?
Einar deu um passo na direção dela. — Pare.
— Eles não se importam com você – Taylor disse baixinho.
— Ou comigo. Mas a Academia pode nos proteger. E eles estarão
me procurando...
Einar riu da cara dela. Ela quase conseguiu tirar alguma coisa
dele, mas pressionou demais na direção errada.
— Eu já disse. Vá se trocar.
Os músculos de Taylor ficaram tensos. Seu coração batia
mais rápido, com o estômago embrulhando. De repente, sentiu me-
do. Taylor deu um passo para trás, na direção do quarto dela. É me-
lhor fazer o que ele disse ou então...
Não. Ela notou a maneira como Einar a olhava. Concentrado
nela. Era o Legado dele novamente. Ele estava manipulando suas
emoções. Saber disso não fez com que o medo ficasse mais fácil de
resistir.
— Pare... pare com isso – disse ela.
— Vá – ele ordenou.
As palmas de Taylor começaram a suar e seus joelhos quase
se dobraram. Ela apertou os dentes, mas não conseguiu evitar que
seu corpo reagisse. Com um grito, ela correu para o quarto, batendo
a porta atrás dela, como se houvesse um monstro a seguindo nos
calcanhares. De certa forma havia, ela pensou.
O medo não diminuiu até ela começar a mudar a roupa que
Freyja trouxera para ela naquela manhã. Uma blusa cor de pêssego e
uma longa saia preta. A roupa estava amassada e não se ajustou exa-
tamente a ela. Ela teve que enrolar as mangas. Havia também uma
longa faixa de seda escura que ela não tinha ideia de como usar.
Ela saiu do quarto e encontrou Einar ainda esperando do la-
do de fora. O medo havia desaparecido, ressentimento surgindo em
seu lugar.
— Você é um idiota – ela disse.
Einar franziu a testa. Ele estendeu a mão e tirou a seda dela.
Então, antes que Taylor pudesse detê-lo, ele se aproximou e come-
çou a colocar o lenço em sua cabeça. Taylor teve que resistir ao dese-
jo de dar um soco na boca dele. Assim que sua cabeça estava devi-
damente coberta, Einar recuou para apreciar seu trabalho.
— Existe um código com roupas para onde estamos indo –
disse ele.
— E para onde vamos?
— Abu Dhabi.
— O que? É sério?
Einar foi para o andar de baixo, forçando Taylor a segui-lo.
Freyja ainda estava envolta nas cortinas, observando atentamente os
homens parados lá fora. Taylor olhou na direção dela e fez uma care-
ta. Einar ignorou completamente a jovem, seguindo em direção aos
fundos.
— E ela? – a perguntou Taylor.
— Quem?
— Freyja. Você sabe, sua outra prisioneira.
— Ela vai ficar aqui – ele respondeu. — Se você tentar ter al-
guma ideia para fazer algo estúpido, a imagine morrendo grosseira-
mente.
Einar empurrou a porta dos fundos e atravessou seu quintal
coberto de gelo. Taylor correu atrás dele, grato por Freyja estar fora
do alcance de sua voz.
— Isso não vai acontecer de qualquer jeito? – perguntou ela.
— Ouvi àquela senhora da Fundação usar a palavra "liquidar".
Einar fez uma pausa e se virou para olhar para ela. — Isso
não vai acontecer.
— Mas se acontecer... – Taylor gesticulou para o pátio da
frente. — Aqueles caras lá fora vão matá-la, certo?
Antes de responder, Einar olhou por cima da cabeça de Tay-
lor, observando a câmera montada atrás da porta. Pareceu a Taylor
que ele não tinha certeza do quanto deveria dizer.
— Isso não acontecerá – repetiu Einar. — Nós somos muito
valiosos.
Ele não parecia inteiramente convencido.
Einar atravessou o jardim de rochas e se aproximou do cer-
cado de madeira que continha a pedra de Loralite. Taylor observou
por cima do ombro enquanto ele colocou um código de acesso de
quatro dígitos, não fazendo nenhum esforço em escondê-lo.
— Tudo bem – disse Taylor resignadamente. — Então, o que
vamos fazer em Abu Dhabi?
— Você e os outros vão curar o príncipe de uma das famílias
reais – respondeu Einar, empurrando o portão de madeira.
Taylor piscou. Tantas perguntas. — Quais outros? – pergun-
tou primeiro.
— Você é a quarta com esse Legado que a Fundação adqui-
riu.
— Quarta – repetiu Taylor. Ela era a única com esse Legado
inscrita na Academia. — Você sequestrou quatro...
Quando se aproximaram da Loralite, o pedaço de pedra de
cobalto pulsou em saudação, o brilho indo e vindo como um bati-
mento cardíaco.
— O príncipe tem leucemia – continuou Einar de forma na-
tural. — Os outros até agora não conseguiram curá-lo. Espero que a
adição do seu poder seja suficiente – ele colocou a mão sobre a pe-
dra de Loralite, então hesitou, mordendo o interior de sua bochecha.
— Tem que ser suficiente – disse ele, — ou toda essa operação será
tida como falha.
Liquidar. A palavra ecoou na mente de Taylor e uma sensação
de nervosismo vibrou em sua barriga.
Ela pensou na paciente com câncer que não conseguiu curar
na Califórnia. O fracasso aqui significaria punição? A morte de
Freyja? Alguma outra consequência inimaginável? Sua mente funcio-
nava febrilmente – ela precisava salvar Freyja e escapar – mas não
viu nenhuma saída. Tudo o que ela podia fazer era continuar a jogar
este jogo.
Einar estendeu a mão com impaciência. — Não vai vir?
Taylor fez uma careta, querendo ter certeza de que Einar vira
seu olhar de repugnância, antes de pegar a mão dele.
O mundo girou e a realidade dobrou. Taylor estava inconsci-
ente quando eles se teleportaram, então esta foi a primeira experiên-
cia dela com o processo alienígena. Pareceu que seu corpo se dissol-
veu – não de forma desagradável –, mas de uma forma suave, como
se fosse um sonho.
A única coisa que ela ainda podia sentir era a mão de Einar,
como uma âncora que a arrastava para seu destino. Ela sentiu tontu-
ra, um ponto de areia soprado no vento. Por um momento, sua vi-
são escura foi preenchida por milhares de pontinhos de luzes azuis
brilhantes. Outras pedras de Loralite, outros locais. Os vagalumes de
cobalto giraram ao redor dela e então...
O calor atingiu Taylor de uma só vez. Essa poderia ter sido a
parte mais desorientadora – ter o frio da Islândia apagado tão rapi-
damente, substituído por um calor seco que fez Taylor imediatamen-
te suar. Parecia que estava cozinhando.
Ela protegeu os olhos do sol. Ao contrário da nublada Islân-
dia, aqui o sol vermelho pendia no céu. Taylor surpreendentemente
se sentiu grata pelo lenço enrolado em sua cabeça.
Ela e Einar estavam no pátio de um palácio genuíno. Ao re-
dor dele havia estátuas de leões e mulheres, douradas com o que ela
supôs ser ouro real. Um trio de fontes flanqueadas por palmeiras
bem aparadas complementavam o caminho de paralelepípedos na
frente deles.
Taylor olhou para cima, com um pouco de admiração, para a
construção de quatro andares – cortinas de seda penduradas nas ja-
nelas e cúpulas cobertas de pinturas a óleo de aparência antiga, além
das varandas cheias de homens segurando metralhadoras.
Os guardas fizeram Taylor parar. Havia dezenas deles, tanto
em cima como ao longo da borda do pátio, todos vestidos de forma
idêntica, com calças brancas compridas e óculos de sol espelhados.
Um pequeno exército. Taylor engoliu em seco; ela esteve rodeada
por muitos grupos de homens armados recentemente.
— Eles não confiam totalmente em gente como nós aqui –
disse Einar calmamente, seguindo o olhar de Taylor. — O pai do
príncipe...
— O rei? – perguntou Taylor.
— Sheik, na verdade – respondeu Einar. — Ele é um genero-
so defensor da Fundação. Mas nem todos os seus irmãos e sobri-
nhos veem a nossa... utilidade – Einar ajustou sua gravata. — Com-
porte-se. Lembre-se de Freyja.
Taylor suspirou, olhando todas as armas ao redor. Ela olhou
de volta para a pedra de Loralite. Tentar alguma coisa aqui prova-
velmente a mataria. Ela seguiu Einar pela trilha de paralelepípedos,
em direção à entrada do palácio.
— Estava na hora.
Uma garota asiática e magrela que estava na sombra de uma
das palmeiras fumando um cigarro de um elegante suporte dourado
os interrompeu antes de entrarem no palácio. Os guardas observa-
vam essa garota da mesma maneira incomum que Einar e Taylor, o
que significava que ela deveria ser Garde.
Como Taylor, ela usava um hijab, embora o dela estivesse de-
corado com cavalos-marinhos. Ela usava sapatos de salto alto que
faziam os pés de Taylor doerem só de pensar, um blazer curto e uma
elegante saia lápis. Suas unhas foram pintadas de vermelho e preto
para combinar com sua roupa. Embora ela parecesse apenas um ou
dois anos mais velha, Taylor imediatamente percebeu que essa garota
era bem mais velha que isso.
— Jiao – disse Einar, como se fosse uma saudação. Quando
ele tentou desviar dela, a menina simplesmente parou na frente dele.
Ela ignorou Taylor completamente.
— Nós precisamos conversar.
— Precisamos?
— Você me disse, você me prometeu, que a Fundação iria ti-
rar minha família de Shenzhen.
— Isso vai acontecer – disse Einar com um suspiro. — Você
precisa ser paciente.
Taylor teve a sensação de que não era a primeira vez que eles
tinham essa conversa.
Eles entraram no palácio, os saltos de Jiao ecoando alto con-
tra os pisos de mármore. O ar estava muito mais frio do lado de den-
tro. Taylor tentou prestar atenção a seus arredores – pinturas que
provavelmente deveriam estar em museus, dezenas de cômodos,
mais e mais guardas – enquanto também ouvia Einar e Jiao.
— Já faz meses – disse Jiao bruscamente.
— As extradições levam tempo – respondeu Einar. — Eu
prometo. Vou checar para você.
— É melhor checar mesmo – disse Jiao. — Diga para aquela
britânica estúpida que esta é a última missão que estou participando
até eles cumprirem o que prometeram.
Einar assentiu com firmeza e não disse nada. Jiao lançou um
olhar sobre o ombro, observando Taylor por uma fração de segun-
do.
— Esta é a nova garota? Ela é que vai nos colocar no topo?
— Sim – respondeu Einar.
— Hmpf – Jiao lançou a Taylor outro olhar, depois se voltou
para Einar. — Onde está Rabiya?
— Não conseguiu.
Jiao estudou Einar por um momento, obviamente esperando
que ele explicasse. Taylor não ofereceu nenhuma informação. Se ela
estivesse procurando um aliado para ajudá-la a escapar, não seria
essa garota. Ela quase pareceu mais estúpida que Einar.
— Conversa maravilhosa Einar, como sempre – disse Jiao
amargamente, depois acelerou os passos pelo corredor domado do
palácio. Ela sabia para onde estava indo e não queria chegar junto
com eles.
Depois de um momento, Taylor riu. Einar olhou em sua dire-
ção, seus lábios franzidos.
— Eu finalmente entendi – disse Taylor.
— Entendeu o que?
— Costumavam ter esses grupinhos na minha escola, as me-
ninas malvadas que eram alguns anos mais velhas que eu. Todas tra-
balhavam na mesma loja no shopping. Isso... bem, você provavel-
mente não tem isso na Islândia. É como uma loja popular onde eles
vendem calças jeans e camisolas com grandes logos da loja costura-
dos neles.
Logo à frente, Jiao empurrou um conjunto de portas duplas
esculpidas à mão e entrou na sala no final do corredor. Einar desace-
lerou e depois parou, se virando para encarar Taylor. Os guardas os
seguiram – os cercando, na verdade – e pararam numa distância res-
peitável.
— Chegue ao ponto, por favor – disse Einar.
— Está bem. Essas garotas eram realmente próximas até uma
delas ser promovida para supervisora e então ela ficou toda séria,
mandando nas outras, basicamente agindo como se fosse importan-
te. Um pouco de poder subiu direto para a cabeça dela – ela apontou
para Einar. — Esse é você, cara. Você é como... o estagiário do ge-
rente. O quão triste é isso?
Einar fechou os olhos por um momento, depois os reabriu.
— Você já terminou?
— Bem, a moral da história é que a loja fechou e todas tive-
ram que encontrar novos empregos de verão, mas a amizade já esta-
va totalmente arruinada – disse Taylor com um sorriso brilhante. —
Então, aplique esse conselho no que vale a pena.
Einar pegou Taylor pelo braço e a conduziu para a sala em
que Jiao tinha entrado. — Essas tentativas de tentar fazer minha ca-
beça não a levarão a lugar algum – disse ele. — Eu não sou uma va-
dia tola da sua escola.
— Não estou tentando fazer sua cabeça – insistiu Taylor. —
Estou tentando fazer você ver quão estúpida é sua situação.
— Cale a boca, agora – mandou Einar.
Einar a conduziu pelas portas duplas. Os olhos de Taylor le-
varam um momento para se ajustarem – o resto do palácio tinha
sido absorvido pela luz do sol, mas este quarto era mantido de forma
intencionalmente escura, todas as cortinas fechadas, velas cintilando
em suportes na parede.
O quarto era grande, com um teto abobadado que mostrava
um mosaico de pássaros entre árvores. Incenso queimava em um
canto, onde um grupo de mulheres estava reunido, todas cobertas
dos pés à cabeça, ajoelhadas e com as testas tocando o chão em ora-
ção. Espalhados ao redor do quarto havia mais guardas com mais
armas. Taylor engoliu em seco.
Um homem mais velho com uma grossa barba branca estava
sentado numa pequena mesa, uma taça de vinho escuro não muito
longe de sua mão. Ele usava uma túnica dourado e branco, e Taylor
podia dizer imediatamente que ele estava no comando aqui, o humor
da sala parecia se dobrar em volta dele.
Este deve ser o sheik. Ele lançou a ela e a Einar um olhar se-
vero quando eles entraram, seus dedos tamborilando na mesa, mas
não disse nada. Ao seu lado, havia uma mulher árabe, que não estava
vestida dos pés à cabeça como o grupo do canto, mas sim com um
hijab e um jaleco de laboratório. Uma médica tradicional. Ela se aga-
chou ao lado do homem mais velho e lhe mostrou um gráfico, expli-
cando algo em árabe.
— Estamos atrasados – disse Einar calmamente para Taylor.
— Eu tive essa impressão.
A atenção de Taylor se voltou para a cama box que dominava
o centro da sala. Deitado lá estava o príncipe doente. Ele parecia
uma versão mais nova e mais bonita do sheik. Sua barba e os cabelos
estavam cortados meticulosamente.
Ao contrário do bronzeado saudável de seu pai e dos guarda-
costas, a pele do príncipe estava cinza, as bochechas secas, seu corpo
magro e emaciado debaixo dos lençóis. Ele estava ligado a uma vari-
edade de equipamentos médicos, os sinais sonoros em constantes
zumbidos, criando um estranho coro com as orações na parte de trás
da sala. Se não fosse pelo lento movimento do peito, Taylor teria
pensado que o príncipe estava morto.
Jiao já estava na cabeceira do príncipe. — Apresse-se, novata
– disse ela.
Havia outros dois jovens ao redor da cama do príncipe. O
primeiro era um menino gorducho com uma juba de cabelos encara-
colados. Seus olhos estavam vermelhos, um dos lados de seu rosto
estava cheio de hematomas recentes.
Ele olhou para Taylor com entusiasmo e depois desviou o
olhar. Outro prisioneiro da Fundação. Taylor se lembrou de Isabela
mencionando um garoto com o Recupero que já havia se formado
na Academia e trabalhava na Garde Terrestre, e que era italiano...
poderia ser ele? Vincent, ela pensou que fosse o nome dele.
Na frente de Vincent estava um menino ainda mais jovem
com pele escura, cabelos brancos espetados e sem pernas. Ele estava
sentado em uma cadeira de rodas e parecia completamente fora de si
– sua cabeça se movia de um lado para o outro, os olhos vazios.
Um par de microchips estranhos estava preso em suas têm-
poras. Uma mulher mais velha vestida de forma conservadora estava
atrás da cadeira de rodas, com a mão descansando suavemente no
ombro do garoto. Taylor se viu olhando esta pobre alma, simpatia
misturando-se com apreensão.
— A Fundação é generosa – disse Einar em seu ouvido, sur-
preendendo Taylor. — Mas, como você vê, eles também podem ser
cruéis.
Ele a empurrou para a cama do príncipe. Taylor acabou pa-
rando no pé da cama, Jiao na cabeceira, e os dois meninos um de
cada lado. Taylor olhou nervosamente para os meninos traumatiza-
dos, pelo menos até Jiao estalar os dedos.
— Concentre-se – ela bufou. — Siga minha energia.
A testa de Taylor enrugou. — Seguir sua... me desculpe. Eu
nunca fiz isso em grupo antes.
Ela sentiu o sheik se mexer impaciente atrás dela, mas o igno-
rou.
Jiao revirou os olhos. — Você saberá o que fazer assim que
começarmos – ela gesticulou na direção do menino aleijado. — Até
um vegetal consegue fazer.
Não prestando atenção à observação de Jiao, a mulher que li-
dava com a cadeira de rodas abaixou-se e sussurrou algo na orelha
do garoto sem pernas. Roboticamente, ele estendeu a mão e apertou
o pulso do príncipe adormecido. Vincent, ainda evitando o olhar de
Taylor, fez o mesmo com o outro braço do príncipe.
— Está vendo? – disse Jiao, e colocou as mãos em ambos os
lados do rosto do príncipe. Ela fechou os olhos e começou a traba-
lhar.
Taylor podia sentir todos eles usando seus Legados. O resto
das pessoas na sala podem não perceber, mas para Taylor, a energia
curativa emitia uma aura quente.
Com cuidado, ela afastou o lençol e colocou as mãos sobre os
pés do príncipe.
Ela sentiu movimento. O príncipe abriu os olhos. Ele olhou,
piscando, para Taylor, e um pequeno sorriso se formou em seus lá-
bios. Ele quase pareceu calmo. Havia algo bom em sua expressão –
gentileza.
— Você é uma boa pessoa?
As palavras surgiram antes que Taylor pudesse detê-las. Ela
sentiu uma mudança inquieta dos muitos guardas da sala e sentiu
Einar avançar atrás dela. Ao mesmo tempo, os dedos do sheik de
repente pararam de tamborilar na mesa.
O príncipe lutou para conseguir juntar as palavras: — ... O
que?
— Você é uma boa pessoa? – repetiu Taylor. — Por que, sa-
be, todos nós fomos basicamente sequestrados para curá-lo. Alguns
provavelmente foram torturados. Então, eu quero saber se você,
sabe, vale o constrangimento...
Vincent tremeu, mas fingiu não ouvir, os olhos fechados. O
menino sem pé permaneceu caído sobre o príncipe, despejando sua
energia de cura. A mulher que cuidava dele lançou um olhar severo
para Taylor. Jiao lentamente abriu os olhos, seus lábios se curvaram
com desdém.
O príncipe espreitou ao redor de Taylor, procurando por seu
pai. Ele parecia confuso. Algo sem comunicação verbal aconteceu
entre ele e seu pai. Finalmente, ele olhou para ela e lentamente ba-
lançou a cabeça.
— Eu... não posso responder isso – disse o príncipe.
— Bom, pense nisso quando estiver melhor – disse Taylor.
— Porque esta coisa de Fundação é totalmente uma merda e alguém
precisa fazer algo a respeito.
Com isso, Taylor fechou os olhos e apertou os pés do prínci-
pe. Ela sentiu a doença que espreitava dentro dele, assim como sen-
tia três faróis de luz pulsantes tentando queimá-la. Ela adicionou sua
energia de cura, dando o máximo que pôde, como se sua vida e não
a do príncipe dependesse disso.
CALEB CRANE
APACHE JACK’S – NOVO MÉXICO
—
havia um comando. — Acorde.
Taylor abriu os olhos devagar. O corpo dela estava cansado,
seus dedos e palmas das mãos ainda estavam formigantes por ter
prolongado o uso do seu Legado de cura. Sua boca estava seca, as-
sim com suas narinas. Ela tossiu, sentando-se no divã onde ela havia
desmaiado.
Einar lhe entregou um copo de água. — Você esteve dor-
mindo por quase seis horas – ele disse. — Eu acho que já é o sufici-
ente.
Taylor umedeceu a boca. — Você não teve que curar nin-
guém. Como sabe que é o suficiente?
Einar não respondeu. Ele simplesmente a pegou pelo braço e
a ajudou levantar. Eles estavam em um dos muitos quartos de hós-
pedes do palácio. Este foi decorado com fotos do sheik – sombrio,
da mesma forma que ele olhou para Taylor na primeira vez – ao lado
de uma variedade de carros caros. Taylor esfregou os olhos.
— O que acontece agora?
— Nós vamos para casa – Einar disse.
Taylor deu uma olhada.
— De volta a minha casa – corrigiu Einar.
— E então, o quê? Esperar até que a tal Fundação escolha
outro riquinho para eu curar?
Einar levantou uma sobrancelha. — Você não gostou? Usar
seu Legado para salvar uma vida? Para fazer o impossível?
Taylor hesitou. Ela e os outros com o Legado de cura cura-
ram a leucemia do príncipe. Arrancaram-na para fora do corpo dele.
O câncer estava aprofundado nas células do príncipe. Ela pô-
de sentir isso. Sozinha, Taylor não teria sido capaz de produzir ener-
gia curativa suficiente para curar a doença – mas com o grupo, era
possível. Vincent tinha uma força semelhante a Taylor; a energia de
cura de Jiao foi a mais focada e precisa; o garoto aleijado era uma
fonte de poder bruto. Depois de superar suas presunções iniciais,
Taylor se entregou ao trabalho, sua energia se misturou com a dos
outros, combatendo a corrupção que infestava o corpo do príncipe.
O processo de cura demorou quatro horas. Depois todos eles
estavam exaustos e prontos para desmaiar. Estranhamente e apesar
do fato de que eles eram estranhos para ela, agora que ela havia se
afastado dos outros que tinham o Recupero, ela sentia falta do calor
da energia deles.
Taylor não contou nada disso para Einar. — Sabe, a Acade-
mia também me pediu para curar pessoas – disse ela em vez disso.
— Eles não escolheram casos especiais. Eles me deixaram curar
quem estava precisando.
— O príncipe é um aliado valioso. Sua família ajuda a manter
esta região do mundo estável.
— Quem te contou isso? A Fundação?
Einar não disse nada, o que Taylor entendeu como um sim.
Ele saiu do quarto de hóspedes, forçando Taylor a segui-lo.
— Essas pessoas para quem você está trabalhando, eles que
decidem quem será curado? Eles controlam a cura? É isso mesmo? –
Taylor o pressionou.
— Tenho certeza de que podemos providenciar para que vo-
cê faça algum tipo de caridade, se isso irá fazer você se sentir melhor
– Einar disse.
— Me faria sentir melhor não ter uma organização estranha
controlando minha vida.
Einar parou, olhando ao redor. Os corredores do palácio es-
tavam mais claros do que quando chegaram; não parecia haver um
esquadrão de guardas responsável por eles. Também não havia câ-
meras instaladas em todas as portas.
— Eu gostei do que você disse ao príncipe... "você é uma boa
pessoa?" – Einar riu baixinho. — Faz bem a essas pessoas serem
lembradas, de vez em quando, que elas realmente detêm o poder.
Taylor começou a dizer algo, mas percebeu que Einar estava
sendo genuíno. Se abrindo, mesmo. Ela fechou a boca e deixou-o
continuar falando.
— A Fundação, a Garde Terrestre, a Academia. Todos são
apenas maneiras de nos controlar – disse Einar. — Nós somos jo-
vens agora e não somos fortes o suficiente para trilharmos nosso
próprio caminho. Um dia, porém, seremos. Enquanto isso, somos
forçados a escolher quem permitimos nos explorar. A Fundação... –
Einar encontrou seu olhar. — ... eles proporcionam uma boa vida.
Lutar contra eles, neste momento, seria inútil.
Einar retomou a caminhada pelo corredor. Taylor seguiu atrás
dele, refletindo sobre suas palavras. Então ele não era cegamente leal
à Fundação. Mas eles o corromperam até o ponto em que ele fará
sua oferta. Ela não concordou com o que Einar disse sobre a Aca-
demia – que sentia como se fosse a casa dela, o que a surpreendeu.
Taylor não queria ir para lá no começo, mas agora queria muito vol-
tar. Ela precisava encontrar uma saída. Uma maneira de se libertar,
junto com Freyja, do alcance dessa tal de Fundação.
Quando entraram no pátio que continha a pedra de Loralite,
Taylor começou a remover os lenços de cabeça; eles ficaram irrita-
damente desconfortáveis depois que ela desmaiou. Ela e Einar para-
ram. Uma dúzia de guardas estava no pátio, bloqueando o caminho
deles para a pedra de Loralite. Todos estavam armados e, embora
suas armas não estivessem erguidas, todos pareciam prontos para
agir.
Taylor engoliu em seco. Talvez o sheik não tenha apreciado
sua insolência.
— O que é isso? – perguntou Einar, aparentemente tão sur-
preso quanto Taylor ao ver o caminho deles barrado.
Jiao emergiu da multidão de guardas. Ela parecia recuperada e
acordada – um forte contraste com a sensação de Taylor após a ses-
são de cura prolongada. A menina chinesa, vestida elegantemente,
sorriu para Taylor como se fossem velhas amigas, então fixou Einar
com um olhar seco.
— Você não pode ir, Einar – ela disse simplesmente.
— Como é? – ele respondeu. — O que você ainda está fa-
zendo aqui, Jiao?
— A Fundação me pediu para ficar no caso de você não ser
mais necessário. Mas você será um bom garoto, não vai? – ela balan-
çou os dedos na direção de Taylor. — Vamos lá, querida. Você vai
voltar para casa comigo.
— Hum, o quê? – Taylor respondeu.
— Einar permanecerá aqui como um convidado do sheik –
disse Jiao.
Einar deu um passo à frente e colocou uma mão sobre Tay-
lor, impedindo-a de ir até Jiao. Não que ela tenha feito qualquer mo-
vimento, de qualquer maneira.
— Eu não estou entendendo – disse Einar sem rodeios.
Jiao bufou. — Realmente, cara? Você perdeu Rabiya. Prova-
velmente a matou.
— Eu fiz a cura do príncipe se tornar possível – retrucou Ei-
nar.
— Sim, e suponho que seja por isso que o sheik ainda não
decapitou você – respondeu Jiao. — Não significa que ele esteja feliz
por você ter jogado a sobrinha dele para os lobos.
— Ela pertencia à Fundação – disse Einar bruscamente. —
Esse era o acordo. Nós iríamos curar seu filho amado e ganharíamos
os serviços de sua sobrinha em troca.
Jiao deu de ombros alegremente. — Acho que você deveria
contar isso ao sheik.
Lentamente, Taylor juntou as peças. A menina com o hijab da
rodovia era parente do sheik. Einar a havia perdido na missão do
sequestro de Taylor. Agora, ele estava com problemas. Ela se lem-
brou da conversa que ouviu entre Einar e a britânica.
Taylor ignorou a mão estendida de Jiao, não fazendo nenhum
esforço para sair do lado de Einar. Esta era uma boa oportunidade
para fazer alguma coisa, mas para qual lado ela deveria ir? Estava
congelada.
— Depois de tudo o que fiz para a Fundação – disse Einar
amargamente. — Uma cagada e...
— Ah, pare – disse Jiao. — Você sabe como as coisas funci-
onam – Jiao fez um gesto e dois guardas deram um passo à frente.
Um deles carregava um par de rifles, e o outro dois microchips iguais
aos que Taylor havia visto no garoto aleijado.
Os dois guardas chegaram a cinco metros de Einar antes que
ambos começassem a chorar histericamente. Eles caíram de joelhos,
agarrando os rostos, soluçando incontrolavelmente.
Einar estava brincando com as emoções deles.
— Einar... – Jiao começou a dizer.
E então o tiroteio começou.
Os tiros partiram de dois guardas mais distantes, nos fundos.
Suas armas dispararam, acertando a areia no chão. Taylor percebeu
que eles pareceram surpresos. Não foram eles que puxaram os gati-
lhos.
Foi Einar.
Os outros guardas se viraram assustados, erguendo suas ar-
mas – e então Einar foi puxando telecineticamente todos os gatilhos
de uma vez, começando um fogo cruzado, os guardas do sheik ma-
tando uns aos outros.
Jiao gritou. Foi atingida no joelho por uma das balas. Ela caiu
no chão. Taylor permaneceu travada no lugar que estava.
— Eu acho isso muito desrespeitoso com meus talentos –
disse Einar. Ele levantou Jiao com sua telecinese e a atirou através de
uma das janelas do segundo andar.
Então, ele agarrou Taylor pelos cabelos.
— Desculpe – disse ele. — Mas você precisa vir comigo.
Taylor estava atordoada demais, encarando os corpos san-
grentos dos guardas assassinados, para reagir de imediato. Ou talvez
fosse Einar, tornando-a dócil.
Ele a arrastou para a pedra de Loralite e tocou a superfície de
cobalto. A sensação de giro. Luzes azuis piscando. O repentino frio
da Islândia.
Finalmente reagindo, Taylor se afastou de Einar assim que
eles estavam dentro do cercado de madeira. Ele não pareceu notar.
Einar estava muito focado no corpo apoiado contra a parede. Ela
estava tão cansada e exausta que Taylor levou um momento para
reconhecer Rabiya.
Einar riu, olhando para a menina inconsciente. — Isso é tre-
mendamente irônico.
— Seu doente, o que isso significa...? – Taylor ofegou. Do la-
do de fora do cercado, Ran estava deitada de costas, escondendo-se
atrás de uma pilha de pedras. Ela ficou atônita ao ver sua colega de
quarto lá – e em ação. Ran tinha um corte na bochecha e uma ferida
de bala em sua coxa.
— Se abaixa! – Ran gritou para ela enquanto Taylor começa-
va a correr pela grama. — Atirador de elite!
Taylor ignorou as instruções de sua amiga, pulando o corpo
inconsciente de um dos mercenários de Blackstone enquanto ela
seguia para o lado de Ran. Nenhuma bala veio da janela do andar de
cima.
— Você está ferida – Taylor disse enquanto deslizava ao lado
de Ran. — Como você...?
Mas então, tudo fez sentido. Rabiya. Eles conseguiram tele-
portar com ela para cá.
— Nós viemos salvá-la – disse Ran. Ela olhou por cima do
ombro de Taylor, ficando tensa quando viu Einar.
Einar afastou-se do cercado com mais cautela do que Taylor,
examinando a sua cabana.
Rapidamente, Ran agarrou uma pedra, carregou-a com sua
energia explosiva e jogou na direção de Einar.
Ele olhou bem a tempo, desviando a pedra com sua telecine-
se. Seus lábios se encolheram de irritação e ele esticou a mão na dire-
ção de Ran.
Taylor recuou enquanto o corpo inteiro de Ran começou a
tremer. Veias em seu pescoço saltaram, todos os músculos sendo
apertados. Sangue escorria do corte em sua bochecha contra o lado
de seu rosto. Parecia que Ran estava tentando se sentar, mas não
podia. Seus olhos estavam arregalados e assustados.
Einar estava usando sua telecinese para triturá-la no chão.
— É engraçado como nosso instinto é de usar nossa telecinse
para jogar coisas em nossos inimigos – disse Einar de forma con-
vencional. — Até os lorienos se comportam desse jeito. Você pode
ver isso nos vídeos deles lutando durante a invasão. Eles arrancam
armas, lançam carros. Mas o corpo é um objeto, como qualquer ou-
tra coisa. Minha teoria é que o lorienos tinham um instinto próprio
dentro deles, para não usar a telecinese um no outro diretamente –
Einar encolheu os ombros. — Eu fui treinado de maneira diferente.
— Solta ela! – Taylor gritou.
— Qual é a sensação, Ran Takeda? – perguntou Einar. — Pa-
rece com Tóquio novamente? O sentimento de ser esmagado?
Se Taylor pensou que havia um pouco de humanidade em
Einar, ela se equivocou terrivelmente. Ele estava louco.
Com sua telecinese, ela pegou uma marreta que estava perto
da pedra de Loralite e atirou nele.
A cabeça do martelo atingiu Einar diretamente entre as omo-
platas. Ele gritou e abaixou suas mãos, seu aperto em Ran foi que-
brado. Ela abraçou suas costelas, tentando recuperar o fôlego.
Taylor pegou o martelo do ar. Ela ficou de pé na direção de
Einar e levou os braços para trás.
— É mais gratificante acertar as pessoas com coisas – disse
ela. — Você vai ver.
Ela quase derrubou o martelo. Mas então uma sensação de
profunda simpatia se derramou sobre ela. Quem sabe o que a Fun-
dação tinha feito com essa pobre criança. Ele não era ruim. Ele não
queria machucá-la. Tudo era apenas um mal-entendido.
Não. Era Einar. Manipulando-a.
Quando Taylor percebeu isso, tarde demais. Einar se levantou
e arrancou o martelo das mãos dela. Ele bateu no rosto de Taylor
com a alça de madeira, derrubando-a.
— Hmm – disse Einar. — Você está certa.
Ele ergueu o martelo e o lançou no tornozelo de Taylor. Ela
gritou quando os ossos se destruíram e quase desmaiou.
— Isso deve mantê-la ocupada – disse Einar. Ele jogou o
martelo no quintal, passou por Ran e entrou na casa.
Lágrimas encheram os olhos de Taylor. O sangue quente es-
correu pelo lado do rosto por conta de um corte na sobrancelha.
Parecia que havia vários pedaços de vidro sobre a pele do seu torno-
zelo.
— Tay... Taylor.
Era Ran. Ela lutou para se sentar, agarrando uma pedra pró-
xima. Pedaços de grama e de gelo se pendiam dos ombros onde ela
tinha sido jogada no chão. Ela arqueou as costas estranhamente e
ergueu a cabeça para trás, engolindo o ar.
Ou tentando, pelo menos.
— Eu... não consigo... respirar... – disse Ran.
Einar deve ter quebrado uma de suas costelas ou esmagado
um dos pulmões. Taylor olhou para Ran aturdida, tentando se con-
centrar apesar da imensa dor e na cabeça zonza.
— Espere um pouco – Taylor disse, sua voz falhada.
O mais rápido que pôde, Taylor se arrastou pelo quintal até
Ran. Os lábios dela estavam ficando azuis. Taylor precisava chegar
lá. Precisava curá-la. Lutar contra isso.
Enquanto isso, de dentro da casa, Taylor vagamente ouviu a
voz de Kopano gritando.
Eles vieram aqui para salvá-la. Todos os amigos dela.
E Einar estava matando todos eles.
KOPANO OKEKE
HOFN, ISLÂNDIA
Querida Taylor,
Espero que esta carta lhe encontre bem. Obrigado por sua ajuda
em Abu Dhabi e na Islândia. Realmente pedimos desculpas pelos
inconvenientes que aconteceram com seu responsável. Eu temo que
esse mau exemplo lhe fez criar uma imagem horrível sobre nossa
organização. Eu espero, no futuro, que você nos dê uma segunda
chance.
O mundo é um lugar melhor com seus esforços. O princípe nos
pediu para lhe enviar saudações. Um número gigante de doações foram
feitas em seu nome para uma variedade de hospitais precários naquela
região. Salvando uma vida, você conseguiu salvar outras milhares.
Estamos ansiosos para trabalharmos com você no futuro
novamente, se você aceitar tal oportunidade.
Atenciosamente,
B.
A Fundação.
O BÔNUS
ele podia observar a parte a céu aberto da academia reservada
para os treinos. Ele observou vários Gardes Humanos praticando
telecinese lá embaixo, fazendo notas mentais de quem parecia ter
precisão e quem estava parecendo descuidado. Os que estavam
com precisão seriam insultados por ele mais tarde; os que esta-
vam tendo problemas seriam chamados para uma conversa moti-
vadora.
O professor Nove tinha seus próprios métodos.
Ele coçou a parte onde seu braço costumava estar e suspi-
rou. O membro fantasma estava especialmente dolorido hoje. Ele
viu seu reflexo na janela e fez uma careta.
— Meu caro. Que diabos você está fazendo aqui? – ele
perguntou a si mesmo.
Verdade seja dita. Nove nunca esperou viver tanto assim.
Ele nunca imaginou uma manhã onde ele acordaria numa cama
aconchegante e familiar, andasse até um escritório particular, e
ficasse entediado o dia todo. Ele era apenas alguns anos mais ve-
lho do que os alunos que ele treinava, mas sua experiência de vida
o fazia se sentir décadas mais velho. Por muito tempo ele viveu
como um fugitivo, com um refugiado extraterrestre, sendo cons-
tantemente caçado pelos Mogadorianos. E então, na semana pas-
sada, enquanto pegava seu almoço no refeitório, Nove sentou de
costas para a saída. Um grande descuido; qualquer ataque surpre-
sa o pegaria de jeito. Seu próprio mentor – seu Cêpan, Sandor –
teria acabado com ele por aquele tipo de comportamento distraí-
do. Nove estava se tornando descuidado.
Nove olhou para si mesmo. Sua camiseta parecia mais
apertada do que deveria. Seria aquela uma gordurinha se forman-
do em seu abdômen esculpido? A comida era boa aqui. E ele esta-
va se tornando preguiçoso. Ele mexeu a cabeça.
Nove subiu pela parede usando seu Legado de antigravida-
de e começou a fazer abdominais enquanto estava pendurado no
teto. Ele estava chegando a cem quando o Dr. Malcolm Goode
entrou em seu escritório.
— Hora de reunião! – Malcolm anunciou alegremente. Ele
olhou ao redor, e então finalmente para cima. — Oh, você está aí
em cima.
Nove desceu do teto, chegando levemente ao chão, e en-
tão sorriu para o velho homem. — Olha só. Nem perdi o fôlego.
— Ótimo – Malcolm disse, deixando a xícara de café na
mesa.
— Temos dois novatos hoje, né?
Malcolm assentiu. — Uma Recupero, da Dakota do Sul, e
um jovem de Lagos, cujos Legados ainda são incertos.
Malcolm fez uma pausa. — Lagos fica na Nigéria, a propósi-
to.
— Eu sei disso – Nove disse.
Nove se jogou no sofá do lado oposto de Malcolm. Ele nun-
ca usou a mesa do seu escritório – parecia torná-lo mais sério. A
reunião semanal acontecia ali, os assentos para o alto-escalão da
Academia foram arrumados na frente do sofá em que Nove tirava
seus cochilos.
— Então, qual é o problema com o Legado desse garoto? –
Nove perguntou. — Por que vocês não têm certeza?
— Relatórios iniciais do escritório nigeriano descreveu a
pele dele como sendo impenetrável. Aparentemente, ele se en-
volveu em uma briga de rua com uns caras e eles quebraram uma
faca nele. Mas...
— Espere – os olhos de Nove se estreitaram. — Ele pode...?
— Não – Malcolm respondeu rapidamente, detectando o
tom na voz de Nove. — Ele não é como nosso velho amigo Cinco.
A pele dele não muda ao entrar em contato com qualquer subs-
tância. De fato, os primeiros exames e raios X mostraram que a
pele dele não mudou nada. É necessário um estímulo negativo –
uma faca ou uma injeção – para ativar a reação.
— Hum – Nove disse, se inclinando para trás. — Já tenta-
mos atirar nele?
— Ainda não – Malcolm respondeu secamente. — Vamos
descobrir.
Nove assentiu. Com o passar do último ano, ele e Malcolm
desenvolveram uma equipe única para identificar e aperfeiçoar
Legados. Nove preferia testes físicos enquanto Malcolm preferia
testes científicos. Eles ainda não encontraram um poder que não
puderam identificar.
O coronel Ray Archibald foi o próximo a chegar para a reu-
nião semanal. O homem de meia-idade era careca, e seu uniforme
sempre estava amarrotado.
— E aí, Archie – Nove disse quando o coronel entrou no
escritório.
Archibald respondeu com um sorriso seco e se sentou. No-
ve imediatamente desgostou do homem, ele foi o tipo de militar
ultra sério durante a invasão. O sentimento parecia ser recíproco.
Pela forma que a Academia foi estruturada, foi pedido ao coronel
Archibald para tratar o jovem Nove como um igual. Graças à sua
audição aguçada, Nove ouviu Archibald se referir a ele como um
“imaturo” ou “trapaceiro” várias vezes.
— Você teve mais tempo para pensar sobre a minha suges-
tão para jogos de guerra? – Archibald perguntou a Nove, com uma
sobrancelha erguida em tom de desafio.
Nove sorriu. O coronel estava sempre tentando o fazer
concordar na junção dos exercícios de seus estudantes com os
pacificadores que trabalhavam lá. Archibald argumentava que se-
ria bom para todos os envolvidos, mas Nove tinha uma sensação
persistente de que Archibald queria que seus homens praticassem
para matar a Garde.
— Sim, sim. Ainda estou pensando nisso – Nove respondeu.
— Nós finalmente encontramos outra pessoa com o Recupero
hoje, então seus homens não precisam se preocupar com ossos
quebrados.
— Você parece confiante, garoto – o coronel respondeu. —
Estamos dentro?
— Mais uma vez, eu devo insistir na minha discordância
com essa ideia bárbara – disse a Dra. Linda Matheson, a psicóloga
da Academia, enquanto ela se juntava à reunião.
—Ah, por favor, doutora. Acabar com a droga dos militares
é como um ritual de passagem para um Garde – Nove disse com
um sorriso feroz.
— Não é estritamente verdade – Malcolm interveio.
Chegando logo depois da Dra. Linda estava a Dra. Susan
Chen. A reitora dos alunos tendia a ficar quieta durante essas reu-
niões. Entretanto, Nove assistiu algumas de suas aulas, onde ela
era uma pessoa completamente diferente – vívida, animada e su-
perinteligente. Os alunos gostavam dela assim como Nove. Ela
quase conseguiu convencê-lo de se formar no ensino médio.
— Todos vocês que têm PhD12 são pacifistas – o coronel re-
clamou.
— Hmm – Dra. Linda respondeu. — Você diz isso como se
fosse uma coisa ruim.
—Vamos revistar a ideia dos jogos de guerra? Tal tipo de
exercício seria bem útil para mim – disse Greger Karlsson enquan-
to ele se espremia para dentro do escritório com os outros.
Greger era suíço, com cabelo castanho claro que estava
sempre penteado para trás. Ele lembrou a Nove um daqueles fi-
nancistas chatos que sempre acabavam indo para a cadeia alge-
mados por baixo de seus casacos. Mas o passado de Greger não
era finança, era política. Antes da invasão ele era um embaixador.
Nos dias de hoje, ele representa a Garde Terrestre na Academia.
Greger observou as várias atividades na escola, mantinha o rastro
dos preguiçosos e enviava vários relatórios para seus chefes na
ONU sobre o progresso e potencial deles. Quando os alunos de
Nove estiverem prontos, eles serão enviados para Greger, um
processo que Nove ainda tinha sérias dúvidas. Confiar a Garde aos
caprichos de uma organização política, mesmo uma diversificada e
com boas intenções como a ONU, fazia os pelos da nuca de Nove
se arrepiarem. Esse era o mundo que ele vivia agora – em vez de
alienígenas hostis, ele lidava com burocratas e administradores.
— Enquanto a segurança dos nossos jovens puder ser ga-
rantida, eu não vejo problema em uma pequena competição ami-
gável com os pacificadores – Greger continuou, enquanto ele pu-
xava uma cadeira. —Pode ser divertido.
— Eu estive comandando exercícios de guerra desde muito
antes do “professor” ter nascido – coronel Archibald disse com
um aceno na direção de Nove. — Nunca vi um soldado que aca-
bou com algo além de arranhões. Eles vão é ficar machucados
com aquele percurso de obstáculos maníaco que instalamos lá
embaixo.
Nove se inclinou, sentindo satisfação. Ele teve grande par-
ticipação no projeto de treinamento da Academia para os jovens
Gardes praticarem seus Legados, grande parte baseada na sala
que seu Cêpan havia construído para ele uma vez.
— Eu não quero questioná-lo, coronel – Malcolm disse, —
mas algum dos seus antigos exercícios envolveram jovens capazes
de quebrar as leis da física?
O coronel olhou para Malcolm com um olhar intimidante.
— Não, óbvio que não.
— Enquanto estiver bem supervisionado, eu realmente não
vejo problema com aquele tipo de exercício – Dra. Chen disse. —
Eu acho que não sou tão pacifista, afinal.
Dra. Linda ergueu uma sobrancelha. — Susan, estou real-
mente surpresa por ouvir isso...
— Eu sei que tentamos olhar para nossos alunos como se
fossem adolescentes normais – Dra. Chen continuou, — mas as
vidas deles serão bem diferentes daqueles com quem costumá-
vamos trabalhar. Precisamos nos lembrar disso. Se estivermos
sendo realistas, a defesa própria nunca vai deixar de ser parte da
vida deles. É nosso trabalho prepará-los propriamente em todos
os aspectos sobre ser um membro da Garde Terrestre.
— Bem colocado – Greger disse.
Dra. Linda mexeu a cabeça. — Eu apenas me preocupo que
um exercício com humanos normais contra a Garde vai resultar
numa redução de empatia pelos envolvidos.
O coronel Archibald coçou a ponta do nariz. — Oh, Deus.
Aqui vamos nós.
Enquanto Dra. Linda e Archibald discutiam, Lexa entrou no
escritório. Ela sentou no sofá, ao lado de Nove, e abriu seu note-
book. Lexa era provavelmente da mesma idade das duas outras
mulheres da sala, mas não parecia, sua pele era morena e lisa e
não tinha um fio de cabelo branco em seus cabelos negros. Ela era
Lorena, assim como Nove – eles não envelheciam no mesmo rit-
mo que os humanos. Lexa era a sobrevivente mais velha da raça
Lórica e a única que não possuía os Legados da Garde.
Ela passou anos na Terra como uma hacker, se escondendo
dos Mogadorianos e tentando proteger Nove e seus amigos sem
se revelar. Quando a Garde ficou conhecida após a invasão, a exis-
tência de Lexa foi mantida, na maioria das vezes, fora dos radares.
Além de Malcolm, ninguém na sala sabia que ela era loriena. Para
os humanos trabalhando na Academia, ela era simplesmente a
técnica em informática.
— Legal da sua parte em aparecer – Nove disse com um
sorriso.
Lexa olhou para ele. — O que eu perdi?
Nove bocejou em resposta. Essas reuniões semanais sem-
pre aconteciam do mesmo jeito. Cada um dos administradores
tentava empurrar a Academia de acordo com seu ponto de vista
pessoal, eles discutiam sobre política por um tempo, e Nove sairia.
Qualquer coisa significativa iria para votação. Com Nove, Malcolm,
e Lexa sempre votando juntos, era difícil uma ideia que eles não
gostassem ser aprovada. O mundo dos adultos era chato.
Com todos presentes, a reunião finalmente começou. O co-
ronel Archibald começou com relatos recentes de ameaças à se-
gurança do campus. — Resumindo: não há nenhuma – ele disse.
— Tudo está calmo.
— Qual é a versão não resumida? – perguntou Nove.
O coronel franziu os lábios. — Temos relatos de que aque-
les Ceifadores violentos realizaram uma manifestação em São
Francisco. Quase não foi ninguém e foi interrompida pelas autori-
dades locais. Ainda assim, é algo para ficarmos de olho.
— É por isso que a Academia deveria ter sido construída na
Europa. Essas manifestações são problemas únicos norte-
americanos – Greger disse. Isso lhe custou um olhar tenso de Ar-
chibald.
Depois a Dra. Chen resumiu sobre um grupo os estudantes
que estavam causando problemas na Academia. A lista era curta
essa semana – os costumeiros: Isabela Silva e Lofton St. Croix.
— Ambos parecem estar distraídos com... – Malcolm pigar-
reou. — Devemos dizer, atividades extracurriculares?
Nove estava no piloto automático. Suas respostas eram
grunhidos e levantava sua mão para votar “sim” sempre que Mal-
colm o fazia, deixava seus pensamentos se transformarem em um
devaneio, e então...
Bem, então seu escritório estava vazio. Reunião encerrada.
Em seu devaneio, Nove tinha seus dois braços e estava
usando eles para matar Mogs. Ele suspirou.
Nove lembrou a si mesmo que ele estava fazendo um bom
trabalho aqui. Treinando a próxima geração. Ele tinha uma mesa
agora, mas não a usava. Ele ainda era rebelde.
Cinco minutos depois que os administradores saíram, Mal-
colm e Lexa voltaram. Eles fecharam a porta.
— Tudo bem – Nove disse. —Agora podemos começar a
verdadeira reunião.
— Você precisa ser cuidadoso com o coronel Archibald –
Malcolm o advertiu, retomando seu lugar à frente de Nove. —
Você pega muito no pé dele.
— Tá, tá – Nove gesticulou e olhou para Lexa. — O que vo-
cê tem aí?
Lexa sentou na cadeira da mesa de Nove, seu notebook
aberto em sua frente. Ela mexeu a cabeça. — Nada bom.
— Esses Ceifadores que o Archibald falou?
— Quem dera. Aqueles caras são uma piada – Lexa respon-
deu. — Houve um incidente na Malásia que eles não estão nos
contando.
O “eles” nesse caso era as Nações Unidas. Assim que os
alunos se formavam na Academia, Nove e os outros ficavam meio
por fora. Foi por isso que Nove pediu para Lexa invadir sistema
interno da ONU e monitorar os relatórios sobre a Garde Terrestre.
Os novos Gardes podem ter se graduado no programa deles, mas
isso não significava que Nove estava deixando de observá-los.
— A Garde Terrestre enviou uma equipe lá para serviços
comunitários. Construção de casas, coisas do tipo – Lexa continu-
ou. — Eles foram atingidos pelo que foi descrito como uma equipe
de mercenários bem treinados.
Nove cerrou os punhos. — Casualidades?
— Nenhuma, na verdade – Lexa respondeu. — Esses caras
não usaram nada letal, tudo foi especificamente projetado para
contra-atacar os Legados da equipe da Garde Terrestre.
— Isso é definitivamente preocupante – Malcolm disse. Ele
deu a volta na mesa de Nove para espiar o relatório sobre os om-
bros de Lexa. — Sugere uma preparação de alto nível.
— Fica pior – Lexa continua. — Se lembra de Vincent Ia-
bruzzi?
— Claro que sim – Nove disse. Ele se lembrava de cada
nerd desastrado que ele colocou em forma e enviou para o mun-
do. — Vinnie Almôndegas! Não me diga que aconteceu algo com
o Vinnie Almôndegas, Lexa.
— Eles o pegaram – Lexa disse tristemente. — As Nações
Unidas acham que a operação teve especificamente ele como al-
vo. Eles não têm informação alguma do que aconteceu com ele.
— Filho da mãe – Nove respondeu, passando as mãos em
seus cabelos com frustração. — Que diabos eles estão fazendo lá
fora?
— Me lembrem de quais são os Legados de Vincent? –
Malcolm pediu.
— Ele desenvolveu o Recupero – Lexa respondeu. — Se
lembra de meses atrás? Daquela história que recebemos dos abo-
rígenes na Austrália?
Nove estreitou os olhos. — Houve rumores sobre alguém
com o Recupero ser sequestrado, não é?
Lexa assentiu. — Ninguém confirmou que essa pessoa com
esse Legado existiu de fato. E houve tantos relatórios falsos na-
quela época, não demos muita atenção. Mas então...
— China – Malcolm disse.
— Sim – Lexa respondeu. — Um chinês com o Recupero foi
sequestrado em Beijing. Bem... são indícios. Como não há partici-
pação da Garde Terrestre, os detalhes são escassos.
— Eles não haviam nos culpado por aquilo? – Nove pergun-
tou.
— Sim. Mas depois deles terem feito as acusações iniciais e
a ONU ter negado envolvimento, o governo chinês colocou um
ponto final na história. Fingiram que nunca havia acontecido –
Lexa disse. — Independentemente, se presumirmos que há algu-
ma verdade no relato australiano, isso faz com que três jovens
com o Recupero tenham sido sequestrados nos últimos seis me-
ses.
— E a moda está pegando – Malcolm disse. — Atacar uma
equipe da Garde Terrestre... – ele mexeu a cabeça.
Nove atravessou o escritório até chegar à janela. — Não
acabamos de receber alguém com o Recupero hoje?
— Taylor Cook – Malcolm confirmou.
— Precisamos ficar de olho nela – Nove disse.
Lexa digitou algumas coisas em seu notebook rapidamente.
— Há outra coisa.
— Deus – Nove grunhiu. — Agora são as notícias boas, né?
— Receio que não. Tivemos outra tentativa de invasão on-
tem à noite.
Periodicamente, desde que a Academia abriu, a base de
dados deles têm sido alvo dos hackers. Até agora, ninguém conse-
guiu passar pelo sistema de segurança de Lexa. Entretanto, ela
não conseguiu localizar o local de onde os hackers estão traba-
lhando. Foi um impasse.
— Eles tentaram ganhar acesso ao banco de dados que
armamos – Lexa continuou.
Os olhos de Nove se arregalaram. — Merda.
Malcolm suspirou, desapontado. — Então nossas suspeitas
estavam corretas.
Duas semanas antes, em uma reunião exatamente igual à
que eles tiveram hoje, Lexa mencionou que ela estaria transferin-
do os dados da Academia para um novo servidor. O anúncio foi
inofensivo e passou despercebido.
Também foi uma mentira.
Lexa criou uma conta falsa no novo servidor que ela menci-
onou, mas na verdade nunca transferiu os dados. Ninguém, com
exceção dos que estavam na reunião, sabia sobre a mudança de
servidor. Essa era a armadilha.
— Temos um espião – Nove declarou. — Que merda. Apos-
to que é o Archibald.
— Trabalhando para quem? – Malcolm perguntou. — E
para qual propósito?
Nove encostou-se na janela, olhando para o exterior. Ainda
havia batalhas para serem lutadas. Inimigos espreitando pelas
sombras, que não iriam revelar facilmente suas identidades para
que ele pudesse arrancar as cabeças deles.
— Não sei – Nove disse, rangendo os dentes. — Mas com
certeza vamos descobrir.
1
Companheiro, em japonês.
2
Grande maçã – apelido de Nova Iorque.
3
Romancista inglês da era vitoriana.
4
Sinônimo de testículos.
5
Legado de cura.
6
Apelido dado aos Gardes “atrasados” no desenvolvimento de Legados.
7
Referência ao lutador Jean-Claude Van-Damme.
8
Banda de rock britânica.
9
Seriado norte americano.
10
Representação de algum objeto ou imagem.
11
Máquina de guerra utilizada na Antiguidade e Idade Média para abrir bre-
chas em muralhas e portões de castelos.
12
Philosophiæ Doctor ou Doutor da Filosofia, o último e mais alto título aca-
dêmico recebido por um indivíduo.