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Resumo
No orfanato, todos diziam que Liane era uma garota de sorte por ter
um rico protetor que queria levá-la para sua casa na Sardenha. Mas ela
estava amedrontada: quem seria esse sr. Malaspina de quem nunca tinha
ouvido falar? O que esperava em troca da vida de luxo que lhe oferecia?
Viajou com o coração pesado de desconfiança, sabendo que ia se sentir
um patinho feio naquele ambiente de milionários. A realidade, porém, era
ainda mais cruel do que imaginava. O rico italiano tinha mesmo um
motivo secreto para mandar buscá-la. E seu filho Marcello humilhou Liane
desde o primeiro dia. Para ele, ela não passava de uma aproveitadora, e o
lindo tom dourado de seus olhos era o brilho da cobiça!
CAPÍTUL
OI
Liane não estava ansiosa para sair do Orfanato St, Morrow. Sabia
muito bem o que significava aquele chamado à sala da sra. Morton: o
aviso de que o orfanato, sua casa durante tantos anos, ia se
transformar numa recordação.
Hesitante, bateu à sólida porta de carvalho, depois abriu-a e entrou.
Liane era uma garota magra, de expressão amedrontada, grandes
olhos de um castanho-dourado, cabelos levemente ondulados.
Parou diante da enorme mesa e cruzou as mãos, nervosa.
— Não fique com tanto medo — Lucy Morton disse suavemente.
— Tenho boas notícias para você.
— Encontrou algum lugar para onde eu possa ir? A mulher sorriu e
pegou uma carta.
— Você é uma jovem de muita sorte. Não é sempre que alguém aqui
consegue essa chance. Na verdade, durante os trinta anos que passei
dirigindo este lugar, acho que nunca vi nada parecido.
Liane gostaria que a sra. Morton fosse diretamente ao assunto. Não
conseguia imaginar por que estava tão animada.
— Sente-se. Acho que vai levar um susto.
— O que é, afinal, tia Lucy?
— Você vai para a Sardenha!
— Sardenha! — Liane repetiu, depois de um longo silêncio.
— Mas. . . por quê. . . ? Quem. . . ? — Não estava entendendo. Não
gostaria de ir para o exterior. Não queria sair do orfanato e, muito
menos, ir embora da Inglaterra. Era um pensamento que a amedron-
tava. Arregalou os olhos, sem acreditar no que tinha ouvido. — Do
que está falando?
— Disto. — A diretora sorriu. — Chegou uma carta do sr. Malaspi-
na. Ele convida você para se hospedar em sua casa pelo tempo que
quiser. É uma ótima chance, Liane, e estou muito satisfeita. A garota
empalideceu.
— Sr. Malaspina? Quem é e!e? Por que me escolheu?
— É o seu benfeitor, garota. É quem manda aqueles
lindos presentes.
Durante toda a vida, no dia do aniversário e no Natal, sempre recebia
presentes caros e misteriosos. Isso acabara causando inveja às
outras crianças e uma situação delicada para Liane, que fora se
tornando cada vez mais tímida.
— Foi uma surpresa também para mim, mas tinha algumas espe-
ranças. Investiguei um pouco a vida do sr. Malaspina. Ele é um
homem muito rico, Liane, com negócios no mundo inteiro. Tem muita
sorte que ele a aceite em casa. Nenhuma das outras crianças teve
essa oportunidade.
— Mas se ele me conhecia, por que esperou até agora para me
convidar?
A sra. Morton deu de ombros.
— Não sei. Não está contente? Percebe que é a grande chance de
sua vida?
— Sim. tia Lucy — Liane respondeu, um pouco em dúvida, tentando
sorrir. Sentia-se aterrorizada, mas era do tipo que se controla em
situações difíceis. Além do mais, não podia dizer à sra. Morton que
não queria aceitar o convite.
A próxima visita que Liane fez ao escritório da sra. Morton foi no dia
em que saiu do orfanato. Na véspera, Lucy Morton havia avisado que
o sr. Malaspina estava chegando para buscá-la, e desde aquele
momento Liane mal conseguira dormir.
Antes de entrar na sala da diretora, ouviu a voz do sr. Malaspina,
alta, profunda. E a intimidava! Não era o tipo benevolente de velho
que ela havia imaginado.
Quase virou-se e saiu correndo, mas a porta da sala da sra. Morton
se abriu e a diretora a chamou.
— Entre, Liane. Parece que o sr. Malaspina não estava passando
bem e mandou o filho buscar você.
Olhando para aqueles olhos frios, Liane sentiu uma vontade ainda
maior de fugir. O homem a olhava como se não gostasse dela.
Parecia profundamente aborrecido com sua missão.
Parou humildemente diante dele e baixou os olhos, sentindo que ele a
analisava.
— Está pronta? — a sra. Morton perguntou. — O sr. Malaspina não
pode perder tempo. — Estendeu a mão para a garota. — Vou sentir
sua falta. Escreva de vez em quando, contando como está passando.
— Virou-se para o homem. — Até logo, sr. Malaspina. Por favor,
mande minhas recomendações a seu pai. Espero que ele melhore
logo.
Um carro enorme, com chofer, esperava lá fora. Liane entrou
ansiosa, sabendo que estava sendo observada e se sentindo pouco à
vontade com aquele homem a seu lado.
Ele não parecia italiano. Os cabelos eram castanhos, alourados, e
tinha a pele bronzeada. Era alto, forte, e os olhos revelavam uma
determinação que a perturbava.
Liane tinha sido feliz no orfanato. Não havia pensado muito no dia em
que teria que sair de lá. Detestava conhecer novas pessoas,
principalmente quando pareciam não gostar dela.. . como aquele
homem a seu lado.
Ele estava sentado rigidamente e não a olhava; parecia não se
importar nem um pouco com ela. O carro vencia a distância, e Liane
ficava menos à vontade a cada minuto.
Quando não conseguiu aguentar mais o silêncio, disse:
— Desculpe, mas acho que não está gostando da idéia de eu ir
morar com vocês. Sinto muito. Queria que soubesse que não fui
consultada sobre esse assunto.
— Então, somos dois — ele disse, friamente. — Quando meu pai tem
uma idéia, ninguém consegue mudá-la.
Ele não tinha nenhum sotaque. Se não fosse aquele nome estranho,
ela acharia que era inglês. Imaginou se o pai não seria inglês. Talvez
a mãe fosse italiana. Ninguém falara na sra. Malaspina. Talvez o sr.
Malaspina fosse viúvo e por causa disso tivesse adiado o convite para
ela ir morar em sua casa. Nenhum homem quer viver com uma
garotinha.
— Como seu pai soube da minha existência? Sempre fiquei imagi-
nando de onde vinham os presentes...
— Ele lhe dirá pessoalmente. Não tenho nada a ver com isso.
— Lamento ter perguntado. — Mergulhou no silêncio mais uma vez.
Nunca o tempo tinha passado tão devagar. Parecia que jamais
chegariam ao aeroporto.
Quando a sra. Morton lhe dissera que ia andar de avião, Liane se
sentira nervosa. Mas agora estava mais animada. Tentou esquecer a
presença daquele homem frio e distante e pensar apenas na viagem
que ia fazer.
Sua imaginação cresceu, vendo um avião nos céus voando como um
enorme pássaro. Devia ser uma delícia estar lá dentro. E ver Londres,
lá embaixo, desaparecendo, os edifícios cada vez menores...
Talvez voassem acima das nuvens, onde o mundo devia ser diferente,
com nuvens cor de pérola, um sol dourado, a sensação do infinito.
De repente, voltou à realidade, quando o sr. Malaspina lhe tocou o
braço. Tinham chegado ao aeroporto de Heathrow.
O silencioso chofer abriu a porta e ela desceu depressa. Seu com-
panheiro estalou os dedos e um carregador apareceu, pegando as
malas dela.
— Isso é tudo que você tem? — o homem perguntou, ríspido. Liane
fez que sim, com um ar de quem pede desculpas.
Ele ficou sério e dispensou o carregador.
— Eu mesmo levo. — Liane viu que na outra mão ele carregava uma
maleta muito elegante, com as iniciais M. M. em dourado.
Depois de despachar as malas, ele perguntou:
— Quer um café, srta. Chandler? Temos que esperar meia hora.
Liane ainda estava tentando adivinhar o nome dele. Já tinha
pensado numa lista enorme de nomes ingleses, como Martin e Mark.
Mas depois achou que devia ser um nome italiano. Olhou bem: tinha
jeito de Mário.
Demorou algum tempo para perceber que ele havia feito uma
pergunta. Ninguém a chamava de srta. Chandler; fazia com que
parecesse mais velha. Aos dezoito anos, tinha convivido apenas
com
meninos e meninas bem mais jovens, e só naquele momento
percebeu que não era mais uma criança.
— Costuma sonhar acordada, srta. Chandler?
Ele parecia aborrecido e Liane sentiu vontade de se esconder.
— Desculpe — murmurou, com os olhos tão grandes e tristes que
pareciam ocupar todo o rosto.
— Em que está pensando?
— Em nada. Nada de importante. Ele ficou ainda mais zangado.
— Vamos tomar uma xícara de café.
Que homem esquisito! Não gostara dele desde o começo, mas,
quanto mais tempo passava em sua companhia, menos o apreciava.
Será que o pai era igual? Esperava que não. Não aguentaria conviver
com dois homens tão detestáveis.
Enquanto esperava o café, sentada ao lado dele na mesa, ela o olhou
discretamente. Tinha uma expressão autoritária e um queixo bem
definido. O paletó de camurça modelava os ombros largos. Parecia
um homem importante, cheio de dinheiro e que sabia como aprovei-
tá-lo. Não havia nele nenhum calor, nem a sugestão de que poderia
ser um bom amigo. Era duro e amargo, a julgar pela seriedade do
rosto. Liane estremeceu de repente e desviou os olhos, observando
os outros passageiros que também esperavam o café.
O contraste era marcante. Por toda parte havia risos, espontaneidade
e conversas. O homem da mesa ao lado, que devia ter mais ou
menos a idade do sr. Malaspina, conversava com uma garota de uns
dezoito anos, sorrindo muito e explicando que era uma bobagem o
medo que ela sentia de aviões.
Por que não tinha a sorte de viajar com alguém parecido? .
Seu acompanhante colocou a xícara sobre o pires.
— Você não parece muito feliz por ir viver com meu pai na Sardenha.
Devia estar agradecida por esta chance que ele está lhe oferecendo.
Ela o olhou rapidamente, sabendo que não poderia afastar do olhar o
ressentimento que sentia.
— Não pedi para ir para lá, sr. Malaspina. — Havia um certo
desafio em sua voz, o que não era um comportamento comum.
Porém, aquela não era uma situação comum.
— Mesmo assim, acho que devia se mostrar um pouco mais entu-
siasmada. Meu pai está doente, e não quero que ele se arrependa da
decisão que tomou.
De repente, Liane lamentou seu desabafo. Devia mesmo se sentir
agradecida. Cruzou as mãos por baixo da mesa, num gesto infantil.
Oh, Deus, por favor, faça com que o pai dele seja diferente! Depois,
disse:
— Tudo é muito estranho e novo para mim. Nunca viajei de avião;
portanto, é natural que me sinta nervosa.
Ele pareceu satisfeito com a resposta e voltou a atenção para a xícara
de café. Será que estaria com vergonha de ser visto junto com ela?
Sabia que, ao lado das roupas caras dele, seu vestido feito em casa
devia estar parecendo pouco elegante.
Como o vestido, a maior parte das roupas que levava na mala tinha
sido feita no orfanato. Liane gostava de costurar. Era um passatempo
que a acalmava, Gostava também de ler e de escrever poesias. O que
o sr. Malaspina diria, se visse suas poesias?
— Alguma coisa me diz que você é uma idealista — o homem a seu
lado falou de repente — e que, se não gosta das situações que está
vivendo, se isola num mundo à parte, um mundo que você mesma
cria.
Os olhos dela brilharam.
— Verdade. Como adivinhou? Sempre passei muito tempo sozinha e
acho que era o único jeito de me divertir.
— Não tinha companhia? Pelo que sei, o orfanato está cheio de
meninos e meninas.
— Eles não gostavam muito de mim. De certa forma, a culpa não era
deles, mas de seu pai.
Ele ficou ainda mais sério. Suas sobrancelhas escuras se juntaram.
— Por quê?
— Por causa dos presentes. As crianças não entendiam por que eu
recebia presentes caros, quando elas não tinham nada. Costumavam
tomá-los de mim. No fim, acabei não mostrando mais nada. Na ver-
dade, gostaria que nunca tivessem me mandado nada.
Ele sorriu cinicamente.
— Vou dizer isso a meu pai. Ele vai custar a acreditar que seus
presentes não foram apreciados.
— Prefiro que não conte nada. Não quero que ele pense que sou
uma ingrata.
Ele ficou quieto e ela achou melhor mergulhar no silêncio novamente.
Minutos depois, uma voz anunciava pelo microfone que os
passageiros do vôo para a Sardenha deviam se apresentar no portão
12. Eles se levantaram em direção ao avião, que esperava na pista.
Liane estava animada demais para pensar no homem difícil que a
acompanhava. Olhou pela janelinha do avião e sentiu-se ansiosa para
partir.
Era tudo como havia imaginado. O avião subiu como um pássaro
gigante e em poucos segundos, estavam acima das nuvens.
Ela se virou para o companheiro, com uma expressão de contenta-
mento, e esqueceu por um momento que ele devia ser um viajante
experiente.
— Não é maravilhoso?
Seu entusiasmo pareceu diverti-lo.
— Como você é infantil!
O encanto sumiu. Abaixou a cabeça, ressentida com a crítica que
percebeu no olhar dele. Eram olhos de leão, um leão que sente um
prazer intenso em destruir a presa.
Virou-se para a janela, procurando controlar as lágrimas. Não impor-
tava o que acontecesse, não ia deixar que o sr. Malaspina a visse
chorando. Isso só confirmaria sua opinião de que ela não passava de
uma criança.
Durante um período que pareceu uma eternidade, ficou observando o
céu, e só voltou sua atenção para dentro do avião quando lhe
trouxeram uma refeição.
Comeu automaticamente, mal sentindo o sabor da comida. Aquele
homem horrível estava estragando todo o seu divertimento. Voar
teria sido uma experiência fascinante, se ele não estivesse ali. Sua
presença tinha transformado a viagem em pesadelo.
Depois da refeição, ele fechou os olhos e não os abriu até que o
comandante anunciou que se aproximavam de Roma.
Como Liane gostaria de conhecer Roma! Tinha lido muito sobre as
obras de Michelangelo, na Capela Sistina, sobre a praça São Pedro,
no Vaticano. Era um mundo que a fascinava. E agora que parecia
estar tão próxima de tudo, estava, na verdade, completamente
distante. Só tinham uma hora de espera, antes de seguirem viagem.
— Quer tomar alguma coisa? — ele perguntou. Era a primeira vez
que falava nas últimas duas horas.
— Aceito uma limonada.
Novamente, ele deu aquela risadinha irritante.
— Não, acho que vou tomar um café — ela corrigiu depressa. Ele não
disse nada, mas Liane percebeu o que pensava. Ficou com
raiva outra vez, Não precisava ficar com aquele ar condescendente!
Foi com alívio que ouviu a chamada para o próximo vôo. Aos poucos,
o céu escurecia. Não dava para ver nada pelas janelas. Teve que
voltar sua atenção para o interior do avião.
0 sr. Malaspina lia uma revista, mas colocou-a de lado quando
percebeu que ela havia parado de olhar pela janela.
— Por que não tenta dormir? Ainda temos uma hora antes de
chegarmos a Alghero.
— Não estou com sono. — Mas parece cansada.
Obrigada pela cortesia, ela pensou, seu queixo se erguendo num ar
de desafio. Mas não disse o que pensava, comentando apenas:
— Não tenho dormido bem, ultimamente. Só isso. Mas não estou
cansada.
— Vai estar, antes de chegarmos. Teremos ainda que viajar mais
dois quilómetros de carro, cruzando a ilha, antes de chegar a Porto
Cervo.
Isso significava que não chegariam à casa do sr. Malaspina antes da
madrugada. Não tinha imaginado que a viagem fosse demorar tanto.
Sentiu-se desanimada.
— Você mora em Porto Cervo? A sra. Morton não me disse nada.
Como é a cidade? Fica à beira-mar?
— É na extremidade nordeste da ilha. Fica na chamada Costa
Esmeralda. Era quase despovoada, há bem pouco tempo, mas agora
se transformou no parque de diversões da alta sociedade. A região foi
desenvolvida por Aga Khan nos anos 60, e agora é ocupada por
tropas do Exército para evitar sequestros. Você vai ver todo tipo de
pessoas: nobres, estrelas de cinema, milionários e até reis.
Agora ela sabia por que ele a havia olhado com ar de pouco caso.
Para que tipo de mundo estava sendo levada? Será que ia se
adaptar?
— Acho que ficou espantada, mas devia ser avisada.
— Estou contente que tenha me avisado. — Pelo menos, era melhor
do que ser atirada de cabeça no desconhecido. Talvez devesse ter
adivinhado que não ia viver numa casa comum. Os presentes caros já
tinham sido um indício de que a família Malaspina era rica, e aquele
homem tinha um ar tão importante quanto o dos artistas de cinema.
Liane já imaginara muitas vezes como seria viver num mundo em
que o dinheiro não era problema, onde era natural ter um armário
cheio de vestidos novos, uma casa linda com jardins e piscina.
Mas isso tinha sido apenas sonho. Nem mesmo em seus momentos
mais loucos de fantasia, pensara que acabaria morando num lugar
assim. Coisas desse tipo não aconteciam com órfãs.
— Acha que não vai se acostumar?
— Não sei.
— Claro que vai ser uma vida completamente diferente da que
teve até agora.
— Já percebi isso.
— Pode ter dificuldades em se adaptar.
— Acho que sim. — Suspirou, entendendo o que ele estava tentando
lhe dizer. Já tinha deixado bem claro que ela ia para a Sardenha
contra sua vontade. Bem, não era novidade.
— Apesar de tudo, acho que meu pai vai ficar encantado. Você tem o
ar de garota desprotegida de que ele tanto gosta. Parece mesmo a
orfãzinha desamparada que é.
Realmente, ele não fazia nenhum esforço para ser gentil.
— Desculpe se não sou o que você esperava.
— Oh, está enganada. É exatamente o que eu esperava.
O vôo parecia não ter mais fim. Ela procurou se entreter, olhando os
outros passageiros e imaginando o que iriam fazer na Sardenha.
Passar férias, talvez? O homem de terno do lado esquerdo carregava
uma maleta; certamente, estava viajando a negócios. De qualquer
maneira, todos pareciam ansiosos para chegar. Provavelmente, se
sentiam mais felizes do que ela.
Seu acompanhante começou a ler uma revista. Liane olhou-o de lado
e notou que tinha mãos bonitas e unhas bem cuidadas. O punho
branco da camisa estava preso por uma abotoadura de ouro. Tudo
nele era muito elegante. Sentiu o perfume suave da loção de barba e
associou-o ao perfume de um homem. A masculinidade dele a
envolveu docemente. Percebeu, de repente, que era um homem
muito atraente. E isso foi uma descoberta, o contato com alguma
coisa muito nova
em sua vida.
Não que o fato dele ser atraente fizesse alguma diferença. Conti-
nuava a ser detestável e não demonstrava o menor interesse por ela.
Mas por algum motivo inexplicável, tornou-se muito consciente da
presença dele, sentindo um certo calor e uma vibração estranhos
quando seu ombro tocava o dela. Percebeu que a observava.
— E qual é sua opinião? — perguntou, divertido e com um brilho
intenso no olhar.
— Não sei o que quer dizer.
— Você me observou atentamente, nos últimos minutos. Não chegou
a nenhuma conclusão?
Liane sentiu-se embaraçada. Ele era esperto.
— Nem percebi que estava olhando para você.
— Não?
— Bem... é que não havia mais nada para fazer. Oh, desculpe!
Não quis ser indelicada.
— Não me importo. Só queria saber que pensamentos passaram
pela sua cabeça.
— Eu estava admirando suas roupas. Ele a olhou, arrogante.
— Comparando-as com as suas, sem dúvida?
— Minhas roupas foram perfeitamente adequadas até agora, sr.
Malaspina.
— Ainda bem que reconhece o "até agora". Isso mostra que percebe
uma coisa: elas não são adequadas para conviver com as pessoas
que conhecerá daqui para a frente.
— Pior para elas. — Aquele homem não tinha nenhum direito de
tratá-la como uma pessoa inferior. Só porque havia nascido numa
família rica, não era melhor do que ela.
— Não gosto de sua atitude, srta. Chandler. Devia ser mais agrade-
cida.
— Também não posso dizer que gosto de suas atitudes — respondeu,
com os olhos castanho-dourados lançando chispas de fúria. — E, na
verdade, não sei por que deveria ser agradecida. Parece que
vou ser tudo, menos feliz.
Ele ficou tenso e seus olhos cor de âmbar escureceram,
— Ah, essas desamparadas mal-agradecidas...
Liane respirou fundo. Nunca, em toda sua vida, alguém tinha lhe
falado assim.
— Como se atreve? — gritou, sem perceber que havia levantado a
voz. Depois viu que os outros passageiros olhavam os dois e se calou.
— Tenho todo o direito — ele disse, calmamente. — E por favor, olhe
para mim quando eu falar com você.
O olhar dela estava cheio de ressentimento.
— Desculpe, sr. Malaspina. Sei que não devia ter respondido,
— A ironia não combina com você, menina.
Devia contar que nunca tinha falado com alguém como falara com
ele? Lucy Morton ficaria chocada, se a ouvisse. Sempre achara Liane
uma das garotas mais comportadas do orfanato.
— Acho que agora você vai emburrar e ficar em silêncio.
Os olhos dele estavam fixos nela. Eram bonitos, apesar de frios.
— Nunca fico emburrada.
— Ótimo. Não aguento gente que não pode ouvir certas verdades.
Liane respirou fundo e contou até dez. Verdades eram uma coisa;
insultos, outra.
— Nós teremos que conviver, depois que chegarmos em casa?
— Posso perguntar por que está fazendo essa pergunta?
— E claro que não combinamos, sr. Malaspina, Pelo que vi, acho
melhor ficarmos longe um do outro.
— Concordo plenamente. Mas vai ser difícil; estou sempre em casa.
— Não trabalha?
— Vamos dizer que trabalho em casa. Temos um computador insta-
lado lá e posso entrar em contato com nossas empresas sem sair de
minha cadeira.
Liane tinha visto documentários na televisão mostrando essas coisas.
Mas imaginara que eram máquinas do futuro.
— Vejo que não está acreditando. Mas garanto que é verdade. Meu
pai vai lhe mostrar tudo. Ele gosta disso,
O que mais estaria reservado para ela? Tinha tido uma surpresa por
minuto até então. O que a perturbava era perceber que não escaparia
daquele homem. A vida ia ser difícil, um contraste completo
com a que conhecia.
A variedade é o tempero da vida, disse a si mesma. Sabia que teria
que enfrentar grandes mudanças, que ia ver muitas coisas novas. Só
não sabia se seriam mudanças para melhor.
Logo em seguida, aterrissaram no aeroporto de Fertilia, e um carro
esperava por eles.
Liane estava curiosa a respeito daquele estranho país, mas só
conseguia ver os nomes das cidades passando nas placas da estrada.
Primeiro passaram por Alghero, cujas luzes brilharam entre
palmeiras. Depois o caminho começou a subir, e seu acompanhante
explicou que estavam indo para o interior, a região dos vales.
Logo passavam por Sassari, a segunda cidade da ilha em impor-
tância: um lugar digno de ser visitado.
Agora o sr. Malaspina parecia mais afável. Liane imaginou se ele se
sentiria assim por estar chegando o momento de entregá-la ao pai.
A próxima cidade foi Tempio; depois, Olbia. Em seguida, passaram
por uma rocha onde estava escrito "Costa Esmeralda". Estavam
quase
em casa.
Momentos depois, chegavam a Porto Cervo. O carro parou Liane,
que havia cochilado, abriu os olhos e descobriu, horrorizada, que
tinha encostado a cabeça no ombro do sr. Malaspina.
— Uma criança cansada — ele disse, irônico.
Ela não respondeu. Desceu do carro e olhou ao redor com interesse.
As luzes lá fora iluminavam um pátio. Das sombras surgia uma casa
que parecia afundada na rocha. Não conseguiu distinguir comple-
tamente os contornos.
O sr. Malaspina caminhou a seu lado e o motorista os seguiu com
as malas. Liane notou que agora sua mala parecia ainda mais velha e
que suas roupas não combinavam com coisa alguma, ali. Sentiu-se
desajeitada e insegura.
Desejou não ter vindo. Tinha sido tudo um erro. Devia ter dito à sra.
Morton que não queria sair da Inglaterra. Mesmo que tivesse que
morar numa das pensões que detestava tanto, seria melhor do que
aquilo.
E então, de dentro da casa, surgiu um velho. Parecia doente e usava
um roupão sobre o pijama. Sorriu, lhe dando as boas-vindas, e seu
sorriso a compensou de todo o sofrimento que tinha enfrentado.
— Liane! — Ele estendeu os braços. — Até que enfim! — Abraçou-a
com força e ela se permitiu relaxar de encontro a ele, sentindo que
sua alegria era sincera.
Quando a afastou gentilmente, Liane viu que havia lágrimas em
seus olhos.
— Você é linda como uma pintura. Exatamente como sua mãe.
Ela arregalou os olhos.
— Conheceu meus pais? — Aquilo a surpreendeu. Nunca tinha
pensado nisso. Mas, é claro, ele devia conhecer seus pais; senão,
como saberia de sua existência?
— Conheço você mais do que imagina. Mas acho que está cansada,
depois dessa longa viagem. E deve estar com fome também. Vamos
conversar mais tarde, depois que tiver descansado. Marcello, leve
Liane para o quarto dela. O jantar está servido na sala. Encontro
vocês dois lá.
Marcello! Então era esse o nome dele. Parecia muito italiano.
Mas, olhando-o, ela podia jurar que era inglês.
Ele se parecia com o pai. Ambos tinham o mesmo tipo de corpo, o
maxilar firme e o nariz reto. Só os cabelos eram diferentes. Os do pai
eram pretos, e a pele, mais escura.
Fácil ver de quem Marcello tinha puxado os traços marcantes. O
velho tinha a aparência de um homem duro, e o filho parecia
respeitá-lo.
Esta observação surpreendeu Liane. Ele dava a impressão de ser o
tipo de pessoa que não respeita ninguém. De certa forma, sentiu-se
satisfeita. Seria agradável ouvir alguém falar com ele no mesmo tom
que usara para conversar com ela.
Estava ocupada demais, comparando os dois homens, e nem perce-
beu que tinham parado diante de uma porta. Marcello abriu-a.
As paredes de tijolos estavam nuas; a cama, baixa e simples, tinha
apenas uma colcha, e a penteadeira e o guarda-roupa eram de
mogno
encerado. Apesar da simplicidade, era um quarto gostoso. Havia uma
janela enorme em uma das paredes e alguns quadros enfeitavam as
outras.
— Há um banheiro ali — ele disse, indicando uma porta. — Eu a
encontro na sala, lá embaixo, dentro de alguns minutos.
Antes que Liane respondesse, ele já tinha saído. Ela fechou a porta,
sentindo-se muito cansada.
Talvez um banho a fizesse relaxar, antes do jantar com sr. Malas-
pina. No banheiro, ficou chocada com a própria aparência. Parecia
mesmo a órfã desamparada a que Marcello havia se referido.
Seus olhos estavam enormes e com olheiras; os cabelos, oleosos e
despenteados. Tinha um ar patético e se sentia assim- Lágrimas
começaram a descer pelo rosto.
Em vez de tomar um banho, simplesmente lavou o rosto; depois,
despiu-se e vestiu uma camisola. Em seguida, entrou na cama. Não
ia conseguir enfrentá-los novamente, naquela noite. Não podia. Em
alguns minutos, tinha adormecido.
Quando acordou, estava claro. O sol se filtrava pela janela, chegando
até a cama. Ela deu um pulo e foi até a janela, olhando a paisagem lá
fora.
Estavam no alto de uma montanha que dava para uma floresta. Lá
embaixo, o porto cheio de iates. E um mar incrivelmente azul, pon-
tilhado de ilhotas. Era lindo demais, diferente de tudo o que tinha
visto antes.
Tomou um banho, vestiu-se, escovou os cabelos e viu que seus olhos
brilhavam. A escada levava ao hall, todo enfeitado com plantas e com
uma mobília simples. Desceu uma escadinha e chegou à saleta onde
estava servido o café da manhã.
O dono da casa já estava lá. Olhou-a carinhosamente quando entrou.
— Buon giorno. Liane, perdoe-me se não me levanto. Espero que
tenha dormido bem. Estava muito cansada, ontem.
—Desculpe não ter descido para o jantar.
— Eu entendo. — Mas ela achou que ele não compreendia. Não tinha
sido apenas o cansaço. Era também medo do futuro, medo da
grandiosidade daquele lugar, medo de não combinar com tudo aquilo.
— Venha, sente-se. Tenho certeza de que deve estar com fome.
Temos pãezinhos e frutas. Ou será que prefere o café da manhã à
inglesa?
— Pãozinho está ótimo. O senhor tem uma linda casa. Nunca
imaginei que fosse assim.
— É um pouco diferente dos ambientes a que estava acostumada,
mas espero que seja feliz aqui. Marcello me disse que você ficou um
pouco apreensiva, durante a viagem.
Imaginou o que exatamente o filho teria contado. Havia uma certa
meiguice no velho; parecia realmente contente em vê-la e não se
importava que não vestisse roupas bonitas.
— Foi estranho, porque eu nunca tinha viajado de avião. Achei muito
gostoso.
— Também acho. E como se deu com meu filho?
Liane desviou os olhos, observando as árvores pela janela, o sol
brilhando nos ramos verdes e fazendo sombras no chão da sala.
— Parece que não quer me contar — ele insistiu.
Ela suspirou. Seria rude dizer que não tinha gostado do filho dele,
mas devia mentir?
— Acho que ele não gostou da idéia de me ver morando aqui.
— Bobagem. Marcello gosta de garotas. Não há motivo para não
gostar de que você more aqui.
Liane achou que seria mais prudente mudar de assunto.
— Vai me dizer como conheceu meus pais? Eu nunca soube disso.
Por que não entrou em contato comigo antes?
— Eu amei sua mãe e sempre pensei que você poderia ter sido
minha filha. Talvez, um dia, você consiga se imaginar nessa posição.
— Se a amava, por que não casou com ela? Ele sorriu tristemente.
— Porque ela preferiu seu pai. Ela veio passar as férias aqui... Foi
assim que nos conhecemos. Para mim, foi um romance de férias que
significou muito, mas ela voltou para a Inglaterra e me esqueceu.
Quando não respondeu mais às minhas cartas, fui para a Inglaterra e
descobri que tinha ficado noiva de seu pai. Ela o conheceu no avião,
na viagem de volta. Apesar disso, continuamos amigos. Casei com
uma inglesa como ela, uma loura de temperamento ardente que me
abandonou depois de dois anos e fugiu com um americano. Os dois
morreram num acidente de iate.
— Que história triste!
— Tudo aconteceu há já muito tempo. A única lembrança que tenho
dela é Marcello. Ele se parece muito com a mãe, algumas vezes.
— E meus pais, como eram? Só me lembro de que mamãe era uma
pessoa feliz, que estava sempre rindo. Mas não me lembro de meu
pai.
— Tenho uma fotografia; mais tarde, mostro a você. — Parecia
cansado, e Liane imaginou de que doença estaria sofrendo. — Deve
estar curiosa de saber por que a deixei passar toda a vida no
orfanato, por que não mandei buscá-la antes, não é?
— Estou.
— Vou lhe dizer. Eu a queria. Queria muito. Mas havia algo que eu
queria muito mais.
— O que era?
— Casar meu filho!
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
CAPITULO VI
A volta para casa foi cheia de tensão. Ele manobrou o iate e tomou o
rumo de Porto Cero, enquanto Liane tentava se recompor, perturbada
com tudo o que tinha acontecido. Não acreditava ser capaz de sentir
emoções tão primitivas. Ela havia desejado Marcello com uma
necessidade tão grande que estava assustada agora. Tremia e tinha
medo de olhar para ele.
Mas o que magoava mais era saber que não significava nada. Tinha
sido apenas uma experiência agradável. Achou incrível que ele pu-
desse fazer amor com uma mulher pela qual não sentia nada.
Como os homens eram horríveis! Mas será que ela era melhor?
Também o tinha desejado, não conseguira lutar contra a sensação
que a dominava.
Será que aquele iate era usado apenas para encontros de amor?
Será que ele tinha saído com Luísa, na véspera, com o mesmo pro-
pósito? Olhou-o de lado e viu que o rosto dele estava tenso.
Apesar de odiá-lo, ela não pudera controlar o desejo que ele lhe
despertava. Marcello tinha um enorme magnetismo, capaz de destruir
o controle de qualquer mulher.
E, ao contrário de Luísa, que sabia exatamente como lidar com ele,
Liane não soubera dominar a situação. Tinha declarado abertamente
os seus sentimentos e passara, por isso, por uma grande humilhação.
Procurou concentrar sua atenção nas ondas que batiam no barco,
incapaz de olhar para mais longe e de conter seu próprio desejo. No
minuto seguinte, ele eslava a seu lado, tenso, alto, poderoso.
— Fique longe de mim! — ela gritou. — Não quero que me
loque novamente. — Por que mentia outra vez, quando só sentia
vontade de se atirar nos braços dele?
— Liane, não fique assim.
— Como espera que eu fique? Fui uma idiota, ao pensar que você
estava começando a gostar de mim... Caso contrário, nunca deixaria
que... — Ela engasgou, sem condição de continuar. Na verdade,
sentia que ia tornando as coisas piores, falando assim.
— E é assim tão importante que eu goste de você?
— Acho errado um homem e uma mulher. .. fazerem o que está-
vamos fazendo. . . sem sentirem nada um pelo outro.
— Uma porção de gente tem casos sem estar apaixonada. Mas se
pensa assim, por que me pediu que não parasse? Será que você está
se apaixonando por mim?
— Esse é o problema. Eu não gosto nada de você. Então, por que me
comportei assim?
Marcello tentou disfarçar um sorriso e ela desejou que o chão se
abrisse e a engolisse. Por que tinha dito aquilo? Ele ia pensar que ela
era uma ingênua idiota.
— Não se preocupe, menininha. Os seus sentimentos são comple-
lamente naturais; qualquer mulher teria se comportado do mesmo
jeito, naquelas circunstâncias.
Liane se sentia pior a cada segundo. Ele parecia vê-la como uma
colegial tendo seu primeiro caso. O que aliás, era a pura verdade. Só
que ele não precisava deixar as coisas assim ião claras.
De repente, a raiva ferveu dentro dela.
— E por acaso você é um entendido nesse assunto? — A emoção já
tinha passado; agora ela o via friamente e sem paixão. Seus oihos
brilharam e ela levantou o queixo com ar de desafio.
— Acho que eu posso me classificar assim — ele disse
suavemente.
— Bem, eu acho você desprezível. E qualquer garota que se envolver
com você deve estar maluca. Fique sabendo que não vai me colocar
naquela situação comprometedora novamente!
— Sabe, eu não aceito com tranquilidade declarações desse tipo.
— E eu não aceito com tranquilidade ameaças à minha virgindade!
Fique longe de mim.. .
De repente, no ar pairou uma estranha excitação, quando os olhos
deles se encontraram. Então, ele colocou as mãos no pescoço dela.
forçando-a sobre o parapeito do barco.
— Sabe o que estou pensando em fazer?
Liane engasgou e sacudiu a cabeça, pedindo que ele parasse.
— Em levar você lá embaixo, para a cabine, e lhe ensinar como é
este jogo. E não parar até você implorar que eu a possua.
Liane já não conseguia falar. Estava com os olhos arregalados, fixos
no rosto dele, imaginando que aquilo tudo era um terrível pesadelo
do qual logo ia acordar.
— Eu adoraria cada minuto de minha conquista. . . e você também.
Ele deixou que suas palavras ecoassem, imperturbável com a ex-
pressão de susto dela. Depois, soltou-a, e ela caiu no deck, humi-
lhada, lutando contra as lágrimas. Ela o odiava furiosamente.
Felizmente, não teve que falar com ele outra vez. Marcello ligou o
motor e saiu a toda velocidade com o barco, como se cada minuto
fosse muito importante.
A garganta de Liane doía e ela desejou que o deck se abrisse e a
engolisse.
Escondendo-se dele, ela desceu para a cabine, para lavar o rosto.
Ficou espantada, diante da tristeza que viu em seus próprios olhos.
Estava pálida e novamente parecia a menininha abandonada que
tinha saído da Inglaterra.
Quando saiu da cabine, evitou olhar para Marcello, sentindo-se grata
por não haver mais ninguém por perto para vê-la.
Mas a sorte não estava de seu lado. Quando chegaram em casa,
Roberto foi encontrá-los na porta.
Olhou profundamente o rosto dos dois. O de Marcello parecia urna
máscara de tensão e Liane estava pálida e preocupada. Percebendo o
olhar do pai, Marcello deu um sorriso forçado e, num olhar carinhoso,
abraçou Liane pelos ombros.
— Levei Liane para dar uma volta em meu iate. Acho que devíamos
ter deixado um bilhete.. . Desculpe, papai.
— É por isso que você está tão pálida, menina? Talvez o mar não lhe
tenha feito bem...
— Acho que sim — ela conseguiu dizer com voz trêmula. — im-
porta-se que eu vá direto para meu quarto? — Ela não aguentava
que Marcello a tocasse por mais um segundo.
— Faça como preferir — Roberto disse. — Deite-se durante uma
hora, e então se sentirá melhor.
Ela subiu as escadas, sentindo-se aliviada quando fechou a porta do
quarto e ficou sozinha. Viu que estava tremendo e que seu rosto
tinha a brancura da neve.
Afundou na cama, fechou os olhos e tentou controlar seus pensa-
mentos. Como Marcello podia ser tão odioso?
Aos poucos, o tremor passou e ela foi se acalmando. O único consolo
em tudo aquilo, era que não havia amor de nenhum dos lados,
Marcello também a odiava.
Não teve consciência de quanto tempo ficou deitada, de olhos fe-
chados. Sabia que devia tomar um banho e trocar de roupa, mas não
tinha energia suficiente para se colocar de pé.
Quando a porta se abriu, ela esperava que fosse Roberto. Ficou
furiosa ao ver Marcello entrando.
— Saia daqui! — ela berrou, antes que ele pudesse falar.
— Acho que você deve descer. Papai está preocupado. Eu lhe
disse que não há nada errado, mas, quando tem alguma dúvida, você
sabe como ele fica.
— Ele ainda acha que estou enjoada por causa do mar? Marcello fez
que sim.
— Não vi nenhuma razão para dizer a ele outra coisa.
— Se soubesse a verdade, ele não se orgulharia de você, não é?
— Meu pai sabe que não sou nenhum santo, mas com você as
coisas são diferentes. Ele não ficaria nada satisfeito com o
que aconteceu.
— E se eu contar a ele?
— Você não seria tão tola. Sabe o que isso causaria a ele.
— Espero que não esteja sugerindo que vai brincar comigo sempre
que quiser, acreditando que eu não contarei nada.. .
— Não. A não ser que você me provoque com esses seus olhos
grandes e inocentes. Eles são muito perigosos, sabia? São cheios de
pureza e de paixão escondida. Uma arma que pode tirar um homem
de seu bom senso.
— Se você sair daqui, eu descerei daqui a pouco. Mas ele
permaneceu no quarto, olhando-a.
— Eu disse saia! — ela gritou.
— Eu ainda a perturbo, não é? É melhor tomar cuidado, garotinha,
não é sempre que consigo dominar meus desejos. — A porta se
fechou suavemente e ela ouviu que ele ria enquanto descia para
a sala.
Vestiu uma de suas velhas roupas. Não era muito elegante e a fazia
parecer desajeitada e malcuidada. Talvez isso afastasse Marcello.
Olhos perigosos! O único perigo era o ódio que sentia por ele.
Roberto levantou os olhos, ansioso, quando ela entrou na saleta.
Parecia analisar todos os detalhes.
— Você está pálida, Liane. Talvez devesse ter ficado na cama. Ela
sorriu, confiante.
— Agora estou melhor, Roberto, Foi uma tolice passar mal da-
quele jeito.
— Nem todos nascem com o estômago apropriado para o mar.
Marcello devia tê-la trazido de volta ao primeiro sinal de que não
estava se divertindo.
Ela olhou para Marcello. Ele se divertia com as palavras do pai.
— Eu odeio causar problemas — ela disse, num tom firme e
educado.
— Esta agora é sua casa — Roberto respondeu. — Você deve dizer
exatamente o que pensa.
— Claro — Marcello confirmou, os olhos com uma expressão
cínica.
Durante o jantar, Marcello agiu como se nada tivesse acontecido. Era
cômico, Liane pensou. Ninguém podia imaginar que aquelas duas
pessoas tão distantes tinham trocado intimidades há poucas horas.
A atitude dele agora era a de um irmão mais velho, levemente
brincalhão e condescendente. Ela procurava reagir do mesmo jeito,
mas só sentia vontade de gritar com ele.
— E o que vocês dois pensam em fazer, esta noite? — Roberto
perguntou, enquanto tomavam café na varanda,
— Eu vou ficar em casa com você — Liane disse, apressada.
— E eu tenho um encontro com Luísa — Marcello falou. Em
seguida olhou para o relógio e levantou-se rápido. — Já devia ter
saído. Ela não gosta de esperar.
O pai franziu as sobrancelhas, mas não disse nada. Ficou apenas
observando, enquanto Marcello saía da sala. Então voltou-se para
Liane.
— Estou contente por ver que esteja se dando melhor com Marc.
Gostei de saber que saíram, esta tarde. Mas estavam tão tensos
quando voltaram! Você não sabe como fiquei aliviado ao saber que
era só um enjôo causado pelo mar.
— Eu gostaria que você não desse tanta importância ao fato de
sermos ou não amigos.
— É meu maior desejo. Não quero que sejam só amigos, mas
muito mais. Perdoe-me se estou sendo rude, Liane, mas esse ves-
tido. .. Você nunca vai atrair Marcello, vestida assim. . .
Liane sabia muito bem disso. O vestido era sua defesa, sua arma-
dura. Marc a tinha olhado de perto durante o jantar e sabia que ela
escolhera aquela roupa deliberadamente.
— Não posso jogar fora meus vestidos velhos. Não vou sair com
eles, se você insistir, mas são muito confortáveis para usar em casa.
Ele não ficou satisfeito, mas não insistiu. Silenciosamente, tomou o
café, observando um iate que navegava ao longe.
Liane desejou fervorosamente que ele não pretendesse casá-la com
Marcello. Mesmo porque não haveria jeito de conseguir aquilo. Mar-
cello não a amava. Nunca a amaria. Não ia casar com uma órfã sim-
ples e ingênua como ela. Olhava para mulheres de posições muito
mais altas.
Na verdade, Luísa era a mulher ideal para ele. Tinha o mesmo
passado, os mesmos gostos e. o mais importante, estava apaixonada
por ele. Os sentimentos de Marcello eram discutíveis. Ele tinha dito
que Luísa não significava nada, mas poderia ser apenas um disfarce,
porque ele a tratava como se fosse uma pessoa muito especial.
Quando Giorgio veio buscar as xícaras, os dois estavam conversando
calmamente, mas, durante o tempo todo, Liane sentia que Roberto
pensava em outra coisa. De repente, ele disse:
— Eu tomei uma decisão. Meu advogado veio esta manhã e eu
coloquei mais uma condição em meu testamento. Claro que, se eu
morrer, Marcello vai herdar todos os meus negócios.
— Por que está me dizendo isso, Roberto? Eu não sei o que isso tem
a ver comigo.
Os olhos dele estavam escuros e misteriosos.
— Mas, se ele não estiver casado aos trinta e cinco anos, não
herdará nada. Nada.
— E isso é justo? — ela perguntou, gentilmente. — Ele está com
trinta e quatro anos, agora. Você não está lhe dando muito tempo.
— Três meses. Se isso não for suficiente, então eu lavo minhas
mãos. Ele teve pelo menos dez anos para escolher uma boa esposa.
— E você já informou Marcello dessa nova cláusula?
— Não, caso contrário ele pode casar com a garota errada. Talvez
eu esteja sendo duro demais com ele, mas Marcello já brincou muito.
E hora de se acomodar. Eu já lhe disse isso, ele sabe exatamente o
que penso.
— Mas é tão importante que ele case antes do próximo aniversário?
Pense bem, Roberto. Não gostaria que todo o império que construiu
ficasse para um estranho, não é? Marcello conhece tudo sobre os
negócios. Ele pode cuidar deles melhor do que ninguém.
— Eu já pensei nisso e estou decidido. Seria uma pena realmente,
depois de todo o trabalho que tive durante tantos anos, mas não vou
estar aqui para ver. Portanto. . .
Mas Liane sabia que ele se importava, que seu coração queria que
Marcello herdasse tudo. Sabia também que não ia adiantar discutir
com ele, Roberto tinha chegado a uma decisão, e ponto final.
— Espero que tudo dê certo.
O olhar dele era triste e ela sabia que a estava observando. Mas,
mesmo que fosse simpática com Marcello, que mostrasse que o
achava atraente, isso não significava necessariamente que ele iria
pedi-la em casamento, Ele a levaria para a cama, claro, mas chegaria
apenas até aí. Não a queria para esposa.
Alguns momentos depois, Roberto resolveu ir dormir. Liane não se
sentia cansada, apesar do dia cheio, e permaneceu na varanda depois
de ele se retirar.
Estava tudo calmo e quente, mas havia uma agradável brisa. As luzes
apareciam e desapareciam, no porto. Ela pensou se Marcello estaria
lá. Provavelmente tinha ido para o Tênis Clube encontrar seus
amigos. Sem dúvida. Luísa estaria lá, agarrada possessivamente ao
braço dele.
O que diria ela, se soubesse da cláusula do testamento de Roberto?
Não era difícil imaginar. Ia fazer o maior esforço para que Marcello
propusesse casamento. Sem dinheiro, talvez ele não a interessasse
mais.
Não se podia chamar isso de amor, Liane pensou. Se amasse um
homem, não se importaria se ele tivesse dinheiro ou não. Era a
pessoa que interessava, e não a conta bancária.
Um som atrás de si fez com que ela desse um pulo.
— Marcello! Eu nunca ouço seu carro.
— Quer dizer que você não estaria aqui, se tivesse ouvido? Era como
se ele lesse seus pensamentos.
— Na verdade, estava pensando em ir para a cama, Roberto já foi
dormir há horas.
— Eu achei que talvez você estivesse me esperando.
— E por que eu faria isso? Não há nada para dizermos um ao outro.
— Eu não diria isso. Mas, antes de mais nada, quero saber por que
está usando esse vestido ridículo. Está querendo se defender de mim,
fazendo tudo para que não a ache atraente?
— Pode ser. Mas também não vejo motivo para jogar fora todas as
minhas roupas só porque tenho outras novas.
Ela se levantou para sair, mas ele a segurou pelo pulso e fez com
que sentasse de novo.
— Quero sua companhia. Desejava muito encontrá-la
ainda acordada.
— Não sei por quê.
— Quero pedir desculpas pelo que aconteceu à tarde. Ela o olhou
cheia de suspeitas.
— Eu não tinha o direito de dizer o que disse.
— Eu já tinha esquecido.
— Você está mentindo e não me convence.
— Você também não está me convencendo. Não lamenta o que
disse nem o que fez.
— Talvez eu não lamente, mas achei que, se pedisse desculpas,
você se sentina melhor.
— Bem, não me sinto. Vou me sentir muito melhor se você não
mencionar o episódio outra vez. E agora, por favor, posso ir para a
cama?
— Tome um drinque comigo. — Ele a conduziu de volta à saleta.,
sem parar para pensar que ela poderia recusar.
Talvez o drinque a ajudasse a dormir, ela pensou. Precisava de algo
que a acalmasse. Tinha sido um dia agitado e parecia que ainda não
tinha acabado.
Ele lhe estendeu um copo com um líquido cor de âmbar. Era da cor
dos olhos dele, ela pensou, sentando-se na beira de uma poltrona.
— Luísa não ficou muito contente por você ter ganhado o jogo, esta
manhã. Ninguém tinha feito isso com ela antes. Muito menos outra
mulher, Ela era nossa campeã.
— E o que eu devo dizer? Que lamento muito? Que não vai acontecer
de novo?
— Não seja tão sensível. Acho que você deve entrar para o Tênis
Clube. Precisamos de um talento como o seu.
— E o que Luísa iria dizer disso?
— Faz alguma diferença o que ela diga? — Eu não quero fazer
inimigos.
— Bobagem. Ela logo vai superar isso. Na verdade, já desafiou você
para outro jogo amanhã.
— Não, obrigada. Vou ficar aqui com seu pai.
— Por quê? Há algo errado com ele?
— Não, eu simplesmente penso que o estamos deixando muíto
sozinho. Agora que ele se desligou dos negócios, não tem com que
ocupar o tempo.
— Ele não se opõe a que você se divirta.
— Eu sei, mas não é isso que importa. Na verdade, acho que você
também devia prestar mais atenção ao trabalho que está fazendo,
em vez de se comportar como um playboy.
— O que papai andou dizendo?
— Ele não disse nada. é minha opinião.
— Então eu agradeceria se a guardasse para si. O que eu faço é
problema meu. Você não sabe de nada.
Ela terminou o drinque e levantou-se.
— Se você me fez ficar aqui para discutir. . .
— Eu tinha a intenção de ter uma conversa agradável, e não de ouvir
um sermão sobre o que devo ou não devo fazer. Sente-se.
Ela ficou surpresa ao ver que obedecia. Ele pegou seu copo e tornou
a enchê-lo. Quando o devolveu, seus dedos incidentalmente tocaram
os dela. Liane afastou a mão e a bebida se derramou.
— Está com medo de mim?
— Não, claro que não — ela respondeu, sem conseguir olhá-lo. Ele
colocou a mão firme sob o seu queixo, forçando-a a levantar os
olhos.
— Mas eu a perturbo, não é?
Ela fez que sim, timidamente. E!e era um estranho, mas, quando a
tocava, seu corpo se derretia. Um beijo, e ela se entregava com-
pletamente.
Como desejava já ter ido para a cama! Era loucura ficar sentada ali,
daquele jeito. Marcello sabia o poder que possuía. Não importava o
que tinha dito antes; se resolvesse fazer amor com ela, não havia
nada que pudesse impedi-lo.
— E não gosta do que eu faço com você?
— Eu não sei por que nem como, mas você sabe e eu gostaria que
não fizesse mais nada.
— Por quê? Está errada. Isso faz parte do crescimento, — Ele
acariciou os lábios de Liane num movimento sensual e seus olhos
mergulharam nos dela.
A moça estremeceu, querendo se afastar, mas, estranhamente, foi
tomada por uma doce sensação de prazer. Era como um fogo que
começasse a queimar, um calor que subia por todo seu corpo.
De repente, passou por sua cabeça a vontade que Roberto tinha de
que casasse com aquele homem e, naquele exato momento, isso não
lhe pareceu má idéia. Pelo menos, sexualmente se dariam bem. Mas,
e o resto?
Ele não me ama, ela pensou, e eu não o amo. . . pelo menos, penso
que não. A sombra da dúvida a surpreendeu. Ela não poderia estar se
apaixonando por ele! Não por Marcello!
— O que está pensando?
A pergunta a pegou de surpresa. Ele tinha parado de lhe acariciar os
lábios e agora estava parado, com os braços cruzados e uma sombra
de sorriso,
— Nada que interesse a você.
— Pelo contrário.. . Alguma coisa a deixou chocada. Eu gostaria de
saber o que é.
Como ele ia rir, se ela contasse! Já lhe parecia completamente
ridículo.
— Não é nada. Um pensamento bobo, apenas.
Ele deu de ombros e olhou para a mancha na saia dela, onde a
bebida se havia derramado.
— Acho que essa mancha não vai sair. Você terá que jogar o
vestido fora.
— Você gostaria disso, não é? Mas a mancha pode muito bem ser
lavada. Você nem saberá onde a bebida caiu. E agora, eu vou mesmo
para a cama, Marcello.
Ele não se moveu e ela foi forçada a esbarrar nele quando lhe passou
por perto.
— Um beijo de boa-noite? — ele sugeriu, sorrindo, e antes que ela
pudesse negar, estava em seus braços, seus lábios procurando os
dele.
O fogo dentro dela se transformou numa chama imensa. Mas dessa
vez Liane pretendia lutar contra o desejo. De jeito nenhum ia deixar
que ele a colocasse em outra situação desagradável, em que o
coração dominava a razão.
Ela permitiu um beijo de poucos segundos. Depois dobrou os joelhos
e escorregou para baixo, antes que ele tivesse tempo de perceber o
que estava acontecendo.
— Buona notte, Marc — ela disse, sem olhar para trás. Achava que
não ia dormir, mas, assim que deitou, mergulhou num
sono sem sonhos.
De manhã, ela e Roberto tomaram café sozinhos.
— Acho que Marcello já tomou café — Roberto disse. — Está na sala
do computador, fazendo seu trabalho do dia.
Trabalho do dia! Aquilo era muito engraçado. Mas ela guardou seus
pensamentos e disse:
— E eu não tenho dúvidas de que você gostaria de estar lá
com ele.
Roberto deu um sorriso iluminado.
— Você lê meus pensamentos muito bem, menina.
— É por isso que vou ficar com você, hoje. O que vamos fazer? Ele
pensou durante algum tempo.
— Eu vou ver você nadar, depois vou ensiná-la a jogar xadrez.
Depois do almoço, após nossa sesta, vamos ouvir um pouco de
música. Parece muito aborrecido?
— Parece perfeito, Roberto.
— E você minha menina, é perfeita. Já pensou no que conversamos
na noite passada?
— Não havia muito em que pensar. Eu não posso forçar Marcello a
casar comigo.
— Mas você não é contra a idéia, é? Você... gosta de meu filho?
— Estou aprendendo a gostar — Liane admitiu, sentindo que en-
rubescia. — Mas não sei o que ele pensa de mim. Algumas vezes é o
companheiro perfeito, mas em outras somos totalmente opostos.
— E a maioria das pessoas não é assim? Acho que, afinal, as coisas
estão começando a funcionar.
Na hora do almoço, Marcello apareceu e Liane ficou surpresa ao
descobrir que ele tinha passado toda a manhã na sala do
computador. Seria por causa do que ela havia dito na noite passada?
— Está tudo bem? — o pai perguntou automaticamente.
— Você não consegue se desligar, não é? — Marcello respondeu,
sorrindo. — Sim, está tudo bem. Não há problemas em parte alguma.
Eu me sinto perfeitamente dispensável, como se estivesse metendo
o nariz onde não sou chamado.
— A engrenagem está bem lubrificada e funciona sozinha. O que
você pretende fazer esta tarde? Não adianta responder que vai des-
cansar; conheço você muito bem. Por que não leva Liane a um
passeio?
— Roberto! — Liane protestou. — Nós já fizemos nossos planos.
— Que podem ser mudados. Tenho certeza de que meu filho saberá
distraí-la melhor do que eu.
— Depende do que você espera. Eu preferiria ficar aqui, se você não
se importa.
— Como quiser. Agora vou fazer minha sesta. Vejo vocês mais
tarde.
— A não ser que eu a convença a sair — Marcello interrompeu
preguiçosamente.
— Eu ficaria muito feliz se você conseguisse — o pai respondeu, —
Sei que Liane se sente culpada por me deixar sozinho, mas fico infeliz
ao vê-la presa a ruim.
— Você sabe que eu não me importo de ficar — Liane protestou.
— É esse o problema. Você é muito generosa, menina. Pense em
você mesma, para variar.
Estou pensando em mim, ela refletiu em silêncio, e é por isso que
prefiro ficar aqui.
Depois que Roberto saiu, Marcello disse:
— E então? Vem comigo?
— E Luísa? Acho que ela não ficaria muito contente.
— Luísa não é uma boa companhia, neste momento.
— Por minha causa?
— Pode-se dizer que sim.
— Então você só está piorando as coisas. Além disso, é claro que só
está me convidando porque não tem outra companhia. Portanto, a
resposta ainda é não.
Ele parecia zangado, mas ela estava resolvida a resistir. Que tipo de
tarde teria, sabendo o tempo todo que ele preferia a companhia
da outra?
— Você é uma tola — ele disse de repente, furioso, saindo da sala.
Não entendeu por que ele ficara tão aborrecido. Talvez não estivesse
acostumado a ver recusados os seus convites. Ela deu de ombros e
também saiu. O calor era terrível, naquela hora do dia.
Liane não viu Marcello novamente durante alguns dias. Haviam
surgido alguns problemas na Espanha e ele tinha ido até
lá
resolvê-los.
Naturalmente, Roberto ficou preocupado e Liane fez o que pôde para
distraí-lo. Sabia que ele ia até a saía do computador, todos os dias,
verificar o que estava acontecendo, e compreendeu isso. Era difícil se
desligar completamente do trabalho que tinha sido sua razão de
viver,
Liane usava sempre a piscina e agora Roberto gostava de ir lá olhá-
la. Passavam muitas horas conversando e o assunto favorito era
a mãe dela.
Ele se admirava de como Liane se parecia mais com ela a cada dia.
— Você realmente me deu um motivo para viver — ele repetia,e ela
cada vez mais gostava dele. Já não conseguia imaginar a vida
sem ele.
O orfanato agora parecia muito distante, uma coisa de um outro
mundo. Havia momentos em que parecia ter passado toda a sua vida
ali na Sardenha.
O bronzeado dela se acentuava dia a dia; cada vez passava mais
tempo ao sol. Depois de nadar, de manhã, ela deitava numa esteira
ao lado da piscina, com os olhos fechados, ouvindo o ruído distante
dos insetos, o canto dos pássaros e o barulho das folhas das árvores.
Naquele dia, Roberto não tinha ido se encontrar com ela. Por algum
motivo, parecia diferente, e ela tinha insistido para que ele ficasse na
cama por mais uma ou duas horas.
Liane devia ter adormecido na beira da piscina, pois de repente ouviu
passos e percebeu que alguém a olhava. Uma sensação esquisita lhe
percorreu a espinha. Não era difícil adivinhar quem estava ali.
Lentamente, abriu os olhos. Tinha esquecido como Marcello era
bonito. O sol transformava seus cabelos num halo dourado. Ele devia
ter chegado há algum tempo, pois vestia apenas o calção de banho.
Era impossível afastar os olhos daquele corpo musculoso e
bronzeado. Ele era um homem muito atraente, do tipo que ela tinha
visto apenas em revistas. Ombros largos, equilibrados com os quadris
estreitos, pernas longas e fortes.
De repente, lhe ocorreu que havia sentido muita falta dele. Tinha
apreciado a paz e a tranquilidade da casa, mas estava faltando al-
guém: Marcello!
Involuntariamente sorriu, um sorriso que iluminou todo o seu rosto.
— Eu não sabia que você já tinha voltado.
— Se eu soubesse que você ficaria tão contente por me ver, teria
voltado antes,
— E por que acha que estou contente?
— Por causa desse sorriso. Foi muito revelador. O que acha de nadar
comigo?
Ela sentiu vontade de recusar, mas precisava refrescar seu corpo,
quente por um calor que não era totalmente causado peio sol.
Marcello estendeu a mão e, hesitante, ela a segurou, deixando que
ele a ajudasse a se levantar. Seu coração bateu mais depressa.
Havia uma tensão esquisita entre os dois, mas ele se virou depressa
e mergulhou. Sentindo-se inexplicavelmente desapontada, ela o se-
guiu e, nos minutos seguintes, nadaram de um lado para o outro na
piscina.
Depois de algum tempo, Liane sentiu-se exausta e avisou que ia sair.
— Covarde! — Marcello gritou, vindo por trás dela. — Está com medo
de mim?
— Não. Eu só estou cansada. Você pode continuar; para mim já
chega.
Mas ele a segurou pela cintura e puxou-a para a água, que se fechou
sobre es dois. Abraçados, eles afundaram e Liane sentiu os lábios de
Marcello nos seus.
Depois voltaram à superfície, ainda se beijando, e ela lutou para
respirar.
— Senti saudades de você — ele disse, e parecia muito sincero.
Segurou o rosto dela com as duas mãos. — Você mudou, Liane.
Parece ter desabrochado. Não é mais a garota tímida e simples que
chegou aqui. Agora, é uma linda mulher.
Ele também tinha mudado. Parecera muito arrogante e autoritário no
primeiro encontro. Agora... o que ele era agora? Ainda um estranho,
às vezes, cheio de frases inesperadas. Mas outras vezes, como agora,
era o companheiro perfeito, lisonjeador, atencioso, capaz de fazer
uma mulher se sentir desejada e bonita.
De repente, Liane sentiu que queria que aquele momento durasse
para sempre.
As pernas dele se enroscaram nas dela. Como se obedecessem a um
sinal, seus lábios se encontraram. Rolaram para a água outra vez,
esquecidos por um momento de tudo, do lugar onde estavam e do
que faziam, sabendo apenas que precisavam desesperadamente
um do outro.
Liane sentiu que seus pulmões estouravam, quando finalmente
voltaram à superfície. Respirou várias vezes, depois disse:
— Vamos sair.
Marcello também parecia cansado e, durante algum tempo, per-
maneceram deitados lado a lado, contentes com a presença um do
outro, sem sentir necessidade de falar.
Mas o silêncio dos dois foi quebrado, quando Giorgio chegou correndo
e gritando:
— Seu pai, Marcello! Acho que ele teve um ataque de coração!
CAPÍTULO VII
CAPÍTULO VIII
Liane sabia que devia ter concordado em casar com Marcello. Agora,
ele tinha ido procurar Luísa e ela não tinha a menor dúvida de qual
seria a resposta da moça.
Um casamento por conveniência era melhor do que nenhum casa-
mento. For que o recusara? Por que tinha sido tão estúpida?
Se ele casasse com Luísa, ela não poderia mais continuar ali. Seria
insuportável ver os dois juntos, principalmente sabendo que o casa-
mento tinha sido forçado por ele.
Durante a noite, ela ficou acordada, esperando a volta de Marcello,
mas só de madrugada ouviu o carro dele. Depois, percebeu que ele
andava lá embaixo, mas seu instinto a fez ficar onde estava. Mais
tarde dormiu.
Na manhã seguinte, ele parecia cansado, com os olhos vermelhos.
Ela teve medo de perguntar o que tinha acontecido. Raffaele, por
outro lado, estava muito feliz, ou pelo menos fingia estar, apesar de
olhar estranhamente para Marcello repetidas vezes.
Roberto desceu muito mais tarde. Os dois primos trouxeram a cama
do velho para baixo, para o quarto menor ao lado da saleta. Liane se
ocupou em trazer as roupas dele e a manhã passou rapidamente.
Antes que percebesse, já era a hora da sesta,
Marcello, como sempre, preferiu não descansar e surpreendeu Liane
convidando-a para sair. O primeiro impulso dela foi recusar, mas
estava curiosa de saber o que havia acontecido entre ele e o primo na
noite anterior.
Ele tomou o caminho do iate, mas só depois de estarem no mar foi
que começaram a conversar.
Ele ligou o comando automático e veio sentar-se ao lado dela no
deck.
— Raffaele contou a você o que aconteceu?
— Tentou. O que entendi foi que ele se ofereceu para tomar seu
lugar nos negócios.
— Não posso acreditar que meu pai concordou com isso. Ele sabe
que Raffaele não dá para negócios. O império todo desabaria, se fi-
casse a cargo dele.
— Ele disse que você tinha ido ver Luísa. Pediu-a em casamento? Ele
demorou muito para falar.
— Sim, eu vi Luísa, mas só por alguns instantes. Passei a maior
parte do tempo sozinho, pensando, tentando solucionar esta situação
sem causar mais preocupações a meu pai.
— E encontrou a solução?
— Acho que sim, — Ele a olhou profundamente. — Mas vamos
esquecer esse episódio desagradável por alguns momentos.
Não é certo uma jovem como você ficar infeliz por causa disso. Não
devia se envolver nessa história.
Ele sorriu, e era como se o sol voltasse a aparecer. Que mudança
brusca de humor! Ela jamais pensaria que isso fosse possível. Mas
queria que Marcello fosse feliz. Se ele ficasse triste, ela também
ficaria.
Durante as horas seguintes, Marcello foi o companheiro mais di-
vertido do mundo. Ensinou-lhe como manobrar as veias e desviar de
um recife, mostrou todo o iate e fez um chá, que tomaram sentados
juntos na pequena cabine.
Foi uma tarde extremamente agradável e Liane ficou desapontada
quando ele avisou que era hora de voltar,
— Meu pai está nos esperando para o jantar — ele disse, e de re-
pente ela se sentiu culpada. Não tinha pensado em Roberto nenhuma
vez, nas últimas horas.
Quando chegaram em casa, Marcello continuou com a farsa e o pai
pareceu satisfeito.
Raffaele observava-os de perto, imaginando -se Liane teria dito a 116
verdade. Certamente, ela e Marcello pareciam bons amigos e ela ten-
tou não pensar que logo tudo estaria acabado.
Na cama, naquela noite, ela se sentia amada e desejada, recusando-
se a imaginar que Marcello fingia. Os dias foram passando e ele
continuava a lhe dar mais e mais atenções. Ela pensou onde iria
terminar tudo aquilo.
Raffaele tinha sido esquecido. Passava muito tempo com Roberto,
mas nunca tocava no assunto que preocupava Liane.
Roberto estava satisfeitíssimo. Era notável sua recuperação. Ficava
mais forte a cada dia, encorajando os dois a saírem sempre juntos.
De certa forma, Liane estava contente, com a presença de Raffaele.
Se não fosse ele, não poderia sair tanto assim. Ela nunca se atreveria
a deixar Roberto sozinho durante tantas horas.
Aos poucos, a amizade de Marcello se transformou em algo mais
profundo. O amor dela por ele também cresceu.
Um dia, depois de passarem a manhã nadando e tomando sol
numa prainlia calma perto de casa, aconteceu uma coisa
maravilhosa.
Marcello tinha terminado de passar óleo bronzeador nela e ainda
estava com as mãos em suas costas, quando a puxou com
força
contra si.
— Liane! — Ele a beijou com uma paixão que surpreendeu os dois.
Depois do choque, Liane correspondeu aos beijos dele, acariciando-
lhe os cabelos, segurando-lhe o rosto, pressionando seu corpo contra
o dele, sentindo a urgência daquele desejo,
Era como se mais nada existisse, como se tudo tivesse sido esque-
cido. Ela o queria desesperadamente e Marcello também a queria.
A respiração dele estava pesada, quando a deitou na areia, cobrindo
o corpo dela com o seu,
— Liane, quer casar comigo?
Ela sentiu-se tonta de prazer. Dessa vez, parecia que os motivos dele
eram sinceros.
— Sei que você não me ama — ele continuou —, mas tenho certeza
de que, com o tempo, aprenderá a me amar.
Ela olhou profundamente os olhos dele.
— E você? Você me ama, Marcello?
— Dio! Eu preciso dizer? Não é evidente? Ele gemeu e a abraçou
novamente.
— Eu só queria ter certeza.
— Quer dizer que. . . concorda?
Em resposta, ela lhe ofereceu os lábios, e seus corpos ficaram mais
juntos, como se tentassem se transformar num só. Liane se sentia
delirantemente feliz. De repente, estava tudo bera.
Ela casaria com Marcello. Os negócios permaneceriam na família
Malaspina, afinal. E o mais importante de tudo era que Marcello a
amava!
Era como se um sonho se tornasse realidade. Ela abria os olhos e
olhava para ele, para ter certeza de que era tudo verdade, que
Marcello estava ali e a amava, que queria casar com ela. Nunca
tinha se sentido tão feliz. Durante o jantar, naquela noite, eles anun-
ciaram o noivado.
Roberto não continha sua felicidade.
— Parabéns aos dois. É meu maior desejo que se torna realidade.
Marcello, abra uma garrafa de champanhe. Precisamos comemorar.
Raffaele parecia chocado, mas logo se recuperou e participou do
brinde.
O jantar foi muito alegre, e Liane, naquela noite, foi dormir contente,
pensando que seu futuro seria maravilhoso. Sem dúvida, teriam seus
problemas, como todos os casais, mas desde que Marcello a
amasse, nada mais importava.
Roberto finalmente veria os netos.
Ela estava na cama há poucos minutos quando escutou baterem na
porta do quarto. Achando que era Marcello, ela o chamou para que
entrasse. Mas sua expressão mudou ao ver Raffaele.
— O que você quer?
— Conversar um pouquinho.
— Acho que você e eu não temos nada para conversar.
— Claro que temos. — Ele sentou-se na beirada da cama, com os
olhos escuros muito brilhantes. — Já pensou por que Marcello a
pediu em casamento?
— Porque ele me ama.
— Tem certeza?
— Claro!
— Mas há a cláusula do testamento.
— E daí? — Mas a dúvida já linha surgido nos olhos dela, Na
verdade, Marcello não tinha dito que a amava. "Eu preciso dizer?",
ele havia falado. "Não c evidente?"
— Acho que ele vai casar com você porque não quer ficar sem
dinheiro.
— Ou para impedir você de colocar as mãos no dinheiro.
— Eu? Já desisti dessa idéia há muito tempo e Marceilo sabe
disso. Tive uma longa conversa com tio Roberto e, quando percebi o
que estava envolvido na herança, vi que não ia conseguir administrar
tudo.
Raffaele parecia sincero. Se Marcello sabia disso, por que não havia
dito nada a ela?
— Não sei se acredito em você.
— Pergunte a meu tio. Ele lhe dirá.
Ela não queria causar problemas a Roberto. Mas, se Raffaele es-
tivesse mentindo, não iria sugerir que ela confirmasse a história com
o tio. Seria muito arriscado. Ele devia estar falando a verdade.
— Foi só isso que você veio me dizer?
— Eu queria saber se você compreendia onde estava se metendo.
Quando um homem casa com uma mulher só por causa de uma
herança, ele não é boa coisa.
— Marcello nunca faria isso. Saia daqui, Raffaele. Se quer saber,
acho que está com ciúme. Está tentando causar problemas entre nós
e acho que esta conversa com seu tio nunca aconteceu. Você quer
me indispor com Marcello; assim seria beneficiado com o testamento
de Roberto.
— Pense o que quiser, Liane. Mas verá que eu disse a verdade.
Depois que ele saiu, Liane não conseguiu dormir. Ele a tinha deixado
insegura e agitada. Não sabia mais o que era realidade ou
imaginação sua.
Raffaele podia estar falando a verdade. Parecia muito sincero. Será
que Marcello estaria casando com ela só por dinheiro? Seria tão
ambicioso para fazer isso? Da outra vez que sugerira o casa-mento,
estaria pensando só no dinheiro? Não estaria também preocupado
com a saúde do pai?
Ela queria aceitar, mas as sementes da dúvida já estavam em sua
cabeça. Percebeu que não podia continuar até o casamento se não
soubesse se Marcello a amava.
Se perguntasse, o que ele iria dizer? Será que negaria as acusações
de Raffaele? Ou diria que a amava?
Na manhã seguinte, Raffaele eslava muito distante durante o café.
Marcello sorriu amorosamente, quando ela entrou, mas franziu as
sobrancelhas quando Liane virou o rosto a seu beijo.
Por causa de Roberto, ela manteve uma aparência de amizade com
Marcello, mas, quando ficaram sozinhos, ele perguntou rispidamente:
— O que há de errado, Liane? Será que mudou de idéia?
Ela o olhou e sentiu que seu coração transbordava de amor. Que-
ria desesperadamente acreditar nele, mas como poderia?
— Eu quero saber exatamente por que você quer casar comigo.
Se a resposta dele fosse o que desejava, não teria mais problemas;
caso contrário.. . seria o fim de uma fase feliz em sua vida.
— Por que um homem geralmente quer casar tom uma moça?
Ontem você não tinha nenhuma dúvida. Por que de repente ficou
com medo?
Ela sacudiu a cabeça. Ele estava evitando uma resposta direta. As
lágrimas estavam prestes a rolar de seus olhos.
— Não posso dizer.
— Tem algo a ver com Raffaele?
A pergunta a pegou de surpresa e ela não precisou responder. Sua
expressão disse tudo.
— O que ele esteve dizendo?
Se ela contasse, sem dúvida ele ia negar tudo. Liane deu de ombros.
— Nada de importante.
— Importante o suficiente para deixar você no estado em que se
encontra. Se não me contar, eu mesmo irei perguntar a ele.
— Faça isso. Pode ser melhor.
Quando ele saiu, Roberto veio do quarto. Ela tinha esquecido que
agora ele dormia ali perto.
— O que aconteceu? Vocês dois pareciam estar discutindo.
— Desculpe, Roberto, mas isso é entre nós apenas. Uma briga de
namorados.
— Espero que não seja nada sério. Eu esperava as notícias de ontem
à noite há muito tempo.
— Acho que não é nada grave — ela respondeu, esperando que ele
acreditasse. Não se atrevia nem a pensar no que aconteceria se
Roberto descobrisse que o casamento podia ser cancelado.
Liane vinha se sentindo feliz como nunca, e ver aquela felicidade
cortada tão brutalmente era mais do que ela podia aguentar.
Talvez tivesse esperado demais. Devia saber que Marcello a estava
usando. Ela estivera cega porque o amava muito e tinha visto nele
sua única chance de felicidade.
Marcello podia ser extremamente atraente, quando queria, e aqueles
últimos dias provavam isso. Ele tinha resolvido conquistá-la e
conseguira seu objetivo. Se não fosse Raffaele, o casamento aconte-
ceria dentro de pouco tempo.
Naquele dia, Liane não viu Marcello nem Raffaele. De certa forma,
sentiu-se aliviada, mas, por outro lado, queria saber o que estava
acontecendo entre eles.
Roberto respeitou o desejo dela de não discutir o que tinha aconte-
cido, mas Liane sabia que ele estava preocupado e fez de tudo para
parecer o mais natural possível.
Na manhã seguinte veio a surpresa: Raffaele tinha partido. Mas a
novidade não ajudou em nada. Marcello deu a notícia durante o café.
Roberto balançou a cabeça como se já soubesse que aquilo ia
acontecer e voltou para o quarto.
Parecia que ela e Marcello eram estranhos novamente. Sentado à
mesa, tomando café, ele lia o jornal da manhã e nem olhou para
Liane.
Estaria tudo terminado? A consciência de Marcello tinha falado
mais alto? Talvez ele nunca a tivesse amado; tudo não tinha passado
de um jogo, um meio de atingir um objetivo.
Mais tarde, quando. Roberto sentou-se na varanda, pensativo, Liane
percebeu que ele estava preocupado e sentiu que lhe devia
um; explicação,
— Pensei que Marcello me amava. Desculpe, Roberto, eu estava
enganada. Não posso casar com seu filho.
— E o que a faz pensar que ele não a ama?
— Tenho uma confissão a fazer. Contei a Marcello que você poderia
tirá-lo do testamento se não casasse logo.
— E acha que ele quer casar com você por esse motivo? Ela fez que
sim, com ar triste.
— Meu filho não é um interesseiro. Ele chegou até aqui sem casar. E
tenho certeza de que não casaria agora, se não tivesse encontrado a
mulher certa.
— Então por que você colocou aquela cláusula no testamento?
— Para apressá-lo. Eu sabia que você ia contar a ele, mais cedo ou
mais tarde, e fiquei contente ao ver que o tinha feito tomar uma
decisão. Agora acho que estava errado. Vocês dois são um par de
idiotas! Marcello ama você, eu sei disso. Eu vejo como ele olha para
você, como fala sobre você. . . Não sei o que a faz pensar que ele
casaria simplesmente para herdar os negócios.
— Talvez não seja por causa disso. Ele pode estar fazendo isso por
você. Sabendo que nos quer ver juntos. , . E mesmo amando-o .
quanto o amo, Roberto, não quero casar com um homem dessa
forma. — Nem eu quero que case assim, garota. Esta é a última
coisa que quero que aconteça. Por que você não pergunta a ele?
Precisa ser capaz de faiar disso. Não esconda seus sentimentos,
minha pe-quena Liane, Quero que você seja feliz. Quero ver vocês
dois felizes e estou convencido de que foram feitos um para o outro.
— Entendo. Se houver oportunidade...
— Você precisa criar a oportunidade- Não deve adiar mais. Quer que
eu fale com ele?
— Não. Eu falarei com ele. Roberto, quando... quando tiver
chance.
Alguns dias se passaram .e Marcello continuou tratando-a
com indiferença, até com desprezo. Ela sentiu que estava se
desesperando. Foi Roberto quem lhe deu a oportunidade de falar. O
jantar tinha sido desagradável, com Marcello e o pai falando de
negócios e Liane comendo em silêncio tentando fingir que estava
tudo bem.
Mas estava chegando ao fim de suas forças e Roberto sabia disso.
Durante todo o jantar, ele a tinha olhado preocupado e, antes de
sair da sala, disse a Marcello:
— Acho que Liane tem algo a lhe dizer, Preste atenção, meu fifho.
Esta pode ser sua última chance.
— Do que se trata? — ele perguntou, depois de o pai sair, Durante
alguns segundos, Liane ficou em silêncio, com os olhos
no prato, sem saber como começar.
— Pelo amor de Deus! Quer falar ou não? Se não quer, já vou
saindo. Tenho um encontro com Luísa.
A coragem de Liane quase desapareceu. Achava que Luísa tinha
desaparecido da vida dele.
— Seu pai está muito infeliz porque não vamos casar.
— E eu não sei disso? Mas de quem é a culpa?
— Está tentando dizer que é minha? — Claro. Não é de mais
ninguém.
— Você não pode me culpar. . . se está, . . se está me usando. , .
— Usando? Do que está falando?
— Você quer casar comigo só para não perder a herança.
— É isso o que você pensa? Ela fez que sim.
— Então, muito obrigado, Liane. A verdade dói, mas eu não ima-
ginava que doesse tanto. E se eu lhe dissesse que pretendia casar
comigo só para garantir seu futuro?
Liane arregalou os oíhos. assustada.
— Claro que não! Quem pôs essa idéia na sua cabeça?
— Raffaele.
— E acreditou nele?
— Não vi razões para não acreditar. Ele disse que, como eu a amava,
você poderia fingir me amar também. Disse que eu a atraía
fisicamente e mais nada.
— É mentira! Tudo mentira!
— Nesse caso, por que resolveu me perguntar por que eu ia casar
com você? Se me amasse, teria confiança, não sentiria a
menor dúvida.
— Foi Raffaele — ela disse lentamente, e de repente começou a
entender. Raffaele? Ele estava no meio de tudo aquilo. Tinha delibe-
radamente resolvido colocar um contra o outro.
Os olhos de Marcello estavam ainda mais penetrantes.
— Raffaele disse que eu ia casar com você só para herdar os
negócios de meu pai?
Ela fez que sim, o que deixou Marcello mais zangado ainda.
— Eu devia ter percebido que ele não ia hesitar diante de nada para
colocar as mãos na herança de meu pai, no dinheiro...
— Mas.. . ele me disse que já tinha desistido dessa idéia, que tinha
entendido que não podia administrar tudo...
— Tudo mentira! Ele e meu pai estavam discutindo como administrar
as empresas.
— Mas Roberto ainda espera que você e eu...
— Eu sei. Ele nunca desistiu dessa idéia, mas pensava em Raffaele,
se as coisas não dessem certo entre nós.
— Pena que elas não deram — Liane murmurou, e sentiu lágrimas
nos olhos.
Marcello olhou-a durante um longo tempo.
— O que eu quero saber é por que concordou em casar comigo se
não era por causa do dinheiro.
Como poderia dizer que o amava, quando era evidente que ele não
sentia nada por ela?
— Foi por causa de Roberto — ela mentiu. — Não aguentei vê-lo tão
infeliz.
— Eu devia ter adivinhado. Mas vou pensar numa maneira de
impedir Raffaele de agarrar tudo.
— Você podia tentar, dizendo a Liane o que pensa realmente
dela. — Roberto entrou na sala, parecendo aborrecido. — Estive ou-
vindo o que vocês dois, seus estúpidos, estavam conversando. Pelo
amor de Deus, por que não dizem a verdade?! Diga que a ama,
Marcello, ou quer que eu diga isso por você?
— E de que ia adiantar?
Roberto sacudiu a cabeça impaciente.
— Porque, seu idiota, Liane o ama também, apesar de ser teimosa
demais para admitir isso.
Durante um momento, surgiu um brilho de esperança nos olhos de
Marcello.
— É verdade, Liane?
Ela fez que sim, timidamente.
Um sorriso iluminado surgiu no rosto dele. Pulou da cadeira e a
tomou nos braços.
Discretamente, Roberto saiu da sala,
— Minha Liane, por que não me disse? — Os lábios de Marcello
encontraram os dela, seus braços a abraçaram com tanta força que
ela sentiu as costelas estalarem. — Você nem imagina o que eu
passei.
— Eu também — ela murmurou, enquanto suas lágrimas se mis-
turavam aos beijos dele.
Suavemente, ele lhe limpou o rosto.
— Não chore, querida, tudo vai dar certo. Eu a amo tão deses-
peradamente que sinto até medo. Raffaele e eu tivemos outra briga e
eu lhe dei novamente um soco.
— Foi por isso que ele foi embora? Marcello fez que sim com a
cabeça.
— Não foi muito bonito. E não me fez nenhum bem. Não pude deixar
de acreditar que ele tinha dito a verdade. Como um homem pode ter
pensamentos tão diabólicos?
— Ele magoou a nós dois. Acho que devemos agradecer a seu pai.
Se não fosse ele. ..
— Ainda não consigo acreditar em minha boa sorte. — Marcello
começou a acariciá-la sensualmente e ela achou cada vez mais difícil
se concentrar no que ele estava dizendo. — Quando você descobriu
que me amava?
— No dia em que você me levou a La Maddalena. De repente, você
descobriu o que seu pai pretendia em relação a nós e ficou
horrorizado. Não sabe o quanto me magoou com aquela atitude!
— Minha querida Liane! Você entendeu tudo errado. Eu fiquei
chocado, sim, mas não porque não quisesse casar com você. Dio, eu
queria isso há muito tempo! Foi a astúcia de meu pai que me chocou.
Não conseguia entender por que ele queria nos ver casados. Sabia
que ele gostava de você, mas não que a via como a uma nora. Como
fui idiota!
Liane estava cheia de amor e ternura. Acariciou-o no queixo gen-
tilmente, estendendo a carícia até os lábios dele, depois ao nariz.
— Se você me amava, por que não me contou?
— Tive medo, minha querida. Você me disse tantas vezes que me
odiava. . .
— Porque você me tratava de um modo horrível. Você me humilhou,
fez com que eu sentisse que não era bem-vinda aqui. Odiei você por
causa disso,
— Foi uma defesa contra meus próprios sentimentos, Acho que me
apaixonei por você no momento em que a vi, naquele orfanato. Só
que não queria amar você. Você não era meu tipo.. . pelo menos era
o que ficava dizendo a mim mesmo.
— E agora?
— Você me conquistou. A cada dia que passava, eu percebia que me
apaixonava mais e mais e não podia controlar isso. O amor me fez
seu prisioneiro, Liane. Eu pertenço completamente a você.
— E eu a você. Afinal, acho que Roberto vai ver os netos.
— Era isso o que ele queria? Ela confirmou.
— Você parece ter tido uma conversa muito séria com meu pai. —
Ele é um homem maravilhoso. Me entendeu e entendeu você
também, muito mais do que imagina.
— Talvez, se eu tivesse tido uma conversa com ele, teria descoberto
há muito tempo que você me amava, sem ter enfrentado esses
problemas. Que perda de tempo!
— Está tentando me dizer que se arrepende das horas que passou
comigo?
Marcello beijou-a de novo.
— Nada disso, minha querida. Agora não vamos mais perder
tempo, Liane; não podemos desapontar papai.
— Ele ficará desapontado, se não o chamarmos para dizer que tudo
está simplesmente maravilhoso.
— Conhecendo meu pai, aposto que ele ficou ouvindo tudo o que
dissemos.
Sorrindo, Roberto entrou na sala.
— E não me pode culpar de nada, meu filho. Você pode saber como
administrar meus negócios, mas não sabe administrar sua vida.
— Acho que de agora em diante vou administrar tudo muito bem, —
Marcello apertou Liane com mais força e sorriu para ela, um sorriso
lindo e íntimo.
— Mas há outra coisa que você precisa fazer — ela disse. —
Lembro que você tinha um encontro, esta noite.
— Luísa? Oh, não. Ela já está fora de minha vida. Eu só disse aquilo
porque não queria conversar com você. Tive medo, minha pequena
Liane, medo de demonstrar meus sentimentos.
— Acho que ainda não o compreendo Marcello. Você ainda é um
estranho, em certos aspectos.
— Mas isso pode ser corrigido. Nenhum de nós confiou no outro, mas
esta fase agora já acabou. No futuro, não teremos segredos. Você é
minha e eu quero saber o que pensa em cada segundo do dia.
— E das noites? — ela perguntou ternamente, esquecendo do
pai dele naquele momento.
— Isso acontecerá quando você pertencer a mim completamente.
— Para sempre — ela murmurou, olhando-o com ar de adoração.
Depois os dois se viraram e incluíram Roberto no abraço.
Os olhos de Roberto estavam úmidos pelas lágrimas.
— Em seu amor, Liane — ele disse —, eu encontrei minha
felicidade.
FIM