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Antropoceno: a sociedade como uma força na mudança da paisagem– ISSN 2175-0173

DOI: http://dx.doi.org/10.22562/2020.52.08

Igreja Católica, questão agrária e


a luta social no campo (1950-1980)
Catholic Church, agrarian question and the social
struggle in the countryside (1950-1980)
João Carlos Tedesco*
Emerson Neves Da Silva**

Palavras-chave: Resumo: O artigo analisa alguns aspectos que evidenciaram a ação da Igreja Católica
Igreja Católica na configuração das lutas agrárias no Brasil entre as décadas de 1950 a 1980. Entende-
Questão agrária se ser um período efervescente de lutas sociais em torno do que se convencionou
Luta sociais chamar de “questão agrária brasileira”. O objetivo é demonstrar a mediação da
referida instituição, as disputas internas, as ambiguidades nas ações e sua intensa
influência na constituição e nas ações iniciais do Movimento dos Agricultores Sem
Terra (MST). As fontes utilizadas foram leituras sobre o tema e o contexto político e
econômico brasileiro do período, mas, em particular, boletins, documentos, cartas,
relatórios, dentre outros, frutos de encontros, seminários e assembleias efetivados
pela oficialidade da Igreja Católica e publicados pela CNBB no período em questão.
As conclusões que se chega são que houve várias disputas no interior da instituição
religiosa em torno das diretrizes de suas ações no horizonte social e no meio rural
em particular; sempre houve uma preocupação com as questões que envolviam o
pequeno agricultor e o modelo de desenvolvimento que produziam sua exclusão.
Essa experiência de inserção social lhe deu credenciais para a mediação na efetivação
do MST.

Keywords: Abstract: The article analyzes some aspects that highlighted the action of the Catholic
Catholic Church Church in the configuration of agrarian struggles in Brazil between the 1950s and
Agrarian question 1980s. It is understood to be an effervescent period of social struggles around what
Social struggle has been called the “brazilian agrarian question”. The objective is to demonstrate
the mediation of the institution, the internal disputes, the ambiguities in the actions
and their intense influence on the constitution and initial actions of the Landless
Farmers Movement (MST). The sources used were readings on the theme and the
Brazilian political and economic context of the period, but in particular, bulletins,
documents, letters, reports, among others, the fruits of meetings, seminars and
assemblies held by the official of the Catholic Church and published by CNBB for
the period in question. The conclusions reached are that there were several disputes
within the religious institution over the guidelines of its actions in the social horizon
and in the rural area in particular; There has always been concern about the issues
surrounding the small farmer and the development model that produced his
exclusion. This experience of social insertion gave him credentials for mediation in
the implementation of the MST.

Recebido em 18 de novembro de 2019. Aprovado em 12 de dezembro de 2019.

* Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), pós-doutorado nas Universidade de Verona e Milão. Professor
do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (UPF). Pesquisador do tema das migrações, dos processos de
colonização no norte do Rio Grande do Sul e de conflitos agrários. E-mail: <jctedesco@upf.br>.
** Doutor em História Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS); professor do Programa de Pós-graduação em História da Universidade
Federal da Fronteira Sul (UFFS). E-mail: <emerson.silva@uffs.edu.br>.
Cadernos do CEOM, Chapecó (SC), v. 33, n. 52, p. 105-121 Jun/2020

Introdução produção, tanto no espaço urbano, quanto no meio


rural. Havia uma estrutura de condições políticas
Os movimentos sociais são instâncias e demandas sociais reprimidas que pressionavam
populares de transformações sociais; participam para a produção de alterações no quadro social
direta ou indiretamente da luta política de um e econômico. O capital modernizante produzia
país e contribuem para o desenvolvimento e a suas contradições e mostrava sua face perversa,
transformação da sociedade civil e política (GOHN, excludente. Os conflitos não tardaram a aparecer.
2002). Os mesmos participam da mudança Para fazer frente a essas questões de cunho social,
social histórica de um país. Porém, o caráter de em particular, no meio rural, a Igreja Católica
suas transformações geradas poderá ser tanto intensifica dinâmicas pastorais, imprime ações
progressista quanto conservador, dependendo das diretamente no cenário onde os problemas se
forças sociopolíticas que estão articulados em suas evidenciam e, passa a ser a grande mediadora nas
densas redes e dos projetos políticos que constroem demandas de grupos subalternizados.
com suas ações. Tendo isso presente, o objetivo do presente
No campo dos movimentos sociais de luta texto é problematizar a relação histórica dessa
pela terra, em seu nascedouro, no Brasil, não se instituição com o que se convencionou chamar
pode não reconhecer o papel da Igreja Católica. A de “questão agrária brasileira” (GEHLEN, 1983),
relação dela com os movimentos sociais é complexa, principalmente em torno da concepção de
constituindo-se numa relação política perpassada propriedade, de justiça social, de organização
por questões, econômicas, sociais, culturais e, dos pequenos agricultores, da reforma agrária,
também, de concepção religiosa. Por isso, perceber etc. Buscamos dar ênfase às diretrizes das ações
os antecedentes históricos relacionados ao implementadas pela oficialidade da Igreja Católica
posicionamento da referida instituição a respeito de através de documentos, cartas, relatórios, frutos
problemas sociais, em especial da questão agrária, de encontros, seminários, assembleias, dentre
é fundamental para compreendemos, por exemplo, outros. Nossas fontes, além da revisão bibliográfica
o processo de formação do Movimento dos sobre o tema da luta pela terra e do contexto
Trabalhadores Sem Terra (MST) e sua imbricação político brasileiro do período em questão, estão
com atividades pastorais desenvolvidas no sul do esses materiais elaborados pela CNBB, os quais
Brasil e a intensa mediação da referida instituição revelam o pensamento de membros da oficialidade
junto a esse sujeito social, bem como outros institucional em torno do tema.
movimentos de representação e organização de A intenção do texto, como já falamos,
pequenos agricultores surgidos no Brasil pós-regime é entender os elementos preliminares que vão
civil-militar. Não podemos deixar de mencionar, constituindo a sensibilização da entidade para a
também, que a Igreja Católica, historicamente, questão agrária brasileira, em particular, a que se
sempre esteve identificada com o meio rural e, refere aos pequenos camponeses, alijados pelas
principalmente, com os pequenos agricultores, pois políticas públicas e pelo modelo de modernização
é esse cenário que alimentou - e continua - valores tecnológica que se materializaram nas décadas de
ligados a uma cultura religiosa, sociabilidade 1950 e 1960 em nível de país. Entendemos que
comunitária e, em parte, familiar, sendo esse espaço, a intensa mediação da Igreja Católica junto aos
sobretudo, um viveiro de vocações sacerdotais e movimentos de luta pela terra no país, em particular,
religiosas. ao MST (Movimento dos Agricultores Sem Terra),
As décadas que contemplam o presente em seu nascedouro no início da década de 1980 e, por
texto, em particular, as de 1950 e 1960, em nível quase duas décadas posteriores, deve-se, em grande
de país e de América Latina, serão paradigmáticos parte, a essa construção histórica de uma experiência
em termos de alterações e redefinições econômicas, em torno do tema. Entendemos serem as décadas de
de desenvolvimento, no campo urbanístico e de 1950 e 1960 fundamentais nesse sentido.

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O texto está estruturado, primeiramente, No caso em questão, a partir da segunda


analisando alguns aspectos que evidenciaram a ação metade do século XX, a preocupação da Igreja
da referida instituição religiosa na questão da terra Católica com temas relativos ao campo, como, por
em meados do século XX; posteriormente, analisa exemplo, a reforma agrária, toma voz institucional.
aspectos de uma nova ênfase institucional ligada ao Não se quer dizer que antes desse período não
processo de modernização, da lógica produtivista houvesse interesse da Instituição pelo tema, mas
e da necessidade do pequeno agricultor se inserir se tratava de outra conjuntura. A partir da década
nesse processo e permanecer no meio rural. Na de 1950, houve uma mobilização das populações
rurais em torno da reforma agrária, sobretudo sob
sequência, a análise adentra para alguns aspectos do
influência de novos atores sociais, cabendo aos
período do golpe civil-militar. Em boa parte desse
comunistas o papel de protagonistas na disputa pelo
período, a oficialidade da Igreja Católica revela
“controle” da população empobrecida do meio rural
uma performance ambígua no tocante às questões
com a Igreja Católica em particular.
agrárias e, ao pequeno agricultor em particular. Por As Ligas Camponesas começam no nordeste
fim, nas décadas de 1970 e 1980, há um processo brasileiro (Pernambuco) no início da década de
amplo de redefinição; nesse cenário são analisadas 1950. Elas só conseguem ter uma grande expressão
algumas pastorais, sua influência junto ao coletivo na luta por melhores condições de vida no meio
do MST e as redefinições desse junto à entidade- rural no período posterior ao segundo governo
mãe. A análise conclui com alguns processos que Vargas. A pauta da reforma agrária passou a ganhar
revelam a presença da Igreja Católica no nascedouro espaço no interior da agremiação, principalmente,
do MST, porém, redefinida em anos posteriores à quando ela esteve sob a liderança de Gregório de
constituição desse coletivo de luta social. Bezerra e de Francisco Julião. Esse último tornou-
se uma grande expressão no interior do Partido
Os antecedentes históricos do Comunista Brasileira (PCB), em particular,
nas questões que envolviam transformações na
envolvimento da Igreja Católica
estrutura fundiária brasileira. Em pouco tempo,
com a questão agrária – meados do as Ligas ganham corpo maior, espalhando-se
século XX por várias regiões do país, formando sindicatos,
organizando grupos de camponeses, em especial
Na história da organização popular no posseiros que historicamente foram excluídos
Brasil, a década de 1950 revela-se expressiva; talvez e marginalizados do processo produtivo e da
seja fruto dos amplos processos de urbanização possibilidade de apropriação da terra. O partido
e industrialização brasileira, do esgotamento das Comunista (PCB), muito presente no interior das
fronteiras agrícolas, da inserção mais intensa e Ligas Camponesas, envolve-se também com o meio
legalizada de partidos políticos e outras agremiações rural na luta pela reforma agrária, pela ruptura com
contrárias ao sistema capitalista e/ou ao seu a estrutura latifundista presente historicamente
formato do período, da presença da Igreja Católica no país e seu poder político, na organização dos
já constituída enquanto organização estruturada trabalhadores do campo. Esse processo todo
e centralizada através da CNBB. Na realidade, é vai se intensificar no início dos anos 60. Esse
importante que se diga que, para as lutas em torno da contexto de efervescência política, de propostas de
terra, nunca houve uma estrutura de oportunidades desenvolvimento social e progresso econômico, de
políticas que lhe tenha sido favorável. A luta pela contradições sociais e da propriedade privada da
terra no Brasil sempre foi expressão de ações de terra, cria-se um complexo conjunto de relações
repressão, mortes, torturas e assassinatos de muitas de difícil solução, principalmente quando envolve
lideranças, quando não muitas das iniciativas de a luta entre empobrecidos por políticas públicas e
organização popular ficaram sob as cinzas e/ou pelas estruturas sócio-jurídicas que ampararam a
clandestinas. dimensão da grande propriedade da terra.

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Nesse cenário, a partir da década de 1950, mesma em torno de algumas pastorais consideradas
a Igreja Católica apoiou a reforma agrária, porém, mais progressistas. O cardeal Dom Vicente Scherer
ao seu modo, talvez não em sintonia com propostas no Rio Grande do Sul foi o seu porta-voz, com
outras que, na década de 1950, fizeram-se sentir grande atuação através de jornais, rádios, homilias,
através das Ligas Camponeses, mais ao nordeste documentos e artigos escritos e assinados pela
do país e ao Master (Movimento dos Agricultores CNBB (RODEGHERO, 1998; BRUNEAU, 1979).
Sem Terra) no Rio Grande do Sul, aquele Na história da Igreja Católica no Brasil, talvez, esse
capitaneado, em boa parte, pelo Partido Comunista período do final da década de 1950 e início da de
e, esse último, pelo PTB do governador Brizola. No 1960 tenha sido o mais intenso nas ações contra a
entanto, é interessante que se diga que esse apoio presença de agremiações e de ideias comunistas. O
que indicamos da Igreja Católica consiste em duas contexto político do período, a efervescência social
fases bem distintas. No período anterior a 1964, a produzida por instituições políticas e movimentos
preocupação motiva-se pela prevenção às agitações sociais, mas cima de tudo pela realidade vivida
que ameaçavam o campo (LENZ, 2002, p. 598). Com por grande parte dos pequenos agricultores no
esse sentido, o bispo Dom Inocêncio Engelke, do país. Havia uma grande mobilização das massas
município de Campanha (Minas Gerais), em 1950, rurais por agremiações consideradas progressistas,
inaugura a primeira proposta de reforma agrária as quais politizavam a pobreza e as desigualdades
da Igreja no Brasil, com o documento “Conosco, sociais. Essa politização é que preocupava a elite
sem nós, ou contra nós, se fará a reforma agrária”, o religiosa e oficial da Igreja Católica. Havia Bispos
qual sistematizou as discussões da Primeira Semana que se declaravam a favor da reforma agrária,
Ruralista da Diocese de Campanha, que contou com da necessidade de exigência de justiça social.
a participação de 60 párocos rurais, 250 fazendeiros, Documentos da CNBB de 1954 deixavam clara a
mais de 270 professoras rurais, religiosos e preocupação social com a dignidade do homem
religiosas (CNBB, 1981a, p. 43-53). O documento do campo, porém, sem condenar abertamente o
chama a atenção para a necessidade de melhoria das latifúndio.
condições de vida da população no campo, através Não obstante essa inquietação, a qual
da participação do trabalhador nos lucros da envolve concorrência da tutela de grupos sociais, em
empresa agrícola e do acesso à propriedade privada. particular, os pequenos agricultores, a II Assembleia
Caso contrário, se a Igreja Católica não perceber Ordinária da CNBB (Conferência Nacional dos
o perigo iminente da penetração de agitadores no Bispos do Brasil), por meio do documento A Igreja e
meio rural, o documento sentencia: “Já perdemos a reforma agrária, em 1954, ressalta a pertinência de
os trabalhadores das cidades. Não cometamos a
uma reforma agrária na vida rural, em especial no
loucura de perder, também, o operariado rural”
que diz respeito à posse e ao uso da terra e aos meios
(CNBB, 1981a, p. 43-53).
de vida da população empobrecida do meio rural,
com identificação maior aos pequenos agricultores,
Disputas no interior do campo nas suas várias manifestações regionais do país, com
eclesiástico em torno da questão o objetivo de fixá-los a terra como proprietários. O
agrária documento apresenta o conceito de reforma agrária
elaborado pela CNBB, o qual consiste no conjunto
No período em questão, há um sentimento de medidas que modificam o atual estatuto jurídico-
anticomunista fortíssimo e explícito nos social da propriedade rural, tendo como objetivo:
documentos oficiais da CNBB. Nesse sentido, houve
uma cruzada ideológica da oficialidade da Igreja [...] vincular o homem a terra como
seu proprietário; possibilitar em larga
Católica para combater as ideias comunistas que
escala o acesso à terra àqueles que
estavam sendo disseminadas por partidos políticos, estejam aptos a se tornar proprietários
determinadas lideranças, bem como no interior dela e criar condições para que o homem

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obtenha, pela posse e uso adequado da estações de rádio e produções literárias, na educação
terra, os meios de proporcionar uma e formação de massas de camponeses (ALVES,
existência digna a si e à família, sem
ferir as legítimas exigências do bem 1979). O Concilio Vaticano II (1962-65) auxiliou na
comum (PAIVA, 1985, p. 88). renovação para o âmbito social da Igreja Católica
nesse período, em especial em sua preocupação
O desenvolvimento atrelado e dependente da com o rural, em seus planos de pastoral, em suas
segunda metade dos anos 1950, pregado e viabilizado diretrizes para o mundo político (a Revolução
pelo presidente Juscelino, encontrava eco no interior Cubana de 59 produziu mais tensões internas)
da oficialidade da Igreja por ser uma alternativa e para o mundo do trabalho (encíclicas papais
entre o ateísmo comunista e o “capitalismo iníquo”. contribuíram nesse sentido) (BEOZZO, 1994).
A ideologia cristã da encíclica Mater et Magistra (de Nesse amplo contexto de embates e
1961) dava respaldo nesse sentido. A Ação Católica posições, outro elemento histórico importante no
(movimento no interior da Igreja Católica, já nascido processo de desenvolvimento da compreensão e
em meados dos anos 40) se fortalece, legitima seu ação da Igreja sobre a questão agrária no Brasil foi
comprometimento com as transformações sociais, o I Encontro dos Bispos do Nordeste. Reunidos em
engajando-se na realidade social através dos vários Campina Grande (PB), durante dois dias, no mês de
movimentos (MATOS, 2003). Visões progressistas, maio de 1956, o encontro substanciou o Movimento
em adequação com a dinâmica política e social do Nordeste, ou seja, “o conjunto do comportamento
país, no interior do comando e da oficialidade da político que configurou a união regional entre
Igreja Católica, permitiram que isso se concretizasse. as classes subalternas, setores médios e certas
Renovação pastoral, mudança nas estruturas frações da classe dominante” (PAIVA, 1985, p.
sociais, nova presença da Igreja na sociedade e o 89). A essência do documento é o discurso sobre o
compromisso cristão com a realidade social, dão o Nordeste explorado, subdesenvolvido, e a proposta
tom desse período. de um projeto de industrialização, via alteração da
estrutura agrária (PAIVA, 1985, p. 89).
É igualmente verdade que no interior
Cabe destacar que a repercussão do referido
desses movimentos e no seu raio de
atuação, se plasmou pouco a pouco encontro se fez ecoar não somente na sociedade,
uma relação fraternalmente evangélica mas também sobre o Estado; diretrizes elaboradas
entre militantes, dirigentes, sacerdotes e no encontro foram incorporadas pelo governo
bispos, pois os membros do Ministério
hierárquico atuavam antes de tudo
JK. Conforme Albert Hirschman, as autoridades
como educadores de fé e recebiam dos eclesiais receberam a sanção da Presidência da
militantes e dirigentes de instituições de República para a execução de vários projetos para
inestimável valor sobre a realidade dos comunidades por meio de grupos de trabalho,
meios em que estes estavam inseridos
[...]. (BARROS, 2002, p. 78). composto por representantes de diferentes
agências. Esses grupos de trabalho ocupavam-se
A Igreja e o Estado, no período anterior com projetos que iam desde o abastecimento e a
ao golpe civil-militar, possuíam laços bastante purificação da água na cidade de Campina Grande,
estreitos. A instituição católica (CNBB), constituída no sertão, até a melhor utilização de açudes e
em 52, tendo Dom Hélder Câmara na sua frente, projetos de povoamento agrícola (HIRSCHMAN,
em especial no Nordeste e no Sul do Brasil, buscava 1965, p. 104). Sem dúvida, a Operação Nordeste,
auxiliar o trabalhador rural em suas organizações denominação desse movimento que envolveu o
e representações. O deslocamento dela para o poder público federal e a Igreja Católica, embrião
“campo social” permitiu uma “reinterpretação da da Superintendência do Desenvolvimento do
fé”. Os movimentos de Educação de Base (MEB) Nordeste (SUDENE), tem como um dos elementos
em defesa da escola pública e também para o meio constitutivos o I Encontro dos bispos do Nordeste
rural permitiram difundir informações, através de (PAIVA, 1985, p. 90). Percebe-se, nesse sentido,

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uma comunidade de interesses entre a esfera uma reunião extraordinária em 03 e 05 de outubro


governamental e a instituição católica no sentido de 1961, sob a presidência de D. Jaime de Barros e
de criar condições para a permanência de pequenos com a presença do núncio apostólico, D. Armando
agricultores à terra, como proprietários, para evitar Lombardi, elaborou a declaração A Igreja e a
o êxodo rural, bem como a inserção política de situação do meio rural brasileiro, o qual dava ênfase
grupos com outras filosofias sociais e religiosas, o à lógica produtivista no meio rural e o pequeno
que faria mal para as duas instituições em questão. agricultor como sócio desse processo.
Já no II Encontro dos Bispos do Nordeste,
realizado em Natal, em 1959, o conjunto do Uma guinada para a modernização
Episcopado da região considerou grave a situação
e ao desenvolvimentismo: do agrário
da população habitante na área rural em virtude
do atraso técnico, da concentração fundiária e da
para o agrícola
insuficiência de crédito. Para alterar tal realidade
No documento informado anteriormente,
social, os bispos sugeriram, entre diversas propostas,
uma ausência chama a atenção: a referência
a fixação do homem ao meio através do lote agrícola
ao sistema de posse e uso da terra e a reforma
e que os usineiros da Zona da Mata:
agrária. Essa Declaração episcopal destacava a
a) permitam que parte de áreas necessidade de integrar a agricultura brasileira ao
de terras dessas usinas, localizada ritmo do desenvolvimento nacional, enfatizando os
perto das casas dos trabalhadores e
seguintes aspectos: melhoramento das condições
porventura não-coberta de canaviais,
seja por eles utilizada na produção de de infraestrutura; transformações nas técnicas
gêneros de alimentação básica para eles de produção; aproveitamento de mão-de-obra
e para suas famílias; b) as usinas, tendo liberada pela modernização; promoção de uma
em vista o aproveitamento racional
econômico das áreas não-trabalhadas política econômica, abrangendo o regime fiscal,
com a cultura da cana, realizem, o crédito seguro social, o controle dos preços e o
diretamente, explorações de outras desenvolvimento das indústrias de transformação,
culturas, especialmente produtos de
alimentação, possibilitando, assim,
a modernização dos estabelecimentos agrícolas;
melhorar o sistema de abastecimento reafirmação do estabelecimento familiar como ideal
da Zona da Mata e a fixação de de estabelecimento agrícola; apoio à organização
trabalhadores na área do açúcar; c) haja
profissional dos agricultores; g) eliminação das
esforço ainda bem maior por parte de
determinados usineiros no sentido de disparidades regionais (CNBB, 1981c, p. 122-125).
humanizar as condições de vida desse Percebem-se pelos documentos tornados
grande grupo de menos afortunados públicos uma preocupação da oficialidade da Igreja
da população trabalhadora rural da
economia da agroindústria do açúcar, Católica com o desenvolvimento e o progresso
em certos casos, a viverem em condições agrícola; a dimensão agrária anterior cede espaço
terrivelmente difíceis (CNBB, 1981b, p. à agrícola, ou seja, à produção, crédito, incentivos,
93).
preços, tecnologia, proteção do estado, etc., em
correspondência com o modelo econômico
Contudo, as considerações da Igreja
desenvolvimentista que se consolidava no país
Católica sobre a reforma agrária, diante da crescente
atrelado ao capital estrangeiro, aos processos
influência do Partido Comunista e das Ligas
de internalização de capitais internacionais
Camponesas no interior do nordeste brasileiro,
(via multinacionalização) e ao macro pacote
a partir de 1961, ressaltam o caráter defensivo
da Igreja, cuja preocupação central de manter tecnológico denominado de revolução verde,
sua influência na sociedade torna secundária a subsidiado por agências de fomento, bancos e
preocupação com a questão agrária. Fato indicativo empresas agroindustriais norte-americanas. Ou
dessa alteração, a Comissão Central da CNBB, em seja, dimensões políticas, de disputas de espaço,

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poder e tutela no meio rural, aliam-se às de cunho descobrir os meios práticos de defender
econômico e mercadológico. o trabalho (CNBB, 1981c, p. 127).
Tanto a Revolução Cubana de 1959, quanto
a eleição de Jânio (1961) e a posse de João Goulart A CNBB, em 1963, pronuncia-se na defesa da
(1963) contribuíram em muito para que houvesse reforma agrária, ao apoiar a emenda constitucional
uma “guinada conservadora” no interior da Igreja que permitia a desapropriação por interesse social
Católica (BEOZZO, 1994). Grupos conservadores com indenização total ou parcial em dinheiro
atuaram com força no meio social através de ou em títulos da dívida pública (CNBB, 1981d).
marchas, manifestações populares, uso de rádios e É importante destacar que esse posicionamento
jornais para disseminar o perigo comunista, a defesa não teve caráter unânime do episcopado. Vozes
da fé, da liberdade e da família. Foi um período, sem dissonantes, disputas ideológicas, filosofia religiosa,
dúvida, de grande envolvimento da Igreja Católica poderes regionais e descentralizados, como foi o
com a dimensão política e ideológica dos rumos do caso do cardeal Dom Vicente Scherer no Rio Grande
país. Isso tudo vai se refletir na sua ação no meio do Sul, áreas prioritárias de atuação, apoio ao golpe
rural e nos combates aos movimentos sociais que civil-militar de 1964, dentre uma série de outros
aspectos que aqui não temos condições de enfatizar
possuem certa base política de cunho marxista,
e nem de aprofundar, marcaram as multifaces
ou que se imaginava que tinham dimensões nesse
da entidade. Nesse sentido, para a questão que
campo. Essas ações revelavam a não existência de
estamos desenvolvendo, formou-se um pequeno
consenso no interior da referida instituição. Fatos
grupo contrário à reforma agrária e discordante das
políticos vão revelando as múltiplas faces do campo
posições oficiais da CNBB, liderado pelos bispos D.
eclesial brasileiro no período.
Proença Sigaud e D. Castro Mayer (LENZ, 2002, p.
Em tom de disputa com o PCB e as Ligas
600). Numa perspectiva mais de ação, num âmbito
Camponesas, houve, no interior das pastorais
regional, o cardeal Dom Vicente Scherer sempre
sociais da CNBB, uma tentativa de demonstrar forte
se posicionou contrário à reforma agrária e às
apoio e presença da referida instituição no meio
diretrizes que documentos da CNBB evidenciavam
rural através da Juventude Católica Rural (JAC) e
no período. O referido líder religioso criou um
da Liga Eleitoral Católica (LEC); da sindicalização;
órgão promotor da organização dos pequenos
das Frentes Agrárias e do Movimento de Educação
agricultores, denominado de FAG (Frente Agrária
de Base (MEB) (CNBB, 1981c, p. 126). Além de
Gaúcha), com a intenção de criar organizações
alertar e exortar o clero a assumir uma postura ativa
sindicais, concorrer com o PTB, PCB e Ligas
no combate aos comunistas:
Camponesas na tutela dos pequenos agricultores.
Os comunistas, no campo como na Nesse sentido, destacamos, também, a carta
cidade, não se interessam realmente pastoral de Dom Inocêncio, bispo de Minas Gerais,
pelas soluções. Ao contrário: para o qual menciona o grande perigo comunista que a
eles, quanto pior, melhor. Mas o fato Igreja alardeava: “E os agitadores estão chegando
mais grave que denunciamos é que
os agitadores vermelhos, em várias ao campo. Se agirem com inteligência, nem vão ter
frentes, preparam-se para a tática de necessidade de inverter coisa alguma. Bastará que
guerrilha de acordo com os melhores comentem a realidade, que ponham a nu a situação
exemplos cubanos ou chineses. em que vivem ou vegetam os trabalhadores rurais”
Assim como não podemos parar no
mero anticomunismo simplista e (CNBB, 1976).
contraproducente, não podemos ser Muitos outros documentos na década e
ingênuos a ponto de entregar-nos a 1960 reiteram o caráter preventivo e anticomunista
grandiosos planos de recuperação da Igreja Católica, preocupada em manter o
econômico-social dos meios rurais,
esquecidos da retaguarda e dos flancos controle sobre os trabalhadores rurais. Destacamos
invadidos pelos guerrilheiros. Em cada depoimento de um bispo de São Paulo em 1960:
diocese, caberá à perspicácia do pastor “Quando o comunismo vos convidar para grupos

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e ligas de defesa dos vossos interesses, já deveis movimento vitorioso da revolução,


estar organizados em núcleos democráticos e verificou-se uma sensação de alívio e de
esperança, sobretudo e quase desespero
construtivos que desejamos ajudar a criar” (CNBB, em que se encontravam as diferentes
1960, p. 109). Segundo Salem (1981), os bispos classes e grupos sociais, a proteção
reformistas também se alarmaram com o perigo divina se faz sentir [...]. Ao rendermos
da “cubanização” ou do comunismo do país e graças a Deus que atendeu às orações
de milhões de brasileiros e nos livrou
apoiaram o golpe como uma espécie de saída do perigo comunista, agradecemos
segura, preventiva. aos militares que, com grave risco de
suas vidas, se levantaram em nome dos
supremos interesses da nação e gratos
Ambiguidades e ambivalências frente somos a quantos concorreram para
às ações repressivas do regime militar libertarem-na do abismo iminente”
(REB, 1964, p. 491, Grifo nosso).
No decorrer do Regime Militar, em especial
a partir de 1970, a Igreja Católica transita de uma Não obstante, ainda no início do golpe
postura defensiva a uma mais ativa em relação aos militar, a CNBB alertava para as injustiças. Dom
temas sociais, sobretudo no que tange à reforma Hélder Câmara, que, em abril de 1964, assumiu como
agrária (LENZ, 2002). Investida de uma intervenção arcebispo de Olinda-Recife, era a voz forte nessa
social proativa, a Igreja entra em conflito com o dimensão social da Igreja e nas ressalvas quanto à
Estado, segundo Lenz (2002), esse choque ocorreu visão tradicional da cristandade e do próprio golpe
em virtude de a Igreja discordar do caráter do Estado e regime militar de governo. As divergências no
(militar-tecnocrático), que defendia critérios de episcopado e na oficialidade da Igreja passaram a
modernização e racionalização no trato da questão ser notórias, estando a Igreja Católica, em meados
agrária (LENZ, 2002, p. 601). da década de 1960, numa espécie de “encruzilhada
Essa realidade política e social deixava histórica” (BEOZZO, 1994). A Ação Popular (AP),
a Igreja Católica, em sua oficialidade, muito criada em 61, oriunda desses conflitos entre o
episcopado e lideranças de movimentos no interior
apreensiva, pois além da possibilidade de alterar
da própria instituição, passou a ser um quadro de
quadros de adeptos em seu horizonte ideológico,
grande expressão na formação de lideranças de
poderia abrir espaços para facções ou grupos de
esquerda na política brasileira. Porém, com o passar
outra roupagem em seu interior, os quais estavam
dos anos do golpe civil-militar, a AP foi minada por
desenvolvendo ações em adequação às demandas
dentro, suas lideranças reprimidas, bem como foram
dos camponeses como é o caso da Ação Popular
desarticulados vários movimentos independentes,
(AP) e da Ação Católica (AC) (ALVES, 1979;
mas de inspiração católica.
BASTOS, 1984). Expressivo disso foi o documento
Em 1968, com o Concílio de Medellín na
escrito pela Comissão Central da CNBB, em junho
Colômbia, a Igreja latino-americana reafirmou as
de 1964, logo após o golpe, o qual deixou explícito
bases da doutrina social inaugurada com o Concilio
seu apoio à ação militar no país.
Vaticano II (1962-5), principalmente em torno da
O Brasil foi há pouco cenário de graves consciência para os problemas sociais, as questões
acontecimentos que modificaram de âmbito cultural (em especial os povos indígenas)
profundamente os rumos da situação e novos caminhos para pastorais sensíveis à
nacional. Atendendo à geral e
angustiosa expectativa do povo realidade dos pobres do continente. Os camponeses
brasileiro, que via a marcha acelerada estavam no início da fila deste “compromisso com
do comunismo para a conquista do os pobres” (CELAM, 1980, p.12).
poder, as Forças Armadas acudiram em A Igreja Católica, em sua oficialidade, tinha
tempo e evitaram que se consumasse
a implantação do regime bolchevista receio de perder seu prestígio; os militares eram
em nossa terra. [...]. Logo após o anticomunistas e defensores da “civilização ocidental

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Igreja Católica, questão agrária e a luta social no campo (1950-1980) – João Carlos Tedesco e Emerson Neves Da Silva

cristã” (MAINWARING, 1989). Porém, aos poucos, no meio rural para favorecer a expansão
os militares mostraram sua face, suas práticas e para da empresa capitalista, particularmente
os grandes grupos econômicos”
quem estavam governando. Seus acordos com os (MARTINS, 1989, p. 48).
grandes capitais (nacionais e internacionais), seu
endurecimento político, sua centralidade política, a Contrapondo-se, pelo menos em parte,
“guerra” contra os direitos humanos fundamentais frente aos processos excludentes da modernização
dos cidadãos, produziam certo descontentamento socioeconômica em andamento pelo Regime
na oficialidade da Igreja Católica. Um documento Militar, a Igreja Católica evoca o direito natural
da CNBB de 1969, após o AI-5, deixa claro que e a dignidade da pessoa humana para defender
os direitos humanos como anteriores a qualquer
“[...] é firmado o direito da Igreja
de pronunciar-se sobre assuntos ordenamento jurídico do Estado. Enquanto uma
políticos quando estiver em questão amostra precisa da incompatibilidade da concepção
o bem da população. [...]. A situação de política encarnada pela Igreja com o modelo de
institucionalizada no mês de dezembro
desenvolvimento econômico do Regime Militar, o
[AI-5] possibilita arbitrariedades,
entre as quais a violação de direitos qual negligenciava os direitos humanos, destaca-se
fundamentais, como o de defesa, de o documento elaborado pela 15° Assembleia Geral
legitima expressão do pensamento e da CNBB, Exigências cristãs de uma ordem política
de informação; ameaça à dignidade
(CNBB, 1977), o qual enfatiza a “clara precedência
da pessoa humana [...], institui um
amplo poder que torna muito difícil o de humanos, individuais e sociais, baseados no
diálogo autentico entre governantes e direito natural, portanto, anteriores a qualquer
governados” (CENTRO DE PASTORAL ordenamento jurídico e que esse ordenamento
VERGUEIRO, 1986, p.120).
apenas reconhece, não cria”. Também se observa, no
posicionamento da Igreja frente ao Estado, a defesa
Esse documento do final da década de
de uma nova ordem social baseada nos valores
1960 apresenta uma ideia da mudança que foi se
de justiça e solidariedade. Lenz (2002) sintetiza a
constituindo na relação entre Igreja e Estado no
concepção dessa nova sociedade da seguinte forma:
período. Membros da Igreja foram reprimidos,
acusados de “agentes do comunismo”. A própria A Igreja dizia ter consciência de agir
Igreja se viu na iminência de redefinir sua aliança motivada por uma visão de fé inspirada
com o regime e com as classes dominantes que o no testemunho cristão. Sob o influxo
da inspiração brotada do Concílio
sustentavam (MATOS, 2003).
Vaticano II e dos posicionamentos
O golpe militar de 1964 veio a fortalecer essa das Conferências do Celam,1 os
tendência repressiva aos camponeses pela dimensão documentos desse período se destacam
governamental e deu à questão agrária outro por uma visão antropológica, que
tem em vista o homem todo; por uma
enquadramento, numa tentativa de despolitizá-la,
doutrina social, baseada numa visão
visto que os militares impuseram ao Congresso filosófica e transcendente da vida
Nacional uma modificação constitucional que humana, desembocando num projeto
viabilizasse a reforma agrária (o Estatuto da Terra). de sociedade, orientado a uma ampla
transformação econômica e social,
tendo como base e meta o ser humano,
“O Estatuto da Terra seria, na verdade,
dando prioridade ao trabalho sobre o
um instrumento de modernização do
capital, unindo políticas de crescimento
campo e de estímulo à disseminação
com políticas sociais e participativas
da empresa rural. Condenava-se o
(LENZ, 2002, p. 601).
latifúndio e também o minifúndio,
isto é, a agricultura praticada por
grande número de pequenos lavradores Motivado pelas disputas de terras entre
no país. De fato, o governo militar posseiros e os latifundiários, nas quais a Igreja
propunha, pelo Estatuto da Terra, uma
Católica se fazia presente, sobretudo na Amazônia
intervenção no direito de propriedade e

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e no sul do Brasil, havia, no final da década de 1970, alternativas ao modelo capitalista enquanto uma
uma organização de sem-terra que se negavam a experiência social que respeita a dignidade humana
aderir ao programa governamental de colonização e os direitos dos trabalhadores:
da Amazônia. Nesse sentido, havia o apoio de agentes
de pastoral, bem como de religiosos e religiosas Formas de propriedade, alternativas
à exploração capitalista, abrem
na organização de meeiros e outras categorias de claramente um amplo caminho, que
trabalhadores da região Nordeste. Como expressão viabiliza o trabalho comunitário, até
disso, a 18° Assembleia Geral da CNBB produziu o em áreas extensas, e a utilização de
uma tecnologia adequada, tornando
documento “Igreja e Problemas da Terra” (CNBB,
dispensável a exploração do trabalho
1980). Na primeira parte do documento, os bispos alheio. Há no país uma clara oposição
fazem uma crítica contundente ao modelo de entre dois tipos de propriedade. De
modernização do campo implantado no país, a um lado, o regime que leva o conflito
aos lavradores e trabalhadores rurais,
partir de 1973, que resultam na concentração do
que é a propriedade capitalista; de
capital e do poder, advertindo: outro, aqueles regimes alternativos de
propriedade, mencionados antes, que
[...] desejo incontrolado de lucros leva estão sendo destruídos ou mutilados
a concentrar os bens produzidos com pelo capital: o da propriedade
o trabalho de todos nas mãos de pouca familiar, como os lavradores do sul e
gente. Concentram-se bens, o capital, de outras regiões; o da posse, no qual
propriedade da terra e seus recursos, a terra é concebida como propriedade
concentrando-se ainda mais o poder de todos e cujos frutos pertencem
político, num processo cumulativo à família que nela trabalha, regime
resultante da exploração do trabalho difundido em todo país e, sobretudo, na
e marginalização social e política da Amazônia Legal; a propriedade tribal e
maior parte do nosso povo (CNBB, comunitária dos povos indígenas e de
1980, p. 142). algumas comunidades rurais (CNBB,
1980, p. 152, Grifo nosso).
Em decorrência desse processo, as
populações constituídas por trabalhadores rurais Aprofundando a análise acerca da realidade
que “não conseguem continuar como posseiros, social do campo brasileiro, os bispos, de uma ala
arrendatários, colonos, parceiros, moradores; do campo eclesiástico, enfatizam a função social
transformam-se em proletários, em trabalhadores da denominada propriedade privada da terra, a
à procura de trabalho, não só no campo, mas na qual se opõe ao conceito de propriedade capitalista.
cidade” (CNBB, 1980, p. 144).2 Na segunda parte Segundo os bispos que assinaram o documento,
do referido documento, a abordagem caracteriza- a propriedade privada da terra “é usada como
se pelo cunho doutrinal. Os bispos reafirmam a instrumento do próprio trabalhador e de sua
concepção da Igreja referente à propriedade, a qual família, ou cultivada pelo proprietário com mão-de-
concebe a terra como um dom de Deus em benefício obra assalariada, tendo função social e respeitando
de todos, fazendo alusão à doutrina de Santo Tomás, os direitos fundamentais do trabalhador” (CNBB,
segundo a qual a apropriação individual é um dos 1980, p. 151); ao passo que, a propriedade capitalista
meios para realizar a destinação universal dos notabiliza-se “como instrumento de exploração do
bens a todos. Também fazem menção ao Concílio trabalho alheio” (CNBB, 1980, p. 151). A terceira
Vaticano II e citam uma afirmação de João Paulo parte do documento é marcada pelo tom de
II: “Sobre toda a propriedade privada pesa uma proposição e mobilização da Igreja Católica diante
hipoteca social” (CNBB, 1980, p. 150). do quadro de deterioração da dignidade humana
O documento menciona o fato de a terra em virtude da modernização agrícola. Os bispos
de trabalho ser um direito popular de propriedade assumem sete compromissos pastorais: submeter
familiar, tribal, comunitária e de posse, e ressalta terras possuídas pela instituição religiosa a um
a relevância social das formas de produção estudo quanto ao seu uso adequado; denunciar

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Igreja Católica, questão agrária e a luta social no campo (1950-1980) – João Carlos Tedesco e Emerson Neves Da Silva

as situações abertamente injustas e as violências dos movimentos sociais, criava, em princípio, as


que se cometem no campo; apoiar os esforços condições para a realização de uma reforma no
por uma autêntica reforma agrária; defender as direito de propriedade da terra. A repressão incidiu
legítimas aspirações dos trabalhadores urbanos; sobre um aspecto particular da ação dos católicos: a
condenar tanto o capitalismo como o coletivismo educação e a conscientização dos camponeses.
marxista; aprofundar as comunidades eclesiais
de base, rurais e urbanas; e vivenciar o Evangelho Entre a repressão e a organização
(CNBB, 1980, p. 155). O documento ilustra a social: a construção de amplas
ameaça do desenvolvimento de novas formas de
representações dos agricultores
neocolonialismo referindo-se aos grandes projetos
de produção de grãos na região centro oeste do
Em meados 1970 surge a CPT produzida
país. Finalizando o texto, os bispos que assinam o
e legitimada no interior de pastorais sociais do
documento destacam que, para alterar a realidade
meio rural. O objetivo da mesma era auxiliar na
de injustiça e exploração do trabalho da maioria
organização da luta pela reforma agrária, contra a
do povo, é necessário mudar a mentalidade e a
usurpação da terra camponesa em várias regiões
estrutura de funcionamento de nossa sociedade,
do país, em especial no centro-norte, evangelizar a
pois, enquanto
luta social pela terra, fundamentando-a na liturgia
[...] o sistema político-econômico cristão-católica, na tradição bíblica e na cultura
estiver a favor dos lucros do pequeno camponesa em geral. Em decorrência das condições
número de capitalistas, e enquanto sociais e políticas violentas e brutais, a Igreja Católica
o modelo educacional servir de criou, em 1972, o Conselho Indigenista Missionário
instrumento de manutenção desse
sistema, inclusive desestimulando a (CIMI), que reformularia inteiramente a pastoral
vida rural e seus valores, então não indígena, e em 1975, a Comissão Pastoral da Terra
terá solução verdadeira a situação de (CPT), para articular o trabalho das diversas
injustiça e de exploração do trabalho da
regiões em favor dos direitos dos trabalhadores
maioria (CNBB, 1980, p. 156).
rurais (MARTINS, 1994; CARINI, 2005). Ainda,
A Igreja Católica, de uma geral, queria a instituição mobilizou-se para combater as
reformas pelas quais as barreiras de resistência questões do capitalismo e da violência no campo
do latifúndio atrasado fossem rompidas e que com documentos episcopais com o objetivo de
desenvolvimento econômico quebrasse aquelas ganhar mais força e poder. Nesse contexto, a CNBB
velhas relações de dependência e pobreza. Além destacava que
disso, o regime militar distanciou-se da Igreja ao
A Igreja vigilante está atenta aos
perseguir membros da entidade católica. Martins direitos humanos, comprometida com
(1994, p. 118) afirma que, os direitos dos pobres e oprimidos,
voz dos que não têm voz. Uma Igreja
Neste desencontro, os rumos da Igreja se comprometida com a dignidade do
separam dos rumos do Estado, fato que homem e consciente de que a libertação
ficará claro a partir de 1968 com o início dos pobres passa pelo rompimento das
de um longo e doloroso ciclo de prisões cadeias que escravizam não só o seu
de religiosos e cristãos engajados, além trabalho, mas também a sua consciência
do assassinato, em 1969, do padre (CNBB, 1979, p.6).
Antônio Henrique, justamente auxiliar
de dom Hélder Câmara. A partir do final da década de 1970, a Igreja
Evangélica de Confissão Luterana no Brasil aligou-
A ditadura desencadeou a repressão no se com mais intensidade ao campo religioso sensível
campo, fazendo cessar, aparentemente, a desordem às demandas dos subalternizados, em particular,
rural e, ao mesmo tempo em que caçava as lideranças também no meio rural junto a indígenas e pequenos

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agricultores. Ela organizou sínodos, encontros outros setores, trabalharam na conscientização das
ecumênicos, os quais acentuavam a opção pelos pessoas e fortaleceram iniciativas de organização
pobres. Motivadas por estas opções eclesiais, ainda social. No final da década de 1970, quando o
em pleno regime de repressão, lideranças e setores regime militar dava sinais de enfraquecimento,
religiosos empreenderam iniciativas de trabalho iniciaram novos movimentos sociais populares, em
junto às camadas mais pobres da população com particular, no campo do sindicalismo entendido
o chamado trabalho de “conscientização de base”. como “combativo”, ou o “novo sindicalismo”
Estas pastorais específicas e pioneiras, junto com (BASSANI, 1986).

Figura 1: A presença das forças militares em acampamento no norte do Rio Grande do Sul, em agosto de 1983.
Fonte: Daniel de Andrade. A luta dos trabalhadores Sem-terra. Álbum de fotografias.

Na década de 1970, uma ala da CNBB com o processo de organização dos trabalhadores
assume com veemência a luta pela terra e busca fazer de até então em nível de país. O mesmo extinguiu
valer o Estatuto da Terra (de 1964). Nessa liderança definitivamente as Ligas, manteve o sindicalismo
está D. Helder Câmara, bem como alguns bispos rural no interior da Igreja Católica, ou melhor,
no Sul do Brasil. No entanto, D. Vicente, já como confiando em sua mediação (DALLA NORA, 2002).
cardeal, manteve-se irredutível e assumiu para si Porém, no final da década de 1970, conflitos sociais
a fundamentação ideológica e prática da FAG no em torno da questão da terra eclodiram. Alguns
Estado que, não obstante, não destoava em vários contra o latifúndio, outros envolvendo indígenas,
outros aspectos da oficialidade da Igreja Católica muitos deles contra o estado, exigindo a aplicação
no Brasil, principalmente em torno do combate às do Estatuto da Terra (esse, elaborado em 1964
orientações marxistas. pelos militares), incorporação de direitos sociais,
O golpe civil-militar de 1964 encarregou-se, seguridade social, etc. Muitos desses conflitos eram
por toda a década de 1970 de dificultar e/ou romper mediados pelas ações pastorais, em particular, a

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Igreja Católica, questão agrária e a luta social no campo (1950-1980) – João Carlos Tedesco e Emerson Neves Da Silva

Comissão Pastoral da Terra, o Conselho Indigenista os oprimidos assumissem a sua autonomia política
Missionário, as Comunidades de Base, essas em e intelectual, ou seja, entendessem a realidade
gestação, dentre outras mediações políticas que que lhes cercava em todas as suas dimensões;
foram se constituindo. mais precisamente, as causas e os mecanismos de
No início dos anos 80, a principal manutenção da exclusão econômica, social e política
agremiação de luta social pela terra e de grande da população latino-americana. Tão importante
mediação da ala progressista e combativa da Igreja quanto intervir socialmente era ter clareza e
Católica, é o MST. Esse é fruto de uma construção condições de pensar a práxis sem necessitar de
social mediada por atores sociais representativos tutela cognitiva exterior.
da Teologia da Libertação. O arcabouço teórico do Nesse sentido, a transformação social
Movimento é delimitado originariamente a partir era compreendida como o processo de mudança
da influência do trabalho pastoral e do ideário da daquela sociedade, impregnada de contradições
Teologia da Libertação. No entanto, esse encontro socioeconômicas em decorrência do modelo
não foi refratário às contradições. Os conceitos econômico. A sociedade vislumbrada pelos agentes
centrais da Teologia da Libertação: autonomia, de pastoral - a denominada “Terra Sem Males” -
transformação social, protagonismo histórico é a antítese da sociedade capitalista. Em suma, é
contribuíram para o processo de distanciamento do marcada pelo trabalho cooperativo, pela valorização
Movimento do campo de influência da Igreja. do ser humano acima do material, pela existência de
Na década de 1980, a oficialidade da Igreja democracia política e econômica capaz de produzir
Católica reafirma sua opção pelos pobres, adentrando a equidade social e pelo modelo econômico
para a discussão dos direitos humanos, pela oposição orientado para as necessidades e os interesses dos
sindical, pela luta pela redemocratização do país, da seres humanos, e não da reprodução do capital.
pobreza que se generaliza, pela reorganização social No entanto, por mais que esse ideário
e política, pelo Estado de Direito e contra as ações dialogasse com as concepções do MST, após sua
do FMI. Documentos da CNBB são elaborados estruturação, a partir de 1986, surge a oposição
nesse sentido dando ênfase à conjuntura política, à das ideias relativas à estratégia de atuação do
sua missão evangelizadora, aos valores éticos e de Movimento. A metodologia de trabalho de investir
justiça, à necessidade de reconstituir instituições em ações coletivas efetivas, caracterizadas pela ampla
democráticas. O trabalho da Igreja junto ao participação dos atores em todas as instâncias de
Movimento dos Sem Terra (MST), na sua origem, direção, empregada pela Igreja progressista, depara-
foi coerente com a Doutrina Social da Igreja e se com a nova orientação do MST de estabelecer
inspirado na prática da Teologia da Libertação. uma centralização nas decisões do movimento. O
Exaltava a população degradada pela expansão e ideário do MST, ao valorizar a questão da autonomia
aceleração do modelo de desenvolvimento baseado política, uma herança da Igreja Católica em suas
na internacionalização desmedida do capital a ações pastorais, estabelece, com a ela e, também,
organizar-se para estabelecer outro modelo de com outras instituições ligadas a ela, uma relação
desenvolvimento, considerado mais justo e que de distanciamento no que se refere à reflexão e à
contemple os subalternizados do meio rural. construção da leitura da realidade.
Nesse processo de construção, era relevante que

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Figura 2: Romaria da Terra em 1982, na Encruzilhada Natalino, norte do RS.


Fonte: acervo pessoal do Padre Arnildo Fritzen.

Assim como a CNBB, em suas diretrizes dimensão política, ritualística e de significação.


ligadas a terra e aos pequenos agricultores, nas A Bíblia, suas passagens em torno do sofrimento,
suas várias matizes e expressões coletivas regionais sacrifício, da mística da cruz, começaram a ser
do país, o Movimento dos Agricultores Sem Terra questionadas pelo MST, bem como a presença de
(MST), surgido em nível de país no início da década outras igrejas e suas interpretações variadas do
de 1980, também nunca foi uma entidade afinada campo teológico demonstravam certa redução
em suas múltiplas ações, estratégias, posições, do poder legitimador e aglutinador que a Igreja
representações, mediações etc. Múltiplas disputas Católica até então sempre teve.
internas deram o tom de uma entidade complexa,
diferenciada, conflituosa, etc., em correspondência Considerações finais
com a luta social pela terra. No início da década
de 1990 havia um grande conflito instituído entre Buscamos analisar alguns aspectos que
o MST, já consolidado enquanto agregador da denotam a preocupação e as mediações da Igreja
luta social e política pela terra, e outros grupos Católica no cenário próximo à constituição de
mediadores. Os conflitos se manifestavam também movimentos sociais de luta pela terra, dentre
em termos de opções de ações, metodologias e eles, o MST. Vimos que as medições de um grupo
representações em quadros sociais e políticos do campo eclesial católico junto às lutas dos
externos e internos, em especial entre a CPT e o pequenos agricultores tiveram várias fases e faces,
MST. O conteúdo das ações efetivadas pela CPT e expressaram conflitos, tomadas de posição, lutas
outros representantes de igrejas não consensulizava internas na instituicionalidade da Igreja Católica.
com decisões do MST, principalmente em sua A primeira fase compreende antes do golpe militar

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de 1964, quando a Igreja Católica tinha uma grande sociais, constituiu importantes espaços para os
preocupação em ter o controle social no meio rural, trabalhadores rurais e urbanos lutarem contra as
ao mesmo tempo reivindicava direitos, cidadania e injustiças e por seus direitos. A CPT, principalmente
justiça social para manter esse coletivo no meio rural a partir de 1979, com ampla expressão no interior
nas atividades agrícolas. O objetivo era, também, do país, orientou a formação das lideranças que
fortalecer os agricultores para que permanecessem conduziram a organização dos sem-terra, que
ligados à Igreja. passariam a pressionar as autoridades para o
Contudo, com o golpe militar, esse grande assentamento de reforma agrária. Assim, a Igreja
medo que a Igreja tinha do avanço das facções Católica, através de um campo eclesiástico unido em
ligadas ao comunismo acabou sendo eliminado torno da CPT, passou a ser o alicerce fundamental
com a repressão promovida pelos militares a todos na constituição dos MST.
os que destoavam de sua ideologia e do status quo A partir de meados dos anos 80, novas
político do período. Outra dimensão expressava- dimensões políticas e outras mediações, em
se em meados da década de 1960, e que norteou particular, a partidária, redefiniram o papel central
as deliberações do Concílio Vaticano II, a qual da Igreja Católica junto ao coletivo do MST em
apontava em direção ao compromisso da Igreja para nível de Brasil. Ela foi perdendo espaços para outros
com as causas populares. grupos, os quais passam a racionalizar as ações do
Porém, em nível nacional, a oficialidade campo religioso e adentrando mais para esferas
esteve atrelada às diretrizes sociais e políticas que político-partidárias. Esse processo revelou uma
o regime militar impôs. Mas isso tudo não se deu reconfiguração do MST, em suas diretrizes, ações
sem conflitos e tensões internas. Talvez esse período e pedagogia de orientação coletiva. Porém, essa
tenha sido um dos mais tumultuados da oficialidade nova realidade revelou, também, novas dimensões
da Igreja, organizada em torno da CNBB. Várias presentes no próprio interior da Igreja Católica e de
pastorais e linhas de evangelização foram acionadas outras que, sem sombra de dúvidas, alteraram seus
com ou sem apoio da referida instituição. Grupos quadros de mediação, seus vínculos institucionais
sociais, em suas lutas sociais, possuíam mediação com determinados movimentos sociais, um deles
de sujeitos e/ou organizações do campo eclesial foi a luta pela terra na esteira da reforma agrária.
e de lideranças leigas, porém sem vínculos com a No entanto, é bom que se ressalve e se enfatize que
oficialidade da Igreja. muitos dos rituais e ações produzidas no interior
Os anos 70 revelaram certa alteração e/ dos acampamentos de luta pela reforma agrária
ou redefinição nas diretrizes da CNBB. Os seus são ainda hoje os que foram cristalizados nos
documentos são claros no sentido de que o regime de anos 80 quando o campo religioso, organizado e
exceção não lhe era mais de todo agradável. Muitas determinado por um campo eclesiástico específico,
das práticas opressivas desse atingem lideranças do os disseminava.
campo eclesiástico ou ações do campo religioso em
prol dos excluídos, doutrinas e rituais. Narrativas Notas
em torno de noções como libertação, exclusão,
liberdade, reformas, direitos e organização popular 1 O autor refere-se às Conferências Episcopais de
Medellín (1968) e Puebla (1979), nas quais a Igreja
eram constantes nessa nova dimensão teológica e
Católica firma a opção preferencial pelos pobres e sua
evangélica, bem como elementos do campo social leitura da realidade social à luz de uma ética cristã,
estrutural (economia, dependência estrangeira, libertadora e evangelizadora.
multinacionalização, imperialismo, dentre outras) e 2 Os lavradores, assalariados, posseiros, arrendatários,
da hierarquia e do vínculo com o estado e o poder meeiros, peões de estância, agregados, dentre outros que,
no interior da própria Igreja Católica. em termos quantitativos, somavam centenas de milhares
em todo o Brasil por toda a década de 50, eram os sujeitos
Essa nova dimensão que alia macro- e atores sociais que expressavam as contradições da
questões da sociedade brasileira com as pastorais propriedade e viram-se excluídos pelas novas diretrizes

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políticas e econômicas do país. Esse processo todo foi CNBB. Estudos da CNBB – Pastoral da Terra. São
agregado e matéria-prima para as lutas sociais, em Paulo, Paulinas, 1976.
particular das Ligas Camponesas. No seu conjunto e em
suas especificidades, as lutas sociais pela terra no período
CNBB. Exigências cristãs de uma ordem política.
revelavam o lado contraditório e atrasado da estrutura
latifundista e irracional em termos econômicos. No Rio São Paulo: Paulinas, 1977.
Grande do Sul, segundo o IBGE, eram contabilizados
em mais de duas centenas de milhares, contingente CNBB. Estudos da CNBB – Pastoral da Terra. São
considerado imenso num estado de colonização oficial Paulo: Paulinas, 1979
e de performance agrícola em termos econômicos no
período (GEHLEN, 1983) CNBB. Igreja e Problemas da Terra – Comunicado
Mensal, ano 29, n° 329, CNBB, Brasília, fevereiro de
1980.
Referências
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ALVES, Márcio Moreira. A Igreja e a política no ou contra nós se fará a reforma agrária. Campanha/
Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979. MG. 1950. In: Estudos da CNBB 11 – Pastoral da
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renovação que marcou a gênese da CNBB. Revista CNBB. Declaração dos Bispos do Nordeste.
Encontros Teológicos, 17, n. 32, p. 78-82, 2002. Pastoral da Terra. São Paulo: Edições Paulinas,
1981b.
BASSANI, Paulo. Frente Agrária Gaúcha:
ação política e ideológica da Igreja Católica no CNBB. Declaração da Comissão Central da
movimento camponês no Rio Grande do Sul. Porto CNBB. A Igreja e a situação do meio rural brasileiro.
Alegre: UFRGS, 1986. Pastoral da Terra. São Paulo: Edições Paulinas,
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BASTOS, Elide. As Ligas Camponesas. Petrópolis:
Vozes, 1984. CNBB. Mensagem da Comissão Central da CNBB.
Pastoral da Terra. São Paulo: Edições Paulinas,
BEOZZO, Oscar. A Igreja do Brasil: de João XXIII 1981d.
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Petrópolis: Vozes, 1994. (Col. Igreja do Brasil). DALLA NORA, Helenice. A organização sindical
rural no Rio Grande do Sul e o surgimento do
BRUNEAU, Thomas. Catolicismo brasileiro em sindicato dos trabalhadores rurais de Frederico
época de transição. Petrópolis: Vozes, 1979. Westphalen (1960-1970). 2002. Dissertação
(Mestrado em História) – Universidade de Passo
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