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Comunicação e Estudos Visuais I – Vanda Gorjão

Cultura Visual e Comunicação Visual - Um campo vasto de Teorias da Imagem.

O ATLAS MNEMOSYNE DE ABY WARBURG


PENSANDO COM IMAGENS
Em 1924 Aby Warburg deu início a seu “Atlas Mnemosyne”, então um trabalho ímpar no que diz
respeito ao método e ao uso para as artes visuais. Até aquele momento, quase ninguém tinha
realizado trabalhos com fotografia.

Warburg afixou mil reproduções fotográficas com grampos sobre painéis forrados de tecido preto. A última
versão do Atlas Mnemosyne continha, por fim, 63 painéis de 170 por 140 centímetros, a serem publicados
de forma que todos os detalhes das ilustrações se mantivessem visíveis.

Hoje em dia, tais arranjos de imagens são corriqueiros. Esses painéis chamados moodboards são utilizados
como ilustrações reais ou como coleções virtuais na internet em todos os setores possíveis da vida
profissional e privada. Eles auxiliam na coleta de ideias, são úteis como forma de apresentação e mantêm-
se sempre flexíveis.
Por ocasião da celebração do 150° aniversário de Aby Warburg, o Centro de Arte e Mídia (ZKM) de

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Karlsruhe expõe uma reconstrução total do Atlas de Imagens Mnemosyne, comentada, atualizada e
complementada por 13 proposições de artistas contemporâneos.

Bilderatlas Mnemosyne (Atlas de Imagens Mnemosine) era um projecto de Aby Warburg, historiador de arte e filósofo,
que consistia num conjunto de 63 painéis (compostos entre 1924 e 1929), onde estavam “agrupadas” perto de mil
imagens, desenhos, pinturas, páginas de livros, etc.

HISTÓRIAS DE FANTASMAS PARA ADULTOS

“A menina em viagem no flyer do anúncio é uma ninfa decadente, assim como o marinheiro é uma Nice”,
anotou Warburg em 1929 no seu diário sobre a sobrevivência de gestos e motivos comuns na Antiguidade
que continuaram a ser usados na arte comercial dos anos 1920. Para demonstrar essa perpetuação,
Warburg utilizava reproduções de pintura, arte gráfica e escultura, bem como mostras de arte aplicada:
carpetes, painéis genealógicos, fotografias ou anúncios publicitários. Ele chamava seu atlas de imagens de
“histórias de fantasmas para adultos”.

Nas anotações de Warburg, há diversas propostas de subtítulos possíveis para a publicação da ampla obra –
cada uma mais complicada que a outra. Ou seja, um sinal da complexidade da matéria e da dificuldade de
articulá-la verbalmente. A compilação das imagens em painéis individuais, por outro lado, é capaz de criar
pontes entre os séculos, quando não entre milênios, e isso de maneira concisa e sem palavras. Como
mostram as anotações de Warburg, a publicação então planejada não deveria conter muitas palavras,
excetuando-se o texto de introdução e algumas poucas explicações.

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O MITO “MNEMOSYNE”

Apesar dos esforços do círculo mais próximo de pesquisadores em torno de Warburg, o Atlas acabou por
não ser completado nem publicado após sua morte. Para a exposição no ZKM, foi usada a última versão do
Atlas de forma reconstruída. Foi também possível identificar a proveniência de quase todas as fotografias.
Há quatro anos o “Grupo de pesquisa Mnemosyne”, formado maioritariamente por artistas, ocupa-se do
Atlas de Warburg. O grupo reúne-se regularmente no 8° Salão de Hamburgo, um espaço no centro da
cidade financiado por artistas, curadores, historiadores da arte e escritores para “combinar ali, em
experimentos práticos, arte e teoria, produção e pesquisa”. Para a exposição no ZKM, foram reconstruídos
63 painéis originais em tamanho original, dois deles com o material das reproduções originais. Essa foi a
primeira vez em que o grupo de pesquisa apresentou seu trabalho com e sobre o Atlas para uma discussão
em âmbito maior. Na apresentação, a versão de Warburg manteve-se intacta. Comentários, explanações e
recomendações de interpretação dos painéis encontram-se em uma série de cadernos cujo título
é Baustelle (canteiro de obra, literalmente). Além disso, foram convidados 13 artistas, entre eles Olaf
Metzel, Paul McCarthy e Peter Weibel, para criar seus próprios painéis no formato original. Com isso, eles
demonstram que tanto obras de arte quanto os resultados de pesquisas acadêmicas podem ser visualizados
segundo princípios semelhantes de apresentação.

Depois de cem anos, a obra continua incompleta e aberta para todo aquele que quiser continuar a pensar a
respeito. Isso faz com que ela seja interessante não apenas para a história da arte e para as artes visuais,
mas também para os próprios artistas. Hoje, trata-se menos de decifrar o Atlas Mnemosyne de Aby
Warburg através de instruções de leitura de cada painel individualmente, e mais de ver os painéis como um
convite para visualizar complexas reflexões sobre a imagem. Talvez seja em função da “reserva reverente”
das pessoas que o circundavam, como observa Ernst H. Gombrich em sua biografia de Aby Warburg, que o
projeto Mnemosyne acabou nunca podendo ser concluído. A forma como Warburg aborda este amplo tema
e método dá a impressão de ser muito individual, quase particular. E talvez seja justamente esse olhar
aberto sobre o pensamento do erudito o que fascina e inspira ainda hoje.

Abraham Moritz “Aby“ (1866–1929) nasceu em uma família de banqueiros de Hamburgo. Renunciou ao
direito de assumir a empresa familiar na condição de mais velho em prol do irmão mais novo, sob a
condição de poder comprar durante toda a vida qualquer livro de que precisasse. Sua exigência foi aceita.
Warburg estudou História da Arte em Bonn, Munique, Estrasburgo e Florença e escreveu sua tese de
doutorado sobre o pintor e desenhista renascentista italiano Sandro Botticelli. Depois de viajar para os EUA
e de uma estada mais longa em Florença, Warburg começou, em 1902, a construir sistematicamente sua
Biblioteca Warburg de Ciência da Cultura (Kulturwissenschaftliche Bibliothek Warburg / K.B.W.). Em função
de uma enfermidade psíquica, passou muitos anos em uma clínica na Suíça. Depois disso, começou com seu
último projeto, o Atlas Mnemosyne, que ficou incompleto em função de sua morte súbita. Aby Warburg é
considerado um dos pais das artes visuais modernas. Sua Biblioteca, que por ocasião de sua morte tinha em
torno de 60 mil volumes, pôde ser remanejada para Londres em 1933 e faz parte hoje da University of
London.

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A sobrevivência das imagens segundo Aby Warburg


NUNO CRESPO
11 de Janeiro de 2013

Sandro Botticcelli, O Nascimento de Vênus , 1485

A PRIMAVERA, DE BOTTICELLI, É PARA WARBURG PONTO DE PARTIDA PARA UM INVENTÁRIO DAS "IMAGENS" (EM
SENTIDO LATO) DO RENASCIMENTO ITALIANO

A recente publicação de O Nascimento de Vénus e A Primavera. Sandro Botticelli introduz finalmente em


Portugal o revolucionário pensamento de uma figura maior da história da arte e da cultura. Anatomia de
uma mudança de paradigma.

O Nascimento de Vénus e a Primavera. Sandro Botticelli é o primeiro texto de Aby Warburg (1866-1929)
publicado em português. Apresentado em Estrasburgo a 8 de Dezembro de 1891 e aceite como dissertação
de doutoramento a 5 de Março de 1892, não é só um estudo sobre o pintor italiano da escola de Florença -
apresenta já, ainda que de modo embrionário, a ruptura que o historiador da arte e da cultura vai propor
para superar o modelo cronológico, linear, que a história da arte tinha como canónico.

À identificação das diferentes influências que se supõe que artistas e obras exercem uns sobre os outros,
Warburg prefere a descrição das pulsões, energias e forças mais profundas e ocultas que se movimentam

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nas telas ou nas esculturas e do modo como as "belas-artes" dialogam e se relacionam com todos os
elementos de uma época: as medalhas, os tecidos, a literatura, a arqueologia, a arte popular e, chegando à
contemporaneidade, as imagens mecânicas. A convivência entre imagens (o modo genérico como Warburg
designava todos estes elementos) fazia-se no seu Atlas Mnemosyne, que o autor alemão deixou inacabado e
com que ambicionava construir uma história da arte sem palavras. Um projecto desenvolvido a partir das
ideias de montagem, colagem, espacialização e intervalo que tanto influenciou a contemporaneidade
(pense-se em Gerhard Richter, Jean-Luc Godard, Hans-Peter Feldman, Boltanski, Harun Farocki, entre
muitos outros artistas e intelectuais).

Para a historiadora da arte Joana Cunhal Leal, a publicação da KKYM "tem um valor histórico". Warburg não
se limita a dar aqui a ver "as origens" do seu pensamento - já exibe "a sobrevivência das imagens como o
seu tema central". "Em contraste com a história da arte do seu tempo", continua Joana, "não privilegia uma
leitura formalista: trata diferentes imagens, quer elas surjam nos poemas de Ovídio e Poliziano ou na
pintura de Botticelli". É "esta circulação que lhe interessa", diz.

À primeira vista, o trabalho de Warburg pode parecer dedicar-se às grandes figuras do Renascimento
italiano e ao modo como a Antiguidade teve eco nesses artistas: "No presente trabalho, tentou-se
confrontar as conhecidas pinturas mitológicas de Sandro Botticelli, O Nascimento de Vénus e A Primavera,
com as correspondentes ideias da literatura poética e das teorias estéticas da época, para assim esclarecer
que a Antiguidade "interessava" aos artistas do século XV" (p. 7). Mas esta ideia da atmosfera que rodeia
cada obra, cada artista, cada época e cada estilo artístico revela que está em causa não a tentativa de fixar e
encontrar o significado e o sentido das figuras simbólicas materializadas nas obras de arte (como fará a
iconografia sucessora de Warburg), mas sim ver em cada uma dessas instâncias a manifestação de energias
humanas mais profundas e uma constelação de expressões que se caracterizam pela sua intensidade e pela
sua permanência.

É preciso sublinhar que esta identificação da arte como sintoma de uma época e, sobretudo, como
expressão da permanência das forças anímicas da vida humana não implica uma cegueira em relação aos
conteúdos próprios e à autonomia das diferentes obras de arte, mas sim que é "indispensável uma breve
interrupção das elucidações puramente iconográficas" (p. 17) para mostrar como os artistas se
confrontaram com diferentes concepções da arte, da vida e da cultura. O projecto inacabado do Atlas
Mnemosyne é bastante expressivo relativamente ao modo como o historiador queria pensar a arte: um
conjunto excêntrico de painéis com imagens fotografias de diversas origens (postais, fotografias de jornais,
recortes de catálogos de arte), representando coisas muito distintas (obras de arte ou objectos
arqueológicos, entre outros) sem qualquer organização cronológica, alfabética ou temática, mas de acordo
com as afinidades energéticas e espirituais que Warburg descobria nelas. Um método que mostra um

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pensamento denso, em espiral, e que sugere que a produção de conhecimento acontece não através de
deduções causais e lineares, mas de processos de montagem e de espacialização.

Peter Paul Rubens, Hercules Killing The Dragon Of The Garden Of The Hesperides, 1639-1640

A história de arte libertada

Esta libertação do canône consagrado pela tradição, ainda segundo Joana Cunhal Leal, expressa "uma lógica
a que podemos chamar antropológica: a arte não tem uma expressão exclusiva no arquipélago das belas-
artes". Reconhecendo nela uma dimensão muito mais vasta, Warburg supera um "pecado" antigo da
história de arte: o de só olhar para o cânone consagrado.

A "ciência das imagens" de Warburg de modo nenhum se subsume a essa lógica de um discurso dominante -
é o primeiro a analisar imagens de esferas culturais e geográficas diferentes sem que essa análise decorra
de balizas cronológicas ou formais. Num texto muito famoso sobre o "ritual da serpente" dos índios norte-
americanos, confronta os registos dessa prática com materiais muito distintos de outros lugares, outros
tempos e outras culturas. É isto, continua a historiadora, que dá origem "à famosa "iconologia do intervalo"
que Georges Didi-Huberman [filósofo francês que se tem dedicado não só ao estudo de Warburg, mas ao
tema da sobrevivência das imagens] tão bem analisa: quando se colocam duas coisa diferentes num mesmo

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plano, é o diálogo que entre eles se estabelece que interessa observar". Por muito singulares que as
imagens sejam, elas "têm sempre uma raiz comum numa espécie de memória colectiva que está para além
da singularidade de cada uma". Warburg interessa-se justamente por essa raiz comum: uma expressão
psicológica a que chamou "fórmula da pathos".

A sua atenção a esses aspectos constituiu-se como "alternativa" à abordagem formalista que tecia
genealogias dos géneros artísticos a partir de isomorfismos formais. Warburg não privilegia uma forma, mas
um universo de referências residentes numa memória colectiva - uma ideia de comunidade que lhe permitiu
ler a arte do seu tempo (na qual descortina "forças que vêm desde o início da história da humanidade") e o
todo da tradição artística passada.

Demónios

António Guerreiro, crítico literário e uma das principais figuras do estudo de Warburg em Portugal, coloca a
novidade e a fertilidade do pensamento de Warburg no modo como ele se afasta de uma espécie de teoria
das influências que durante tanto tempo dominou a história da arte. Diz ele: "A influência deriva de uma
visão progressista da arte: um estilo faz uma releitura de um estilo anterior. E aqui não se trata de encontrar
essas relações cronológicas e progressivas, mas uma relação de diálogo em que os extremos da história se
podem encontrar. Um exemplo que não é de Warburg mas que ilustra bem o que está em causa: o
fotograma da Marilyn Monroe em cima de uma grelha do metro. Esta imagem repetiu-se porque existem
nela elementos da imagem da ninfa que vêm do passado e ainda hoje são reconhecidos."

Reconhecer estas forças obscuras e demoníacas, como diz Guerreiro, corresponde à ruptura com as visões
consagradas da arte e da beleza. E a descoberta dessas forças acontece quando Warburg estuda o
Renascimento Italiano. Percebe que essa história é "dominada por uma visão apolínea, harmoniosa e
tranquila" do mundo e que por isso o barroco e o maneirismo se transformaram numa "espécie de
recalcado da história da arte". "Warburg vai mostrar como o Renascimento é dominado por aquilo a que ele
chama o demónico. Evidentemente que se trata de uma referência às figuras de Nietzsche do apolíneo e do
dionisíaco", nota Guerreiro.

Para além da identificação daquele par estético, trata-se de ver na arte um campo de oscilação entre "o
racional e aquilo que não se domina": "A racionalidade não é uma conquista definitiva: em todos os
momentos da história somos assediados pela loucura, pelo dionisíaco. A história da arte também é uma
produção dessa loucura que não se consegue dominar."

A descoberta desta matriz da loucura significa "uma nova visão descontínua da história da arte". As
repetições acontecem "porque há uma memória social que transporta certos elementos: uma espécie de
memória involuntária que não é consciente" e se dá a ver através das imagens. Daí o projecto de um atlas
da cultura (não se trata verdadeiramente de uma história no sentido cronológico) através das imagens,

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prescindindo de qualquer texto - um atlas que deveria incluir tanto as imagens quotidianas mais banais
como as obras de arte mais canónicas, abrindo "a história da arte à antropologia, à psicanálise, à história da
cultura, a todas as disciplinas", sem "guardas de fronteira".

Re-orientação

Para Delfim Sardo, ensaísta e curador que em 2000, nos Encontros de Fotografia de Coimbra, fez uma
exposição cujo mote era o Atlas de Warburg, foi importante "entender a história da arte como uma
cinemática organizada segundo métodos de edição e montagem." "Recentemente", continua, "redescobri a
razão do meu interesse por Warburg numa citação de Goethe que ele fez num escrito de 1918: "Mas aqui",
disse Wilhelm, "as opiniões contraditórias são tantas que se diz que a verdade está no meio." "De forma
nenhuma!", replicou Montan, "o que está no meio é o problema: impenetrável, talvez, mas também talvez
aproximável, se for abordado da forma certa!"

É nesta espécie de jogo entre contrários que se pode localizar uma das grandes fertilidades do pensamento
de Warburg: a possibilidade de "produzir uma história da arte (ou, em termos mais amplos, um discurso
sobre arte) que, não rejeitando a forma, não a reifica em termos de estilo" - uma história de arte que assim
se desloca para um campo "sem nome", "um campo intersticial no qual a reflexão estética se cruza com a
antropologia".

O seu método, tão citado e apropriado por artistas, curadores e pensadores contemporâneos, "assenta no
intervalo e na diferença", não na identidade ou no novo.

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Talvez seja bom recordarmo-nos", conclui Sardo, "que quando esteve internado aos cuidados do [psiquiatra
suíço Ludwig] Binswanger, Warburg sofria de um síndroma de desorientação que ia colmatando com
acumulação de objectos em mesas - a primeira versão de um sistema de atlas tal como o veio a desenvolver
entre 1926 e 1929". O atlas é "uma tentativa permanente de re-orientação", condição inerente à arte dos
nossos dias: desde a década de 60, o atlas, o arquivo, o índice e a biblioteca, enquanto sistemas
fragmentários e incompletos, não têm cessado de atrair os artistas.

Great Plumed Water Serpent of the Hopi Indians

Atlas mnemosyne e saber visual: atualidade de Aby Warburg diante das imagens,
medias e redes
Jane Cleide de Sousa Maciel

A compreensão das imagens engendrada por uma observação atenciosa aos detalhes expressivos ao
mesmo tempo em que considera sua inscrição dentro das situações socioculturais e de historicidade dos
meios é um legado inspirador deixado por Abraham Warburg para a teoria da imagem.

(…)
As imagens deslocam-se por diferentes circuitos culturais, às vezes se repelindo, em outras situações agrupando-se
mesmo sem motivos aparentemente evidentes. A movimentação dessas rotas difusas e nossos próprios movimentos
através delas podem ser mediados por instrumentos de orientação, de escrita e de leitura que estabelecem relações
no mundo de imagens.

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(…)
Ao negar os imperativos categóricos de beleza, a recepção via contemplação, o bom gosto como critério, as supostas
calma e serenidade gregas que deveriam ser imitadas, o historiador da cultura concentrava-se no pathos
anteriormente rejeitado, e com ele, na existência humana nas imagens, em tensões e movimentos. Toda esta
configuração permitia propor um “‘modelo cultural da história’, modelo fantasmal, psíquico e sintomal, que perturba a
história da arte e que restaria por muito tempo recalcado no século XX” (DIDI-HUBERMAN, 2013a, p. 25).
Resumidamente, Warburg não se limita a uma iconografia organizada em cronologia, períodos, hierarquias e
tipologias. A “concretude e precisão filológica, aderência às coisas (e concomitantemente recusa dos pressupostos e
generalizações teóricas abstratas), postura interdisciplinar, ruptura com as separações acadêmicas ou simplesmente
ditadas pela tradição” (GARIN citado por GUINZBURG, 2007, p.51) são apontadas como características de seu método
que se esforça em investigar tudo aquilo que faz das imagens guardiãs das forças energéticas do humano no mundo.
Essa acepção antropológica das imagens é assim complementar ao estudo dos processos de produção de
subjetividades engendrados por elas e das transformações nas coletividades.
(…)
É deste modo que, seguindo tal inclinação à impureza da imagem, as pranchas do “Atlas de Imagens” Mnemosyne
(Mnemosyne Bilderatlas) configuravam instrumentos de visibilidade de sua “ciência da cultura” (Kulturwissenschaft),
complementar ao projeto de sua biblioteca, Kulturwissenschaftliche Bibliothek Warburg (KBW), inaugurada em 1926,
que antecede e converge com o Atlas. Nela, os livros eram reunidos conforme o critério da “boa vizinhança”, que
“significa uma estreita relação entre um elemento epistêmico e o próximo, através de um campo de forças que
movem uns nos outros, que os explicam uns pelos outros” e onde “cada uma dessas unidades energéticas ilumina os
objetos vizinhos, dos quais absorvem em contrapartida as forças” (SIEREK, 2009, p.44). Biblioteca rizomática, onde as
relações entre as imagens correspondiam às afinidades entre os campos de saber, em um momento em que os
purismos disciplinares estabeleciam rígidas e castradoras separações.
(…)
O formato Atlas Mnemosyne foi concebido com telas de tecido preto de 1,5 x 2,0 metros, onde imagens eram fixadas,
movidas, registradas fotograficamente e refixadas, fazendo deste um dispositivo para relacioná-las e com elas, suas
memórias. Os fluxos e deslocamentos das imagens desdobravam-se nas pranchas multifacetadas, onde as imagens em
conjunto e em relação permitiam expor sua “iconologia do intervalo”, nome dado pelo historiador para

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sua ciência em 1929. Karl Sierek (2009, p.20) propõe abordar esse sistema de pensamento como uma “teoria cultural
da imagem em movimento” empreendida através de dispositivos de montagem – da biblioteca, do atlas, do
pensamento –, que possibilitam a “análise comparativa dos movimentos significantes” (id., ib., p.32) que necessitava,
por sua vez, um agenciamento hipertextual de imagens e livros. Assim, através da constituição do Atlas Mnemosyne,
Aby Warburg põe as imagens em movimento sobre os painéis, superfícies operacionais e energéticas onde um clique
fotográfico permite a paralisação de um instante dessa movimentação, como em uma “constelação”, conceito de
Walter Benjamin constantemente associado ao Atlas Mnemosyne (AGAMBEN, 2012; DIDI-HUBERMAN, 2013;
LISSOVSKY, 2014).
(…)

Os espaços pretos entre as imagens funcionam como canais por onde escapa o olhar do observador e circulam os
sentidos das imagens, que nestas montagens experimentais nunca são fechados em uma unidade estável, ao
contrário, mostram-se apenas nas relações e trânsitos dos elementos que configuram seu campo de força cultural. É
através desse trabalho com foco no “entre” imagens que Warburg “[...] visava ativar as propriedades dinâmicas que a
consideração isolada delas teria deixado latentes” (MICHAUD, 2013, p.296).

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