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Cair sete vezes, levantar oito - Naoki Higashida

Uma tradução livre do inglês

Introdução
por David Mitchell
Naoki Higashida é um jovem afável e pensativo, agora na casa
dos vinte anos, que vive com sua família em Chiba, ao lado de
Tóquio. Naoki tem autismo de um tipo rotulado de severo e não-
verbal, então uma conversa fluente do tipo que facilita a vida da
maioria de nós é impossível para ele. No entanto, com muito
treinamento, força e paciência, ele aprendeu a se comunicar
“digitando” frases em uma prancha de alfabeto - um teclado
QWERTY desenhado em uma folha de papelão, acrescido de “SIM”,
“NÃO” e “TERMINEI”. Naoki diz os caracteres fonéticos do alfabeto
japonês hiragana enquanto toca as letras romanas correspondentes
e constrói frases, que um transcritor passa para o papel. (A mão de
mais ninguém está perto da de Naoki durante esse processo, um
fato que comunicadores de prancha de alfabeto em um mundo
cético precisam reforçar eternamente.) Se esse parece ser um jeito
árduo de se expressar, você está certo, é mesmo; além disso, o
autismo de Naoki o bombardeia de distrações e o faz levantar no
meio da frase, andar pela sala e olhar pela janela. Ele sai facilmente
de sua linha de pensamento e é forçado a recomeçar a frase. Já vi
Naoki produzir uma frase complexa em um minuto, mas também já
o vi levar vinte minutos para completar uma frase de apenas
algumas palavras. Escrevendo em um laptop, Naoki pode dispensar
o transcritor humano, mas a tela e o conversor de texto (os menus
necessários para escrever em japonês) geram mais um nível de
distração. Foi através de sua prancha de alfabeto ou de seu
computador que Naoki escreveu cada frase neste livro.
Eu conheci a escrita de Naoki antes de conhecer Naoki. Meu filho
tem autismo e minha esposa é do Japão, então, quando nosso
menino era bem novo e o seu autismo estava no auge de
desafiador, minha esposa procurou online por livros em sua língua
nativa que pudessem oferecer dicas práticas sobre o que estávamos
tentando (e com frequência falhando em) lidar. Trilhas de internet
levaram a O que me faz pular , escrito quando o autor tinha apenas
treze anos, e produzido por um pequeno editor especialista. Nossas
estantes estavam tortas com o peso de livros enormes de
especialistas em autismo e mentores de autismo, e por mais que
alguns fossem bons, poucos eram de muita ajuda prática com nosso
menino de cinco anos não-verbal e regularmente estressado. Minha
esposa pediu o livro de Naoki porque o autor era relativamente
próximo em idade ao nosso filho, além de ser não-verbal. Quando o
livro chegou, ela começou a traduzir trechos dele em voz alta na
nossa mesa da cozinha, e muitos de seus curtos capítulos
trouxeram luz imediata às questões de nosso filho: por que ele batia
a cabeça no chão; por que havia fases em que suas roupas
pareciam insuportavelmente desconfortáveis; por que ele era
tomado por crises de riso ou fúria ou lágrimas, mesmo quando nada
óbvio havia acontecido para provocar essas reações. Teorias que eu
havia lido previamente por autores neurotípicos eram especulações
que às vezes faziam sentido, mas às vezes não faziam; O que me
faz pular oferecia explicações plausíveis diretamente da prancha de
alfabeto de uma pessoa com informações de dentro.
A iluminação pode ser mortificante - eu percebi como entendia
mal o autismo do meu filho -, mas um pouco de mortificação nunca
machucou ninguém. No YouTube, eu achei alguns vídeos de Naoki
e fiquei perplexo com o quanto o autismo dele era visivelmente
manifesto - mais até do que o do meu filho. Esse abismo entre a
aparência de Naoki e sua expressividade textual me causou uma
impressão profunda. Claramente, ele sofria com crises, fixações e
tiques verbais e físicos, que, não muito tempo atrás, teriam
garantido uma curta e sombria vida de encarceramento. E ainda
assim, em O que me faz pular , o mesmo garoto estava mostrando
inteligência, criatividade, análise, empatia e uma amplitude
emocional tão grande como a minha própria. O que me intrigou,
mais do que qualquer outra coisa, foi que esses últimos dois
atributos - empatia e amplitude emocional - são exatamente o que
pessoas com autismo são famosas por não terem. O que estava
acontecendo? A severidade do autismo de Naoki foi documentada
tanto nos vídeos no YouTube quanto no documentário sobre
autismo de 2010 de Gerardine Wurzburg, Wretches and jabberers .
Isso me deixou com duas possibilidades: ou Naoki Higashida é um
em um milhão, que tem autismo severo não-verbal e ainda assim é
intelectualmente e emocionalmente intacto; ou a sociedade em
geral, e muitos especialistas, estão parcialmente ou inteiramente
errados sobre o autismo.
Evidência contra a “possibilidade do caso único” veio na forma de
outros escritores e blogueiros não-verbais com autismo severo,
como Carly Fleischmann e, mais recentemente, Ido Kedar e Tito
Mukhopadhyay. A habilidade de Naoki para se comunicar pode ser
rara, mas não é uma em um milhão. A teoria sobre estarmos
errados sobre o autismo é apoiada pelos erros lamentáveis que
poderiam servir como nomes de capítulos na história do autismo.
Leo Kanner, o psiquiatra infantil pioneiro que foi o primeiro a usar a
palavra “autismo” em um contexto separado da esquizofrenia,
culpou a condição em parte em “mães geladeira” - uma noção cuja
credibilidade pública agora está igualada à possessão demoníaca,
mas que ainda mantém algum peso na França, Coreia do Sul e
entre uma geração mais velha de especialistas. Os anos 1960 e 70
viram psiquiatras renomados defendendo “curas” do autismo
baseadas em terapia de eletrochoque, LSD e técnicas de mudança
de comportamento que usavam dor e punição. Eu entendo que a
ciência progride por cima dos corpos de teorias derrubadas, e eu sei
que julgar psiquiatras bem-intencionados com o conhecimento do
futuro não é particularmente justo, mas quando eu considero o dano
que eles com certeza infligiram a crianças como o meu filho, assim
como a pais como eu e minha esposa, eu não sinto vontade de ser
particularmente justo. O xis da questão: e se a ideia atual de que
pessoas com autismo severo têm deficiências intelectuais severas é
o grande erro sobre autismo da nossa década? E se a convicção de
Naoki - expressa neste livro -, de que estamos confundindo
disfuncionalidade comunicativa com disfuncionalidade cognitiva,
acertou em cheio?
Minha esposa e eu não vimos mal algum em “presumir o melhor”
e agir como se, dentro do turbilhão caótico dos autismos e
comportamentos do nosso filho, houvesse um menino de cinco anos
esperto e perceptivo - mesmo que terrivelmente isolado. Paramos
de supor que, por ele nunca ter dito uma palavra em sua vida, ele
não podia nos entender. Colocamos pequenas porções de comida
que ele não comia no canto do seu prato de macarrão, como Naoki
sugere, para o caso de ele estar aberto a experimentar naquele dia.
Com frequência ele não estava, mas às vezes estava, e seu
repertório alimentar cresceu. Começamos a pedir ao nosso filho
para pegar coisas que ele tinha deixado cair, levando a mão dele ao
objeto caído, em vez de pensar Ah, por que se dar ao trabalho? e
pegar por ele. Sempre que possível, demos a ele escolhas em vez
de decidir as coisas por ele. Ficamos melhores em discernir seus
desejos não expressos, em vez de supor que ele não tinha desejos.
Começamos a falar com ele normalmente, em vez de em palavras
únicas. Eu não sabia que porcentagem dessas frases mais longas e
naturais ele entendia - ainda não sei -, mas o que eu sei é que
nossas vidas diárias melhoraram. Eu sei que, dia após dia e semana
após semana, ele se tornou mais “presente” e interativo. Seu
contato visual melhorou, ele interagia mais conosco, e com ajuda de
um tutor inspirado e inspirador, nosso filho entrou na cozinha um dia
e quase me fez cair da cadeira ao dizer, “Pode me dar suco de
laranja, por favor?”. O vocabulário dele aumentou muito e episódios
de autoagressão se reduziram a quase zero.
Como não tenho acesso a um universo paralelo em que nunca
ouvi falar de Naoki Higashida, não posso saber se esses passos e
melhoras teriam acontecido de qualquer forma. Ainda tínhamos, e
ainda temos, muitos dias não tão bons. O autismo não é uma
doença, então não há “curas” - e nunca dê suas informações de
cartão de crédito a ninguém que diga o contrário. O meu ponto é
que O que me faz pular não é uma varinha mágica. Mas o livro de
fato nos ajudou a entender os desafios de nosso filho e o mundo da
perspectiva dele, mais do que qualquer outra fonte, e esse
conhecimento nos ajudou a ajudá-lo. Algumas atitudes e hábitos
inibem o desenvolvimento, enquanto outras atitudes e estratégias o
estimulam, e o livro de Naoki nos permitiu identificar quais eram
essas e mudar o foco de nossas vidas do Negativo para o Positivo.
Inicialmente, minha esposa e eu traduzimos O que me faz pular
para o inglês para os assistentes de necessidades especiais de
nosso filho, porque pensamos que eles também o achariam útil.
Mencionei o livro ao meu agente e ao meu editor da Inglaterra, que
pediu para ver nosso manuscrito. Eles viram o interesse potencial
para um público que estava se tornando mais tolerante e curioso
sobre a neurodiversidade. Meu agente contatou a editora do livro no
Japão, e logo minhas editoras da Inglaterra, Estados Unidos e
Canadá fizeram ofertas para os direitos da tradução para o inglês.
Naoki e sua família aceitaram. Com a ajuda de uma serialização
maravilhosa da Rádio BBC e um financiamento nos Estados Unidos
pelo Jon Stewart do programa The Daily Show , um campeão de
consciência do autismo, O que me faz pular entrou para as listas de
livros mais vendidos nos dois lados do Atlântico. Um documentário
sobre Naoki e o impacto de seu livro, What you taught me about my
son  [“O que você me ensinou sobre meu filho”], foi feito pela rádio
japonesa NHK. Foi durante essas filmagens que eu conheci Naoki
pela primeira vez em Tóquio, e vi por mim mesmo, tanto os desafios
que ele enfrenta ao se comunicar, quanto sua tenacidade em
superar esses desafios. Após o documentário ir ao ar pela primeira
vez, NHK recebeu centenas de ligações telefônicas e e-mails
pedindo uma reprise. Após ir ao ar pela segunda vez, mais
espectadores ligaram pedindo uma terceira, depois uma quarta,
depois uma quinta vez. Atualmente, O que me faz pular foi traduzido
para mais de trinta idiomas. Até onde sabemos, isso faz de Naoki
Higashida o autor japonês vivo mais amplamente traduzido após
Haruki Murakami.
Eu fiquei surpreso e feliz com o sucesso de crítica e vendas do
livro de Naoki, que importa muito mais para o grande esquema das
coisas do que a minha própria ficção. O meu envolvimento na
promoção de O que me faz pular , no entanto, me serviu de aula
sobre a política sobre necessidades especiais. Não é para quem
tem o coração fraco. Opiniões arraigadas são muito bem armadas, e
suas reações padrão a novas ideias são frequentemente hostis.
Enquanto O que me faz pular teve uma recepção positiva, também
enfrentou a acusação de que ninguém com “legítimo” autismo
severo poderia ter escrito prosa tão articulada: não importavam os
vídeos no YouTube de Naoki escrevendo essa prosa articulada.
Portanto, Naoki devia ter recebido o diagnóstico errado e não ter
autismo; ou ser um impostor na ponta da síndrome de Asperger do
espectro, como o personagem Sheldon Cooper da série The Big
Bang Theory ; ou seus livros são escritos por outra pessoa,
possivelmente sua mãe. Ou por mim. Uma crítica do jornal The  
New York Times alertou os tradutores contra “transformar o que
encontramos naquilo que queremos”. (O significado nas entrelinhas
que não posso evitar ver é, “Esses pais desesperados não
conseguem encarar o fato de que seus filhos são vegetais, então a
objetividade deles está comprometida”.) Em outros lugares, Naoki
foi acusado de entrar para a indústria de gurus. Não dá para ganhar,
de um jeito ou de outro. Claro, Naoki espera que sua escrita
contribua para um melhor entendimento público do autismo, mas ele
é ciente demais dos limites impostos pelo autismo no seu
conhecimento do mundo neurotípico. Ler jornais não é fácil para ele,
e a política pode parecer confusa. Como ex-aluno de uma escola
para necessidades especiais, ele sabe que o autismo vem em
muitas formas e tamanhos, então as observações dele sobre
autismo não são, e não podem ser, universalmente aplicáveis. Naoki
não é o guru de ninguém: ele responde perguntas da melhor forma
que consegue, mas você tira dali o que precisa e deixa o resto.
A minha experiência mais instrutiva foi ouvir de uma colega
contribuidora a um programa de rádio que O que me faz pular não
podia ser genuíno porque Naoki usa metáforas, e pessoas com
autismo severo não conseguem entender o que é uma metáfora,
muito menos criar uma. Na verdade, eu já assisti Naoki soletrar
metáforas em sua prancha de alfabeto em inúmeras ocasiões, mas
naquele dia eu me vi em uma dessas situações em que é impossível
vencer, onde protestos de honorabilidade só servem para convencer
os seus acusadores de que não há fumaça sem fogo. O filho dessa
colega também tinha autismo severo, e eu me esforcei para
entender a indignação dela. Ouvir que nós temos subestimado o
potencial de nosso filho pode parecer como uma acusação de
colaborarmos com o aprisionamento dele, e que pai ou mãe
amoroso, cheio de sacrifício de si mesmo, aceitaria isso? Um
impulso para atirar no mensageiro é compreensível. Como mostra a
minha própria reação espinhosa à crítica do The New York Times ,  
a pele de pais de crianças com necessidades especiais é fina e
cheia de nervos. No entanto, nosso guia deveria certamente ser a
pergunta, “O que é melhor para o bem estar e chances de vida de
nossos filhos e filhas?”. Eu acredito que, por mais que o autismo
severo não-verbal pareça muito com um severo comprometimento
cognitivo, a verdade é que ele não é: é um severo comprometimento
no processamento sensorial e na comunicação . Essas palavras
fazem um mundo de diferença. Negar que um cérebro severamente
autista pode abrigar uma mente tão curiosa e imaginativa quanto a
de qualquer outra pessoa é perpetuar uma falsidade que pode levar
à ruína. (Uma analogia história é a surdez, que, desde a era de
Aristóteles até o advento da linguagem de sinais no século 19,
também era pensada como um comprometimento cognitivo severo -
daí o sinônimo para estúpido, “burro” [que em inglês também quer
dizer “mudo”]). Se uma grande massa de pessoas não tivesse
contestado as “verdades” anteriores sobre o autismo, a teoria da
Mãe Geladeira - ou até a teoria da Possessão Demoníaca - ainda
reinariam supremas. Naoki e outros pioneiros não-verbais podem
estar levantando a bandeira da nova mudança de paradigma em
direção a um entendimento mais verdadeiro da condição.
Naoki publicou vários livros no Japão após O que me faz pular ,
mas foi este livro, publicado em 2015, que minha esposa e eu
achamos o mais iluminador e útil. O autismo de uma pessoa não
desaparece convenientemente em uma certa idade, nem para de
evoluir. Nosso filho agora tem onze anos, e já sentimos que este
livro é uma útil fonte de conhecimento sobre como a adolescência
pode impactar o autismo, assim como uma indicação do que
esperarmos para o futuro. A maioria de seus curtos capítulos foram
escritos por Naoki para o seu blog, entre as idades de dezoito e
vinte e dois anos, apesar de que ele com frequência analisa seu eu
mais jovem por uma perspectiva mais madura. Então, esperamos
que este novo livro seja de ajuda prática para outras “famílias do
autismo” com adolescentes mais novos e mais velhos em suas
mãos. Para leitores gerais, esperamos que o livro ofereça outra
oportunidade para entrar em um cérebro autisticamente estruturado.
Seu leque de tópicos é mais diverso do que O que me faz pular , e
mostra o crescimento do autor e sua interação com o mundo. Se O
que me faz pular foi um texto de um menino que tinha autismo
severo mas por acaso sabia escrever, Cair sete vezes, levantar oito
é um livro de um autor que por acaso tem autismo severo. O
autismo ainda é o prisma e a lente de Naoki, mas os capítulos se
agregam em um retrato em colagem de um jovem aprendendo a
coexistir com uma mente e um corpo que nem sempre estão à sua
disposição, e abrindo um nicho para si mesmo no mundo
neurotípico.
A inclusão de uma história curta, Uma jornada , inspirada pela
experiência de demência de um dos avós de Naoki, representa uma
profundidade maior desse nicho. A narrativa em primeira pessoa é
carregada de uma revelação gradual, reviravoltas emocionais e uma
estranheza de sonho, e rejeita a sabedoria popular de que pessoas
com autismo não conseguem sentir emoção ou ver o mundo pelo
ponto de vista de outras pessoas. Nem deixa a desejar em
metáforas. Também está incluída uma entrevista em duas partes da
edição japonesa de The Big Issue , uma revista vendida por
moradores de rua e pessoas há muito tempo desempregadas. Naoki
contribuía regularmente com a revista, e as perguntas mais
peculiares do que o usual, dos vendedores e da equipe da revista,
levaram Naoki a considerar alguns tópicos de que não tinha falado
em nenhum outro lugar.
O título Cair sete vezes, levantar oito vem de um provérbio
japonês sobre os méritos da persistência, e o livro oferece
experiência, conselhos e esperança. Suas páginas mapeiam os
limites impostos pelo autismo não-verbal na vida do autor, mas
também descrevem como Naoki tem conseguido transcender,
renegociar ou apenas aprender a viver com esses limites. O livro
mostra como uma deficiência pode ser transformada em um campo
de empenho e a procura de uma vida com propósito. Se isso é
possível para Naoki, pode ser possível para outros, também.
O autismo tem o hábito de tornar rótulos bonitos como “verbal” e
“não-verbal” obscuros. Com pessoas neuroatípicas, a habilidade de
comunicação existe em um espectro, não em um binário de sim/não.
Sempre que me perguntam, “O seu filho é verbal ou não-verbal?”,
para responder de forma completa, eu tenho que explicar que,
embora a compreensão dele pareça boa e ele possa nomear
centenas de objetos em inglês e japonês, a comunicação falada
dele é limitada a poucas frases, e ele nunca teve uma conversa
mais longa do que três ou quatro trocas dessas frases. Eu não
posso saber com certeza se ele entende nada, parte ou toda uma
conversa entre outras pessoas. Se eu pudesse ter certeza, não
seria com o autismo que estaríamos lidando (e se eu tivesse dez
dólares por cada vez que digo essa frase, eu poderia comprar um
carro). O autismo é algo relativo, assim como resistente a rótulos.
Comparado a alguns outros que nunca disseram uma palavra em
suas vidas, e, de fato, comparado a Naoki, meu filho é bem verbal;
mas, em relação a seus colegas neurotípicos, ele está a um passo
da mudez.
O rótulo “não-verbal” aplicado a Naoki também exige alguma
explicação. Ele tem uma inabilidade quase total de conduzir uma
conversa falada, e de dar respostas verbais a perguntas. Ele é mais
capaz de usar o pequeno cardápio de frases curtas metralhadas nas
crianças japonesas e usado ao longo de suas vidas - um “ itte-
kimasu! ” quando você sai de casa, um “ tadaima! ” quando retorna,
para citar dois dos exemplos de Naoki neste livro. Outra palavra que
ele usa é a universal expressão de gratidão antes das refeições, “
itadakimasu ”, apesar de que isso se tornou uma fixação em que ele
tem de checar que todas as outras pessoas na mesa também
disseram isso. (Problemático em grandes reuniões.) Se a mãe de
Naoki usa sua voz comum quando chama o nome dele para checar
onde ele está na casa, Naoki não consegue responder. Se ela usa o
nome todo dele no tom formal de uma professora fazendo a
chamada, no entanto, Naoki consegue confirmar sua presença
verbalmente. Ele também sabe dizer - ou, mais precisamente, se
sente forçado a repetir - palavras ou frases curtas que se embutiram
em sua mente. Essas podem ser músicas de propagandas, nomes
de lugares ou palavras que lhe chamam a atenção. Fixações verbais
têm raízes mais profundas: durante a maior parte de uma viagem de
carro de vinte minutos durante paisagens irlandesas de campo,
Naoki repetiu a palavra japonesa para “estrada expressa” para fazer
sua mãe responder com a frase “Não, essa é uma estrada comum”.
(Como ele explica em um dos capítulos aqui, Naoki adoraria parar
de ser um escravo a esses impulsos verbais, mas a fixação é
impossível de se lutar.) No seu livro Ido in Autismland  (“Ido no País
do Autismo”), Ido Kedar - outro “comunicador por texto do autismo
não-verbal” - explica de forma memorável que resistir a uma fixação
é tão difícil quanto se impedir de vomitar. A compreensão verbal de
Naoki, no entanto, é comparável a um adulto neurotípico falante
nativo de japonês. No geral, ele entende a minha linguagem falada
não muito fluente, mas como ele não consegue me mostrar que
entendeu, eu fico perdido até que ele começa a soletrar sua
resposta, letra por letra, na prancha de alfabeto. As apresentações
públicas de Naoki consistem nele lendo um texto preparado em voz
alta para uma plateia. Isso ele consegue fazer, com esforço, apesar
de que a tensão na sua voz com frequência deixa seu tom agudo.
Se tudo corre bem, ele consegue conduzir uma sessão de
perguntas e respostas, em que perguntas são feitas oralmente e
respostas são dadas pela prancha de alfabeto. Fatores ambientais
influenciam: Naoki parecia conseguir se concentrar melhor na
prancha de alfabeto ao se sentar em frente a mim do outro lado de
uma mesa, enquanto sua mente divagou mais quando ele se
sentava em um sofá para uma câmera de televisão. A posição de
uma pessoa no espectro verbal-não-verbal pode flutuar de acordo
com o humor e estresse, e mudar a longo prazo. Apenas uma vez
Naoki respondeu uma de minhas perguntas em voz alta, sem usar a
prancha de alfabeto. Estávamos almoçando. A resposta dele foi um
simples “Sim”, e a mesa inteira sorriu, surpresa com aquela
conquista, incluindo Naoki. (Tenho vergonha de admitir que esqueci
qual foi a pergunta.)
O autismo de Naoki é oficialmente classificado como “severo”
pelas autoridades japonesas, e ele carrega um documento de
identidade com essa designação para o caso de uma explicação
rápida ser necessária. O que a designação “severo” envolve, no
entanto, é tão específica a cada caso e relativa quanto o rótulo “não-
verbal”. O meu filho é livre de muitos dos “tiques” clássicos do
autismo com que Naoki sofre, e por curtos períodos ele pode até
passar por neurotípico. Em contraste, dez segundos na companhia
de Naoki são suficientes para o autismo dele ser inconfundível. No
entanto, o meu filho não mostra nenhum sinal - ainda - de conseguir
comunicar a riqueza de sua vida interior como Naoki consegue. O
autismo de quem é mais severo? Uma resposta precisa não é tão
simples. Eu aceito que precisamos de palavras para graus de
deficiência, mas desenvolvi alergia às terminologias atuais de
“severo” versus “leve” (que lembram resfriados e rinites) ou “alto
funcionamento” versus “baixo funcionamento” (Capitão Data de Star
Trek versus um computador dos anos 1980). Não faz muito tempo,
eu me encontrei com um velho conhecido que eu não via desde o
diagnóstico do meu filho, que disse - com ares de alguém que não
perde tempo com conversa fiada - “Então, eu ouvi dizer que o seu
filho é severamente autista?”. Além de um pouco magoado, eu fiquei
perplexo com a insuficiência da pergunta. A severidade do autismo
do meu filho varia absurdamente de aspecto para aspecto -
comunicação, comportamento, autorregulação, processamento
sensorial, coordenação motora fina e grossa. Outras variáveis são
humor, cansaço e até a época do ano (cuidado com novembro,
quando os relógios são atrasados em uma hora). Respostas curtas
à pergunta “O quanto ele ou ela é autista?” são bruscas e
reducionistas, e ainda assim as suas consequências - na educação,
no recebimento de pensão de deficiência - podem mudar uma vida.
Enquanto eu explicava tudo isso ao meu conhecido, eu queria que
a severidade do autismo pudesse ser calibrada em termos de cores
de tinta, com o amarelo na ponta de Asperger, magenta na ponta
mais difícil e ciano no meio, como em “Bom, o autismo dele é
funcionalmente bem ciano, mas se as pessoas dizem Não! para ele
o tempo todo, pode se tornar todo respingado de magenta. E
quando ele está escrevendo palavras na sua lousa mágica ou se
saindo muito bem no jogo Temple Run no iPad, o autismo dele
brilha em amarelo canário.” Isso funciona para mim; se funciona
para você, espalhe a ideia.
Para concluir: os tradutores esperam que Cair sete vezes,
levantar oito encontre um lugar no corpo crescente de textos de
“testemunhas do autismo” que informam o público, ajudam a
derrubar mitos que já passaram da data de validade, promover a
causa da neurodiversidade, e encorajar as pessoas a pensar duas
vezes antes de usar a palavra “autista” quando querem dizer “rude”
ou “sem noção”. O autismo é um fato de nosso mundo, que molda a
vida de milhões de pessoas. Não podemos mudar esse fato, mas
podemos mudar nossas atitudes.
Nota da edição inglesa
Esta edição de Cair sete vezes, levantar oito está acrescida de
três capítulos do livro de Naoki Higashida de 2013, Aru ga mama ni
jiheisho desu , e vários novos capítulos escritos em resposta a
perguntas dos tradutores entre 2014 e 2016. O autor também
revisou ou expandiu alguns capítulos, e aprovou a reorganização do
texto original em oito seções temáticas. A história Uma jornada  foi
escrita em 2015 para ser incluída nesta edição. A entrevista da
edição japonesa de The Big Issue , uma revista que foca em
questões sociais e é vendida por moradores de rua em dez países,
data do mesmo ano.

Parte 1: A vista daqui

1: Dia das mães de 2011

Há crianças que não podem dizer “Obrigado por tudo, mãe”. Pode
haver mães que se entristecem com isso, e pode have mães que
sentem um tipo de luto por nunca receber um buquê de flores no dia
das mães. Eu nunca vou experienciar de verdade a tristeza que
essas mães sentem, receio, mas eu sei pelo que aquelas crianças
que não podem expressar sua gratidão estão passando. O dia das
mães deveria ser a época do ano em que mostramos nossa
apreciação por tudo que nossas mães, que nós amamos, fazem por
nós. No meu caso, no entanto, sou incapaz de murmurar um
simples “obrigado”. É infeliz e desgraçado. Tenho certeza de que se
uma pessoa não-verbal como eu pudesse falar fluentemente de
repente, as primeiras palavras que ele ou ela diria seriam, “Muito
obrigado por tudo, mãe”. Por favor, lembre-se: há jovens, como eu,
que sonham com um dia no futuro em que nós também possamos
dizer essas poucas palavras.

2: “Está chovendo!”
Um banho repentino chegou do nada. Assim que minha mãe
ouviu o som de chuva, ela gritou, “Está chovendo!” e correu para a
varanda no andar de cima para pegar a roupa lavada, sem olhar
pela janela. Eu apenas a observei, sem dúvida parecendo um pouco
ausente. O que se segue é uma cronologia do que se passou na
minha cabeça enquanto essa cena aconteceu:
1) Um milhão de sons plic-ploc-plic-ploc.
2) Eu me pergunto, O que será esse som?
3) Minha mãe grita, “Está chovendo!”. Então o som deve ser
chuva.
4) Então eu olho pela janela…
5) …e assisto a chuva, fascinado; no entanto, enquanto assisto
agora, não escuto nada; é como uma cena de chuva em um
filme mudo.
6) Só agora o som da chuva começa a ser registrado.
7) Eu tento conectar o conceito “chuva” ao seu som; procuro
aspectos comuns entre todos os aguaceiros na minha memória
e a chuva agora martelando lá fora.
8) Ao encontrar aspectos comuns, eu sinto alívio e segurança.
9) Eu me pergunto, Como pode estar chovendo agora? Estava
ensolarado mais cedo.
10) Até esse momento, minha mãe não tinha passado pela minha
cabeça. Agora ela desce as escadas, dizendo “Essa chuva
veio tão de repente, não foi?”.
11) Eu me lembro da minha mãe correndo para a varanda para
salvar a roupa lavada.
12) Como ela conseguiu perceber tão rapidamente que estava
chovendo?
Se eu não pudesse me comunicar pela minha prancha de
alfabeto, minhas perguntas não teriam resposta e eu ficaria triste
com o quão pouco eu entendo. As coisas sendo como são, eu pude
consultar a minha mãe sobre como ela identificou a chuva só pelo
som. Ela me disse: “Bom, porque aquele som é o som da chuva e
quando começa a chover, nós trazemos a roupa lavada para dentro.
A previsão do tempo disse que podia chover hoje, lembra?”. Eu me
lembrava mesmo da previsão do tempo, apesar de que fazê-lo por
iniciativa própria teria sido impossível. Enquanto eu me lembrava da
seção relevante do relatório, as palavras do apresentador voltaram e
eu entendi com um pouco mais de clareza por que a chuva
apareceu do nada, o que melhorou a minha confusão e frustração.
O que permanece um mistério para mim é como inferir que está
chovendo puramente pelo barulho. Para mim, o som de chuva é
algo abstrato. Identificar as vozes da minha família ou o toque de
um telefone, os latidos de cachorros ou miados de gatos, esses são
relativamente fáceis. Alguns sons, no entanto, levam uma
eternidade até que eu entenda, como o canto de cigarras no
começo do verão. Eu percebo que já ouvi esses sons antes, mas
sem outras pistas, as suas origens permanecem obscuras. Mesmo
se eu pudesse identificar a fonte do barulho-de-chuva, dar o salto do
pensamento Está chovendo! para ir pegar a roupa lavada estaria
quase fora de questão. Eu estaria ocupado demais apenas sentado
ali, hipnotizado.
A chuva é um caso especial. Eu tenho certas memórias dentro de
mim sobre as quais a chuva deixou uma impressão marcante.
Quando eu vejo chuva, incidentes amargos que eu acabei
associando com ela voltam para me assombrar. Coisas divertidas
devem ter acontecido em dias chuvosos também, mas, de alguma
forma, apenas as cenas tristes são convocadas. Tenho de colocar
muito esforço em distinguir a “chuva de memória” da chuva real se
quiser evitar trazer flashbacks ruins à tona. Para fazer isso, minha
mente tende a dar prioridade para organizar minhas memórias, mais
do que pensar sobre que ações eu preciso realizar nesse momento.
Todas essas transações são parte do que eu preciso considerar
enquanto me esforço para funcionar como uma pessoa neurotípica.

3: Coisas impossíveis
Foi quando eu estava tentando fechar um guarda-chuva que
estava secando que eu me meti em um problema. Um de seus dois
fechos não queria funcionar. Normalmente, ele vai para o seu lugar
com um clique de imediato, então eu senti uma onda de incômodo e
fui capaz de gritar “Mãe, vir aqui!”. Eu pedi a ela para fechar o
guarda-chuva - mas ela também não conseguiu. Ela olhou para o
fecho e disse, “Ah, está todo enferrujado - é por isso que não fecha”.
Não conseguir fazer o que geralmente consigo - mesmo coisas
muito triviais - é uma grande coisa para mim, de um jeito ruim. Então
eu só devolvi o guarda-chuva para a minha mãe - esse foi o meu
jeito de pedir a ela para tentar de novo. Dessa vez ela me mostrou
como o pequeno fecho estava corroído, e disse, “Viu? Está todo
enferrujado. Não tem como fechar esse guarda-chuva agora”. Já
houve um tempo em que, mesmo com essa explicação clara, eu
poderia ter perdido a cabeça completamente e me desfeito em
pedaços. Naquele ponto, no entanto, eu consegui aceitar a situação
e desistir de tentar fechar o guarda-chuva.
Nada disso foi possível devido a uma paciência maior, levando a
poderes mais fortes de resistência. Em vez disso, eu acho que o
meu cérebro, ao entender por completo a causa de um problema,
conseguiu dizer a si mesmo, Tudo bem, isso é impossível de
consertar, você pode seguir em frente agora .
No geral, eu sinto que sempre entendi as causas dos obstáculos
que encontrei, mas, mesmo assim, minhas emoções podiam ser
bastante inflamáveis. É de grande ajuda para mim que, sempre que
um novo problema aparece, minha mãe dá orientações curtas,
positivas e claras, além de instruções. Pessoas com autismo podem
precisar de mais tempo, mas à medida que crescemos, há
incontáveis coisas que podemos aprender a fazer, então, mesmo se
não puder ver seus esforços dando resultado, por favor, não desista.
Ainda temos toda uma vida à nossa frente. Alguns tipos de sucesso
podem ser conquistados, e apenas por esforço e suor. Todos temos
de manter em mente que a idade adulta dura muito mais tempo do
que a infância. Isso é o que eu venho constantemente lembrando a
mim mesmo.
4: Banhos frios

Em um dia de inverno, minha mãe ficou surpresa ao me encontrar


tremendo de frio após um banho. Ela me disse, “Você tem que
deixar o banho mais quente, sabe”. A questão é, eu realmente amo
a água, e sempre que entro no banho, eu não consigo evitar abrir a
torneira fria e deixar a água correr. Eu não percebo realmente meu
corpo esfriando. Quando a temperatura do banho está mais ou
menos como a de uma piscina coberta, meu corpo se sente como
se fosse um único ser com a água. Eu me sinto um peixe ou outra
criatura aquática que vive na água há éons.
Claro, eu não posso ficar no banho para sempre, por mais que
possa querer isso. Ao sair da água, eu sempre sinto
arrependimento, mas como o meu banho está fixo na minha rotina
diária, eu nunca fico muito agitado por causa disso. Eu nem fico
ciente de ter sido esfriado pelo meu banho frio até alguém dizer,
“Uau, o seu corpo está muito frio” ou “Olhe, você está tremendo!”.
Não importa quantas vezes me digam isso, eu ainda acabo em um
banho cheio de água fria. A minha esperança é que, ao me dizerem
de novo e de novo que banhos frios realmente não são muito bons
para o meu corpo, isso gradualmente seja absorvido por mim.
Desde que a vida e o corpo não estejam em risco, e que eu não
esteja incomodando demais as pessoas, essa abordagem de vai
gradualmente ser absorvido tem muito mérito, eu acho. Todo dia é
tão cheio de desafios e dificuldades para mim que se eu me
preocupasse mais em consertar meus comportamentos derivados
do autismo, a vida seria insuportável. Quando eu estava crescendo,
minha mãe não podia observar cada movimento meu - ela também
teve de desenvolver um modo “deixar rolar”. Essa abordagem pode
não caber em todo momento de autismo, mas tem nos servido muito
bem, até agora.
5: Rugas

Outro dia, quando eu me olhei no espelho, eu congelei. Refletido


ali, estava um rosto que não era meu. Eu continuei encarando,
pensando, O que aquele rosto estranho está fazendo no espelho?
Então, ouvi minha mãe rir. “Você parece um senhor idoso”, ela
disse, “com essas rugas na testa”. Eu fiquei surpreso - sem
perceber, eu tinha feito a minha testa se enrugar toda e, como
minha mãe disse, havia agora três marcas horizontais acima das
minhas sobrancelhas. Foi graças a aquelas três linhas que eu não
pude me reconhecer no espelho. Eu sei que não sou brilhante em
distinguir um rosto de outro, mas jamais teria acreditado que poderia
não reconhecer meu próprio rosto só por causa de uma testa
enrugada. Foi quando realmente entendi: há um mundo de diferença
entre apenas ver uma coisa e saber o que ela é.

6: Roupas descoladas

Já notei que as pessoas com frequência usam as palavras


“descolado” ou “hipster” quando estão falando de roupas ou de
moda. Todo esse conceito de “descolado”, no entanto, não faz o
menor sentido pra mim. Quando eu fecho todos os botões da minha
camisa, me aconselham, “É melhor deixar o primeiro botão aberto”.
Ou, quando fecho o zíper do meu casaco até o pescoço, me dizem,
“É para deixar o zíper aberto, sabe”. É mais descolado assim,
aparentemente, mas no meu modo de pensar, botões e zíperes
estão lá para serem abotoados e fechados, então parece estranho
não fazer isso. Quanto às roupas em si, desde que elas caibam em
mim e sejam confortáveis, são boas o suficiente - eu realmente não
me importo que impressão a minha roupa causa em outras pessoas.
Às vezes eu admiro esportistas ou celebridades, mas nunca olho
para suas roupas ou estilo com alguma inveja. A moda não me
atinge, eu acho.
Como um adulto, eu sei que não é bom usar roupas sujas ou
inapropriadas, e escolher roupas se tornou uma área complicada -
eu simplesmente não tenho o hábito de pensar sobre meu guarda-
roupa e aparência. Quando eu olho em um espelho, nunca sei o que
exatamente devo estar checando. Mesmo se eu escolho um ponto,
focar minha atenção ali já é difícil. Aspectos de minha aparência que
precisam ser consertados não pulam aos meus olhos, e não sei
distinguir muito bem entre como as coisas pareciam antes do ajuste
e como estão depois.
Eu criei alguns rituais pessoas de “sair para passear”: mudar para
uma roupa de sair, colocar um chapéu, limpar os óculos e colocá-
los, checar meu cinto, colocar a camisa para dentro, e assim por
diante. Sempre que me dão conselhos sobre moda ou estilo, eu faço
meu melhor para segui-los. Mas sempre penso que a vida diária
daqueles conscientes sobre moda, com todas as suas regras, deve
se tornar realmente exaustiva.

7: Band-aids

Sempre que tenho algum tipo de corte ou arranhão, eu quero


colocar um Band-aid imediatamente. Às vezes eu faço isso não
porque estou com dor, mas porque quero confirmar para mim
mesmo onde o machucado aconteceu. Além disso, é reconfortante
saber que o Band-aid vai alertar sobre o corte, arranhão ou o que
seja para outras pessoas. Ter algo na minha pele que normalmente
não está lá - nesse caso, um Band-aid - é uma sensação estranha,
então geralmente eu logo o tiro. Mas quando percebo que minha
pele está um pouco danificada, às vezes eu coloco outro Band-aid
para que outras pessoas também percebam. Quando uma espinha
aparece embaixo do meu nariz, eu coloco um Band-aid também, o
que sempre faz a minha família explodir em risadas. Eu não percebo
que isso é engraçado até ver a minha família rir, mas logo esqueço
tudo sobre isso, então na próxima vez em que tenho uma espinha
no mesmo lugar, faço exatamente a mesma coisa…

8: Quebra-cabeças

Desde que saí da escola, tenho gostado de montar quebra-


cabeças digitais no meu computador. Eu suspeito que haja muitas
crianças com autismo que realmente amam quebra-cabeças.
Quando eu os monto, eu presto mais atenção nas peças do que na
figura. Todas as peças podem parecer similares, mas na verdade,
se você olhar de perto, verá que cada uma é unicamente diferente
no seu contorno.
Eu não começo o quebra-cabeça pelas bordas. Juntar duas peças
é a parte divertida para mim, e correr para terminar o quebra-cabeça
estraga todo o objetivo. Eu não tenho muito prazer em terminá-lo
porque isso significa que a junção de peças - a parte boa - acabou.
Depois que termino, eu gosto de virá-lo do avesso. Amo inspecionar
como as peças todas se encaixam no lado oposto, também.
Então, após admirar as belas linhas curvas por um tempo curto,
eu destruo o quebra-cabeça para que ele fique pronto para a
próxima vez. São prazeres simples, os quebra-cabeças.

9: Lambe-lambe

Quando eu era bem pequeno, não conseguia comer uma bala


dura do jeito que se deve. No momento em que eu a colocava na
boca, eu a mastigava em vários pedacinhos. Eu sabia o que
“chupar” significava, mas não entendia a ideia de deixar uma bala se
dissolver lentamente no canto da boca. Eu me lembro de comer
esses doces pensando, Uau, essas coisas são muito duras . Minha
família deve ter quebrado a cabeça tentando encontrar uma forma
de me fazer sugar os doces em vez de mastigá-los.
Então, um dia, quando eu estava mordendo uma bala dura em
pedrinhas como de costume, minha mãe disse, “Não, não é morde-
morde, Naoki - é lambe-lambe”. Naquela época, se eu for honesto,
eu nunca prestava muita atenção nas instruções de minha mãe.
Mas dessa vez, o “lambe-lambe” foi tão hilário que realmente atiçou
meu senso de humor. Eu só fiquei de boca aberta para ela,
esperando-a dizer aquilo de novo - mas, então, do canto da boca
dela, apareceu uma bala dura inteira. Mais uma vez, minha mãe
disse, “lambe-lambe”, e me mostrou a bala que tinha estado em sua
boca.
Foi assim que eu acabei entendendo o significado e satisfação de
deixar uma bala lentamente se dissolver na sua boca.

10: Porções

  No passado, eu era incapaz de dividir um prato de comida em


porções. Mesmo quando me pediam diretamente, “Você pode dividir
isso em dois?”, eu não conseguia entender o conceito. Um método
só se tornava disponível para mim quando eu entendia que dividir
algo em dois poderia ser alcançado ao se transferir quantidades
iguais de comida de um grande prato, pouco a pouco e em
sequência, para dois pratos menores. Precisei de muita prática - um
pouco para você, um pouco para mim, mais um pouco para você,
mais um pouco para mim - até que eu tivesse aperfeiçoado meu
método. Mas eu cheguei lá no fim. O passo final foi aprender a ficar
satisfeito quando os tamanhos das porções ficam aproximadamente
iguais em aparência. Agora que cheguei a esse estágio, eu posso
servir comida mesmo quando mais de duas pessoas estão
presentes. A maioria das pessoas neurotípicas, eu imagino,
entenderiam tudo isso apenas ao escutar a explicação, ou ao
observar alguém dividir comida em porções. No meu caso, no
entanto, mesmo quando tenho uma imagem na minha cabeça da
tarefa finalizada, a sequência de passos que tenho de seguir para
transformar aquela imagem em realidade continua pouco clara. Eu
posso observar alguém fazendo o trabalho que preciso fazer, mas
minha mente não entende de fato que eu estou livre para imitar. É
preciso prática, uma mão na nossa, pequenos passos e momentos
“eureca” para nós, pessoas com autismo, alcançarmos nossos
objetivos com muito suor.

11: Camas elásticas e petecas

Eu pulo bastante, mas isso não quer dizer necessariamente que


eu goste de camas elásticas. Havia uma cama elástica na minha
escola de necessidades especiais, então eu ia nela de vez em
quando, mas não acho que isso esteja conectado com o meu hábito
de pular para cima e para baixo no chão, ou com qualquer outra
coisa. Claro, qualquer criança que realmente ame camas elásticas
deve se sentir livre para ir lá e pular - só estou dizendo que a ideia
fixa que diz camas elásticas combinam com o autismo pode estar
incorreta.
Eu sou bem inútil em esportes em geral, apesar de que
“atividades esportivas” estejam entre as minhas formas favoritas de
passar o tempo. Jogar beisebol da forma apropriada, por exemplo,
está fora de questão para mim, mas ainda assim, gosto muito de
jogar e pegar uma bola de beisebol. É a mesma coisa com o
badminton. Não posso dizer que seja bom nele, mas só acertar a
peteca com sucesso, mesmo que apenas uma vez, me deixa
maravilhado comigo mesmo.
Eu costumava ficar muito incomodado com o fato de não saber
quanto tempo uma sessão de badminton ia durar, então nós
decidíamos de antemão quantas partidas íamos jogar, ou o horário
em que deveríamos parar. Mesmo se estivéssemos no meio de uma
partida e a sessão de badminton estivesse indo bem, minha
necessidade de parar na hora combinada se sobrepunha ao que eu
queria ou não queria. Mas então, um dia, talvez porque eu não
jogasse havia séculos, eu esqueci de decidir um horário de término
ou um limite de partidas. Depois de um longo tempo, a pessoa com
quem eu estava jogando observou, “Ei, hoje você não está se
importando com decidir uma hora para parar, não é?”. Aquela foi a
primeira vez que eu percebi - e fiquei tão surpreso quanto ele. O
resultado foi que nós paramos de jogar badminton aquele dia
apenas quando a peteca ficou em pedaços. Graças a aquela
sessão, eu ganhei mais uma liberdade.

12: O inseto mordedor de bumbuns: O-Shiri-Kajiri


Mushi

Muitos anos atrás, uma música chamada “O-Shiri-Kajiri Mushi” era


muito popular. Eu me lembro de me sentir perplexo quando a ouvi
pela primeira vez, porque achei que deveriam mesmo existir insetos
como aquele, que andam por aí mordendo os nossos bumbuns.
Provavelmente havia outras crianças que estavam pensando o
mesmo. O que a maioria das pessoas achava engraçado no inseto,
eu acho, era o seu personagem cômico, mas o que me capturava
era a combinação das palavras “inseto”, “mordedor” e “bumbum”. De
qualquer forma que eu olhasse, a combinação de palavras me
parecia nova e inesperada, e cada vez que eu ouvia “O-Shiri-Kajiri
Mushi”, eu começava a rir de como era engraçado, enquanto me
perguntava como uma frase daquelas tinha sido pensada. Quando
as pessoas ao redor perceberam o quanto eu gostava da música,
elas me desenharam figuras do Inseto Mordedor de Bumbuns e me
compraram bichos de pelúcia do Inseto Mordedor de Bumbuns. No
entanto, todos acharam estranho que eu não estivesse mostrando
muito interesse neles. Naquela época, era mais difícil me fazer
entender porque eu era menos capaz de comunicar exatamente por
que algumas coisas me fascinavam.
Como a minha mente tende a ficar em branco quando eu tento
falar, raramente consigo vocalizar a palavra certa para a situação
certa. Ocasionalmente, no entanto, enquanto eu luto para me
expressar, um som sai, como “Ah-ah-ah…”. Quando eu produzo
esse som “Ah-ah-ah”, minha família agora sabe o que está
acontecendo. São as vezes em que eu pratico verbalizar as
palavras que quero articular. Minha mãe me conta que bebês
passam por uma fase similar antes de aprenderem a falar. Como eu
nem conseguia mostrar que queria falar quando era pequeno, você
poderia ver esse “Ah-ah-ah” como uma grande conquista.
Curiosamente, agora que paro para pensar nisso, quando eu
estou produzindo meu “Ah-ah-ah” eu o faço espontaneamente,
quase sem perceber. É diferente das vezes em que faço eco ou
repito como um papagaio palavras e frases que acabei de ouvir, e
das vezes em que uso frases prontas. Talvez isso não esteja muito
distante da forma como vocês neurotípicos experienciam o fluxo da
conversa natural?

Parte 2: Tempo e vida

13: “Espere um momento!”

As pessoas estão sempre usando a frase, “Espere um momento!”.


No passado, isso costumava me chatear porque eu nunca tinha
ideia do tempo que esse “momento” duraria. Varia tanto,
dependendo da situação. Um timer poderia ter sido útil, mas por
outro lado, eu tendo a ficar fortemente fixado nas coisas e
possivelmente o próprio timer acabaria sendo mais uma coisa com
que ficar obcecado. Hoje em dia, no entanto, quando me dizem para
esperar um pouco, eu consigo perguntar à outra pessoa, “Até que
horas?”. Se algo que eu estou fazendo deve terminar às três da
tarde, por exemplo, e passa do tempo, eu consigo propor uma
pequena extensão murmurando algo como “Até três e cinco”. Como
eu adoraria poder perguntar facilmente, “A que horas devemos
terminar por hoje?” ou “Por quanto tempo mais você acha que
devemos continuar?”, mas articular frases tão longas é quase
impossível para mim. Me referir a um horário, no entanto,
geralmente é o suficiente para as pessoas ao meu redor
perceberem que o que eu quero dizer, na verdade, é “Por quanto
mais tempo?” e me darem uma resposta. Se ainda passar da hora,
eu digo outra referência de tempo, como “Quando for três e quinze”.
Esse é o método que eu criei para manter a minha cabeça no
lugar.

14: Ajustes

Quando um horário combinado é alterado ou um destino mudado


de última hora, eu posso agir como se o céu estivesse caindo.
Preciso de tempo para acomodar meu estado interno à mudança no
plano. Mesmo assim, é importante manter a mudança. Ao voltar à
combinação anterior apenas para evitar a bagunça que eu vou fazer,
eu perco uma oportunidade valiosa de praticar como me ajustar a
uma mudança na agenda. Previsões e planos são muito bons, mas
acho que é crucial se acostumar a se adaptar ao inesperado e
imprevisível. Colocar essas mudanças em prática pode exigir algum
tempo, mas é tempo bem gasto, com certeza. Meu autismo e suas
fixações podem ser o motivo de eu rejeitar ajustes, e mesmo que
exista um leque de estratégias para lidar com isso, apenas aquelas
que uma pessoa com autismo consegue adotar vão ter alguma
utilidade.
Minha mãe monitora e guia minhas ações, estável e incansável. É
raro que ela me culpe ou fique deprimida sobre algo que eu tenha
feito por causa do meu autismo. Mesmo quando eu realmente não
estou em boa forma, ela não torna isso uma grande coisa. Essa
constante atitude estável dela é como eu consigo lutar para fazer
melhor amanhã. Eu também aspiro a ser melhor do que sou.

15: O dia adiante

Já ouvi isso: “A primeira coisa a fazer quando você acorda é


decidir o que você vai fazer com o dia”. No meu caso, quando abro
os olhos, meu primeiro pensamento consciente é se são seis da
manhã, para eu poder levantar. Eu olho meu relógio de pulso
imediatamente e, se são seis horas, eu sinto alívio. Se já passou
das seis, eu preciso me concentrar com muita força sobre quais de
minhas tarefas da manhã podem ser encurtadas. Depois disso, eu
checo o dia no calendário. Apenas ocasiões especiais ou eventos
estão escritos no calendário, então se o dia de hoje está em branco,
eu sei que há um dia “aproximadamente mediano” adiante. Eu só
consegui ficar relaxado com a ideia de “aproximadamente mediano”
recentemente. Talvez seja porque agora eu sou menos afetado por
situações incomuns. No passado, eu tinha muito mais dificuldade se
a ordem dos eventos do dia mudasse, ou se um assunto urgente
aparecesse inesperadamente. Eu não me importava com a
mudança de planos em si; em vez disso, eu ficava muito nervoso
com a forma como eu poderia reagir à nova situação. Eu não posso
evitar me preocupar sobre envergonhar outras pessoas ou ser
puxado além de meus limites em uma crise completa.
Realmente não sou bom em me sentar quieto. Quando sou
obrigado a sentar em um só lugar por qualquer período de tempo,
eu logo quero me levantar e me mover. Fazer nada me enlouquece
e não é nem um pouco relaxante; a ação me relaxa e me deixa
tranquilo. Não sei explicar muito bem por quê. É instintivo, como um
animal selvagem correndo por uma grande planície. Eu não estou
conectado nem ao passado nem ao futuro - minha vida é permitida
apenas pelo momento presente.
Não ter nada para fazer no momento presente tem o mesmo
impacto sobre mim que não ter nada para fazer pelo resto da
eternidade. Enquanto estou em movimento, eu me sinto como se
pudesse me tornar um membro válido da sociedade, como todo
mundo. Esse sentimento, eu acho, me traz consolo. Talvez eu esteja
errado, mas não acho que esteja: ao estar ativo e em movimento,
meu coração bate com mais força.

16: Administração do tempo

Ouvindo minha mãe e minha irmã discutirem sobre como lidam


com o tempo, eu acabei entendendo que há coisas que elas fazem
que eu não faço. Primeiro, decidir a que horas uma certa tarefa tem
de ser completada; depois, fazer a conta de volta até o horário atual
para ver a quantidade de tempo disponível; e então, trabalhar na
tarefa para garantir que ela esteja pronta no horário alvo. Esses
cálculos, eu imagino, são a chave para transformar planos em
realidade, mas ver um dia inteiro em termos de subdivisões é uma
habilidade que parece me faltar. Eu consigo montar uma agenda
diária para mim mesmo, mas me encontro incapaz de dominar o
tempo da forma como neurotípicos fazem. Essa inabilidade está no
meu sistema, eu suspeito, e não pode ser facilmente contornada por
esforço, treinamento ou prática. Para mim, depois que o tempo é
compartimentalizado, as suas “cenas” são fixas e eu não tenho mais
a liberdade de mudar as coisas.
Algumas pessoas podem pensar que a organização de uma
agenda é como montar peças de quebra-cabeça de formatos
variados em uma figura retangular, mas não é assim que funciona
para mim. Como ilustração: se eu estou na rua com meu ajudante
de necessidades especiais e ele me diz, “Para chegar em casa às
onze horas, temos que sair daqui às dez”, na próxima vez que
formos ao mesmo lugar eu vou me lembrar desses horários e inseri-
los no cronograma daquele dia. Isso não quer dizer que eu
determino o tempo em que precisamos começar nossa jornada para
casa por qualquer referência ao tempo que passamos fora de casa:
em vez disso, “dez horas” se torna a hora de “voltar para casa”, e
“onze horas” se torna a hora de “chegar em casa”, e esses dois
números ficam gravados na minha memória como dois pontos
ligados por uma linha.
Se a minha atividade atual não termina a tempo para a próxima
começar, eu cancelo a segunda atividade ou empurro o seu horário
de início para longe. O ajuste de tempo se tornou possível para mim
- desde que eu tenha alguém para me guiar pelas mudanças - de
forma que eu consigo lidar com as mudanças na agenda sem ficar
confuso, mesmo com o meu sistema de memória de ponto-a-ponto.
O motivo de eu não consertar meu horário de término é que, se uma
atividade não terminasse no momento marcado, eu acabaria
simplesmente trocando um “bloco” por outro na sucessão de
eventos, cenas e itens que compõem o meu cronograma. Desse
jeito, eu não fico constantemente fazendo mudanças arbitrárias na
minha agenda.
Meu cérebro tem o hábito de se perder dentro das coisas.
Encontrar o caminho para dentro é fácil, mas - como estar em um
labirinto - encontrar a saída é muito mais difícil. Eu quero sair do
labirinto agora, mas sou forçado a ficar dentro dele. Isso também se
aplica a horários e agendas. Eles me restringem. Eu gostaria de ser
livre dessas restrições tanto quanto possível. Alunos usam tabelas
de horários para a escola e muitas pessoas dependem de
planejamentos diários e coisas assim, então é tentador pular para a
conclusão de que agendas devem ser uma coisa boa para todas as
pessoas neuroatípicas também - e no contexto de tabelas de
horários escolares cujos itens ocorrem sempre iguais e em um limite
fixo de tempo, eu também os acho úteis. No entanto, uma agenda
feita de meras sequências de eventos sem um rótulo de tempo é
uma entidade inteiramente diferente para mim, e não me ajuda.
Outras pessoas podem ser capazes de lidar com mudanças na
agenda com bastante facilidade, mas quando eu tenho de me
acomodar a uma mudança em um plano pré-fixo, é absurdamente
exaustivo, enquanto reunir ações em um itinerário futuro é a própria
agonia! Eu acho que em qualquer contexto vai haver o jeito da
maioria de fazer as coisas, e uma minoria que precisa encontrar
uma alternativa. O que é importante a se considerar é qual a melhor
forma de acomodar nossos déficits e características únicas, e que
tipo de ajuda tornaria nossas vidas mais fáceis de lidar.

17: Estações

Algumas pessoas percebem uma estação do ano dando lugar à


outra gradualmente, mas para mim elas mudam de repente, em um
único dia, como virar uma página em um livro de figuras. Não estou
dizendo que não recebo nenhum aviso de uma mudança iminente
na estação. Eu a sinto chegando na roupa das pessoas, na cor do
céu e no jeito que o sol brilha; e então, como descobrir a resposta
certa para uma pergunta em um teste, assim que aparece algo que
simboliza a estação que está a caminho, eu sei que a nova estação
chegou. Hoje em dia, eu espero o “dia da mudança” com grande
antecipação. Sou uma dessas pessoas que ficam ansiosas quando
não sabem o que vai acontecer em seguida, e transformar essa
ansiedade em um prazer me levou um tempo muito longo.

18: Placas de sinalização na memória

Há pessoas que só se lembram que estavam fazendo a Ação A


antes de serem distraídas para a Ação B quando alguém as lembra
disso. Essas pessoas parecem não ter ideia de por que se
distraíram de seu propósito original; só aconteceu. Eu pareço ser
diferente: nunca esqueço do que estava fazendo - uma tarefa
doméstica, uma atividade de lazer - antes de trocar para outra coisa.
“Esquecedores” neurotípicos, no entanto, possuem um senso
palpável do fluxo do tempo e essa distração comum não causa
grandes inconveniências em suas vidas diárias. Isso me faz me
perguntar sobre a conectividade da memória, e como a de vocês
pode ser diferente da minha.
As placas de sinalização que isolam um evento de outro em
minha memória são indistintas e lhes falta a clareza e consistência
de frases como “até eu ir para cama” ou “a cada hora”. Esses
“eventos de memória”, eu diria, existem entre a essência de um
estado emocional aflorado - ativado por algo significativo - e o meu
retorno à condição em que estava previamente. Eu perguntei à
minha mãe sobre isso, e ela me disse que suas memórias existem
como um sistema de resumos, arquivadas de acordo com a forma
como ela agiu e como se sentiu naquele momento. Em relação a
memórias muito antigas, apenas cenas únicas dos eventos originais
podem permanecer intactas.
Nossos jeitos de lembrar podem variar incrivelmente, ao que
parece. Eu me interesso pela forma com que nosso comportamento
no presente pode ser influenciado pela memória. Uma memória
pode se tornar alegre ou dolorosa, dependendo unicamente do
modo como a processamos ou “digerimos”.

Justiça

Alguns se banham na luz.


Outros choram nas sombras.
O que é justiça?
O que é vício?
Não é fácil decidir.
Tudo que eu sei é
humanos são criaturas
absurdas, mas sábias.

19: Vida, a professora

Uma das lições que eu sou grato por ter aprendido como um
adulto é que a vida é difícil para todo mundo, não só para mim. Eu
entendi isso não por ter me tornado algum ser super sábio e
compassivo, mas apenas ao experienciar a vida e observar a
realidade ao meu redor. Muitas pessoas com deficiências, eu acho,
são mantidas isoladas e ilhadas da sociedade. Por favor, dê a
aqueles de nós com necessidades especiais as oportunidades para
aprender o que está acontecendo no mundo, sem decidir por nós -
sem supor Eles não entenderiam mesmo , ou Bom, eles não
parecem muito interessados . Na superfície, uma vida protegida e
passada em suas atividades favoritas pode parecer o paraíso, mas
eu acredito que, a não ser que você entre em contato com algumas
das dificuldades por que outras pessoas passam, o seu próprio
desenvolvimento pessoal vai ser prejudicado. O conhecimento das
suas próprias bênçãos é uma lição valiosa sobre a vida, dada pela
vida.

20: Como você luta

Quem iria querer ser separado dos demais e receber tratamento


particular, só por ter necessidades especiais? Não gosto do
pensamento por trás do sentimento, Ah, nós devemos fazer
exceções por causa da deficiência dele . Por outro lado, é uma dura
verdade que muitos de nós não conseguiriam viver
independentemente. Pessoas com necessidades especiais
deveriam ser aceitas na sociedade, junto com todo mundo . Se essa
frase fosse aplicada a mim, eu concordaria, de todo o coração, mas,
quando as pessoas são expostas a uma narrativa oposta com
frequência suficiente, é essa nova versão que acaba sendo aceita
como verdade.
O que eu desejo dizer é o seguinte: o valor de uma pessoa não
deveria ser determinado apenas por suas habilidades e talentos - ou
pela falta deles. É como você luta para viver bem que permite que
os outros entendam o quanto você é incrível como ser humano.
Essa qualidade milagrosa toca as pessoas. Através desse “como”,
as pessoas consideram a sacralidade e validade da vida de todo
mundo, não importando se há ou não necessidades especiais
envolvidas.

21: Sucesso

Eu nunca sonhei que O que me faz pular encontraria o público


que encontrou. Para ser honesto, ainda não consigo acreditar.
Quando me perguntaram pela primeira vez sobre a recepção
internacional do livro em uma entrevista, eu respondi, “Eu quase caí
da cadeira de choque”. Admito que me senti feliz, mas não senti
orgulho de mim mesmo ou um grande senso de conquista. Só quero
dizer com isso que tudo foi tão além das minhas expectativas. Que o
livro tenha vendido pelo mundo todo é digno de inveja, eu acho, mas
ao mesmo tempo não posso evitar me sentir um pouco ambivalente
sobre o sucesso. Não vejo a mim mesmo como uma grande figura
literária.
Dito isso, o que é essa coisa, “sucesso”? Alcançar um objetivo
que você coloca para si mesmo, suponho. Você nunca vai saber se
é o paraíso ou como vai ser até chegar a aquele objetivo. O sucesso
permanece fora de alcance, às vezes, não importa o quanto se corra
atrás dele. Só porque outras pessoas reconhecem o seu sucesso,
não quer dizer que você vai ter satisfação com ele. Para uma
pessoa como eu, com autismo total, o sucesso pode ser
particularmente difícil de visualizar. Para ter sucesso, você
definitivamente tem que fracassar e, para nós, velhas memórias de
fracassos anteriores podem ser um terror. Para mim, o sucesso não
é uma experiência emocional e revigorante, como a vista do topo de
uma alta montanha. É mais como andar na corda bamba, descalço,
em uma tenda de circo. Quando você chegar ao outro lado, vai
ganhar seus aplausos - mas a grande queda pode acontecer a
qualquer momento! Apenas pessoas que pensam no sucesso como
um objetivo em si mesmo vão vê-lo como um estado brilhante e
reluzente.
Algumas pessoas com autismo podem ficar obcecadas sobre
como não fracassar, e não estou dizendo que é errado ter medo do
fracasso. Estou dizendo que precisamos espremer cada gota de
coragem e nos levantar quando o fracasso vier. O sucesso pode ser
definido como um produto de incontáveis fracassos; ou como algo
que se vê após muitos pequenos passos em uma rampa íngreme.
As pessoas geralmente julgam se algo é um sucesso ou um
fracasso de acordo com resultados, mas eu acho que há mais sobre
isso. Eu respeito uma pessoa que ainda está no pé de uma
montanha, mas firme de pé e olhando para o pico. Nos olhos de
mesmo aquelas pessoas que parecem estar mais longe do
“sucesso”, você pode encontrar refletida a imagem de uma bela
montanha. Eu sou verdadeiramente grato de que as minhas
palavras tenham encontrado um público; e agora é hora de uma
montanha diferente, mais alta.

Uma entrevista de alfabeto

Em The Big Issue  por seus vendedores e equipe


(Abril de 2015)
Parte 1: De A a M
A: Como você geralmente fala com a sua família? Vocês brigam?
Se sim, sobre o quê?
Eu me comunico com a minha família pela minha prancha de
alfabeto, ou traçando letras na palma das mãos deles. Às vezes, eu
consigo articular uma palavra que já pratiquei muito, e outras vezes
eu produzo sons “Ah-ah-ah, ah-ah-ah” - como um homem das
cavernas primitivo - para sinalizar meus desejos. Combinar as
situações com as palavras certas é extremamente difícil para mim.
Há vezes em que eu fico confuso e perco a cabeça quando estou
em casa, mas não chego a brigar com a minha família.
Oportunidades de brigar nunca aparecem. As pessoas brigam
quando não fazem concessões umas com as outras. Acho que você
não pode realmente mudar outras pessoas, então faz sentido
procurar uma resposta que leve a personalidade do seu antagonista
em consideração. Talvez o motivo de não brigarmos em casa é que
eu tento escolher a saída pacífica.
B:  Você sonha? Tem tido algum sonho bom ultimamente?
Eu sonho, sim. Há pouco tempo, eu sonhei que estava passeando
com um filhote de cachorro em algum lugar desconhecido. O
cachorro começou a correr e eu fui atrás, arrastado pela coleira que
eu segurava. Chegamos a uma grande mansão. Minha mãe
apareceu - ela parecia meio canina - e disse ao cachorrinho, “Bem-
vindo de volta, Naoki, querido”. Então ela abraçou o cachorro e eles
desapareceram dentro da mansão. Enquanto isso, eu fui para meu
canil no canto do jardim.
C:  Qual é a primeira coisa que você faz de manhã? O que você
come no café da manhã? Você é difícil para comer?
Em dias de semana eu acordo às seis da manhã, e nos fins de
semana é às sete. O resto da minha família ainda está dormindo,
então eu me sento numa cadeira na sala de estar e não faço muita
coisa. Escuto os pássaros ou assisto o ponteiro dos minutos do
relógio e espero o tempo passar, sem pensar em nada em particular.
Começar o meu dia assim é um luxo. Às seis e meia, eu volto a
minha atenção para as minhas tarefas domésticas da manhã, como
ligar a máquina de lavar ou secar os pratos. No café da manhã eu
como torradas, sopa miso e outras coisas. Comidas que eu não
gosto incluem ouriço-do-mar, ovas de salmão, creme de chawan-
mushi , café e álcool. Minha comida favorita é frango frito,
hambúrguer e batata frita. Eu posso comer bastante.
D:   Ouvimos dizer que você gosta de ir a estúdios de karaokê.
Cantar é mais fácil para você do que falar? Como você se sente
quando canta?
Eu canto todo tipo de músicas, de canções de ninar a músicas de
anime a pop japonês. Quando canto, eu me sinto como se fosse o
personagem principal da música. Eu realmente amo isso. Sim,
cantar é mais fácil do que falar - acho que é porque músicas têm
ritmo. Ler em voz alta também é difícil para mim. Quanto mais uma
frase se estende, mais perdido eu fico. Eu gostaria de continuar
lendo, mas fico ansioso sobre a entonação e acabo lendo a mesma
parte muitas vezes. Ou fico irritado por continuar me perdendo
enquanto o “Fim” parece tão distante.
E: Você tem algum esporte favorito? Para que time de beisebol
você torce?
No momento, eu não tenho nenhum esporte favorito ou um time
de beisebol favorito, receio. No entanto, eu acho os movimentos
rítmicos dos atletas enquanto eles correm bonitos - não consigo
evitar assistir. Realmente não me importo com quem ganha ou
quem perde em esportes.
F:   Você uma vez escreveu um poema sobre alguém de quem
gostava. Há alguém em quem você está interessado no momento?
Não, na verdade não. Todo o mundo de amor e relacionamentos é
cheio de mistérios. Não sei nada sobre isso. Ainda.
G: Em O que me faz pular , você escreveu: “Minha memória não é
uma linha contínua, mas sim uma coleção de pontos”. Isso quer
dizer que as coisas que você experiencia a cada dia adicionam mais
e mais pontos a um grande quadro negro?
Eu diria que é mais como se as experiências se tornassem
estrelas no céu, uma por uma. Um quadro negro é bidimensional,
mas minhas memórias estão arranjadas em 3D. Com algumas
estrelas eu posso esticar o braço e tocá-las, enquanto outras estão
a centenas de milhares de anos-luz de distância.
H:   Em que estágio você considera uma pessoa finalmente
“crescida”?
A maturidade, eu diria, é uma questão de progredir cada vez mais
em direção ao seu eu ideal. Uma montanha tem muitas rotas até o
topo, e às vezes parece que você não está fazendo progresso, mas
talvez esses momentos sejam necessários para alcançar o seu
objetivo. Talvez você nem possa ter certeza se está fazendo
progresso ou não. Eu tendo a ignorar o que as pessoas pensam
sobre o meu progresso porque eu mesmo posso avaliá-lo, apenas
vendo a distância que percorri. Se a minha presente situação
escorregasse um pouco em relação ao meu passado, eu veria isso
como um estágio necessário para o meu eu futuro. “Crescido”: uma
palavra valiosa.
I:  Quando a vida se torna insuportável, o que eu devo fazer?
Por favor, não suponha que há uma saída fácil. Fique quieto, fique
calmo, e passe o dia de hoje apenas vivendo, como você fez ontem.
As pessoas podem viver sem confrontar a sua dor. O que trouxe
você aqui não é sua culpa. Nós, seres humanos, temos de viver
cada dia ao máximo e fazer o nosso melhor em qualquer ambiente
em que nos encontremos. Não há necessidade de sentir vergonha
só porque o seu “máximo” e “melhor” são diferentes dos de outras
pessoas.
J: Já faz quatro anos desde que eu comecei a vender The Big
Issue , e agora eu estou começando uma nova vida. Graças a um
dos seus livros [vendido exclusivamente pelo Big Issue   no Japão],
eu posso me sustentar. Não posso expressar o quanto sou grato, e
ainda leio o livro quando as coisas ficam difíceis demais. O que você
faz quando está deprimido?
Em primeiro lugar, fico muito feliz em saber que você pode se
sustentar. Geralmente, eu fico deprimido quando fracassei em fazer
algo. Meu fracasso vai permanecer na minha cabeça como uma
memória - o que está feito, está feito. Mas se eu continuar
deprimido, a memória-fracasso vai ser pior por ter um Eu Deprimido
nela. Eu não quero isso, então, para evitar isso, eu me visualizo
levantando de novo o mais rápido possível. Se eu puder transformar
uma memória de fracasso em uma memória de vitória sobre a
adversidade, então eu posso superar qualquer fracasso.
K:   Em um de seus livros, você escreve, “Enquanto eu não
considero que pessoas com deficiências precisam ser pensadas
como vítimas da sorte, eu acho que idealmente precisamos evoluir
nosso próprio senso de valores”. Eu não consigo evitar ter inveja de
outras pessoas. Como eu posso viver sem comparar a minha
própria situação com a dos outros ao meu redor, e manter meu
senso de valores sólido?
Tudo bem ter inveja de outras pessoas, eu acho. Enquanto você
tem inveja, você também sente um impulso para mudar a sua
situação. Somos humanos, e nos comparar aos outros nos deixa
deprimidos. Tudo bem sentir isso, também. Você não
necessariamente precisa de um sólido senso de valores só para
seguir em frente. As pessoas mudam, é claro. É melhor assim.
Nossos novos eus emergem da época e circunstâncias em que
estamos e das pessoas que conhecemos. Não temos escolha a não
ser viver entre outras pessoas. Tudo que eu sugeriria é que,
enquanto você se compara com outras pessoas, você se lembre de
suas bênçãos.
L:  Desde que eu estive presente nos momentos finais de alguém
próximo, eu comecei a pensar de forma mais concreta sobre me
preparar para o fim da minha própria vida. Você tem algum
pensamento sobre esse assunto?
Eu ainda sou muito jovem para responder a sua pergunta, eu
receio. Viver a minha vida cotidiana e pensar sobre o fim dela, isso é
um pouco demais para mim no momento.
M:   Qual é a melhor forma de conviver e ajudar pessoas com
deficiências? Às vezes eu me pergunto se, ao tentar demais sermos
justos e iguais, acabamos sendo injustos e exacerbando a
desigualdade?
Concordo que isso pode acontecer. As pessoas só podem
entender a própria dor. Até um desejo genuíno de ajudar uma
pessoa com uma deficiência pode se tornar um fardo ou um
desencorajamento para a pessoa que recebe a ajuda. É importante
que auxiliares e terapeutas se perguntem, Se eu fosse a pessoa que
estou ajudando...? Também seria útil se eles se certificassem de
que a assistência que estão oferecendo é de real relevância para a
pessoa com necessidades especiais, e não sobre gratificar o próprio
desejo de cuidar. É mais fácil falar do que fazer, eu sei.

Parte 3: Bolhas de fala

22: “Cheguei!” e “Bem-vindo de volta!”

“Cheguei!” e “Bem-vindo de volta!”: eu realmente não sou bom


nessa troca fixa de chamada e resposta ao chegar em casa. Às
vezes eu repito a frase que acabou de ser dita, ou só falo a errada.
Isso é porque as duas frases “Cheguei” e “Bem-vindo de volta” são
um par. Sempre que eu disse “Cheguei!”, eu recebi um “Bem-vindo
de volta!” sem atraso, então as frases ficaram marcadas na minha
memória simultaneamente. Quando eu tenho de agir de acordo com
instruções fixas, preciso procurar entre memórias similares. Como
os créditos passando no final de um programa de TV ou filme, essas
memórias passam de novo - sem áudio, o que explica por que é tão
difícil saber o que dizer nesses momentos de “Cheguei!” ou “Bem-
vindo de volta!”.
Mesmo hoje em dia, eu tendo a soltar frases que costumava
entoar nos meus dias de escola de necessidades especiais:
anúncios formais como “A sessão de trabalho começa agora” ou “A
aula acabou”. Não digo essas frases porque quero, ou porque estou
pensando em meus dias de escola. É muito como um botão de
repetição, sobre o qual eu não tenho controle. Eu costumava
ensaiar essas frases incontáveis vezes, então elas ficaram
enraizadas na minha mente. Há outras palavras que eu digo só pelo
prazer de dizê-las. É o mesmo que querer tocar uma música
favorita. Estou consciente da minha voz nessas horas, porque posso
- às vezes - parar quando me pedem. Levou muito, muito tempo até
eu me entender no nível que consigo hoje. Focando em tópicos
como esse, você pode ver que alguns aspectos podem ser
melhorados pela prática, enquanto outros não podem. Como regra
geral, lições não tendem a ficar comigo se me mostram como fazer
as coisas após uma briga por não fazê-las corretamente. É muito
importante que descubramos por nós mesmos por que não
conseguimos dominar uma habilidade, e o que podemos fazer a
respeito.

23: Palavras que quero dizer

Com muita frequência, eu murmuro palavras para mim mesmo.


Muitas dessas palavras não têm significado, mas outras são
palavras que eu uso para me comunicar. É fácil para as pessoas
dizer “Use expressões como suas ferramentas” ou “Uma conversa é
como jogar uma bola de um lado para o outro”, mas é tão, tão mais
fácil falar do que fazer. Ser não-verbal cria problemas e aumenta o
estresse, e aqueles de nós nessa posição estão, como você poderia
esperar, desesperados para encontrar palavras quando algo
maravilhoso ou triste ou terrível aconteceu. Há outros momentos em
que desejaríamos poder falar que poderiam surpreender pessoas
neurotípicas, eu acho. As pessoas ao nosso redor - ajudantes,
cuidadores, família - adorariam saber por que uma pessoa com
autismo está se acabando de chorar ou se comportando tão
misteriosamente. Mas, pelo menos no meu caso, eu desejaria mais
do que tudo ser capaz de falar com as pessoas na minha família e
perguntar a elas “Qual é o problema?” se elas parecem tristes, e
“Você está bem?”. Ou, quando causei algum transtorno ou
problemas para as pessoas, eu adoraria simplesmente me
desculpar, dar a elas um simples “Sinto muito”.
Essas palavras que queremos mesmo dizer parecem tão simples.
Elas não são palavras especializadas para oferecer motivos ou para
nos explicar. São as palavras mais triviais, mais comuns, que
adoraríamos ter ao nosso comando.
O primeiro passo em direção a achar uma forma de interagir com
as pessoas é querer isso. Desde que eu me tornei mais capaz de
me comunicar com os outros pela minha prancha de alfabeto, eu
tenho ficado perplexo pelo quanto as minhas palavras podem afetar
e tocar as pessoas. Trocas de pensamento são, em um grande
nível, dependentes dessa coisa chamada linguagem. Graças a ela,
seres humanos - e só nós - podemos realmente entrar e explorar os
sentimentos dos outros. Que habilidade extraordinária.

24: Estamos ouvindo

Estamos ouvindo a todos ao nosso redor e escutamos você, sabe.


Quando as pessoas estão na companhia de pessoas com autismo
severo, elas dizem o que quer que lhes venha à cabeça, sem filtro.
É como se nem existíssemos. A explicação, sem dúvida, é que não
reagimos visivelmente ao que está sendo dito.
Quando as pessoas tentam nos ensinar coisas, elas se aplicam
ao trabalho e usam várias estratégias, e quando acham que tiveram
sucesso, sentem-se bem sobre isso. No entanto, por que com tanta
frequência deixa de ocorrer a elas que se somos espertos o
bastante para entender as suas instruções, também podemos ser
capazes de entender a linguagem cotidiana que acontece ao nosso
redor o tempo todo? Não pode ser o caso que a parte com que
temos um problema não é entender o que as pessoas neurotípicas
estão dizendo, mas sim como reagir apropriadamente após ouvir
instruções? Você nunca pensou, “Essa pessoa não poderia ter
realizado aquela ação a não ser que entendesse o que eu estava
dizendo”?
Infelizmente, não posso evitar concluir que, com frequência
demais, pessoas demais interpretam aqueles de nós com autismo
de formas e por motivos que servem aos seus interesses primeiro, e
aos nossos em um distante segundo lugar.

25: Falta de palavras

Na época em que eu não tinha nenhuma forma de me comunicar -


nada de escrever, apontar na minha prancha de alfabeto ou
expressão verbal -, eu era extremamente solitário. Pessoas que
nunca experienciaram isso vão passar pela vida sem nunca saber
como a condição de falta de palavras pode destruir almas. Se eu
tentasse descrever como é ser não-verbal no Mundo dos Verbais
em uma única palavra, escolheria essa: agonia. E ainda assim, isso
também é verdade: se sabemos que há pelo menos uma única
pessoa que entende como é para nós, isso é consolo o suficiente
para nos dar esperança.
Por muito tempo, eu era atormentado pela pergunta, Como eu sou
o único aqui que não consegue falar? Por que eu? Eu sonhava com
frequência que era capaz de falar. Esse capítulo pode ser uma
leitura desconfortável para aqueles de vocês que vivem e trabalham
ao lado de pessoas com autismo não-verbal, mas gostaria que
vocês lembrassem: há muitos de nós, e é por isso que passamos.
Nada disso quer dizer que pessoas que não conseguem se
comunicar devem automaticamente ser relegadas a objetos de
piedade. Ao viver com dificuldades extremas todos os dias, ao
constantemente desafiar e fazer perguntas sobre si mesmas, elas
procuram por significado em suas próprias vidas e muitas delas
podem, eventualmente, acessar uma forma de satisfação além do
alcance de pessoas neurotípicas. Uma existência que vale a pena
consiste em jogar quaisquer cartas que a vida tenha te dado da
forma mais habilidosa que puder.

26: Nem todos vão entender

Minha forma de comunicação é incomum. Acho que uma análise


científica completa de como eu faço o que faço ficaria bem
complicada. No meu caso, desde que eu aprendi a tocar letras “à
mão livre” na minha prancha de alfabeto - sem apoio da minha mãe
-, as pessoas geralmente aceitam que são as minhas próprias ideias
que eu estou expressando. No entanto, entre pessoas com
necessidades especiais que praticam um modo similar de
comunicação ao meu, algumas estão trabalhando com pranchas de
alfabeto quase em segredo. Talvez o segredo seja para evitar
acusações de “trapaça”, mas eu não gosto de aceitar uma posição
que diz, Olhe, esse sistema de comunicação é válido o suficiente
para pessoas envolvidas que têm simpatia - não importa o que
todos os outros pensam . Isso é equivalente a uma evitação por
parte de todos os envolvidos. Na minha opinião, ninguém que esteja
lutando para dominar um sistema de comunicação não-verbal
apoiaria essa posição. Mesmo se dissessem que sim, eu suspeito
que estariam dizendo isso em benefício de seus pais ou terapeutas,
não por honestamente acreditar nisso.
Então o que permitiu a minha conquista? Para minha mente, uma
grande parte disso é que minha mãe nunca me disse, “Olhe, é bom
o bastante para as pessoas que querem nos entender: não se
importe com o resto”. Não importa os obstáculos que possam
aparecer para nós, pessoas parcial ou inteiramente não-verbais com
autismo, o objetivo final é continuar aperfeiçoando nossas
habilidades até que sejamos entendidos por todos. Todos.
Quando você quer contar algo a alguém, como você se aproxima?
Antes de conseguir me expressar de qualquer forma que fosse, eu
acreditava que apenas aprendendo a me comunicar um pouco, eu
poderia me fazer entender sobre qualquer coisa. Não era verdade.
Mesmo que eu consiga passar o que quero dizer em algum grau,
muito do que realmente desejo expressar é dito como uma prece,
um mantra, silenciosamente, de novo e de novo, em meu coração.
Palavras não são tudo, eu acabei aprendendo. Por favor, lembre-se:
a realidade de uma vida não-verbal é muito, muito mais difícil do que
a maioria verbal consegue imaginar.

Boatos

Não é legal
quando boatos sobre você
estão voando pelo lugar.
Depois de saber que estão
falando de você, não dá para voltar
a como você era.
No entanto, saber
que os boatos estão por aí
não precisa ter um impacto
detrimental. Boatos em si
não são ruins. O que importa é
o uso que você faz deles.
27: Perguntas e respostas, respostas e perguntas

Um dia eu ia sair e minha mãe perguntou, “Você quer luvas? Ou


não quer luvas?”. Eu respondi “Luvas” de imediato, mesmo que, na
verdade, eu não quisesse as luvas. Perguntas podem ser realmente
traiçoeiras para mim. No passado, sempre que me perguntavam
algo do tipo “Você quer x, ou não quer x?”, eu costumava responder
“Não” porque as últimas palavras que escuto se fixam melhor em
minha memória. Para melhorar isso, quando me fazem uma
pergunta binária, eu peço à pessoa que reorganize a opção positiva
e a negativa, ou que escreva a pergunta. Isso ajuda em certo grau e
eu repito perguntas muito menos do que costumava, mas ainda é
difícil para mim responder tão rapidamente quanto gostaria, ou
expressar meus desejos de forma precisa.
Obter itens só usando palavras é algo incrível, para a minha
mente. Desde que frases para fazer pedidos sejam fixas e limitadas
em número, eu acho que é possível adquiri-las. Com muita prática,
pessoas como eu podem aprender essas “frases de pedido” como
padrões. Os resultados - conseguir o que você quer - são imediatos
e visíveis, então essa abordagem vale muito o esforço. Responder a
perguntas, no entanto - isso não é tão direto. O motivo de
continuarmos sem conseguir responder a mesma pergunta, não
importa o quanto pratiquemos, deve deixar as pessoas neurotípicas
perplexas. A questão é que, pelo menos para mim, não é a mesma
pergunta. Vocês focam no “conceito” da pergunta, eu imagino, mas
para dominar uma pergunta, primeiro eu tenho de peneirar minha
memória para cenas em que perguntas similares foram feitas; então,
eu tenho de convocar e usar as palavras que funcionaram nessas
“cenas que combinam” na última vez. Claro, na vida real nem tudo
sobre a cena lembrada vai ser igual ao momento atual, e a não ser
que tudo sobre quem faz a pergunta - roupas, cabelo, rosto, e
identidade - corresponda à velha memória, uma nova “cena de
pergunta e resposta” é criada pelo momento em que estamos. As
palavras, tom e tempo exatos da pergunta também são fatores.
Trechos de vídeos e comerciais de TV são mais fáceis de ver em
minha cabeça porque nunca variam, e em aulas formais ou
contextos de lições, eu acho um pouco mais fácil acessar linguagem
do que na vida cotidiana, graças à consistência das rotinas de sala
de aula.
Entre as pessoas que têm autismo e desafios de fala, eu acho que
sempre haverá indivíduos cujos “bloqueios verbais” têm o mesmo
motivo que os meus. Eles também podem, eu acredito, desbloquear
a linguagem ao referenciar pontos em comum entre cenas de
memória e o momento em que estão. Isso pode exigir muita prática,
mas a sua família, ajudantes e professores não devem desistir
deles. A pessoa com necessidades especiais vai sentir aquela
resignação, perder a motivação e parar de tentar falar. Isso pode até
corroer o seu desejo de viver. Acredite em mim. Comunicação é a
pessoa, em um grande grau. Por favor, não seja o primeiro a se
afastar.

28: Pensamentos sobre palavras

A linguagem falada é como um mar azul. Todos os outros estão


nadando, mergulhando e brincando livremente, enquanto eu estou
sozinho, preso em um minúsculo barco, balançado de um lado para
o outro. Crescendo na minha direção e à minha volta, há ondas de
som. Às vezes o balanço é gentil. Às vezes sou jogado no ar e
tenho de me agarrar ao barco com toda a minha força. Se eu for
jogado para fora, eu vou me afogar - uma perspectiva tão
perturbadora, tão cheia de desespero, que pode me devorar. Outras
vezes, no entanto, mesmo não conseguindo nadar na água, eu vejo
o jogo de luz na superfície, fico maravilhado por estar boiando nela,
coloco as mãos e pés no mar, e sonho em pular para junto de todo
mundo. Quando estou trabalhando na minha prancha de alfabeto ou
no meu computador, eu sinto como se alguém jogasse um feitiço
mágico e me transformasse em um golfinho. Eu mergulho lá no
fundo - então disparo para cima, quebro a superfície e surpreendo
todos os nadadores. O processo pode parecer tão livre, tão sem
esforço, que eu quase esqueço que já estive preso naquele barco.
Para mim, há dois tipos de frases. O primeiro tipo é o que eu
escrevo para nenhuma plateia além de mim mesmo, só pelo prazer
de transformar meu mundo imaginado em palavras. Como ninguém
vai ler, eu escrevo rápido e quase casualmente, como se estivesse
resolvendo um simples quebra-cabeça. O segundo tipo de frase é
escrito com a publicação em mente, então eu faço meu melhor para
editar e corrigir essas para deixá-las apresentáveis. Eu tento me
certificar de que meus sentidos influenciados pelo autismo não
levem minhas frases para longe demais da experiência do leitor.
Especialmente com a escrita criativa, eu acho que um escritor
precisa trabalhar com a imaginação do leitor em cada frase. A
escrita narcisista causa náusea para o leitor. Escrever prosa que eu
sei que vai ser lida se parece com colocar discretamente um
manuscrito no topo de uma montanha e o deixando lá. De um bom
ponto de vantagem no pé da montanha, eu posso olhar de volta
para cima e assistir a viajantes encontrando, chorando ou sorrindo
com as páginas que eu deixei lá em cima. O topo da montanha
parece bem longe, mas as vozes deles ecoam até onde eu estou
ouvindo.
Quando estou me comunicando com a minha prancha de alfabeto,
às vezes eu faço correções. Se eu estou apontando uma letra
“errada”, eu não a vocalizo. Então, eu recomeço, apontando as
novas letras e soletrando as palavras que realmente quero. Fazer
uma correção não é fácil para mim, eu devo admitir. Trazer meu eu
interior para fora já demanda muita energia, então eu tento usar a
prancha de alfabeto só depois de ter organizado as frases na minha
cabeça da melhor forma possível. Se eu me expresso com concisão
e precisão, não preciso gastar muito tempo com isso. Frases não
muito longas podem ser guardadas na minha cabeça. Em vez de
escrevê-las primeiro e depois precisar editá-las, eu prefiro guardá-
las ali por um tempo. Quando necessário, eu as tiro do estoque para
ver se algumas partes estão quebradas ou se o estilo está unido;
então, eu as afio até que estejam terminadas.
Há momentos em que tudo sai bem, quando eu componho uma
frase e me afasto só para apreciá-la. Essa sensação é como
admirar um grande prédio cujo design eu criei. Com sorte, o prédio
não tem elementos desnecessários e cada detalhe está anotado e
funciona. Ele combina bem com o cenário ao redor e parece como
se sempre devesse ter estado ali. Esses são os prédios que eu
tento construir.
Quando estou escrevendo uma história, eu tento habitá-la, me
tornando o personagem principal. Passando de um lado para o outro
entre o mundo da história e minha realidade diária, o menino
sonhador que eu um dia fui coexiste com o adulto que sou agora. O
tempo perde a definição. Traduzir em palavras os pensamentos e
paisagens que aparecem na minha cabeça me traz profunda
satisfação. Eu não mapeio realmente meus enredos ou decido uma
estrutura com muita antecedência. Enquanto escrevo, os elementos
de uma história meio que se encaixam sozinhos no lugar.
Ideias e emoções existem primeiro, para a minha mente; palavras
vêm depois, para dar forma às ideias e emoções. Certamente,
pessoas com um vocabulário impressionante podem expressar suas
ideias de forma mais precisa, mas essas ideias existem
independentemente das palavras usadas para descrevê-las. Eu não
diria que quanto mais palavras você adquire, mais rica a sua
sensibilidade. Prazer, tristeza, gostos e desgostos - todos sentimos
essas coisas, mas quem é capaz de capturar cada sensação que já
sentiu apenas com palavras?
Eu não tenho “palavras favoritas” baseado em como elas soam ao
meu ouvido. Palavras são animadas pelo significado, afinal. Sons na
natureza - o canto de grilos ou de uma toutinegra - me atraem mais
do que o som de palavras. O fato de que essas criaturas não falam
em palavras, mas enviam mensagens usando seus corpos inteiros,
é um mistério para mim, um mistério que seres humanos não
conseguem duplicar.
Palavras

Pessoas, quando machucadas por palavras,


reprisam essas palavras infinitamente
e se afundam lá embaixo
dentro de si mesmas.
É sábio se lembrar:
palavras são apenas palavras.
Não há necessidade de engolir, também,
os sentimentos que as encerram.

29: Problema para falar

Outro dia, quando era hora de dizer “Muito obrigado” ao meu


ajudante por me levar para sair e me trazer em segurança para
casa, a frase que saiu da minha boca foi “Tenha um bom dia!”. Eu
venho trabalhando nessas peças verbais por séculos e séculos, mas
ainda não consigo dominar trocas tão simples. Falar é problemático
para mim. Eu gostaria de explicar o que estava acontecendo na
minha cabeça quando eu cometi o erro com meu ajudante.
1) Eu queria dizer a coisa correta ao meu ajudante. (Na minha
cabeça, “Muito obrigado” está guardado na categoria “Frases
Cotidianas”.)
2) Assim que eu tentei expressar minha gratidão, minha mente
ficou em branco.
3) Eu hesitei, sem ter ideia do que precisava fazer a seguir.
4) Então eu olhei para baixo, e vi os sapatos que meu ajudante
estava usando, de pé no pequeno hall de entrada de nossa
casa…
5) ...o que me lembrou de ver os sapatos do meu pai, mais cedo
naquele dia, no mesmo lugar.
6) A cena em que eu disse “Tenha um bom dia!” para o meu pai
surgiu como um flash na minha mente.
7) Eu lembrei que precisava dizer algo ao meu ajudante…
8) ...então eu soltei a frase que já estava na minha cabeça:
“Tenha um bom dia!”.
Você pode imaginar uma vida em que você é confrontado a cada
esquina por essa inabilidade para se comunicar? Eu nunca sei que
estou dizendo a coisa errada até me ouvir falando.
Instantaneamente eu sei que escorreguei, mas já é tarde demais, e
as pessoas estão apontando meu erro, ou até rindo dele. A piedade,
a resignação, ou o senso de Então ele nem entende o que está
acontecendo! me deixam infeliz demais. Não há nada que eu possa
fazer além de chafurdar em desânimo.
A melhor reação aos nossos erros vai variar de pessoa para
pessoa, e de acordo com a idade, mas por favor lembre-se: para
pessoas com autismo, a dor de não podermos fazer o que
gostaríamos já é difícil com que viver. A dor vinda das reações de
outras pessoas aos nossos erros pode partir nossos corações.

30: Palavras de gratidão

Para pessoas com fala restrita, não é fácil expressar um


“obrigado”. Algumas pessoas neurotípicas podem achar um pouco
intrigante que pessoas não-verbais como eu usem a prancha de
alfabeto por uma parte tão grande do tempo para transmitir nossa
gratidão. Claro, também há ocasiões em que eu quero enfatizar
problemas, mas me sinto extremamente indisposto a desperdiçar as
preciosas chances que tenho de me expressar com assuntos
triviais. Tente imaginar que você é um residente em um país
estrangeiro onde você é totalmente ignorante da linguagem, mas
uma pessoa lá está cuidando de você de forma excelente. Então,
um dia, chega um intérprete que oferece um período de tempo
estritamente limitado para traduzir qualquer coisa que você queira
dizer. Como você usaria essa oportunidade? Você realmente iria
querer gastá-la reclamando sobre os sofrimentos por que você
passa graças ao seu fraco domínio da linguagem? Talvez muitos
tópicos viriam à mente, mas se você está com alguém que respeita,
eu acho que há uma grande probabilidade de que, em primeiro
lugar, você iria querer expressar sua apreciação. Percebe o que eu
quero dizer? Quando há pouco tempo, a maioria de nós focaria na
gratidão, especialmente se não sabemos quando vamos ter a
próxima chance - se é que vamos ter alguma - para mostrar nossos
pensamentos e sentimentos. “Prioridades primeiro” é a chave.
Hoje em dia, eu sou uma pessoa que pode dizer à família o que
quiser. O tempo é meu aliado. Esse é um luxo e um tesouro.

Parte 4: Anos de escola

31: Tesoura e cola

Quando eu estava no jardim de infância, aprendi a usar uma


tesoura e, quando me mostravam onde colocar minhas formas
cortadas, eu podia colá-las. Completar um “trabalho de arte de corte
e colagem” sozinho, no entanto, era uma tarefa gigantesca: eu
achava quase impossível fixar o método em minha memória, mesmo
enquanto estava sendo ensinado. Eu realmente invejava todas as
outras crianças que conseguiam terminar seus trabalhos de corte e
colagem sem ajuda e em tão pouco tempo.
Hoje em dia, desde que os livros de arte que eu esteja usando
sejam feitos para crianças bem novas, eu consigo fazer essas
tarefas sozinho, olhando para o diagrama que mostra como a
imagem terminada deveria ficar. Eu não posso exatamente me
gabar sobre isso - os exercícios são para crianças de quatro a seis
anos - mas eu tenho muito prazer ao fazer as tarefas requeridas de
forma independente. Tanto tempo atrás, parecia inimaginável que
um dia eu conseguiria lidar com esse tipo de trabalho. Pode ter
levado treze anos para chegar a esse ponto, mas finalmente eu
posso dizer a meu eu vazio do jardim de infância, “Continue - você
vai chegar lá algum dia!”.

32: Pegue um adesivo de “Bom trabalho!”

No passado eu era totalmente inútil em trabalho com papel,


mesmo quando me guiavam pelo processo. Hoje em dia, eu consigo
fazê-lo sem nenhuma ajuda, o que me dá um prazer infinito. Quando
termino uma peça, devo colar um adesivo de “Bom trabalho!”. Meu
primeiro objeto completo de arte em papel era um coelho, então o
adesivo que eu escolhi tinha um coelho. O próximo animal que eu fiz
foi uma lesma, mas como não havia nenhum adesivo de lesma, eu
perguntei à minha mãe qual eu deveria usar. Ela disse que eu podia
escolher qualquer adesivo que quisesse entre o amplo leque
ofertado. Eles eram um tipo de prêmio ou recompensa, ela disse;
“Só escolha o que você gosta”. Isso me jogou em um dilema.
Expressar preferências está ligado a pensamentos e sentimentos, e
como eu tenho dificuldades com meus pensamentos e sentimentos,
segue-se que eu também tive problemas quando chegou a hora de
escolher meu adesivo de “Bom trabalho!”. Então, assim que um
adesivo de panda chamou a minha atenção, eu o descolei e prendi
na minha lesma. Minha mãe aprovou: “Isso mesmo, Naoki, só
escolha qualquer adesivo que te atraia”. Até hoje, aposto que ela
está convencida que eu tenho um afeto particular por adesivos de
panda. Esse é um exemplo clássico da facilidade com que crianças
não-verbais com autismo podem desencadear uma sequência de
mal entendidos.
Então, eu não consigo escolher um adesivo favorito, nem algum
adesivo favorito. Assim que me dizem para escolher um, minha
mente entra em turbilhão, da mesma forma que ela faz quando não
posso expressar meus pensamentos ou emoções. Por conta disso,
eu acabo optando pelo primeiro adesivo que captura meu olhar.
Pode não ser o primeiro que eu vejo, nem o mais chamativo - é só
aquele em que o meu olho por acaso se agarra - e minha própria
vontade não tem um papel nisso. Mais ainda, se um observador
está assistindo, ele pode criar uma conexão permanente entre
minha escolha de adesivo e, por exemplo, pandas, simplesmente ao
declarar “Ahá, então é de pandas que você gosta!” e “Boa escolha!”.
Daquele momento em diante, aquela escolha particular se torna
arraigada como um tipo de padrão.
Eu posso acessar esse padrão no futuro e reencená-lo, então na
próxima vez em que eu estiver na situação de escolher um adesivo,
provavelmente vou escolher o panda de novo. Para mim, a escolha
de adesivo nunca foi o prêmio ou recompensa que é para as outras
pessoas. Seguir o caminho pisoteado do padrão fixo é preferível de
longe ao estresse de não saber que escolha eu deveria estar
fazendo - então, nove vezes em dez, eu pego o atalho mais fácil.
Não é que eu sinta pena de mim mesmo. É assim que as coisas
são. Mas eu iria gostar se as pessoas neurotípicas pudessem
entender o que está acontecendo conosco. Só isso.

33: Minha liberdade

“Por que eu não consigo falar?” Esse foi um mistério para mim por
um longo tempo. Quando eu era uma criança pequena, eu não tinha
ideia do que estava acontecendo e tudo que sentia era tristeza.
Durante meus dias primários na escola, eu comecei a achar que me
desenvolvia mais lentamente. No Fundamental II, eu já tinha
desistido da ideia de que qualquer coisa pudesse ser feita por mim.
Acho que o motivo para isso é que não havia ninguém ao meu redor
com autismo tão severo quanto o meu, mas também verbal o
suficiente para se comunicar comigo.
Mais tarde, eu me tornei aluno de ensino médio de longa distância
e só precisava visitar o prédio físico da escola de forma ocasional.
Minha vida começou a ser diferente daquela da maioria das pessoas
da minha idade. Em vez dos pontos de vista de outras pessoas, o
que começou a importar mais para mim foram os pensamentos e
ideias dentro da minha própria cabeça. Havia quem acreditasse que
era crucial que eu continuasse indo a uma escola regular todos os
dias, como alunos comuns, talvez porque jovens hikikomori
começam sua retirada permanente da sociedade ao se recusar a ir
à escola e terminam nunca saindo de seus quartos. Para mim, no
entanto, aqueles poucos anos “fora do sistema” se mostraram
preciosos em termos de descobrir como viver de acordo com meu
próprio livre arbítrio.
Viver de uma forma diferente dos outros requer um grau de
coragem. Embora seja verdade que viver com sua família restringe
sua independência em alguns aspectos, a independência de que
estou falando tem mais a ver com a liberdade de viver como eu
mesmo e ser o que sou na sociedade. Então agora sou grato à
minha família por me dar o espaço e a liberdade de que eu
precisava.

34: Falta de amigos

Somos ensinados na escola que é uma coisa boa fazer um monte


de amigos. Há algumas crianças, no entanto, que simplesmente não
são boas nisso. E como crianças com autismo são ruins em interagir
com os outros, muitas delas têm quase nenhum amigo, e podemos
supor que algumas delas sofrem provocações e bullying de seus
colegas. Os valentões não têm a intenção de causar danos sérios;
apenas jogam seu peso em cima dos outros porque é divertido. Há
gente grande que diz às crianças que sofrem bullying para
simplesmente aguentar caladas, até repreendendo as vítimas e
dizendo a elas, “Ha, tem coisa pior esperando por você no mundo lá
fora!”.
Até onde sei, não há absolutamente nenhuma necessidade de
“praticar sofrer bullying”. Adquirir superpoderes de resistência não é
algo que as crianças precisam aprender antes de entrar na
sociedade. Apenas a pessoa que sofre o bullying entende o
verdadeiro custo daquilo por que passam. Pessoas sem experiência
com o bullying não têm ideia do quanto é infeliz crescer sendo
atacado o tempo todo.
Eu gostaria que as pessoas parassem de pressionar as crianças
para fazer amigos. Amizades não podem ser artificialmente criadas.
Amigos são pessoas cujo respeito e apoio mútuo ocorrem
naturalmente, certo? Quer tenhamos ou não montes de amigos,
cada um de nós é o protagonista de nossa própria existência. Não
ter amigos não é nada de que se envergonhar. Vamos todos seguir
e nos manter verdadeiros ao nosso caminho singular pela vida.

35: Escola

Durante meus dias na escola primária, eu costumava pensar que


era um caso infeliz e azarado que ninguém entendia. Apenas minha
mãe estava do meu lado, e mesmo ela era apenas uma aliada - uma
aliança que mal dissipava a dificuldade de estar em uma sala de
aula regular se sentindo unicamente diferente de todos os outros.
Por que eu não consigo falar? Como eu sou o único que não
consegue? Eu costumava agonizar sobre essas perguntas enquanto
assistia as outras crianças fazendo todo tipo de coisas sem esforço
que eu nunca conseguiria, nem se passasse toda a minha vida
tentando. Toda vez, eu só queria desabar e chorar.
Eu fiquei na escola primária regular até o quinto ano - onze anos
de idade -, mas ela tinha se tornado tão física e mentalmente
exaustiva que eu fui transferido para uma escola para crianças com
necessidades especiais. Meus sentimentos sobre a mudança foram
ambivalentes, e ainda são. Em um sentido, pareceu que eu estava
fugindo, e, uma vez lá, me levou quatro anos inteiros para encontrar
um caminho para o meu eu autêntico. Por outro lado, até então eu
nunca tinha observado uma turma em um contexto de necessidades
especiais e fiquei surpreso pelas grandes diferenças entre as aulas
lá e a educação a que eu estava acostumado. Embora tivesse
sentimentos conflitantes sobre o rótulo de “necessidades especiais”,
a gentileza que recebi tanto dos professores quanto dos alunos -
impensável na minha escola anterior - aliviou a minha infelicidade.
Lá, eu não era mais um “caso problema”, apenas um aluno comum.
Alguns alunos eram mais capazes que eu enquanto outros tinham
desafios mais severos, e pela primeira vez eu percebi quantas
crianças neuroatípicas havia no mundo.
A escola para crianças com necessidades especiais me deu a
liberdade de ser o que eu era, mas se tornou menos um lugar para
receber uma educação e mais um lugar para pensar sobre o meu
autismo. O tempo passou sem que eu fizesse muita coisa. As aulas
eram, em teoria, feitas sob medida para o perfil de deficiência de
cada aluno, mas na prática os professores já tinham trabalho
demais só lidando com as necessidades rotineiras dos alunos.
Alguns alunos eram de “longo prazo” e tinham estado ali desde o
primeiro ano, enquanto outros, como eu, tinham sido transferidos de
escolas regulares porque se havia pensado que estariam melhores
em uma escola pensada para necessidades especiais. Em
retrospecto, a maioria dos meus colegas parecia curtir seus dias na
escola sem reclamações, mas ainda me pergunto se todos eles
acreditavam que ali era o lugar onde realmente pertenciam?
Dito isso, minha nova escola era um lugar onde alunos
neuroatípicos estavam pelo menos livres de bullying ou de
repreensões verbais ignorantes. A escola me ensinou a importância
de aceitar ajuda e de ser respeitado e valorizado pelos outros. Eu
aprendi que todos temos o direito de viver como um ser humano
deve viver, e que a felicidade é alcançável, com ou sem deficiência.
Eu vi um caminho futuro levando primeiro a uma escola de ensino
médio para alunos com necessidades especiais (com que a minha
nova escola estava ligada) e então um centro de trabalho para
pessoas com deficiências. Eu resolvi aumentar o leque de coisas
que conseguia fazer sem ajuda, para trabalhar em me tornar o mais
independente possível e, ao melhor de minha habilidade, evitar ser
uma inconveniência para os outros. Eu pensei que quaisquer
aspirações fora desse futuro não eram realistas, porque era agora
onde eu pertencia. Eu entreguei quaisquer memórias de minha
escola primária anterior à história antiga.

36: De volta à escola

Havia montes e montes de crianças com autismo na minha nova


escola para crianças com necessidades especiais. Eu tinha
raramente encontrado alguém com autismo na minha cidade; tinha
sido o único na minha escola local. Mas na minha nova escola, você
podia encontrar dezenas de alunos com autismo em um só olhar.
Em retrospectiva, eu agora entendo que havia uma crença arraigada
de que crianças neuroatípicas não pertenciam a lugar algum que
não fosse em escolas para crianças com necessidades especiais -
fim da história. Não quero dizer que eu estava especialmente triste
ou solitário na minha nova escola. Eu não estava. Só quero dizer
que não houve questionamento do meu destino.
Não posso dizer que alguma vez já odiei o fato do meu autismo.
Talvez isso venha de nunca ter sido não neuroatípico, mas suspeito
que seja mais verdadeiro dizer que é porque eu sempre tive um
senso de autoestima que existia de forma independente do meu
autismo. Graças a isso, eu acho, eu pude me imaginar indo adiante
para estudar no ensino médio para alunos com necessidades
especiais, e então me juntando à instalação local para adultos com
deficiências. Apesar disso, no entanto, após terminar o Fundamental
II, eu tomei uma rota alternativa. Eu me inscrevi em um ensino
médio à distância e comecei a aspirar a ser um escritor. Por que a
mudança de planos?
Eu estava mudando por dentro. Comecei a perceber que estava
permitindo que um sistema tomasse minhas decisões de vida por
mim, e comecei a questionar as coisas por mim mesmo: Será que o
fato de eu ter autismo deve ditar cada aspecto da minha vida? e
Sobre o quê eu quero que a minha vida seja?   Em benefício de
quem eu entraria no ensino médio de necessidades especiais e
centro de trabalho? Se era em meu benefício, por que eu estava tão
ambivalente com a ideia? Ou eu só estaria fugindo de algo? Eu não
ia negar que tinha aprendido muito sobre muitas matérias na escola
e tinha me conectado comigo mesmo como uma pessoa com
autismo. Igualmente, eu me perguntava com frequência por que o
mero fato de estar ali parecia compulsório. Pela primeira vez, eu
entendi que o que é apropriado para algumas pessoas com
necessidades especiais não é necessariamente apropriado para
todas, ou pelo menos não para mim.
Pessoas com necessidades especiais que não podem expressar
suas opiniões nunca escolhem sua educação. Por mais que nos
esforcemos, podemos nunca alcançar o resultado desejado. E mais,
quando a educação de necessidades especiais não conquista o que
promete, a culpa é frequentemente colocada em parte nos pais ou
na criança em questão. A educação deveria ajudar a criança e os
pais; não deve terminar sendo um tipo de cela de prisão. Por esse
motivo, nossa educação não deve ser definida demais pela visão de
outros, ou ser inquestionavelmente obediente aos valores e crenças
de especialistas. É de importância crucial que a educação de
necessidades especiais se adapte a cada aluno.

37: Timidez do novo semestre


Dois mistérios sempre chamavam a minha atenção quando eu
estava em uma escola regular: primeiro, que no primeiro dia do
segundo semestre, todos os meus colegas pareciam muito tímidos
ao chegar na escola; e segundo, que a atmosfera na sala levava
tanto tempo até voltar ao que tinha sido antes das longas férias de
verão. Quando eu perguntei à minha mãe o motivo por trás disso,
ela respondeu, “É porque seus colegas não se veem há tanto
tempo”.
Embora eu sinta o prazer de ver um amigo após uma longa
ausência, realmente não entendo essa timidez. Tenho tentado
entender os motivos por trás disso. Será que os meus colegas
estavam se perguntando se eles mesmos e todos os outros tinham
mudado durante as férias? Ao absorver os rostos um do outro e
falar, eles gradualmente levavam seus relacionamentos ao mesmo
lugar de antes. O que me surpreendia - e ainda surpreende - era,
primeiro, como quase todos os meus colegas exibiam aquela
timidez; segundo, como todos aceitavam a timidez como normal; e
terceiro, que o mesmo ar de desconforto ocorresse após cada longo
recesso.
Eu achava tudo isso profundamente interessante. Meu palpite é
que, por eu não ter tanta consciência do fluxo do tempo, um recesso
de um mês é apenas mais uma cena embutida no passado.
Pessoas que podem se lembrar dos eventos de suas vidas na
ordem correta, por outro lado, precisam de tempo para realinhar
seus eus de antes das férias com seus eus de depois das férias.

38: Lições em retrospectiva

Eu fico pensando hoje em dia sobre a minha escola regular para


crianças neurotípicas. Com certeza, havia coisas que eu não
conseguia fazer sozinho, e, com certeza, isso podia ser deprimente
e difícil. No entanto, eu estudava e participava de esportes
empregando o melhor de minhas habilidades na época, e embora o
esforço tenha eventualmente me sobrecarregado, pelo menos eu
estava ali por um tempo, rindo e chorando e perdendo a cabeça
junto com meus colegas. Minha escola regular foi um treinamento
importante onde eu pude aprender sobre viver em sociedade. Eu me
arrependo de não entender isso na época. A escola não dura para
sempre, e às vezes eu tenho apreensão sobre a separação de
crianças com necessidades especiais da educação regular
completamente. É pedir demais que a maioria neurotípica faça um
pouco de esforço para entender pessoas como eu, que tendem a
permanecer fora de seu radar? Parece que sim.
Eu aceito que pode ser impossível estudar exatamente as
mesmas coisas, mas deveria ser possível dividir uma escola. Na
minha escola regular eu aprendi sobre direitos humanos e coesão
social, mas em relação à minha educação, esses princípios não
pareciam ser aplicados. Pessoas com necessidades especiais não
precisam apenas de prática nas coisas que não conseguem fazer.
Também precisam - crucialmente - procurar por significado em suas
vidas. Eu queria que mais pessoas entendessem que há indivíduos
que levam vidas praticamente invisíveis enquanto lidam com
deficiências e desafios, e que observá-los fazendo isso é refletir
sobre a própria vida. Isso não quer dizer que pessoas com autismo
querem que você pense Ah, coitadinhos! ou Tenho tanta pena deles!
Tudo que queremos é viver ao lado de todo mundo.   Pessoas
levando a vida e se esforçando juntas é algo maravilhoso. Sim, a
maioria neurotípica pode ser mais produtiva do que nós, mas nós
também queremos abraçar a vida e ser úteis aos outros o melhor
que pudermos. Será que pessoas nascidas com necessidades
especiais devem levar vidas não vistas, como se estivéssemos nos
escondendo? Infelizmente, com frequência demais somos mantidos
separados da sociedade contra nossa vontade. Isso nos nega a
chance de uma vida com significado.
Não estou aqui para fazer demandas sobre melhoras na condição
diária de pessoas com necessidades especiais. Eu entendo que
pessoas neurotípicas têm vidas ocupadas e estressadas e que é
graças a vocês que nós podemos ter vidas toleráveis, pelo menos.
Mas com certeza há muito que podemos aprender só por estarmos
juntos, considerando como vocês nos veem e como vemos vocês?
A forma como vivemos nossas vidas individuais alimenta o senso de
valores da sociedade. Há mais sobre a ajuda mútua do que troca
material e apoio físico. Há mais sobre a vida humana do que comer
e dormir.
O motivo de eu não ter frequentado a seção de ensino médio da
minha escola de necessidades especiais foi que eu queria escolher
meu próprio futuro. Assim como qualquer pessoa faria.
Naturalmente, essa escolha continha certas responsabilidades, e a
realidade a que essa escolha me levou não foi sempre mil
maravilhas. Mas foi escolha minha , e o meu primeiro passo em
direção à minha vocação. Trabalhar em uma instalação para
pessoas com deficiências não é, de forma alguma, algo negativo - a
vida de todos é válida -, mas nos separar da sociedade não nos
ajuda em nada.
Não posso saber tudo que há para saber, mas acho que a forma
como escolhemos navegar por nossas vidas deveria ser uma
decisão individual. A ideia de que é melhor vivermos em isolamento
não deveria ser tomada como um ditado. É por meio da observação
das vidas de outras pessoas que alguém consegue entender o que
é certo para sua própria vida.
Há muitas formas de viver, e isso também vale para pessoas com
necessidades especiais. Nós crescemos e desabrochamos melhor
em companhia. Deve haver tantos de nós com sonhos que
ansiamos por ver realizados algum dia. Que os futuros de vocês e
os nossos se juntem.

Processo

Algumas pessoas dizem


que os resultados não são tudo:
o processo importa mais.
Seria porque,
enquanto você se move em direção ao objetivo,
é o seu estado interior,
não as ações que você realiza,
que contam? Acreditar em si mesmo
pode salvar o dia.

39: Elogios

Elogios não são um atalho para a autoaceitação, eu acredito. O


elogio nasce do julgamento dos outros. É diferente de uma ação ter
realmente ido bem ou não. É separado de como pensamos e
sentimos dentro de nós mesmos. Muitas pessoas parecem acreditar
numa noção de que elogios aumentam nossa vontade de ter
sucesso e nutrem nossa confiança, mas não tenho tanta certeza de
que esse seja sempre o caso. Claro, crianças pequenas amam ser
elogiadas, e é sempre prazeroso receber um elogio de um
observador imparcial. Quando eu era um aluno da minha escola de
necessidades especiais, no entanto, eu costumava ter sentimentos
conflitantes sobre professores que derramavam palavras
exageradas de elogio sobre os alunos por conquistas bastante
triviais. Havia crianças por todo o espectro na minha escola, então
talvez às vezes fosse apropriado, mas os professores usavam a
mesma estratégia mesmo para alunos de funcionamento muito mais
alto do que eu. Era a mesma história com nossos pais e guardiães -
éramos elogiados pelas questões mais minúsculas, ou por coisas
que já tínhamos aprendido séculos antes. Todos eram tão
invariavelmente legais conosco, que era como se qualquer pessoa
ruim tivesse sido apagada da face da Terra. Gradualmente, a
atmosfera me cansou. Realmente parecia que eu estava preso
numa escola para bebês.
Minha gratidão aos professores da minha escola de necessidades
especiais é profunda, e tenho consciência de como eles cuidavam
de nós, alunos, de forma diligente. Ser elogiado não é um ato hostil,
mas vale a pena considerar se a pessoa com autismo quer o elogio
tanto quanto quem elogia supõe que ela quer. Crianças com
necessidades especiais já sabem que são diferentes, e todas vivem
com dificuldades cuja natureza apenas elas podem entender.
Professores e adultos tendem a focar em encontrar coisas para
elogiar. Elogios podem nos ajudar a sentir queridos e nos encorajar
a focar no que somos bons. No entanto, quando eu era elogiado por
fazer algo que só seria causa para elogio em uma criança pequena,
eu sentia como se meu futuro estivesse sendo adiado
indefinidamente, mais uma vez.
O que eu ansiava, como uma pessoa com necessidades
especiais, era ser ensinado que papel, que propósito eu poderia ter
na sociedade, e como alcançar algum nível de independência.
Algumas pessoas podem pensar Não não, essas perguntas são
muito difíceis para crianças entenderem . As respostas, quando
colocadas em palavras, podem parecer muito complexas para nós,
mas eu argumentaria que isso é só porque com frequência somos
tão ruins em usar linguagem. Eu argumentaria que cada pessoa
neuroatípica está pensando o mesmo sobre uma vida com
significado e independência. Crianças com deficiências podem, aos
seus olhos, parecer presas em uma infância perpétua, mas nossos
pensamentos e sensibilidade evoluem constantemente. Então,
usando vocabulário que a criança entenda, por favor mostre a elas
como podem viver suas vidas ao máximo.

40: Do jeito que você é

Muitas pessoas anseiam para que os outros as aceitem do jeito


que são - especialmente, eu suspeito, pessoas que sabem que vão
encontrar essa aceitação. Mas para aqueles de nós com
deficiências, o que “do jeito que você é” sequer significa
exatamente? Quando uma pessoa que vive com constantes
desafios escuta, “Não se preocupe, você pode continuar sendo
exatamente como é”, eu às vezes me pergunto se aquela pessoa de
fato quer continuar naquele mesmo modo. A frase “O jeito que você
é está ótimo” contém sentimentos gentis de quem a diz, eu sei; e eu
sei que quem fala acredita que a frase vai deixar a pessoa que
escuta confortável. O que eu gostaria de questionar, acho, não é a
frase em si, mas sim as entrelinhas. Se a pessoa quer dizer Sabe,
você já é bom o suficiente do jeito que você é , algumas pessoas
vão ficar encantadas de ouvir isso, mas suspeito que outras vão
estar pensando, Não, obrigada: eu não quero ficar presa do jeito
que sou agora para o resto da minha vida . De certa forma, é fácil
aceitar uma pessoa sendo como ela é. O que importa a longo prazo
é o que vai acompanhar a afirmação, “Tudo bem, só seja do jeito
que você é”. Essa é a questão.

41: Conselhos ao meu eu mais jovem

Se eu pudesse falar com o meu eu de treze anos, eu não


ofereceria palavras suaves de encorajamento fácil. Só ouvir “Faça
seu melhor!” e “Vai dar tudo certo no final” não teria significado
muito para mim na época - a vida era simplesmente uma luta grande
demais. Ninguém tem uma visão objetiva dos aspectos bons e ruins
de seu eu atual, eu acredito: é só em retrospectiva que entendemos
o que estávamos pensando. Palavras positivas animam as pessoas,
eu sei, mas eu preferiria deixar uma impressão no meu eu mais
jovem de que a vida é curta. Pessoas ansiosas para abraçar o
amanhã são pessoas imbuídas de esperança. Assim que
entendemos que nossas vidas não - como imaginamos alguma vez -
duram para sempre, podemos arregaçar as mangas e começar as
coisas.
Eu tinha treze anos quando aceitei inteiramente o fato de minha
deficiência. Antes disso, quando eu era ainda uma criança e não
pensava em muita coisa além de mim mesmo, não conseguia
começar a visualizar meu futuro. A passagem e fluxo do tempo
pareciam eternos, como estar em um balanço de onde eu nunca
saía. Então, eu gostaria de dizer ao meu eu de treze anos que um
dia o balanço vai parar e que, até que isso aconteça, ao balançar
com toda a sua força, o velho cenário vai evoluir. Depois que você
sente a presença da morte, você conhece a brevidade da vida. A
vida é curta. A vida é uma sequência de arrependimentos. Mas
todas as preocupações que o atormentam agora logo vão recuar
para o passado.
A última coisa que gostaria de dizer ao meu eu de treze anos é
considerar para quem ele está vivendo. Eu diria, “Por favor viva sua
vida para si mesmo”. Pais, professores e cuidadores continuam a
tomar conta de nós, e é claro que não devemos nos esquecer de
agradecer a eles. No entanto, nossas vidas são nossas. Devemos
viver para nós mesmos com orgulho e a cabeça erguida. No
passado, eu costumava me desprezar por ser tão inútil - mas quem
fazia esse julgamento também era eu. Eu diria a mim mesmo, “Faça
sua vida brilhar com a pureza de uma flor e as estrelas cintilantes.
Ao seu redor, estão pessoas que têm orgulho de você e desejam o
seu bem. No seu futuro, há dias em que você pode ter expectativa
pelos seus amanhãs.”

Uma jornada

Eu peguei a rua que sempre pego, então como fui me perder?


Estranho demais para palavras. Só uma escorregada da mente,
talvez? Olhando em volta, foi o que imaginei. “Isso aqui poderia
estar em qualquer lugar”: uma frase perfeita para essa cidade. Era
para eu saber o que estava acontecendo, mas mesmo onde eu
estava de pé parecia desconhecido. Olhando atrás de mim, eu vi um
rio atravessar a estrada e, como se meus pés tivessem decidido por
mim, comecei a correr. Luzes dançavam no rio. Aqui e ali, havia
redemoinhos na correnteza. Eu notei uma pessoa na outra margem,
olhando diretamente para mim.
- OLÁAAAAAAA! - Minha voz saiu alta, inacreditavelmente alta.
Ainda me observando, a pessoa fez uma leve reverência e eu me
senti um pouco reconfortado. Bom, vamos atravessar esse rio e ver
o que há do outro lado , eu pensei, e continuei correndo. Deve haver
uma ponte por aqui em algum lugar . Mas não consegui encontrar
nenhuma. Eu estava ofegante agora, então olhei em volta mais uma
vez e percebi que a pessoa agora estava do meu lado do rio, então
disparei de volta de onde tinha vindo.
- Com licença - eu disse.
- Qual o problema?
Eu não tinha certeza de como explicar as coisas.
- Bom, eu estou meio perdido. - Minha testa estava toda suada. -
Onde é esse lugar? Sabe, eu…
- Anime-se, você vai estar em casa logo - disse o homem.
Aquelas palavras gentis me consolaram e me deixaram
envergonhado por ter estado tão perturbado. Claro, sim, minha
família deve estar se perguntando onde eu estou . Com aquele
pensamento, me dei conta de quem o homem era.
Meu pai. - Pai - murmurei, e ele pareceu um pouco perplexo.
Provavelmente estava pensando, Então finalmente ele percebeu
quem eu sou . Ele agarrou minha mão e eu me desculpei em
silêncio: Me desculpe por não reconhecê-lo de primeira . Meu pai e
eu saímos andando lado a lado, como fazíamos quando eu era
criança, e tudo estava bem. Há apenas um minuto parecia o fim do
mundo - inacreditável!
- Obrigado por vir me buscar - eu disse a ele.
Meu pai fingiu não me ouvir. Eu me perguntei por quê.
Chegamos a uma avenida de árvores gingko, em que eu já tinha
andado antes. Sim, a cena era bem familiar, mas eu não estava
mais relaxado - me sentia como se estivesse, na verdade, em um
país estranho. A solidão se derramava sobre mim, então eu falei de
novo.
- Pai, quanto tempo vai levar para chegar?
Meu pai se virou para mim. - Quando o sol se puser, eu diria.
- Que bom - respondi. E, pela primeira vez em muito tempo,
falamos de muitas coisas - escola, amigos, o gato, tudo. Ele
absorvia tudo, às vezes sorrindo, às vezes assentindo, às vezes
fazendo barulhos de concordância. Eu descrevi cada memória que
tinha na minha cabeça.
A estrela da noite tinha aparecido e tudo ao meu redor estava
tingido com as cores do pôr do sol. Eu encarei a cena com anseio.
- Que-imagem…
Um silêncio caiu. Não havia mais nada para contar ao meu pai. Eu
estava prestes a dizer “Sua vez, pai”, mas, quando virei a cabeça
para cima para ver seu rosto, uma sombra passou por ele. Ele
parecia abatido, e eu fiquei todo ansioso: Preciso continuar falando
sobre a minha vida, ele quer ouvir mais . Me esforcei para encontrar
mais lembranças que pudesse ter esquecido em algum lugar, mas
meu corpo não parava de tremer de ansiedade. Eu esqueci algo,
algo crucial… e agora meu pai vai ficar furioso comigo .
No momento seguinte, eu me vi correndo para longe de novo até
que, algum tempo depois, eu finalmente perdi o ar. Eu devo estar na
clareira agora . Eu me sentia como se tivesse feito algo ruim, mas
também como se estivesse seguro. A escuridão tinha engolido tudo
ao meu redor, então não havia nada que eu pudesse fazer - teria de
me deitar e dormir bem onde estava.
Era de manhã cedo quando acordei. Luz banhava meu corpo
todo. Eu me sentia bem, e cantei para mim mesmo uma canção que
tinha amado muito tempo atrás. A centímetros de distância e por
toda parte havia faixas de flores silvestres, belos rosas e amarelos.
Uma borboleta branca cruzou a minha visão. Vou pegar você ,
pensei, e corri atrás dela: a borboleta tremulou e tremulou e
tremulou e de novo e de novo eu agarrei o ar, antes de finalmente
tropeçar e cair de costas. Derrotado, eu me agachei e ergui a
cabeça. Quem é aquele?
Ali, na minha linha de visão, estava um velho. Seu olhar não era
penetrante, mas me incomodava. Ele estava olhando meu eu mais
profundo, eu senti.
Corri para longe, tentando não olhar para trás na direção dele, até
que ele estivesse a uma distância segura. Quem no mundo ele
podia ser? Por que estava me encarando daquele jeito?
Agora que eu pensava sobre isso, me ocorreu que eu
provavelmente tinha visto o mesmo velho no dia anterior, também. E
talvez eu o tivesse visto no dia antes desse...
Quem sabe? Eu disse a mim mesmo para não me preocupar
muito com aquilo.
Respirei profundamente, e soltei todo o ar…
Não há nada especialmente fora do comum.
Para mudar meu humor, tentei convocar uma memória feliz. Nada
me veio à mente. Cansado. Eu devo estar cansado. Um bom e
longo descanso em casa, era disso que eu precisava. Então me pus
em movimento mais uma vez. Em dias ensolarados, as árvores e
plantas e flores silvestres estão brilhantes de vida. Quando eu era
criança, eu costumava correr e brincar nesses prados, pegando
insetos e brincando de esconde-esconde. Aqueles eram os dias de
ouro. Um após o outro, os rostos dos meus amigos visitaram minha
mente.
Como vai a velha turma esses dias? , eu me perguntei.
O verde ao meu redor, enquanto isso, estava mais denso, escuro
e profundo. A força vital da natureza que encapsula esse mundo me
deixou sem palavras, e me sentindo como se fosse eu que estivesse
sendo respirado por algo. Continuei andando. O pensamento me
ocorreu de que logo à frente estava o que quer que fosse que eu
estava procurando.
De repente, como se emergindo de um labirinto, cheguei a um
campo aberto e me sentei, suspirando. Sim, o cenário aqui era
familiar. Eu costumava ser uma pessoa tão alegre. Eu contava
minhas bênçãos, e sorria… mas logo que estava prestes a
continuar, ouvi vozes conversando. Uau , pensei, mesmo em um
lugar tão vazio como esse, há pessoas . Fiquei de pé, enquanto
algumas mulheres de aparência amigável se aproximaram. Elas
usavam aventais e dividiram chá e lanches comigo.
- Que dia glorioso! - elas disseram. - Vamos dar uma volta. Por
que você não vem conosco?
- Bom - eu respondi -, tudo bem.
Começamos a andar. Todos estavam felizes, e gentis.
Após um tempo, um prédio branco apareceu à vista. Uma por
uma, as mulheres entraram.
- Por que você não entra? - elas me perguntaram.
Bom, por que não? Um convite é um convite.
Mas, ao pensar melhor, mudei de ideia.
- Me desculpem - eu disse -, mas tenho algumas coisas de que
preciso cuidar... Vou ter que pedir licença. - Dizendo isso, eu me
curvei em despedida.
As mulheres protestaram. - Ah, mas você já veio tão longe!
Não. Eu estava decidido. Me despedi e andei na direção oposta.
Apesar do que tinha acabado de dizer a elas, as pessoas
permaneceram nos meus pensamentos e, secretamente, eu me
agachei nas raízes de uma grande árvore crescendo perto da casa.
O som das pegadas diminuiu, e a porta foi trancada. Eu esperei
mais um pouco.
Ninguém saiu do prédio.
Esse não é um lugar onde eu pertença.
Não posso simplesmente ficar aqui para sempre.
Não, eu tenho de fazer alguma coisa.
Tudo vai dar certo no final.
De onde na Terra você saiu?
Uma menina pequena estava ao meu lado. Eu não a tinha notado
antes.
Ela me perguntou: - Para onde você está indo?
- Hã… aquele lado - respondi, e comecei a andar.
Sim, é verdade - eu estava indo naquela direção.
Mas após apenas alguns passos eu tropecei em uma pequena
pedra e bati a testa no chão, arrumando um machucado bem feio.
Enquanto eu estava encolhido ali, a garota olhou para o meu rosto
com preocupação.
- Vamos - ela disse. - Eu vou guiar você pelo resto do caminho. -
Eu segurei a mão da menina e ela me levou embora.
Que criança prestativa , eu pensei, para ter tanto trabalho com
alguém como eu. Sou verdadeiramente grato. Será que ela é algum
tipo de anjo? Então eu agradeci a ela.
Passo após passo após passo, nós andamos.
- Bom, chegamos - ela disse. - Estamos em Aquelelado.
Ah. Já chegamos . Prontamente, eu disse: - Agora para esse lado.
- Ok - disse a menina. Ela pegou a minha mão de novo e me
levou em uma nova direção. Passo após passo após passo. A mão
dela era pequena e gentil, e enquanto estivesse com ela, eu me
sentia encorajado, como se tudo fosse ficar bem.
- Aqui estamos - ela anunciou. - Chegamos em Esselado.
Eu não quero me despedir dessa menina . E depois de ter esse
pensamento, eu fiquei em silêncio, mas a menina disse: - Você não
entende o que eu estou dizendo? - Seus olhos se encheram de
lágrimas.
Então eu fiquei triste também. Coloquei as mãos nos ombros dela.
- Não, me desculpe, me desculpe, eu entendo, sim. - Que terrível
da minha parte, fazer uma criatura tão doce chorar... Aquilo era
demais para aguentar. Eu olhei para cima, para o grande além, e
pouco a pouco a pouco, minhas emoções se acalmaram. Em cada
direção, o céu azul se esticava para longe. Nuvens brancas
flutuavam. Se eu fosse um pássaro, voaria para a eternidade …
...e o meu corpo pareceu mais leve que o ar, então foi levantado.
Estiquei os braços, o máximo possível.
Maravilhoso... simplesmente maravilhoso .
Minha mente e corpo pareceram tão livres, que eu esqueci que
era uma pessoa.
- Chega agora - eu disse a mim mesmo. - Já é o suficiente.
Mas o que “suficiente” significa, exatamente?
Alguém me deu um empurrão nas costas, e na velocidade do
pensamento eu voltei a mim mesmo. A pessoa que tinha me
empurrado era um velho, que me olhava com severidade. Nós
nunca tínhamos nos visto antes. Eu me afastei, ou tentei me afastar,
mas ele me impediu. Quando ele viu o sangue no meu rosto da
minha testa ferida, seus traços demonstraram desagrado. Eu disse:
- Hã… - e coloquei a mão na sobrancelha.
O velho disse: - Deixe isso quieto e venha comigo - e agarrou o
meu pulso.
- Ei - eu protestei - isso machuca!
Mas ele não me soltou. Continuou andando, me arrastando atrás
dele, até que chegamos a uma pequena sala, e ele me empurrou
para dentro. Havia uma cama e uma cadeira, e nada mais. Onde eu
estou agora, e o que vai acontecer comigo?   Comecei a chorar e
não consegui parar. Aquele velho horrível é o pior dos piores para
me trancar e me deixar em um lugar como esse! Eu nem fiz nada de
errado...
Era o Fim - e eu estava congelado.
- Me tirem daqui! Me ajude! Alguém!
Olhei pela minúscula janela.
O sol estava lentamente, lentamente afundando.
Ah...
Um pôr do sol para escurecer meu coração.
Eu não tinha notado que adormecera. As cortinas estavam
fechadas e eu não sabia se era noite ou dia. Em silêncio, eu abri a
porta do quarto. O corredor do lado de fora estava deserto - agora
poderia ser minha chance de escapar. Quando eu saí para o
corredor, no entanto, o velho correu para mim com um rosto de
trovão e exigiu saber:
- E aonde você pensa que vai?
Assustado pelo volume da voz, eu voltei ao meu quarto.
Como ele ousa falar comigo naquele tom?
Fiquei irritado. Bom, ele que se dane. Não vou mais fazer o que
ele manda.
Aquela noite eu estava muito agitado para dormir, mas no dia
seguinte o velho entrou no meu quarto e me deu um educado “Bom
dia”. Eu o ignorei, o que podia tê-lo incomodado. Ele não me deu
café da manhã. Eu não estava com tanta fome, mas quando
também não houve almoço, disse “para mim mesmo”, em uma voz
deliberadamente alta: - Meu Deus, não comi nada hoje. - Com
relutância, ele fez para mim algumas grandes bolas de arroz, e
depois que eu as engoli todas, o velho curvou as sobrancelhas em
uma expressão de surpresa divertida.
Graças a aquela expressão engraçada dele, de vez em quando eu
pedia ao velho para fazer mais bolas de arroz. Ele esfregava
antisséptico na ferida da minha testa, colocava um Band-aid e
gentilmente afastava a dor. Hum, talvez ele não seja tão ogro assim,
afinal.
Todas as canções dos pássaros ecoavam nas montanhas.
Um dia, eu me enchi de coragem e disse ao velho:
- Sabe, eu gostaria de ir para casa agora.
Ele me olhou, mas ignorou o que eu tinha dito, agindo como se
nem tivesse ouvido. Quem ele pensa que é? Como eu posso confiar
nele por mais um segundo? Minha paciência tinha acabado, e eu
rosnei:
- Eu quero sair daqui! Por que você não me deixa ir para casa? -
Eu transbordei e soquei o velho no peito, de novo e de novo. - Você!
- gritei. - Você! Só saia da minha frente!
Os ombros do velho tremeram, e então ele perdeu a cabeça. - Já
basta!
... Será que a culpa é minha por estar aqui?
Será que eu estou errado?
Não me encare desse jeito.
Minha última esperança de algum dia ir para casa tinha ido
embora.
Daria no mesmo me matar de uma vez.
Não aguento mais isso.
Ainda assim, minha vida com o velho seguiu em frente. Ele
tentava falar comigo algumas vezes, mas eu estava muito mal-
humorado, muito mergulhado em desespero para responder. Apesar
do meu humor, ele continuava a conversa sozinho. Será que o velho
se sente sozinho? O que se passava na mente dele era um mistério.
De tempos em tempos, outras pessoas entravam no meu quarto
para limpar ou arrumar, mas o velho sempre ficava. Com esses
outros, ele era respeitoso ao ponto da submissão, mas sempre
mandava em mim. Eu não gostava do velho por isso, com certeza,
mas à medida que eu o observava, comecei a me perguntar se ele
também não tinha sido aprisionado aqui de alguma forma e estava
sendo forçado a trabalhar contra sua vontade. O velho estava
sempre expressando gratidão a outras pessoas. Chegou um ponto
em que eu até comecei a ter pena dele, e passei a tratá-lo com mais
gentileza. Logo ontem eu disse a ele:
- Esse seu trabalho é bem difícil, não é?
E pela primeira vez o velho me deu um sorriso. Ahá, então estou
certo , eu pensei. O que há de mal em ajudá-lo um pouco? Então,
quando o velho me dizia, “Levante os braços”, eu levantava os
braços. Ou se ele me dissesse, “Coma isso agora”, eu comia, por
ele. Tarefas como aquelas, até eu conseguia fazer. Algum dia, eu
quero sair daqui e ser livre de novo . Eu precisava que alguém
entendesse que eu sonhava em ser livre de novo. Parte do peso foi
tirado dos meus ombros ao pensar no velho como um tipo de aliado.
Do tipo que fortalece você.
Às vezes, quando o velho não estava ocupado trabalhando, ele
me levava para passear. Fora do prédio, o ar era fresco e limpo. O
velho e eu sentávamos um ao lado do outro em um banco, na brisa
leve. Eu olhava para o chão enquanto ele apontava para a distância
e dizia, “Olhe aquilo, bem ali…” Para ser honesto, eu não conseguia
entender o que ele estava apontando, mas respondia com um
“Claro, sim…” e um aceno de cabeça. Achei que o velho estava
tentando levantar meu espírito e me dar esperança renovada no
futuro. Eu era grato pelo gesto. Talvez eu e ele estivéssemos
ficando amigos, afinal.
Talvez por estar me sentindo mais em casa e estabelecido agora,
eu estava dormindo melhor e por mais tempo. Não importava o
quanto eu dormisse, ninguém perturbava meu descanso. De vez em
quando, eu tinha um sonho estranho. Havia um Eu alegre, cheio dos
prazeres da primavera, e outro Eu que soluçava desesperadamente.
Essas duas versões de mim mesmo não sabiam da existência um
do outro... como se dois mundos fossem abrigados em uma única
história contínua. Havia uma suposição de que o Eu Alegre teria o
final feliz, mas, na verdade, tanto o Eu Alegre quanto o Eu
Desgraçado terminavam mais ou menos iguais. Eu não entendia por
quê. Surpreendentemente, eu me percebi simpatizando mais com
meu eu mais feliz - afinal, o Eu de sonho que tinha mais em comum
com o Eu real era o mais infeliz.
Comigo deitado na cama, o velho cantava canções de ninar e
acariciava minhas costas com gentileza. Era constrangedor ser
tratado como um bebê, mas enquanto meu rosto se relaxava, o
velho me assistia contente. Ele cuidava de mim de outras formas,
também. Ele mudava minhas roupas, me alimentava. Quando ele
tinha ficado tão gentil? Falávamos de um assunto ou de outro e o
tempo passava de forma até prazerosa. Um dia, o velho perguntou,
“Está tudo bem com você?” e eu fiz que sim com a cabeça, mas
meu corpo estava pesado e lento e, mais uma vez, o sono me
arrastou para baixo.
O velho, que até recentemente tinha sido ranzinza e grosso e
bravo comigo o tempo todo, agora fazia piadas e tentava me fazer
sorrir. Quando criança, o velho devia ter sido muito bom em fazer
aviões de papel. Ele fez um para mim.
- Ei, veja isso... - E enquanto eu olhava, o avião de papel planava
no ar. Eu o seguia com o olhar, sem piscar. O velho jogou o avião de
novo e de novo, e quando finalmente terminamos, ele o colocou nas
minhas mãos. Eu tive um relance da sombra de uma criança e ouvi
um “Eba!” com a voz de um garotinho, então uma escuridão cobriu
minha mente. O velho se virou para longe e a porta fechou atrás
dele. Bam.
Por volta de meia-noite, eu acordei ao ser sacudido. O velho
estava ali de novo, lágrimas enchendo seus olhos. Eu o olhei de
volta, perplexo. Ele enterrou o rosto no meu. Por que tão triste,
pobre velho? Tudo bem, tudo bem, eu estou aqui, vou cuidar de
você. O amor, e apenas o amor, torna inteiros os corações daqueles
desesperados pela solidão. Sabe, eu entendo isso melhor do que
qualquer pessoa. O velho agarrou minhas mãos. As dele estavam
quentes. Não pude evitar sentir que já tinha segurado aquelas mãos
havia muito, muito tempo. É verdade, você segurou, é verdade .
Meu senso de mim mesmo desapareceu e eu mergulhei em um
lugar de perfeita escuridão, muito além do alcance de outras
pessoas. Nós ficamos ali até o fim da noite. O velho nunca saiu do
meu lado.
Sem aviso, eu fui agarrado por uma dor severa, por todo o meu
corpo, e mal podia respirar. O que eu faço? Olhei para o velho,
procurando ajuda. Ele me abraçou e chorou. Minhas bochechas
estavam úmidas com as lágrimas do velho, lágrimas como chuva
fria. Meus olhos focaram no rosto dele, e agora chegou o
momento... Meu cérebro - parado havia tanto tempo - começou a
funcionar de novo; e minha memória - tão lamacenta por tanto
tempo - agora se reativava. Zap. Sim, tudo fazia sentido, e à medida
que tudo voltava a mim, eu entendi quem era o velho. Ele não é o
velho. Não mesmo! Eu sei agora. Essa pessoa é…
Essa pessoa é…
Meu filho. Chorando, como se não pudesse conter o que está
sentindo. Meu próprio coração estava disparado. Por que eu não o
reconheci até agora? Senti melancolia, dor aguda, me senti
arrancado de mim. A boca de meu filho estava se abrindo e
fechando. Ele estava me dizendo algo, mas suas palavras não
chegaram a mim, meus ouvidos não escutaram. Coloquei a mão
trêmula no topo da cabeça de meu filho.
Meu próprio filho. Chorando.
Foi tudo uma jornada através da memória, você vê.
Foi tudo uma jornada feita de memórias.
Uma jornada de memória.
Eu não podia acreditar que tinha esquecido que o meu próprio pai
estava morto, mesmo que ele tivesse falecido já havia tanto tempo.
Sinto muito , tentei dizer a meu filho, mas as palavras não saíam. Eu
queria dizê-las, mas elas não vinham. Ouvi um som apressado e
uma garota estava do lado da minha cama. Ela acariciou minha
mão. Minha mão estava enrugada, como um galho podre. Eu
percebia agora que a menina que tinha conhecido antes era minha
própria neta querida. Reunidos no quarto estavam também os
cuidadores que vinham cuidando de mim. Um ou outro tocavam o
canto dos olhos com seus aventais de trabalho. Outros cobriam a
boca com as mãos, como se entendessem que eu estava prestes a
partir, mas não soubessem bem o que fazer a seguida. Minha
respiração ficou entrecortada. Minha mandíbula foi para cima e para
fora. O som da morte. Meus olhos se encheram de água, minhas
lágrimas se misturando às de meu filho. Minha consciência se
esvaía.
- Pai? Pai! - A voz de meu filho parecia sobrenatural. Não vá!
Aos poucos, meus olhos viram o nada.
Um mundo sem ninguém.
Eu sou tudo o que existe agora?
Em retrospecto, agradeci a meu filho com todo o meu coração por
cuidar de mim e atender às minhas necessidades. Bem distante,
uma pessoa usando dourado se aproximou lentamente. Ela era
bela. Minha esposa, morta anos antes. Eu a segui por um caminho
de luz, decidindo aceitar o que acontecesse, e seguir o caminho
aonde quer que ele levasse.
À frente, escuridão total se espalhava e crescia.
Não havia como voltar, mas ainda assim eu hesitei.
Uma mão pálida se estendeu para mim.
De imediato, eu sabia de quem ela era.
Mãe…
Eu levanto os braços.
Sou levantado.
Meu corpo flutua para cima.
Esse é fim de minha jornada.

Parte 5: Clima interior


42: Um exército lutando com esforço

Há momentos em que eu me pergunto de onde vem essa


deficiência chamada “autismo”. Poderia ter sido criada, eu me
pergunto, pela própria humanidade? Não posso evitar sentir que
algum desequilíbrio nesse mundo foi o que fez pessoas
neuroatípicas serem necessárias e então trazidas à existência. Não
quer dizer que todos nós estamos encantados de ser como somos o
tempo todo, claro. Mas me recuso a aceitar quando as pessoas nos
veem como seres humanos incompletos ou parciais; prefiro
acreditar que pessoas com autismo são absolutamente tão inteiras
quanto qualquer outra. Podemos ser diferentes da maioria de muitas
formas, mas por que essas diferenças são coisas negativas?
Assim como todos têm um coração, também todos com autismo
possuem um leque de sentimentos: reais, mesmo que invisíveis.
Mesmo entre pessoas que podem falar, timidez ou falta de vontade
não são os únicos motivos para algumas não revelarem tudo sobre
si mesmas. Mostrar suas emoções é, afinal, oferecer todo o seu ser
ao escrutínio. Talvez a exposição total nem seja possível. Emoções
podem ser coisas insondáveis, e portanto escondidas, mesmo para
a própria pessoa. E ainda assim emoções, como certamente todo
mundo sabe, também são o que nos faz humanos.

43: Empatia e resistência

Dizem com frequência que nós, pessoas com autismo, não temos
empatia ou qualquer entendimento das emoções dos outros. Como
eu vejo, no entanto, pessoas com cérebros neurotípicos também
não são tão fantásticas em ver as nossas emoções. De qualquer
forma, há momentos em que não posso evitar me perguntar se não
conseguir adivinhar os sentimentos internos das pessoas ao nosso
redor é mesmo o problema debilitante que dizem ser. O jeito como
nos sentimos dentro de nós mesmos não deveria ter pelo menos a
mesma importância? Que utilidade podemos realmente ter para os
outros, a não ser que primeiro encontremos espaço para nos
perguntar sobre nós mesmos - Quais são as minhas prioridades
agora? ou Como eu estava me sentindo quando tal e tal coisa
aconteceu? ou Estou no caminho certo na vida? - e obter respostas.
Algumas pessoas com autismo podem não ser ainda capazes de
entender a si mesmas. Algumas podem não entender os outros.
Algumas podem não desejar tentar entender. Às vezes, ocorre uma
situação em que eu perco minha capacidade de paciência, mesmo
que entenda inteiramente por que a situação aconteceu. Alguns
observadores podem me dizer, “Você não é paciente o bastante -
mostre um pouco de resistência!”. Mas como graus de paciência
podem ser medidos, exatamente? Dominar emoções pode exigir
tanta energia que às vezes eu me pergunto, A culpa é toda minha
se eu não sei lidar com isso? Nosso mundo seria melhor se a
maioria neurotípica pudesse tentar ter um pouco mais de empatia,
com um pouco mais de frequência, em relação às pessoas como eu,
que “não têm resistência”.

44: Solidão e autismo

A palavra para “autismo” em japonês, jiheisho , passa uma


imagem de pessoas se trancando dentro de si mesmas. Isso é
enganador. Pessoas com autismo não são boas em interagir com os
outros, com certeza, mas nossos corações e mentes estão sempre
abertos e prontos para receber. Se nós estivéssemos mesmo
fechados dentro de nós mesmos, não teríamos nossos murmúrios
estranhos, nem uma tendência a crises de pânico. Eu tomo esses
fenômenos como prova de que nossas emoções existem e estão
tentando se mostrar. Algumas pessoas podem não se importar se as
emoções de pessoas com autismo estão ou não trancadas para
longe, mas a indiferença não nos ajuda. O público neurotípico
precisa saber que a falha de pessoas com autismo em se comunicar
não resulta de um aprisionamento interno de nós mesmos: resulta
de uma falha dos outros em ver que estamos abertos e receptivos.
Nos aventurar no mundo requer ajuda de outras pessoas. Por favor,
nos empreste esse apoio enquanto lutamos para viver na
sociedade.
Sempre penso na solidão de pessoas não-verbais com autismo
como sendo a escuridão antes do nascer do sol. A esperança pode
estar logo à frente, mas não conseguimos imaginar que a noite vai
acabar um dia. No geral, as pessoas simplesmente não entendem o
quanto pessoas não-verbais com autismo podem se sentir solitárias.
Quando paro para pensar, vejo que todos são meio solitários do dia
em que nascem até o momento em que morrem. Pessoas com
quem podemos compartilhar todos os nossos dias e pensamentos
não existem de verdade. É para anular essa solidão essencial que
as pessoas se conectam com outras, eu acho... Isso quer dizer que
pessoas não-verbais com autismo, que não conseguem fazer essas
conexões, são provavelmente as almas mais solitárias de todas.
Olhando de outra forma, porém, se aceitamos a ideia de que
seres humanos existem em isolamento, então nós, pessoas não-
verbais com autismo, não somos tão únicos assim. Memórias
permanecem, igualmente, quer você seja uma pessoa solitária ou
não. O coração estima a memória de dar e receber amor, não
importa se você é capaz de se conectar com os outros pela
linguagem ou não. Talvez só vamos descobrir se nossas vidas foram
realmente solitárias no nosso leito de morte.
Alguns de vocês podem estar preocupados de que pessoas com
autismo não tenham ninguém com quem dividir seus sentimentos.
Como não podemos falar, é meio inevitável que não podemos tornar
nossos sentimentos mais íntimos conhecidos facilmente, ou de
forma alguma. Essa pode ser a triste realidade, mas não acho que
ela peça desespero total. Por quê? Porque nós, “não-verbais”,
temos um amigo que vive dentro de nós. Habitando a minha mente,
há uma pessoa que sou Eu e ainda assim não sou Eu. Eu falo com
meu outro eu como se fosse um velho amigo, quando estou triste e
quando estou feliz. É por isso que é especialmente importante
nunca odiar a nós mesmos. Quando você começa a se odiar, esse
velho companheiro desaparece. Não é fácil manter a auto-estima se
você está constantemente se sentindo removido de seu eu ideal.
Então, por favor diga a nós, não-verbais, “Eu gosto de você” ou
“Eu te amo”, sempre que sentir vontade. Quando alguém diz isso a
você, fica muito mais fácil gostar de si mesmo.

“Não há o que fazer”

Poder dizer sobre o passado,


“Não há o que fazer”, pede uma certa
maturidade da mente. Finalmente
cheguei ao ponto em que
também posso pensar, “Sabe de uma coisa?
Simplesmente não há o que fazer.”
Para muitos, “Não há o que fazer”
pode parecer uma desistência.
Para mim, significa esperança.
Quando não conseguia pensar assim,
eu ficava obcecado
e crises me dominavam.
“Não há o que fazer” fala de
um futuro: um futuro que diz
“Sabe de uma coisa? As coisas estão bem
como estão.”

45: Raiva
Algumas pessoas com autismo entram em crise completa apenas
ao ver outra pessoa levando uma grande bronca. Por conta disso,
pessoas neurotípicas chegam à conclusão de que odiamos a visão
de qualquer pessoa se metendo em problemas. O que eu penso
sobre isso, no entanto, é que o verdadeiro motivo por que a pessoa
com autismo fica tão mexida é que ela está experienciando a cena
como uma em que ela está sendo culpada por suas próprias falhas
e defeitos. Não quero dizer que ela está tendo um flashback, ou que
haja alguma confusão sobre quem está em apuros. Também não
acho que uma crise vem de uma inabilidade de ajudar o amigo, ou
de empatia. Minha teoria é que assistir a raiva é um gatilho para um
ataque de pânico, que então evolui para uma crise total à medida
que o observador neuroatípico fica preso em uma espiral de ódio
por si mesmo por ter tido um ataque de pânico. Ninguém o está
acusando de absolutamente nada, mas, mesmo assim, ele
experiencia culpa e sofre de todo o estresse. Quanto ao motivo de a
outra pessoa estar levando a bronca? Suspeito que isso raramente
seja um fator.

46: Riso

Mesmo quando alguém está morrendo de rir na minha frente, eu


acho muito difícil rir junto com ela. Não é que eu não ache a piada
engraçada: é que eu literalmente não consigo, porque no momento
em que vejo alguém começar a rir, eu esqueço de fazer o mesmo -
fico fascinado pela visão do rosto risonho da outra pessoa. Então,
quando não estou olhando para a pessoa que ri, eu sou cativado
pelo som do riso. Assim, foge da minha cabeça a ideia de que eu
antes queria rir. Não poder rir enquanto todos os outros estão tendo
ataques de riso já me faz sentir isolado o suficiente, mas o que me
deixa ainda mais solitário é que minha inabilidade de rir junto com
os outros faz as pessoas suporem que eu não compartilho de seus
sentimentos ou humor.
Há outras vezes em que eu acho a diferença entre o rosto de uma
pessoa irritada e seu rosto normal absolutamente hilária. Eu posso
até querer tanto ver a expressão furiosa de novo que começo a rir -
apesar da raiva que isso gera. Brigas exageradas definitivamente
perdem o objetivo no meu caso.
Pode ser difícil, eu acho, fazer pessoas com autismo como o meu
entenderem por que estão levando uma bronca, especialmente
quando são muito jovens. A cena em que fizemos algo errado
simplesmente não se liga à cena em que estamos sendo
repreendidos. Sem dúvida isso varia de pessoa para pessoa, mas
eu sugiro que se uma criança neuroatípica fez algo errado, o melhor
a se fazer é só dizer o erro, de cabeça fria, calmamente.

47: Espinhos no coração

Quando eu era um garotinho, eu costumava pensar que poderia


alcançar todo mundo se simplesmente me recusasse a desistir. Mas
à medida que cresci, eu acabei entendendo que, por causa do meu
autismo, há algumas coisas que outras pessoas fazem que eu
nunca vou dominar, não importa o quanto tente. A memória de como
essa percepção feriu meu espírito permanece no meu coração como
um espinho que não pode ser retirado. Eu achei que essa ferida
ficaria comigo para sempre, porque dano feito no passado não pode
ser remediado.
Mas, ao enfrentar desafios um por um, eu me tornei capaz de
fazer diversas coisas que não podia fazer quando era pequeno, e
hoje em dia estou bem mais otimista. Quando eu era mais novo, só
eu sabia o quanto eu estava infeliz, e eu me encolhia debaixo de
minha pedra. As pessoas tentavam me confortar, dizendo “Ei, não é
uma grande coisa” - mas, para mim, realmente era uma grande
coisa. Hoje em dia, no entanto, eu posso olhar aquelas cenas em
retrospecto e concordar: não, não era o fim do mundo. Minha
teimosia me fazia interpretar errado o que as pessoas que olhavam
por mim estavam dizendo.
Parece que feridas na memória podem ser remediadas, afinal.
Como foi bom tirar aquele espinho do meu coração.

48: Graça

Frequentemente causo problemas para outras pessoas. Isso às


vezes me deixa muito infeliz. Mas, não importa o quanto eu fique
inconsolável, geralmente descubro que, no dia seguinte, a ferida já
quase se curou. É graças a isso que eu posso seguir em frente e
funcionar de forma normal. O que quer que tenha acontecido, minha
família só age como se nada fora do comum tivesse se passado. A
atitude da minha família significa que a única coisa com que preciso
me preocupar sou eu mesmo e a minha própria atitude. Desde que
cheguei à idade adulta, comecei a apreciar a sorte que tenho por
viver em um ambiente como o que minha família me dá. Muitas
vezes podemos superar nossas próprias dificuldades, mas fazer
algo sobre os problemas de outras pessoas é algo muito mais
complicado. Mas quando eu escuto a risada de minha família, eu
sinto uma sensação evanescente, borbulhante - é como quando eu
estou hipnotizado por um livro de figuras maravilhoso, que se passa
em uma terra distante, além das fronteiras.   Memórias alegres
aquecem meu coração mesmo agora, como as canções de ninar
ouvidas muito tempo atrás. Elas podem estar enterradas bem fundo
dentro de mim, mas estão lá, não têm preço, e a vida sem elas seria
impossível.

49: “Uma flor única no mundo”


Quando a música “Uma flor única no mundo”, da banda de pop
japonês SMAP, estava fazendo um sucesso gigantesco, a
mensagem que eu entendi da letra foi que todo mundo quer
desabrochar de sua própria forma única. Falando por mim, no
entanto, eu não quero ser “uma flor única no mundo”; preferiria ser o
tipo de flor que você pode encontrar no mundo todo, em qualquer
velho lugar. O título da música transborda tanta melancolia! Por
mais bela que fosse, por mais que fosse adorada, “uma flor única no
mundo” não seria insuportavelmente solitária? Talvez a beleza de
uma flor exista apenas quando há um observador para admirá-la,
mas, no meu jeito de pensar, são as flores silvestres mais comuns,
ervas daninhas como dentes-de-leão que você encontra no mundo
todo e que ninguém para pra olhar, que são as mais felizes. Talvez
os dentes-de-leão possam apenas sonhar, Algum dia, vou capturar
o olhar de alguém, e eles vão parar e me notar, e então vou saber
com certeza que sou a flor mais bonita . Mas eu me pergunto se na
verdade é em sonhar esse sonho, em vez de vê-lo realizado, que
está a verdadeira felicidade.

50: Meu eu de sonho

Muito tempo atrás, eu costumava sonhar que era uma criança


neurotípica. Nesses sonhos, eu estava eternamente rindo,
conversando e trocando piadas com minha família e amigos. Meu
Eu de Sonho esquecia de tudo sobre o Meu Eu Real aqui do mundo
acordado. Então, eu acordava e voltava a mim mesmo, mas não
tinha ideia de onde estava ou do que estava fazendo ali. Quando
finalmente percebia que tinha estado sonhando, lágrimas rolavam
pelo meu rosto.
Sonhos podem ser cruéis. Coisas impensáveis na realidade
podem acontecer facilmente. Não há momentos em que os seus
olhos estão abertos, mas você se pergunta se está acordado ou
sonhando? Para mim, é como se eu estivesse na encruzilhada de
uma vida dupla, capturada por inércia. Mas não importa o quanto o
sonho seja bonito, mais cedo ou mais tarde eu sou puxado de volta
para a realidade. Esfrego os olhos e levanto do futon. Talvez
estranhamente, mesmo que eu tenha inveja do Meu Eu de Sonho,
hoje em dia é um certo alívio voltar a quem realmente sou. Eu sei
agora que o Meu Eu de Sonho também é um Eu Falso. Eu posso já
ter ansiado por me tornar aquela versão neurotípica de mim mesmo,
mas na verdade era apenas da forma em que uma criança quer ser
o herói de um filme. Sonhos podem nos deixar ver as coisas de uma
nova forma, mas são ilusões. Esse mundo é o meu mundo. Não há
outro.

Gratidão

O ponto
da gratidão
está em primeiro
sentir gratidão
por dever a alguém
gratidão.

Parte 6: Manuseie com cuidado

51: Batendo a cabeça e mordendo as roupas


Quando eu luto contra as demandas de minhas fixações, e
quando minha necessidade de fazer o que minha fixação manda e
minha determinação de ignorá-la se chocam uma contra a outra, eu
posso irromper em raiva. Quando isso acontece, eu começo a bater
na minha cabeça. Eu quero tomar o controle da situação, mas meu
cérebro não deixa. Pessoas neurotípicas nunca experienciam isso,
eu acho. Minha fúria é dirigida ao meu cérebro, então, sem pensar,
eu começo a socar minha própria cabeça. Assim que domino uma
fixação, eu consigo deixar suas exigências de lado, ignorar o que
meu cérebro está dizendo e agir de acordo com meus próprios
desejos e sentimentos. Se as pessoas tentam brigar comigo quando
estou me batendo, ou me fazer parar pela força, ou gritar “O que
você está fazendo ?”, eu me sinto absurdamente deprimido. Quanto
mais frenético e desesperado eu fico, mais eu quero me socar;
nesse momento, não é mais sobre punir meu cérebro, é sobre punir
a mim mesmo por ter perdido a cabeça de forma tão lamentável. Se,
no entanto, as pessoas não surtam ao me ver e entendem que não
estou inteiramente no controle nessas horas, a paciência delas me
dá a clareza mental para pensar que, de uma forma ou de outra, eu
tenho de me parar. Então, na próxima vez que você vir alguém no
meio de uma crise, eu peço que você aja tendo esse conhecimento
em mente.
Há outras vezes, quando eu sucumbo a emoções amargas ou
quando as coisas me sobrecarregam, em que, rápido como um raio,
eu afundo os dentes na manga do que quer que esteja vestindo: e
enquanto mordo, eu emito sons bestiais sem significado, como
“Uuuuuuuu” ou um agudo “I-hiiiiii”. Eles me acalmam. Com
frequência, quando estou cheio de energia contida, eu
simplesmente não consigo acalmar a situação e fico mais e mais
agitado até que sou como um balão perigosamente cheio demais, e
até a menor coisinha vai me fazer explodir. Ao morder a minha
manga com toda a força que consigo reunir, é como se o ar fosse
lentamente liberado do balão, e gradualmente eu retorno ao meu eu
calmo de sempre. Morder minhas próprias roupas não é legal, eu
sei, mas do jeito que as coisas são no momento, é isso que eu
preciso fazer para me manter na superfície quando vem o meu
comportamento desafiador. Meu objetivo para o futuro é controlar
minhas crises sem empregar essa tática um pouco drástica.

52: Ajuda

Algumas pessoas têm ideias bem fixas sobre como aqueles de


nós com autismo devem receber apoio. Se todas elas estivessem
tão corretas como acreditam, no entanto, o autismo não continuaria
causando todas as dificuldades e desafios que causa. Você
encontra pessoas que nos dizem, “Não, você está fazendo tudo
errado”, e “Todo mundo que frequenta esse instituto faz progresso
incrível” - mas se esse último fosse verdade, a notícia se espalharia
como fogo na floresta e todos, em todo lugar, com autismo teriam
adotado o método milagroso séculos atrás. Qualquer método de
terapia pode até funcionar em algum grau para algumas pessoas
com autismo, mas nenhuma abordagem vai funcionar para
absolutamente tudo em todas as pessoas com a condição. Da
mesma forma, eu não digo por um segundo que o que escrevo em
meus livros se aplica a toda pessoa neuroatípica.
Quando “ajuda para necessidades especiais” é considerada, é
comum que assistência cotidiana ou ambientes ideias sejam
mencionados. Essas coisas importam, com certeza, mas, na minha
opinião, o objetivo crucial é nutrir a motivação. Não a força como um
fim em si mesma, nem a paciência como um fim em si mesma, nem
programas oferecendo resultados instantâneos, mas sim esperança
para o futuro, positividade sobre o aprendizado, e habilidades
práticas. O que importa para pessoas com deficiências é como elas
podem ter vidas gratificantes daqui a vinte ou trinta anos. Quem
sabe? Tentar novas abordagens pode revelar caminhos novos e
melhores. Eu gostaria que a chance de adquirir novas experiências
fosse pensada não como um favor, mas como um direito.
Professores e cuidadores de necessidades especiais que sabem
avaliar os efeitos da ajuda que oferecem são realmente incríveis.
Em contraste, aqueles que pensam sobre si mesmos como infalíveis
nunca param para considerar que eles mesmos podem estar
conectados com o comportamento indesejado da criança. Por favor,
reflita com frequência sobre o que está acontecendo. Somos
pessoas, como você, e nossos humores mudam com as
circunstâncias. Você vai ver como e por quê se parar para pensar.
Ajuda não é apenas uma questão de nos fazer passar por nossas
rotinas diárias sem ter uma crise. Ajuda varia de pessoa para
pessoa. A ajuda de que realmente precisamos pode não ser a ajuda
que os outros estão empenhados em nos dar. Eventos não seguem
um roteiro. Isso é ser humano.

53: Repreensões

Quando eu caio em um lugar ruim mentalmente e estou furioso


comigo mesmo por ter caído lá, é assim que gostaria que vocês
lidassem comigo. Se eu estou todo agitado e aborrecido, por favor,
me deixe processar isso. Se estou em um tipo de guerra comigo
mesmo pelo controle de minhas emoções, nada que você diga vai
me alcançar. Por favor, fique calmo e constante quando eu estou no
meio de uma crise, e não tente me convencer a parar. Me
repreender enquanto eu estou lutando para dominar emoções
carrega um risco real: as palavras que você usa podem facilmente
se enrolar com a minha raiva e reclamações, o que, por sua vez,
pode criar uma nova fixação verbal. Então, as suas palavras vão me
bagunçar ainda mais, e eu vou ser provocado e reagir a elas,
mesmo com os meus melhores esforços. Se estou apenas lutando
com minhas emoções, então, quanto mais eu experienciá-las, mais
cedo vou poder ter o controle. Mas se uma nova fixação ou
obsessão verbal é adicionada, eu serei compelido a seguir o seu
roteiro toda vez; e vou ficar mais irritado, por mais tempo.
Finalmente, quando eu tiver retornado a mim mesmo, por favor,
apenas me trate como de costume. Punir alguém com autismo por
ter uma crise nos deixa muito infelizes. Em vez de pensar no que
nos dizer em momentos como esse, preferiríamos que você apenas
mantivesse a mesma atitude calma.
Quando limites de comportamento são estabelecidos, é crucial
respeitar esses limites, mas é duplamente crucial que os limites
sejam apropriados e realistas para a pessoa e o contexto, para
começar. Elogios não merecidos por seguir regras não nos deixa -
como adultos - felizes. De forma similar, ouvir “Ah, claro, vamos abrir
uma exceção só dessa vez, só para você” é confuso, ou mesmo
desanimador. De vez em quando virão situações em que, por
qualquer que seja o motivo, os níveis de estresse se acumulam e as
regras são quebradas e você pode precisar fazer vista grossa por
motivos estratégicos.
Quando quebramos uma regra, não é porque acreditamos ser
uma exceção a ela. Geralmente, não tivemos escolha. Nessas
ocasiões, por favor, omita a bronca e nos diga, em vez disso,
“Vamos tentar fazer um pouco melhor na próxima vez, pode ser? E
lembre-se, eu estou do seu lado.” Se possível, por favor, mantenha
sua atitude e comportamento igual ao usual. Nós já nos sentimos
mal por termos feito bagunça, e culpados pelo incômodo que
causamos para nossa família e as pessoas ao redor. Acredite em
mim.

34: Zonas de conforto

Os momentos em que uma pessoa com autismo se torna


consciente de seu autismo variam de pessoa para pessoa, eu acho.
Quando estou em casa, eu quase esqueço do fato do meu autismo,
mas sair de nossa casa é encontrar uma série de situações em que
as diferenças entre mim e os outros logo se tornam impossíveis de
ignorar. Algumas pessoas podem apontar isso como prova da
rudeza do mundo, mas não é assim que eu vejo. Para mim, é uma
questão de ritmo. Quando estou em casa, posso realizar minhas
rotinas diárias no meu próprio passo, e é por isso que consigo
esquecer meu autismo. Talvez fazer as coisas “no meu próprio
passo” possa ser visto como coisa de egoísta ou vagabundo, mas a
minha interpretação, no que se aplica a pessoas com autismo, fala
sobre se sentir confortável e seguro. Como eu posso parecer sem
modos ou ser barulhento, as pessoas podem achar que eu não me
importo com questões de conforto, mas na verdade eu sou
hipersensível a essas coisas. Sempre que fico preso em um ciclo de
fazer a mesma pergunta sem propósito de novo e de novo, ou rio
alto em momentos muito inapropriados, eu fico exasperado comigo
mesmo e acho que sou só incuravelmente inútil, e afundo.
Eu invado a zona de conforto de outras pessoas, e ainda assim
permaneço muito sensível sobre a minha, talvez porque não posso
fazer nada para modificar minhas circunstâncias. Mesmo se estou
tendo um momento muito ruim e alguém me diz para ir para outro
lugar e me acalmar sozinho, fazer isso não é tão simples. Esses
“momentos ruins” podem explodir vindos do nada, e qualquer lugar
seguro ou quarto de relaxamento parecem infinitamente distantes,
mesmo se estão bem na minha frente. Eu sei que posso visitar salas
seguras quando estou em uma folga ou quando sinto vontade, mas
se eu conseguisse ir lá sozinho no meio de uma crise, também
conseguiria indicar que preciso de ajuda. Infelizmente, não consigo
nenhuma das duas coisas.
Eu espero que, um dia, cuidadores e profissionais consigam
ajudar pessoas como eu, cujo autismo impede que elas mostrem
que precisam de ajuda, antes de ser tarde demais. Isso seria bom.
55: Três pensamentos sobre necessidades especiais
Quando uma pessoa sai dos trilhos mentalmente, elas deixam de
ser quem costumam ser, parece; mas mesmo a pessoa em questão
tem uma sensação de que algo não está certo. Essa consciência me
parece estranha. Se elas sabem que estão se comportando de
forma estranha, você pensaria que elas conseguem mudar isso; e
ainda assim elas não conseguem. Elas sofrem com isso, com
certeza. Eu me pergunto se elas percebem o que pessoas com
autismo total como o meu também percebem: que, embora mente e
corpo pareçam estar interligados, na verdade não estão, não como
nós os experienciamos. Eu não acredito que pessoas com
necessidades especiais tenham existências inteiramente únicas. As
pessoas às vezes dizem que há muito o que aprender com quem
tem necessidades especiais, mas eu não acho que o positivo deva
ser todo o foco. Há pessoas bondosas no mundo, e pessoas não tão
bondosas, independentemente de haver necessidades especiais
envolvidas. Para trazer igualdade à minoria neuroatípica, primeiro
precisamos dissipar as ilusões sobre nós. Não somos anjos, nem
demônios; somos apenas pessoas comuns.
Algumas pessoas com autismo têm uma forte objeção ao uso da
palavra gai , que quer dizer “dano”, em sho-gai , a palavra japonesa
para deficiência, em que sho quer dizer “obstáculo”. Eu entendo o
ponto de vista delas, mas acho que tentar impor suas visões sobre
todos os outros, não importa se eles discordam ou só são
indiferentes, é ir longe demais. Uma crença tão inquestionável em
estar certo arrisca fazer mais mal do que bem.
Criar uma criança com necessidades especiais realmente não é
algo fácil, e quando os pais dessas crianças não conseguem amá-
las, eu não consigo pensar neles como maus pais; em vez disso, eu
culpo a situação e suas dificuldades. Também acho que é natural
que eles se perguntem como teria sido se seus filhos não tivessem
nenhuma deficiência. Há momentos em que eu me pergunto,
também, e não me sinto mais culpado por fazer isso. É só
imaginação. O Eu neurotípico nesses devaneios parece estar
sempre sorrindo, mas não tenho como saber se esse Eu é mais feliz
do que o Eu que sou na realidade. Ninguém nesse mundo está livre
de preocupação.

56: Fracasso “entalhado”


Há algumas crianças com autismo que simplesmente não são
boas em colocar suas coisas de volta no lugar certo. Talvez elas não
entendam por que só elas estão levando uma bronca, mesmo
colocando seus itens na mesma área geral que os outros -
especialmente se for depois do evento.
Para lidar com isso, eu sugiro ajudar a criança a colocar as coisas
de volta no lugar certo, tantas vezes quanto necessário, e antes da
criança cometer o erro. Por exemplo, um minuto antes da
arrumação começar, confirme que ele ou ela sabe exatamente que
nome, símbolo, rótulo ou adesivo indica o lugar certo para o objeto.
Aqui está por que isso importa tanto: para crianças com autismo, o
fracasso conta como uma experiência de vida, então fracasso
repetido fica “entalhado” na cabeça. Crianças neurotípicas
aprendem com seus erros, mas algumas crianças - nós - só
aprendem ao repetir uma ação corretamente, de novo e de novo.
Explicações posteriores com detalhes extras não vão ajudar, eu
receio. Há muitas formas de fazer algo errado, mas geralmente
apenas uma de acertar, então, para ajudar a criança a entender o
que é esse certo, é bem melhor ensinar e mostrar apenas o jeito
correto. Adultos em um papel de ensino procuram nos tornar
capazes, para que possamos fazer o que não conseguimos - mas
levar uma bronca por falhar na mesma atividade todo dia é uma
experiência profundamente negativa, e na frente de nossos amigos
e colegas de turma, é ainda pior. Lembre-se, nossos sentimentos se
magoam com tanta facilidade quanto os seus.
Tendo isso em mente, quando eu faço algo errado, eu quero
saber. De outra forma, as pessoas não vão me reconhecer como
uma pessoa válida e, na melhor das hipóteses, vão ter pena de
mim. Com certeza, há coisas que eu não consigo fazer mesmo se
você me mostrar onde eu errei de novo e de novo - mas isso não
quer dizer que não vou conseguir algum dia. Quando você encontra
uma criança que reage com ressentimento a uma orientação,
suponho que ela foi disciplinadas no passado de formas que a
ensinaram que ela era um desperdício de espaço, ou simplesmente
má. Mesmo crianças pequenas entendem quando estão levando
uma bronca por algo genuinamente errado, eu acho. Algumas delas
vão estar se sentindo muito mal, porque sabem que estão errando,
mas não veem uma forma de remediar isso. Acredito que todas as
crianças desejam crescer e abraçar seus futuros. Por favor, nutra
esse desejo.

57: “Todos estão fazendo o seu melhor!”

Devo admitir, parte de mim se encolhe por dentro sempre que eu


escuto a frase pronta “Todos estão fazendo o seu melhor”. Por quê?
Primeiro, “Todos estão fazendo o seu melhor” raramente é um fato.
Geralmente é mais verdadeiro dizer “Todos aparentam estar
fazendo o seu melhor”. Aparentar estar fazendo o seu melhor é
legal, mas não devemos simplesmente supor que é a realidade.
Além disso, eu tenho um problema com a ideia de que só porque
todos os outros estão fazendo o seu melhor, eu devo fazer o mesmo
- isso me parece artificial. Claro, não há nada de errado em fazer
algo da melhor forma que puder, e não estou me afundando em
autopiedade, porque, com frequência, mesmo o meu melhor autista
está além de minhas capacidades naquele dia. O ponto é que
declarar “Todos estão fazendo o seu melhor!” acaba forçando
comparações entre “melhores”, o que parece injusto e sem
propósito.
Quando alguém me diz “Continue o bom trabalho”, eu fico
devidamente grato, e se me dizem “Siga em frente!”, eu sei que
estão me mostrando que estão do meu lado. Ter seus esforços
árduos reconhecidos pode te fortificar e impulsionar para frente. No
entanto, todos somos apenas humanos, e haverá vezes em que
“fazer o seu melhor” simplesmente não é uma opção. Isso precisa
ser permitido também. O grau de esforço que colocamos em uma
tarefa deve ser determinado por nós mesmos.
Pessoas compassivas entendem que ouvir “Faça seu melhor!”
pode parecer um fardo extra, ou uma ordem para melhorar o que
está fazendo. “Faça seu melhor” não é uma frase danosa em si,
mas é sábio lembrar que há algumas palavras e frases que algumas
pessoas, com bastante razão, ficam mais felizes se não virem ou
escutarem.

58: Me arrastando por aí, como uma tartaruga

Quando estou praticando algo todos os dias mas ainda assim não
chego a lugar nenhum, eu sinto que estou me arrastando por aí,
como uma tartaruga. Absolutamente qualquer pessoa consegue
fazer isso, então por que eu não consigo? Meu fracasso contínuo é
muito pesado. Geralmente concordam que, para adquirir as
habilidades que não temos, precisamos praticar todo dia - é por isso
que as pessoas que trabalham conosco prestam tanta atenção aos
resultados de nossa prática. Mas para aqueles de nós que estão de
fato fazendo a prática, com frequência o processo não parece o jeito
natural e óbvio de fazer as coisas. Estamos sempre ouvindo “Tudo
bem progredir em direção aos seus objetivos um pouquinho de cada
vez”, mas isso são nossos terapeutas e cuidadores falando, não
nós. Nós, que estamos nos esforçando com a prática, queremos
dominar o que quer que estejamos fazendo o mais rápido possível.
Nos fazer obedecer a esses passos incrementais pode aparentar
ser o certo para os neurotípicos ao nosso redor, mas aqueles de nós
obrigados a trabalhar em um passo de lesma podem estar
suspirando por dentro com o nosso progresso lento em direção a
novos objetivos. Qualquer um - neurotípico ou não - sabe dizer se
está melhorando em algo. Ou não. Com certeza?
Meu ponto é: por favor não ache que, ao não empurrar alguém na
direção de um objetivo ou não esticar suas habilidades, você está
automaticamente tornando mais fácil que a pessoa chegue lá. A
vida não é tão legal para tartarugas, e se arrastar por aí como uma
tartaruga também não é um mar de rosas.
Curiosidade

Em algum lugar, algum tempo, alguém


nos espera; assim suspeitamos.
Aqui estamos no coração
do mundo; então gostamos de pensar.
Animais que pensam sobre si, nós seres
humanos; e curiosos . Eu suspeito
que por mais fracos que estejamos,
por mais cansativa que esteja a vida,
é por isso
que continuamos.

59: Fixações arraigadas

Minhas fixações podem ficar por aqui por um longo tempo antes
de desaparecerem. Não importa o quanto eu me esforce em me
libertar desses comportamentos obsessivos, eles permanecem
realmente teimosos. Vocês - nossos cuidadores, professores,
guardiães - podem agir como se nada estivesse errado, ou ameaçar
nos punir se não pararmos, ou nos recompensar se paramos, mas o
fato é que algumas fixações são quase impossíveis de contornar.
Talvez algumas pessoas com autismo sintam conforto com elas,
mas meu palpite é que a maioria de nós quer que elas parem, e
sofrem por não poder mandá-las embora. Falando por mim mesmo,
a única cura que eu conheço é vocês darem a nós - e nossas
fixações - tempo.
Você pode ajudar ficando conosco enquanto processamos nossas
fixações, não nos repreendendo demais por apresentá-las, e
mantendo uma crença inabalável de que algum dia estaremos livres
delas. Porque elas não duram para sempre. Mesmo a fixação mais
arraigada pode simplesmente desaparecer, como se uma maldição
demoníaca tivesse sido cancelada. Não sei explicar como ou por
que elas somem quando somem, mas eu sei que quando uma
fixação obsessiva vai embora, ela me deixa em um estado de
perfeito êxtase.
Naturalmente, as pessoas em nossas vidas apontam nossos
comportamentos obsessivos para nós porque querem que paremos
de fazê-los. Mas eu peço a vocês que não nos repreendam de
formas que ferem nossa dignidade. Acredite em mim: a maior vítima
de uma fixação é a pessoa que sofre dela.

60: O dom da escolha

É vital, eu acredito, que aqueles de nós que vivem com autismo


tenham a chance de exercitar a escolha de forma independente.
Mesmo depois que eu me tornei capaz de escolher itens sozinho,
minha mãe, sem falta, checava comigo: “Olhe, tem esse, esse e
esse - qual você quer?” Ela me pedia para apontar para o que eu
quero e confirmar minha escolha soletrando na palma da mão dela
ou na prancha de alfabeto. Isso custava a ela esforço extra, mas
para mim, foi muito importante. Minhas expressões externas nem
sempre correspondem às minhas intenções internas, então foi
realmente importante praticar expressar meus desejos de forma
correta. Na verdade, foi graças a essas oportunidades que minha
mãe me deu para escolher entre objetos que eu recentemente
entendi por que às vezes seleciono uma opção diferente da que
tinha a intenção: pode ser porque um aspecto do objeto captura
minha atenção, ou uma frase principal na pergunta está enviesando
a minha escolha, ou estou sendo influenciado por um padrão
“pergunta e resposta” que está “pré-fixo” em minha cabeça.
Sempre que tenho de escolher algo, minha mente fica em branco.
Quando me dizem para “escolher alguma coisa”, a urgência de ter
de fazer isso me coloca em parafuso. Se me dizem “Vamos logo,
escolha um!”, a única coisa que importa é que eu tenho de escolher,
agora. Acho que para pessoas neurotípicas há prazer em fazer uma
escolha, mas esse não é um luxo que eu tenha. No entanto, desde
que aprendi a comunicar meus pensamentos e desejos em algum
grau ao escrever nas palmas das mãos ou na prancha de alfabeto,
pelo menos eu sou capaz de mudar minha decisão, caso escolha
errado. Também consigo considerar melhor por que escolhi a opção
que não queria, entender qual eu deveria ter escolhido, e mostrar às
pessoas ao meu redor que opção é a certa para mim, afinal.
Para vocês que vivem, trabalham ou lidam com pessoas com
autismo não-verbal, eu recomendo mudar a ordem dos itens em
uma oferta e contornar os “gatilhos” de respostas fixas. Isso vai
ajudar vocês a se certificar que opção a pessoa com autismo
realmente quer. Também é crucial que as pessoas que trabalham
conosco se mantenham livres de noções pré-concebidas sobre
nossas escolhas e não caiam na armadilha de pensar, esse aqui é o
que ele precisa! Lembre-se de que a mesma pessoa pode variar sua
escolha dependendo de como se sente naquele dia, e que nossas
preferências podem mudar com as estações, ou à medida que
crescemos.
Por fim, por favor tenha em mente que, com as melhores
intenções do mundo, enquanto você está tentando nos dar uma
escolha livre, você pode estar, sem querer, nos influenciando para
um lado ou para o outro.

61: O que você quer ser?


Quando você era pequeno, tenho certeza de que ouviu muitas
vezes “E o que você quer ser quando crescer?” Essa pergunta
raramente é feita para crianças com deficiência. Não acho que seja
porque não esperam que a criança entenda, mas porque supõem
que é responsabilidade dos pais ou terapeuta mapear um futuro
para a criança, não da criança. Para mim, no entanto, é crucial para
qualquer criança poder sonhar sobre quem e o quê ela quer ser e
fazer no futuro. A resposta não precisa envolver uma profissão -
mais do que qualquer resposta, é o ato de imaginar que realmente
conta. Amanhã pode ser indistinguível de ontem, mas lá longe no
amanhã o nosso futuro inteiro está esperando, e é o nosso eu do
presente que sonha esse futuro e o torna real. Então, por favor, na
próxima vez, vá em frente e pergunte a crianças com necessidades
especiais o que elas gostariam de ser no futuro. Ao fazer isso, você
está permitindo que elas olhem adiante com prazer.

Uma entrevista de alfabeto

Em The Big Issue  por seus vendedores e equipe


(Abril de 2015)
Parte 1: De N a Z
N: Se uma outra palavra para autismo - jiheisho - fosse criada,
como você gostaria que fosse?
Eu entendo por que algumas pessoas querem que jiheisho -
“doença de quem se tranca” - seja mudada, mas, pessoalmente, eu
posso viver com a palavra. Mudar o nome de uma deficiência
exigiria muita energia e eu preferiria que esses recursos fossem
direcionados a tornar a nossa sociedade um lugar mais amigável
para o autismo.
O:  Como você definiria “ser independente”?
Saber que sou um membro valioso da sociedade, em um sentido
financeiro e social.
P: Eu e você temos a mesma idade. O que você pensa da nossa
geração de jovens?
Uma pessoa não é de maior ou menor interesse para mim só
porque somos da mesma geração. O mesmo se aplica aos
pensamentos de uma pessoa. Ao longo de toda a história humana,
parece que as gerações mais velhas têm reclamado dos mais
jovens serem impossíveis de entender. Os jovens, eu incluso, são
produtos da sociedade a que pertencem. O que me deixa curioso é
como as outras gerações percebem a nossa.
Q: O que pensamos, gostamos e acreditamos varia muito de
pessoa para pessoa. Como você sugere que pessoas com ideias
tão diferentes vivam harmoniosamente?
As pessoas não devem pensar que precisam ser amigas dos
outros, mas se puderem reconhecer as culturas uma da outra, e
respeitar umas às outras como seres humanos válidos, isso é o
suficiente, eu acho. Por tentarmos construir relações amigáveis com
os outros, nós esperamos que eles nos entendam. Nosso interesse
pode acabar nos levando a tentar saber mais sobre eles do que é
necessário ou respeitoso. No fim, podemos tentar forçar ideias
sobre os outros. Coexistir como somos importa mais.
R:   Há pessoas calculistas e causadoras de mal no mundo, mas
eu gosto de acreditar que elas nasceram gentis e boas. Como você
acha que suas formas originais mais gentis podem ser restauradas?
Não acho que alguém nasça gentil ou bom. O que nos tornamos é
aprendido e formado depois, e uma pessoa só pode se tornar
compassiva se desejar ser assim. Talvez essas mesmas pessoas
calculistas e causadoras de mal possam mostrar gentileza a aqueles
que são preciosos para elas. Tudo que podemos fazer é oferecer
ajuda a quaisquer vítimas enganadas ou machucadas.
S:   Você escreveu alguns poemas sobre guerra. Que tipo de
sociedade você gostaria de ver no futuro?
Tenho certeza de que todos gostariam de ver um fim à guerra.
Brigar não resolve nada: tudo que temos no final são vencedores e
perdedores. Apesar dessa verdade, por que as pessoas nunca
param de começar guerras é algo que sempre vou me perguntar.
T:  Você ainda sente uma afinidade com o vento, se “dissolve” na
luz do sol ou escuta flores e árvores? Eu também posso fazer isso?
Infelizmente, eu estou menos conectado à natureza do que
costumava. Se me perguntassem se eu sinto falta daquela
afinidade, eu diria que sim, eu sinto. Porém, eu comecei a gostar
mais de mim mesmo como um ser humano, então talvez seja algo
para o melhor. Afinal, uma pessoa não pode realmente viver como o
vento - mas pelo menos podemos escutar a voz dele.
U:   Você disse uma vez: “Para mim, seres humanos não são
atraentes”. Se você pudesse reencarnar como outra coisa, o que
seria?
Há tantas coisas que eu gostaria de ser, que é difícil escolher
uma! Mas, por enquanto, vou dizer um gato. Não há nenhum motivo
óbvio, mas eu suspeito que teria muito mais liberdade como um
gato.
V:  O que “Deus” significa para você?
Não acredito em nenhuma religião específica, mas reconheço a
existência de Deus como uma entidade superlativa que está além
das palavras.
W:  Que tipo de livros você lê?
Os livros que costumo ler são os livros de figuras que leio desde
que era criança, mas o escritor que mais me influenciou foi Kenji
Miyazawa. Das histórias dele que minha mãe lia para mim na época,
foi Noite na ferrovia galáctica que mais me comoveu.
X:  O que são palavras para você? Você tem uma favorita?
Para mim, palavras são pontes que me conectam com os outros.
É impossível para mim me fazer entender com a expressão facial ou
visualmente. A letra que é especial para mim é の [pronunciado
“no”], por causa de sua bela curva. Minha palavra favorita é 希望 [
kibou ] - esperança.
Y:   No ano passado, você foi convidado para os Estados Unidos
para fazer uma apresentação. O que deixou uma impressão mais
forte em você? Você gostaria de visitar outros países?
O que mais me impressionou nos Estados Unidos foi o
entendimento sobre autismo. É muito mais avançado lá. Mesmo em
um museu, um guarda me deixou seguir uma fixação sem me forçar
a obedecer as regras que os outros visitantes tinham de seguir.
Graças à boa vontade dos americanos que conheci, eu pude viajar
sem sofrer nenhum grande ataque de pânico. Se a oportunidade
aparecer, eu adoraria visitar a Europa algum dia.
Z: Você já escreveu poemas, ensaios, livros infantis, fábulas e
livros de figuras. Os seus pensamentos e sentimentos mudam
dependendo do que você está escrevendo? Como você aprendeu a
escrever frases tão elegantes, precisas e fluidas que tocam seus
leitores tão gentilmente? Que tipos de técnicas e práticas você usa?
Em qualquer forma que escrevo, meus pensamentos e
sentimentos são os mesmos. Eu apenas espero que minha escrita
encontre leitores. Se eu conseguir deixar qualquer tipo de impressão
em meus leitores, então, como escritor, ficarei honrado. O que eu
presto atenção enquanto escrevo é em não explicar demais as
coisas; e escrever aquelas coisas que eu, e somente eu, posso
escrever. Esses dois objetivos podem parecer fáceis, mas na
verdade ambos são tarefas muito exigentes. Meu ideal é que uma
única frase que escrevo possa evocar múltiplas e variadas imagens
na mente do leitor.

Parte 7: Longe

62: O portão
Quando eu era pequeno, costumava parar em um certo portão
sempre que passávamos por ele. Esse portão tinha uma aldrava
com o rosto de um leão, que eu gostava de olhar. No começo -
assim ela me conta -, minha mãe não tinha ideia de por que eu
costumava parar nossa caminhada na frente da casa de um
completo estranho. Mas, um dia, quando a aldrava de leão estava
de cabeça para baixo, eu tentei colocá-la de volta para cima, e
então minha mãe entendeu o que estava acontecendo. Ela me disse
que você não pode simplesmente sair tocando os portões de outras
pessoas sem permissão, então eu fiz o meu melhor para virar a
cabeça de lado para que o leão pelo menos parecesse estar do lado
certo.
Em retrospecto, não sei dizer por que o leão no portão me
fascinava tanto. Talvez eu só pensasse, Uau, um leão em um
portão, que legal! Quando crianças neurotípicas estão interessadas
em algo, elas podem satisfazer sua curiosidade simplesmente
fazendo sua pergunta ao adulto mais próximo antes de passar para
a próxima coisa, e a próxima, e a próxima. Naquela época, porém,
eu não podia perguntar nada a ninguém. Meus fascínios ficavam
presos na minha cabeça. Como se o tempo estivesse parado.

63: Entrada proibida

Há vezes em que eu paro na frente de portas ou lugares em que


você não pode entrar e digo alto, “Entrada proibida!”. Ou, quando
vejo um canteiro de flores, não posso evitar gritar “Não ande ali!” ou
“Você vai esmagar as flores!” enquanto levanto um pé. Nada disso é
sobre verificar se essas ações são permitidas; é para lembrar a mim
mesmo de que não devo fazer essas coisas. Eu entendo muito bem
o que posso ou não fazer, mas quando algo me cativa, ou quando
fico empolgado, pode ser um pouco desafiador controlar minhas
ações. Por causa disso, eu falo diretamente com o meu cérebro. Eu
acesso as palavras ou cenas que deixaram uma impressão em mim
e juro a mim mesmo não fazer nada que possa ser considerado
inapropriado. Isso pode parecer ridículo para outras pessoas, mas é
como eu me mantenho melhor no controle das coisas.
Por eu ter dificuldade em controlar minha fala e comportamento,
eu vivo com um senso de resignação sobre coisas que fiz no
passado. É difícil para mim explicar minhas ações ou recomeçar as
coisas do começo. Graças a isso, eu já tive minha cota de
experiências tristes. No entanto, eu aprendi que pessoas
neurotípicas também são atormentadas por eventos passados.
Palavras e ações humanas, eu acabei entendendo, com frequência
andam de mãos dadas com a dor emocional.
Mesmo quando você fez uma besteira, eu não quero que você se
torture por causa disso. Acho que se todos pudermos reconhecer
todas as variações de quem somos, podemos também ficar em paz
com quem fomos no passado. Talvez, ao pelo menos tentar ficar no
caminho certo, nós, humanos, não vamos nos afastar demais no
caminho errado.

64: Pagando

Quando eu pago por coisas em lojas, nem sempre consigo


apenas entregar o dinheiro - às vezes leva uma eternidade. Sou um
pouco descoordenado de qualquer forma, mas o motivo principal
aqui é que eu tento pagar a quantia exata. Eu sei que é
perfeitamente aceitável entregar mais do que o preço total e receber
troco - não precisa ser a quantia exata -, mas assim que vejo o
preço brilhando na caixa registradora, minha mente fica fixada em
entregar aquela quantidade precisa de dinheiro. Há pessoas que
poderiam me aconselhar a pagar sempre com uma nota de mil yen,
mas então isso poderia se tornar um novo padrão fixo de
comportamento e toda a ideia de receber troco poderia começar a
me bagunçar. Por exemplo, eu poderia pedir troco ao comprar itens
que custam exatamente mil yen, ou que custam mais do que isso - e
então ficar irritado se não receber. É por isso que eu pratico pagar a
quantia exata - ou talvez um pouco mais, para garantir.

65: Comendo fora

Uma vez, eu fui com meu pai a um restaurante indiano. O pão


naan estava maravilhoso. Meu pai perguntou, “Então, como está o
naan?” e “O curry está picante demais, ou no ponto?”. Era legal que
ele estivesse pensando sobre minha satisfação com a refeição,
mas, para ser honesto, eu não estava pensando muito sobre o
cardápio ou o gosto dos pratos. Para mim, as questões mais
urgentes eram o fato de que tínhamos vindo a um restaurante que
eu não conhecia, e a minha ansiedade sobre como terminar a
refeição sem incomodar as outras pessoas. A comida era uma
questão secundária.
A maioria das pessoas vai a um restaurante para ser servida e
comer, mas minha maior preocupação é se vão me deixar entrar ou
não. Como franquias de jantar em família e fast-food são idênticos,
não importa aonde você vá, eu estou familiarizado com a atmosfera
e decoração antes mesmo de entrar - isso é muito calmante. Comer
fora em novos restaurantes é um desafio muito maior, mas eu quero
expandir minha experiência. Vou continuar tentando.

66: Querendo desaparecer

Algumas pessoas com autismo não gostam de ser vistas, então


elas escondem o rosto atrás de roupas ou lençóis. Meu caso era um
pouco diferente: meu motivo para fugir quando era mais novo era
que eu me odiava tanto que não queria que mais ninguém sequer
me visse. Suponho que isso não seja fácil para vocês entenderem,
mas eu ansiava por desaparecer do mundo. Não era bem a mesma
coisa que querer estar morto. Não era que eu detestasse o mundo,
ou a vida; era uma severa inabilidade de me aceitar por quem e o
quê eu era.
Ainda assim, ao mesmo tempo, eu estava convencido de que um
dia alguém viria e me resgataria de tudo. Tudo que eu queria era me
esconder até que esse dia chegasse. Meu raciocínio era que se eu
não podia ver ninguém, ninguém podia me ver. Na verdade, eu só
cheguei a um ponto em que não me importo de ser visto quando
pude, finalmente, aceitar a minha deficiência.
Quando estou em lojas ou viajando, com frequência sou rodeado
de estranhos. Não sou bom em lidar com essas situações e elas me
deixam desconfortável - não por causa de algum anseio forte de ir
para casa, ou por não saber o que fazer, mas por medo de que meu
desconforto pode sair totalmente do controle e se tornar uma grande
inconveniência para outras pessoas. Talvez não haja muito o que eu
possa fazer sobre isso, mas se eu passar a vida evitando multidões
por causa do que pode acontecer, nunca vou conseguir ir a lugar
nenhum. Preciso de um amplo leque de táticas, eu acho, mas o que
posso fazer é praticar. Pessoas com necessidades especiais não
devem desistir. Devemos garantir que saiamos de casa. Vou fazer o
meu melhor, também.

67: Caos no cérebro

Em um dia de nevasca, eu e minha mãe tínhamos planejado ir


para Tóquio. No meio do caminho, no entanto, o trem em que
estávamos foi declarado fora de serviço. Minha mãe calculou que
não iríamos conseguir chegar ao nosso destino e decidiu voltar. Eu
nunca tinha estado naquela situação antes, e ela se tornou um
grande desafio. Eu sabia que o melhor a fazer era voltar para casa,
mas não conseguia simplesmente seguir essa ideia. O que estava
acontecendo?
Em relação a mudanças súbitas de planos, eu preciso obter o
consentimento do meu cérebro. É preciso esforço para acomodar
meus sentimentos à mudança. Eu não posso simplesmente dizer a
mim mesmo, Se não voltarmos, vamos acabar presos na neve; e, de
qualquer forma, sempre podemos voltar outro dia . Em um caso
como esse, o truque era editar mentalmente nosso destino. A ação
de embarcar no trem e o que eu faria no nosso destino não eram
relacionadas. Claro que era uma pena que não pudemos chegar lá
como planejado, mas aquilo em que meu cérebro realmente se
pendurou não era como eu me sentia sobre a mudança, mas o fato
de que eu não poderia confirmar - com meus próprios olhos - nossa
chegada no destino planejado na placa da estação de trem. Então,
para evitar uma crise, eu tive de alterar o nome original de estação
em Tóquio, que meu cérebro já tinha memorizado, para o nome da
estação no meio do caminho onde eu e minha mãe saltamos do
trem.
Eu consegui vocalizar a mudança, nomeando a estação e
acrescentando “Saiu do trem”. E minha mãe respondeu, “Sim, isso
mesmo - nós saímos do trem na estação tal, não foi?”. Foi um pouco
como atualizar um arquivo de computador. Recitando essa troca
muitas vezes, eu consegui me acalmar. É isso que me ajuda quando
sou exposto a confusão desse tipo - levar uma bronca ou ser
ignorado realmente não ajuda. No fim, eu percebi: nessas situações,
a fonte de todas as minhas dificuldades é caos no cérebro.

68: Mal-entendidos

Uma das coisas mais difíceis para qualquer pessoa é


provavelmente não poder esclarecer mal-entendidos. No geral, as
pessoas sabem como é complicado para aqueles de nós com
autismo nos expressar, mas e quanto à nossa inabilidade de
oferecer explicações ou desculpas? Nossos traços autistas tendem
a multiplicar mal-entendidos ao nos fazer realizar ações que não
queríamos, ou soltar sons e palavras que não queríamos, ou ao nos
impedir de nos desculpar quando realmente gostaríamos de fazer
isso. Nada é mais difícil do que se encontrar jogado em uma
situação de que você não pode sair por meio de explicações...
Eu dou apresentações por todo o Japão, mas sempre que me vejo
em uma nova estação de trem, me sinto muito apreensivo. É como
quando eu nunca conseguia parar quieto na véspera de uma
excursão escolar e ficava andando de um lado para o outro,
nervoso. Quanto mais eu penso Preciso me manter no controle
disso , mais ferozmente minhas obsessões ou fixações são
inflamadas. De qualquer forma, minha obsessão sobre a estação
me compele a sair procurando pelas lojas de lembrancinhas da
estação atrás de doces ou acessórios ou qualquer coisa estampada
com um personagem gatinho famoso, que aparece em roupas locais
e objetos. Quando encontro, eu não compro o produto - tudo que
tenho de fazer é apontar um dedo e declarar, “Aí está!”, e fico
satisfeito.
Uma vez, depois que eu já tinha passado pela barreira de
bilhetes, eu senti uma necessidade imensa de refazer meus passos
até a loja de lembrancinhas de onde eu tinha acabado de sair. Claro,
eu sei que você não pode simplesmente voltar de uma barreira de
bilhetes em uma estação de trem, nas naquela ocasião eu
realmente precisava voltar e ver aqueles itens mais uma vez - eu
não tinha nenhuma escolha sobre isso -, então eu voltei pelo portão.
As pessoas ficaram chocadas: eu tinha invadido o caminho errado
sem pedir permissão da estação. Não demorou muito e um
funcionário me alcançou para exigir uma explicação, mas tudo que
eu pude fazer foi gritar o nome do personagem gatinho de novo e de
novo. Para piorar as coisas, a aquela altura o funcionário estava me
dizendo, “Fique onde está - não se mova, por favor!”, enquanto eu
tentava disparar para a loja de lembrancinhas. Logo que eu tinha
transformado aquela área da estação em um caos completo, minha
mãe apareceu de onde tinha estado comprando nosso almoço,
percebeu a comoção e veio correndo. Ela explicou ao funcionário
sobre minha deficiência e a questão foi logo resolvida. Depois, nós
voltamos à loja, eu confirmei que o gatinho ainda estava onde
deveria, nós voltamos pela barreira de bilhetes e entramos em
nosso trem bala sem mais problemas.
Então, pessoas com autismo podem falar e se comportar de
formas peculiares, mas isso não deveria nos relegar a uma
categoria inferior da humanidade. Por favor, nos dê o benefício da
dúvida e parta do princípio de que somos boas pessoas. Se você
suspeitar que somos um caso perdido, nós vamos perceber isso. O
valor de uma pessoa não deveria ser decidido pelos julgamentos de
outras. A gentileza traz o melhor em todos nós.

69: Diga “xis”!

Eu não sou bom em ter a minha foto tirada. Encarar a câmera é


difícil para mim, mesmo quando meus olhos estão sendo
direcionados por alguém que aponta e me diz, “Olhe para a câmera!
Bem aqui!”. Me pergunto se vocês podem adivinhar por quê? É
porque, sempre que escuto a palavra “câmera”, eu corro pelo meu
arquivo mental de ideias sobre câmeras na tentativa de combiná-las
com a que vejo em minha frente. Não é bem como se uma imagem
concreta de câmera flutuasse na minha mente; é que eu tento
encontrar aspectos em comum entre minhas noções de câmeras e
aquela em meu campo visual. O que recebo de volta é Não, isso
não está certo , e Não, isso também não está certo .
Eu sei muito bem o que é uma câmera, mas quando uma é
colocada na minha frente, ela meio que para de ser uma câmera e
se transforma em algum objeto de ferramenta. Mais do que isso, se
também estão me dizendo “Sorria!” ou “Coloque o queixo mais para
baixo” ou “Apoie as mãos nos joelhos”, eu fico totalmente perdido.
Não, eu realmente não sou bom em ter a minha foto tirada.
70: Viajar

Eu amo conhecer diferentes lugares, mas com frequência sou


incapaz de demonstrar isso às pessoas ao meu redor. Eu posso
estar feliz por dentro, mas como não consigo visualizar como vou
lidar com estar no lugar novo, eu acabo tendo uma crise ou
chorando ou ficando emotivo demais sobre coisas bem triviais.
Pessoas neurotípicas não sofrem de mal-entendidos sobre se estão
felizes ou não, eu acho, porque elas podem explicar suas emoções
usando palavras. Em momentos como esse, eu fico realmente triste.
Quando crio problemas para as pessoas com quem estou, tenho
medo de que elas vão começar a se arrepender por me levar ao
lugar e que não vão me deixar sair de novo. Isso me leva ao
desespero!
Minha mãe, porém, sabe o que eu estou sentindo e continua
sorrindo mesmo enquanto se desculpa com as pessoas ao redor.
“Aquilo foi incrível, não foi?”, ela me diz. Mesmo se eu baguncei
tudo e as coisas viraram um caos, ela diz “Vamos tentar de novo?”.
No passado, eu nunca lidei bem com hotéis e lugares novos, mas
hoje em dia estou lentamente me acostumando. Na verdade, viajar
é um de meus maiores prazeres. Eu encontro paisagens que
geralmente não vejo, e só pela mudança de cenário, às vezes sinto
que me tornei uma versão totalmente nova de mim.
Viajar com pessoas que têm necessidades especiais pode ser
difícil, mas, por favor, deixe isso acontecer. Todos precisamos de
uma folga e de uma mudança de cenário às vezes. Isso é tão
verdade para nós quanto para você. Estar em um novo ambiente
pode ser confuso, mas, um a um, os desafios podem ser
contornados e coisas novas podem ser experienciadas. É graças à
viagem, a encontrar pessoas novas e ser ajudado por sua gentileza,
que eu percebi o quanto a vida pode ser fantástica. Há uma ideia
fixa de que os lugares à sua volta são tudo que existe: eu acabei
aprendendo que essa ideia estreita e limita a forma como vemos as
coisas. A vastidão do mundo é uma fonte de inspiração. Você não
acha?

Voar

Não seria incrível voar?


Todos sonham com isso uma vez
pelo menos. Mas me pergunto se não é
voar por céus eternos que queremos
mas sim estarmos livres
de tudo que há aqui embaixo.
Mas
e se
a liberdade não é sobre
deixar coisas para trás, mas sim
trazer para dentro o que está fora.
Abrindo a porta do coração,
damos um passo para o mundo.
Passo a passo a passo a passo
podemos, um dia,
ter a liberdade nas mãos.

71: Nova York

Eu sabia da diferença de treze horas entre o Japão e Nova York,


mas, como eu tenho uma verdadeira fixação sobre o tempo, minha
mãe estava ansiosa sobre como eu iria lidar. No dia, eu não fiquei
tão confuso quanto esperávamos. Na tela do voo havia dois
relógios, um para a hora no Japão e outro para a hora em Nova
York. É estranho pensar em dois tempos existindo simultaneamente,
mas desde que a minha agenda e ações tenham alguma referência
de tempo, isso é o suficiente e eu fico bem; decidir que relógio
seguir não deixou meu cérebro nem um pouco perturbado. Até eu
adormecer no avião, eu estava na hora do Japão. Depois que
acordei, eu mudei para a hora de Nova York. Isso não foi uma dica
que seguimos ou um plano que tínhamos feito - só fez sentido
quando eu vi os dois relógios. Na verdade, a parte mais difícil foi a
diferença no horário de dormir. Eu estava sonolento durante toda a
nossa estadia em Nova York. No nosso hotel, eu dormi bem mais do
que de costume, e minha cabeça estava em uma névoa grogue o
tempo todo - o que pode explicar minha sensação aguda de Nova
York ser um sonho. Não bocejar na frente de outras pessoas é um
desafio na melhor das condições, então receio que posso ter
parecido mais rude do que o normal para os americanos quando
estava lá...
Mesmo em Nova York, graças ao meu autismo severo, eu fui a
fonte de estresse e inconveniência para muitas pessoas - como
sempre. Naturalmente, isso não foi divertido para mim também, mas
em algumas ocasiões, apesar de estar em uma nova cidade, as
coisas correram melhor e mais suavemente do que poderiam ter
sido no Japão. Em nossa visita ao Metropolitan Museum of Art
[Museu de Arte Metropolitana], eu saí da rota principal durante uma
exibição e tentei entrar em uma sala onde não deveria entrar
naquele ponto. Um membro da equipe me parou, mas assim que
minha mãe e nosso intérprete explicaram sobre o meu autismo, o
funcionário do museu disse “Ah, nesse caso, vá em frente, sem
problemas” - como se fosse um assistente de necessidades
especiais com um bom entendimento de autismo - e nos indicou o
caminho com um sorriso amigável. Se isso tivesse acontecido em
um museu no Japão, é bem mais provável que o funcionário teria
me dito “Espere aqui, por favor” e ido consultar um supervisor, me
deixando no limbo enquanto isso. Meus níveis de agitação teriam
subido até eu estar fazendo sons agudos como uma chaleira no
fogão, antes de transbordar em uma crise. Em momentos como
esse, tudo que eu quero é ver de perto o artefato que capturou meu
olhar - não vou tocá-lo nem incomodar ninguém. Eu sei que os
museus têm rotas de exibição, eu sei que os funcionários do museu
estão certos de pedir aos visitantes que as sigam, e eu sei que
deveria fazer o mesmo; mas às vezes essa simplesmente não é
uma opção disponível para mim, e preciso de um pouco de
flexibilidade para contornar o impasse em que o meu autismo me
coloca. No Metropolitan, eu olhei para a peça de arte que precisava
ver, e então voltei à rota regular. De verdade, eu não quero
tratamento especial. Só quero a chance de curtir arte extraordinária
e artefatos e ter minha mente enriquecida por eles. Como todo
mundo.
O idioma inglês parece um velho amigo para mim. Sempre fui
fascinado por seu jeito direto e sua beleza rítmica, então estar
cercado por inglês em Nova York não pareceu tão alienante. Apesar
de gostar da língua e de ter um vocabulário razoável, eu não posso
usar minha prancha de alfabeto para me comunicar em inglês,
talvez porque não sou exposto ao idioma em minha vida diária. Se
eu ouvisse mais inglês cotidiano no Japão, talvez pudesse remediar
isso. Só memorizar frases prontas, como todos sabemos, não tem
muita utilidade prática quando você quer falar com alguém.
Eu fiquei surpreso com a vastidão de Nova York. A cidade me deu
a impressão de um país inteiro feito de muitos povos e culturas. As
pessoas lá acreditam que todo mundo tem a chance de ter sucesso.
Talvez isso venha de um desejo profundo de entender os outros, em
vez de excluí-los. Eu vi, da água, a Estátua da Liberdade. Quando
eu olhei para ela, de pé bem alta e se esticando para o céu, eu
fiquei muito comovido e pensei em como eu gostaria de viver minha
vida da mesma forma. Nova York intensificou meu desejo de ver o
mundo e me mostrou como era estreito o mundo que eu conhecia
antes. O que eu absorvi com meus olhos em Nova York, o que eu
ouvi com meus ouvidos e senti na minha pele, eu gostaria de trocar
por palavras. Palavras que desejo escrever. Palavras que desejo
mandar para seus caminhos.
Parte 8: Casa

72: Casa

Quando minha família está relaxada e aproveitando tempo livre,


todos juntos em casa, é quando eu sou mais feliz. Posso não
conseguir me juntar à conversa, e pelo meu rosto e reações você
não saberia que eu estou gostando, mas só assistir a minha família
ser uma família me dá grande prazer. Os momentos em que sinto
que mais pertenço com eles são quando eles notam alguma
pequena mudança em mim. Também amo quando eu rio de algo na
hora certa e eles dizem “Ei, Naoki achou engraçado!”. Fico
encantado quando isso acontece: geralmente é tão difícil para mim
mostrar o que estou sentindo de uma forma normal e natural. Ou
quando estamos dividindo alguns lanches e eles dizem “Qual você
gosta mais, Naoki?”. Em momentos como esse, eu tenho uma
sensação palpável de ser parte de minha família. É tão bom.
Eu anseio por parecer uma pessoa comum que você não olharia
duas vezes na rua. Duvido que a maioria das pessoas possa
imaginar o que é ser notado e observado o tempo todo, mas quando
estou com minha família em casa, eles não prestam atenção
exagerada em mim. Minha mãe e minha irmã conversam, todos
fazem suas coisas, ou trabalhos domésticos, ou assistem TV... e eu
posso ser uma pessoa comum. Estar em casa me ajuda a manter o
controle das coisas e me dá paz de espírito. Minha autoestima
também se beneficia, pelo fato de eu nunca receber tratamento
especial em nossa casa. Não tenho nenhuma lembrança de alguma
vez alguém me apontar o dedo em casa, ou tentar me fazer sentir
culpado.
Eu fui incluído em minha família com a carteirinha completa de
membro, e acho que, por causa disso, eu sonho viver na sociedade
sem ser tratado como um caso especial o tempo todo. Minha família
me dá um lugar a que pertencer, com funções e responsabilidades.
Não sou um príncipe nem uma parte avulsa, e se nós, pessoas com
necessidades especiais, pertencemos em nossas famílias como um
fato comum, não há esperança de que um dia vamos criar um lugar
no mundo em que pertencemos, também?

73: Livros de figuras

Às vezes eu e meu ajudante vamos à biblioteca local, onde eu


sento na seção infantil e leio livros de figuras. São basicamente
sempre os mesmos; na verdade, desde que sou criança, o
repertório mal se alterou. Prefiro pensar que isso não se deva a uma
inteligência limitada; em vez disso, é porque, quando eu os leio,
minha mente divaga dentro do mundo do livro de figuras e eu posso
relaxar de forma livre e segura. Aqui no mundo real, não há muitos
lugares em que eu e meu autismo podemos baixar a guarda. Como
água corrente ou a textura da areia ou a beleza da luz, meus livros
de figuras favoritos me dão um conforto terapêutico.
Quando eu era bem pequeno, estranhamente, eu não ligava para
livros de figuras. Minha mãe tentava lê-los para mim, mas eu corria
para longe - aquilo realmente a deixava frustrada! Meu
conhecimento de palavras era tão escasso que minha mãe lendo
um livro de figuras para mim era só mais um barulho - como o som
de muitas pessoas falando todas ao mesmo tempo. Livros de figuras
podem parecer muito simples, mas eles exigem imaginação para
funcionar, e como eu não mostrava nenhuma reação a qualquer tipo
de livro de figuras, minha mãe ficava muito preocupada - ou assim
me contaram. Um dia, no entanto, ela percebeu a frequência com
que eu ficava olhando velhas fotografias. Então, ela criou um livro
de fotografias usando nossas fotos de família, e escreveu frases
curtas na legenda de cada imagem. Foi graças a isso que todo o
conceito de livros de figuras fez um “clique” e passou a fazer sentido
para mim, e dali então o número deles que eu gostava cresceu de
forma estável. Além disso, eu pude começar a associar meu eu
cotidiano aos personagens nos livros.
A sabedoria popular diz que pessoas com autismo têm pouco
interesse em outras pessoas e pouco entendimento das emoções
dos outros. Não tenho mais tanta certeza sobre isso. Um dia, eu
percebi de repente que minha mãe não estava por perto e, abalado,
eu comecei a procurá-la. Ela estava apenas no andar de cima, mas
ficou surpresa de que eu tivesse ido procurá-la. Antes disso, sempre
tinha sido minha mãe que se perguntava onde eu tinha me metido.
Eu nunca tinha procurado por ninguém por ansiedade por elas, em
vez de querer algo delas. Sempre tinha existido em um mundo com
apenas um personagem principal, muito como o mundo de um livro
de figuras. A vida para pessoas com autismo pode ser assim, e se
apenas um dia pudesse se passar de forma tão fácil como uma
página sendo virada, ficaríamos contentes. No entanto, isso não é o
mesmo que ser incapaz de compaixão ou simpatia. O Naoki que
estava se preocupando com onde a mãe tinha ido era um Naoki que
tinha pulado para fora daquela existência de livro de figuras. Eu sei
que nunca vou ser como todos os outros imediatamente - ou nunca
-, mas, pouco a pouco, tenho a intenção de escrever minha própria
história.

74: Respeito

Minha família conquista meu respeito. Não porque sejam seres


iluminados, mas porque, simplesmente, eles estão lá para mim,
desejam o meu melhor, e me aceitam como eu sou. Isso pode
parecer comum, mas eu sei bem como é complicado dividir uma
vida comigo e com essa deficiência conhecida como autismo. Minha
família recebe olhares gelados de estranhos e é bagunçada por
minhas fixações, ataques de pânico e crises, mas nunca vira as
costas para mim. Estão acostumados a essas coisas, e é isso.
Graças a essa atitude de ignorar as críticas, eles me mostram
esperança para o futuro, me tiram da resignação passiva e me
ajudam a entender que minha vida não é tão aberrantemente fora
do comum, afinal.
Todos devem merecer respeito. A palavra lembra reverência -
uma imagem de admirar uma pessoa, ou de se esforçar para imitá-
la. No meu caso, no entanto, as pessoas que eu respeito fora de
minha família são aquelas que me ensinaram várias coisas
enquanto eu me movia pela vida. Instruções do tipo escolar não me
comovem muito: o que me impressiona mais é como uma pessoa
vive sua vida.

75: Mãe

Minha mãe é inabalável. Ela tem a aparência de qualquer outra


mãe, mas nada pode perturbá-la. Mesmo quando as coisas se saem
horrivelmente, ela nunca tem um ataque ou perde a cabeça. Ela só
aceita e abraça meus sentimentos e reações. Eu acho que é por
isso que consigo falar com ela sobre qualquer coisa, absolutamente
qualquer coisa. O objetivo número um de minha mãe na vida parece
ser fazer a minha família rir. Ela elogia a mim e minha irmã até os
céus quando fazemos ou dizemos algo engraçado; se fazemos
alguma tarefa de casa ou andamos estudando, só ganhamos um
“Obrigada” ou “Muito bem”, mas também isso ela fala do coração,
então ainda sou aquecido por suas palavras.
Já ouvi dizerem que, para crianças muito novas com autismo,
mesmo a noção de ter pais pode não ser registrada. No meu caso,
eu só fiquei ciente de que meus pais eram meus pais mais tarde do
que meus colegas neurotípicos. Acho que você pode pensar que
isso dificulta que uma ligação entre pais e filho se forme, mas eu
discordo. Uma criança pode não saber exatamente o que são “pais”
exatamente, mas somos preenchidos, eu acredito, com o amor que
nossos pais derramam sobre nós. Minha mãe pode já ter sido só
uma “pessoa útil”, mas eu cresci para apreciar como ela é devotada.
Sentimentos como Vou amar meu filho quando a mente dele estiver
mais madura ou Ela não entende nada, então não pode sentir amor
estão muito errados. Muito errados.

76: Minha irmã e eu

Eu gosto de ficar no quarto da minha irmã. Ela nunca me expulsa.


Nós não necessariamente interagimos - eu só gosto da companhia
dela. Com frequência ela está estudando ou lendo revistas na
escrivaninha, enquanto eu sento no chão olhando livros de figuras
ou jogando jogos numéricos. Estar com ela desse jeito é mais
divertido do que estar sozinho e sou muito grato por esse lugar, bem
aqui no quarto da minha irmã mais velha, onde nunca sou rejeitado
nem recebo tratamento especial.
Já ouvi dizerem que é difícil criar irmãos sem nenhum favoritismo,
mas não tenho tanta certeza de que irmãos realmente queiram
tratamento idêntico. O que eles querem sentir é uma igualdade de
amor. Se eu não sentisse isso em nossa casa, então independente
de ser tratado melhor ou pior do que a minha irmã, eu ainda sentiria
luto em relação aos nossos pais. Mas eu sinto que minha irmã e eu
somos amados igualmente, especialmente quando a vejo se dar
bem com mamãe e papai, e parecendo feliz de estar ali. Minha irmã
é meu espelho, em um sentido. Se ela não estivesse confortável em
casa, eu também não conseguiria estar. Felicidade que vem às
custas de outra pessoa não é felicidade - especialmente se essa
outra pessoa é preciosa para você. Mesmo quando tenho de
monopolizar o tempo de nossa mãe, minha irmã não sente ciúme -
ela sabe que estamos nos concentrando e trabalhando, não
perdendo tempo.
Cada um de nós tem funções a cumprir e desafios a encarar, e
nenhum de nós é um herói, não quando olhados de perto. Minha
família tem sua cota de dificuldades, como qualquer outra. Mas é
essa igualdade de amor que minha irmã e eu sentimos de nossos
pais que nos permite sentir em casa quando estamos em casa.
77: Pai
Um pai, quando há um pai, tem um papel crucial na vida familiar, e
não importa se ele é um pai amoroso e presente, um viciado em
trabalho, não muito interessado em criar os filhos ou vive com uma
doença de longo prazo, o seu pai é o seu pai e você só tem um. Eu
raramente falo sobre minha família de forma pública, como aqui. Ele
é funcionário de uma companhia, então não quero criar qualquer
constrangimento para ele. Muitas pessoas que conheci são curiosas
sobre como meu pai interage comigo, mas eu não diria que ele faça
nada muito fora do comum. Enquanto minha mãe e minha irmã
ficam de olhoaem mim o tempo todo, meu pai não têm tanto a dizer
sobre o que eu posso estar fazendo. Quando ele está em casa, ele
gosta de ler o jornal ou assistir o noticiário na TV. Se há uma
reportagem que captura sua atenção, ele a discute conosco. O que
realmente o interessa é se as estatísticas estão sendo usadas de
forma enganosa, ou se um argumento está contradizendo a si
mesmo. Ele é muito bom em reconhecer essas situações. Meu pai
tem uma educação técnica e ele acha imperdoável quando os dados
são convenientemente interpretados errado e “descobertas”
desonestas são proclamadas como verdades evidentes em si
mesmas. As opiniões do meu pai me mantêm alerta. Ele fala sobre
o que acontece nos bastidores da sociedade e sobre episódios
escondidos da história, e ele expressa pontos de vista que podem
ser bem diferentes dos da minha mãe e irmã. Enquanto meu pai
está falando, você pode não adivinhar pela minha aparência que eu
estou ouvindo com atenção, mas eu estou.
O que eu aprendi com meu pai é que a sociedade é composta de
diversos tipos de pessoas, com diversos pontos de vista. Por meio
desses diversos pontos de vista, você pode aprender a ver e pensar
sobre o mundo de formas que não vai encontrar em livros didáticos.
A independência mental de meu pai com frequência vai contra a
maioria, e a forma como ele se mantém verdadeiro a suas próprias
ideias influencia o meu próprio senso de valores e, eu espero, minha
individualidade como escritor.
Meu pai e minha mãe não me deram apenas amor; eles criaram
memórias que vão me aquecer e nutrir, sempre. Ao compartilhar
suas vidas, por sua simpatia mútua e apoio - e ao enfrentar
momentos difíceis -, eles renovam a união de nossa família. Essa é
uma lição. O dinheiro não pode comprá-la.

Um pai brilhante

Não existe
um pai inútil.
Não existe
um filho inútil.
“Ah, eu sou um total
desperdício de espaço!”
ele diz, e prova
que quer ser
um pai melhor.
E esse não é
um pai brilhante?

78: Obstáculos, objetivos, bênçãos e esperanças


Na minha vida até então, eu já experienciei uma série de
dificuldades por conta do meu autismo. Essas dificuldades se
originam no fato de que nossa sociedade é composta de uma
grande maioria neurotípica. Faria sentido você supor, então, que eu
sinto nada além de inveja em relação à maioria “normal”, mas não é
bem assim, nem de longe. Mais e mais, eu percebo as partes
positivas de ter autismo. Duas coisas tornam essa visão possível.
O primeiro motivo é que meus pais nunca estiveram em negação
sobre o meu autismo, nem me colocaram em uma caixinha de
“necessidades especiais”. Eles só lutavam para me ajudar a
melhorar nas coisas em que eu era bom. Trabalhar em direção à
independência é muito importante e uma parte necessária do
crescimento para todo mundo, mas a independência, por si só, não
vai dissipar ou diluir o autismo. Eu atribuo o conforto que sinto em
minha “pele autista” hoje aos meus pais não estarem dispostos a
engolir ideias fixas sobre autismo, e à decisão deles de providenciar
qualquer educação que fosse a melhor para mim no momento.
O segundo motivo é que eu me tornei melhor em fazer decisões
por mim mesmo. Decidir coisas por si mesmo é uma parte vital da
autoestima. Eu acredito que, porque meus pais sempre respeitaram
meus desejos e sentimentos, minha autoconfiança teve espaço para
crescer.
Sempre que eu escuto as palavras “Ah, é porque ele tem
autismo”, eu sinto desânimo. A palavra “autismo” tem um efeito
negativo e essa negatividade, eu acho, corrói a posição de pessoas
com autismo. Com certeza, funcionar em nossa sociedade é difícil
para neuroatípicos, mas encontrar dificuldades não é o mesmo que
ser infeliz. Como aconteceu de a palavra “autismo” causar pena?
Parte da resposta pode ser que vemos tão poucos modelos de
pessoas vivendo contentes com seu autismo. O fato é que não
temos escolha a não ser viver em uma sociedade onde o autismo é
visto exclusivamente como uma tristeza e uma dificuldade - um fato
que leva a mais tristeza e dificuldade.
Até eu, quando criança, costumava pensar “Uau, se eu apenas
não tivesse autismo, a vida não seria incrível?”. Não faço mais isso.
Não posso realmente me imaginar sem autismo porque o Eu que eu
seria, não seria o mesmo Eu que sou agora. Um Eu Sem Autismo,
mesmo que tivesse a mesma aparência, teria ideias e forma de ver
o mundo inteiramente diferentes. Perder o autismo não seria como
se recuperar de uma doença debilitante, por exemplo. Não é o caso
de uma doença sendo curada ou um ferimento que melhora. Pode
muito bem ser que nossos cérebros são estruturados de formas
diferentes. As pessoas podem dizer “Ao se tornar neurotípico,
coisas boas vão acontecer e você não vai mais ser um fardo a todos
ao redor”, e não estou negando que seria um sonho realizado para
as pessoas que têm de viver com autismo no momento presente.
Porém, como você se sentiria se fosse obrigado a se submeter a
tratamento médico pelo único motivo de que quem você é, é uma
inconveniência? Não remédio para aliviar sintomas, mas uma
operação para realizar uma mudança nas raízes profundas de quem
e o quê você é, e remover todo o significado de tudo que você
considerava belo e precioso?
É injusto que até as personalidades de pessoas com autismo
sejam invalidadas por causa de nossas diferenças em relação à
norma. Eu acho óbvio que, se não sou bom em algo, tenho de
praticar. A parte difícil é quando as pessoas ficam irritadas e nos
repreendem por levarmos séculos para aprender o que neurotípicos
absorvem sem esforço. Em momentos como esse, realmente
parece que martelam em mim que eu sou inútil em tudo. Parece não
ser reconhecido pela maioria que há coisas positivas a serem
encontradas na neurologia de pessoas com autismo. Se o mundo
em geral se interessasse mais em como nossos cérebros funcionam
e pesquisasse o que nos torna únicos - em vez de focar em nosso
tratamento e “cura” -, poderíamos ter orgulho de nossas naturezas
neuroatípicas.
Eu me pergunto, às vezes: se eu não tivesse autismo, será que eu
conseguiria interagir com pessoas com autismo da mesma forma
que iria interagir com todos os outros? Eu seria capaz de explorar os
corações e mentes daqueles que vivem com dificuldades tão
extremas e trabalhar em como melhorar a sua qualidade de vida?
Há motivos para pessoas com autismo existirem no mundo, eu
acredito. Aqueles determinados a viver conosco e não desistir são
pessoas profundamente compassivas, e esse tipo de compaixão
deve ser uma chave à sobrevivência da humanidade a longo prazo.
Mesmo quando os meios de autoexpressão e/ou inteligência estão
faltando, ainda respondemos ao amor. Saber que somos queridos é
uma fonte de esperança, e não importa como as coisas fiquem
difíceis, você sempre pode continuar lutando enquanto houver
esperança. Desde que cheguei a esse mundo, eu me beneficiei de
muitas experiências maravilhosas. Graças a amigos, família e
apoiadores, eu posso ser grato pelo que está ao meu redor e manter
um sorriso no rosto.
A vida é preciosa, então tentamos ajudar uns aos outros; e como
alguém que tende a estar sempre do lado de quem recebe essa
assistência mútua, eu me sinto especialmente aquecido quando as
pessoa se mantêm alegres e positivas enquanto me ajudam. Cada
vez que alguém me trata com gentileza, minha determinação para
viver bem a partir de amanhã é renovada. É assim que eu me sinto
empoderado para dar algo em retorno a minha família e à
sociedade, mesmo se minha contribuição é modesta. Graças às
pessoas que vêm a mim com perguntas e pedem a minha opinião
sobre as coisas - mesmo que nem sempre eu possa responder -, eu
posso pensar sobre o que eu quero. Eu me sinto abençoado por ser
capaz de considerar que tipo de vida me traria contentamento, e
exercitar escolhas que podem fazer essa vida acontecer.
Eu amo a natureza, tenho interesse em letras e números, e sou
fascinado por algumas coisas em que outras pessoas não têm
qualquer interesse. Se esses fascínios são estruturados no meu
cérebro autista, e se pessoas neurotípicas são incapazes de
acessar essas maravilhas, então tenho de dizer que as belezas
imutáveis do autismo são tantas que eu me considero sortudo por
ter nascido com a condição.
Questões como nossas obsessões, fixações e ataques de pânico
precisam mesmo ser trabalhadas, mas em vez de reclamar de
problemas para os quais não há consertos rápidos, eu prefiro me
concentrar nas minhas habilidades de autorregulação, mesmo se o
progresso é gradual. Viver uma vida em que me sinto abençoado
por ter autismo: esse vai ser o meu objetivo de agora em diante.
79: Caros pais

Todos os pais, eu acho, ficam entristecidos quando um filho é


diagnosticado com autismo. Como eu era a criança sendo
diagnosticada e não a mãe ou pai a quem o diagnóstico foi
apresentado, só posso imaginar ser a criança nessa situação, que
tem de assistir a seus pais se renderem à tristeza crônica. Por mais
infeliz que você esteja sobre seu filho, por favor, não vire as costas.
A criança não pode mudar o que é. Ela não sabe por que não é
igual às outras crianças, não mais do que você, mas, por mais
difíceis que as coisas sejam para você, é mais difícil para a criança.
Acredite em mim. A criança não tem para onde fugir e você é a
única pessoa em quem elas podem procurar ajuda. Será que o
autismo do seu filho vai transformar suas vidas e, se sim, como?
Embora eu não tenha a resposta, não há muito que o tempo não
ajude. Uma criança com deficiência entrou na sua vida, mas isso
deve degradar o valor da sua vida? Você escolhe como vive a sua
vida. Aonde quer que você vá, o que quer que você faça, o que quer
que aconteça com você, a sua natureza essencial permanece
constante, eu acredito. Sim, criar um filho com autismo pode exigir
muita energia, mas por favor lembre-se, assim como você se
preocupa com seu filho, ele também se preocupa com você.
Meus próprios pais nunca discutiram muito meu futuro desde que
eu era pequeno, parece. Eles nunca pensaram que, por causa de
minha deficiência, eu tinha de seguir tal e tal caminho. Graças a
isso, para o bem ou para o mal, aqui estou eu, como sou. Seu filho
também vai ser um adulto um dia. Para ele, viver com o mesmo
grau de independência que um filho neurotípico pode ser difícil, mas
um dia seus dias de criar filhos vão chegar ao fim. Os pais
envelhecem até que não podem mais cuidar de seus filhos adultos.
O período em que estamos juntos como pais e filhos é finito. Então,
por favor, enquanto a criança é uma criança, e enquanto você está
por aqui para fazer isso, dê apoio a ela. Ria com ela e divida suas
histórias. Você não vai viver esses anos de novo. Valorize-os. É tudo
que eu peço.

80: Dia das mães de 2013

Às vezes eu saio com meu ajudante de necessidades especiais


para um supermercado local. Para praticar fazer compras, eu
compro meus próprios lanches. Hoje, no canto da seção de comida,
eu vi que estavam vendendo buquês de cravos vermelhos para o
dia das mães. Eu pensei, Gostaria de comprar alguns para minha
mãe . Mas, claro, eu não conseguia simplesmente vocalizar esse
pensamento, porque é muito difícil para mim dizer aos outros o que
eu quero através da fala ou de gestos. Nessa ocasião, no entanto,
eu pude produzir essa fala de duas palavras: “Cravo… comprar”.
Meu cuidador ficou bem surpreso! Foi assim que eu consegui.
Primeiro, eu passei um “vídeo de memória” de cravos na minha
cabeça. Ao ver o vídeo, eu fui capaz de dizer a palavra “cravo”.
Depois, para acessar o verbo que precisava ir junto com a flor, eu
direcionei meus pensamentos ao que eu estava fazendo no
momento. Palavras como “andar”, “ver” e “pensar” flutuaram pela
minha cabeça, mas então, o fato de estarmos em um supermercado
desbloqueou a palavra “comprar”. Aquele verbo era a melhor
combinação para a palavra “cravo” e ao juntar os dois eu consegui
“Cravo… comprar”. Então, eu estava livre para pensar É isso que eu
preciso dizer!  e - finalmente - eu disse.
Eu só tinha moedas o suficiente para uma única flor, mas quando
chegamos em casa e eu dei o cravo à minha mãe, ela ficou
encantada. Ainda não sou bom nos aspectos práticos de comprar
coisas sem assistência, mas foi fantástico que eu pudesse dizer a
meu ajudante o que queria comprar. E ainda estou bem longe de
conseguir falar assim sempre que quero. Agora eu sei, porém, que
há momentos em que, com a necessidade, eu consigo. Dar flores à
minha mãe no dia das mães era um sonho que eu nutria havia anos.
Hoje, um cravo vermelho em uma sala em casa falou tudo por mim.

Posfácio

Os métodos de comunicação que eu, com meu autismo severo, já


usei em minha vida foram escrita com apoio da mão, traçar letras na
palma da mão de um transcritor e, hoje em dia, apontar de forma
independente as letras de uma prancha de alfabeto. O primeiro,
escrita com apoio da mão, envolve escrever no papel com uma
caneta enquanto um assistente faz uma leve pressão nas costas da
mão do escritor para ajudá-lo em sua tarefa. Traçar letras não é
muito diferente, mas para isso eu traço as letras na palma aberta de
um transcritor, em vez de no papel. Hoje em dia eu uso o método da
prancha de alfabeto - sem a ajuda de ninguém e sem nenhum
contato físico - para expressar meus pensamentos e sentimentos.
Minha prancha de alfabeto lembra um teclado QWERTY comum,
com as letras e números escritas em um papelão. Recentemente,
eu me tornei capaz de vocalizar as letras enquanto as toco na
ordem certa com meu dedo indicador. Para escrita criativa, eu uso
meu computador. Minha prancha de alfabeto é melhor para
comunicação imediata, porque quando uso o computador eu posso
ficar distraído pela digitação do que quer que apareça na minha
cabeça, ou pelo conversor de alfabeto fonético para caracteres
chineses ( hiragana para kanji ). Já houve vezes em que a pessoa
com quem estou me comunicando foi deixada esperando por uma
eternidade.
Até bem recentemente, dizia-se que pessoas com autismo severo
nunca poderiam se expressar. Então, muitas pessoas podem ter se
surpreendido ao me ver transmitindo meus pensamentos pela
prancha de alfabeto e computador. À medida que eu venho
contando a história de minha vida interior para o grande público, eu
aprendi que muitas pessoas - com ou sem autismo - descobrem que
minha escrita toca algo dentro delas sobre suas próprias
experiências. O que é esse algo em comum? A resposta, eu acho,
tem relação com aquelas emoções que tomam conta de todos nós.
A evolução aparenta ter resultado no domínio da razão sobre o que
dizemos e fazemos, mas, na realidade, é raro que nossas mentes e
corações sejam inteiramente racionais e estáveis. Nós nos
preocupamos sobre como domar nossas emoções e atingir um
estado de equilíbrio. Ao traduzir nossos estados de espírito em
palavras, talvez possamos captar melhor os motivos por baixo de
nossa insegurança. Para viver uma vida positiva, compreensão e
aceitação são chave. Todos procuramos a coragem para nos
levantar de novo após cairmos. Significaria tudo para mim se este
livro pudesse ocasionalmente servir como um empurrão gentil na
direção certa.
Naoki Higashida
Japão, 2015
 

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