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Introdução
por David Mitchell
Naoki Higashida é um jovem afável e pensativo, agora na casa
dos vinte anos, que vive com sua família em Chiba, ao lado de
Tóquio. Naoki tem autismo de um tipo rotulado de severo e não-
verbal, então uma conversa fluente do tipo que facilita a vida da
maioria de nós é impossível para ele. No entanto, com muito
treinamento, força e paciência, ele aprendeu a se comunicar
“digitando” frases em uma prancha de alfabeto - um teclado
QWERTY desenhado em uma folha de papelão, acrescido de “SIM”,
“NÃO” e “TERMINEI”. Naoki diz os caracteres fonéticos do alfabeto
japonês hiragana enquanto toca as letras romanas correspondentes
e constrói frases, que um transcritor passa para o papel. (A mão de
mais ninguém está perto da de Naoki durante esse processo, um
fato que comunicadores de prancha de alfabeto em um mundo
cético precisam reforçar eternamente.) Se esse parece ser um jeito
árduo de se expressar, você está certo, é mesmo; além disso, o
autismo de Naoki o bombardeia de distrações e o faz levantar no
meio da frase, andar pela sala e olhar pela janela. Ele sai facilmente
de sua linha de pensamento e é forçado a recomeçar a frase. Já vi
Naoki produzir uma frase complexa em um minuto, mas também já
o vi levar vinte minutos para completar uma frase de apenas
algumas palavras. Escrevendo em um laptop, Naoki pode dispensar
o transcritor humano, mas a tela e o conversor de texto (os menus
necessários para escrever em japonês) geram mais um nível de
distração. Foi através de sua prancha de alfabeto ou de seu
computador que Naoki escreveu cada frase neste livro.
Eu conheci a escrita de Naoki antes de conhecer Naoki. Meu filho
tem autismo e minha esposa é do Japão, então, quando nosso
menino era bem novo e o seu autismo estava no auge de
desafiador, minha esposa procurou online por livros em sua língua
nativa que pudessem oferecer dicas práticas sobre o que estávamos
tentando (e com frequência falhando em) lidar. Trilhas de internet
levaram a O que me faz pular , escrito quando o autor tinha apenas
treze anos, e produzido por um pequeno editor especialista. Nossas
estantes estavam tortas com o peso de livros enormes de
especialistas em autismo e mentores de autismo, e por mais que
alguns fossem bons, poucos eram de muita ajuda prática com nosso
menino de cinco anos não-verbal e regularmente estressado. Minha
esposa pediu o livro de Naoki porque o autor era relativamente
próximo em idade ao nosso filho, além de ser não-verbal. Quando o
livro chegou, ela começou a traduzir trechos dele em voz alta na
nossa mesa da cozinha, e muitos de seus curtos capítulos
trouxeram luz imediata às questões de nosso filho: por que ele batia
a cabeça no chão; por que havia fases em que suas roupas
pareciam insuportavelmente desconfortáveis; por que ele era
tomado por crises de riso ou fúria ou lágrimas, mesmo quando nada
óbvio havia acontecido para provocar essas reações. Teorias que eu
havia lido previamente por autores neurotípicos eram especulações
que às vezes faziam sentido, mas às vezes não faziam; O que me
faz pular oferecia explicações plausíveis diretamente da prancha de
alfabeto de uma pessoa com informações de dentro.
A iluminação pode ser mortificante - eu percebi como entendia
mal o autismo do meu filho -, mas um pouco de mortificação nunca
machucou ninguém. No YouTube, eu achei alguns vídeos de Naoki
e fiquei perplexo com o quanto o autismo dele era visivelmente
manifesto - mais até do que o do meu filho. Esse abismo entre a
aparência de Naoki e sua expressividade textual me causou uma
impressão profunda. Claramente, ele sofria com crises, fixações e
tiques verbais e físicos, que, não muito tempo atrás, teriam
garantido uma curta e sombria vida de encarceramento. E ainda
assim, em O que me faz pular , o mesmo garoto estava mostrando
inteligência, criatividade, análise, empatia e uma amplitude
emocional tão grande como a minha própria. O que me intrigou,
mais do que qualquer outra coisa, foi que esses últimos dois
atributos - empatia e amplitude emocional - são exatamente o que
pessoas com autismo são famosas por não terem. O que estava
acontecendo? A severidade do autismo de Naoki foi documentada
tanto nos vídeos no YouTube quanto no documentário sobre
autismo de 2010 de Gerardine Wurzburg, Wretches and jabberers .
Isso me deixou com duas possibilidades: ou Naoki Higashida é um
em um milhão, que tem autismo severo não-verbal e ainda assim é
intelectualmente e emocionalmente intacto; ou a sociedade em
geral, e muitos especialistas, estão parcialmente ou inteiramente
errados sobre o autismo.
Evidência contra a “possibilidade do caso único” veio na forma de
outros escritores e blogueiros não-verbais com autismo severo,
como Carly Fleischmann e, mais recentemente, Ido Kedar e Tito
Mukhopadhyay. A habilidade de Naoki para se comunicar pode ser
rara, mas não é uma em um milhão. A teoria sobre estarmos
errados sobre o autismo é apoiada pelos erros lamentáveis que
poderiam servir como nomes de capítulos na história do autismo.
Leo Kanner, o psiquiatra infantil pioneiro que foi o primeiro a usar a
palavra “autismo” em um contexto separado da esquizofrenia,
culpou a condição em parte em “mães geladeira” - uma noção cuja
credibilidade pública agora está igualada à possessão demoníaca,
mas que ainda mantém algum peso na França, Coreia do Sul e
entre uma geração mais velha de especialistas. Os anos 1960 e 70
viram psiquiatras renomados defendendo “curas” do autismo
baseadas em terapia de eletrochoque, LSD e técnicas de mudança
de comportamento que usavam dor e punição. Eu entendo que a
ciência progride por cima dos corpos de teorias derrubadas, e eu sei
que julgar psiquiatras bem-intencionados com o conhecimento do
futuro não é particularmente justo, mas quando eu considero o dano
que eles com certeza infligiram a crianças como o meu filho, assim
como a pais como eu e minha esposa, eu não sinto vontade de ser
particularmente justo. O xis da questão: e se a ideia atual de que
pessoas com autismo severo têm deficiências intelectuais severas é
o grande erro sobre autismo da nossa década? E se a convicção de
Naoki - expressa neste livro -, de que estamos confundindo
disfuncionalidade comunicativa com disfuncionalidade cognitiva,
acertou em cheio?
Minha esposa e eu não vimos mal algum em “presumir o melhor”
e agir como se, dentro do turbilhão caótico dos autismos e
comportamentos do nosso filho, houvesse um menino de cinco anos
esperto e perceptivo - mesmo que terrivelmente isolado. Paramos
de supor que, por ele nunca ter dito uma palavra em sua vida, ele
não podia nos entender. Colocamos pequenas porções de comida
que ele não comia no canto do seu prato de macarrão, como Naoki
sugere, para o caso de ele estar aberto a experimentar naquele dia.
Com frequência ele não estava, mas às vezes estava, e seu
repertório alimentar cresceu. Começamos a pedir ao nosso filho
para pegar coisas que ele tinha deixado cair, levando a mão dele ao
objeto caído, em vez de pensar Ah, por que se dar ao trabalho? e
pegar por ele. Sempre que possível, demos a ele escolhas em vez
de decidir as coisas por ele. Ficamos melhores em discernir seus
desejos não expressos, em vez de supor que ele não tinha desejos.
Começamos a falar com ele normalmente, em vez de em palavras
únicas. Eu não sabia que porcentagem dessas frases mais longas e
naturais ele entendia - ainda não sei -, mas o que eu sei é que
nossas vidas diárias melhoraram. Eu sei que, dia após dia e semana
após semana, ele se tornou mais “presente” e interativo. Seu
contato visual melhorou, ele interagia mais conosco, e com ajuda de
um tutor inspirado e inspirador, nosso filho entrou na cozinha um dia
e quase me fez cair da cadeira ao dizer, “Pode me dar suco de
laranja, por favor?”. O vocabulário dele aumentou muito e episódios
de autoagressão se reduziram a quase zero.
Como não tenho acesso a um universo paralelo em que nunca
ouvi falar de Naoki Higashida, não posso saber se esses passos e
melhoras teriam acontecido de qualquer forma. Ainda tínhamos, e
ainda temos, muitos dias não tão bons. O autismo não é uma
doença, então não há “curas” - e nunca dê suas informações de
cartão de crédito a ninguém que diga o contrário. O meu ponto é
que O que me faz pular não é uma varinha mágica. Mas o livro de
fato nos ajudou a entender os desafios de nosso filho e o mundo da
perspectiva dele, mais do que qualquer outra fonte, e esse
conhecimento nos ajudou a ajudá-lo. Algumas atitudes e hábitos
inibem o desenvolvimento, enquanto outras atitudes e estratégias o
estimulam, e o livro de Naoki nos permitiu identificar quais eram
essas e mudar o foco de nossas vidas do Negativo para o Positivo.
Inicialmente, minha esposa e eu traduzimos O que me faz pular
para o inglês para os assistentes de necessidades especiais de
nosso filho, porque pensamos que eles também o achariam útil.
Mencionei o livro ao meu agente e ao meu editor da Inglaterra, que
pediu para ver nosso manuscrito. Eles viram o interesse potencial
para um público que estava se tornando mais tolerante e curioso
sobre a neurodiversidade. Meu agente contatou a editora do livro no
Japão, e logo minhas editoras da Inglaterra, Estados Unidos e
Canadá fizeram ofertas para os direitos da tradução para o inglês.
Naoki e sua família aceitaram. Com a ajuda de uma serialização
maravilhosa da Rádio BBC e um financiamento nos Estados Unidos
pelo Jon Stewart do programa The Daily Show , um campeão de
consciência do autismo, O que me faz pular entrou para as listas de
livros mais vendidos nos dois lados do Atlântico. Um documentário
sobre Naoki e o impacto de seu livro, What you taught me about my
son [“O que você me ensinou sobre meu filho”], foi feito pela rádio
japonesa NHK. Foi durante essas filmagens que eu conheci Naoki
pela primeira vez em Tóquio, e vi por mim mesmo, tanto os desafios
que ele enfrenta ao se comunicar, quanto sua tenacidade em
superar esses desafios. Após o documentário ir ao ar pela primeira
vez, NHK recebeu centenas de ligações telefônicas e e-mails
pedindo uma reprise. Após ir ao ar pela segunda vez, mais
espectadores ligaram pedindo uma terceira, depois uma quarta,
depois uma quinta vez. Atualmente, O que me faz pular foi traduzido
para mais de trinta idiomas. Até onde sabemos, isso faz de Naoki
Higashida o autor japonês vivo mais amplamente traduzido após
Haruki Murakami.
Eu fiquei surpreso e feliz com o sucesso de crítica e vendas do
livro de Naoki, que importa muito mais para o grande esquema das
coisas do que a minha própria ficção. O meu envolvimento na
promoção de O que me faz pular , no entanto, me serviu de aula
sobre a política sobre necessidades especiais. Não é para quem
tem o coração fraco. Opiniões arraigadas são muito bem armadas, e
suas reações padrão a novas ideias são frequentemente hostis.
Enquanto O que me faz pular teve uma recepção positiva, também
enfrentou a acusação de que ninguém com “legítimo” autismo
severo poderia ter escrito prosa tão articulada: não importavam os
vídeos no YouTube de Naoki escrevendo essa prosa articulada.
Portanto, Naoki devia ter recebido o diagnóstico errado e não ter
autismo; ou ser um impostor na ponta da síndrome de Asperger do
espectro, como o personagem Sheldon Cooper da série The Big
Bang Theory ; ou seus livros são escritos por outra pessoa,
possivelmente sua mãe. Ou por mim. Uma crítica do jornal The
New York Times alertou os tradutores contra “transformar o que
encontramos naquilo que queremos”. (O significado nas entrelinhas
que não posso evitar ver é, “Esses pais desesperados não
conseguem encarar o fato de que seus filhos são vegetais, então a
objetividade deles está comprometida”.) Em outros lugares, Naoki
foi acusado de entrar para a indústria de gurus. Não dá para ganhar,
de um jeito ou de outro. Claro, Naoki espera que sua escrita
contribua para um melhor entendimento público do autismo, mas ele
é ciente demais dos limites impostos pelo autismo no seu
conhecimento do mundo neurotípico. Ler jornais não é fácil para ele,
e a política pode parecer confusa. Como ex-aluno de uma escola
para necessidades especiais, ele sabe que o autismo vem em
muitas formas e tamanhos, então as observações dele sobre
autismo não são, e não podem ser, universalmente aplicáveis. Naoki
não é o guru de ninguém: ele responde perguntas da melhor forma
que consegue, mas você tira dali o que precisa e deixa o resto.
A minha experiência mais instrutiva foi ouvir de uma colega
contribuidora a um programa de rádio que O que me faz pular não
podia ser genuíno porque Naoki usa metáforas, e pessoas com
autismo severo não conseguem entender o que é uma metáfora,
muito menos criar uma. Na verdade, eu já assisti Naoki soletrar
metáforas em sua prancha de alfabeto em inúmeras ocasiões, mas
naquele dia eu me vi em uma dessas situações em que é impossível
vencer, onde protestos de honorabilidade só servem para convencer
os seus acusadores de que não há fumaça sem fogo. O filho dessa
colega também tinha autismo severo, e eu me esforcei para
entender a indignação dela. Ouvir que nós temos subestimado o
potencial de nosso filho pode parecer como uma acusação de
colaborarmos com o aprisionamento dele, e que pai ou mãe
amoroso, cheio de sacrifício de si mesmo, aceitaria isso? Um
impulso para atirar no mensageiro é compreensível. Como mostra a
minha própria reação espinhosa à crítica do The New York Times ,
a pele de pais de crianças com necessidades especiais é fina e
cheia de nervos. No entanto, nosso guia deveria certamente ser a
pergunta, “O que é melhor para o bem estar e chances de vida de
nossos filhos e filhas?”. Eu acredito que, por mais que o autismo
severo não-verbal pareça muito com um severo comprometimento
cognitivo, a verdade é que ele não é: é um severo comprometimento
no processamento sensorial e na comunicação . Essas palavras
fazem um mundo de diferença. Negar que um cérebro severamente
autista pode abrigar uma mente tão curiosa e imaginativa quanto a
de qualquer outra pessoa é perpetuar uma falsidade que pode levar
à ruína. (Uma analogia história é a surdez, que, desde a era de
Aristóteles até o advento da linguagem de sinais no século 19,
também era pensada como um comprometimento cognitivo severo -
daí o sinônimo para estúpido, “burro” [que em inglês também quer
dizer “mudo”]). Se uma grande massa de pessoas não tivesse
contestado as “verdades” anteriores sobre o autismo, a teoria da
Mãe Geladeira - ou até a teoria da Possessão Demoníaca - ainda
reinariam supremas. Naoki e outros pioneiros não-verbais podem
estar levantando a bandeira da nova mudança de paradigma em
direção a um entendimento mais verdadeiro da condição.
Naoki publicou vários livros no Japão após O que me faz pular ,
mas foi este livro, publicado em 2015, que minha esposa e eu
achamos o mais iluminador e útil. O autismo de uma pessoa não
desaparece convenientemente em uma certa idade, nem para de
evoluir. Nosso filho agora tem onze anos, e já sentimos que este
livro é uma útil fonte de conhecimento sobre como a adolescência
pode impactar o autismo, assim como uma indicação do que
esperarmos para o futuro. A maioria de seus curtos capítulos foram
escritos por Naoki para o seu blog, entre as idades de dezoito e
vinte e dois anos, apesar de que ele com frequência analisa seu eu
mais jovem por uma perspectiva mais madura. Então, esperamos
que este novo livro seja de ajuda prática para outras “famílias do
autismo” com adolescentes mais novos e mais velhos em suas
mãos. Para leitores gerais, esperamos que o livro ofereça outra
oportunidade para entrar em um cérebro autisticamente estruturado.
Seu leque de tópicos é mais diverso do que O que me faz pular , e
mostra o crescimento do autor e sua interação com o mundo. Se O
que me faz pular foi um texto de um menino que tinha autismo
severo mas por acaso sabia escrever, Cair sete vezes, levantar oito
é um livro de um autor que por acaso tem autismo severo. O
autismo ainda é o prisma e a lente de Naoki, mas os capítulos se
agregam em um retrato em colagem de um jovem aprendendo a
coexistir com uma mente e um corpo que nem sempre estão à sua
disposição, e abrindo um nicho para si mesmo no mundo
neurotípico.
A inclusão de uma história curta, Uma jornada , inspirada pela
experiência de demência de um dos avós de Naoki, representa uma
profundidade maior desse nicho. A narrativa em primeira pessoa é
carregada de uma revelação gradual, reviravoltas emocionais e uma
estranheza de sonho, e rejeita a sabedoria popular de que pessoas
com autismo não conseguem sentir emoção ou ver o mundo pelo
ponto de vista de outras pessoas. Nem deixa a desejar em
metáforas. Também está incluída uma entrevista em duas partes da
edição japonesa de The Big Issue , uma revista vendida por
moradores de rua e pessoas há muito tempo desempregadas. Naoki
contribuía regularmente com a revista, e as perguntas mais
peculiares do que o usual, dos vendedores e da equipe da revista,
levaram Naoki a considerar alguns tópicos de que não tinha falado
em nenhum outro lugar.
O título Cair sete vezes, levantar oito vem de um provérbio
japonês sobre os méritos da persistência, e o livro oferece
experiência, conselhos e esperança. Suas páginas mapeiam os
limites impostos pelo autismo não-verbal na vida do autor, mas
também descrevem como Naoki tem conseguido transcender,
renegociar ou apenas aprender a viver com esses limites. O livro
mostra como uma deficiência pode ser transformada em um campo
de empenho e a procura de uma vida com propósito. Se isso é
possível para Naoki, pode ser possível para outros, também.
O autismo tem o hábito de tornar rótulos bonitos como “verbal” e
“não-verbal” obscuros. Com pessoas neuroatípicas, a habilidade de
comunicação existe em um espectro, não em um binário de sim/não.
Sempre que me perguntam, “O seu filho é verbal ou não-verbal?”,
para responder de forma completa, eu tenho que explicar que,
embora a compreensão dele pareça boa e ele possa nomear
centenas de objetos em inglês e japonês, a comunicação falada
dele é limitada a poucas frases, e ele nunca teve uma conversa
mais longa do que três ou quatro trocas dessas frases. Eu não
posso saber com certeza se ele entende nada, parte ou toda uma
conversa entre outras pessoas. Se eu pudesse ter certeza, não
seria com o autismo que estaríamos lidando (e se eu tivesse dez
dólares por cada vez que digo essa frase, eu poderia comprar um
carro). O autismo é algo relativo, assim como resistente a rótulos.
Comparado a alguns outros que nunca disseram uma palavra em
suas vidas, e, de fato, comparado a Naoki, meu filho é bem verbal;
mas, em relação a seus colegas neurotípicos, ele está a um passo
da mudez.
O rótulo “não-verbal” aplicado a Naoki também exige alguma
explicação. Ele tem uma inabilidade quase total de conduzir uma
conversa falada, e de dar respostas verbais a perguntas. Ele é mais
capaz de usar o pequeno cardápio de frases curtas metralhadas nas
crianças japonesas e usado ao longo de suas vidas - um “ itte-
kimasu! ” quando você sai de casa, um “ tadaima! ” quando retorna,
para citar dois dos exemplos de Naoki neste livro. Outra palavra que
ele usa é a universal expressão de gratidão antes das refeições, “
itadakimasu ”, apesar de que isso se tornou uma fixação em que ele
tem de checar que todas as outras pessoas na mesa também
disseram isso. (Problemático em grandes reuniões.) Se a mãe de
Naoki usa sua voz comum quando chama o nome dele para checar
onde ele está na casa, Naoki não consegue responder. Se ela usa o
nome todo dele no tom formal de uma professora fazendo a
chamada, no entanto, Naoki consegue confirmar sua presença
verbalmente. Ele também sabe dizer - ou, mais precisamente, se
sente forçado a repetir - palavras ou frases curtas que se embutiram
em sua mente. Essas podem ser músicas de propagandas, nomes
de lugares ou palavras que lhe chamam a atenção. Fixações verbais
têm raízes mais profundas: durante a maior parte de uma viagem de
carro de vinte minutos durante paisagens irlandesas de campo,
Naoki repetiu a palavra japonesa para “estrada expressa” para fazer
sua mãe responder com a frase “Não, essa é uma estrada comum”.
(Como ele explica em um dos capítulos aqui, Naoki adoraria parar
de ser um escravo a esses impulsos verbais, mas a fixação é
impossível de se lutar.) No seu livro Ido in Autismland (“Ido no País
do Autismo”), Ido Kedar - outro “comunicador por texto do autismo
não-verbal” - explica de forma memorável que resistir a uma fixação
é tão difícil quanto se impedir de vomitar. A compreensão verbal de
Naoki, no entanto, é comparável a um adulto neurotípico falante
nativo de japonês. No geral, ele entende a minha linguagem falada
não muito fluente, mas como ele não consegue me mostrar que
entendeu, eu fico perdido até que ele começa a soletrar sua
resposta, letra por letra, na prancha de alfabeto. As apresentações
públicas de Naoki consistem nele lendo um texto preparado em voz
alta para uma plateia. Isso ele consegue fazer, com esforço, apesar
de que a tensão na sua voz com frequência deixa seu tom agudo.
Se tudo corre bem, ele consegue conduzir uma sessão de
perguntas e respostas, em que perguntas são feitas oralmente e
respostas são dadas pela prancha de alfabeto. Fatores ambientais
influenciam: Naoki parecia conseguir se concentrar melhor na
prancha de alfabeto ao se sentar em frente a mim do outro lado de
uma mesa, enquanto sua mente divagou mais quando ele se
sentava em um sofá para uma câmera de televisão. A posição de
uma pessoa no espectro verbal-não-verbal pode flutuar de acordo
com o humor e estresse, e mudar a longo prazo. Apenas uma vez
Naoki respondeu uma de minhas perguntas em voz alta, sem usar a
prancha de alfabeto. Estávamos almoçando. A resposta dele foi um
simples “Sim”, e a mesa inteira sorriu, surpresa com aquela
conquista, incluindo Naoki. (Tenho vergonha de admitir que esqueci
qual foi a pergunta.)
O autismo de Naoki é oficialmente classificado como “severo”
pelas autoridades japonesas, e ele carrega um documento de
identidade com essa designação para o caso de uma explicação
rápida ser necessária. O que a designação “severo” envolve, no
entanto, é tão específica a cada caso e relativa quanto o rótulo “não-
verbal”. O meu filho é livre de muitos dos “tiques” clássicos do
autismo com que Naoki sofre, e por curtos períodos ele pode até
passar por neurotípico. Em contraste, dez segundos na companhia
de Naoki são suficientes para o autismo dele ser inconfundível. No
entanto, o meu filho não mostra nenhum sinal - ainda - de conseguir
comunicar a riqueza de sua vida interior como Naoki consegue. O
autismo de quem é mais severo? Uma resposta precisa não é tão
simples. Eu aceito que precisamos de palavras para graus de
deficiência, mas desenvolvi alergia às terminologias atuais de
“severo” versus “leve” (que lembram resfriados e rinites) ou “alto
funcionamento” versus “baixo funcionamento” (Capitão Data de Star
Trek versus um computador dos anos 1980). Não faz muito tempo,
eu me encontrei com um velho conhecido que eu não via desde o
diagnóstico do meu filho, que disse - com ares de alguém que não
perde tempo com conversa fiada - “Então, eu ouvi dizer que o seu
filho é severamente autista?”. Além de um pouco magoado, eu fiquei
perplexo com a insuficiência da pergunta. A severidade do autismo
do meu filho varia absurdamente de aspecto para aspecto -
comunicação, comportamento, autorregulação, processamento
sensorial, coordenação motora fina e grossa. Outras variáveis são
humor, cansaço e até a época do ano (cuidado com novembro,
quando os relógios são atrasados em uma hora). Respostas curtas
à pergunta “O quanto ele ou ela é autista?” são bruscas e
reducionistas, e ainda assim as suas consequências - na educação,
no recebimento de pensão de deficiência - podem mudar uma vida.
Enquanto eu explicava tudo isso ao meu conhecido, eu queria que
a severidade do autismo pudesse ser calibrada em termos de cores
de tinta, com o amarelo na ponta de Asperger, magenta na ponta
mais difícil e ciano no meio, como em “Bom, o autismo dele é
funcionalmente bem ciano, mas se as pessoas dizem Não! para ele
o tempo todo, pode se tornar todo respingado de magenta. E
quando ele está escrevendo palavras na sua lousa mágica ou se
saindo muito bem no jogo Temple Run no iPad, o autismo dele
brilha em amarelo canário.” Isso funciona para mim; se funciona
para você, espalhe a ideia.
Para concluir: os tradutores esperam que Cair sete vezes,
levantar oito encontre um lugar no corpo crescente de textos de
“testemunhas do autismo” que informam o público, ajudam a
derrubar mitos que já passaram da data de validade, promover a
causa da neurodiversidade, e encorajar as pessoas a pensar duas
vezes antes de usar a palavra “autista” quando querem dizer “rude”
ou “sem noção”. O autismo é um fato de nosso mundo, que molda a
vida de milhões de pessoas. Não podemos mudar esse fato, mas
podemos mudar nossas atitudes.
Nota da edição inglesa
Esta edição de Cair sete vezes, levantar oito está acrescida de
três capítulos do livro de Naoki Higashida de 2013, Aru ga mama ni
jiheisho desu , e vários novos capítulos escritos em resposta a
perguntas dos tradutores entre 2014 e 2016. O autor também
revisou ou expandiu alguns capítulos, e aprovou a reorganização do
texto original em oito seções temáticas. A história Uma jornada foi
escrita em 2015 para ser incluída nesta edição. A entrevista da
edição japonesa de The Big Issue , uma revista que foca em
questões sociais e é vendida por moradores de rua em dez países,
data do mesmo ano.
Há crianças que não podem dizer “Obrigado por tudo, mãe”. Pode
haver mães que se entristecem com isso, e pode have mães que
sentem um tipo de luto por nunca receber um buquê de flores no dia
das mães. Eu nunca vou experienciar de verdade a tristeza que
essas mães sentem, receio, mas eu sei pelo que aquelas crianças
que não podem expressar sua gratidão estão passando. O dia das
mães deveria ser a época do ano em que mostramos nossa
apreciação por tudo que nossas mães, que nós amamos, fazem por
nós. No meu caso, no entanto, sou incapaz de murmurar um
simples “obrigado”. É infeliz e desgraçado. Tenho certeza de que se
uma pessoa não-verbal como eu pudesse falar fluentemente de
repente, as primeiras palavras que ele ou ela diria seriam, “Muito
obrigado por tudo, mãe”. Por favor, lembre-se: há jovens, como eu,
que sonham com um dia no futuro em que nós também possamos
dizer essas poucas palavras.
2: “Está chovendo!”
Um banho repentino chegou do nada. Assim que minha mãe
ouviu o som de chuva, ela gritou, “Está chovendo!” e correu para a
varanda no andar de cima para pegar a roupa lavada, sem olhar
pela janela. Eu apenas a observei, sem dúvida parecendo um pouco
ausente. O que se segue é uma cronologia do que se passou na
minha cabeça enquanto essa cena aconteceu:
1) Um milhão de sons plic-ploc-plic-ploc.
2) Eu me pergunto, O que será esse som?
3) Minha mãe grita, “Está chovendo!”. Então o som deve ser
chuva.
4) Então eu olho pela janela…
5) …e assisto a chuva, fascinado; no entanto, enquanto assisto
agora, não escuto nada; é como uma cena de chuva em um
filme mudo.
6) Só agora o som da chuva começa a ser registrado.
7) Eu tento conectar o conceito “chuva” ao seu som; procuro
aspectos comuns entre todos os aguaceiros na minha memória
e a chuva agora martelando lá fora.
8) Ao encontrar aspectos comuns, eu sinto alívio e segurança.
9) Eu me pergunto, Como pode estar chovendo agora? Estava
ensolarado mais cedo.
10) Até esse momento, minha mãe não tinha passado pela minha
cabeça. Agora ela desce as escadas, dizendo “Essa chuva
veio tão de repente, não foi?”.
11) Eu me lembro da minha mãe correndo para a varanda para
salvar a roupa lavada.
12) Como ela conseguiu perceber tão rapidamente que estava
chovendo?
Se eu não pudesse me comunicar pela minha prancha de
alfabeto, minhas perguntas não teriam resposta e eu ficaria triste
com o quão pouco eu entendo. As coisas sendo como são, eu pude
consultar a minha mãe sobre como ela identificou a chuva só pelo
som. Ela me disse: “Bom, porque aquele som é o som da chuva e
quando começa a chover, nós trazemos a roupa lavada para dentro.
A previsão do tempo disse que podia chover hoje, lembra?”. Eu me
lembrava mesmo da previsão do tempo, apesar de que fazê-lo por
iniciativa própria teria sido impossível. Enquanto eu me lembrava da
seção relevante do relatório, as palavras do apresentador voltaram e
eu entendi com um pouco mais de clareza por que a chuva
apareceu do nada, o que melhorou a minha confusão e frustração.
O que permanece um mistério para mim é como inferir que está
chovendo puramente pelo barulho. Para mim, o som de chuva é
algo abstrato. Identificar as vozes da minha família ou o toque de
um telefone, os latidos de cachorros ou miados de gatos, esses são
relativamente fáceis. Alguns sons, no entanto, levam uma
eternidade até que eu entenda, como o canto de cigarras no
começo do verão. Eu percebo que já ouvi esses sons antes, mas
sem outras pistas, as suas origens permanecem obscuras. Mesmo
se eu pudesse identificar a fonte do barulho-de-chuva, dar o salto do
pensamento Está chovendo! para ir pegar a roupa lavada estaria
quase fora de questão. Eu estaria ocupado demais apenas sentado
ali, hipnotizado.
A chuva é um caso especial. Eu tenho certas memórias dentro de
mim sobre as quais a chuva deixou uma impressão marcante.
Quando eu vejo chuva, incidentes amargos que eu acabei
associando com ela voltam para me assombrar. Coisas divertidas
devem ter acontecido em dias chuvosos também, mas, de alguma
forma, apenas as cenas tristes são convocadas. Tenho de colocar
muito esforço em distinguir a “chuva de memória” da chuva real se
quiser evitar trazer flashbacks ruins à tona. Para fazer isso, minha
mente tende a dar prioridade para organizar minhas memórias, mais
do que pensar sobre que ações eu preciso realizar nesse momento.
Todas essas transações são parte do que eu preciso considerar
enquanto me esforço para funcionar como uma pessoa neurotípica.
3: Coisas impossíveis
Foi quando eu estava tentando fechar um guarda-chuva que
estava secando que eu me meti em um problema. Um de seus dois
fechos não queria funcionar. Normalmente, ele vai para o seu lugar
com um clique de imediato, então eu senti uma onda de incômodo e
fui capaz de gritar “Mãe, vir aqui!”. Eu pedi a ela para fechar o
guarda-chuva - mas ela também não conseguiu. Ela olhou para o
fecho e disse, “Ah, está todo enferrujado - é por isso que não fecha”.
Não conseguir fazer o que geralmente consigo - mesmo coisas
muito triviais - é uma grande coisa para mim, de um jeito ruim. Então
eu só devolvi o guarda-chuva para a minha mãe - esse foi o meu
jeito de pedir a ela para tentar de novo. Dessa vez ela me mostrou
como o pequeno fecho estava corroído, e disse, “Viu? Está todo
enferrujado. Não tem como fechar esse guarda-chuva agora”. Já
houve um tempo em que, mesmo com essa explicação clara, eu
poderia ter perdido a cabeça completamente e me desfeito em
pedaços. Naquele ponto, no entanto, eu consegui aceitar a situação
e desistir de tentar fechar o guarda-chuva.
Nada disso foi possível devido a uma paciência maior, levando a
poderes mais fortes de resistência. Em vez disso, eu acho que o
meu cérebro, ao entender por completo a causa de um problema,
conseguiu dizer a si mesmo, Tudo bem, isso é impossível de
consertar, você pode seguir em frente agora .
No geral, eu sinto que sempre entendi as causas dos obstáculos
que encontrei, mas, mesmo assim, minhas emoções podiam ser
bastante inflamáveis. É de grande ajuda para mim que, sempre que
um novo problema aparece, minha mãe dá orientações curtas,
positivas e claras, além de instruções. Pessoas com autismo podem
precisar de mais tempo, mas à medida que crescemos, há
incontáveis coisas que podemos aprender a fazer, então, mesmo se
não puder ver seus esforços dando resultado, por favor, não desista.
Ainda temos toda uma vida à nossa frente. Alguns tipos de sucesso
podem ser conquistados, e apenas por esforço e suor. Todos temos
de manter em mente que a idade adulta dura muito mais tempo do
que a infância. Isso é o que eu venho constantemente lembrando a
mim mesmo.
4: Banhos frios
6: Roupas descoladas
7: Band-aids
8: Quebra-cabeças
9: Lambe-lambe
10: Porções
14: Ajustes
17: Estações
Justiça
Uma das lições que eu sou grato por ter aprendido como um
adulto é que a vida é difícil para todo mundo, não só para mim. Eu
entendi isso não por ter me tornado algum ser super sábio e
compassivo, mas apenas ao experienciar a vida e observar a
realidade ao meu redor. Muitas pessoas com deficiências, eu acho,
são mantidas isoladas e ilhadas da sociedade. Por favor, dê a
aqueles de nós com necessidades especiais as oportunidades para
aprender o que está acontecendo no mundo, sem decidir por nós -
sem supor Eles não entenderiam mesmo , ou Bom, eles não
parecem muito interessados . Na superfície, uma vida protegida e
passada em suas atividades favoritas pode parecer o paraíso, mas
eu acredito que, a não ser que você entre em contato com algumas
das dificuldades por que outras pessoas passam, o seu próprio
desenvolvimento pessoal vai ser prejudicado. O conhecimento das
suas próprias bênçãos é uma lição valiosa sobre a vida, dada pela
vida.
21: Sucesso
Boatos
Não é legal
quando boatos sobre você
estão voando pelo lugar.
Depois de saber que estão
falando de você, não dá para voltar
a como você era.
No entanto, saber
que os boatos estão por aí
não precisa ter um impacto
detrimental. Boatos em si
não são ruins. O que importa é
o uso que você faz deles.
27: Perguntas e respostas, respostas e perguntas
“Por que eu não consigo falar?” Esse foi um mistério para mim por
um longo tempo. Quando eu era uma criança pequena, eu não tinha
ideia do que estava acontecendo e tudo que sentia era tristeza.
Durante meus dias primários na escola, eu comecei a achar que me
desenvolvia mais lentamente. No Fundamental II, eu já tinha
desistido da ideia de que qualquer coisa pudesse ser feita por mim.
Acho que o motivo para isso é que não havia ninguém ao meu redor
com autismo tão severo quanto o meu, mas também verbal o
suficiente para se comunicar comigo.
Mais tarde, eu me tornei aluno de ensino médio de longa distância
e só precisava visitar o prédio físico da escola de forma ocasional.
Minha vida começou a ser diferente daquela da maioria das pessoas
da minha idade. Em vez dos pontos de vista de outras pessoas, o
que começou a importar mais para mim foram os pensamentos e
ideias dentro da minha própria cabeça. Havia quem acreditasse que
era crucial que eu continuasse indo a uma escola regular todos os
dias, como alunos comuns, talvez porque jovens hikikomori
começam sua retirada permanente da sociedade ao se recusar a ir
à escola e terminam nunca saindo de seus quartos. Para mim, no
entanto, aqueles poucos anos “fora do sistema” se mostraram
preciosos em termos de descobrir como viver de acordo com meu
próprio livre arbítrio.
Viver de uma forma diferente dos outros requer um grau de
coragem. Embora seja verdade que viver com sua família restringe
sua independência em alguns aspectos, a independência de que
estou falando tem mais a ver com a liberdade de viver como eu
mesmo e ser o que sou na sociedade. Então agora sou grato à
minha família por me dar o espaço e a liberdade de que eu
precisava.
35: Escola
Processo
39: Elogios
Uma jornada
Dizem com frequência que nós, pessoas com autismo, não temos
empatia ou qualquer entendimento das emoções dos outros. Como
eu vejo, no entanto, pessoas com cérebros neurotípicos também
não são tão fantásticas em ver as nossas emoções. De qualquer
forma, há momentos em que não posso evitar me perguntar se não
conseguir adivinhar os sentimentos internos das pessoas ao nosso
redor é mesmo o problema debilitante que dizem ser. O jeito como
nos sentimos dentro de nós mesmos não deveria ter pelo menos a
mesma importância? Que utilidade podemos realmente ter para os
outros, a não ser que primeiro encontremos espaço para nos
perguntar sobre nós mesmos - Quais são as minhas prioridades
agora? ou Como eu estava me sentindo quando tal e tal coisa
aconteceu? ou Estou no caminho certo na vida? - e obter respostas.
Algumas pessoas com autismo podem não ser ainda capazes de
entender a si mesmas. Algumas podem não entender os outros.
Algumas podem não desejar tentar entender. Às vezes, ocorre uma
situação em que eu perco minha capacidade de paciência, mesmo
que entenda inteiramente por que a situação aconteceu. Alguns
observadores podem me dizer, “Você não é paciente o bastante -
mostre um pouco de resistência!”. Mas como graus de paciência
podem ser medidos, exatamente? Dominar emoções pode exigir
tanta energia que às vezes eu me pergunto, A culpa é toda minha
se eu não sei lidar com isso? Nosso mundo seria melhor se a
maioria neurotípica pudesse tentar ter um pouco mais de empatia,
com um pouco mais de frequência, em relação às pessoas como eu,
que “não têm resistência”.
45: Raiva
Algumas pessoas com autismo entram em crise completa apenas
ao ver outra pessoa levando uma grande bronca. Por conta disso,
pessoas neurotípicas chegam à conclusão de que odiamos a visão
de qualquer pessoa se metendo em problemas. O que eu penso
sobre isso, no entanto, é que o verdadeiro motivo por que a pessoa
com autismo fica tão mexida é que ela está experienciando a cena
como uma em que ela está sendo culpada por suas próprias falhas
e defeitos. Não quero dizer que ela está tendo um flashback, ou que
haja alguma confusão sobre quem está em apuros. Também não
acho que uma crise vem de uma inabilidade de ajudar o amigo, ou
de empatia. Minha teoria é que assistir a raiva é um gatilho para um
ataque de pânico, que então evolui para uma crise total à medida
que o observador neuroatípico fica preso em uma espiral de ódio
por si mesmo por ter tido um ataque de pânico. Ninguém o está
acusando de absolutamente nada, mas, mesmo assim, ele
experiencia culpa e sofre de todo o estresse. Quanto ao motivo de a
outra pessoa estar levando a bronca? Suspeito que isso raramente
seja um fator.
46: Riso
48: Graça
Gratidão
O ponto
da gratidão
está em primeiro
sentir gratidão
por dever a alguém
gratidão.
52: Ajuda
53: Repreensões
Quando estou praticando algo todos os dias mas ainda assim não
chego a lugar nenhum, eu sinto que estou me arrastando por aí,
como uma tartaruga. Absolutamente qualquer pessoa consegue
fazer isso, então por que eu não consigo? Meu fracasso contínuo é
muito pesado. Geralmente concordam que, para adquirir as
habilidades que não temos, precisamos praticar todo dia - é por isso
que as pessoas que trabalham conosco prestam tanta atenção aos
resultados de nossa prática. Mas para aqueles de nós que estão de
fato fazendo a prática, com frequência o processo não parece o jeito
natural e óbvio de fazer as coisas. Estamos sempre ouvindo “Tudo
bem progredir em direção aos seus objetivos um pouquinho de cada
vez”, mas isso são nossos terapeutas e cuidadores falando, não
nós. Nós, que estamos nos esforçando com a prática, queremos
dominar o que quer que estejamos fazendo o mais rápido possível.
Nos fazer obedecer a esses passos incrementais pode aparentar
ser o certo para os neurotípicos ao nosso redor, mas aqueles de nós
obrigados a trabalhar em um passo de lesma podem estar
suspirando por dentro com o nosso progresso lento em direção a
novos objetivos. Qualquer um - neurotípico ou não - sabe dizer se
está melhorando em algo. Ou não. Com certeza?
Meu ponto é: por favor não ache que, ao não empurrar alguém na
direção de um objetivo ou não esticar suas habilidades, você está
automaticamente tornando mais fácil que a pessoa chegue lá. A
vida não é tão legal para tartarugas, e se arrastar por aí como uma
tartaruga também não é um mar de rosas.
Curiosidade
Minhas fixações podem ficar por aqui por um longo tempo antes
de desaparecerem. Não importa o quanto eu me esforce em me
libertar desses comportamentos obsessivos, eles permanecem
realmente teimosos. Vocês - nossos cuidadores, professores,
guardiães - podem agir como se nada estivesse errado, ou ameaçar
nos punir se não pararmos, ou nos recompensar se paramos, mas o
fato é que algumas fixações são quase impossíveis de contornar.
Talvez algumas pessoas com autismo sintam conforto com elas,
mas meu palpite é que a maioria de nós quer que elas parem, e
sofrem por não poder mandá-las embora. Falando por mim mesmo,
a única cura que eu conheço é vocês darem a nós - e nossas
fixações - tempo.
Você pode ajudar ficando conosco enquanto processamos nossas
fixações, não nos repreendendo demais por apresentá-las, e
mantendo uma crença inabalável de que algum dia estaremos livres
delas. Porque elas não duram para sempre. Mesmo a fixação mais
arraigada pode simplesmente desaparecer, como se uma maldição
demoníaca tivesse sido cancelada. Não sei explicar como ou por
que elas somem quando somem, mas eu sei que quando uma
fixação obsessiva vai embora, ela me deixa em um estado de
perfeito êxtase.
Naturalmente, as pessoas em nossas vidas apontam nossos
comportamentos obsessivos para nós porque querem que paremos
de fazê-los. Mas eu peço a vocês que não nos repreendam de
formas que ferem nossa dignidade. Acredite em mim: a maior vítima
de uma fixação é a pessoa que sofre dela.
Parte 7: Longe
62: O portão
Quando eu era pequeno, costumava parar em um certo portão
sempre que passávamos por ele. Esse portão tinha uma aldrava
com o rosto de um leão, que eu gostava de olhar. No começo -
assim ela me conta -, minha mãe não tinha ideia de por que eu
costumava parar nossa caminhada na frente da casa de um
completo estranho. Mas, um dia, quando a aldrava de leão estava
de cabeça para baixo, eu tentei colocá-la de volta para cima, e
então minha mãe entendeu o que estava acontecendo. Ela me disse
que você não pode simplesmente sair tocando os portões de outras
pessoas sem permissão, então eu fiz o meu melhor para virar a
cabeça de lado para que o leão pelo menos parecesse estar do lado
certo.
Em retrospecto, não sei dizer por que o leão no portão me
fascinava tanto. Talvez eu só pensasse, Uau, um leão em um
portão, que legal! Quando crianças neurotípicas estão interessadas
em algo, elas podem satisfazer sua curiosidade simplesmente
fazendo sua pergunta ao adulto mais próximo antes de passar para
a próxima coisa, e a próxima, e a próxima. Naquela época, porém,
eu não podia perguntar nada a ninguém. Meus fascínios ficavam
presos na minha cabeça. Como se o tempo estivesse parado.
64: Pagando
68: Mal-entendidos
Voar
72: Casa
74: Respeito
75: Mãe
Um pai brilhante
Não existe
um pai inútil.
Não existe
um filho inútil.
“Ah, eu sou um total
desperdício de espaço!”
ele diz, e prova
que quer ser
um pai melhor.
E esse não é
um pai brilhante?
Posfácio