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Livro de Gênesis - Capítulo 2 - Introdução

Por Felipe Moura

1) Introdução à Narrativa do Éden

“Enquanto 1:1-2:3 apresenta um cenário majestoso da Criação centrado no


Eterno, 2:4-25 apresenta uma estória muito diferente mas igualmente profunda das
origens.

Este segundo relato da criação é mais centrado nos seres humanos e em


experiências humanas familiares, e até mesmo sua divindade é concebida em termos
mais antropomórficos.” (Jewish Study Bible - Gn. 2:4-25 - The creation of Adam and
Eve)

Era comum na cultura semita que, para retratar uma condição presente e que se
repete há muito tempo, se tomasse por base os ancestrais como originadores do
padrão de comportamento:

“Essa é uma estória acerca de duas pessoas, um homem e uma mulher, e o que
aconteceu a eles. Apesar de no contexto serem necessariamente ilustrados como os
primeiros homem e mulher, eles são símbolos tanto quanto ancestrais de toda a raça
humana: por trás dessas afirmações de que ‘Isto foi o que aconteceu’ o autor está
dizendo ‘Isto é como os seres humanos se comportam, e essas são as consequências
que se seguem.’

O comer da fruta não é um ato isolado de um passado remoto, mas algo que é
repetido a todo momento na história humana. A visão tradicional de que foi o
primeiro pecado que fez todas as gerações posteriores nascerem no ‘pecado original’
não surge dessa estória, apesar dela ter o propósito etiológico de explicar a condição
presente da existência humana.” (The Oxford Bible Commentary - Gn. 2:4b-3:24)


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2) Comparativo das Tradições

Narrativa de Gn. 1 Narrativa Gn. 2


Foco no cosmos Foco no ser humano
O Eterno é chamado primordialmente de O Eterno é chamado primordialmente de
'Elohim’ ‘YHWH Elohim'
O Eterno aparece distante O Eterno é bem presente
O Eterno fala, e a criação se forma O próprio Eterno molda
Verbos: bará (criar) e `assá (fazer) Verbo: yassar (moldar)
O homem é criado por último O homem é criado primeiro
O homem é criado à imagem e O homem é formado a partir do pó da
semelhança do Eterno terra
Homem e mulher são criados juntos A mulher é criada depois do homem
A missão do homem é se multiplicar A missão do homem é cuidar do jardim
do Eden
Toda a terra é criada de maneira O jardim do Eden é um lugar especial
indistinta.
Ordem da criação: 1) Água, 2) Ordem da criação: 1) Homem, 2)
Vegetação, 3) Animais, 4) Homem e Vegetação, 3) Água, 4) Mulher, 5)
Mulher Animais
O mundo é criado em 7 dias O mundo é criado em 1 dia

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Capítulo 2

4 E estas são as gerações dos céus e da terra quando foram criados, na época em que
YHWH Elohim fez a terra e os céus, 5 E ainda não havia arbusto do campo na terra,
nem vegetação do campo havia brotado; porque YHWH Elohim não havia feito
chover sobre a terra, nem havia humano para que lavrasse o solo; 6 Mas provinha da
terra uma corrente, que regava toda a face do solo. 7 E YHWH Elohim formou ao
humano a partir do pó do solo, e assoprou em suas narinas o fôlego de vida; e tornou-
se o humano um fôlego vivente. 8 E YHWH Elohim havia plantado um jardim no
`Êden ao oriente, e pôs ali o homem que havia formado. 9 E YHWH Elohim havia
feito brotar do solo todo tipo de árvore, agradável à vista, e boa para comer: e a
Árvore da Vida no meio do jardim, e a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. 10
E um rio saía do Éden para regar o jardim, e dali se dividia em quatro ramificações. 11
O nome de um era Pishon: este é o que cerca toda a terra de Hawilá, onde há ouro: 12
E o ouro daquela terra é bom; há ali também bdélio e pedra ônix. 13 O nome do
segundo rio é Gihon; este é o que rodeia toda a terra de Kush. 14 E o nome do terceiro
rio é Hideqel; este é o que vai diante de Ashur. E o quarto rio é o Ferat. 15 E YHWH
Elohim tomou ao humano, e o pôs no jardim de Éden, para que o lavrasse e o
guardasse.

3) O Éden

“Existem indícios abundantes para mostrar que edin era uma palavra suméria comum
para ‘estepe, planície’” (A. R. Millard - The Etymology of Eden)

Na mitologia suméria antiga, o éden era uma planície, onde habitavam deuses e
criaturas, de forma indistinta.

Nela, havia um jardim. Esse jardim era o lugar de deleite dos deuses, também o
seu sustento. O homem teria, originalmente, sido criado e projetado para servir aos
deuses no seu jardim, mantendo o jardim em ordem e os deuses bem alimentados.

Observe como a Torá inverte esse entendimento, de várias formas:

1) O Eterno coloca o homem para trabalhar no jardim por opção, não por
necessidade;
2) Mesmo antes (ou sem) o homem, o jardim estava perfeitamente ordenado;
3) É o homem que é alimentado no jardim por todas as delícias, não o Eterno;


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Abaixo, tábua suméria que mostra Enki e outros deuses no Éden, no ato da
criação:

4) Águas

"No primeiro relato da criação o problema primordial era muita água, exigindo
que Deus dividisse as águas e criasse terra seca (1.6-7, 9-10), aqui o problema é a
falta de água. A variação pode refletir a diferença entre a situação na Babilônia, na
qual as águas salgadas do mar ameaçavam a vida humana, e um cenário na terra de
Israel, onde a deficiência de água era (e é) uma ameaça constante.” (Jewish Study
Bible - Gn. 2:4-25)

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5) A Criação do Homem

“Aqui, o homem tem uma origem mais humilde do que no paralelo em


1.26-28. Ele é criado não à imagem de Deus, mas do pó da terra. Mas ele também
tem um relacionamento mais próximo e íntimo com seu Criador, que sopra o fôlego
da vida nele, transformando aquela criatura humilde e ligada à terra em um ser vivo.
Nesse entendimento, o ser humano não é um amálgama de corpo perecível e alma
imortal, mas uma unidade psicofísica que depende de Deus para a própria
vida.” (Jewish Study Bible - Gn. 2:7)

O Enum Elish traz uma ideia semelhante:

“No barro, deus e homem se unirão, para uma unidade trazida junta;
De modo que no fim dos dias a Carne e a Alma
Que num deus floresceu -
Aquela alma em parentesco de sangue seja unida.”

Porém, o conceito era exclusivamente atribuído aos reis e nobres. A Torá


revoluciona, ao afirmar que toda a humanidade é divina!


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6) A Árvore da Vida

O conceito de Árvore da Vida - um arquétipo primordial de uma planta que


pudesse gerar vida e/ou imortalidade - era um conceito comum no antigo Oriente
Médio.

Abaixo, pode ser visto num mural assírio encontrado na cidade de Kalhu, em
cerca do século X a.e.c.:

Um pouco mais ao oriente, a civilização de Urartu (atual Armênia), região do


Ararat, também deixou registro de conceito parecido. Abaixo, mural do século 9
a.e.c.:

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Considerada um “tesouro dos deuses”, a árvore sempre aparece guardada por
figuras que se assemelham a querubins.

A Árvore da Vida é citada no Épico de Gilgamesh como sendo a fonte da


imortalidade e aparece diretamente associada à serpente.

Isso será visto mais adiante nos próximos capítulos.

7) A Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal

A Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal tem uma conotação diferente


daquela que a maioria imagina.

Influenciados por tempos em que a ideia do bem e do mal enquanto moral são
mais claros e relevantes, tendemos a ler esse conceito como uma ideia de que a
árvore represente a moral.

Para os semitas da antiguidade, porém, a ideia era muito diferente:

“Conhecimento do bem e do mal pode ser figurativo, uma figura de linguagem em


que os polos opostos denotam uma totalidade (como o céu e a terra em 1.1). Mas o
conhecimento pode ter um sentido experiencial, não apenas intelectual, no hebraico
bíblico, e "bom e mau" pode significar "bem estar e sofrimento” ou "bem moral e mal
moral". A árvore proibida oferece uma experiência agradável e dolorosa; ela desperta
aqueles que participam dela para o conhecimento superior e para a dor que ambos
vêm com a escolha moral.” (Jewish Study Bible - Gn. 2:16-17)


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8) A Localização do Éden

“A raiz do Éden denota fertilidade. Onde a localização do jardim maravilhosamente


fértil foi imaginada (se é que um lugar realista já foi concebido) não é claro. O Tigre
e o Eufrates são os dois grandes rios da Mesopotâmia (hoje encontrados no Iraque
moderno). Mas o Pishon não é identificado, e o único Guihon na Bíblia é uma fonte
em Jerusalém (1 Reis 1.33, 38).” (Jewish Study Bible - Gn. 2:8-11)


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Capítulo 2

16E YHWH Elohim ordenou ao humano, dizendo: De toda árvore do jardim poderás
comer, sim, comerás; 17 Mas não comerás da Árvore do Conhecimento do Bem e do
Mal; porque no dia que dela comeres, morrerás. 18 E YHWH Elohim disse: Não é
bom que o humano esteja só; farei para ele uma auxiliadora, adequada a ele. 19 E
YHWH Elohim formou a partir do solo todo animal selvagem, e todo voador dos
céus, e trouxe-os ao humano, para que visse como lhes havia de chamar; e aquilo que
o humano chamava a cada ser vivo, esse se tornava o seu nome. 


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8) Mudanças de Conceito

O homem como alguém que nomeia (e, portanto, domina) os animais é


também algo bastante peculiar da Torá, bem como sua relação com a mulher,
promovida à posição de co-igual do homem e feita de forma idônea.

Compare isso com o que diziam os mitos sumérios como, por exemplo, a
história de Enkidu no Épico de Gilgamesh, do século 17 a.e.c.:

“Enkidu comia pasto no Éden com as gazelas e espreitava com as feras


selvagens nos poços d’água; ele tinha a alegria da água com as hordas de gamos
selvagens.

Mas havia um caçador que o encontrou um dia face-a-face na presença do poço


d’água, pois os gamos selvagens entraram em seus território. Por três dias ele o
encontrou face a face, e o caçador ficou paralisado de medo.

Ele voltou para sua casa com os gamos que tinha obtido, e estava mudo,
entorpecido de terror. Sua face alterada como a de quem fez uma longa viagem. Com
temor em seu coração, falou a seu pai: ‘Pai, há um homem, diferente de qualquer
outro, que vem do Éden. Ele é o mais forte do mundo, é como um imortal do céu.

Ele guarda o Éden com feras selvagens e come pasto. Ele guarda a tua terra e
desce aos poços. Tenho medo e não ouso me aproximar dele…

Seu pai abriu sua boca e disse ao caçador: ‘Meu filho, em Uruk vive
Gilgamesh; ninguém jamais prevaleceu contra ele, ele é forte como uma estrela do
céu. Vai a Uruk, encontra Gilgamesh, enaltece a força desse homem selvagem. Pede a
ele que te dê uma prostituta, uma promíscua do templo do amor; retorna com ela, e
que o poder dessa mulher sobrepuje esse homem…

As pequenas criaturas selvagens do Éden estavam alegres com a água, e


Enkidu estava com eles, ele que comia pasto com as gazelas e nasceu no Éden; e ela
o viu, o homem selvagem, vir de longe no Éden. O caçador disse a ela: ‘Lá está ele.
Agora, mulher, descobre teus seios, não tenha vergonha, e não te tardes em acolher o
amor dele. Que ele te veja nua, que ele possua teu corpo.

Quando ele se aproximar, descobre-te e deita-te com ele; ensina-o, o homem


selvagem, a tua arte de mulher, pois quando ele te murmurar amor, as feras selvagens
que partilhavam de sua vida no Éden o rejeitarão.’

Ela não teve vergonha de tomá-lo, e se desnudou e acolheu o desejo dele;


enquanto ele se deitava com ela murmurando amor, ela lhe ensinou a arte da mulher.
Por seis dias e sete noites eles se deitaram juntos, pois Enkidu tinha se esquecido de
seu lar no Éden; mas quando ele se satisfez, voltou às feras selvagens.
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Então, quando as gazelas o viram, correram para longe; quando as criaturas
selvagens o viram, fugiram. Enkidu as teria seguido, mas seu corpo estava amarrado
como que por um cordão, seus joelhos vacilaram quando começou a correr, sua
rapidez havia desaparecido. E agora todas as criaturas selvagens tinham fugido.
Enkidu ficara fraco, pois a sabedoria estava nele, e os pensamentos do homem
estavam em seu coração.

Então ele retornou e se sentou aos pés da mulher, e ouviu atentamente o que ela
dizia: ‘Sois sábio, Enkidu, e agora te tornaste como um deus. Por que desejas correr
de forma selvagem como as feras no Éden? Venha comigo. Eu te levarei à fortaleza
de Uruk, ao templo abençoado de Ishtar e de Anu, do amor e do céu: lá vive
Gilgamesh, que é muito forte, como um touro selvagem ele reina sobre os homens.’

Quando ela falou, Enkidu ficou satisfeito; ele desejava uma companheira, por
alguém que entendesse seu coração. ‘Vem, mulher, e leva-me ao santo templo, à casa
de Anu e de Ishtar, e ao lugar onde Gilgamesh reina sobre o povo. Eu o desafiarei
audaciosamente, e clamarei em Urku, eu sou o mais forte aqui, e vim desafiar a velha
ordem, eu sou aquele que nasceu no Éden, eu sou o mais forte de todos.’” (O Épico
de Gilgamesh)

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