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Livro de Gênesis - Capítulo 1 - Parte II

Por Felipe Moura

Capítulo 1

3Elohim disse então: Haja luz; e houve luz. 4 E Elohim viu que a luz era boa: e
Elohim separou a luz das trevas. 5 E Elohim chamou à luz: Dia! E às trevas chamou:
Noite! E entardeceu e amanheceu: Primeiro Dia.

1) A Luz antes dos Astros

É importante compreender o contexto semita e a poesia criacionista para


entender porque o sol e os demais astros são colocados como criados depois da luz.
Observe a estrutura da poesia semita, em seu paralelismo:

A) Dia 1 - Criação da luz


B) Dia 2 - Criação do céu e das águas (de onde procedem animais marinhos e
voadores)
C) Dia 3 - Criação da terra seca (de onde procedem os animais terrestres
e o homem)

D) Dia 4 - Criação dos luminares (de onde procede a luz)


E) Dia 5 - Criação dos animais marinhos e voadores
F) Dia 6 - Criação dos animais terrestre e do homem

Repare que na primeira parte da criação, a Torá se ocupa de falar da criação


dos ambientes. Na segunda parte, de maneira análoga e seguindo a mesma ordem,
fala daquilo que procede do ambiente. Exceto no que diz respeito à luz.

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2) O Dia

Muita gente está acostumada ao entendimento de que o Gênesis supostamente


traria o dia começando à noite. O motivo para isso é uma tentativa de ratificar o
calendário a partir do relato de Gênesis, inclusive literalizando esse último. O que é
um grande equívoco.

Rashbam, um dos maiores exegetas da Torá e dos poucos comentaristas


clássicos que tinham coragem de se contrapor a dogmas religiosos, afirma sobre isso:

“O Senhor nomeou as unidades recém-formadas de doze horas de luz ‘dia’ e as


unidades recém-formadas de doze horas de trevas ‘noite’, e elas assim tem sido
chamadas desde então, o dia sempre precedendo a noite. A luz do dia se tornou tarde
a medida que a luz se esvaiu; então, a manhã irrompeu como a estrela d’alva que
sinaliza o fim da noite. O primeiro dos seis dias de criação referidos nos Dez Ditos
foi, então, concluído e o segundo dia começou.” (Comentário de Gênesis 1:5)

Para simplificar o entendimento, é preciso compreender o termo ‫יהי‬, como


sentido mais simples é “vir” ou “surgir”:

“E disse Elohim: Surja a luz; e surgiu a luz.” (Gênesis 1:3)


‫אוֹר‬-‫וַיּ ֹאמֶר אֱֹלהִים יְהִי אוֹר; ַויְהִי‬
wayômer elohim yehi ôr; way’hi-ôr.

“Noé tinha seiscentos anos quando o dilúvio das águas veio sobre a terra.” (Gênesis
7:6)
‫ָאָרץ‬
ֶ ‫ה‬-‫שׁנָה; ְו ַהמַּבּוּל ָהי ָה ַמי ִם עַל‬
ָ ‫שֵׁשׁ מֵאוֹת‬-‫וְנ ֹ ַח בֶּן‬
wenoah bén-shêsh me’ôt shaná; wehamabul hayá mayim `al-ha'áres

Agora observe, portanto:

E surgiu a tarde e surgiu a manhã, dia um.


‫בֹקֶר יוֹם ֶאחָד‬-‫ע ֶֶרב ַויְהִי‬-‫ַויְהִי‬
way’hi-`érev way’hi-vôqer yom ehad.

Em outras palavras, o dia na criação de Gênesis 1 começa e termina ao


amanhecer. Observe o gráfico abaixo. O amarelo representa o dia e o azul a noite.

Gershon Brin, professor emérito de Estudos Bíblicos da Universidade de


Tel Aviv e provavelmente a maior autoridade em estudos sobre calendários judaicos

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da atualidade, escreveu, quando ainda pesquisador no Centro de Estudos Judaicos da
Universidade de Harvard:

“Gênesis 1 reflete a versão bíblica oficial da ordem da criação: o relato da


criação do primeiro dia já menciona como Deus separou a luz e o dia: “e Deus
separou a luz das trevas” (Gn. 14:). A identificação da luz com o dia e das trevas com
a noite é então repetida na mesma ordem: “Deus chamou a luz Dia, e as trevas ele
chamou Noite” (v. 5). Sucede-se a isso que, ao explicar o conceito da unidade diurna,
é composta de dia e noite, a manhã seguinte constituindo um novo dia…

Isso apresenta certa dificuldade acerca da formulação do texto significativo


com o qual abrimos a presente seção - a saber, que após a separação da luz e das
trevas e a identificação do dia e da noite, há uma fórmula estereotípica que é repetida
ao longo da criação: “e houve tarde e houve manhã, primeiro (ou segundo…
terceiro… etc.) dia” (Gn. 1:5-31).

Há aqueles que tentaram interpretar essa expressão como se refletisse uma


abordagem na qual a ordem do dia começa ao entardecer. Isso é, contudo, incorreto:

a) porque, no versículo anterior, a ordem da luz-trevas-luz é mencionada duas vezes,


sugerindo que essa era a ordem que parecia correta ao autor;

b) como se sucede cumulativamente de toda a evidência nesse capítulo, há apenas


uma abordagem que é seguida: da manhã até o fim da noite, e nenhuma outra.

Deve-se portanto solucionar a questão da ordem. Parece-me que se deve adotar


a solução exegética segundo a qual, quando o versículo diz ‫“( ויהי ערב‬e houve tarde”)
está falando da tarde como sendo o fim do dia, que é o tema da descrição. Quando
então diz ‫“( ויהי בקר‬e houve manhã”), isso indica o princípio do próximo dia: ao
chegar da nova manhã, o dia presente é concluído.

A manhã mencionada assim abre o novo dia, ao contrário da visão de


comentaristas medievais e alguns dos modernos que pensam que a “tarde” se refere
ao ponto inicial do dia, enquanto “manhã” se refere à continuidade do mesmo dia, de
modo que, na visão deles, o dia começa com o entardecer.

Argumento ainda contra essa abordagem que, segundo essa visão, não se cria
nenhuma imagem coerente do dia. Isso porque, segundo essa explicação a descrição
‘parou’ com a manhã de cada dia, ao passo que deveria ter parado mais próximo da
tarde. Assim observamos que, mesmo se partíssemos da premissa de que a tarde
referida na expressão “e houve tarde” se refere à tarde que precede a manhã, a
descrição se concluiria com apenas metade do dia. Isso é o oposto da conclusão do
versículo: “(e houve tarde e houve manhã), um dia (‫)יום אחד‬.”

Além disso, enquanto a palavra ‫“( יום‬dia”) tem diversos significados (as horas
de claridade, o dia como um todo e outros sentidos semelhantes), não é o caso do
termo ‫“( בקר‬manhã”), que não pode em circunstância alguma ser entendido como se
referindo ao dia inteiro até as horas do crepúsculo.

Além disso, em termos do assunto tema do primeiro dia, essa interpretação


pode ser criticada ainda de outro ângulo: a saber, segundo a descrição da criação feita
no primeiro dia, Deus primeiro criou a luz e então a separou das trevas, e assim por
diante.

Ainda assim, se a expressão ‫ ויהי ערב‬fosse tomada como se referindo à tarde


anterior, aquela “tarde” seria ilimitada, se alastrando sem limite para contemplar o
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caos que precedeu a Criação. Mas, segundo essa interpretação, teria sido somente a
partir da combinação da tarde (anterior) e da manhã (seguinte) que o dia teria sido
criado. Portanto, por todas as abordagens possíveis, não se pode aceitar a
interpretação de que a contagem é feita da tarde em diante, mas somente da manhã
em diante.” (The Concept of Time in the Bible & the Dead Sea Scrolls - Order of
Nature)


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Capítulo 1

6 E Elohim disse: Haja um domo em meio às águas, e que separe as águas das
águas. 7 E Elohim fez o domo, e separou as águas que estavam abaixo do domo, das
águas que estavam sobre o domo: e assim aconteceu. 8 E Elohim chamou ao domo:
Céus! E entardeceu e amanheceu: Segundo Dia. 9 E Elohim disse: Que se juntem as
águas que estão debaixo dos céus em um lugar, e apareça a porção seca: e assim
aconteceu. 10 E Elohim chamou à porção seca: Terra! E à reunião das águas chamou:
Mares! E Elohim viu que isso era bom.

3) O Domo

A palavra hebraica
raqi`a (‫ )רקיע‬representa,
literalmente, a expansão de
algo sólido, formando a
imagem de um domo, um
teto onde estariam fixadas as
luzes, onde os astros
“rolavam” em suas órbitas.

“A palavra traduzida
como expansão se refere a
um pedaço de metal que foi
aplainado a marteladas. Aqui,
a função do céu é separar as
águas superiores (que caem
como cuva) das águas
subterrâneas (que sobem
como fontes; vide 7:11).” (Jewish Study Bible - Gn. 1:6-8)

“Os judeus especulavam quanto a de que material o firmamento era feito:


argila, cobre ou ferro 92 Apoc. Bar. 3:7). Eles diferenciavam entre o firmamento e o
espaço vazio ou ar entre ele e a terra (Gen. Rab. 4:3.a; 2 Apoc. Bar. 21:4). Eles
tentavam medir quão espesso era empregando interpretação bíblica (Gen. Rab. 4:5:2).
Mais reveladoramente, eles até tentavam calcular cientificamente a espessura do
firmamento (Pesah. 49a).” (P. H. Seely - “The Firmament and the Water Above” -
The Westminster Theological Journal 53)

4) Mares

Na realidade, a palavra yam (‫ )ים‬seria melhor traduzida como um grande corpo


d’água, podendo se referir de forma indistinta a mares, lagoas ou lagos.

Nesse momento, então, todos os ajuntamentos de água são formados por


decreto divino, diferentemente da mitologia do antigo Oriente Médio, que os atribuía
aos poderes de monstros marinhos primordiais.


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5) Os Céus

Duas hipóteses concretas são apresentadas para a etimologia da palavra


shamayim (céus):

“[Para] o Brown-Driver-Briggs Hebrew and English Lexicon, [a etimologia é


dada] como sha combinada com mayim. O sha é a forma gramatical de shafel
indicando “dá água” - isto é, a fonte da chuva.

Há muitas palavras no hebraico nas quais a letra ‘shin’ colocada antes do


radical de três letras estende a ideia original ao extremo. Por exemplo, ‘gush’
significa ‘agrupamento’; com o prefixo shin torna-se ‘shagosh’, que significa
‘agitador.’ ‘Guer’ significa ‘estrangeiro’; com o prefixo shin torna-se ‘shaguer’, que
significa ‘enviar.’ O radical ‘abad’ conota ‘trabalho’; com o prefixo shin se torna
‘shib’ud’ para trabalho pesado ou escravidão.

A água em si é incolor, mas pode refletir a luz do sol refratada que faz o ar
acima tornar-se azul. Isso faz a água do mar ou de um lago parecer azul. O homem
primitivo podia observar o céu aparentemente azul e a água aparentemente azul e
supor que havia água no céu.

Consequentemente, no relato da Criação, primeiro vem a criação da luz


(energia) [sic] e então vem a criação do ‘rakia’, como um enorme domo que separa as
águas acima daquelas abaixo. Uma vez que há duas águas, a palavra empregada é
sempre o plural mayim. Ao mesmo tempo, o que parecia ser uma imensidão de água
sobre o domo é chamada de sha-mayim, a forma superlativa de mayim.” (Why
Shamayim as Sky - Gerardo Sachs)

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Capítulo 1

11 E Elohim disse: Que a terra produza vegetação, de toda espécie: Plantas que dão
sementes, árvore frutíferas, que dão fruto com semente; e assim aconteceu. 12 E a
terra produziu vegetação: Plantas de todo tipo, que dão sementes; e árvores de todo
tipo, que dão fruto com semente; e Elohim viu que isso era bom. 13 E entardeceu e
amanheceu: Terceiro Dia. 14 E Elohim disse: Haja luminares no domo dos céus para
separar o dia e a noite: e sejam por sinais, e para tempo determinados, e para dias e
anos; 15 E sejam por luminares no domo dos céus para prover luz sobre a terra: e
assim aconteceu. 16 E Elohim fez os dois grandes luminares; o luminar maior para
governar o dia, e o luminar menor para governar a noite e as estrelas. 17 E Elohim os
pôs no domo dos céus, 18 para prover luz sobre a terra, e para governar o dia e a noite,
e para separar a luz e as trevas: e Elohim viu que isso era bom. 19 E entardeceu e
amanheceu: Quarto Dia.

6) Os Astros

“O sol e a lua são criados somente no quarto dia e não são nomeados, mas
referidos apenas como a luminária maior e a luminária menor. Pode ser uma polêmica
implícita contra a adoração a corpos astrais (vide 2 Reis 23:5).” (Jewish Study Bible -
Gn. 1:16)

Semelhantemente, a vegetação é criada antes dos astros, novamente para dar


ênfase ao fato de que elas não dependiam do poder dos astros enquanto deuses.

Os semitas já sabiam da influência dos astros sobre os ciclos da vegetação, o


que os tornaria particularmente relevantes, especialmente numa região semi-árida.

Ao afirmar sua criação precedendo os astros, a Torá enfatiza que a vegetação


subsiste por decreto divino, não por força dos astros.

7) E para Tempos Determinados

O termo hebraico do qual se extrai a expressão “e para tempos determinados”


aqui usado é ul’moadim (‫)וּל ְ֣מוֹעֲדִ ים‬. Alguns tentam extrair daí um decreto de que os
astros teriam sido dados para as solenidades, que são chamadas na Torá pelo mesmo
termo.

Essa é uma leitura equivocada, por ser anacrônica.

Eram as solenidades da Torá que aconteciam nos tempos apontados - a saber,


no começo das épocas relevantes para a colheita e o plantio - e não o contrário.

Aqui, portanto, o sentido simples do texto é justamente o das épocas


determinadas, a saber, as estações do ano, as mudanças climáticas e de luminosidade,
etc.

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8) Resumo da Cosmologia

“Em sua cosmologia - isto é, seu entendimento da estrutura e diferentes partes


do universo - esse relato da criação se conforma à corrente geral do antigo Oriente
Médio… A desolação aquática (1:1-2) foi dividida em duas pela criação de um domo
ou teto sólido (o céu; 1:6-8) de modo que havia água acima e abaixo dele.

A camada inferior de massa d’água foi então confinada a uma área limitada, o
mar, revelando a terra seca, que Deus chamou de ‘terra’ (1:9-10). (Segundo Gn. 7:11
o céu tinha ‘janelas’ que quando eram abertas permitiam à chuva cair.).

Os corpos celestes, sol, lua, e estrelas, se moviam ao longo do teto do céu,


dando luz seguindo uma programação prescrita. (1:14-18)” (The Oxford Bible
Commentary - Gn. 1:1-24a - The Creation of the World) 


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