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Indústria, design, publicidade, arquitetura e arte na obra

fotográfica de Hans Gunter Flieg.


Fotografias do acervo do Instituto Moreira Salles
Nascido em 1923 em Chemnitz, Alemanha, Hans Gunter Flieg emigrou para São
Paulo em 1939 com seus pais e seu irmão. Deixaram para trás um país cujo
governo havia revelado sua face mais obscura a partir da Noite dos Cristais, em
novembro de 1938, quando estabelecimentos comerciais e casas de famílias
judaicas, como a de Flieg, foram violentamente atacados por partidários do nacional-
socialismo, num crescendo de ações que culminaria na invasão da Polônia em
setembro de 1939, dando início à Segunda Guerra Mundial. Ao chegar ao Brasil,
Flieg trazia na bagagem uma câmera Leica e uma Linhof, além de livros sobre
fotografia e exemplares da revista Life, uma de suas fontes de inspiração. Entre
1940 e 1945, estagiou e trabalhou em São Paulo , inicialmente com os fotógrafos
Peter Scheier e Irene Lenthe, trabalhando em seguida nas gráficas Ypiranga e
Niccolini.
Estabeleceu-se, a partir de 1945, como fotógrafo profissional de indústria,
publicidade e arquitetura. Registrou, por 40 anos, o desenvolvimento industrial
brasileiro, além de ter documentado o design, a arquitetura e a publicidade no país
entres os anos de 1940 e 1980 – fotografando instalações industriais, edificações e
objetos que revelam esse período. Dentro desse universo, encontram-se, por
exemplo, imagens das instalações industriais de empresas como Willys-Overland,
Mercedes Benz e Marcas Famosas S/A, pioneiras da indústria automobilística no
Brasil, além de imagens de estandes de grandes indústrias em feiras nacionais,
como o da fábrica de calçados Clark na Exposição Comemorativa do IV Centenário
de São Paulo, Parque Ibirapuera, São Paulo, SP, 1954 e o estande da Mercedes-
Benz do Brasil na Exposição Internacional de Indústria e Comércio, no Pavilhão de
São Cristóvão, Rio de Janeiro, RJ, 1961, ambos projetos do arquiteto Henri Maluf.
Fotografa para o catálogo da Indústria Cristais Prado já em 1947, e no ano seguinte,
produz o calendário fotográfico anual da Pirelli de 1949.
Paralelamente ao trabalho na indústria, Flieg fotografou para grandes agências de
publicidade do período, como Standard e Thompson, participando também no 1º
Salão Nacional de Propaganda, realizado no Museu de Arte de São Paulo em 1950.
Em 1951, atuou como fotógrafo oficial da primeira Bienal Internacional de São
Paulo, realizada pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo, iniciando a partir de
então uma contínua documentação do circuito das artes na capital paulista.
O trabalho de Flieg desenvolve-se fortemente influenciado pela modernidade
europeia, aliando o domínio na elaboração formal da imagem fotográfica a um
absoluto controle da iluminação, exposição e processamento da película. Suas
imagens extremamente elaboradas, produzidas na sua maioria como trabalhos
comissionados, particularmente aquelas no âmbito da fotografia industrial e de
produtos industriais, nos direcionam para o universo imagético já designado como o
do “êxtase das coisas”, onde a fotografia posiciona-se como a ferramenta por
excelência para o registro e visualização dos objetos da sociedade industrial e para
sua subsequente comercialização e circulação através das novas ferramentas da
publicidade e propaganda, que incorporam maciçamente a fotografia em peças
publicitárias a partir principalmente dos anos 1950.
A fotografia de Flieg, nesse sentido, relaciona-se com a escola alemã da Nova
Objetividade (Neue Sachlichkeit), voltada para o registro fotográfico direto dos
objetos industrializados e naturais, como proposto por Albert Renger-Patzsch em
sua célebre publicação Die Welt ist schön [O mundo é belo], bem como para a
documentação dos espaços industriais e seus equipamentos. Relaciona-se também
com elementos da posterior retomada de uma objetividade contemporânea, de
caráter mais conceitual e crítico, como o projeto de documentação seriada dos
elementos construtivos e arquitetônicos de uma sociedade industrial já em seu ciclo
entrópico, representado principalmente pelo trabalho do casal Bernd e Hilla Becher
no pós-guerra, cuja obra apresenta a ambivalência da própria objetividade
fotográfica, agora trabalhada em um sentido crítico pós-moderno. É isso que, em
última análise, libera as imagens de seu contexto original e possibilita leituras
formais e poéticas dos objetos e dos equipamentos registrados, que transcendem
sua dimensão referencial e documental. Flieg, da mesma maneira, constrói em
muitos casos imagens de forte viés abstrato e formal, ampliando e atualizando a
relevância de seu trabalho no âmbito da fotografia moderna e contemporânea no
Brasil.
A obra fotográfica completa de Hans Gunter Flieg é composta por mais de 35 mil
negativos e fotografias e contém registros fotográficos que se iniciam ainda na
Alemanha e se estendem até meados da década de 1980. Uma das exposições
mais completas de sua obra foi a retrospectiva Hans Gunter Flieg: 40 anos de
fotografia , realizada pelo Museu da Imagem e do Som de São Paulo, em 1981. Em
julho de 2006, seu acervo foi incorporado ao Instituto Moreira Salles e está, desde
então, disponível e aberto para pesquisas e estudos de seus importantes aspectos
documentais e estéticos. A leitura crítica e aprofundada de acervos fotográficos
constitui uma efetiva contribuição para a compreensão das estruturas formadoras da
sociedade contemporânea, seja no plano direto e objetivo da documentação da
cultura material, como também no plano mais abstrato da representação simbólica e
criativa destas mesmas estruturas.
A presente exposição foi inicialmente montada no Instituto Moreira Salles do Rio de
Janeiro em 2010 e agora é apresentada no MAC USP, acompanhada do
lançamento do livro Flieg . Indústria, arquitetura e arte na obra fotográfica de Hans
Gunter Flieg, primeira publicação abrangente sobre o fotógrafo editada no Brasil.

Sergio Burgi
Coordenador de Fotografia
Instituto Moreira Salles

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