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COMO ESTUDAR VIOLÃO

Marcos Kaiser, Violonista e Fisioterapeuta especialista em Fisiologia do Exercício e


Psicobiologia pela Unifesp

INTRODUÇÃO
A prática de um instrumento musical é muito semelhante a uma atividade
esportiva. Nas duas o ser humano busca a excelência física e motora, sendo preciso
muitos anos de treino até que o corpo atinja o seu ápice de performance. São
músculos, tendões, nervos, ossos e cérebro trabalhando em conjunto, para a
execução precisa de cada movimento.
O cérebro precisa memorizar padrões de movimento para que cada contração
muscular tenha uma intensidade, velocidade, frequência e precisão adequadas.
Também precisa codificar as informações provenientes da audição, visão e tato para
constantemente organizar e ajustar o movimento.
É claro que existem diferenças entre os músicos e atletas. Uma delas é o fato
de que o músico precisa aprender a criar e reproduzir um código sonoro em seu
instrumento o que exige bastante da capacidade cognitiva. O atleta por outro lado,
normalmente necessita que seu corpo todo entre em ação fazendo com que as
adaptações fisiológicas provenientes do treinamento aprimorem a força muscular e
resistência de modo geral.
A ciência trouxe grandes benefícios para o desempenho esportivo e também
para a fisioterapia. Hoje sabemos muito sobre as dosagens mais adequadas de
treinamento em cada esporte e em cada fase do processo de reabilitação. Por outro
lado, mesmo com tantas semelhanças entre esporte e a parte técnica da música, são
raros os casos em que os músicos estão bem informados sobre esses novos
conhecimentos. Eles, no geral, pouco sabem sobre memória, coordenação motora e
fisiologia muscular. Isso ocorre devido ao fato de que na música o conhecimento é
transmitido de forma empírica através das gerações, mas já está na hora de darmos
o próximo passo somando a essa sabedoria tradicional o conhecimento científico.
Essa união trouxe grandes êxitos no esporte e certamente fara o mesmo na música.
O objetivo desse texto é dar algumas dicas para o estudante poder gerenciar
melhor seu estudo do instrumento, aplicando essas informações de acordo com a
realidade do seu cotidiano e com a proposta do seu estilo, seja ele erudito, brasileiro,
flamenco, jazz ou fingerstyle.
HORAS DE ESTUDO
Quanto mais repetimos um determinado movimento, melhor e mais poderosa
fica a conexão entre os neurônios responsáveis pela tarefa. Diferente do treino
muscular para ganho de força, em que são necessárias grandes pausas para que o
músculo se recupere, o treino de coordenação motora pode ser feito numa quantidade
muito maior. Mas lembre-se de que o limite depende do seu conforto físico e sua
capacidade de assimilação mental. Depois de um tempo (que pode variar entre as
pessoas, mas que é menor em iniciantes) não adianta mais praticar pois o cérebro e
o corpo ficam cansados, fazendo com que os erros fiquem mais frequentes e quase
não se note mais melhoras durante determinada sessão de estudo. Esse é o
momento de parar.
Para que se consiga estudar durante muito tempo é necessário uma boa
técnica, uma boa postura e preparo físico. Caso contrário, o músico corre o perigo de
se lesionar. Iniciantes dificilmente vão ter resistência mental e física para estudar
durante longos períodos
SESSÕES FRACIONADAS:
Pesquisas científicas apontam que fracionar treino de uma atividade motora ao
longo do dia traz maiores benefícios do que a prática de sessões longas. Por exemplo:
uma sessão de 3h por dia é menos efetiva do que 3 sessões de 1h. Isso ocorre pois
o cérebro consegue memorizar melhor uma atividade que é repetida em intervalos
menores de tempo. Sendo assim, ao estudar 3h seguidas a próxima sessão só vai
ocorrer 21h depois.
Da mesma forma: estudar por 7h seguidas apenas uma vez por semana é
infinitamente pior do que estudar 1h todo dia.
Além disso, mesmo em casos de músicos que estudam “o dia todo”, são
recomendáveis pequenas pausas para descansar. O cérebro continua em processo
de assimilação e memorização em “segundo plano” mesmo quando não se está
praticando. Já se sabe há muito tempo no esporte que o repouso também faz parte
do treino.
AQUECIMENTO:
É quando o corpo direciona todas os recursos fisiológicos para fornecer a
quantidade de energia adequada aos músculos (levar oxigênio, glicose e outras
substâncias). Demora cerca de 30 minutos para que o corpo se auto regule e
estejamos aptos para um desempenho físico pleno.
O aquecimento deve iniciar leve e ir ganhando intensidade. Pode ser realizado
através de exercícios, escalas, arpejos, estudos e peças, mas recomendo exercícios
técnicos variados, pois peças e escalas podem conter padrões de movimento que
favorecem mais um grupo muscular do que outro, sendo menos adequados no geral.
ALONGAMENTO:
Alongamento não é aquecimento! Esse é foi um dos grandes mitos tomados
como verdade entre atletas e músicos. Antes de uma sessão de treino fazia-se
alongamentos acreditando-se que evitaria lesões.
Atualmente sabe-se que o alongamento tem o efeito agudo de relaxar o
músculo e o efeito crônico de aumentar comprimento muscular. Porém, acontece que
numa atividade de aquecimento o adequado é estimular e não relaxar. Então faça
aquecimento e esqueça o alongamento antes de tocar.
EXERCÍCIOS TÉCNICOS:
É adequado treinar toda a gama de recursos técnicos importantes para o estilo
musical do violonista. Por exemplo: uma grande parte da técnica flamenca é diferente
da técnica erudita. Sendo assim, cada estilo deve trabalhar conforme as suas
necessidades.
Aqui entram exercícios de movimentos específicos como ligados,
cromatismos, aberturas, pestanas, picados, rasgueados, dedilhados, polegar e etc...
São também esses tipos de movimento os mais adequados para o aquecimento.
EXERCÍCIOS MUSICAIS:
Outra forma de treinar a técnica é através de recursos de efeitos mais musicais
como escalas e arpejos. Esses dois fundamentos podem ser realizados em centenas
de padrões e digitações diferentes. O músico deve praticar aquilo que é mais
condizente com seu estilo e nível de experiência no instrumento.
Para músicos de jazz esses são exercícios importantíssimos e podem ser
praticados junto com “bases” harmônicas para o estudo da improvisação. Já para
músicos eruditos normalmente o mais indicado é a prática de “Estudos” criados
exatamente com o objetivo desafiar a técnica de forma musical. Claro que a mistura
de todas essas formas de exercício também pode ser bem-vinda dependendo do
contexto.
Meu primeiro professor de violão também era poeta e inspirado pela prática do
violão escrever o seguinte poema sobre as escalas:
ESCALAS
(Zé Fernando)

Fazer escalas é como escovar os dentes,


Deve-se fazer todo santo dia,
Não por obrigação, mas por necessidade
Própria de se fazê-lo,
Advinda do simples prazer
Nele contido
De desembaraçar as notas,
Assim como se soluciona
Pensamentos, ou se conclui
Fórmulas físicas, equações matemáticas
Cujas soluções nos colocam em órbita
Ou regozijo com o universo
Correr escalas soluciona ruídos
Desoxida cordas, de aço, nylon e vocais,
Haja visto um bom solfejo, ou até mesmo
Com seu gargarejo
Postando nossa voz de cada dia, em dia
Correr escala, acima e abaixo,
Destrava teclas, desoxida válvulas
E pistões para que melhor resistam
Aos dedos e ventos
Cada instrumento conduz
Suas respectivas notas como a
Torneira que conduz seu jorro d’água
É a água que dissolve palavras
Presas entre dentes
Em ato reflexo, afetos e emoções
Que por osmose adquire sua forma
Em movimento eólico/líquido perfeito,
Do pensamento
Por ironia, própria de todas artes,
A mãe dos instrumentos sempre nos
Recebe com suas brancas arcadas
Concebendo-nos com um tremendo
De um sorriso que, branco os mantemos

REPERTÓRIO:
As peças devem sempre seguir níveis de dificuldade progressivo ao longo dos
anos de estudo do instrumento. A escolha e planejamento de forma adequada do
repertório é fundamental para que o músico tenha experiências motoras variadas.
Quando bem desenvolvido, o estudo do repertório cria um “acervo mental” tão grande
que em músicos mais experientes praticamente inexiste situação técnica não familiar.
É por esse motivo que músicos experientes conseguem aprender tão rapidamente
músicas novas.
Na minha opinião, essa é a fase mais importante da sessão de estudo. O
repertório deve ser o maior e mais variado possível.
Como organizar o estudo das peças? Você deve construir um repertório com
cerca de 10 músicas e ser capaz de executa-lo todo de uma vez como se fosse um
recital. Podem ser 10 músicas fáceis, respeite seu nível. Se você puder convide
amigos e familiares para assistir e toque com o máximo de seriedade. Depois de
realizada essa tarefa comece a renovar o repertório trocando uma música de cada
vez por outra mais difícil. É dessa forma que você deve ir avançando no estudo de
peças.
NÍVEL CORRETO:
Um dos erros mais comuns dos estudantes é tentar aprender peças muito
difíceis, que estão acima do seu nível. O adequado é o aluno estudar peças em
dificuldade progressiva, sempre tento um objetivo há longo prazo. Níveis elevados de
performance demoram muitos anos para serem atingidos e é muito mais efetivo o
aluno tocar peças que de fato ele consegue assimilar, compreender, tocar limpo e
com dinâmica correta. Não há necessidade de sofrer e se frustrar! A maturidade
musical vem com o tempo e existem músicas muito complexas indo muito além do
que a parte técnica. O aluno precisa ser capaz de entender a obra sob o ponto de
vista melódico, harmônico, rítmico e sentimental.
Quem estuda de forma organizada, obedecendo fases e estando consciente
do que faz, evolui milhões de vezes mais rápido do que aquele que só tenta tocar
coisas difíceis quando não é a hora.
Lembre-se: música é como um esporte! Um iniciante jamais vai ter a
desenvoltura física de um atleta profissional. Sem realizar horas e horas, anos e anos
de prática jamais uma pessoa pode correr uma maratona como um queniano ou
levantar pesos como um halterofilista.

TOCAR LENTAMENTE:
A velocidade com que praticamos um instrumento musical gera diferentes
resultados. Quando treinamos lentamente estamos favorecendo a precisão, é quando
o cérebro consegue calcular cada detalhe do movimento para evitar erros. Com a
repetição o cérebro memoriza todos os fatores envolvidos fazendo com que
consigamos acertar mais e tocar cada vez mais rápido. Tocar lento também é útil para
que conscientemente consigamos identificar quais micromovimentos precisam ser
corrigidos para que os macromovimentos estejam corretos.
Entretanto a velocidade da prática deve estar sempre no nível ideal. Se um
músico já consegue executar com perfeição uma obra numa velocidade de 100bpm
não será efetivo praticar a 50bpm (a não ser que seja um aquecimento ou uma revisão
técnica). O correto é praticar o mais rápido possível desde que haja precisão no
movimento, porque o cérebro precisa também aprender a calcular a força e o uso da
inércia do movimento. Tocar mais rápido exige uma demanda muscular diferente,
então a máxima que diz: “pratique sempre devagar” não é totalmente correta.
SONO:
É durante o sono que nosso cérebro faz uma série de manutenções fisiológicas
de extrema importância para a nossa sobrevivência. Não é por acaso que
normalmente dormimos 8h por dia. Isso representa 1/3 da nossa vida, ou seja, uma
pessoa de 60 anos gastou cerca 20 anos dormindo!
O sono ganha ainda mais importância conforme as exigências físicas e mentais
que fazemos enquanto acordados. Os reflexos motores ficam piores se você não
dormir bem.
Durma 8 horas por dia se quiser ser saudável e ter bom desempenho mental e
físico.
TÉCNICA NÃO É TUDO:
Conforme amadurecemos como músicos fica claro que infelizmente somos
todos escravos da técnica, isto é, precisamos todo dia nos manter em forma já que
sem técnica vamos perdendo a capacidade de nos expressar. Por isso que alguns
músicos preferem se especializar. Alguns são compositores, outros interpretes,
outros arranjadores e etc...
Mesmo se seu objetivo for ser um interprete, isto não quer dizer que só a
técnica basta. Todos nós conhecemos músicos incríveis que não necessariamente
são os maiores virtuosos do violão. Ser um bom músico é dominar o estilo, a cultura,
a linguagem, ser criativo, inovador e transmitir emoções. Para dominar esses fatores
você precisa viver. Isso mesmo, precisa interagir, ir em shows, ouvir os colegas, tocar
com amigos e tocar o máximo de músicas diferentes a vida toda. Não há limites para
a musicalidade!

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