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à Criança e ao
Adolescente
Vítima ou
Testemunha de
Violência
APOSTILA COMPLETA
Significado dos Ícones da Apostila
Para facilitar o seu estudo e a compreensão imediata do conteúdo apresentado, ao longo de
todas as apostilas, você vai encontrar essas pequenas figuras ao lado do texto. Elas têm o objetivo
de chamar a sua atenção para determinados trechos do conteúdo, com uma função específica,
como apresentamos a seguir.
Quando vir este ícone, você deve refletir sobre os aspectos apontados, relacionando-
os com a sua prática profissional e cotidiana.
SUMÁRIO
Apresentação e Guia de Estudos do Módulo 1 6
Aula1: Breve histórico da assistência e proteção às crianças e a
os adolescentes 7
Aula2: O Sistema de Garantia de Direitos da Criança
e do Adolescente e a Lei nº 13.431/2017 18
2.1 Entendendo o Sistema de Garantia de Direitos da
Criança e do Adolescente 18
2.2 O Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do
Adolescente Vítima ou Testemunha de Violência 21
2.3 A Lei 13.431/2017 e o enfrentamento das violências
e outras violações de direitos 23
2.4 O conceito de violência na lei 13.431/2017 24
2.5 Respeito à diversidade e a proteção contra a
discriminação 31
REFERÊNCIAS E SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS 35
Bons estudos!
6
Aula 1
Breve histórico da
assistência e proteção às
crianças e aos adolescentes
Você deve estar se perguntando: por que trazer fatos históricos para este curso? Sabemos
que os diversos tipos de violências praticadas contra crianças e adolescentes, tal qual as
compreendemos hoje, sempre estiveram presentes na sociedade brasileira. Neste sentido,
precisamos entender como as crianças e adolescentes adquiriram personalidade jurídica, isto
é, deixaram de ser mero objetos, raramente contemplados nas leis, para se tornarem sujeitos de
direitos.
Existem relatos de viajantes que descrevem como, entre o século XVI até meados do século
XIX, as crianças indígenas eram escravizadas da mesma forma que os adultos. Até mesmo depois
que as leis indigenistas proibiram o trabalho escravo dos nativos brasileiros, crianças indígenas
eram comercializadas como uma mercadoria nas cidades coloniais e, às vezes, pelos próprios pais.
Em condições ainda mais desumanas, viviam as crianças trazidas da África em navios negreiros
ou nascidas no Brasil em cativeiro. De acordo com Del Priori, cerca de 4% dos escravos que
desembarcaram no Rio de Janeiro no século XVIII eram crianças menores de 10 anos. Enquanto
não adquiriam a força necessária para o trabalho agrícola, essas crianças realizavam pequenos
trabalhos domésticos e, assim que despertavam para a puberdade, muitas dessas meninas
tornavam-se mucamas de seus senhores.
Mucama era o nome dado à escrava que prestava serviços domésticos para seus
senhores. Na maioria das vezes, eram jovens e belas e, em alguns casos, também
serviam como ama de leite para os filhos de seus patrões. Também conhecida por
mucamba ou mocamba, este tipo de escrava ainda tinha a obrigação de satisfazer
sexualmente os seus senhores, se lhe fosse solicitado. Mesmo tendo um tratamento
diferenciado em comparação ao restante dos escravos, a mucama também era alvo
de ameaças e torturas constantes, caso descumprisse alguma ordem ou contrariasse
aos comandos de seus superiores. Veja que o racismo, o machismo e a violência sexual
estão presentes em nossa realidade social desde os primórdios da colonização e
ajudam a explicar violências que acontecem atualmente.
Fonte: MUCAMA. In: Significados, 2016. Disponível em: <https://www.significados.com.br/mucama/>. Acesso em: 03 fev.
2021.
7
Jean-Baptiste Debret ”Soldados índios da província de Curitiba escoltando selvagens”, 1834
Podemos afirmar, então, que durante o período colonial (1530 a 1822) e imperial (1822 a 1889),
existiam direitos da criança e do adolescente? O que se sabe é que, naqueles tempos, os serviços
de assistência se resumiam a ações de caridade praticadas pela Igreja Católica, associações civis,
aristocracia rural e mercantil e, de forma bem reduzida, pela Coroa Portuguesa e/ou Imperador. Isto
é, somente após a independência do Brasil (1822) que as crianças e os adolescentes apareceram nos
textos legais. Mesmo assim, nem a Constituição de 1824, nem a primeira Constituição da República
Brasileira, em 1891, trouxeram qualquer garantia aos direitos da criança e do adolescente. Após
eventos importantes, como a abolição da Escravatura (1888), o Estado permanecia omisso em
relação à proteção à infância e juventude.
8
A roda dos expostos ou roda dos enjeitados esteve ligada a instituições de
caridade como conventos, mosteiros, Santa Casas, que instalavam em seus
muros uma espécie de mecanismo onde eram abandonados recém-nascidos ou
crianças bem jovens, cujos pais não podiam ou não queriam criar. Geralmente,
as crianças escravas não eram enjeitadas, pois seus senhores as vendiam antes
disso. Formada por uma caixa dupla de formato cilíndrico, a roda foi criada no
período colonial (1530 a 1822) e existiu até a década de 1960. A existência da
Roda dos Expostos, e de formas similares na atualidade, nos remete à questão
das violências perpetuadas em nossa sociedade, transfiguradas em cuidado e
proteção, e que reforçam falsos conceitos e preconceitos.
Foto de Claudia Castro Fonte: DEL PRIORE, M. História da Criança no Brasil. 2004.
De fato, a legislação brasileira do final do século XIX e início do século XX enxergava a criança
e/ou o adolescente somente do ponto de vista infracional, quando se tornavam um fardo, um
incômodo ou um perigo para a sociedade. Prova disso é o Código Penal de 1890 que estabelecia
que jovens de 9 a 14 anos que cometessem infrações deveriam ser internados em estabelecimentos
disciplinares industriais.
Art. 30. Os maiores de 9 anos e menores de 14, que tiverem obrado com
discernimento, serão recolhidos a estabelecimentos disciplinares industriais, pelo
tempo que ao juiz parecer, contanto que o recolhimento não exceda á idade de 17
anos” (Brasil. DECRETO 8.47, de 11 de outubro de 1890).
9
• inovou no tratamento dado ao infante/púbere ao organizar o serviço de assistência e
proteção à infância abandonada e delinquente;
• definiu quais eram as hipóteses de abandono e as situações que a ela poderiam ser
equiparadas;
• ampliou as causas para suspensão e destituição do poder familiar;
• estabeleceu as situações e justificativas de colocação dos menores sob guarda de terceiros
e;
• indicou as sanções a serem aplicadas aos pais ou responsáveis (PAULA, 2002, p. 19).
Poucos anos depois, o Brasil entraria em um período de Regime Militar (1964 a 1985) e a
Constituição de 1967, e sua Emenda de 1969, trouxeram novas expectativas para a infância e
juventude, tais como:
10
Durante o governo militar, também foram criadas no Brasil as instituições de caráter
assistencialista de amparo aos chamados “menores em situação irregular”, como a Fundação
Nacional do Bem-estar do Menor (FUNABEM), de abrangência nacional; e as Fundações Estaduais
do Bem-Estar do Menor (FEBEM), em âmbito estadual (VARGAS, Angelo Luis de Souza. Op. cit. p.
148).
Neste mesmo período, foi promulgada a Lei 6.697/79, o novo Código de Menores, com a
finalidade de assistir às crianças e aos adolescentes que viviam afastados daquilo que eram
consideradas condições ideais de existência ou que se encontravam em situação sócio-educacional
irregular ou de risco. De acordo com SOUZA (2002), o Código de Menores priorizava problemas
de ordem pedagógica, educacional e de formação profissional, buscando disciplinar as atividades
administrativas para a manutenção de uma estrutura burocrática capaz de acompanhar a vida
dos seus recuperandos. Isto é, o Código de Menores fundamentava-se na Doutrina da Situação
Irregular e era direcionado a um tipo específico de criança e adolescente, o delinquente ou
infrator, e não a uma totalidade que deveria ser amparada por direitos. A própria definição de
“menor em situação irregular” decretou a marginalização que até hoje acompanha o termo.
Fonte: Estante Virtual Fonte: Sindicato dos Professores do Ensino Oficial de São Paulo
11
O processo de redemocratização do Estado brasileiro, iniciado em 1985, teve como desdobramento
a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Considerada por diversos países como uma das
mais avançadas do mundo em termos de Direitos Civis, foi apelidada de Constituição Cidadã e inovou
ao garantir, às crianças e aos adolescentes brasileiros, direitos essenciais que, até então, não lhes eram
assegurados. O art. 227 chama a atenção por estabelecer que a responsabilidade de garantir os direitos
de crianças e adolescentes, com absoluta prioridade, é compartilhada entre Estado, famílias e sociedade:
Pela primeira vez na história legislativa do Brasil, as crianças e adolescentes passaram a ter
assegurados, em uma Constituição, seus direitos básicos e, o mais importante, tornaram-se,
reconhecidamente, sujeitos de direitos e verdadeiros cidadãos. Entrava em cena a Doutrina da
Proteção Integral.
E por que é tão importante a garantia desses direitos na Constituição Federal? Vejamos: uma
Constituição é a lei máxima de um país, a mais importante, à qual estará vinculado todo o conjunto
de normas e leis que regem um Estado. Sendo assim, o texto constitucional determina todos os
direitos e deveres de um ordenamento jurídico, sendo fundamental para a organização da vida em
sociedade. Qualquer outra lei criada ou promulgada no Brasil, deve respeitar tudo aquilo que está
previsto constitucionalmente.
Dessa forma, a Convenção sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas
(UNICEF), realizada em 20 de novembro de 1989, teve de ser promulgada pelo Congresso Nacional
brasileiro para ter validade em nosso país. Isto é, o Congresso precisava declarar que a Convenção
à qual o Brasil aderiu não feria o texto constitucional.
12
SAIBA MAIS: Decreto Presidencial 99.710/90 promulgou o texto da Convenção, sobre
os Direitos da Criança da ONU tornando obrigatório o cumprimento de seu Artigo 19,
qual seja: “Os Estados Partes adotarão todas as medidas legislativas, administrativas,
sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as formas
de violência física ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus tratos ou
exploração, inclusive abuso sexual, enquanto a criança estiver sob a custódia dos
pais, do representante legal ou de qualquer outra pessoa responsável por ela”(BRASIL.
DECRETO 99.710, DE 21 DE NOVEMBRO DE 1990).
Como a Constituição brasileira já havia adotado a Doutrina da Proteção Integral, era necessário
a criação de uma lei que complementaria o texto constitucional e cumpriria as metas estabelecidas
pela Convenção. Foi assim que o Congresso brasileiro editou a Lei 8.069/90, mais conhecida
como Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, com o objetivo de tratar com particularidade a
questão da criança e do adolescente
Logo no Art. 1º do ECA, fica claro que a lei trata da proteção integral à criança e ao adolescente.
Em seguida, o Art. 2º determina o conceito e explica o que considera como criança e como
adolescente:
ECA, 1990, Art. 2º - Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze
anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de
idade. Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este
Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade (BRASIL. LEI 8.069, DE
13 DE JULHO DE 1990).
Criança Adolescente
13
Não é a pretensão deste módulo trabalhar, isoladamente, cada direito da criança e do
adolescente garantido pelo ECA, pois não é este nosso objetivo. No esquema a seguir,
procuramos ilustrar o Estatuto da Criança e do Adolescente mapeado, com a finalidade de
facilitar o entendimento da estrutura desta lei.
LIVRO 1 PARTE GERAL DISPOSIÇÕES PRELIMINARES LIVRO 2 – PARTE ESPECIAL ARTIGOS FINAIS
Ato infracional –
Direito à
Art. 103 ao 128
educação,
Definição de ato Medidas aos pais
cultura, esporte e
infracional; ou responsáveis –
lazer – Art. 53 ao
privação de Art. 129 e 130
59
Direito à liberdade pro Encaminhamen-
Educação para a
convivência flagrante ou tos para auxílios,
cidadania e
familiar e ordem judiciais; orientação e
trabalho;
comunitária – garantias acompanhamen-
Igualdade no
Art. 19 ao 52 processuais; tos.
acesso à
Igualdade entre medidas
educação; ser
filhos adotados e sócio-educativas
respeitado no
naturais;
âmbito escolar;
Família natural e
direito à
substituta;
matrícula; escola
guarda. Acesso à justiça –
é obrigada a
Art. 141 ao 224
notificar
Atribuições do
suspeitas de
poder judiciário;
maus tratos e
regras para
violência.
destituição do
pátrio poder;
colocação em
Conselho Tutelar
Direito à família
– Art. 131 ao 140
profissionalização substituta;
Definições e
e proteção – Art. apuração de ato
Prevenção – Art. atribuições.
60 ao 69 infracional;
70 ao 85.
Proibição de fiscalização de
Dever de todos;
trabalho para entidades;
proibição de
menores de 14 proteção e
venda de
anos; aprendiz interesses
produtos e
com 16 anos; individuais,
regulamentação
trabalhador após coletivos e
para espetáculos
os 16 anos; difusos.
e viagens.
proteção no
trabalho.
15
HISTÓRICO DOS DIREITOS DAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO
BRASIL
1530 a 1822
Crianças e adolescentes negras e
indígenas eram escravizadas e
1890
comercializadas.
16
1988
Elaboração da Constituição de
1988 (Constituição Cidadã). Inclui
1989 um artigo específico sobre os
direitos das crianças, o artigo 227,
reconhecendo crianças e
Convenção Internacional dos
adolescentes como sujeitos de
Direitos da Criança: Normas de
direitos.
como as crianças deveriam ser
tratadas, educadas e protegidas.
1990
Aprovação do Estatuto da Criança
e do Adolescente.
1992
O Brasil assina o Pacto pela
Infância.
2004
O Brasil ratifica o Protocolo
Facultativo à Convenção sobre os
Direitos da Criança sobre a Venda
2017 de Crianças, a Prostituição Infantil
e a Pornografia Infantil e o
Protocolo Facultativo à Convenção
No ano de 2017 Brasil aprova a Lei
sobre os Direitos da Criança sobre
13.431/2017 estabelece o SGDCA,
o Envolvimento de Crianças em
a Escuta Especializada e o Depoi-
Conflitos Armados.
mento Especial (ratificando o
Protocolo Facultativo à Convenção
sobre os Direitos da Criança sobre
um procedimento de Comuni-
cações). 2018
Decreto 9.603/2018, estabelece o
sistema de garantia de direitos da
criança e do adolescente vítima ou
testemunha de violência.
Fonte: Elaboração Própria.
17
Aula 2
O Sistema de Garantia
de Direitos da Criança e
do Adolescente e a Lei nº
13.431/2017
2.1 ENTENDENDO O SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE
Como vimos na aula anterior, a adoção da Doutrina da Proteção Integral no ordenamento
jurídico brasileiro promoveu inúmeras mudanças nas práticas de assistência à criança e ao
adolescente. Uma das mais importantes diz respeito à “desjudicialização” do atendimento
à criança e ao adolescente (DIGIÁCOMO, 2014). Mas o que isso quer dizer? A desjudicialização
significa que a interferência judiciária deve ocorrer apenas em situações excepcionais, priorizando
o atendimento no âmbito das políticas públicas com a articulação entre ações governamentais e
não-governamentais (art. 86 da Lei 8.069 de 1990).
Dessa forma, a política de atendimento às crianças e adolescentes passa pela atuação conjunta
de diversos órgãos, com atribuições específicas e diferenciadas, que dividem a responsabilidade de
promover e efetivar os direitos infanto-juvenis e defendê-los. Para tanto, o Sistema de Garantia de
Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA) tem o papel de assegurar e viabilizar esses direitos,
prevenir a ocorrência de ameaças e violações e atender e solucionar os casos em que os direitos
das crianças e dos adolescentes são ameaçados e/ou violados.
É importante destacar que o SGDCA não é uma instituição, mas sim um conjunto de ações nas
quais cada órgão conhece o seu papel e dos demais, promovendo a articulação e o complemento
desses papéis (REZENDE, 2014). Sendo assim, o SGDCA é um conjunto articulado de agentes e
órgãos (governamentais e não-governamentais) que atuam na garantia dos direitos infanto-
juvenis, tendo como base a política de atendimento deliberada e aprovada pelos Conselhos
Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCAs). Neste sistema, nenhum órgão e/
ou agente é mais importante que o outro, pois todos se complementam.
18
Para melhor compreensão, as ações do SGDCA podem ser divididas em três eixos:
Neste ponto, precisamos recordar que o Art. 88, inciso I da Lei 8.069 de 1990, determina a
municipalização da política de atendimento à criança e ao adolescente, ou seja, grande parte
das instituições que compõem o SGDCA são de âmbito municipal, como as Unidades Básicas
de Saúde (UBS), os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), os Núcleo Ampliado de
Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB), entre outros. Mas isso não significa que seja uma
exclusividade, já que o Sistema conta com equipamentos estaduais, como os Centros Estaduais
de Atenção Especializada (CEAEs), hospitais e maternidades; Serviços Regionais de Assistência
Social como CREAS e serviços de acolhimento, além dos Sistema de Segurança Pública (polícia
civil, polícia militar, etc.), o Sistema de Justiça (Poder Judiciário, Ministério Público, etc.) que são
equipamentos estaduais.
19
Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente
Cidadãos
Figura 3: Elaboração própria com base em informações da Resolução Nº 113 de 2006 do CONANDA.
20
Além disso, precisamos compreender que no interior do SGDCA existe uma variedade de
sistemas que regem as políticas sociais, como os de saúde, de educação, de assistência social,
de segurança pública, etc; e aqueles que tratam de situações peculiares, como Sistema Nacional
de Atendimento Socioeducativo (SINASE) e o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do
Adolescente Vítima ou Testemunha de Violência, que veremos a seguir.
Este subsistema foi implementado pela Lei 13.431 de 2017. Além disso, é amparado pela
Resolução 113 de 2006 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA),
tendo em vista que por se tratar de um desdobramento do SGDCA geral, o conteúdo expresso
na referida resolução se estende a esse subsistema (DIGIÁCOMO; DIGIÁCOMO, 2018), de modo
que esse também se funda na articulação entre as instâncias governamentais e sociedade civil
na busca pela promoção, defesa e controle de efetivação dos direitos do grupo infanto-juvenil
(BRASIL, 2006). A imagem, a seguir, nos permite visualizar essa articulação:
CONSELHOS DE
CONSELHO DIREITOS DA
TUTELAR CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE
EDUCAÇÃO ASSISTÊNCIA
SOCIAL
SISTEMA DE GARANTIA
CONSELHOS DE DE DIREITOS DA CONSELHOS DE
ASSISTÊNCIA
EDUCAÇÃO
CRIANÇA E DO SOCIAL
ADOLESCENTE VÍTIMA
OU TESTEMUNHA DE
VIOLÊNCIA
SEGURANÇA
PÚBLICA
JUSTIÇA
CONSELHOS DE
SAÚDE SEGURANÇA
PÚBLICA
CONSELHOS DE
SAÚDE
Fonte: Figura elaborada pelas autoras a partir de informações contidas na Lei 13.431/2017
21
Observem que o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente Vítima ou
Testemunha de Violência compreende múltiplas instituições e atores que se baseiam em duas
dimensões primordiais:
Identificação e responsabilização
(criminal/infracional, civil e administrativa) do
autor da violência (defesa e responsabilização)
E para garantir que esses propósitos sejam plenamente eficazes, o sistema de atendimento
deverá ter as seguintes características:
22
SAIBA MAIS:
INTERSETORIALIDADE
O conceito de intersetorialidade refere-se à ideia de instituições e atores diversos que,
com diferentes saberes, domínios, ações e poderes, trabalham em conjunto nos casos
que lhes são encaminhados. (BOURGUIGNON, 2001; PEREIRA; TEIXEIRAS, 2013).
INTEGRALIDADE
O conceito de integralidade diz respeito ao atendimento integral, isto é, um
atendimento que busca ofertar respostas às variadas demandas de forma completa e
total. (BOURGUIGNON, 2001; PEREIRA; TEIXEIRAS, 2013).
A Lei 13.431/2017 foi impulsionada por demandas de entidades do campo de defesa dos
direitos de crianças e adolescentes, com o objetivo de reconfigurar a maneira como crianças e
adolescentes são atendidos pelo sistema de Justiça e órgãos de investigação, mas também pelos
órgãos do sistema de proteção social. Entre outras medidas, estabelece os princípios para a escuta
protegida de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, com foco na redução
de procedimentos revitimizantes e cria mecanismos para prevenir e coibir a violência. Deste modo,
o grande desafio desta lei é fazer com que instituições distintas, com objetivos específicos, modos
de atuar diferentes e, até mesmo, de poderes diferentes, consigam atuar de maneira integrada.
Por hora, precisamos compreender que o maior desafio e a maior inovação da Lei 13.431/2017
é a garantia de que as crianças e adolescentes que vivenciaram experiências violentas não sejam
revitimizadas. Estudaremos, detalhadamente, a questão da revitimização no Módulo 2.
23
Primeiramente, precisamos entender o seguinte: a Lei 13.431/2017 e o Decreto 9.603/2018
são destinados a todas as crianças e adolescentes? Sim, considerando seu caráter preventivo. Mas
se pensarmos na designação das responsabilidades específicas para a Rede de Proteção, esses
dois instrumentos são destinados para crianças e adolescentes que foram vítimas ou testemunhas
de violência, criando mecanismos para prevenir ou coibir as manifestações violentas. O que não
quer dizer que essa categoria, vítimas e testemunhas de violência, não esteja incluída no sistema
de garantias do Estatuto da Criança e do Adolescente. Tanto a Lei 13.431/2017 como o Decreto
9.603/2018, são complementos do ECA e, tais como o Estatuto, deixam evidente a questão da
proteção integral e da prioridade absoluta dos direitos fundamentais.
Mas além de complementar o ECA, a Lei 13.431/2017 chama a atenção para a obrigatoriedade
dos entes da administração pública (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) desenvolverem
políticas INTEGRADAS e COORDENADAS, com o sistema de justiça e segurança pública, com o
objetivo de garantir os direitos humanos da criança e do adolescente em todos os âmbitos de
sua vida. Isto significa que o Estado torna-se responsável pela criação das chamadas “Redes de
Proteção”, que estudaremos mais adiante. Neste momento, nos compete compreender o que a
lei veio resguardar, ou seja, de que forma a lei garantirá o enfrentamento da violência praticada
contra crianças e adolescentes.
Outro dado relevante, diz respeito aos autores dessas violências, já que grande parte das
situações se referem a violações praticadas por pais, familiares ou outras pessoas responsáveis
pelo cuidado, no ambiente doméstico, conforme dados do disque 100. Isso significa que a família,
apesar de ser o principal espaço de cuidado e proteção, também figura como principal responsável
pelas práticas de violências contra crianças e adolescentes, seja por vivência de vulnerabilidades
e riscos, ou até mesmo por questões ainda intrínsecas em nossa sociedade, como a legitimação
do “bater para educar” e outras violências e violações de direitos, que partem do machismo e do
racismo. Em um país com a dimensão territorial do Brasil e cuja formação cultural e social é marcada
pela diversidade, é de se aceitar que essas questões reflitam na questão da heterogeneidade
familiar, criando espaços para olhares diversificados sobre afetividade, educação, princípios, etc.
No módulo 3 deste curso, retomaremos este debate sobre a família como espaço contraditório de
proteção e desproteção.
24 1 BRASIL, PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. CASA CIVIL. Disque 100: canal de denúncias de violação de direitos
humanos é ampliado durante a pandemia. In: BRASIL, PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. CASA CIVIL. Casa Civil. Brasília, 26 ago.
2020. Disponível em: https://www.gov.br/casacivil/pt-br/assuntos/noticias/2020/agosto/disque-100-canal-de-denuncias-de-
violacao-de-direitos-humanos-e-ampliado-durante-a-pandemia. Acesso em: 3 abr. 2021.
Foi considerando as denúncias de violência praticadas contra crianças e adolescentes no
decorrer dos anos e o reconhecimento da necessidade de modernização e integração de práticas
para a efetiva proteção, evitando a revitimização, que a Lei 13.431/2017 foi formulada, ampliando
o SGDCA.
Mas qual vem a ser o papel do SGDCA em situação de violência? A resposta para esta questão
encontra-se explícita no Decreto 9.603/2018:
Esses são os objetivos primordiais da Lei 13.431/2017 e, no momento de sua elaboração, foi
importante nominar os tipos mais comuns de violências praticadas contra crianças e adolescentes.
Isto é, as formas de violência qualificadas na lei, são aquelas que motivaram sua criação, que
estão no dia a dia do SUAS e que tanto carecem de assistência. As violências qualificadas foram a
física, psicológica, sexual e institucional, que serão discutidas a seguir, a partir do artigo 4º da Lei
13.431/2017.
25
madrasta. Mas o juiz da Vara da Infância e Juventude determinou que ele continuasse morando com
o pai, mesmo após o Ministério Público (MP) instaurar uma investigação por negligência afetiva
e abandono familiar. O pai, a madrasta, uma amiga dela e seu irmão foram presos e condenados
pelo crime. Se esta situação ocorresse hoje, a Lei 13.431/2017 lhe garantiria uma rede de proteção
que, talvez, evitaria esse desfecho trágico.
Este caso gerou tamanha repercussão que foi determinante para a criação da Lei 13.010/2014,
que ficou conhecida como Lei Menino Bernardo. Esta lei alterou o Estatuto da Criança e do
Adolescente para estabelecer o direito da criança e do adolescente de serem educados sem o uso
de castigos físicos, de tratamento cruel ou degradante.
II - violência psicológica:
Esse tipo de violência é muito comum em âmbito familiar e escolar e vem sendo frequentes os
relatos de bullying no SUAS. Mas o que podemos entender por bullying? É intimidação sistemática
por meio de ameaça, ou qualquer outra ação de: constrangimento, humilhação, manipulação,
isolamento, agressão verbal, xingamento, ridicularização, etc,.
Neste outro caso, fica evidente um episódio de bullying ocorrido em uma escola pública. O
Conselho Tutelar foi acionado pela mãe de André, de 13 anos, que relatou que o filho não queria ir
à escola porque o professor de Educação Física vivia fazendo piadas com a deficiência do garoto.
André teve um câncer no fêmur que fez com que ele amputasse a perna direita aos 10 anos. Ao
2 Caso fictício baseado em fatos reais.
26
propor uma atividade física, o professor usava frases como “corre saci, vai ficar de bobeira aqui não”
ou “não tem moleza não, aqui todo mundo é tratado como normal”, acompanhado pelas risadas e
deboche dos colegas, que geraram imensa tristeza no adolescente, ao ponto dele se negar a voltar
para a escola.
a) abuso sexual, entendido como toda ação que se utiliza da criança ou do adolescente
para fins sexuais, seja conjunção carnal ou outro ato libidinoso, realizado de modo presencial
ou por meio eletrônico, para estimulação sexual do agente ou de terceiro;
Tatiane, 15 anos, recebeu uma proposta para trabalhar como modelo em São Paulo. A família,
grande e muito humilde, autorizou que Tatiane viajasse com um homem que se dizia agente
de modelos. Mal desembarcou em São Paulo e Tatiane foi confinada em uma casa com outras
6 adolescentes. Elas eram obrigadas a ter relações sexuais com homens e mulheres diante de
uma câmera que transmitia o ato, ao vivo, para “assinantes” de um canal de pedofilia. Tatiane
conseguiu fugir do cativeiro e buscou ajuda em uma delegacia de polícia. Este caso contempla as
três hipóteses de violência sexual além de se caracterizar como uma das piores formas de trabalho
infantil 5.
Marina tem 11 anos e já possui um triste histórico de violência sexual que pode ter começado
na sua concepção. Filha de uma relação incestuosa, a menina vivencia a violência que sua mãe
sofria do avô desde muito nova. A mãe de Marina a teve com 16 anos, e, após o nascimento da
filha, decidiu ir embora e deixar a menina com seus pais. Anos depois, tentou conseguir a guarda
da filha, pois suspeitava que seu pai estaria abusando dela também. Segundo o que foi relatado
à assistente social do CREAS, os abusos ocorriam com frequência no sítio onde moravam, em
“um mato” perto da casa, onde o avô mantinha relações sexuais com ela. Isso só foi descoberto
e denunciado porque a mãe suspeitou que a história se repetia e permaneceria escondida se ela
não fizesse nada.
O Decreto 9.603/2018, em seu Art. 5º, complementa o conceito legal de violência institucional
ao determinar que ela pode ser praticada por agente público no desempenho de função pública,
em instituição de qualquer natureza, por meio de atos comissivos ou omissivos que prejudiquem
o atendimento à criança ou ao adolescente vítima ou testemunha de violência.
29
Neste exemplo, a mãe de Miguel, 10 anos e negro, procurou o Ministério Público para denunciar
um caso de violência institucional. Ela contou que a diretora da escola pública na qual Miguel
estuda retirou o menino da quadra onde seriam feitas as fotos das turmas, impedindo-o de ser
fotografado com os demais colegas brancos. O menino ouviu a diretora e a professora falarem que
a foto ficaria mais “bonita e limpa” sem o Miguel. As duas educadoras serão ouvidas pela Polícia
Civil e indiciadas por crime de racismo institucional7.
Nós já compreendemos que, por muitas vezes, a lei não contempla todas as realidades vividas
no cotidiano das pessoas. Os conceitos legais de violência, elencados na Lei 13.431/2017, são os
mais relatados no âmbito da Assistência Social, mas não são os únicos, pois existem casos em que
essas violências são multifacetadas, abrigando mais de uma forma de prática ou mesclando-as.
Um exemplo que podemos citar são as formas análogas de violência, como as várias formas de
negligência que uma criança ou adolescente pode ser vítima.
Julgamos pertinente trazer alguns casos de violências que não estão expressamente definidas
em lei. São elas:
• Trabalho infantil: Pela lei brasileira, qualquer forma de trabalho é proibida até os 13 anos
de idade, sendo que a partir dos 14 anos é permitido o trabalho na condição de aprendiz
e entre 16 a 18 anos a permissão de trabalho é restrita, sendo proibidas as atividades
noturnas (entre dez da noite e cinco da manhã), perigosas, insalubres e descritas na
Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil, a Lista TIP. Segundo o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE)8, 4,6% das crianças e adolescentes brasileiros viviam em
situação de trabalho infantil, em 2019. A operação de tratores e máquinas agrícolas, o
beneficiamento do fumo, do sisal e da cana-de-açúcar, a extração e corte de madeira, o
trabalho em pedreiras, a produção de carvão vegetal, a construção civil, a coleta, seleção
e beneficiamento de lixo, o comércio ambulante, o trabalho doméstico e o transporte de
cargas são algumas das atividades remuneradas exercidas por crianças e adolescentes no
Brasil. Não é raro a mídia publicar notícias vergonhosas dessa prática em nosso país.
Hijab é o véu usado pelas mulheres muçulmanas para cobrir os cabelos e o pescoço.
Uma menina que mora na zona rural tem concepções diferentes de um menino que mora
em um centro urbano. Da mesma forma, desconsiderar os valores culturais de um adolescente
imigrante ou de um indígena e dizer que não existem peculiaridades entre eles é, também, uma
forma de violação de direitos e marginalização. Não atentar para as singularidades inerentes à
criança e ao adolescente com deficiência é negar seus direitos fundamentais.
O artigo 5º, inciso IV da Lei 13.431/2017 menciona o respeito à diversidade e a proteção contra
a discriminação:
31
Já o Decreto 9.603/2018 é mais detalhado ao apontar a questão da criança e do adolescente
que fale outro idioma, pertencentes às comunidades tradicionais, conforme os artigos abaixo:
Decreto 9.603/2018:
Observe que os artigos transcritos mencionam determinadas categorias, mas deixam a critério
dos órgãos encarregados da proteção à criança e ao adolescente as práticas que poderão ser
adotadas, já que compete a todos os órgãos da Rede de Proteção o tratamento cultural adequado.
Quanto às crianças e adolescentes com deficiência, faz-se necessário alertar para os cuidados no
atendimento a essa categoria, pois, muitas vezes, um indivíduo com deficiência visual, auditiva ou
intelectual pode ter dificuldade em compreender que está sofrendo uma violência. Dependendo
do estágio de desenvolvimento, a percepção de que um adulto está violando um direito é muito
complexa e, talvez, até inexistente.
Vejamos um caso ocorrido, recentemente, que nos traz uma melhor compreensão da
necessidade de se ter diferentes estratégias para atendimento culturalmente adequado aos
públicos diversos.
32
O caso do menino acorrentado em um barril
A Polícia Militar recebeu uma denúncia anônima na qual o autor afirmava que um casal
mantinha seu filho em condições desumanas. A PM enviou viaturas para o endereço
indicado e, ao chegarem na casa, encontraram um menino de 11 anos, acorrentado
pelos pés, mãos e cintura. A família era acompanhada pelo Conselho Tutelar que não
identificou qualquer violação de direitos. Mas, de acordo com os policiais, o garoto
estava preso no mesmo barril — sem água ou comida — há cerca de um mês e os
vizinhos disseram que os maus tratos ocorriam há anos e, mesmo com as denúncias a
situação continuou.
A vítima foi levada para o hospital, onde ficou internada para tratar de desnutrição.
Uma vez recuperada, a criança foi enviada para um abrigo, a pedido do Ministério
Público. Isso porque sua guarda ainda não foi definida (pode ficar sob os cuidados da
tia, que o acompanhou na internação).
O caso agora deve ser acompanhado pelos diversos órgãos da Rede de Proteção. Foi
aberta uma investigação a fim de verificar eventuais omissões e falhas por parte dos
agentes públicos, que não identificaram a violação de direitos enquanto ela acontecia,
e solicitou que relatórios sobre os atendimentos prestados ao garoto fossem
apresentados pelas secretarias responsáveis.
Em depoimento à Polícia Civil, o pai do menino disse que o filho é muito agitado,
agressivo e que fugia de casa. O cárcere, portanto, seria uma forma de protegê-lo
e educá-lo. Preso preventivamente, o homem pode ser condenado por tortura e as
mulheres respondem pelo crime de omissão.
Fonte: MALVA, Pamela. O REVOLTANTE CASO DO GAROTO DE 11 ANOS QUE FOI ACORRENTADO EM UM BARRIL:
Encontrado em 30 de janeiro de 2021, o menino foi vítima de uma tortura cruel infligida pelo próprio pai durante meses.
In: X, Grupo Perfil. AH - Aventuras na História. São Paulo, 6 fev. 2021. Disponível em: https://aventurasnahistoria.uol.com.
br/noticias/reportagem/o-revoltante-caso-do-garoto-de-11-anos-que-foi-acorrentado-em-um-barril.phtml. Acesso em: 3
abr. 2021.
Nesse contexto, é importante refletir sobre o papel do estado com famílias em situação de
vulnerabilidade social que possuem crianças e adolescentes com deficiência, pois, muitas vezes,
elas não sabem lidar com seus comportamentos e jeito de ser, por falta de informação, falta de
apoio para o cuidado, e acabam incorrendo em violação de direitos. Assim como as políticas
públicas têm um papel imprescindível no enfrentamento das situações de violação de direitos,
com proteção às vítimas, investigação dos casos e responsabilização dos agressores, também têm
papel crucial na prevenção dessas situações
“De acordo com a Organização Mundial da Saúde, há, em todo o mundo,
cerca de 200 milhões de crianças e adolescentes com deficiência, com
incapacidades físicas, sensoriais, como cegueira e surdez, déficits
intelectuais e transtornos mentais. Cerca de 10% da população jovem
mundial até 19 anos nasceram com alguma deficiência ou a adquiriram
ao longo do tempo. Ainda assim, conforme dados da United Nations
Children’s Fund (UNICEF), apenas 3% das crianças com deficiência
frequentam a escola e o maior contingente de adultos com deficiência não
está inserido no mercado de trabalho. Há estimativas de que a violência
contra crianças com deficiência ocorra numa taxa 1,7 vezes maior do que
ocorre com crianças em geral.” (ROSA 2013, p.20)
33
Nos módulos seguintes, trabalharemos essa questão com mais profundidade, a fim de trazê-la
para a realidade dos atendimentos a grupos específicos SUAS.
34
REFERÊNCIAS E
SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS
NORMAS:
35
BRASIL. EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 1, de 17 de outubro de 1969. Edita o novo texto
da Constituição Federal de 24 de janeiro de 1967.Diário Oficial da União de 20 de outubro de
1969 [online]. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc_
anterior1988/emc01-69.htm>. Acesso em: 03 fev. 2021.
BRASIL. LEI Nº 6.697, de 10 de outubro de 1979. Institui o Código de Menores. Diário Oficial
da União de 11 de outubro de 1979 [online]. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/
fed/lei/1970-1979/lei-6697-10-outubro-1979-365840-publicacaooriginal-1-pl.html>. Acesso em:
03 fev. 2021.
36
BRASIL. MINISTÉRIO DOS DIREITOS HUMANOS/CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS DA
CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. Resolução n.º 113, de 19 de abril de 2006. Dispõe sobre os
parâmetros para a institucionalização e fortalecimento do Sistema de Garantia dos Direitos da
Criança e do Adolescente, Brasília: CONANDA, 2006. Disponível em: <https://www.legisweb.com.
br/legislacao/?id=104402>. Acesso em: 05 fev. 2021.
LIVROS E ARTIGOS:
EWBANK, T. Life in Brazil. Filadélfia, 1850. In: DOURADO, A. C. D. História da Infância e Direitos
da Criança. Revista Salto para o Futuro – Edição Especial, Ano XIX – Nº 10 – Setembro/2009,
p. 12. Disponível em: <http://plataformapesquisas.acasatombada.com.br/omeka/files/
original/774f9c9bfd1ac99efc576ff4757455ff.pdf>. Acesso em: 03 fev. 2021.
37
ROSA, D. de P. Violência contra crianças com deficiência: a proteção à luz do direito. Porto
Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2013.
SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS
LIVROS E ARTIGOS
DARLAN, S.. Da Infância Perdida à Criança Cidadã. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001.
DEL PRIORE, M.. Pedofilia e Pederastia no Brasil Antigo. São Paulo: Editora Contexto, 1991.
NOGUEIRA NETO, W. Promoção e Proteção dos Direitos Humanos de Geração. [s.l], 2007,
139p. Disponível em: <https://crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/xtras/direitos_humanos_
de_geracao.pdf.>.
RANGEL, P. C.; CRISTO, K. K.V. Breve Histórico dos Direitos da Criança e do Adolescente.
Disponível em: < http://www.prt17.mpt.gov.br/n_aprendiz.html>.
SITES E PROJETOS
AGUIAR, José. O Projeto. In: AGUIAR, José. A Infância do Brasil. Curitiba, 2015. Disponível em:
http://ainfanciadobrasil.com.br/o-projeto/. Acesso em: 3 fev. 2021.
38
Apresentação e Guia
de Estudos do Módulo 2
Neste módulo, vamos iniciar o estudo da Escuta Especializada pela compreensão de alguns
termos utilizados na Lei 13.431/2017 e que são de fundamental importância para o entendimento
desta prática.
Bons estudos!
39
Aula 1
Introdução à escuta especializada de
crianças e adolescentes vítimas ou
testemunha de violência
Decreto 9.603/2018, Art. 5º, II - discurso ou prática institucional que submeta crianças
e adolescentes a procedimentos desnecessários, repetitivos, invasivos, que levem
as vítimas ou testemunhas a reviver a situação de violência ou outras situações que
gerem sofrimento, estigmatização ou exposição de sua imagem.
Observe que, nos dois conceitos, a revitimização está atrelada às práticas de instituições oficiais
e, por esta razão, pode ser considerada como uma prática de violência institucional. Ora, se um/a
agente da Rede de Proteção realiza um procedimento inadequado e ocasiona uma revitimização,
ele/ela pode ser responsabilizado por ato de violência institucional, afinal de contas, ele/ela é
parte da instituição que deveria garantir a proteção às vítimas ou testemunhas de violência.
Mas, na prática, o que poderia causar um episódio de revitimização no SUAS? Por exemplo,
1 BRASIL. Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual Contras Crianças e Adolescentes. Renato Rorlario
(Coord.) Proteger e responsabilizar: o desafio da resposta da sociedade e do Estado quando a vítima da violência sexual é
criança ou adolescente. Brasília, 2007.
40
quando uma criança relata a um/uma profissional não capacitado/a que sofre violência sexual
intrafamiliar e este/esta profissional faz questionamentos desnecessários ou repetitivos sobre
o comportamento da criança com o/a autor/autora da violência, por exemplo. O fato de fazê-la
repetir os fatos muitas vezes ou a forma como as perguntas são colocadas faz com que a vítima
se sinta culpada, responsabilizada e acabe por reviver o trauma, sendo, portanto, revitimizada.
Perguntas do tipo “mas você tem certeza que ele fez isso?”; “será que você não está exagerando?”;
ou “por que você estava sozinha com ele?”, nunca devem ser feitas, pois, além de demonstrar que
o/a profissional põe em dúvida os fatos relatados, podem acarretar sentimento de culpa.
Então, a ausência de capacitação porventura ocorrida com os/as profissionais para lidar com
situações complexas, nem sempre claramente identificáveis, associada às possíveis dificuldades de
integração com a Rede de Proteção, podem ocasionar esses episódios de repetição do relato que
revitimizam a criança ou o adolescente, pois ao serem encaminhados para outros serviços, serão
novamente submetidos a questionamentos. E é por isso que a lei trata com tanta especificidade
essa questão, porque a vítima ou testemunha de violência deve receber a devida assistência e
acolhida nos diferentes órgãos que têm responsabilidades no atendimento às situações de
violência, assim como pelos diferentes serviços do SUAS, mas não devem ser obrigados a relatar
a situação de violência.
Por ora, você deve compreender que a lei instituiu dois procedimentos que deverão ser
implementados pelos órgãos integrantes do SGDCA a fim de se evitar os processos de revitimização.
Um deles é a Escuta Especializada que se configura como um dos elementos mais importantes no
âmbito das políticas de proteção e está expressamente definida no art. 7º da Lei 13.431/2017:
Apesar desta definição, o texto legislativo deixou margem para algumas dúvidas. Afinal, como
será realizada essa entrevista? Qual órgão da rede de proteção e quais os/as profissionais que
realizarão a escuta especializada? Neste sentido, o Decreto 9.603/2018, que regulamenta a Lei
13.431/2017, detalhou um pouco mais essas questões nos artigos 19 ao 21:
Decreto nº 9.603/2018
Art. 19. A escuta especializada é o procedimento realizado pelos órgãos da rede de
proteção nos campos da educação, da saúde, da assistência social, da segurança
pública e dos direitos humanos, com o objetivo de assegurar o acompanhamento da
vítima ou da testemunha de violência, para a superação das consequências da violação
sofrida, limitado ao estritamente necessário para o cumprimento da finalidade de
proteção social e de provimento de cuidados.
41
§ 1º A criança ou o adolescente deve ser informado, em linguagem compatível com o
seu desenvolvimento, acerca dos procedimentos formais pelos quais terá que passar
e sobre a existência de serviços específicos da rede de proteção, de acordo com as
demandas de cada situação.
§ 2º A busca de informações para o acompanhamento da criança e do adolescente
deverá ser priorizada com os profissionais envolvidos no atendimento, com seus
familiares ou acompanhantes.
§ 3º O profissional envolvido no atendimento primará pela liberdade de expressão
da criança ou do adolescente e sua família e evitará questionamentos que fujam aos
objetivos da escuta especializada.
§ 4º A escuta especializada não tem o escopo de produzir prova para o processo de
investigação e de responsabilização e fica limitada estritamente ao necessário para o
cumprimento de sua finalidade de proteção social e de provimento de cuidados.
Art. 20. A escuta especializada será realizada por profissional capacitado conforme o
disposto no art. 27.
Art. 21. Os órgãos, os serviços, os programas e os equipamentos da rede de proteção
adotarão procedimentos de atendimento condizentes com os princípios estabelecidos
no art. 2º
42
É pensando nesta capacitação e no dia a dia dos/das profissionais do SUAS que destacamos
alguns detalhes da Lei 13.431/2017 e do Decreto 9.603/2018 que servirão como ponto de partida
para a realização de uma escuta especializada cercada dos devidos cuidados. Vejamos:
Na próxima aula, traremos mais detalhes sobre os princípios que norteiam a escuta
especializada e como realizá-la no âmbito do SUAS, buscando inserir casos da rotina de trabalho.
No momento, vamos conhecer outro procedimento que, embora não seja realizado pelos/pelas
profissionais do SUAS, é muito importante no sistema de garantia de direitos da criança e do
adolescente. Trata-se do Depoimento Especial, uma ação que não deve se confundir com a
Escuta Especializada. Mas o que é o Depoimento Especial?
44
Ademais, você sabia que o Depoimento Especial só poderá ser repetido se a autoridade competente
julgar extremamente necessário e houver concordância da criança ou do adolescente ou de seu/sua
representante legal? Essa determinação é uma das formas de garantir que, em razão das formalidades
processuais, as crianças e os adolescentes vítimas ou testemunhas de violência não sejam revitimizados
ao repetir sua narrativa desnecessariamente. De acordo com a Organização Childhood2, crianças e
adolescentes vítimas ou testemunhas de violência sexual são ouvidos, em média, oito vezes durante os
trâmites processuais, acarretando, por consequência, a revitimização ou rememoração do trauma sofrido,
além de outros prejuízos.
Além disso, a Lei 13.431/2017 estabelece que quando a criança ou adolescente tiver menos de 7 anos
ou for um caso de violência sexual, o Depoimento Especial obedecerá ao rito cautelar de antecipação
de prova. Vamos entender o que é isso?
Para facilitar ainda mais a compreensão desses dois procedimentos, sem confundir os conceitos,
observe a imagem a seguir:
2 SANTOS, Benedito Rodrigues dos., et al. (Org.) ESCUTA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE
VIOLÊNCIA SEXUAL: Aspectos Teóricos e Metodlógicos. Brasília: EdUCB, 2014, 348p. Disponível em: <https://www.
childhood.org.br/publicacao/guia-de-referencia-em-escuta-especial-de-criancas-e-adolescentes-em-situacao-de-
violencia-sexual-aspectos-teoricos-e-metodologicos.pdf>. Acesso em: 14 fev. 2021.
45
E por que é tão importante conhecer e diferenciar esses dois procedimentos? Porque são
procedimentos com objetivos e finalidades distintos e executados por diferentes unidades/
serviços do Sistema de Garantias e Direitos da Criança e do Adolescente. Sabemos que os órgãos
da Rede de Proteção devem se comunicar, mas não devemos confundir a integração com a troca
de papéis.
O profissional do SUAS deve estar sempre atento para o seu papel dentro da Rede de Proteção
e não assumir atribuições que cabem à autoridade policial, como investigações, e à autoridade
judiciária, como a responsabilização dos autores de violências. É por essa razão que os/as
profissionais do SUAS não realizam e, tampouco, participam do Depoimento Especial.
• Jamais deve assumir qualquer atribuição de investigar a violência que lhe foi
relatada. Este papel é da autoridade policial.
• Durante a Escuta Especializada, não devem interrogar a vítima ou testemunha
de violência. Isso ocasiona episódios de revitimização e o/a profissional pode
ser responsabilizado/responsabilizada por violência institucional.
• Não é função do/da profissional do SUAS fornecer provas, laudos ou pareceres
da situação que lhe foi narrada.
46
Aula 2
Princípios norteadores
da execução da escuta
especializada de crianças
e adolescentes vítimas ou
testemunhas de violência
2.1 A ESCUTA ESPECIALIZADA NO ÂMBITO DO SUAS
Como vimos na aula anterior, a escuta especializada é um procedimento de caráter protetivo,
realizado no âmbito da rede de proteção à criança e ao adolescente vítima ou testemunha de
violência e que abarca múltiplos sistemas, equipamentos, instituições e atores. Entretanto, o foco
principal deste módulo é o procedimento de escuta especializada realizado no âmbito do Sistema
Único de Assistência Social (SUAS), tendo em mente que o que estamos propondo são sugestões
de boas práticas e não uma orientação finalizada ou protocolo validado por estudos, consultorias
ou publicações. Nossa intenção é mostrar um caminho para a realização do trabalho in loco, o que
não significa que é o único possível.
47
(PAEFI). Na ausência deste equipamento3, o atendimento deve ser realizado pelo/pela profissional
de referência de Proteção Social Especial local (BRASIL, 2004; 2017, 2020). Contudo, é importante
destacar que a inclusão da criança e/ou do adolescente e sua família no PAEFI, não significa que os
mesmos não devem ser atendidos nos demais serviços ofertados pelo SUAS. Dessa maneira, cabe
ao CREAS, mais precisamente ao PAEFI, atender e acompanhar a situação de violência, sendo que
a criança e/ou adolescente e suas famílias podem apresentar outras necessidades que justifiquem
seu atendimento e acompanhamento por outras unidades e serviços. Os casos apresentados no
decorrer dessa aula exemplificam essa situação.
É importante destacar que a escuta especializada está incluída como atribuição do trabalho
social executado nas unidades, serviços, programas e projetos do SUAS. Sendo assim, devem
estar em conformidade com os objetivos da Assistência Social (BRASIL, 2020), dentre os quais
destacamos aqueles presentes na Lei Orgânica da Assistência Social:
3 A legislação brasileira, especialmente, a Lei Orgânica da Assistência Social (Lei 8.742 de 07 de dezembro de
1993) e a Política Nacional de Assistência Social, prevê a municipalização da assistência social, de modo que todo o
município deve ofertar a proteção social básica e especial. Entretanto, municípios de pequeno porte, isto é, de até 20.000
habitantes não, necessariamente, devem possuir o CREAS (unidade de referência da proteção social especial média
complexidade). Desse modo, a legislação aponta que, em caso de inexistência do equipamento, o município deve conter
um profissional de referência da Proteção Social Especial (BRASIL, 2004; 2011a; 2011b).
48
Mas, afinal, como as situações de violência envolvendo crianças e adolescentes chegam ao
conhecimento dos/das profissionais do SUAS? Podemos apontar quatro formas: 1) Revelação
Espontânea; 2) Revelação de terceiros; 3) Identificação pelo/pela profissional de sinais de violência
ou suspeita; 4) Encaminhamento de algum equipamento ou instituição. Essas formas serão
explicadas a seguir.
1) Revelação espontânea:
No processo de atendimento e acompanhamento de crianças e adolescentes e suas famílias,
em qualquer unidade e/ou serviço da rede socioassistencial, pode ocorrer que a criança ou o
adolescente revele, de forma espontânea, que vivenciou um episódio de violência4, seja na condição
de vítima ou de testemunha. Ocorrendo, assim, o que chamamos de revelação espontânea da
situação de violência.
Essa revelação pode acontecer para qualquer trabalhador/trabalhadora do SUAS, inclusive para
aqueles/aquelas que não compõem a equipe de referência das unidades e serviços5, pois, muitas
vezes, a revelação espontânea é feita para quem a criança ou adolescente já estabeleceu um vínculo
de confiança (BRASIL, 2020). Dessa forma, torna-se fundamental que todo/toda profissional do
SUAS esteja capacitado/capacitada para identificar e acolher crianças e adolescentes em possível
situação de violência.
4 É importante pontuar que essa revelação espontânea pode ser verbal ou não, devemos considerar a
diversidade de sujeitos e estar atento às formas de comunicação.
5 As equipes de referência das unidades e serviços do SUAS estão previstas na Norma Operacional Básica de
Recursos Humanos do Sistema Único de Assistência Social de 2006. O material se encontra disponível em <http://www.
assistenciasocial.al.gov.br/sala-de-imprensa/arquivos/NOB-RH.pdf> .
6 A descrição das etapas do atendimento está sendo realizada com base em: Lei 13. 431 de 2017; Parâmetros de
Atuação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) no Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente
Vítima ou Testemunha de Violência (BRASIL, 2020); e Escuta de Crianças e Adolescentes em Situação de Violência sexual:
Aspectos Teóricos e Metodológicos (BRASIL, 2017); Parâmetros de Escuta de Crianças e Adolescentes em Situação de
Violência (BRASIL, 2017). 49
• Escuta do livre relato: Nesta etapa do atendimento, há dois caminhos possíveis,
dependendo do/da profissional para quem a criança realizou a revelação espontânea:
Sim → O processo de escuta do livre relato deve ser feito em conjunto por ambos
os/as profissionais (profissional de equipe de referência e profissional que acolheu a
revelação).
Não → O/A profissional que acolheu a revelação espontânea deve escutar o relato e,
posteriormente, acionar a equipe de referência. A comunicação à equipe de referência
deve ser feita conforme o protocolo e fluxo local (BRASIL, 2020).
Observação: Caso a escuta do livre relato tenha sido realizada sem a presença de profissional
da equipe de referência, é necessário que este seja acionado para realizar os encaminhamentos
necessários.
50
SAIBA MAIS: A Lei 13.431 de 2017 em seu Art. 14 prevê a celeridade do atendimento,
especialmente, nos casos de violência sexual. Você sabe o porquê dessa celeridade
do atendimento? Vejamos: A celeridade do atendimento tem como objetivo garantir
que rapidamente sejam tomadas medidas profiláticas e contraceptivas, de modo, a
proteger integralmente essas vítimas. Além disso, conforme orientação expressa em
Portaria GM/MS nº 1.271, de 6 de junho de 2014, a violência sexual deve ser notificada
imediatamente (24 horas) pela Secretaria Municipal de Saúde. Há ainda a questão da
coleta de provas e vestígios.
Veja mais em: BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas
Estratégicas. PREVENÇÃO E TRATAMENTO DOS AGRAVOS RESULTANTES DA VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA MULHERES E
ADOLESCENTES. Brasília: Ministério da Saúde, 2014, 126p. Disponível em: <https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/
prevencao_agravo_violencia_sexual_mulheres_3ed.pdf>. Acesso em: 02 abr. 2021
Observação: Caso todo esse processo não tenha sido realizado no âmbito do CREAS, há
necessidade de encaminhar a criança ou o adolescente em situação de violência e suas famílias
para esse equipamento e, especialmente, para o PAEFI, tendo em vista a competência do CREAS
em atender situações de violação de direitos.
51
REVELAÇÃO ESPONTÂNEA
ACOLHIDA DA O/A PROFISSIONAL DEVE O/A PROFISSIONAL DEVE O/A PROFISSIONAL DEVE
REVELAÇÃO CRIAR UM AMBIENTE DE SE MOSTRAR DISPOSTO A O/A PROFISSIONAL DEVE
CONSULTAR,
ESPONTÂNEA PROTEÇÃO E PRIVACIDADE OUVIR E PASSAR INFORMAR A CRIANÇA OU
SEPARADAMENTE, A
CONFIANÇA ADOLESCENTE E AO SEU
CRIANÇA OU O
RESPONSÁVEL, OS
ADOLESCENTE SE
PROCEDIMENTOS
DESEJAM SER OUVIDOS
FORMAIS QUE SERÃO
DESACOMPANHADOS OU
REALIZADOS
ACOMPANHADOS
O/A PROFISSIONAL
DEVE FAZER APENAS
PERGUNTAS QUE O /A PROFISSIONAL DEVE
O/A PROFISSIONAL DEVE
OBJETIVEM A RESPEITAR O RITMO E
IDENTIFICAR SE O RELATO
CONCLUSÃO DESSA VOCABULÁRIO DA
JÁ FOI FEITO A MAIS
ETAPA DO CRIANÇA OU DO
ALGUÉM
ATENDIMENTO ADOLESCENTE
Fonte: Fluxograma elaborado pelos autores, tendo como referência BRASIL (2017) e BRASIL (2020).
52
Em seguida, Cecília tentou contato com profissionais do Centro de Referência da
Assistência Social (CRAS)7 do território em que Carlos Eduardo reside. Entretanto,
não foi possível acionar a equipe de referência naquele momento. Diante dessa
indisponibilidade, retornou para a conversa com Carlos Eduardo e lhe perguntou se
gostaria de estar acompanhado, por algum adulto de sua confiança, para continuar
a conversa. Carlos Eduardo disse que não, pois sua mãe estava trabalhando e seu
padrasto era muito bravo e ele não queria irritá-lo.
Então, Cecília deixou que ele relatasse livremente a situação vivenciada. O menino
contou que fica sozinho, no período da noite dos finais de semana, quando sua mãe
e seu padrasto saem. Ele fica assistindo televisão e, algumas vezes, sua mãe deixa sua
janta pronta, em outras, não. A profissional perguntou se havia muito tempo que isso
ocorria e ele disse que sim. Cecília também perguntou se ele já havia contado isso a
mais alguém e obteve resposta negativa. Questionou se mais alguma coisa acontecia
que o incomodava e Carlos Eduardo disse que às vezes apanhava do padrasto.
Após o relato, Cecília informou à criança que teria de contar essa situação para uma
outra profissional e que ela teria de tomar algumas atitudes, mas que não era para ele
se preocupar, pois ninguém brigaria com ele. Depois de encerrar a conversa com a
criança, Cecília voltou a ligar no CRAS, onde conseguiu agendar uma conversa com um
profissional da equipe de referência, naquele mesmo dia, e comunicou toda a situação
que lhe foi revelada.
Tendo a profissional da equipe de referência tomado
conhecimento sobre o caso, providenciou um relatório para
o Conselho Tutelar da região. Além disso, realizou uma visita
domiciliar onde constatou outras necessidades da família, como
o acesso do padrasto à rede de atenção psicossocial da saúde.
A partir de então, seguindo o fluxo estabelecido localmente, a
profissional, por meio de relatório, encaminhou o padrasto para
o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) do município e a criança
e família para o Centro de Referência Especializado de Assistência
Social (CREAS), uma vez que a situação se configurava como
violação de direitos e, portanto, necessitava de atuação do serviço
especializado.
2) Revelação de terceiros:
Uma situação de violência envolvendo criança ou adolescente, também pode ser comunicada
à rede socioassistencial por terceiros, como familiares, vizinhos, professores, etc. Neste caso, cabe
ao profissional do SUAS:
53
7 A escolha de Cecília para procurar o CRAS se deve ao fato de que o Serviço de Convivência e Fortalecimento de
Vínculos no qual trabalha é referenciado a essa unidade.
REVELAÇÃO DE TERCEIROS
54
3) Identificação pelo/pela profissional de sinais de violência ou suspeita:
No dia a dia no SUAS, pode acontecer do/da profissional que acompanha determinada criança
ou adolescente suspeitar que possam vivenciar algum episódio de violência. Neste sentido, é
importante destacar que a violência é um fenômeno multidimensional e multifacetado, isto é, se
expressa de diversas formas e abarca diferentes dimensões da vida. Assim, identificar uma situação
de violência requer ter clareza de que se trata de um processo complexo, pois suas manifestações
não são excludentes e nunca ocorrem de forma isolada. Por essa razão, o/a profissional deve levar
em consideração o contexto social e familiar da criança ou do adolescente (BRASIL, 2017).
Embora muitos dos sinais de violência sejam de mais fácil percepção para os/as profissionais
da área da saúde, é necessário que, no cotidiano da rede socioassistencial, os/as trabalhadores/
trabalhadoras estejam atentos/atentas aos menores indícios, tais como:
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Durante o atendimento socioassistencial no Centro de Referência Especializado de
Assistência Social (CREAS), a profissional Neide observou que Felipe, uma criança
de 10 anos, com diagnóstico de Transtorno de Espectro Autista (TEA) e que estava
acompanhando a avó naquele atendimento, apresentava hematomas pelo corpo.
A profissional, então, decidiu acompanhar a família com mais frequência e constatou que
a criança residia com os avós e o pai. No decorrer do processo de acompanhamento, a
profissional observou sinais de violência contra a criança como hematomas frequentes,
comportamento introspectivo e uma dinâmica familiar que indicava risco social, já que
o pai era usuário de drogas ilícitas e apresentava comportamento agressivo, conforme
informado pelos avós da criança. A avó disse, também, que, algumas vezes, “dava umas
palmadas” em Felipe porque perdia a paciência com ele e precisava educá-lo.
A partir dessa situação, a profissional pediu à família para levar Felipe ao CREAS, onde,
após conversar com a criança, realizou o processo de escuta na presença do avô,
conforme o desejo de Felipe. A criança contou que, às vezes, era agredido pela avó
quando demorava a comer, a tomar banho ou se negasse a algo que ela pedisse. Disse,
também, que o pai às vezes chegava estranho em casa e que brigava com ele, às vezes
batendo também.
Diante desses elementos, a profissional decidiu comunicar a situação ao Conselho
Tutelar do território e, por meio de relatório, informou a situação aos demais órgãos
do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente Vítima ou Testemunha
de Violência. Também encaminhou o pai para o serviço de atenção psicossocial e, a
fim de manter o acompanhamento e atendimento da família diante da especificidade
da nova situação levantada, a profissional realizou algumas adequações no Plano de
Atendimento e inseriu a família no Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a
Famílias e Indivíduos (PAEFI). Além disso, conversou com a família sobre a existência de
um grupo formado por familiares de pessoas com TEA, que se reúne, semanalmente,
e debate, junto de uma equipe multidisciplinar de profissionais do município, alguns
assuntos pertinentes a essas realidades familiares.
A situação de violência também pode chegar para o/a profissional do SUAS a partir de algum
encaminhamento de outro/outra profissional da Rede de Proteção. Neste caso, o/a profissional do
SUAS deve:
56
• Identificar se o procedimento de escuta especializada já foi realizado para evitar que a
criança ou o adolescente tenha de repetir o relato. O objetivo é evitar episódios de
revitimização.
• Identificar, seja através do encaminhamento realizado, contato com o/a profissional que
realizou o atendimento ou através de busca de informações com a família, quais são as
necessidades da criança ou do adolescente e seus familiares. Após essa identificação,
dentro das competências da unidade de atendimento e do profissional, buscar responder às
demandas desses sujeitos.
• Verificar se a família da criança ou o adolescente encontra-se incluída no PAEFI. Caso essa
inserção ainda não tenha acontecido deve ser providenciada.
• Realizar acompanhamento socioassistencial dentro da sua competência.
57
A BUSCA INDIRETA DE INFORMAÇÕES
Como vimos no decorrer desse estudo, em algumas situações é necessário
que o/a profissional do SUAS busque por informações complementares a
fim de qualificar o seu atendimento, tendo como objetivo assegurar um
atendimento integral, isto é, que responda às necessidades da criança e/ou do
adolescente em situação de violência e sua família. Com o intuito de prevenir
a revitimização, essa busca é feita de forma indireta, ou seja, não envolve
diretamente a criança ou o adolescente. Geralmente, a conversa ocorre com
familiares, vizinhanças e outras pessoas próximas a esses. Como pode ser feito
esse processo?
A busca indireta de informações pode ser realizada de diversas maneiras, a
depender do instrumental técnico-operativo do/da profissional, por exemplo,
o mesmo pode escolher realizar uma visita domiciliar, convidar as pessoas do
núcleo familiar da criança para uma conversa na entidade ou equipamento
ou realizar uma entrevista social. O/A profissional deve ter autonomia para
escolher os seus instrumentos e técnicas de trabalho, de forma que realize um
atendimento qualificado e resolutivo.
58
Em outras palavras, podemos dizer que acessibilidade é dar atenção às necessidades especiais
de adaptação das crianças e adolescentes com alguma deficiência que implicam em outra forma
de comunicação, seja por restrições de longo prazo, seja de natureza física, mental, intelectual
ou sensorial, ou questão linguística. Isto é, necessita-se garantir a acessibilidade quando essas
condições em interação com uma ou mais barreiras, interferem de forma significativa no direito de
igualdade de crianças e adolescentes.
Art. 1º: Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo
de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com
diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade
em igualdade de condições com as demais pessoas (DECRETO 6. 949 DE 2009).
Com base nesta definição, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146 de
2015) estabelece uma tipologia das deficiências:
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Tipos de Deficiência
Deficiência Física Deficiência Auditiva
Alteração completa ou parcial de um ou Perda bilateral, parcial ou total, de
mais segmentos do corpo humano, quarenta e um decibéis (dB) ou mais,
acarretando o comprometimento da aferida por audiograma nas freqüências
função física, apresentando-se sob a de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz.
forma de paraplegia, paraparesia,
monoplegia, monoparesia, tetraplegia,
tetraparesia, triplegia, triparesia,
hemiplegia, hemiparesia, ostomia,
amputação ou ausência de membro,
paralisia cerebral, nanismo, membros com
deformidade congênita ou adquirida,
exceto as deformidades estéticas e as que
não produzam dificuldades para o
desempenho de funções.
Deficiências Múltiplas
Associação de duas ou mais deficiências.
60
Ainda de acordo com a Lei 12.764/2012, as pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo
são consideradas pessoas com deficiência
As crianças e adolescentes precisam ser orientadas sobre seus direitos e deve ser reconhecida
e valorizada sua fala para romper e enfrentar ciclos de violações de direitos fundamentais.
Em se tratando de crianças e adolescentes com deficiência, a lei é mais sucinta e aborda esse
assunto no Artigo 5º da Lei 13.431/2017:
61
Mas independente de previsão legal ou normativa para crianças e adolescentes com deficiência,
defendemos que o/a profissional capacitado/capacitada que deseja realizar uma Escuta de
qualidade, antes de mais nada, precisa respeitar a faixa etária da pessoa que será ouvida. Isto
significa que, se for uma criança, devemos tratá-la como criança; se for um adolescente, devemos
tratá-lo como adolescente; independente das limitações ou condições de cada um. O respeito e o
bom senso sempre serão as melhores alternativas.
Vejamos, então, algumas dicas que promovem a acessibilidade com a acolhida dessas crianças
e adolescentes a uma Escuta Especializada, lembrando que são sugestões de boas práticas no
trabalho do SUAS.
• Espera-se que o local de atendimento tenha rampas e/ou outras alternativas de acesso
móvel. Esse é o primeiro requisito para receber uma pessoa com deficiência motora.
• Em toda a conversa com criança e adolescente, independente de sua deficiência, procure
sentar-se à sua altura. Esta atitude facilita o contato visual, cria reciprocidade e uma
comunicação afetiva e empática, além de passar ao outro a confiança para expressar o seu
sentimento.
• Se a criança/adolescente estiver na cadeira de rodas, evite apoiar-se ou movimentá-la sem
permissão. Aquele é o espaço dela/e e não deve ser invadido.
• Não tema usar as palavras “correr” ou “caminhar”. As pessoas com deficiência também as
utilizam.
• Se a deficiência não tiver relação com o episódio de violência, evite questionamentos
sobre as causas se a criança/adolescente não der abertura.
• Observe no que aquela deficiência dificultou a defesa da criança e do adolescente diante
da violência denunciada – vale para todas as deficiências
Fonte: Elaboração própria com base em informações contidas em DECRETO Nº 6.949, de 25 de agosto de 2009
62
Criança e/ou adolescente com deficiência auditiva:
• Antes de iniciar a conversa com um deficiente auditivo, procure observar qual tipo de
limitação a pessoa tem e quais intervenções e adaptações serão necessárias: se faz uso
de aparelho auditivo, se será necessário um/uma intérprete de libras ou mesmo o uso de
mímicas, caneta e papel se for alfabetizado.
• Verifique se o seu tom de voz está adequado para a conversa. Evite gritar.
• Procure um lugar com iluminação adequada para facilitar a leitura labial.
• Use frases curtas e de fácil compreensão.
• Fale devagar, mas com naturalidade, articuladamente, sem exageros, movimentando bem
os lábios para facilitar a leitura labial.
• Fale de frente para a pessoa que conversa, mantenha o contato visual, pois se você desviar
o olhar, ela poderá entender que a conversa acabou.
• Se tiver dificuldade para entendê-lo, não tenha receio de pedir que repita.
• Quando o/a surdo/surda estiver acompanhado de intérprete, fale diretamente com a
pessoa surda, não com o/a intérprete.
• Se você souber a Língua Brasileira de Sinais (Libras), utilize-a na conversa, pode facilitar a
comunicação.
• Outra forma de comunicação é por meio da escrita, você pode escrever as perguntas e
estabelecer um diálogo muito proveitoso.
Fonte: Elaboração própria com base em informações contidas em Lobato (2019)
• Ao conversar com pessoas com deficiência visual, haja de forma simples, cumprimente-a
naturalmente e estabeleça um vínculo de confiança.
• Não toque nos braços ou mãos da criança/adolescente como forma de chamar a atenção.
• Você pode usar os termos como “cego”, “ver” e “olhar”. Os/as cegos/cegas também os
utilizam.
63
• Fale mais alto se for solicitado. Lembre-se que a deficiência
em questão é visual, não auditiva.
• Se a criança ou adolescente precisar de ajuda para se
locomover, durante ou após a conversa, pergunte a ela como
você poderá ajudá-la. Não intervenha se sua ajuda não for
solicitada.
Fonte: Elaboração própria com base em informações contidas em BRASIL. MINISTÉRIO
DA ECONOMIA. ESCOLA NACIONAL DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. PROGRAMA DE
INCLUSÃO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA. 2007.)
64
COMO ESTRELAS NA TERRA.
O filme relata a história de uma criança de 9 anos
de idade que sofre de dislexia e que vivencia a
incompreensão dos adultos, dentre eles, seu pai e
professora. Direção de: Aamir Khan. Ìndia, 2007, 165
min. [Classificação livre, não há conteúdo de violência]
Para ilustrar esse tópico, veremos um exemplo de caso concreto que aconteceu em um
atendimento com uma adolescente com deficiência auditiva.
Tainá, (como a chamaremos aqui) era uma adolescente de quinze anos, quando
foi encaminhada para um abrigo após ter sido violentada, supostamente pelo do
padrasto. O hospital que realizou o atendimento fez a denúncia e a adolescente foi
retirada da família biológica e encaminhada para uma família guardiã, mas essa família
também praticava maus-tratos contra ela e, por isso, foi encaminhada para o serviço
de acolhimento institucional.
Tainá tinha deficiência múltipla: auditiva e uma leve deficiência intelectual. Usava
aparelho auditivo, mas não reconhecia nossa linguagem oral, parecia que ouvia apenas
ruídos. Ela fazia leitura labial e os profissionais do serviço de acolhimento tiveram
que aprender a conversar com ela, falar pausadamente e da maneira mais objetiva o
possível. Ela conseguia entender, mas eles não a compreendiam.
Tinham uma percepção do estado emocional dela: quando estava feliz, além do
sorriso, o brilho nos olhos, ela dançava, ela pulava. Por outro lado, quando ela estava
65
nervosa ela gritava, enrijecia os músculos. Muitas vezes ela ficava nervosa porque não
compreendiam o que ela estava dizendo. Sempre se comunicou melhor com os outros
adolescentes e crianças do abrigo que com os adultos.
Durante todo o período que ela ficou no abrigo, a dificuldade sempre existiu. Nunca
conseguiram, de fato, entender a história por completo, porque ficavam sempre sobre
o registro do que as pessoas diziam e, ora ela confirmava algumas coisas, ora ela não
conseguia trazer os detalhes. Ela sofria muito por não conseguir comunicar o que havia
acontecido com ela.
Tempos depois, ela foi para uma escola especializada em trabalhar com pessoas com
deficiência, que tinha linguagem brasileira de sinais (libras). Na escola, ficou mais fácil
para conversar com ela, porque foram aprendendo um pouco com ela a linguagem de
sinais. Ela escrevia um pouco, mas a escrita era muito pontual.
Quem ajudou na comunicação foi o neto da professora de Tainá, que era adolescente
e entendia sobre a linguagem de sinais. Graças a este intermédio, foi possível interagir
melhor com a adolescente e compreender a história que, até então, era contada por
adultos e não pela menina.
A partir da fala da adolescente os profissionais do abrigo conseguiram montar o
quebra-cabeça de sua história, constatar as violências sofridas, ajudá-la na construção
de novos vínculos sociais e familiares e na elaboração de seu projeto de vida, bem
como o sistema de justiça pôde responsabilizar os agressores.
66
O atendimento culturalmente adequado às crianças e
adolescentes de comunidades tradicionais, traz o desafio da
criação de protocolos de atendimentos/escuta especializada
que respeitem algumas práticas da comunidade consideradas
comuns. Sendo assim, a escuta deve ser cuidadosa, pois estão
em evidência, costumes, tradições e modos de vida das pesso-
as. Portanto, a articulação da rede com órgãos indigenistas e
organizações de apoio às comunidades tradicionais é funda-
mental.
Pensando nessas questões, trouxemos um auto-relato de uma assistente social negra, para
exemplificar essas questões:
“Meu nome é Glória, tinha 9 anos e morava com minha mãe, meu pai e meu irmão.
Sempre fui negra, gorda e pobre. Sou bisneta de pai de santo, com muito orgulho,
mas sempre fomos católicos, porque minha mãe achava feio ser “macumbeira”. Tinha
as melhores notas da escola, porém minha mãe era chamada na escola toda semana,
porque eu conversava muito, agitava as aulas e a professora não conseguia trabalhar.
Nas férias, sempre ia para a casa de minha avó, ela mora em uma casa pequena, dentro
de uma fazenda grande e muito bonita. Tínhamos o maior orgulho de viver neste lugar
há quase cinquenta anos. Meu tio dormia todos os dias nesta fazenda para tomar conta,
pois, os donos só iam lá para passar os finais de semana. Na casa de minha avó não era
muito bom: não tinha cama pra todo mundo, não tinha banheiro e a comida boa era
sempre para os filhos dos tios que tinham mais dinheiro. Mesmo assim eu gostava de
ficar lá. Um dia eu fui levar almoço para meu tio na casa da fazenda. Ele ficou muito
feliz e me chamou para buscar cambucá no quintal: eu animei, era tempo da fruta e
estava bem docinha. Ele trouxe um balaio cheio, comemos na frente da televisão, na
sala da casa. De repente a porta e a janela foram fechadas, e, mesmo com a televisão
ligada, tudo ficou calado, as risadas foram trocadas por um jeito diferente de me tocar:
ninguém nunca tinha feito aquilo comigo, eu não sabia o que estava acontecendo.
Tudo estava escuro. Eu senti dor. Eu não me lembro de mais nada. Eu dormi. Quando
acordei ele me pediu para não contar a ninguém, pois eu levaria uma surra muito
grande da minha mãe. Eu sabia que não estava certo, que tinha feito algo muito feio.
Dois dias depois aconteceu novamente e, até hoje, eu me lembro com clareza de cada
detalhe: meu irmão gritando fora do quarto, lá dentro, uma lágrima de dor descia
no meu rosto. Foi aí que eu calei: tinha medo de voltar à minha avó. Fiquei quieta na
escola. Na igreja, buscava salvação. Tinha medo até do meu pai. Alguns anos passaram
e nunca disse a ninguém o que aconteceu comigo naquelas tardes. Conversando com
duas primas, me disseram que aconteceu a mesma coisa com elas e que havia suspeita
de uma quarta adolescente. Pelo bem da família, todas calamos. Hoje fui procurada
para escutar uma sobrinha: um tio havia abusado dela e ela queria denunciar o caso. Há
dez anos, fizemos a denúncia ao Ministério Público. Fizemos terapia, quando adultas,
para falar o que aconteceu naquela roça. Até hoje a televisão está ligada e meus “tios”
esperam uma sobremesa depois do almoço.”
68
Independente da diversidade e das necessidades do público atendido, lembre-se: para
possibilitar a construção de uma relação de confiança entre técnicos e usuários, deve haver espaço
para troca de ideias, informações e manifestação de vontades. Por maior que seja a diferença,
lembre-se de que cada pessoa merece ser tratada com respeito e empatia.
Por entendermos que os locais onde se realizam os atendimentos são carregados de valores que
podem interferir nas respostas das vítimas ou testemunhas de violência, a criação de um espaço
de narrativa pode acentuar e até mesmo diminuir as tensões oriundas da situação de violência, ao
propiciar uma narrativa dos fatos de forma espontânea e criativa (LEITE, 2008). E como podemos
constituir um ambiente adequado em nosso local de atendimento?
O primeiro passo será disponibilizar um local para realização dos atendimentos que seja
acolhedor e acessível. Pode ser uma sala, com decoração e elementos que deixem a criança ou
o adolescente à vontade e seguros para expressar suas ideias. Por exemplo, pode-se decorar as
paredes com imagens de paisagens e de animais tranquilos; dispor uma mesa e cadeira confortáveis
com papel, lápis de cor e caneta, caso queiram se expressar por desenhos ou escrita; brinquedos;
livros, revistas; música suave. Se o entrevistado/entrevistada for deficiente visual, pode incluir
material em braile; se for deficiente auditivo deve ter um profissional capacitado em libras, e assim
por diante.
69
Um exemplo prático pode ser tomado da ação coordenada pela Prefeitura Municipal de
Guamaré, no Rio Grande do Norte. Por meio de sua Secretaria de Assistência Social, em parceria
com o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, a Prefeitura de Guamaré
investiu na capacitação dos profissionais envolvidos na Rede de Proteção e inscreveu uma proposta
de atendimento em um programa patrocinado por empresa privada, em 2018. Com os recursos
disponibilizados em 2019 e 2020, investiram em um Complexo de Proteção Social Especial, que
abrigará programas e serviços da Proteção Social Especial do SUAS. Este Complexo terá, entre
outros espaços de atendimento, uma sala exclusiva para Escuta Especializada, idealizada para
acolher crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.
O projeto desta sala, criado pela Prefeitura de Guamaré, não só atende os requisitos da lei
como, esteticamente, configura um local ideal para realização de atendimentos com crianças e
adolescentes. Mas sabemos que este exemplo, em muitos locais, é uma utopia, pois na imensidão
do Brasil encontramos realidades que são bem distintas do que é idealizado. Até porque, a
orientação da Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais é sobre a oferta de serviços para
todas as situações de violência e para todas as faixas etárias, não há orientação para unidades de
CREAS específicos para crianças e adolescentes. Sabemos, também, que em muitas localidades, os
órgãos e profissionais do SUAS dispõem do básico para realização de suas atividades.
Além disso, como estruturar esse espaço ideal se, é muito comum, as realidades regionais
exigem que o/a profissional se desloque, com frequência, para realizar seu trabalho? Como pensar
em uma sala decorada, acolhedora, quando o/a profissional do SUAS realiza atendimentos em
aldeias indígenas, em comunidades quilombolas, em acampamentos ciganos? São ambientes
culturalmente importantes para essas comunidades e que merecem a nossa atenção.
A assistente social, que aqui chamaremos de Heloísa, foi solicitada pelo Conselho
Tutelar para atender a uma menina cigana, de 08 anos, que havia presenciado uma
agressão com golpes de faca. O grupo de ciganos seminômades demonstrava
desconfiança pelas pessoas que viviam fora de sua comunidade. Heloisa, então, foi ao
acampamento e dirigiu-se à tenda da família para tentar conversar com a garotinha,
mas percebeu que a menina estava constrangida até para falar o seu nome no meio
de tantas pessoas. Então, a assistente social solicitou autorização dos pais e pediu à
menina que a levasse ao local do acampamento que ela mais gostava de brincar. Lá
chegando, elas se sentaram ao ar livre e Heloisa lhe ensinou a brincar de jogo da velha
e adedanha. Em meio às brincadeiras e ao clima de descontração, a assistente social
conseguiu que a menina adquirisse confiança e lhe falasse das suas necessidades e
anseios, como se lhe contasse uma história.
70
Neste caso, a assistente social teve a sensibilidade de criar um espaço de atendimento a partir
da rotina e da cultura daquela criança. Porém, sabemos que o/a profissional do SUAS nem sempre
tem o tempo necessário para se preparar para um atendimento dessa natureza, pois os relatos
podem surgir de forma livre e espontânea ao longo de um atendimento ou acompanhamento.
Lembram da revelação espontânea e do livre relato? Eles podem ocorrer em diferentes contextos,
no órgão de atendimento, em comunidades especiais, na escola ou em domicílio, e o/a profissional
deve estar capacitado/capacitada para reconhecer a situação de violência e oferecer acolhida à
criança ou ao adolescente naquele momento. Acompanhe um outro exemplo, envolvendo um
caso de revelação espontânea.
Esse tipo de situação é muito comum no dia a dia dos/das profissionais que atuam no
SUAS e, como vimos nos dois exemplos, o/a profissional deve estar capacitado/capacitada
para agir repentinamente e com sensibilidade para a realização da Escuta Especializada. Assim,
reconhecemos que ter um local específico para a realização dos atendimentos é o ideal, mas nem
sempre é o mais importante. O fundamental é que o/a profissional esteja preparado/preparada e
atento/atenta para criar um ambiente acolhedor onde quer que esteja realizando o atendimento.
71
2.5 BOAS PRÁTICAS PARA REALIZAÇÃO DA ESCUTA ESPECIALIZADA
Agora que já sabemos o que é uma Escuta Especializada e conhecemos como ela pode
ser realizada no âmbito do SUAS por um/uma agente de proteção9, vamos aprender que o/a
profissional poderá utilizar, em cada um dos casos que lhe será apresentado, técnicas apropriadas
para a dinâmica do atendimento, que pode utilizar-se de entrevista.
Primeiramente, precisamos entender que todo atendimento tem uma finalidade. No caso da
Escuta Especializada, como já estudamos, o objetivo principal é o cuidado e a proteção e não a
coleta de provas. Para tanto, o/a profissional que realizará o atendimento deverá ser capacitado/
capacitada para a escuta, pois é um procedimento que deve ser feito com respeito, ética e cuidado
para não revitimizar a criança ou adolescente.
Para que a Escuta Especializada cumpra com essa finalidade, é fundamental que o/a profissional
conheça a criança ou o adolescente que entrevistará e este processo de conhecimento se dá a partir
de duas maneiras: quando se conhece a situação da criança/adolescente a partir do relato feito
pelos adultos e quando se conhece a situação a partir do relato da própria criança/adolescente.
No primeiro caso, quando o/a profissional toma conhecimento da situação por terceiros, ele/ela
deverá contextualizar a escuta conversando com as pessoas envolvidas e buscando informações
mais precisas, antes de conversar com a criança ou com o adolescente.
Mas quando se toma conhecimento de uma situação a partir do próprio relato da criança
ou do adolescente, é fundamental que o/a profissional compreenda o universo da criança ou
adolescente, o lugar de onde parte essa narrativa.
Mas essa não é uma tarefa fácil. Para se ter uma ideia, Jean Piaget dedicou anos de suas
pesquisas para compreender melhor como uma criança representa seu pensamento, como ela
interage com o meio e como representa o mundo. Piaget acreditava que a criança tem seus
próprios padrões de pensamento e que a construção do pensamento vai evoluindo à maneira
que tem contato com o mundo:
72
É importante salientar que Piaget defendeu que a criança, e aqui estendemos a análise para
os adolescentes também, passa por estágios ou fases de desenvolvimento nos quais se constrói
o conhecimento. A compreensão do mundo e a construção da linguagem não é, portanto, algo
estático ou automático, mas que evolui gradativamente.
Isto significa que as crianças e os adolescentes têm sua própria forma de pensar, que é diferente
do adulto. O pensamento cognitivo evolui segundo a interação com o ambiente e ocorre de
acordo com a fase do seu desenvolvimento. Por isso, algumas normativas chamam a atenção para
o/a profissional levar em consideração o estágio de desenvolvimento de seu/sua entrevistado/
entrevistada.
73
• Estágio operatório concreto (dos 7 aos 11 anos), estágio
marcado pela formação de conceitos pela criança. Nesta fase, a
criança coopera, compreende o ponto de vista de outra pessoa e
começa a buscar solução de problemas concretos com operações
intelectuais, abstraindo dados da realidade. O pensamento sai das
intuições e passa para a lógica das operações.
Ao entrevistar uma criança com idade entre 2 e 4 anos, é preciso entender que ela ainda não
tem a linguagem completamente desenvolvida, pois, neste estágio, ela se comunica melhor
por meio de sua capacidade simbólica, substituindo um objeto ou acontecimento por alguma
representação (BARRETO, 2001, p. 15). Ao entrevistar crianças tão novas, o/a profissional, então,
deve estar atento para as representações
Neste exemplo, podemos entender que a linguagem e os símbolos utilizados não condizem
com a estrutura do pensamento adulto, pois a criança ainda está centrada em si, e “é comum que
ela se tome como referência e transfira para objetos e/ou pessoas seus próprios pensamentos e
sentimentos” (CASTRO 2019, p.63). Na escuta com crianças nesse estágio da vida, é necessário,
então, uma interpretação adequada para não correr o risco de tornar inválida a fala da criança.
74
Vejamos um outro exemplo que Lordello (2020) nos dá:
Neste exemplo, podemos observar que o discurso infantil ora parte da realidade vivida pela
criança, ora é fruto da imaginação.
75
Cabe, então, ao/à profissional, agente de proteção, adequar a linguagem, ficar atento às
perguntas que fará e também às respostas recebidas; considerar a faixa etária da criança ou
adolescente, entendendo que: “o estágio em que o sujeito se encontra é uma possibilidade de
resposta, e não garantia de resposta, pois o conteúdo é uma variante” (SOARES, 2012, p. 96).
SAIBA MAIS:
Os serviços de assistência social podem abordar a prevenção da violência sexual
com orientações para pais, mães, responsáveis para compreenderem conceitos
básicos sobre o corpo, sentimentos, convivência e trocas afetivas, de forma a orientar
suas crianças/ adolescentes para que possam diferenciar toques de amor de toques
abusivos, apontando caminhos para o diálogo e a proteção, pois um fator de proteção
essencial para crianças e adolescentes é que as pessoas em quem confiam lhes dêem
credibilidade, dando importância para o que a criança/adolescente expressa, seja
por meio da fala, ou de sinais e atitudes. Reforçar a importância de supervisionar as
brincadeiras e os momentos de convivência (especialmente quando envolvem crianças
de idades diferentes), para evitar brincadeiras inadequadas.
No enfrentamento à violência sexual, várias devem ser as estratégias preventivas
adotadas. A educação sexual, desde a mais tenra idade, é uma possibilidade
relevante de prevenir a violência e proteger nossas crianças e adolescentes. Para
compreendermos melhor, sugerimos que assistam três séries educativas do Projeto
“Crescer sem violência” criado pelo Canal Futura em parceria com a UNICEF: Que abuso
é esse? Que exploração é essa? Que corpo é esse? E ainda o livro direcionado para
crianças: Pipo e Fifi, que incentiva as famílias a conhecerem também.
2.5.1 A entrevista:
Agora que estamos mais familiarizados com as fases do desenvolvimento e da construção
da linguagem, vamos partir para a entrevista. Antes, porém, é necessário lembrar que a Lei
13.431/2017 deixa a critério dos órgãos de proteção como e quais profissionais realizarão a escuta
especializada, podendo fazer uso de entrevista. Isto significa que apresentaremos uma sugestão
para o atendimento, sendo que o/a profissional pode e deve adaptá-la à sua realidade laboral.
Neste sentido, nossa primeira sugestão é que, se o/a profissional já estiver ciente de que
realizará uma Escuta Especializada, construa um protocolo de entrevista no qual ele tenha certa
flexibilidade durante sua execução, pois um protocolo de entrevista não é uma receita de bolo, é
uma proposta que deve ser reinventada a cada atendimento.
Alguns aspectos, no entanto, podem ser empregados para qualquer entrevistado, de qualquer
faixa etária. Sendo assim, tenha sempre em mente que:
76
• Se for possível, o ambiente deve ser tranquilo e acolhedor.
• Explique ao/à entrevistado/entrevistada que você poderá fazer algumas anotações, mas
que se ele/ela não se sentir bem, você deixará de anotar.
• Não ofereça prêmios ou gratificações. Lembre-se que a criança/adolescente não deve se
sentir obrigado a relatar.
• Busque trazer o cotidiano da criança/adolescente para a conversa. Isso faz com que ele/ela
se sinta mais acolhido.
• Quando a criança/adolescente sentir-se confortável, peça a ele/ela para contar sobre sua
vida, sobre a escola, seus amigos, sua família.
• Faça perguntas simples e objetivas. Muitas vezes as perguntas indiretas confundem o
entrevistado e atrapalham o fluxo de memória.
• Traga elementos que facilitem a conversa, como: hum hum...entendi. Você pode me falar
mais sobre este assunto?
• Dê pausas, respeite os silêncios. O não dito também é informação.
• Procure estar atento/atenta ao relato e absorva o máximo de informações.
• Busque compreender o sentido construído pelo/pela entrevistado/entrevistada, evitando
fazer com que ele/ela repita a informação desnecessariamente.
• Seja solidário/solidária na escuta: valorize os sentimentos da criança/adolescente, mas
mantenha a neutralidade.
• Ao término da conversa, se for necessário realizar encaminhamentos ou, se forem
identificados riscos, informe à criança de que você precisa protegê-la, para isto, será
necessário comunicar outras pessoas da rede de proteção, para que seus direitos sejam
assegurados.
• Finalize o atendimento, agradecendo a partilha da criança/adolescente.
A seguir, trouxemos um roteiro com perguntas que podem ser realizadas, mas destacamos
que é apenas uma sugestão para que você possa construir o seu próprio instrumento. Lembre-se
que, durante a Escuta, você pode mudar o caminho das perguntas e, se sentir necessidade, poderá
dividir suas perguntas para um outro momento.
77
Sugestão de perguntas que podem ser feitas para crianças e adolescentes com o objetivo de conhecer mais sobre as
rotinas, cuidados que recebe, recursos que a família dispõe, entre outros.
Introdução: Olá, tudo bem com você? Eu me chamo XXX e estou aqui para acompanhar você. Tenho algumas perguntas
para te fazer e não existe resposta certa ou errada. Você vai responder da forma que você achar melhor, tá bom? E se não
quiser responder alguma pergunta não tem problema. E se quiser parar um pouco é só me falar. Podemos começar?
E no almoço?
O que você gosta de comer no café da manhã? Você come o que a noite?
Você toma café todos os dias?
Quais?
Você tem algum dever dentro de casa?
E quando você não faz, o que acontece?
78
Tem mais alguma coisa que você queira falar?
Fonte: Elaboração própria.
2.6 ENCAMINHAMENTO: O COMPARTILHAMENTO DE INFORMAÇÕES COM A REDE DE
ATENDIMENTO E PROTEÇÃO
Contudo, é importante lembrar que a criança e o adolescente possuem o direito de ter sua
intimidade preservada (Lei 13.431/2017, Art. 5, inciso III) e, portanto, o atendimento a esses
sujeitos é naturalmente revestido de confidencialidade (DIGIÁCOMO; DIGIÁCOMO, 2018). É certo
que o compartilhamento de dados entre os órgãos é fundamental, mas tal procedimento deve ser
realizado de forma a garantir, por um lado, a confidencialidade do atendimento, a privacidade e a
intimidade dos sujeitos; e por outro, a intersetorialidade e a integralidade do atendimento.
Neste sentido, cabe ao poder público, gestores das instituições e dos serviços, programas
e projetos que atendem crianças e adolescentes em situação de violência e aos profissionais
envolvidos, criar mecanismos e estratégias que possibilitem a troca de informações relevantes ao
atendimento entre os órgãos do sistema de garantia de direitos (SGD). Ao mesmo tempo, devem
se certificar que somente a Rede de Proteção tenha acesso aos eventos compartilhados, sendo
recomendável a criação de espaços intersetoriais que permita discutir os casos (BRASIL, 2017).
79
equipamento e/ou instituição socioassistencial ou serviço assuma a corresponsabilidade na
relação com a rede, isto é, assuma a responsabilidade do atendimento junto ao/à profissional que
está diretamente realizando o acompanhamento da criança ou adolescente e sua família. Nessa
direção, é orientado que os relatórios de compartilhamento de informação sejam assinados por
ambos profissionais (BRASIL, 2020).
É fundamental mencionar que o/a profissional não tem a obrigação de compartilhar seus
registros e anotações de cunho pessoal, acerca do atendimento, ou qualquer informação de
ordem particular dos atendidos que não tenha relevância para a obtenção da proteção integral.
Para finalizar, ressaltamos que não há uma receita pronta de como realizar o compartilhamento
de informações no âmbito da rede de proteção, pois cada território estabelece os seus protocolos
e fluxos específicos. No entanto, há princípios, conforme abordado no decorrer dessa discussão,
que direcionam essa ação, visando assegurar um atendimento confiável e resolutivo. Além disso,
a troca de informações entre os órgãos protetivos caracteriza-se como importante instrumento na
prevenção da revitimização e, portanto, da violência institucional, já que evita a contínua exposição
da vítima ou testemunha. Desta maneira, torna-se pressuposto o atendimento qualificado em
termos da legislação.
80
REFERÊNCIAS E
SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS
NORMAS:
BRASIL. LEI Nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012. Institui a Política Nacional de Proteção dos
Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista; e altera o § 3º do art. 98 da Lei nº 8.112,
de 11 de dezembro de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2012/lei/l12764.htm>. Acesso em: 21 fev. 2021.
81
York, em 30 de março de 2007. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2009/decreto/d6949.htm>. Acesso em: 21 fev. 2021.
BRASIL. LEI Nº 13.146, de 06 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com
Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm>. Acesso em: 21 fev. 2021.
BRASIL. LEI Nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012. Institui a Política Nacional de Proteção dos
Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista; e altera o § 3º do art. 98 da Lei nº 8.112, de
11 de dezembro de 1990. Diário Oficial da União de 28 de dezembro de 2012 [online]. Disponível
em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12764.htm >. Acesso em: 20
fev. 2021.
LIVROS E ARTIGOS:
82
al.gov.br/acervo/protecao-social-especial-media-complexidade/creas-paefi/Perguntas%20e%20
Respostas%20creas.pdf/view?searchterm=>. Acesso em: 21 fev. 2021.
BRASIL. MINISTÉRIO DOS DIREITOS HUMANOS. Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente. Comissão Intersetorial de Enfrentamento à Violência Sexual. PARÂMETROS DE
ESCUTA de crianças e adolescentes em situação de violência. Brasília: MDH/SNDCA, 2017. 48
p. Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt-br/centrais-de-conteudo/crianca-e-adolescente/
parametros-de-escuta-de-criancas-e-adolescentes-em-situacao-de-violencia.pdf/view>. Acesso
em 21 fev. 2021.
BARROS, Ana Cláudia Mamede Wiering de.; DESLANDES, Suely Ferreira.; BASTOS, Olga Maria. A
violência familiar e a criança e o adolescente com deficiências. Cadernos de Saúde Pública,
Rio de Janeiro, 32(6), jun, 2016. Disponível em: < https://doi.org/10.1590/0102-311X00090415 >.
Acesso em: 22 fev. 2021.
CASTRO, Claudia Gomes, M.Sc., Universidade Federal de Viçosa, outubro de 2019. Aprisionamento
parental: representações de família e punibilidade por crianças e adolescentes filhos de detentos.
Orientadora: Maria de Lourdes Mattos Barreto. Coorientador: Fernando Laércio Alves da Silva.
CESARINO, Rita de Cassia, M.Sc., Universidade Federal de Viçosa, agosto de 2019. Representações
de crianças e adolescentes participantes de um projeto social sobre consumo. Orientadora:
Maria de Lourdes Mattos Barreto. Coorientadores: Rennan Lanna Martins Mafra e Lilian Perdigão
Caixeta Reis.
83
DOMINGUES, Cristiane Lumertz Klein. A importância da imaginação na educação. ANALECTA,
Guarapuava, 11(10), 2010. Disponível em: < https://revistas.unicentro.br/index.php/analecta/
article/view/2714>. Acesso em: 23 fev. 2021.
LEITE, M. I. Espaços de narrativa – onde o eu e o outro marcam encontro. IN: CRUZ, S. H. V. (orgs.). A
Criança Fala: A escuta de crianças em pesquisas. São Paulo, Cortez, 2008, p. 118-140.
ROMEU, Ana Paula Souza.; ELIAS, Ângela de Nazaré Santana; SILVA, Edson Gonçalves. A atenção
a crianças e a adolescentes vítimas de violência sexual nos Centros de Referência Especializados
de Assistência Social (Creas). In: SANTOS, Benedito Rodrigues, et al. (Org.). Escuta de crianças e
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capacitação em depoimento especial de crianças e adolescentes. Brasília-DF: EdUCB, 2014, 348p.
PILLAR, Anallice Dultra. Desenho e escrita como sistemas de representação. Porto Alegre:
Penso, 2012.
SOARES, Olga Maria de Araújo, M. Sc., Universidade Federal de Viçosa, junho de 2012. Representação
de crianças e adolescentes sobre a inclusão escolar. Orientadora: Maria de Lourdes Mattos Barreto.
SITES:
84
Apresentação e Guia
de Estudos do Módulo 3
Neste módulo, vamos conhecer quais são as diretrizes que orientam as políticas de atendimento
integradas e as medidas de proteção à criança e ao adolescente vítima ou testemunha de violência,
trazendo uma abordagem focada na atuação do SUAS.
Dessa forma, dedicaremos uma atenção especial no papel do SUAS na rede de atendimento e
proteção de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.
Bons estudos!
85
Aula 1
As políticas de
atendimento
integradas e as
medidas de proteção
1.1 AS DIRETRIZES GERAIS QUE ORIENTAM A ATUAÇÃO DO SUAS NO SISTEMA DE
GARANTIA DE DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE VÍTIMA OU TESTEMUNHA DE
VIOLÊNCIA
Como já estudamos ao longo dos Módulos I e II, o atendimento às crianças e adolescentes em
situação de violência, sejam eles vítimas ou testemunhas, deve ser realizado de forma articulada e
condizente a um conjunto de políticas públicas que são, em grande parte, executadas em âmbito
municipal. Isto significa que o município é o ente federativo competente para mobilizar, organizar
e articular um vasto conjunto de unidades que envolvem os sistemas de justiça, de segurança
pública, de assistência social, de educação e de saúde, apropriado à realidade de cada território.
Nesse sentido, a forma como o atendimento é realizado varia de acordo com a situação de
cada município, conforme suas potencialidades e limitações. Entretanto, há normativas gerais que
estabelecem e orientam as ações dos variados sistemas. Ou seja, embora não haja um modelo único
e uniformizado de atendimento no Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente
Vítima ou Testemunha de Violência, existem diretrizes que norteiam a atuação do Sistema Único
de Assistência Social (SUAS) e dos demais sistemas que integram a rede de atendimento à criança
e ao adolescente em situação de violência. Vamos conhecer, a seguir, oito dessas diretrizes que são
aplicáveis a qualquer órgão ou equipamento do SGDCA por força da Lei 13.431/2017:
86
I - Abrangência e Integralidade
• A situação de violência que envolve crianças e adolescentes é complexa, uma vez que se dá
por diversas razões, com variadas formas de manifestações e abrange uma multiplicidade
de aspectos. Então, é fundamental que todos os/as agentes corresponsáveis pelo
atendimento saibam como atuar no caso a fim de garantir um atendimento qualificado e
evitar a violência institucional e/ou revitimização. Por isso a importância do/da profissional
ter acesso à oportunidade de estar sempre se capacitando e se atualizando.
• Cada serviço deve realizar articulação com demais serviços, a fim de facilitar o
encaminhamento das famílias, informando o local correto para onde devem se deslocar e
demais informações necessárias para possibilitar o atendimento que o indivíduo necessita.
Importante também monitorar ou acompanhar os encaminhamentos realizados,
identificando a efetividade do encaminhamento e possibilitando identificar dificuldades e
alinhar compromissos. Isso evita que as pessoas se desloquem para vários lugares, sem, no
entanto, conseguir atendimento.
87
V - Celeridade do atendimento
• O atendimento deve ser realizado de forma imediata, se for após a revelação da situação
de violência, ou o mais rápido possível. O Poder público deve considerar as estatísticas
que apontam que grande parte da violência cometida contra crianças e adolescentes
ocorre no período noturno, finais de semana e feriado, ou seja, quando parte considerável
das unidades de atendimento estão fechadas. Logo, se faz necessário traçar estratégias
que proporcionem o atendimento rápido pelas unidades que possuem atendimento em
regime de plantão, com devidos encaminhamentos para demais serviços necessários,
assim que possível.
• Essa prioridade deve ser dada, inclusive em ações preventivas. A prevenção pode ser
realizada, dentre outras ações, por meio de campanhas de conscientização e orientação
de cunho coletivo ou, através de ações específicas junto às famílias, sobre à violação dos
direitos das crianças e adolescentes.
• É preciso que todas as intervenções a serem efetuadas sejam justificadas sob o ponto de
vista técnico, evitando-se aquelas de cunho meramente formal e burocrático.
• É essencial que o Poder Público crie mecanismos que possibilitem uma contínua avaliação
do atendimento que vem sendo realizado a fim de analisar a qualidade e eficiência das
ações implementadas, seja por meio de auto-avaliação dos serviços, ou criar formas de
avaliação pelos usuários nos serviços e ainda o exercício do controle social e participação
nos conselhos de direitos e comissões.
88
• A avaliação deve ocorrer tanto no espaço individual quanto coletivo. Logo, cada
profissional, unidade de atendimento e órgãos responsáveis devem avaliar a efetiva
realização, qualidade e eficácia do seu atendimento (Ministério Público, Conselho Tutelar,
Poder Judiciário, CMDCA e gestor de cada política) a fim de aperfeiçoar a política pública e,
portanto, o atendimento (Lei 13. 431 de 2017 e de DIGIÁCOMO; DIGIÁCOMO, 2018).
Essas diretrizes determinam e orientam tanto a gestão do SUAS, nos três entes federativos,
quanto os/as profissionais que realizam o atendimento e acompanhamento da população dentro
de suas competências. Conhecendo-as, delimita-se aquilo que cabe ao SUAS realizar, contribuindo
para a garantia do atendimento integral, eficaz e de qualidade. Este tema será abordado com mais
detalhes em nossa próxima aula.
Após estudarmos sobre as diretrizes gerais que orientam o SUAS e demais atores do SGD, é
hora de conhecer as medidas de proteção e assistência que nortearão ações no cuidado à criança
e ao adolescente vítimas ou testemunhas de violência.
89
Mas afinal, o que entendemos por medidas de proteção e assistência?
São mecanismos legais que visam o atendimento imediato nos casos de ameaça ou
violação dos direitos humanos de crianças e adolescentes a fim de cessar o risco,
proteger e garantir a efetivação dos direitos.
Com base nesta definição, vamos elucidar sobre as medidas de proteção e assistência às
crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência que estão expressas, implícita ou
explicitamente, nos dois principais instrumentos jurídicos dessa categoria: O Estatuto da Criança e
do Adolescente e a Lei 13.431/2027.
Em consonância com essa assertiva, podemos ver que o artigo 4º do ECA dialoga com o artigo
227 da Constituição Federal de 1988, que estudamos no módulo 1, quando preceitua:
90
Neste sentido, o ECA prescreve as Medidas Protetivas que embasam algumas ações,
dividindo-as em duas partes. O primeiro conjunto de medidas se encontra no Artigo 101 e diz
respeito à atenção à criança e ao adolescente com foco no cuidado da família, na criação de
políticas públicas e de inclusão de projetos e programas que visam o fortalecimento dos vínculos
familiares e comunitários. Entendemos que essas medidas podem ser aplicadas de forma isolada
ou cumulativamente e, dependendo da demanda, podem ser substituídas se forem observadas
todas as formalidades e protocolos. Ademais, os incisos deste artigo nos reforçam a importância
da permanência da criança na família de origem, apontando o acolhimento em abrigo ou família
substituta como medidas excepcionais e provisórias que devem ser tomadas quando esgotarem
todas alternativas e possibilidades de proteção.
O segundo conjunto de medidas protetivas está previsto no Artigo 129 do ECA e é destinado aos
pais e/ou responsáveis, tendo por objetivo dar atendimento não só à vítima de maus-tratos, mas,
sempre que possível, ao/à agressor/agressora. Dessa forma, não se trata de aspectos punitivos,
mas, sim, de possibilitar a reeducação, socialização e orientação para a família desenvolver uma
convivência mais harmônica e saudável. A finalidade é, então, uma proteção ancorada na ideia
de se manter as crianças em seu ambiente familiar, evitando a reincidência da agressão ou a
transferência das crianças para abrigos ou família substituta (BRASIL, 2002, p.169).
Ilustramos, a seguir, a aplicação dessas medidas protetivas com uma narrativa de um caso real.
91
• O padrasto e a mãe foram denunciados ao Ministério Público para tomar as devidas
providências. O padrasto perdeu a guarda dos filhos e aguarda, em liberdade,
julgamento por tráfico de drogas e homicídio. A mãe foi encaminhada para uma
instituição para tratamento, porém fugiu e continua nas ruas usando drogas.
• Os vizinhos obtiveram a guarda das crianças menores e estão em acompanhamento
pelo PAIF e as crianças são atendidas pelo SCFV;
• Laura e Sofia foram acompanhadas pela Saúde e, depois, o pai biológico, que mora
em outro município, assumiu a guarda e a família passou a ser acompanhada pelo
PAEFI da cidade.
• A irmã mais velha foi morar com uma tia materna.
O caso de Laura e Sofia é um exemplo de aplicação das medidas protetivas estabelecidas pelo
ECA. Nesta demanda, foram considerados diversos fatores na tomada de decisão: o conhecimento
do serviço sobre a as potencialidades e vulnerabilidades e riscos vividos pela família; o acesso a
benefícios e auxílios; os relatos dos moradores; os vínculos das crianças, tanto com o pai biológico,
quanto com os vizinhos. Vimos que as crianças foram distanciadas dos/das agressores/agressoras
sem perder o direito de conviver com as pessoas pelas quais tinham afeto e se sentiam protegidas.
Consideramos importante ressaltar, nesta abordagem, a participação da rede de proteção aqui
mencionada: o CRAS, Conselho Tutelar, o Ministério Público, uma entidade socioassistencial e o
CREAS. Graças à articulação destes atores foi possível aplicar as medidas protetivas para o cuidado
das crianças.
92
I - elaboração de plano individual e familiar de atendimento, valorizando a participação
da criança e do adolescente e, sempre que possível, a preservação dos vínculos
familiares;
II - atenção à vulnerabilidade indireta dos demais membros da família decorrente da
situação de violência, e solicitação, quando necessário, aos órgãos competentes, de
inclusão da vítima ou testemunha e de suas famílias nas políticas, programas e serviços
existentes;
III - avaliação e atenção às situações de intimidação, ameaça, constrangimento ou
discriminação decorrentes da vitimização, inclusive durante o trâmite do processo
judicial, as quais deverão ser comunicadas imediatamente à autoridade judicial para
tomada de providências; e
IV - representação ao Ministério Público, nos casos de falta de responsável legal com
capacidade protetiva em razão da situação de violência, para colocação da criança ou
do adolescente sob os cuidados da família extensa, de família substituta ou de serviço
de acolhimento familiar ou, em sua falta, institucional.
Fonte: Lei 13.431 de 2017.
Já o Decreto 9.603/2018 dedicou toda a Seção I, Capítulo II, ao Sistema de Garantias de Direito,
compreendendo os artigos 7º ao 18. Como já mencionado outras vezes no decorrer do curso,
o Decreto 9.603/2018 complementa a Lei 13.431/2027 e, consequentemente, o Estatuto da
Criança e do Adolescente, especificando medidas protetivas às crianças e adolescentes vítimas ou
testemunhas de violência. A fim de evitar que o conteúdo fique exaustivo e com longas citações
literais, destacamos, sucintamente, os temas abordados nesses artigos nos tópicos seguintes:
93
tradicionais, incluindo a necessidade de interação com a FUNAI quando se
tratar de grupos indígenas.
A seguir, traremos um exemplo, de caso real, que mostra como as medidas de proteção são
necessárias e como foram aplicadas.
Kely é uma pré-adolescente que é atendida junto com dois irmãos mais novos no
Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos. O pai de Kely é falecido e ela mora
com a mãe em um conjunto habitacional. Certo dia, chegou na instituição com uma
marca da sola de uma sandália no rosto. O fato chamou muita atenção dos profissionais
e dos outros adolescentes. Conversando com Kely, ela relatou que havia apanhado
da mãe, naquela manhã, por se negar a cuidar dos irmãos mais novos. Disse, ainda,
que sua mãe estava alcoolizada naquele dia e que achava que também estava usando
"porcarias" (entorpecentes). Além disso, vizinhos da Kely disseram que escutaram
muitos gritos durante a madrugada, vindos da casa, e que havia presença de muitos
homens. Após ouvir os relatos, o Conselho Tutelar foi acionado e este acionou a Polícia
Militar. Kely foi para a casa de uma madrinha e os dois irmãos para o abrigo. A mãe
perdeu a guarda das crianças. O processo da família seguiu por dois dolorosos anos
até que as crianças e Kely fossem ouvidas: Kely não gostava da madrinha e tinha afeto
por uma tia materna que também gostava dela e dos irmãos. Após serem ouvidas, as
crianças foram retiradas do abrigo e Kely da casa da madrinha. Hoje, os três irmãos
moram com a tia. A mãe é acompanhada pelo Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e
presta serviços na Secretaria de Assistência Social do Município onde é acompanhada
para construção da autonomia e estabelecimento dos vínculos afetivos com os filhos.
Ela ainda precisa de apoio e, por isso, a família extensa foi mobilizada para auxiliar no
cuidado com ela. O PAEFI acompanha a família e as crianças participam do SCFV. Os
vínculos sociais e familiares estão se fortalecendo e a convivência é afetuosa e tranquila,
mas com a ampliação do número membros e apenas um provedor com renda fixa, a
família está recendo benefícios eventuais e benefício de transferência de renda.
Duas questões que gostaríamos de pontuar neste atendimento: o primeiro foi o fato de
escutarem as crianças somente dois anos após os eventos de violência. Quanto sofrimento
poderia ter sido evitado se a fala da criança fosse considerada desde o início dos procedimentos.
Precisamos considerar que, naquele momento, a criança/adolescente não é parte do processo, ela
é o centro da ação, por isso é imprescindível garantir a escuta através do Depoimento Especial e
na aplicação das medidas de proteção a fim de evitar a revitimização, princípio fundamental da Lei
13.431/2017 e deste curso.
A segunda questão importante foi o fato de que outras crianças que foram testemunhas da
situação de violência também foram escutadas e, posteriormente, acompanhadas pela equipe do
SCFV. Isso porque recomenda-se que os envolvidos no processo de intervenção devem entender
que as situações de violência experienciadas provocam impactos na trajetória dos indivíduos e,
por esta razão, requer sensibilidade para se transformar a situação (BRASIL, 2014).
94
1.2.3 Medidas preventivas à violência contra crianças e adolescentes
Além das medidas protetivas e assistenciais, cumpre-nos abordar a
importância das medidas preventivas, embora não expressas na Lei 13.431/2017.
Elas são de fundamental importância, pois trata-se de ações que o SGDCA
pode assumir antes que se efetivem situações de violência contra crianças e
adolescentes.
Neste sentido, entendemos que as medidas de prevenção estão diretamente ligadas à criação
de estratégias que visam colocar crianças e adolescentes com prioridade absoluta em nossas
ações. Além disso, os atores do SGDCA devem responsabilizar-se pelas medidas preventivas, com
intuito de promover a proteção integral de maneira intersetorial, evitando desarticulação das
ações e descontinuidades do processo.
95
• Monitoramento da ocorrência de violência, acompanhando os indicadores municipais,
estaduais e federais;
• Apoio ao desenvolvimento de estudos e pesquisas;
• Definição de responsabilidades institucionais a fim de criar protocolos de atendimento;
• Incentivar os registros de informações em prontuários, bem como a produção dos relatórios
mensais nas unidades de atendimento como CRAS (relatórios sobre acompanhamento
familiar) e nas unidades de acolhimento, e consolidados com os dados mensais de
atendimentos, para gerar dados e informações próprias do território e estratégicas para a
vigilância socioassistencial
• Estimular a elaboração do Plano Individual ou Familiar de Atendimento contemplando a
planejamento e as possibilidades de intervenção considerando as situações singulares de
cada família;
• Nas escolas e instituições, criar espaços para debates sobre o tema;
• Estimular a comunicação não violenta;
• Divulgar os meios de comunicação para denúncia, como o "disque 100" e o "Proteja Brasil";
• Fortalecer os Conselhos de Direitos das Crianças e Adolescentes;
• Promover capacitação multidisciplinar sobre os diversos tipos de violência e procedimentos
a serem adotados, para profissionais que trabalham com crianças e adolescentes.
No âmbito do SUAS, a proteção social básica tem como uma das suas finalidades a prevenção
da ocorrência de riscos sociais e de violação de direitos e violência. A atuação do PAIF e SCFV,
voltada principalmente para o fortalecimento da função protetiva da família, com o acesso a
direitos através dos serviços e programas públicos e o fortalecimento dos vínculos familiares e
comunitários, possui grande potencial de prevenção de violação de direitos
Finalmente, acreditamos que a educação é a melhor forma de prevenir a violência, a violação dos
direitos e a fragilização dos vínculos familiares, daí a importância de estimular e promover o acesso
das famílias a informações qualificadas para o cuidado e a proteção das crianças e adolescentes
desde a mais tenra idade, favorecendo-lhes um ambiente saudável e seguro, despertando-os para
o protagonismo, a fim de "encorajar a juventude a explorar suas melhores capacidades, apoiando
cada sujeito nas suas escolhas fundamentais de vida" (Rede Salesiana Brasil, 2014, p.43).
96
1.2.4 Iniciativas de Proteção no Brasil
A título de conhecimento, destacamos, também, alguns Programas de Proteção que foram
instituídos no Brasil e que são de fundamental importância para a manutenção dos direitos das
crianças e dos adolescentes:
1 https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/crianca-e-adolescente/acoes-e-programas
2 http://www.protejabrasil.com.br/br/ 97
no Brasil é refletida no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A adesão ao Selo
UNICEF é espontânea. O Selo UNICEF contribui para o alcance de 8 dos 17 Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável (ODS), uma agenda global acordada por todos os Estados-
Membros das Nações Unidas até 2030. 3
• PPCAM: Criado pelo Governo Federal em 2003 o Programa de Proteção a Crianças e
Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM) tem por objetivo preservar a vida daqueles
que estão na fase da infância ou da adolescência e se encontram em situação de ameaça
de morte. Trata-se de uma política de responsabilidade do governo federal e é executada
em diferentes estados por meio de articulação com Governos Estaduais, Municipais e
Organizações Não Governamentais.
Conduta tipificada como crime: Art. 241 - Vender ou expor à venda fotografia,
vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica
envolvendo criança ou adolescente.
Penalidade: Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.
Após compreender como se dá este processo, passamos, então, ao rol das condutas tipificadas
pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, visto que é este o instrumento jurídico que servirá
como base para a elaboração das condutas criminosas da Lei 13.431/2017.
O Estatuto da Criança e do Adolescente dedica todo o Título VII para a tipificação das condutas
criminosas praticadas contra crianças e adolescentes. Dessa forma, do artigo 228 ao artigo 244B,
especifica-se quais as ações e omissões são consideradas criminosas e quais são as penalidades
para aqueles que as praticarem. Da mesma forma que fizemos anteriormente, a fim de evitar que
o conteúdo fique exaustivo, vamos sintetizar o texto da lei por meio de análise dos temas tratados.
Vejamos:
• Artigos 228 e 229: destinados aos profissionais de saúde que violarem os direitos da
gestante e do recém-nascido. As penas podem variar de 02 meses a 2 anos de prisão e
multas.
3 https://www.selounicef.org.br/sobre#:~:text=O%20Selo%20UNICEF%20%C3%A9%20
uma,e%20da%20Amaz%C3%B4nia%20Legal%20brasileira.
98
• Artigos 230 a 235: dirigidos aos profissionais da segurança pública e do poder judiciário
que cometerem condutas relacionadas à apreensão de adolescente; guarda e custódia de
apreendido; humilhação; prazos legais. Penas variam de 06 meses a 06 anos de prisão e
multas.
• Artigos 237 ao 239: relacionados aos pais, responsáveis ou terceiros que, de alguma forma
ilegal, entreguem crianças ou adolescentes para adoção. Penas de 06 meses a 08 anos de
prisão e multas.
• Artigo 240 ao 244B: atribuído a qualquer pessoa que pratique ações de cunho sexual/
pornográfico contra criança e adolescente ou que comercialize produtos que causam
dependência química (bebidas, cigarros, etc) ou que os coloquem sob risco (fogos de
artifício). Também inclui a questão da corrupção de menores. Penas de 06 meses a 10 anos
e multas.
Podemos perceber que as condutas tipificadas no ECA são abrangentes e sofreram alterações
ou inclusões no decorrer do tempo. Complementando, a Lei 13.431/2017 trouxe uma única
conduta tipificada, qual seja, a violação de sigilo processual, que relaciona-se com violência
institucional e revitimização
TÍTULO V
DOS CRIMES
Art. 24. Violar sigilo processual, permitindo que depoimento de criança ou
adolescente seja assistido por pessoa estranha ao processo, sem autorização judicial
e sem o consentimento do depoente ou de seu representante legal.
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Assim, o agente público que permitir o acesso de pessoa que não tem nenhum envolvimento
com o processo, incorrerá em crime de violação do sigilo processual e poderá ser penalizado
com reclusão de um a quatro anos, além do pagamento de multa. Recordemos que este crime
é considerado uma forma de violência institucional se a permissão for dada pelo agente público
sem o consentimento da autoridade judicial competente ou do depoente e seu representante
legal. Mais uma vez, ressaltamos o propósito primordial da Lei 13.431/2017 em coibir a violência
institucional e os processos de revitimização.
Embora este assunto esteja mais relacionado à esfera jurídica, é importante essa compreensão
no âmbito do SUAS, pois, como estudamos ao longo deste curso, as ações jurídicas e do SUAS
desenvolvem uma relação perpassada por variados aspectos, além do que, é importante destacar
que o compartilhamento indevido de informações se configura como uma conduta incorreta
e prejudicial. Posto isto, ressaltamos que o compartilhamento de informações deve ser feito
99
observando as orientações apresentadas na legislação, bem como as normativas profissionais,
que situam o sigilo como direito e/ou dever do profissional.
100
Aula 2
A atuação do SUAS na rede de
atendimento e proteção de crianças e
adolescentes vítimas ou testemunha de
violência
2.1 O PRINCÍPIO DA MATRICIALIDADE SOCIOFAMILIAR
101
pessoais. É neste espaço que se desenvolve o sentimento de pertencimento, de identidade social
e de onde se obtém o sustento.
Já a Política Nacional de Assistência Social - PNAS (2004) - traz, em seu conteúdo, uma outra
forma de compreender a família, definindo-a como "conjunto de pessoas que se acham unidas
por laços consanguíneos, afetivos e/ou de solidariedade" (BRASIL, 2004, p. 41). Além disso, a PNAS
concebe a família como entidade mediadora das relações entre sujeitos e coletividade; espaço de
proteção e de socialização primária; e provedora de cuidados aos seus membros.
Em consonância com o conteúdo da PNAS, é importante ir um pouco mais além dos conceitos e
entender que não existe um modelo único de família. A família deve ser compreendida como uma
construção social que está sujeita ao transcurso da história. Seu formato, características/feições,
sua dinâmica, entre outros pontos, são vinculadas às transformações societárias, ao movimento
não-linear da sociedade.
A seguir, faremos a leitura e análise de um caso concreto que nos levará a refletir sobre a
necessidade do/da profissional rever seus conceitos pessoais e culturais acerca da família.
102
fonte de renda da família. No entanto, Ana Maria insistia nessa orientação, conforme
ela disse, o "papel paterno é o responsável por colocar a comida na mesa". Confiando
na orientação da profissional, Cristina pediu demissão, acreditando que isso seria o
melhor para sua família.
A partir daí, a família entrou em profundo contexto de vulnerabilidade socioeconômica.
A ausência de renda impôs diversas dificuldades de autonomia e sobrevivência à
Cristina e aos filhos e a família passou a contar exclusivamente com a ajuda de parentes
e com benefícios socioassistenciais de transferência de renda.
A demissão de Cristina em nada colaborou com o quadro de Vitor, pois o adolescente,
novamente, passou a fazer uso de drogas ilícitas e estava sempre agressivo cometendo
violência contra a mãe e os irmãos.
103
Tabela 1: Autores/Autoras de violência contra crianças e adolescentes, 2011 a 2019, Brasil
Fonte: Tabela elaborada pelos autores a partir do Balanço Geral 2011 a 2019 do Disque 100 (Relação entre vítimas e suspeito)
* O Banco de Dados do Disque 100 enumera diversos outros autores como avós, diretores de escolas, amigos, padrinho/madrinha, etc. A nossa proposta consiste em apresentar alguns
daqueles que estão inseridos no âmbito familiar da criança ou do adolescente, bem como agentes externos.
104
A tabela apresenta variados autores de violação de direitos das crianças e dos adolescentes
que constam no banco de dados do Disque 100. A partir dos dados, verifica-se que grande parte
das situações de violência ocorrem no espaço familiar, tendo a mãe e o pai, respectivamente,
como os principais agentes violadores. Sendo seguido pelos padrastos e madrastas, de modo que
podemos observar que aqueles que comumente compõem o cotidiano da criança/adolescente
são os principais agentes violadores.
Também a partir dos dados do Disque 100 buscamos apresentar quais são os principais tipos
de violência praticada contra crianças e adolescentes (Tabela 02) a fim de podermos conhecer a
realidade social a qual intervimos:
Tabela 02: Principais tipos de violência praticados contra crianças e adolescentes, 2011 a
2019, Brasil
TIPO DE DENÚNCIAS POR ANO TOTAL
VIOLÊNCIA 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019
Violência
41.800 60.397 52.890 39.164 34.119 32.040 33.105 30.962 33.374 357.851
Física
Violência
36.536 63.858 62.538 44.752 36.794 33.860 39.561 37.160 36.304 391.363
Psicológica
Exploração
do Trabalho 2.241 11.158 9.942 5.660 4.542 4.690 5.355 3.868 4.245 51.701
Infantil
Violência
70 629 837 481 514 1.230 3.299 4.535 5.134 16.729
Institucional
Violência
28.525 37.726 31.895 22.840 17.583 15.707 20.330 17.073 17.029 208.708
Sexual
Negligência 51.772 88.750 91.159 67.831 58.567 54.304 61.416 55.375 62.020 591.194
Fonte: Tabela elaborada pelos autores a partir do Balanço Geral 2011 a 2019 do Disque 100 (Tipo de Violação)
Observamos que a negligência é o principal ato praticado, de forma que podemos concluir que
a omissão acerca dos cuidados demandados por crianças e adolescentes é uma prática recorrente.
Em seguida, a violência psicológica, física e sexual.
A violência institucional também é um aspecto que merece atenção, uma vez que estamos
ao longo de todo esse curso tratando da Lei 13.431 de 2017, que tem, especialmente, o intuito de
prevenir esse tipo de situação. Vejamos que, desde a promulgação da referida legislação, os casos
vêm sendo mais fortemente notificados do que nos primeiros seis anos (2011-2016) apresentados
na tabela.
O trabalho infantil também é exposto e necessita ser pontuado, pois conforme apontam Alves,
Santos e Santos (2016) esse caracteriza-se como um indicador da situação de vulnerabilidade
socioeconômica das famílias. Neste caso, a própria família está em desproteção e requer
acompanhamento.
105
As tabelas abaixo apresentam informações acerca da violência infanto-juvenil no ano de 2020.
Consideramos ser necessário trazer esses dados, pois o ano de 2020 foi um ano atípico em razão
do contexto pandêmico vivenciado.
TIPO DE
Jan/2020 Fev/2020 Mar/2020 Abr/2020 Mai/2020 Jun/2020 Total
VIOLAÇÃO(•)
Vlolência
8.163 8.046 8.074 6.224 6.891 6.398 43.796
Física
Violênda
7.970 8.173 8.117 6.384 7.196 6.674 44.514
Psicológica
Abuso sexual
109 227 144 101 138 168 887
físico
Estupro 1.332 1.189 1.259 961 1.083 910 6.734
Exploração
190 112 110 117 107 123 759
sexual
TIPO DE
Jul/2020 Ago/2020 Set/2020 Out/2020 Nov /2020 Dez/2020 Total
VIOLAÇÃO(•)
Vlolência
3.582 3.742 4.863 4865 4.422 4.667 26.141
Física
Violênda
1.684 959 4.647 4.521 4.230 4.496 20.537
Psicológica
Abuso sexual
407 591 626 597 583 534 3.338
físico
Estupro 185 208 370 377 425 420 1985
Exploração
135 117 157 162 174 173 918
sexual
Fonte: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2021/maio/CartilhaMaioLaranja2021.pdf
106
Os dados estão divididos em dois períodos: primeiro e segundo semestre de 2020, sendo que
no primeiro semestre há maior número de notificações.
Nos primeiros seis meses a violência psicológica aparece como principal tipo de violência
praticada, seguida da violência física e do estupro. Ainda, todos os tipos de violência sofrem
pequenas variações, ora reduzindo, ora aumentando.
O abuso sexual físico sofre um aumento significativo, saindo de 887 casos denunciados para
3.338. Mas o estupro sofre uma redução, enquanto a exploração sexual aumenta.
Recorde que, na primeira aula deste curso, quando estudamos as questões históricas do
SGDCA, constatamos que as violências contra crianças e adolescentes praticadas em ambiente
familiar não são um fenômeno recente. Os casos de maus-tratos, negligência, abuso físico e sexual,
abandono, etc. são encontrados em inúmeros relatos históricos (SILVA, 2002; RASCOVSKY, 1974;
AZEVEDO; GUERRA, 1993).
Neste sentido, percebemos que a família é idealizada como unidade de proteção e amor das
crianças e dos adolescentes. Porém, quando isso não ocorre, ela é classificada como disfuncional,
desestruturada, e responsabilizada por suas vulnerabilidades (GARCIA; OLIVEIRA, 2017).
Isso nos leva a refletir sobre o espaço familiar. Não a partir de uma ótica culpabilizante, que
responsabiliza os indivíduos e o grupo familiar por suas condições; mas sim, compreendendo
que, nos últimos séculos, as famílias passaram por inúmeras transformações que, muitas vezes, as
fragilizam, fazendo com que seu papel protetivo não seja alcançado.
Neste sentido, compete ao SUAS, por meio dos serviços prestados por suas unidades
socioassistenciais, ofertar o atendimento e o acompanhamento a crianças e adolescentes em
situação de violência e suas famílias. É papel do SUAS viabilizar os elementos necessários para
superar as consequências da situação vivenciada e evitar a continuidade ou recorrência da
violência.
Para tanto, o SUAS prevê a oferta de uma grande variedade de serviços que tem por objetivo
proporcionar proteção social5 a quem dele necessitar. Entretanto, vamos nos concentrar na
estrutura e oferta desse sistema no que concerne promover proteção à criança e ao adolescente em
situação de violência ou testemunha de violência. É papel do SUAS, considerando as seguranças
socioassitenciais que lhe competem e a articulação com as demais políticas públicas, viabilizar os
elementos necessários que possibilitem a superação das consequências da situação vivenciada e
evitar a continuidade ou recorrência da violência..
Pensando nesse público específico, o SUAS pode ser subdividido em dois níveis de proteção
social, a básica e a especial:
5 Proteção social entendida a partir de Brasil (2004,2020) como as formas institucionalizadas que a sociedade
constrói e organiza com o intuito de proteger parte dos seus membros, isto é, para garantir a vida, à redução dos danos
108 e a prevenção das incidências de risco. Assim, a proteção social é um conjunto que abarca diversos aspectos como
segurança de sobrevivência (de rendimento e de autonomia); de acolhida; de convívio ou vivência familiar.
• Proteção Social Especial: É destinada à população que se encontra em situação de risco
pessoal e social em razão de abandono, trabalho infantil, situação de violência, uso de
substâncias psicoativas, entre outras condições de violação de direitos (BRASIL, 2004).
Os serviços, programas ou projetos desenvolvidos no âmbito da proteção social especial
têm por objetivo preservar a integridade dos sujeitos, recuperar os danos decorrentes de
situações de violações de direitos, superar os padrões violadores e fortalecer as famílias no
desempenho da sua função protetiva e de suas condições de autonomia (BRASIL, 2020).
Deve-se destacar que a proteção social especial se subdivide em níveis de complexidade:
média e alta.
Após essa breve explanação sobre a organização do SUAS, fica mais fácil compreender como
funcionam as unidades de atendimento e os serviços ofertados pela rede socioassistencial,
permitindo-nos identificar quais equipamentos ou serviços integram a rede de atendimento e
proteção da criança e do adolescente em situação de violência.
O quadro abaixo apresenta os serviços oferecidos pelo SUAS que compõem a rede de proteção
da criança e do adolescente, demonstrando o serviço, sua descrição e/ou seu objetivo e o nível de
proteção ao qual pertence.
6 Importante destacar que os Centros de Referência Especializado para a População em Situação de Rua (Centros
POP) são destinados a adultos em situação de rua, no entanto, realizam atendimento à criança desde que essas estejam
acompanhadas dos pais ou dos responsáveis legais (BRASIL, 2020).
109
NÍVEL DE UNIDADE DE
SERVIÇO DESCRIÇÃO
PROTEÇÃO OFERTA
SERVIÇO DE PROTE- O serviço tem como objetivo: a prevenção de agravos que pos-
ÇÃO SOCIAL BÁSICA sam provocar o rompimento de vínculos familiares e comunitá-
DOMICÍLIO DO
NO DOMICÍLIO PARA rios; a garantia de direito e o desenvolvimento de mecanismos de
USUÁRIO
PESSOAS COM DEFICI- inclusão social; o desenvolvimento de autonomia dos sujeitos; e
ÊNCIA E IDOSOS fornecer igualdade de oportunidades e participação.
DOMICÍLIO DO
PROTEÇÃO SO- Oferta de atendimento especializado a famílias com pessoas USUÁRIO
CIAL ESPECIAL SERVIÇO DE PROTE- com deficiência e idosos com algum grau de dependência, que CENTRO-DIA
MÉDIA COM- ÇÃO SOCIAL ESPECIAL tiveram suas limitações agravadas por violações de direito. O CREAS
PLEXIDADE PARA PESSOAS COM serviço tem o intuito de promover a autonomia, inclusão social e UNIDADES
DEFICIÊNCIA, IDOSAS E a melhoria da qualidade de vida dos participantes, bem como a SOCIOASSIS-
SUAS FAMÍLIAS prevenção do acolhimento e a segregação dos usuários e a pro- TENCIAIS (re-
moção de apoio às famílias na tarefa de cuidar. ferenciada ao
CREAS)
Serviço ofertado para indivíduos e famílias que vivem em situação
de rua, isto é, que utilizam as ruas como espaço de moradia e so-
SERVIÇO ESPECIALIZA-
brevivência. Desenvolve atividades direcionadas para o desenvol-
DO PARA PESSOAS EM CENTRO-POP
vimento de sociabilidades, com o intuito de fortalecer os vínculos
SITUAÇÃO DE RUA
interpessoais e/ou familiares que oportunizem a construção de
novos projetos de vida.
UNIDADES RE-
SERVIÇO DE PROTE-
Serviço destinado a oferta de apoio a indivíduos e famílias atingi- FERENCIADAS
ÇÃO EM SITUAÇÕES
dos por situações de emergência ou calamidade pública. Fornece AO ÓRGÃOS
DE CALAMIDADES
alojamentos provisórios, atenções e provisões materiais, confor- GESTOR DA
PÚBLICAS E DE EMER-
me as necessidades detectadas. ASSISTÊNCIA
GÊNCIAS
SOCIAL
Fonte: Quadro elaborado pelos autores a partir de informações contidas em Brasil (2009) e Brasil (2020)
A partir desse quadro, é possível conhecer a variedade de serviços ofertados no SUAS que,
dentre outros públicos, atendem também às crianças e aos adolescentes. Tais serviços permitem às
equipes profissionais identificarem e atuarem sobre ameaça ou situação de violação de direitos em
conjunto com os demais atores do Sistema de Garantia de Direitos da Criança ou do Adolescente
Vítima ou Testemunha de Violência de forma integral.
Vale ressaltar que as crianças, os adolescentes e suas famílias podem ser atendidos por mais
de um serviço socioassistencial, concomitantemente, inclusive em níveis de proteção diferentes,
já que entre alguns serviços há relação de complementaridade. Isto é, além da garantia de um
atendimento integral, o SUAS pressupõe o atendimento de demandas diversas caracterizadas como
objeto de intervenção da política de assistência social. Nessa direção, os serviços socioassistenciais
são orientados a atuarem de forma integrada e articulada, com referência e contrarreferência
(BRASIL, 2020).
A fim de simplificar esse conteúdo, elaboramos o fluxo, abaixo, que relaciona as unidades e os
serviços socioassistenciais e onde são ofertados:
111
SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL
PROTEÇÃO SOCIAL
BÁSICA
CRAS
SERVIÇO DE
PROTEÇÃO SOCIAL
BÁSICA NO PAIF SCFV¹
DOMICÍLIO PARA
PESSOAS COM
DEFICIÊNCIA E
IDOSAS²
PROTEÇÃO SOCIAL
ESPECIAL
MÉDIA ALTA
COMPLEXIDADE COMPLEXIDADE
SERVIÇO DE ACOLHIMENTO
CENTRO DIA CREAS CENTRO POP
INSTITUCIONAL
SERVIÇO ESPECIALIZADO
EM ABORDAGEM SOCIAL³
Fonte: Fluxo elaborado pelas autoras a partir de informações contidas em Brasil (2009).
¹ O SCFV também pode ser realizado nos Centros de Convivência referenciados ao CRAS.
² O SERVIÇO DE PROTEÇÃO SOCIAL BÁSICA NO DOMICÍLIO PARA PESSOAS COM DEFICIÊNCIA E IDOSAS é ofertado no
domicilio do usuário;
³ O SERVIÇO DE ABORDAGEM SOCIAL também pode ser desenvolvido em unidades referenciadas ao CREAS;
4 O SERVIÇO DE PROTEÇÃO SOCIAL ESPECIAL PARA PESSOAS COM DEFICIÊNCIA, IDOSAS E SUAS FAMÍLIAS pode ser
desenvolvido no domicilio do usuário, em centros-dia, no CREAS ou em unidade referenciada a este último.
Importante ressaltar, mais uma vez, que nem todos os municípios dispõem dessa variedade
de serviços, seja por conta de limitações orçamentárias, insuficiência de demanda, características
demográficas, entre outros pontos. Dessa forma, cabe a cada profissional da rede socioassistencial
conhecer a realidade do seu território e agir conforme as suas possibilidades.
112
2.3 GESTÃO E GOVERNANÇA DO SUAS NO SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA
CRIANÇA E DO ADOLESCENTE VÍTIMA OU TESTEMUNHA DE VIOLÊNCIA
Nosso objetivo, neste tópico, é sistematizar e reforçar
uma série de informações acerca do papel dos órgãos
gestores da assistência social no Sistema de Garantia de
Direitos da Criança e do Adolescente Vítima ou Testemunha
de Violência.
Todavia, as atribuições dessa instância não se limitam a esses aspectos, como veremos a
seguir.
113
Deve o órgão local, gestor da assistência social, estabelecer junto aos órgãos do Sistema
de Justiça, os fluxos e protocolos de encaminhamentos, de troca de informações, entre outros,
buscando garantir uma relação igualitária, não de subordinação, e prevenir a intimidação das
equipes técnicas (BRASIL, 2016; 2020). A relação de subordinação tende a fragilizar o caráter
protetivo do SUAS à medida que impõe o uso dos relatórios produzidos pelos/pelas profissionais das
equipes de referência das unidades socioassistenciais, como documentos de caráter investigativo
e fiscalizador, ou seja, para fins diferentes das atribuições do SUAS, como, por exemplo, a realização
de Perícia, inquirição de vítimas e acusados, oitiva para fins judiciais, produção de provas de
acusação.
Cabe reforçar que os encaminhamentos realizados pelo Poder Judiciário devem ser direcionados
à gestão da política que, por sua vez, encaminhará às unidades e aos serviços socioassistenciais.
Por exemplo, cabe ao/à secretário(a) de assistência social construir diálogo com sistema de
justiça, ministério público, etc., mediando as demandas que são de responsabilidade do SUAS
e informando e justificando quando determinadas solicitações não possam ser atendidas, seja
porque fogem ao escopo do SUAS ou porque a forma de realização pode estar equivocada
ou/e com prazos exíguos, e sua realização poderia implicar em prejuízos para a continuidade
dos atendimentos pelo CREAS. Por exemplo: quando um/uma profissional atende uma família
e identifica a violação de direitos e precisa continuar atendendo a família, construindo com a
família e com apoio institucional e o acesso a direitos como forma de prevenção de agravamentos
ou reincidência, favorecendo que as famílias estabeleçam outras formas de convívio em que os
conflitos não sejam enfrentados com violência. Quando o/a profissional é intimado/intimada a
ser testemunha em processos, o vínculo de confiança com a família pode ser rompido e o SUAS
deixa de cumprir sua missão institucional. Dessa forma, a gestão pode mediar as solicitações,
filtrando e facilitando fluxos e comunicação com a justiça e, em outros casos, sugerindo outros
encaminhamentos. Ou seja, possibilita que alinhe expectativas, crie previsibilidade e demonstra a
intencionalidade e a corresponsabilidade de proteção das crianças, adolescentes e suas famílias.
O que não seria possível quando os profissionais são oficiados diretamente sem essa mediação
fundamental. Por isso, se faz necessário o estabelecimento de protocolo e fluxo entre o SUAS e o
Sistema de Justiça. Abordaremos essa questão com mais detalhes no Módulo 4.
Por fim, é dever dos órgãos gestores da assistência social promover a realização de ações de
educação permanente e/ou facilitar a participação dos/das profissionais em ações dessa natureza
com o intuito de garantir, permanentemente, a qualidade do atendimento.
O quadro abaixo traz uma síntese dos deveres da gestão local da política de assistência social:
114
1. Coordenar as ações de articulação da rede de proteção;
7 https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/conselho-nacional-dos-direitos-
da-crianca-e-do-adolescente-conanda/conanda#:~:text=Criado%20em%201991%20pela%20Lei,e%20do%20
Adolescente%20(ECA).
115
Por meio da gestão compartilhada, governo e sociedade civil definem, no âmbito do Conselho,
as diretrizes para a Política Nacional de Promoção, Proteção e Defesa dos Direitos de Crianças e
Adolescentes. Além de contribuir para a definição das políticas para a infância e a adolescência,
o Conanda também fiscaliza as ações executadas pelo poder público no que diz respeito ao
atendimento da população infanto-juvenil.
A gestão do Fundo Nacional para a Criança e o Adolescente (FNCA) também é uma importante
atribuição do Conselho. É ele o responsável pela regulamentação sobre a criação e a utilização
desses recursos, garantindo que sejam destinados às ações de promoção, proteção e garantia dos
direitos de crianças e adolescentes, conforme estabelece o ECA.
116
O CMDCA é responsável pela criação das políticas públicas no município que promoverão
os programas e projetos voltados ao atendimento das crianças e adolescentes, principalmente
quanto ao direito à vida, à saúde, à liberdade, ao respeito, à dignidade, à convivência comunitária,
à família, à educação, à profissionalização, à cultura, ao lazer, à proteção no trabalho e sugerindo
medidas de proteção em situação de risco8.
117
8 https://crianca.mppr.mp.br/pagina-1128.html.
• k) acompanhar e oferecer subsídios na elaboração legislativa local relacionada à garantia
dos direitos da criança e do adolescente;
• l) fomentar a integração do Judiciário, Ministério Público, Defensoria e Segurança Pública
na apuração dos casos de denúncias e reclamações formuladas por qualquer pessoa ou
entidade que versem sobre ameaça ou violação de direitos da criança e do adolescente;
• m) atuar como instância de apoio no nível local nos casos de petições, denúncias e
reclamações formuladas por qualquer pessoa ou entidade, participando de audiências ou
ainda promovendo denúncias públicas quando ocorrer ameaça ou violação de direitos da
criança e do adolescente, acolhendo-as e dando encaminhamento aos órgãos competentes;
• n) integrar-se com outros órgãos executores de políticas públicas direcionadas à criança e
ao adolescente e demais Conselhos setoriais.
• o) registrar as organizações da sociedade civil sediadas em sua base territorial que prestem
atendimento a crianças, adolescentes e suas respectivas famílias, executando os programas
a que se refere o art.90, caput, e, no que couber, as medidas previstas nos artigos 101, 112
e 129, todos da Lei nº 8.069/90;
• p) inscrever os programas de atendimento a crianças, adolescentes e suas respectivas
famílias na sua base territorial, tanto os executados por entidades governamentais quanto
por organizações da sociedade civil;
• q) recadastrar as entidades e os programas em execução, certificando-se de sua contínua
adequação à política traçada para a promoção dos direitos da criança e do adolescente;
• r) regulamentar, organizar e coordenar o processo de escolha dos conselheiros tutelares,
seguindo as determinações da Lei nº 8.069/90 e da Resolução nº 75/2001 do Conanda;
• s) instaurar sindicância para apurar eventual falta grave cometida por conselheiro tutelar
no exercício de suas funções, observando a legislação municipal pertinente ao processo
de sindicância ou administrativo/disciplinar, de acordo com a Resolução nº 75/2001 do
Conanda.9
Neste momento, traremos um caso que exemplifica uma ação concreta de trabalho
intersetorial.
Juliano é o terceiro filho de uma família composta por cinco filhos e mora com a mãe,
os irmãos e o padrasto. Aos seis anos, começou a frequentar o Serviço de Convivência
e Fortalecimento de Vínculos em uma instituição, numa cidade de médio porte.
Após dois meses na instituição, a assistente social observou que a criança chegava,
todos os dias, com sono, desmotivada e mal vestida, com roupas muito maiores que seu
tamanho e sempre suja e mal cheirosa. Algumas vezes, ia sem cueca, meia e descalço.
9 http://crianca.mppr.mp.br/pagina-1128.html#res116
118
A instituição, então, forneceu todo o vestuário e calçados para a criança. Quase todos
os dias era necessário providenciar um banho antes de iniciar as atividades. No início
do terceiro mês, Juliano chegou com feridas por todo o corpo, inclusive na cabeça.
Foi, então, realizada uma visita na casa de Juliano e identificaram que ele estava
com sarna e que a mãe necessitava de cuidados relacionados à saúde, pois estava
bem debilitada. A escola onde Juliano estava matriculado já havia informado que a
mãe estava com tuberculose. A mãe contou que quem arruma Juliano para ir para a
instituição é o irmão mais velho, Kayo. Há poucos sinais de cuidado e limpeza na casa:
foram vistas roupas espalhadas pelo chão, bem como brinquedos, sapatos e alimentos
vencidos.
Os quatro cães da família dormem na mesma cama que as crianças. Um dos irmãos,
Roberto, 10 anos, cadastrado para as atividades na entidade e já desligado, estava em
trabalho infantil de "aviãozinho" para traficantes. Enquanto esteve na entidade (por dois
meses), Roberto demonstrou pouco interesse em participar das atividades propostas
e tinha dificuldade em respeitar os adultos, regras e combinados, falava palavras de
baixo calão para se comunicar. Usava os colegas mais novos como "escudo" para se
livrar de suas responsabilidades quando era chamada a sua atenção.
Após várias tentativas frustradas de comunicação com a família, profissionais da escola
pediram, por intermédio da instituição, para conversar com a mãe, pois viam que as
crianças recebiam pouco ou quase nenhum cuidado. Foi aí que a instituição teve a
ideia de chamar outros profissionais, que também acompanhavam a família: uma
conselheira do Conselho Tutelar, a assistente social do Núcleo Ampliado de Saúde da
Família e Atenção Básica, a supervisora da escola, a psicóloga do Centro de Referência
da Assistente Social e a diretora e a coordenadora de projetos da instituição que
atendia as crianças no contraturno escolar.
Foi realizada uma reunião para que cada setor colocasse seu ponto de vista sobre a
situação, e, num segundo momento, os responsáveis pela criança, respectivamente
a mãe e o padrasto, seriam, também, chamados. Na reunião foi esclarecido aos
responsáveis o papel da família no cuidado e na educação dos filhos, sobre os deveres
e direitos das crianças, bem como as consequências da negligência e do abandono dos
filhos.
Ao término da conversa, ficou acordado que a mãe observaria com mais cuidado a
higiene e a rotina dos filhos. A instituição continuaria a atender as crianças com
atividades voltadas para os direitos das crianças e adolescentes e fortalecimento dos
vínculos familiares e, para a mãe, roda de conversa semanal com um grupo de mulheres,
para orientar no cuidado dos filhos e participação no grupo de geração de renda. A
assistente social e a psicóloga fariam visitas semanais à casa para acompanhar a família,
acompanhar o tratamento da tuberculose, dar orientação e realizar o encaminhamento
do Kayo, maior de idade, para o Acessuas Trabalho, programa que o orientará com
vistas à sua inserção no mundo do trabalho. A psicóloga se comprometeu a realizar
atendimento semanal para Roberto.
A supervisora da escola se disponibilizou a construir, junto com os demais profissionais,
um plano individualizado de atendimento às crianças, tendo como foco o cuidado
pessoal e noções de higiene; também fariam acompanhamento individualizado para
que pudessem acompanhar o aprendizado da turma, pois estavam em defasagem
escolar. O conselho tutelar se responsabilizou em conseguir vagas para os filhos mais
119
novos nos centros de educação infantil e também em oficializar à Vara da infância
sobre os encaminhamentos da rede e da família. A equipe se comprometeu a se
reunir mensalmente para o acompanhamento da família e estudo de outros casos que
requerem atenção.
O que foi feito no caso de Juliano é um trabalho articulado em rede, ou seja, uma demanda
é constatada, gerando a necessidade de comunicar, acionar, articular, diferentes setores para
elaborar estratégias de ação tendo como ponto de partida o planejamento, a realização e a
avaliação de ações.
Sendo assim, é necessário reunir diferentes áreas de atuação para compreender a complexidade
de cada situação e atuar de maneira eficaz no atendimento intersetorial. O ponto essencial deste
atendimento é colocar a pessoa no centro de toda ação, sendo imprescindível articular uma
comunicação eficaz, dividir as tarefas e reconhecer as potencialidades de cada setor envolvido na
demanda. Instersetorializar é dividir o poder de ação que cada setor tem em mãos; é enxergar a
mesma situação com olhares distintos e desenvolver a forma mais assertiva de atuação.
Dessa forma, tanto a comissão como o pacto intersetorial pela escuta protegida, que serão
tratados adiante, são esforços governamentais já no sentido de promover a intersetorialidade.
120
A Comissão Intersetorial de Enfrentamento à Violência contra Crianças e Adolescentes,
atualizada pelo Decreto nº 10.701, de 17/05/2021, tem as seguintes atribuições específicas
segundo o art. 8º:
Vale lembrar que a comissão intersetorial foi a responsável por articular a criação dos
"Parâmetros de escuta especializada de crianças e adolescentes em situação de violência". Em
síntese:
121
2.6 PACTO NACIONAL PELA IMPLEMENTAÇÃO DA LEI 13.431/2017
Com a criação da Lei 13.431/2017, foram realizadas pesquisas sobre a ineficiência ou ausência
de um fluxo geral de atendimento para o Depoimento Especial de crianças e adolescentes
vítimas ou testemunhas de violência. Uma dessas pesquisas foi intitulada de "A oitiva de crianças
no Poder Judiciário Brasileiro10", produzida pelo Conselho Nacional de Justiça, pela qual se
constatou a necessidade da criação de outros instrumentos para a implantação da lei em todo o
país. Neste sentido, é que diferentes signatários articularam e elaboraram o Pacto Nacional para
implementação da Lei 13.431/2017, em 13 de junho de 2019, que tem como objetivo
Este Pacto foi um ato Interinstitucional, o que garante o trabalho intersetorial nos âmbitos
federal e estadual, preconizado na Lei 13.431/2017, e contou com os seguintes signatários: a Casa
Civil da Presidência da República, os ministérios da Educação, da Saúde, da Cidadania e da Mulher,
da Família e dos Direitos Humanos, O Conselho Nacional de Justiça, o Conselho Nacional do
Ministério Público (CNMP), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Defensoria Pública da União
(DPU), o Colégio Nacional de Defensores Públicos, e o Conselho Nacional de Chefes de Polícia Civil.
122
Vejamos o que o Pacto Nacional nos trouxe de inovador?
SAIBA MAIS:
O Pacto pela Escuta Protegida tem por objetivo o estabelecimento de princípios e
regras gerais básicos a serem observados pelos pactuantes no desenvolvimento de
ações intersetoriais e interinstitucionais, a serem executadas de forma integrada e
coordenada, numa conjugação de esforços necessários à implementação da Lei nº
13.431/2017, tendo em vista:
I- o estabelecimento de diretrizes para a atenção e proteção integral e interinstitucional
de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violências;
II- o estabelecimento de protocolos de depoimento especial, de criança e adolescente
vítima ou testemunha de violência, perante autoridade policial ou judiciária com a
finalidade de produção de provas, que visem assegurar seu direito de ser ouvida em
qualquer procedimento judicial ou administrativo que Ihe diga respeito, diretamente
ou por intermédio de representante ou órgão apropriado, em conformidade com
legislação vigente (ans 22 e 25 do Decreto 9.603/18 e art 12 da Convenção sobre os
Direitos das Crianças);
III- a garantia da escuta especializada com o objetivo de assegurar o acompanhamento
da vítima ou testemunha de violência para contribuir na superação das consequências
da violação, em cumprimento à finalidade de proteção e provimento de cuidados;
IV - a criação de matriz intersetorial de capacitação para os profissionais do sistema de
garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência;
V - a definição de metodologia específica e condições de trabalho adequadas para os
profissionais do sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou
testemunha de violência;
VI - a criação de fluxos e da regulação necessária em cada instituição responsável
pela elaboração de políticas públicas voltadas à proteção dos direitos das crianças e
adolescentes, com a participação e escuta dos integrantes do Pacto;
Vll - a criação de prêmio com o objetivo de identificar, divulgar e difundir boas práticas
que contribuam para implementação e aperfeiçoamento da Lei nº 13.431/2017 e
do Decreto nº 9603/201 8, com participação de representantes dos pactuantes nas
seleções e avaliações;
Vlll - a criação de modelo de registro e compartilhamento de informações do
atendimento, no sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes, observados
os aspectos ético-legais e o regime de trâmite em segredo de justiça;
IX - o desenvolvimento de campanhas educativas integradas;
X - a garantia da acessibilidade aos espaços de atendimento da criança e do adolescente
vítima ou testemunha de violência (art. 6º, do Decreto nº 9603/201 8);
123
XI - o incentivo à realização de acordos de cooperação ou instrumentos congêneres
entre as instituições para a a realização do depoimento especial, sempre que possível,
em sede de produção antecipada de provas, nos tempos da legislação pertinente;
Xll - o monitoramento e avaliação da implementação da Lei 13.431/2017 e do Decreto
9.603/2018.
Fonte: Cláusula 2ª do Pacto Nacional para Implementação da Lei 13.431
No módulo 4, estudaremos sobre o Fluxo Geral elaborado no Pacto Nacional, desta forma você
poderá compreender melhor a efetivação do trabalho intersetorial na Lei 13.431/2017.
124
REFERÊNCIAS E
SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS
NORMAS:
125
BRASIL. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME. Secretaria Nacional
de Assistência Social. Política Nacional de Assistência Social - PNAS/ 2004. Brasília: MDS/SNAS,
2005. 178 p. Disponível em:<http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/
Normativas/PNAS2004.pdf>. Acesso em: 18 mar. 2021.
LIVROS E ARTIGOS:
126
O PONTO DE PARTIDA PARA A PROTEÇÃO. Brasília: SDH, 2014. Disponível em: < https://
bibliotecadigital.mdh.gov.br/jspui/bitstream/192/416/1/SDH_Cartilha_2014.pdf >. Acesso em: 19
mar. 2021.
LÔBO, Paulo Luiz Neto. Transformações jurídicas da Família no Brasil. GEN Jurídico, São Paulo,
p. on-line, 12 fev. 2018. Disponível em: http://genjuridico.com.br/2018/02/12/transformacoes-
juridicas-familia-brasil/. Acesso em: 15 mar. 2021.
Rede Salesiana Brasil de Ação Social. Identidade Carismática. Brasília, v. 2014. Disponível em: <
https://ssccbsp.org/media/download/2be7a495/media.pdf>.Acesso em: 20 mar. 2021.
SIMÕES, Carlos. Curso de Direito do Serviço Social. São Paulo: Cortez, v.3 2009. 560p.
SUGESTÃO BIBLIOGRÁFICA
127
Apresentação e Guia
de Estudos do Módulo 4
Neste módulo, primeiramente, vamos conhecer e compreender os tipos de protocolos que
perpassam o atendimento de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.
Bons estudos!
128
Aula 1
Mapeamento da Rede de
Proteção e Protocolos para
atendimento de crianças
e adolescentes vítimas ou
testemunha de violência
1.1 MAPEAMENTO E ARTICULAÇÃO DA REDE DE PROTEÇÃO À CRIANÇA E AO
ADOLESCENTE VÍTIMA OU TESTEMUNHA DE VIOLÊNCIA
Para que compreendamos melhor a ideia de mapear a Rede de Proteção, precisamos entender
que o atendimento de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência ocorre em
duas dimensões: protetiva, que atua na busca de minimizar os efeitos da violência vivenciada,
como os equipamentos do Sistema Único de Assistência Social (SUAS); e repressiva, que tem
o intuito de responsabilizar o/a autor/autora, como a polícia judiciária (BRASIL, 2019). Contudo,
um atendimento plenamente qualificado requer a integração entre os variados equipamentos e
entidades que compõem essas dimensões. Portanto, é necessário que a rede se conheça e que
cada equipamento e/ou entidade compreenda as suas atribuições.
129
COMO É COMPOSTA A REDE DE PROTEÇÃO DO MEU MUNICÍPIO?
130
1 1) Não é necessário ter acesso ao sistema (login e senha) para obter as informações sobre a rede de proteção.
Figura 2: Portal SIPIA CT
131
Mais uma vez, ressaltamos que o processo de mapeamento e articulação da rede não deve
ser uma ação individual do/da profissional do SUAS. A orientação expressa em publicação do
Ministério da Cidadania2 é que o órgão gestor da assistência social assuma a coordenação desse
movimento, considerando informações coletadas em sistemas e, principalmente, o conhecimento
da localidade pelas equipes das unidades Socioassistenciais, em articulação com a sua área de
vigilância.
2 A publicação mencionada refere-se aos Parâmetros de atuação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS)
no sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência de 2020. Disponível
para consulta em: <blog.mds.gov.br/redesuas/wp-content/uploads/2020/03/SUAS_garantia_direitos_crianças_adolescentes_
vitimas_testemunhas_violencia.pdf>.
132
Quadro 01: Exemplo de material - Síntese de informações da rede de proteção do território
133
Neste movimento de mapeamento, também é possível identificar os distintos serviços que vão
assegurar à criança e ao adolescente proteção e atendimento. Com isso, pretende-se minimizar os
efeitos da violência vivenciada e evitar que a situação se repita, demonstrando, assim, um avanço
no que se refere ao trato da questão infanto-juvenil, especialmente, a partir da implementação do
SUAS.
No que se refere ao/à profissional, é fundamental que tenha clareza das diretrizes que
orientam o seu trabalho, assuma o compromisso de construir e seguir os protocolos e fluxos de
atendimentos e proporcione atendimento humanizado e qualificado. Mas reforçamos o alerta
para que o/a profissional não busque suprir, sozinho/sozinha, a fragilidade da Rede de Proteção.
Isto é, o/a profissional não deve realizar atendimento e ações que não são de sua competência
ou atribuição, pois, por mais que se empenhe, não terá condições de cumprir o papel das demais
políticas setoriais, equipamentos e profissionais. Ademais, o atendimento não qualificado, que não
foi planejado e não é executado adequadamente, ou cujos profissionais não estejam preparados/
preparadas, ou que não seguem os parâmetros e protocolos pré-estabelecidos, poderá resultar
em uma violência institucional (DIGIÁCOMO; DIGIÁCOMO, 2018).
134
programas e serviços direcionados para a criança e ao
adolescente, não significa, necessariamente, a existência de uma
rede de proteção, posto que a rede pressupõe articulação.
Dessa maneira, é essencial que ocorra o diálogo, a troca de
informação e a tomada de decisões em conjunto (BRASIL, 2019).
Importante destacar que a articulação não deve ficar restrita ao âmbito municipal, pois a
relação com órgãos estaduais, como o Sistema de Segurança Pública e Sistema de Justiça, deve ser
permanente, podendo, inclusive, sinalizar a necessidade de envolvimento do estado. Mas atenção:
135
1.2 PROTOCOLOS A SEREM ADOTADOS PELA REDE SOCIOASSISTENCIAL NO
ATENDIMENTO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES VÍTIMAS OU TESTEMUNHAS DE VIOLÊNCIA
Uma das grandes inovações da Lei 13.431/2017 é o reconhecimento de que a intervenção
estatal pode se constituir como uma forma de violência, gerando a chamada revitimização (vide
Módulo 02). Em razão disso, torna-se evidente a necessidade de instrumentos que assegurem um
atendimento qualificado e previna-se a revitimização de crianças e adolescentes em situação de
violência.
Dois destes instrumentos são bastante destacados por Digiácomo e Digiácomo (2018) e Brasil
(2019), quais sejam, os fluxos de atendimento e os protocolos. Na próxima aula estudaremos os
fluxos de atendimento, pois, neste momento, voltaremos o nosso debate para os protocolos.
Os protocolos de atendimento são instrumentos que visam garantir uma mínima padronização3
no atendimento de crianças e adolescentes em situação de violência. Esses documentos trazem,
em seu conteúdo, um conjunto variado de elementos. Por exemplo, há protocolos municipais que
discutem, inicialmente e de forma breve, os direitos da criança e do adolescente e o fenômeno
da violência; outros optam por ser mais diretos, trazendo os fluxos e diretrizes de atendimento.
Desse modo, é importante pontuar que não há um padrão homogêneo, pois cada território tem
autonomia, desde que observe as normativas já existentes, para criar seus próprios protocolos e
fluxos de atendimento.
Consideramos que há, essencialmente, 03 tipos de protocolos: 1) Protocolo Geral, que abarca
toda a rede de proteção da criança e do adolescente e, portanto, é aplicável a todos os órgãos
e atores do Sistema de Garantia de Direitos; 2) Protocolos Institucionais, são aqueles internos
às unidades e serviços de atendimento; e 3) Protocolos de Compartilhamento de Informações.
Trataremos a seguir esses três formatos.
Esse documento deve ter caráter intersetorial, de forma que abarque o conjunto de órgãos
existentes no território e oriente como cada um deve se portar diante da situação de violência.
3 É importante destacar que quando nos referimos a uma “mínima padronização” não estamos apontando
que todas as situações devem ser atendidas igualmente, pelo contrário, uma vez que cada situação demanda um
planejamento, metodologia e ações diferenciadas; mas sim que a Rede de Proteção deve possuir alguns acordos que
assegurem um atendimento qualificado e previnam a revitimização.
136
Nem a Lei 13.431/2017 nem o Decreto 9.603/2018 definiram exatamente onde será efetuada a
“escuta especializada”, se na rede de saúde, assistência social, direitos humanos ou em outro órgão
de proteção, apenas exigindo que esta seja efetuada por meio de profissional capacitado, em local
adequado e acolhedor, com infraestrutura e espaço físico que garantam a privacidade (arts. 5º,
incisos VII e XI, e 10, da Lei 13.431/2017). Assim, é importante que haja um fluxo estabelecendo as
atribuições de cada política.
Exemplo 01
Fica estabelecido neste município:
Definição de responsabilidade
• As portas de entrada para a situação de violência no município: qualquer órgão (CRAS,
CREAS, Hospitais, Unidade Básica de Saúde, Disque Denúncia, Polícia Militar, Polícia
Civil, Escola, Conselho Tutelar, etc.);
• O Hospital de referência para casos de violência cometida contra crianças e adolescentes
é o Hospital São Miguel;
• O procedimento de escuta especializada deve ser realizado por profissional de
referência, de preferência do serviço que realizou o primeiro atendimento, que
deverá encaminhar o relatório da situação para o Conselho Tutelar (caso o primeiro
atendimento não tenha sido realizado pelo próprio Conselho Tutelar); e
• Cabe ao Conselho Tutelar aplicar as medidas de proteção, fazer o acompanhamento do
seu cumprimento e, em caso de descumprimento, informar ao Ministério Público, para
a tomada de providências.
Fonte: Elaboração própria.
137
Exemplo 02
Fica estabelecido neste município:
II. Capacitação
• A Gestão Municipal se compromete a possibilitar a participação dos/das profissionais nos
cursos fornecidos pelo governo federal, estadual, ou firmar a parceria com instituições de
referência, que ofertam cursos de capacitação, com o intuito de garantir a qualificação do
atendimento;
• Anualmente será garantida a participação dos/das profissionais em, no mínimo, uma
capacitação interprofissional;
• No mínimo dois/duas profissionais de cada política componente do SGD serão capacitados/
capacitadas sobre a escuta especializada e a atuação conforme FLUXO construído localmente
para garantir a proteção das crianças e adolescentes e evitar a revitimização;
• Cabe ao órgão gestor das políticas setoriais ofertar ou possibilitar a participação dos/das
profissionais em cursos de capacitação profissional dentro da sua área de abrangência;
• Quando se tratar de capacitação intersetorial, o CMDCA pode articular e demandar apoio da
gestão de cada uma das políticas para sua efetivação;
• O município poderá contratar consultoria/assessoria para facilitar na construção de fluxos e
protocolos, envolvendo as políticas setoriais.
Fonte: Elaboração própria
Ainda, podemos observar que os acordos compreendem distintas áreas como saúde, assistência
social, segurança pública, etc., de modo que se verifica seu caráter intersetorial, isto é, estão em
nível do território e devem ser seguidos e respeitados por todos os atores do SGD.
É importante que esses protocolos de cunho geral considerem o Fluxo Geral produzido
pelos signatários do Pacto pela Implementação da Lei 13.431/2017, pois este apresenta
algumas informações de grande importância como a responsabilidade de cada política, as quais
apresentaremos na aula 2 deste módulo.
138
1.2.2 Protocolo institucional de atendimento à criança e ao adolescente vítima ou
testemunha de violência
Os protocolos institucionais são aqueles estabelecidos no interior das unidades e/ou serviços
de atendimento. Estabelecem rotinas e responsabilidades. Têm como objetivo descrever o
conjunto de normas e procedimentos que devem ser seguidos diante de determinada situação.
Apresentam uma proposta mais padronizada de “como fazer”. Este protocolo deve estar de acordo
com o projeto técnico-político da unidade4.
Sua criação deve ser realizada pela coordenação da unidade e/ou do serviço em conjunto com
os/as profissionais, para que possam ser estabelecidos acordos que atendam os distintos sujeitos
participantes do processo de trabalho. Ademais5, um protocolo criado democraticamente facilita
que o mesmo seja respeitado e seguido por todos. Deve ser reavaliado periodicamente. Veja um
exemplo abaixo:
Exemplo 01
Esta instituição, com o intuito de assegurar a qualidade do atendimento ofertado e visando
observar as normativas expressas na Constituição Federal de 1988, na Lei 8.069 de 1990, na
Lei 13.431 de 2017 e nas normativas municipais, orienta que os seus profissionais diante de
situação de violência devem:
• Receber a criança e/ou o adolescente e sua família com atenção e respeito;
• Se referir à criança e/ou ao adolescente e seu familiar sempre pelo nome;
• Saber ouvir; escuta qualificada e atenta às necessidades dos sujeitos;
• Adotar uma postura livre de julgamentos;
• Dar atenção total, buscando identificar além do que é dito, principalmente com crianças;
• Identificar se se trata da primeira escuta ou se já houve algum atendimento prévio pela rede
de proteção;
• Utilizar perguntas claras, e considerar a capacidade de compreensão dos sujeitos; utilizar
linguagem simples e acessível;
• Identificar as necessidades da criança;
• Informar todas as etapas do atendimento e a importância das medidas a serem tomadas;
• Elaborar Plano de Atendimento Familiar, com o planejamento das ações de acompanhamento
de acordo com as necessidades da família;
• Encaminhar para atendimento na rede, com relatório ou outro instrumento, que traga
informações mínimas necessárias, para evitar o reinício do atendimento e, por consequência,
a revitimização;
• Acompanhar os encaminhamentos e continuar ofertando atendimento/acompanhamento,
conforme planejamento.
Fonte: Elaboração própria.
4 Elaboração de projeto técnico-político da Unidade, que aborde aspectos de seu funcionamento interno, serviço
(s) ofertado (s), metodologia de trabalho que será adotada pela equipe, relacionamento com os usuários e com a rede
(Orientações técnicas do CREAS (2011, pág. 76).
5 Planejamento deve explicitar a proposta da Unidade e dos Serviços ofertados, considerando, objetivos e 139
metas a atingir em um determinado período de tempo, bem como os meios e recursos necessários para seu alcance.
Orientações técnicas do CREAS (idem, pág. 53)
Observe que o protocolo, prezando pela qualidade do atendimento, orienta como o/a
profissional deve se portar diante da situação de violência: o que fazer e como fazer. Dessa forma,
se configura como um importante instrumento que traz segurança tanto para o/a profissional que
está realizando o atendimento quanto para o/a usuário/usuária.
Posto isso, consideramos ser imprescindível que as unidades e/ou serviços de atendimento
busquem estabelecer seus protocolos, sendo essa uma ação positiva tanto para o/a profissional
quanto para o/a usuário/usuária.
140
Registro de informações
Neste município, adota-se o Relatório Informativo como modelo a ser seguido pela rede local de
proteção à criança e ao adolescente vítima ou testemunha de violência. Este documento deve
ser preenchido pelo órgão em que ocorreu a suspeita, a revelação ou a identificação da violência;
deve ser assinado por todos os profissionais que realizaram o atendimento e pelo gestor/
coordenador da unidade e/ou serviço; e conter informações coletadas junto às crianças e/ou aos
adolescentes e aos membros da família, dados do atendimento e as intervenções planejadas.
Fonte: Elaboração própria
A partir desse exemplo, podemos perceber que algumas orientações são realizadas, tais como:
o modelo de documento a ser utilizado, quais informações o documento deve conter e quem deve
preencher e assinar.
Por fim, vale mencionar que, conforme demonstra Digiácomo e Digiácomo (2018), a Lei
13.431/2017 orienta para a criação de um sistema informatizado, que permita o registro,
sistematização e compartilhamento de informações entre os diversos componentes da Rede de
Proteção.
141
Aula 2
Propostas de fluxogramas e documentação para
atendimento de criança e adolescente vítima ou
testemunha de violência
2.1 FLUXOS DE ATENDIMENTO À CRIANÇA E/OU AO ADOLESCENTE EM SITUAÇÃO DE
VIOLÊNCIA
Nesta aula vamos estudar os fluxos de atendimento à criança e ao adolescente em situação
de violência, perpassando pelo Fluxo Geral e apresentando três propostas para as unidades e
serviços do SUAS. Além disso, abordamos dois modelos de documento que integram o cotidiano
de trabalho dos profissionais do SUAS.
O fluxo é iniciado a partir do conhecimento da situação de violência6 por algum dos atores
do sistema de garantia de direitos. É dividido em oito áreas que fazem referência aos órgãos que
atuam no atendimento e proteção das crianças e adolescentes em situação de violência.
O fluxo tem uma linguagem própria e conhecer seus elementos é essencial para a sua
compreensão. O Tutorial sintético – modelagem de processos utilizando notação BPMN7 apresenta
os elementos gráficos do fluxo e seus significados, facilitando na compreensão do mesmo. Como
já apresentado, o fluxo é dividido em raias que indicam a atuação das instâncias envolvidas no
atendimento da criança e do adolescente em situação de violência. Dentro dessas raias, há os
retângulos azuis que apresentam as atividades realizadas pelos atores e estão ligados entre si e
aos losangos por setas que representam o curso das ações. Já os losangos amarelos podem indicar
caminhos paralelos ou excludentes: aqueles com uma cruz ao meio indicam ações que podem
ocorrer paralelamente; e os com um asterisco ao meio indicam caminhos que são excludentes.
6 Ao longo do módulo 02 apresentamos que a revelação da situação de violência pode chegar à rede de
proteção de formas variadas e destacamos as quatro principais formas que chegam no campo da assistência social.
7 Link para acesso: < https://legado.justica.gov.br/seus-direitos/politicas-de-justica/EJUS/arquivos/guia-
resumido-notacao-bpmn.pdf > apresenta mais informações que facilitam a compreensão do fluxo.
142
Para exemplificar, observamos a raia três “Rede de garantia de direitos (saúde, assistência
social e educação)”. Esta prevê o atendimento no âmbito da saúde e do SUAS e comunicação ao
Conselho Tutelar, delegado de polícia, Ministério Público e Defensoria Pública.
O fluxo apresenta que a saúde deve preencher a Ficha de Notificação de Violência Interpessoal
e o SUAS, especialmente o CREAS, realizar o acompanhamento sequencial. Além disso, é orientada
a troca de informações entre os atores.
Por meio da sua análise, é possível identificar as principais ações executadas por cada ator,
reafirmando a corresponsabilidade pelo atendimento e proteção do segmento infanto-juvenil. É
essencial que cada órgão, além de conhecer o seu papel, conheça também a responsabilidade dos
outros, para que todos os encaminhamentos necessários sejam efetivados.
143
CENTRO DE
CRAS
CONVIVÊNCIA COMUNICAR C.T, (SE
O CASO NÃO TIVER
ADVINDO DO C.T
OU FOR UM NOVO
CASO)
IMPLEMENTAR MEDIDAS
DE PROTÇÃO
SERVIÇO DE
ACOLHIMENTO
Não Sim
CASO ADVINDO DO
C.T OU SISTEMA DE
JUSTIÇA
ENCAMINHAR PARA
SERVIÇO DE
ENCAMINHAR PARA O ENCAMINHAR PARA O
ACOLHIMENTO
CRAS CREAS
(INSTITUCIONAL OU
FAMÍLIA ACOLHEDORA
ELABORAÇÃO DO ELABORAÇÃO DO
PLANO DE PLANO DE
ACOMPANHAMENTO ACOMPANHAMENTO
FAMILIAR FAMILIAR
REALIZAR
ELABORAÇÃO DO PLANO
ATENDIMENTO E
INDIVIDUAL DE
ACOMPANHAMENTO
ATENDIMENTO
SOCIOASSISTENCIAL
REALIZAR
ENCAMINHAMENTOS
NECESSÁRIOS
FORNECER
INFORMAÇÕES
ADICIONAIS AO C.T E
DEMAIS SERVIÇOS
RELEVANTES PARA O
144
CASO
Fonte: Elaboração própria com base no Fluxo de Atendimento na Assistência Social de Vitória da Conquista/BA.
O fluxo inicia-se com a situação de violência chegando ao SUAS, seja por meio da revelação
espontânea (ver Módulo 2) ou do encaminhamento por parte do Conselho Tutelar ou Sistema de
Justiça. Em seguida, temos a comunicação da situação ao órgão gestor da assistência social. Assim,
verificamos que o Conselho Tutelar ou o Sistema de Justiça devem encaminhar o caso à gestão
da política e não diretamente à unidade e/ou serviço de atendimento. Nessa direção, em caso de
revelação no âmbito do SUAS, cabe também aos equipamentos informarem ao órgão gestor.
Após o órgão gestor obter conhecimento do caso, irá encaminhar a demanda aos serviços
ou unidades competentes para atendê-la. Por exemplo, suponhamos que o Conselho Tutelar
encaminhe à gestão uma solicitação de atender a uma determinada família em situação de
vulnerabilidade, mas na qual não há indício de violência ou qualquer outra situação de violação
de direitos. Neste caso, a gestão identificará a necessidade do encaminhamento ao CRAS.
Dependendo do estudo realizado pelo CRAS ou CREAS, as unidades poderão realizar ações
de referência e contrarreferência. Uma família pode estar em acompanhamento (com plano de
acompanhamento familiar) desenvolvido pelo PAEFI, no CREAS e ser atendida em ações do PAIF,
no CRAS, como oficinas, palestras e outros, ou estar no SCFV. Os atendimentos dependem das
necessidades que cada situação específica apresenta. Nessa perspectiva, podemos observar que o
fluxo sinaliza, por meio do losango amarelo, a possibilidade de ações paralelas.
A situação chegando ao órgão gestor da assistência social deve ser encaminhada à proteção
social de alta complexidade para que o acolhimento seja feito. Pode acontecer do Conselho
Tutelar ou Sistema de Justiça encaminhar diretamente a criança ou adolescente para o serviço de
acolhimento, uma vez que a demanda se deu em dia e horário de não funcionamento do órgão
gestor. Neste caso, o serviço de acolhimento, o mais breve possível, deve informar o ocorrido à
gestão.
Quando o acolhimento tiver sido realizado em caráter emergencial, sem estudo de diagnóstico
prévio, isto é, sem estudo realizado por equipe interprofissional que fundamentou decisão judicial,
deve ser realizado um estudo de diagnóstico pós-acolhimento, a fim de avaliar a real necessidade
da medida ou possibilidade imediata de retorno da criança ou do adolescente para o convívio
familiar. Este estudo deve ser realizado por equipe interprofissional do órgão aplicador da medida
145
ou por equipe formalmente designada para este fim, com a contribuição do Conselho Tutelar,
Justiça da Infância e da Juventude e equipe de referência do órgão da Assistência Social (BRASIL,
2009). A equipe do Serviço de Acolhimento pode contribuir com a realização do estudo.
8 O Plano Individual de Atendimento deve conter os objetivos, estratégias e ações a serem desenvolvidos tendo
em vista a superação dos motivos que levaram ao afastamento do convívio e o atendimento das necessidades específicas
de cada situação (BRASIL, 2009). Esse documento deve compreender alguns aspectos como os motivos que levaram ao
acolhimento, configuração e dinâmica familiar, violência e outras formas de violação de direitos na família, demandas
específicas da criança, do adolescente e de sua família que requeiram encaminhamentos imediatos para a rede de
proteção, entre outros. O ECA traz alguns elementos que devem ser abarcados pelo Plano Individual de Atendimento
(Art. 101, 6º parágrafo).
146
Sempre que necessário, a rede socioassistencial, na medida em que desenvolve o processo de
acompanhamento socioassistencial com os sujeitos, deverá fornecer informações adicionais ao
Conselho Tutelar e/ou demais órgãos do Sistema de Garantia de Direito que sejam relevantes para
o caso.
Vejamos a distinção entre o uso interno e externo presente na Nota Técnica SNAS/MDS nº
02/2016.
Relatório para uso INTERNO do SUAS: São documentos que fazem parte da rotina dos/das
profissionais que atuam nas unidades e/ou serviços socioassistenciais e são elaborados a
partir de demandas da rede socioassistencial. Esses relatórios devem conter informações
acerca do atendimento e acompanhamento das famílias. São elementos desse tipo
de documento: a identificação da família, observações, pesquisas e os pareceres dos
profissionais. Além disso, é importante se atentar para o caráter privado e sigiloso de
algumas informações e as prerrogativas éticas e técnicas dos/das profissionais.
Relatório para uso EXTERNO do SUAS: São documentos apresentados com o objetivo de
prestar informações acerca dos indivíduos e famílias atendidos e acompanhados pelos
serviços socioassistenciais e devem ser elaborados a partir da demanda de órgãos externos
ao SUAS, como as unidades e/ou os serviços das demais políticas setoriais e do Sistema de
Justiça. Devem ser desenvolvidos em conjunto pelos /pelas coordenadores/coordenadoras
dos serviços com os/as técnicos/técnicas de referência. Além disso, os/as profissionais
devem se atentar para duas questões: 1) Não devem ser enviadas as versões originais de
cadastro, prontuários, fichas ou qualquer outro documento que contenha informações
acerca do atendimento e acompanhamento dos sujeitos; e 2) O caráter privado e sigiloso de
algumas informações.
Fonte: Quadro elaborado pelos autores a partir de informações contidas em Brasil (2016).
147
Neste sentido, podemos observar que há orientações quanto à elaboração e ao envio de
documentos entre serviços. Diante disso, e reconhecendo a necessidade de um registro de
atendimento e de um relatório de compartilhamento de informações bem feito, apresentamos
orientações para a elaboração de um prontuário, que pode ser utilizado para registrar as
informações sobre o trabalho social desenvolvido com as famílias e indivíduos, e de um relatório,
que serve para os/as profissionais do SUAS encaminhar informações aos/às profissionais dos
demais órgãos do SGD.
Essas informações aprimoram a qualidade dos serviços ofertados, uma vez que devem ser
utilizadas para subsidiar o processo de planejamento e operacionalização do acompanhamento
familiar (BRASIL, 2017), bem como fundamentar possíveis pareceres e encaminhamentos. Assim,
o registro de informação constitui-se como uma importante ferramenta tanto para a gestão
local da política de assistência social, coordenadores/coordenadoras de unidades e serviços
socioassistenciais quanto para profissionais das equipes de referência.
Além disso, quando utilizado o prontuário físico, este deve ser guardado em local seguro e de
acesso restrito. Sendo sua guarda de responsabilidade da unidade (da pessoa responsável pela
coordenação do equipamento) e da equipe técnica de referência, de modo que não é permitido
o/a usuário/usuária levar ou guardar o documento consigo.
Embora não seja permitido que a guarda do prontuário fique com o/a usuário/usuária, esse/
essa tem o direito a acessar o seu registro, bem como pedir esclarecimento acerca do conteúdo,
uma vez que a promoção do acesso à informação é um princípio ético do trabalho social com
famílias e, portanto, deve fundamentar a intervenção profissional. No entanto, é de extrema
importância que, ao ser solicitado o acesso ao registro, a equipe esteja atenta para as situações
que envolvam compromisso do dever ético do/da profissional em relação a algum membro da
família. O/A profissional deve estar ciente que informações que dizem respeito à intimidade, vida
privada, honra e imagem das pessoas, por exemplo, NÃO são públicas e deverão ser mantidas em
sigilo (BRASIL, 2017, p. 21).
Outro fator que deve ser considerado no manuseio do documento é a diretriz de matricialidade
sociofamiliar estabelecida na Política Nacional de Assistência Social. A partir dessa, fica posto que
o Prontuário SUAS deve ser aberto para cada família e não para cada membro da família (BRASIL,
9 Apenas os profissionais de nível superior que atuam nas equipes de referência dos CRAS ou CREAS que
realizam o trabalho social com a família no âmbito do PAIF e do PAEFI devem ter acesso ao Prontuário SUAS. Os
profissionais de nível fundamental e médio não poderão ler nem fazer anotações no documento. No entanto, assumem
o mesmo compromisso que a coordenação e profissionais de nível superior do CRAS ou CREAS que atuam diretamente
no acompanhamento da família, para resguardar todas as informações que tiverem acesso por causa de sua atuação na
unidade. Sendo, assim, fundamental a postura ética das/dos profissionais na garantia do sigilo das informações prestadas
pela família usuária (BRASIL, 2017)
149
2017). Contudo, o documento deve preservar as vivências e características de cada pessoa da
família. Dessa forma, se apenas um membro vivenciou uma determinada situação esta informação
será registrada apenas para aquela pessoa.
Podemos perceber que as questões são amplas e nos permitem identificar variados
aspectos acerca da família como a sua dinâmica, situação financeira, riscos e vulnerabilidades,
potencialidades, suas necessidades, a rede de apoio, etc. Assim, tais questionamentos possibilitam
conhecer a situação familiar e desenhar estratégias de intervenção no âmbito da assistência social.
150
Agora que já conhecemos um modelo de documento que pode ser utilizado para registro
de informações no âmbito das unidades socioassistenciais, podemos direcionar nosso estudo
para outro documento, desta vez um utilizado no compartilhamento de informações: o relatório
socioassistencial.
O relatório utilizado para comunicação externa não deve ser confundido com relatório social,
pois é um instrumento de registro de compartilhamento de informações acerca de uma determinada
situação. Ele deve conter dados referentes às necessidades apresentadas pelo indivíduo e/ou pela
família; as ações planejadas e desenvolvidas, bem como o resultado obtido; e os encaminhamentos
efetivados. Esses documentos devem ser elaborados pelos/pelas profissionais da equipe de
referência dos serviços socioassistenciais, bem como pelo/pela coordenador/coordenadora deste
serviço e, sempre que possível ou solicitado, pelos/pelas usuários/usuárias, de modo que esses
conheçam e se posicionem quanto às informações que serão enviadas aos órgãos requisitantes
(NEVES; ALBUQUERQUE, 2020).
No momento de elaboração, os/as profissionais devem estar atentos aos aspectos éticos e
políticos de suas profissões e aos princípios éticos que norteiam as intervenções das equipes
de referência do SUAS. Assim, devem estar comprometidos com os direitos socioassistenciais,
qualidade dos serviços, participação social, acesso à informação, entre outros.
Além desses elementos, é orientado que, no desenvolvimento do relatório, seja utilizada uma
redação formal e uma linguagem precisa, inteligível e bem estruturada. É recomendável, também,
que seja evitada a linguagem informal, como as gírias, e não devem ser utilizados discursos
pautados no senso comum, tendo em vista que, muitas vezes, eles reproduzem estigmas e
preconceitos (NEVES; ALBUQUERQUE, 2020). É preciso reconhecer e respeitar os diversos arranjos
familiares, as singularidades e a diversidade, conforme as diretrizes expressas nas normativas do
SUAS. Veremos um exemplo mais adiante.
Abaixo apresentamos um check list de elementos que devem estar contidos no relatório.
Lembre-se, essa lista é apenas uma orientação, cabe ao/à profissional identificar, a partir das
requisições recebidas, as informações que considera relevantes para serem inseridas nos relatórios
e a especificidade de cada caso/situação. Ainda, as informações prestadas devem observar a
151
pertinência e a relevância, isto é, devem estar relacionadas com o que foi solicitado e são necessárias
para embasar uma melhor tomada de decisão da autoridade requisitante ou para possibilitar a
continuidade dos atendimentos nos serviços subsequentes. (NEVES; ALBUQUERQUE, 2020).
• Histórico
No histórico é importante apresentar brevemente a situação familiar:
Qual situação a levou ao SUAS (como acessou, quando, porquê); condições de acesso da família a serviços,
programas e projetos das diversas políticas públicas que possam responder às suas necessidades; situações
de vulnerabilidade e risco vivenciadas pela família que repercutam sobre sua capacidade de prover cuidados;
situação atual da criança ou adolescente e de sua família, inclusive potencial e dificuldades da família para
exercer seu papel de cuidado e proteção; se há padrões transgeracionais de violação de direitos; situações atuais
e pregressas de violência intrafamiliar contra a criança e o adolescente, gravidade e postura da família em relação
à mesma; riscos identificados; quais intervenções foram propostas ou já foram realizadas; e quais resultados
foram obtidos.
• Encaminhamento/Parecer
O último item do relatório deve conter informações que respondam à solicitação do serviço ou autoridade que
demandou o relatório ou, em caso de encaminhamento, deve conter informações acerca da demanda que está
sendo enviada à unidade ou serviço que receberá o caso.
Por exemplo: Suponhamos que o relatório será enviado ao serviço de saúde solicitando o acompanhamento
psicológico a uma adolescente vítima de abuso sexual. Neste caso, o documento deve conter informações
referentes à situação de violência, estado da vítima, o relatório sobre a escuta especializada, quais providências
já foram adotadas. Sempre adotando os cuidados necessários para preservar a vítima.
Fonte: Elaborado pelas autoras com base em informações contidas em NEVES; ALBUQUERQUE (2020) e Orientações
técnicas dos serviços de acolhimento para crianças e adolescentes (2009).
152
Vejamos um exemplo de relatório socioassistencial:
RELATÓRIO SOCIOASSISTENCIAL
Em 08 de novembro de 2019, Ana Paula Martins (32 anos) procurou o Centro de Referência
de Assistência Social (CRAS) para solicitar apoio para alimentação de seu filho mais novo,
que possui deficiência. A usuária, residente da rua São Joaquim, nº 17, Bairro São José do
município de Paulina, vive com seus dois filhos Caio Martins (08 anos) e Arthur Martins
Firmino (05 anos) e seu marido Gilberto Santos Firmino (padrasto de Caio e pai biológico de
Arthur).
Arthur sofre de Paralisia Cerebral Infantil (CID 10 – G80.1), conforme laudo médico
apresentado. A criança possui diagnóstico desde os nove meses, fazendo acompanhamento,
desde então, no Centro Especializado de Reabilitação III (CER III) localizado no município
Santa Helena, onde faz tratamento médico, fisioterápico, terapia ocupacional, nutricional
e fonoaudiológico. A família também é atendida por esse CRAS: Ana Paula participa
assiduamente do grupo de familiares de pessoas com deficiência, que ocorre quinzenalmente,
e também participa em outras ações do PAIF.
153
Diante dessa situação, o Centro Especializado de Reabilitação III demandou à Secretaria
Municipal de Saúde de Paulina a concessão de dieta enteral industrializada para a família.
A solicitação foi recusada sob a justificativa da família possuir condições de adquirir por
conta própria a dieta ou fabricá-la. Tendo em vista a recusa, a Unidade Básica de Saúde de
abrangência do bairro São José enviou uma nova solicitação a Secretaria de Saúde de Paulina,
a qual manteve o posicionamento de recusa.
Desse modo, considera-se que a família não possui condições econômicas para arcar com
os custos da compra da dieta enteral, sendo sua concessão pelo poder público fundamental
para assegurar o direito à vida, à saúde e à alimentação preconizadas pela Constituição Federal
de 1988 e Estatuto de Criança e do Adolescente. A Resolução CNAS nº. 39/2010, menciona
em seu Art. 1º as provisões que devem ser fornecidas por outras políticas, considerando a
recomendação da área de saúde e o caráter não eventual da necessidade de alimentação
enteral: Afirmar que não são provisões da política de assistência social os itens referentes a
órteses e próteses, tais como aparelhos ortopédicos, dentaduras, dentre outros; cadeiras de roda,
muletas, óculos e outros itens inerentes à área de saúde, integrantes do conjunto de recursos
de tecnologia assistiva ou ajudas técnicas, bem como medicamentos, pagamento de exames
médicos, apoio financeiro para tratamento de saúde fora do município, transporte de doentes,
leites e dietas de prescrição especial e fraldas descartáveis para pessoas que têm necessidades
de uso.
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Encaminhamento: Diante do exposto, após reunião realizada no dia 10 de maio de 2021,
com a presença de representantes do CER III, da Unidade Básica de Saúde e do Centro de
Referência de Assistência Social (CRAS) (órgãos que já realizam acompanhamento à família),
foi avaliada a importância de articulação entre a gestão de assistência social e de saúde
para atender à necessidade urgente dessa família, bem como de demais famílias que
possuem pessoas que necessitam de alimentação enteral e de outras demandas que não
são claramente identificadas como ofertas da política de assistência social, para avaliação de
como podem ser supridas tais necessidades do campo da saúde. Assim, solicita-se o apoio
desta secretária de assistência social e nos colocamos à disposição para apoiar no que for
necessário. Informamos que o Conselho Tutelar foi informado e também está acompanhando
a situação. Sugere-se, caso a demanda de articulação com a Secretaria de Saúde não se
realize, que o Ministério Público seja comunicado.
XXXXXXXXXXXXX
Assistente Social
CRESS XXXXXX
XXXXXXXXXXXX
Coordenadora CRAS
Até aqui pudemos observar que atender crianças e adolescentes em situação de risco social,
violência e outras violações, assim como suas famílias não é uma tarefa fácil, requer que o/a
profissional movimente o seu aporte teórico-metodológico e técnico-operativo e que tenha
compromisso ético, além da habilidade de articulação, diálogo e construção de estratégias.
Cabe à gestão em seus três níveis de governo, a coordenação dos serviços e aos/às profissionais
um compromisso com os princípios de proteção integral e prioridade absoluta, que busquem
materializar essas noções na elaboração das políticas públicas, gestão do território e na qualidade
do atendimento prestado.
Este curso teve o intuito de qualificar o atendimento realizado pelos profissionais do SUAS.
Esperamos que o/a cursista tenha apreendido o conteúdo trabalhado e reafirme a sua posição na
luta pela defesa dos direitos das crianças e adolescentes.
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REFERÊNCIAS E
SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS
NORMAS:
BRASIL. Decreto Nº 8.727, de 28 de abril de 2016. Dispõe sobre o uso do nome social
e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da
administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Diário Oficial da União de 29 de
abril de 2016 [online]. Disponível em: < https://bityli.com/e3U9Q>. Acesso em: 10 abr. 2021.
LIVROS E ARTIGOS:
157
(SUAS) no sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha
de violência. Brasília: Ministério da Cidadania/SEDS/SNAS, 2020. 44 p. Disponível em: http://blog.
mds.gov.br/redesuas/wp-content/uploads/2020/03/SUAS_garantia_direitos_crian%C3%A7as_
adolescentes_vitimas_testemunhas_violencia.pdf. Acesso em: 17 fev. 2021.
SUGESTÃO BIBLIOGRÁFICA
RIBAS JUNIOR, F., et al. (org.). Conhecer para transformar: Guia para diagnóstico e
planejamento da política municipal de proteção integral das crianças e adolescentes. São
Paulo: Fundação Telefônica, 2011. 332 p. Disponível em: <https://crianca.mppr.mp.br/arquivos/
File/publi/pro_menino/conhecer_para_transformar_telefonica_2011.pdf> .
158
MINISTÉRIO DA CIDADANIA
Ministro da Cidadania
João Roma
Secretaria Executiva
Luiz Galvão
Equipe técnica:
Gustavo André Bacellar Tavares de Souza
Gustavo Vellozo Barreira
Natália da Silva Pessoa
Equipe técnica:
Deusina Lopes da Cruz
Flávia Renata Lemos de Souza
Elaboração de Conteúdo/Desenvolvimento:
Claudia Gomes de Castro – Pesquisadora do Instituto de Políticas Públicas e Desenvolvimento Sustentável
(IPPDS/UFV)
Rita de Cássia Cesarino - Pesquisadora do Instituto de Políticas Públicas e Desenvolvimento Sustentável
(IPPDS/UFV)
Gabriela Santos Gomes - Bolsista do Instituto de Políticas Públicas e Desenvolvimento Sustentável (IPPDS/
UFV)