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OS RIOS AMAZONAS E MADEIRA - ESBOÇOS E RELATOS DE UM EXPLORADOR - FRANZ KELLER-LËUZINGER (1835-1890)

Franz Keller-Lëuzinger (1835-1890) foi um engenheiro “Cada gravura da obra aqui apre-
alemão, botânico, explorador, desenhista e pioneiro da fo- sentada impressiona pela precisão
tografia no Brasil que, em expedição liderada por seu pai, do tracejado e exatidão das repre-
Joseph Keller, também engenheiro, percorreu a Amazônia sentações da fauna, da flora e dos
entre 1867 e 1868, comissionado pelo Governo Imperial tipos humanos com que a comitiva
para realizar levantamentos estatísticos e medições dos lei- de Keller vinha a interagir em suas

TRADUÇÃO, APRESENTAÇÃO E NOTAS DE ADRIANO GONÇALVES FEITOSA


tos e margens dos rios Amazonas e Madeira, de forma a paradas. Mesmo nas passagens de-
averiguar a viabilidade da construção de ferrovias na re- sacompanhadas de ilustrações, os
gião. Embora os mapas e ilustrações da expedição sejam leitores poderão ver o cenário tomar
Tradutor: amplamente conhecidos e referenciados pela comunidade forma e os personagens ganharem
ADRIANO GONÇALVES FEITOSA. acadêmica, até o momento os relatos da comissão jamais vida, como os passageiros do vapor
Mestre pelo Programa de Pós-Gradua- haviam sido traduzidos para a língua portuguesa. A pre- Belém, que levou a comissão até
ção Sociedade e Cultura na Amazônia
sente tradução nasceu da paixão do tradutor pela leitura de Manaus: o “vendeiro português, in-
(PPGSCA/UFAM). Bacharel em Direi-
to pela Faculdade de Direito da Uni- relatos de cronistas, viajantes, exploradores, naturalistas e capaz de tomar gosto por qualquer
versidade Federal do Amazonas (FD/ aventureiros, objetivando, sobretudo, divulgar a um públi- coisa que não fosse a contagem de
UFAM). co maior essa riquíssima nova fonte de potenciais pesquisas seu lucro”, o “colono americano, de
interdisciplinares, bem como contribuir para a superação um dos estados do sul dos Estados
de quaisquer barreiras linguísticas que pudessem vir a afas- Unidos, que emigrara logo após a
tar novos leitores do precioso conteúdo da obra original. derrota dos Confederados”, o “ofi-
Para compreender a Amazônia de ontem e de hoje, entre- cial da marinha peruana, que viera
tanto, não se deve apenas procurá-la nas páginas amarela- com ‘intenções amigáveis’ para re-
das do passado: deve-se vivê-la. portar ao seu governo os avanços,
ou recuos, do Brasil nos esforços de
embate a qualquer ofensiva surpre-
sa”, ou o “monge capuchinho, de
A VIR longas barbas, certamente saudoso
dos tempos em que a batina e o es-
DIALÉTICA EDIT capulário dos religiosos serviam de
fronteira intransponível entre o go-
verno e os índios”.
CONSELHO EDITORIAL

Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia Luiz Carlos de Souza Auricchio


André Luís Vieira Elói Marcelo Campos Galuppo
Bruno de Almeida Oliveira Marcos Vinício Chein Feres
Bruno Camilloto Arantes Maria Walkiria de Faro C. G. Cabral
Bruno Valverde Chahaira Marilene Gomes Durães
Cintia Borges Ferreira Leal Rafael Alem Mello Ferreira
Flavia Siqueira Cambraia Rafael Vieira Figueredo Sapucaia
Frederico Menezes Breyner Rayane Araújo
Jean George Farias do Nascimento Régis Willyan da Silva Andrade
José Carlos Trinca Zanetti Renata Furtado de Barros
José Luiz Quadros de Magalhães Robson Araújo
Leonardo Avelar Guimarães Rogério Nery
Ligia Barroso Fabri Vitor Amaral Medrado
Copyright  2021 by Editora Dialética Ltda.
Copyright  2021 by Franz Keller-Lëuzinger
Copyright da tradução  2021 Adriano Gonçalves Feitosa.

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Capa: Ygor Moretti


Diagramação:
Diagramação: Sofia
Mirela Souza
Cavalcante
Revisão: Responsabilidade do autor

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

K29r Keller-Lëuzinger, Franz [1835-1890]


Os Rios Amazonas e Madeira : esboços e relatos de um explorador /
Franz Keller-Lëuzinger; tradução, apresentação e notas Adriano
Gonçalves Feitosa. – Belo Horizonte : Editora Dialética, 2021.
304 p.

ISBN 978-65-5956-831-4

1. Rio Amazonas. 2. Rio Madeira. 3. Relatos. I. Keller-Lëuzinger,


Franz [1835-1890]. II. Título.

CDD 900
CDU 93:91

Ficha catalográfica elaborada por Mariana Brandão Silva CRB-1/3150


APRESENTAÇÃO DA TRADUÇÃO

Nascido em Manheim, Alemanha, em 30 de agosto de 1835, o


engenheiro, desenhista e fotógrafo alemão Franz Keller-Lëuzinger1 se de-
dicou ao exercício da profissão junto ao pai, Joseph Keller2 – engenhei-
ro-chefe –, planejando e executando obras viárias a partir da década de
1850, a serviço do Império. Os projetos comissionados pelo Brasil lhe
propiciaram presenciar in loco as condições e particularidades de suas
principais províncias, além das mais remotas e inacessíveis, como à época
era o caso do Amazonas, cuja navegação internacional apenas fora aberta
por decreto imperial de 1867.
O leitor que almeje ter contato primário com os escritos de
Keller-Lëuzinger encontrará apenas um único livro de sua autoria3, pu-
blicado em alemão e inglês no ano de 1874, condensando as observações
e esboços realizados durante sua expedição pela Amazônia, ocasião em
que ele e o pai4 realizaram alguns dos levantamentos topográficos e me-

1 O sobrenome Lëuzinger foi adotado após o casamento com Sabine Christine


Lëuzinger (1842-1915), filha de Georges Lëuzinger (1813-1892), célebre livreiro,
editor e fotógrafo suíço radicado no Brasil.
2 Para fins de obtenção de resultados mais amplos e abrangentes em eventuais pesquisas
complementares, é importante esclarecer que os nomes de Franz e Joseph aparecem
em registros da época ora na grafia original, ora aportuguesados para “Francisco
Keller” e “José Keller”. Por vezes, Joseph também aparece grafado como “Josef ”,
3 The Amazon and Madeira Rivers - Sketches and descriptions from the notebook of an
explorer. Londres: Chapman & Hall, 1874. 177p.
4 Analisando registros de movimentação portuária em periódicos contemporâneos à
expedição, surpreendemo-nos ao descobrir que Franz e Joseph viajaram ao Pará e ao
Amazonas acompanhados das senhoritas Sabine Keller, esposa de Franz, e Pauline
Keller, irmã de Franz – ambas com nomes aportuguesados para “Sabina” e “Paulina”
–, inicialmente fazendo-nos cogitar se não teriam acompanhado toda a extensão da
jornada, o que não seria incomum, porém pouco frequente, a exemplo da célebre
Elizabeth Agassiz, que acompanhara o marido Louis Agassiz em expedição prévia,
e a quem devemos os registros meticulosos dos acontecimentos daquela expedição.
Todavia, encontramos em edição do periódico “Amazonas”, Ano II, N.º 104, p. 2,
de 30 de maio de 1868, despacho publicado com determinação para concessão
de “passagens de Estado” a Sabine e Pauline em embarcação da Companhia do
Amazonas, de Manaus a Belém do Pará, e, na mesma edição, despacho à Tesouraria
da Fazenda para cobrir (às custas do Ministério da Agricultura) as despesas de
dições necessárias para embasar os estudos prévios e projetos de constru-
ção de estradas de ferro na região.
Em nosso vernáculo, houve ainda a publicação de um Relató-
rio Técnico bastante sucinto, datado de 1869, apresentado ao Ministé-
rio da Agricultura brasileiro por Franz Keller e seu pai, Joseph Keller,
engenheiro-chefe da expedição. Ademais, a revista Ilustração Brasileira5,
em edição debutante de 1876 (pp. 05-07), publicou uma breve tradução
para a língua portuguesa de alguns poucos excertos resumidos do livro
de Keller, dedicando apenas duas páginas e um terço à memória da obra,
com maior ênfase na exposição de três monumentais ilustrações: a Serra
dos Órgãos e o Corcovado, no Rio de Janeiro; e um trecho das margens
do rio Madeira, no Amazonas. No decorrer do ano de 1876, algumas ou-
tras gravuras da obra original foram sendo publicadas, acompanhadas de,
geralmente, uma página de texto traduzido, de forma a contextualizá-las
aos leitores. Jamais houve, porém, edição integral da obra de Keller na
língua portuguesa, sistemática e integralmente traduzida, e nem mesmo
os excertos mencionados foram considerados para subsidiar a presente
tradução, uma vez que muitas das expressões e dos termos utilizados pela
revista na década de 1870 dificilmente seriam compreendidos com facili-
dade por um público maior de leitores dos dias correntes.
Na edição londrina, com a qual trabalhamos diretamente para
esta tradução, contam-se sessenta e oito ilustrações da expedição que fo-

Joseph e Franz, que em 25 de maio de 1868 requisitavam passagens em vapor


de Manaus rumo a Serpa, de onde seguiriam até o rio Madeira. Em 26 de maio,
são mencionados os engenheiros “que seguem em desempenho de sua comissão
exploradora do Rio Madeira” “José Keller”, “Francisco Keller” e “José Manoel
da Silva”, acompanhados de dois assistentes, a quem se concedem as passagens
requisitadas no dia anterior. Em 27 de maio, noticia-se a partida da comissão,
oficiando as autoridades de Serpa, Borba, Crato e Santo Antônio, no Amazonas, e o
comandante do forte do Príncipe de Beira, no Mato Grosso, para prestarem apoio
e auxílio na consecução de seus trabalhos. As senhoritas Sabine e Paulina retornam
sozinhas ao Rio de Janeiro, em 19 de junho de 1868, com desembarques registrados
no periódico carioca “Correio Mercantil”, Ano XXV, N.º 170, p. 3, de 20 de junho de
1868. Franz e Joseph apenas retornariam ao Rio de Janeiro em 1869.
5 Revista integralmente digitalizada pela Biblioteca Nacional brasileira, e disponível
na Hemeroteca Digital Brasileira, e cuja referência apenas alcançamos por mérito
do trabalho organizado por Knauss, Oliveira e Malta (2011). A revista em si se
encontra integralmente disponibilizada para consulta virtual em: http://memoria.
bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=758370&pagfis=1.
ram amplamente divulgadas à época, tanto nas grandes cidades do Brasil
quanto no estrangeiro.6
Ao folhear entusiasmadamente as quase 200 páginas da edição
de 1874, impressionam as pequenas descobertas em cada nova gravura:
a precisão dos detalhes no tracejado, os sombreamentos primorosos, a
exatidão das representações da fauna, da flora e dos tipos humanos com
que a comitiva de Keller vinha a interagir em suas paradas. À medida que
se avança na leitura atenta de suas descrições, observações e digressões, o
conjunto das ilustrações aviva a imaginação.
Mesmo nas ricas passagens e trechos que, infelizmente, não são
premiados por ilustrações, com um pouco de empenho e criatividade os
leitores também enxergarão com a mesma vivacidade os eventos narra-
dos e, principalmente, verão tomar forma os personagens que cruzaram
o caminho do nosso narrador, como os passageiros do vapor Belém: o
“vendeiro português, incapaz de tomar gosto por qualquer coisa que não
fosse a contagem de seu lucro”, o “colono americano, de um dos estados do
sul dos Estados Unidos, que, desgostoso, emigrara logo após a derrota dos
Confederados”, o “oficial da marinha peruana, que, discretamente à paisa-
na, viera com ‘intenções amigáveis’ para ter conta do estado das coisas no
país vizinho e para reportar ao seu governo os avanços, ou recuos, do Brasil
nos esforços de embate a qualquer ofensiva surpresa dos peruanos”, ou o
“monge capuchinho, de longas barbas, certamente saudoso dos tempos em
que a batina e o escapulário dos religiosos serviam de fronteira intranspo-
nível entre o governo e os índios”.
Se, por um lado, alguns trechos dos escritos de Keller esboçam
a associação das paisagens amazônicas a uma monotonia maçante e te-
diosa da qual o autor fala em mais de uma passagem7, por outro, essas
6 As ilustrações da obra, reconstruídas com base nos esboços de Franz, foram
gravadas em madeira na oficina gráfica de Adolf Cloß (1840-1894), como ficou
registrado na folha de rosto da edição alemã de 1874. Não há, portanto, nenhuma
prova de envolvimento direto de Ferdinand Keller (1842-1922), professor de
pintura histórica e irmão de Franz, na elaboração das ilustrações, exceto um breve
agradecimento de Franz aos “conselhos” de composição recebidos de seu irmão.
A propósito, Ferdinand nem sequer esteve presente na expedição, sua presença
no Brasil limitando-se a períodos entrecortados em sua juventude. No período de
tempo específico em que Joseph e Franz cruzavam a selva amazônica e as intrépidas
corredeiras do rio Madeira, Ferdinand excursionava pela Europa aperfeiçoando sua
técnica e inserindo-se nos principais círculos artísticos da época.
7 A propósito, posteriormente, tornar-se-iam comuns em escritos de outros viajantes
observações similares a respeito do ritmo lento e maçante da região amazônica.
Com bastante frequência, os autores da época repetem a dualidade que disciplina a
representações, principalmente as da fauna e flora amazônicas, resgatam
o deslumbramento pioneiro dos primeiros cronistas, e um engrandeci-
mento muitas vezes passional e exagerado das belezas naturais das terras
brasileiras, com o diferencial de à época já se revestirem do discurso inte-
gracionista e modernizador a serviço do capital industrial.8
Como o próprio Keller esclarece na ampla introdução aos seus
relatos, sua narrativa tem como principal propósito chamar a atenção das
autoridades brasileiras para algumas ações prioritárias que, segundo ele,
favoreceriam o real progresso e desenvolvimento do Brasil: (i) a abolição
da escravatura, então em progressivo estágio de superação embrioná-
ria em nações ditas desenvolvidas, que gradualmente a substituíam por
mão-de-obra livre; (ii) maiores incentivos à imigração de colonos ale-
mães para o desenvolvimento da agricultura brasileira, assegurando-lhes
melhores condições de vida e paridade na aquisição de terras em relação
aos grandes latifundiários brasileiros; e (iii) a modernização dos meios
de transporte e comunicação que serviriam à integração do vasto territó-
rio brasileiro, dentre os quais Keller destaca a interiorização das estradas
de ferro para o melhor escoamento dos gêneros coletados ou bens produ-
zidos longe das zonas litorâneas
Quando tangencia a temática social sob a perspectiva identitária
da jovem nação em vias de formação, Keller o faz de modo incidental,
não deixando de reproduzir as simplificações e reducionismos mais cor-
rentes à sua época. Se o autor dedicou mais tinta a um fim específico, foi
buscando convencer o leitor (evidentemente, leitores europeus) da viabi-

vida amazônica, ora submetida ao tédio das águas calmas e da sucessão de cenários
indistinguíveis entre si, ora à violência e inclemência das chuvas e cheias tropicais,
agravantes permanentes das longas distâncias, dos obstáculos naturais a serem
vencidos a todo instante, e das dificuldades quase homéricas de comunicação com
determinadas localidades.
8 O que, todavia, não representou ineditismo à época. Citem-se, por exemplo, os
protestos principalmente dos Estados Unidos da América quanto às restrições
do rio Amazonas à navegação internacional, que vigoravam antes de 1867, com
remissão especial ao episódio capitaneado pelo tenente Matthew Fontaine Maury,
oficial da Marinha estadunidense, em 1853: em publicação no Correio Mercantil do
Rio de Janeiro, o oficial clamava pela intervenção das autoridades de seu país, sob
o pretexto de que o “espírito nipônico” (em referência ao isolacionismo japonês na
era Meiji) adotado pelo Brasil obstava o progresso de todas as nações copossuidoras
do rio Amazonas, e que o Império, valendo-se de sua posição geográfica, coagia
egoisticamente as repúblicas menores do entorno a celebrarem tratados bilaterais
prejudiciais ao desenvolvimento da região e ao máximo aproveitamento dos
recursos amazônicos por todas as nações efetivamente merecedoras.
lidade fértil de seu projeto, aproveitando-se de uma brasilidade incipiente
e disforme para incentivar iniciativas estrangeiras em solo brasileiro, de
forma a europeizar e modernizar o Brasil. Todavia, não perde valor o
conjunto da obra, que registrou para a posteridade aspectos humanos,
sociais, econômicos e políticos dos lugares por onde a comitiva passou.
Suas observações quanto à Amazônia, embora embasadas quanto
aos aspectos naturais, físicos e geográficos (com anotações que demons-
tram um domínio virtuoso sobre os dados disponíveis à época, coletados
por diversas expedições antecedentes devidamente referenciadas no texto
original) não deixam de ser superficiais quanto à análise das populações
inseridas naquele contexto, em especial os povos indígenas, ora infantili-
zados e romantizados, ora vistos sob o olhar ocidental inclemente, intole-
rante e por vezes preconceituoso. Considerado o curto tempo em que se
deteve no Amazonas, e a ausência de interesse e formação específicos de
Keller para a interpretação de suas tradições e estilos de vida, entende-se
que tais registros, por mais valiosos que sejam para reconstruir parcial-
mente costumes e conhecimentos esquecidos, não se esteiam em base
científica, não constituindo nem uma etnografia precursora, nem uma
sociologia prototípica; é, em verdade, a típica miscelânea dos viajantes
naturalistas dos séculos XVIII e XIX, arautos das ciências universais (e
muitas das vezes não mais do que verdadeiros generalistas), a quem se
permitia emitir opiniões acerca de todo e qualquer aspecto da realidade.
O que de mais marcante resulta da análise dos escritos de Keller-
-Lëuzinger são, sobretudo, as suas próprias contradições. Afinal, de um
modo ou de outro, toda obra reflete não apenas a personalidade e os in-
teresses de seu autor, como as influências externas que o moldaram. Ao
tratar dos tipos humanos, é com frequência que se notam esboços de um
humanismo solidário que, não muitas linhas em seguida, é contestado
por preconceitos gritantes e anticientíficos que o autor parece reproduzir
irrefletidamente, ou talvez como estratégia de adequação de seus escritos
(originalmente, demasiadamente técnicos) ao mercado literário de via-
gens muito em voga à época. Reconhece-se, também, no autor um espí-
rito aparentemente democrático, justificado em interesses afinados aos
do capital industrial europeu, a pretexto dos benefícios da modernização
e do progresso civilizadores, mas que contrasta e conflita com a preser-
vação de quaisquer regimes de pensamento e estilos de vida divergentes,
sempre fadados a sucumbir diante da marcha irretratável da civilização.
Contudo, merece destaque sua persistência desbravadora du-
rante as expedições de que participou, em uma aparente demonstração
de desprendimento material típico dos viajantes e exploradores mais
virtuosos em seus encargos. Franz Keller-Lëuzinger foi, sem dúvida,
um viajante multitalentoso. Seus relatos de viagem são um manifesto
de seu tempo, de suas contradições internas e das iniquidades histó-
ricas e sociais do século em que viveu, certamente nos cabendo uma
leitura crítica associada a uma interpretação compreensiva. Não fosse a
resiliência e a coragem humanas de se sujeitar a perigos e obstáculos de
terras distantes e desconhecidas, aos desconfortos e dificuldades de lín-
guas e costumes diferentes, e a severas restrições de recursos com que
se manter, a mente coletiva da humanidade pouco teria avançado em
matéria de autoconhecimento. Homens e mulheres que, desde tempos
muito remotos, rumaram ao desconhecido motivados tão-somente pela
curiosidade em alcançar o horizonte, a despeito de quaisquer riscos,
merecerão sempre a admiração e o respeito por seu legado.

Manaus, 22 de março de 2021

Adriano Gonçalves Feitosa

REFERÊNCIAS

KELLER-LËUZINGER, Franz. The Amazon and Madeira rivers. London: Cha-


pman & Hall, 1874. 177 p. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/
id/227325. Acesso em 20 dez. 2018.

__________________. Viagem d’exploração ao Amazonas e ao Madeira. Illus-


tração Brasileira, Ano I, N.º 1, de 1º de julho de 1876. Disponível em: http://
memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=758370&pagfis=1. Acesso em
15 de dezembro de 2018.

KNAUSS, Paulo; OLIVEIRA, Claudia de; MALTA, Marize (orgs.). Revistas Ilus-
tradas: modos de ler e ver no Segundo Reinado. Rio de Janeiro: MAUADX, 2011.
192 p.

MAURY, Mathew Fontaine. O Amazonas e as costas atlânticas da América Meri-


dional. Rio de Janeiro: Typographia de M. Barreto, 1853. 39 p.
PREFÁCIO

Em junho de 1867, meu pai e eu estudávamos mapas e planos de uma


prévia expedição à província do Paraná, quando fomos comissionados pelo
Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, no Rio de Janeiro, para
explorar o rio Madeira e projetar uma ferrovia acompanhando suas margens,
onde, em razão das corredeiras, a navegação é quase impossível.
Desde o fim do século passado – quando em consequência do Tratado de
Ildefonso, em 1777, astrônomos portugueses e oficiais do censo subiram o rio Ma-
deira –, não mais se executaram planos de exploração com regularidade ou credi-
bilidade no imenso vale coberto pela floresta. A ousada descida do rio efetuada há
cerca de vinte anos por Gibbon, oficial da Marinha dos Estados Unidos da Amé-
rica, devo observar, foi demasiado apressada e realizada com muitas limitações.
Outra expedição, comandada por um engenheiro brasileiro, major Coutinho, pro-
vou-se um completo fracasso, muito embora certamente não por falta de esforços.9
Até a celebração da paz, após a longa guerra com o Paraguai, a antiga
necessidade de se estabelecer um meio de comunicação entre o litoral brasileiro
e a província do Mato Grosso permanecia à frente da pauta. Quando um sagaz
diplomata, Conselheiro Felippe Lopez Netto, também conseguiu entabular com
sucesso um tratado de fronteiras e comércio com a Bolívia, assegurando-se a
passagem através do vale do rio Madeira, fez-se necessária uma expedição mais
minuciosa a ser realizada nas fronteiras. A atenção geral direcionava-se, ainda,
aos mais remotos cantos desse vasto reino em razão do súbito aparecimento
da nova Companhia de Navegação a Vapor do Baixo Madeira, e pela recente
abertura da navegação do rio Amazonas às bandeiras de todas as nações, cujos
potenciais benefícios ainda dependem da extensão de tal medida à navegação e
exploração de seus rios afluentes.
As páginas seguintes abarcam, em conjunto com um sumário dos mais
importantes resultados hidrográficos da viagem, minhas impressões acerca de
seus habitantes, de sua vegetação, insumos e manufaturas, e outros tópicos de
interesse sobre estas paragens, não na forma seca que se presume de um diário,
mas em forma de capítulos, mais convidativos aos leitores interessados, e cuja
leitura mais acessível há de acrescentar maior valor ao todo.

9 Outra expedição liderada pelo Sr. Coutinho no rio Purus, um afluente do rio
Solimões, apresentou resultados negativos similares. Aquele rio mais tarde ficaria
melhor conhecido pela empreitada do Sr. Chandless.
As ilustrações, que considero suplementos indispensáveis à descrição de
cenas que nos são tão estranhas, originam-se de esboços feitos no local e que, para
preservar-lhes a mais alta fidelidade, desenhei eu mesmo.
Em breve, todavia, não haverá necessidade de que expedições bem equi-
padas visitem estas paragens da ultima thule.10 Luxuosos navios a vapor levarão tu-
ristas de Liverpool ao Pará em viagens de dezoito dias. Em sete dias mais, poderão
estar na foz do rio Madeira, e em uma semana a mais poderão chegar à primeira
corredeira de Santo Antônio. A partir daí, não mais do que brevemente, locomoti-
vas poderão levá-los floresta adentro, onde antes se chegava somente após longas
e dificultosas jornadas de três meses de duração partindo da foz do rio Madeira.
Uma vida agitada e intensa será infundida ali. Borracha, cacau, madeira
de lei, corantes e resinas não mais se estragarão pelo transporte dificultado, e a
agricultura e a criação de gado irão restringir – se não suplantarão – a existência
semisselvagem de todos aqueles que ainda subsistem somente da caça e da pesca.
Mesmo após nosso retorno para casa, deixando para trás a América do
Sul após uma ausência de dezessete anos, tivemos a satisfação de ver assegurada
e garantida a execução de nosso projeto ferroviário. Encarregado do projeto está
um americano, o coronel George Earl Church, bem familiarizado com esta parte
do mundo, e que obteve as licenças governamentais exigidas no Brasil e na Bolí-
via, tendo tido pouca dificuldade em angariar fundos na Inglaterra.
Se as páginas seguintes, nas quais me esforcei para manter uma visão ba-
lanceada entre otimismo e pessimismo, conseguirem auxiliar no convencimento
das autoridades brasileiras que as venham a ler acerca dos reiterados e perniciosos
abusos e erros perpetrados, e demonstrar que, a despeito do inquestionável pro-
gresso recente, os esforços em prol de melhoramentos ainda não se exauriram, e se
estas páginas forem bem sucedidas em inflamar o Velho Mundo com o interesse
pelo bem-estar dos recantos isolados do Novo Mundo, pelo menos algumas das
minhas mais caras aspirações terão se realizado. Essas terras de fato demandam
atenção, ao menos no sentido de algum dia poderem vir a servir de escape aos
elementos que tanto têm ameaçado nossa populosa Europa nos tempos recentes.
Pela emancipação de crianças nascidas escravas, a vigorar a partir do pri-
meiro dia de janeiro de 1872, é certo que a abolição da escravatura, que deve ser
o marco para o progresso real, tornou-se simplesmente uma questão de tempo.
Mas é preciso esperarmos a equalização política da imigração com os nativos, e a
concessão do direito ao matrimônio civil11, antes que possamos em sã consciência

10 Nota do Tradutor: expressão utilizada na cartografia antiga, significando “última


fronteira”; “confins do mundo”.
11 Em junho de 1873, o governo brasileiro rompeu abertamente com o bispo de
Pernambuco, e consequentemente com Roma, a respeito de uma Encíclica contra
aconselhar nossos fazendeiros da mais fina estirpe a se assentarem por lá. Traba-
lhadores e caixeiros-viajantes, pobres e tão numerosos entre nós, certamente aufe-
rirão lucros altos, mesmo diante das atuais condições. Apenas a imigração da raça
alemã, que realmente se assente e colonize o novo lar, compartilhando o fardo do
Estado, poderá de fato ajudar este país tão escassamente povoado.
O Brasil, que ano após ano vê milhares de portugueses desembarcan-
do em seus portos para logo em seguida voltarem à terra natal com algumas
centenas de “mil-réis” acumuladas, é um país especialmente qualificado para
julgar a diferença radical entre as nações latinas e a alemã. Parlamentares obsti-
nados, como finalmente parecemos ter nesse lado do Atlântico, particularmen-
te no Rio, certamente protegerão os interesses dos colonos alemães no Brasil,
e após determinado tempo resolverão quaisquer conflitos e outros incidentes
inconvenientes relacionados ao assentamento.
Em conclusão, desejo ainda que me permitam aqui expressar agradeci-
mentos ao meu pai, que foi meu fiel companheiro e colega de ciência nessa can-
sativa jornada, além de também agradecer ao meu irmão, professor Ferdinand
Keller, especialista em pinturas históricas, cuja consultoria quanto às ilustrações
me foram de inestimável valor.

Karlsruhe, janeiro de 1874

Franz Keller-Lëuzinger

Abacaxis, cajus, bananas etc...

os maçons, que são muitos entre os mais altos oficiais brasileiros. Por interesse de
paz e decência para com os colonos protestantes, o governo foi forçado não apenas
a declarar a validade de uniões celebradas pelo rito protestante, contra a decisão do
bispo, mas também a processar duas esposas de colonos que haviam se convertido
ao catolicismo apenas para se casarem uma segunda vez, bem como os dois padres
católicos que realizaram tais cerimônias.
SUMÁRIO

LISTA DE ILUSTRAÇÕES 19

INTRODUÇÃO 29

CAPÍTULO I - DO RIO DE JANEIRO ÀS CORREDEIRAS


DO RIO MADEIRA 57

CAPÍTULO II - AS CORREDEIRAS DOS RIOS


MADEIRA E MAMORÉ 95

CAPÍTULO III - VIDA NOS ACAMPAMENTOS E NAS CANOAS 131

CAPÍTULO IV - PESCA E CAÇA NAS PROVÍNCIAS DO


AMAZONAS E MATO GROSSO 145

CAPÍTULO V - A VEGETAÇÃO DA MATA VIRGEM


ÀS MARGENS DO AMAZONAS E MADEIRA 167

CAPÍTULO VI - AS TRIBOS SELVAGENS DO


VALE DO RIO MADEIRA 209

CAPÍTULO VII - OS ÍNDIOS MOJOS DA ANTIGA MISSÃO


JESUÍTA NA BOLÍVIA 247

VOCABULÁRIO DOS DIALETOS INDÍGENAS AINDA


FALADOS NO DEPARTAMENTO DO RIO BENI – BOLÍVIA 287

APÊNDICE 289
Este livro foi impresso sob demanda, sem estoques. A tecnologia
POD (Print on Demand) utiliza os recursos naturais de forma
racional e inteligente, contribuindo para a preservação da natureza.

"Rico é aquele que sabe ter o suficiente"


(Lao Tze)

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