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As dicotomias são um mundo bastante vasto, desde logo através dos termos
que as significam, ou que são seus sinónimos : bi-categorização, dualismo, díade,
binómio, par, polaridade, distinção, oposição, etc. No nosso quotidiano usamos, quer
de forma linguística, quer na nossa relação com o mundo que nos rodeia, muitas
dicotomias : alto-baixo; grande-pequeno; doce-amargo; leve-pesado; húmido-seco;
quente-frio; dentro-fora; centro-periferia; passado-futuro; tudo-nada; público-
privado, Ciências Humanas-Ciências Exactas, etc., etc. Os diversos ramos do Saber
são dominados por dicotomias, caracteríticas dos seus objetos de estudo : por
exemplo no Direito, público-privado; na Economia, mercado-plano; na Antropologia,
natureza-cultura; na Sociologia, sociedade-plano; na Arte, clássico-romântico; na
Religião, sagrado-profano, etc. A Filosofia é uma das áreas que mais se encontram
dominadas por dicotomias, as quais têm alimentado ao longo da História o seu
trabalho de reflexão. A ênfase posta na dicotomia surge em Platão, através da
doutrina dos dois mundos, o inteligível e o sensível, a distinção entre essência e
aparência, original e cópia, em suma, nundo suprassensível, imutável, lugar do
verdadeiro, da pureza da ideia, das essências e do modelo, e mundo sensível,
mutante, de cópias e aparências.
A divisão do real não é apenas dicotómica. Por vezes uma coisa dá origem
não apenas a uma outra coisa, ou tem como correspondente apenas uma outra
coisa, mas sim uma pluralidade de identidades. Em vez de uma dicotomia (divisão de
uma coisa em duas), temos antes uma politomia (divisão de uma coisa em várias
partes). Neste sentido, no nosso tempo fala-se muito em crise de identidade. O
homem da sociedade moderna tinha (ou julgava ter) uma identidade bem definida e
localizada no mundo social e cultural. Mas uma mudança estrutural está
fragmentando as diversas identidades (de etnia, de nacionalidade, de cultura, de
classe, de género, de sexualidade, etc.), as quais se antes eram consideradas sólidas
localizações, onde o sujeito se encaixava socialmente e culturalmente, hoje
encontram-se com fronteiras menos definidas, provocando no sujeito pós-moderno
uma crise de identidade.
Também Ludwig Wittgenstein faz no nosso tempo uma crítica dos escolhos
do substancialismo, ou seja, “a procura de uma substância que corresponda a um
substantivo”.3 Quando se dispõe de uma palavra, de um substantivo (como a
política, a cidade, o Estado, o cidadão, a democracia, ou a justiça), tem-se
espontaneamente a tendência para crer que por detrás dessa palavra existe uma
substância comum ao conjunto das realidades que ela é susceptível de designar.
1
Jean-François LYOTARD, Le différend, Paris, Ed. Minuit, 1984.
2
Jacques DERRIDA, Positions, Paris, Ed. Minuit, 1972, p. 57.
3
Ludwig WITTGENSTEIN. Utilizamos aqui a tradução francesa das obras deste autor. Le Cahier bleu et
le Cahier brun, Paris, Ed. Gallimard, 1965, p. 51.
Quando Wittgenstein conduz o inquérito sobre a palavra jogo, nota que “todos os
jogos (...) agrupam como uma família cujos membros têm um ar de parecença. Uns
têm o mesmo nariz, outros as mesmas sobrancelhas, outros ainda a mesma forma
de andar , e estas parecenças enredam-se umas nas outras”. 4 As nossas utilizações
comuns da linguagem, associadas ao que Wittgenstein chama “o nosso constante
desejo de generalização”,5 ou “desprezo pelos casos particulares”, 6 conduz o
pensamento a “confusões e enganos”, 7 na maneira de pôr os problemas, por
exemplo através de generalizações precipitadas. Contra este substantivismo, que é
um pensamento do Mesmo contra o Outro, e do Um contra o Múltiplo,
Witttgenstein sugere saír-se de um tal jogo de oposições. Daí a noção de dobradiça
(como a dobradiça de uma porta), que põe em evidência porque razão qualquer
discurso supõe o não interrogado simplesmente para poder ser enunciado : “as
questões que pomos e as nossas dúvidas assentam nisto : algumas proposições são
subtraídas à dúvida, como dobradiças em torno das quais rodam essas questões e
dúvidas. (...) Se quero que a porta rode, é preciso que as dobradiças estejam fixas”. 8
Essas dobradiças não são universais ou absolutas : variam conforme os momentos ,
os contextos, e aquilo a que Wittgenstein chama os jogos de linguagem. Por
exemplo, poderíamos falar de um jogo de linguagem do político, do sociólogo, do
ecologista, ou do sindicalista. Não estamos a lidar com fundamentos absolutos e
universais, mas com uma diversidade de dobradiças, como se houvessem
fundamentos, sem certeza absoluta.
4
Ludwig Wittgenstein, o.c., 68.
5
Idem, Ibidem.
6
Idem, p. 70.
7
Idem, p. 68.
8
Idem, De la certitude, Paris, Ed. Gallimard, 1976, p. 89.
dos dualismos e dos antagonismos, o conflito, que fora assumido pela sociedade
como motor da mudança, ter-se-ia visto relegado, em favor do consenso. A teoria, a
ideologia, e todo o discurso de valores, deu lugar ao empírico e ao pragmático. 9
Mais recentemente um outro autor, Fukuyama, retomou a tese do fim das
ideologias, através daquilo que ele considera ser o fim da História, desfecho que este
autor situa no estado atual do mundo ocidental, que teria como que cumprido o seu
destino, ao fixar-se na economia de mercado e na democracia política. 10 Estas teorias
têm importantes aplicações no âmbito político, principalmente através da tese de
um outro autor, Giddens,11 sobre a despolitização, a desideologização da política, e
daquilo que ele considera ser uma superação da dicotomia política esquerda-direita.
No entanto, existe hoje uma tendência para perguntar pela validade e pela
atualidade dessa dicotomia. Há várias maneiras de responder a esta questão. Uma
9
Daniel BELL, O crepúsculo das ideologias, Lisboa, Ed. Ulisseia, 1973 ; Seymour LIPSET, Political man :
the social bases of politics, London, Ed. Heinemann, 1959.
10
Francis FUKUYAMA, O fim da História e o último Homem, Rio de Janeiro, Ed. Rocco, 1992.
11
Anthony GIDDENS, Para além da esquerda e da direita, Oeiras, Ed. Celta, 1997; Para uma terceira
via, Lisboa, Ed. Presença, 1999.
delas consiste em interrogar-se sobre o sentido exacto que é necessário atribuir aos
termos de esquerda, e de direita, tentando relacioná-los quer a temas permanentes
que os caracterizam em si próprios, quer a temperamentos, isto é, a sensibilidades,
cuja existência se poderia assinalar no seio de famílias políticas bem determinadas,
quer ainda a conceitos-chave que constituiriam o seu núcleo duro e cujo valor
poderia facilitar a análise. Porém, esta tarefa não é fácil. Por um lado, os grandes
temas ideológicos não cessaram ao longo da História de viajar da direita para a
esquerda, e da esquerda para a direita. Há matérias que pertenciam
tradicionalmente à direita (por exemplo a defesa da etnicidade), que passaram a ser
também defendidas pela esquerda. Há matérias que pertenciam tradicionalmente à
esquerda (por exemplo a Ecologia), que passaram a ser também defendidas pela
direita. Por outro lado, houve sempre várias esquerdas e várias direitas, cuja redução
a um ideal-tipo unitário se revelou geralmente impossível. Há ainda a acrescentar
aqueles que não se consideram nem de esquerda nem de direita, mas sim do centro.
Finalmente, o que se entende por direita e esquerda varia consideravelmente
segundo as épocas e os lugares. Ora, tudo isto torna problemática a distinção
contida na referida dicotomia, problemática essa que motivou o presente livro.
Este livro reúne um conjunto de textos inéditos, escritos por diversos autores
nacionais e internacionais, provenientes de várias áreas das Ciências Sociais e
Humanas. Trata-se de uma análise da distinção política esquerda-direita (incluíndo o
chamado centro), tendo como objectivo principal reflectir sobre a validade e a
atualidade dessa distinção. No que concerne à validade, interroga-se aqui o sentido
do pensar dicotómicamente, aplicado à política, e por vezes a outras áreas, tendo
como fio condutor a referida dicotomia. No que concerne à atualidade, procura-se
pensar o significado dessa dicotomia nos tempos de hoje, comparando-a com o seu
significado tradicional. A sua validade e atualidade é defendida por alguns autores, e
contestada por outros. Por um lado, algumas diferenças tradicionalmente presentes
nesta dicotomia tendem hoje a ser contestadas sob várias perspectivas (moral,
social, económica, etc.), e em diferentes matérias (ecologia, identidade nacional,
etc.). Por outro lado, há diferentes graus de contestação dessa dicotomia,
considerando-a em crise, ultrapassada, ou apenas enfraquecida.
Por outro lado, a distinção política que existia entre esquerda e direita pode
ter deixado de ser válida e atual em algumas matérias (por exemplo a Ecologia), mas
continua a ser válida em outras matérias (por exemplo o papel do Estado). Por isso,
tanto têm uma concepção absoluta e uniformizadora da realidade, aqueles que
defendem que a referida dicotomia continua válida e atual, como aqueles que
defendem que ela está ultrapassada. Não se trata da dicotomia em si mesma, como
uma identidade imóvel, mas sim de determinada matéria ou outra que se tornou
defendida tanto pela esquerda como pela direita, mas isso pode não significar
necessáriamente a ultrapassagem da referida dicotomia, conforme defendem alguns
autores.
Todavia, o objetivo deste livro não é defender nenhuma posição específica
(que a referida dicotomia é válida e atual ou não, em em quê), dado que apresenta
diversas posições. O objetivo é abrir o debate e incentivar o confronto reflexivo
pluralista em torno desta problemática. No que concerne à abordagem geral, e à
relação estabelecida com determinadas matérias específicas, existirão no presente
livro quatro grandes posições, no plano do ser e do dever ser. Estas posições, não
esquecendo as suas nuances, são fundamentalmente as seguintes : a validade e a
atualidade da dicotomia política esquerda-direita continua a existir, e isso é algo
positivo; a validade e a atualidade dessa dicotomia continua a existir, e isso é algo
negativo; a validade e a atualidade dessa dicotomia deixou de existir, e isso é algo
positivo; a validade e a atualidade dessa dicotomia deixou de existir, e isso é algo
negativo.
I
ABORDAGEM GERAL
O CAMINHO DO MEIO OU O PRINCÍPIO DA
INCERTEZA : DIÁLOGOS AO CENTRO ENTRE
ESQUERDA E DIREITA
LIBERDADE E IGUALDADE
A existência de um centro atesta apenas que esquerda e direita, sendo termos
que se excluem, têm também pontos de contacto. Desta forma, o centro não é mais do
que o produto não só das interações entre esquerda e direita mas também das
dinâmicas que se geram dentro do espaço de cada uma. Desafiar a dicotomia é, pois,
desafiar os próprios termos em que se baseiam a pluralidade e o conflito necessários
numa democracia, numa tentativa de gerar algum movimento centrípeto que em certos
momentos pode gerar consenso mas que em outros pode representar o fim da própria
pluralidade de ideias. Não é por acaso que muitos cientistas políticos têm preferido os
sistemas partidários bipolares, em contraste com os centristas (Mastropaolo, 2008, p.
400), aceitando o que Karl Popper designou de “golpes de Estado sem efusão de
sangue”, ou seja, as transições pacíficas entre dois pólos divergentes que convergem
nos princípios da eleição livre, competitiva e participativa.
Bobbio tem razão quando diz que a dicotomia não está em crise. Apesar de por
vezes ora a direita ora a esquerda parecerem estar em crise, nenhuma delas anulou a
outra a favor de um centro dominante. Ambas se fundam em princípios divergentes e
é nesses princípios que o centro deixa de ter sentido. O que isto nos diz é que o centro
depende da dicotomia por ser uma síntese de certos princípios que se diluem entre
esquerda e direita, mas quando em face de princípios basilares de uma e de outra o
centro já não satisfaz e, por isso, é anulado. Norberto Bobbio cita três argumentos
centristas que até à data da sua obra tinham sido utilizados para desafiar a existência
da dicotomia esquerda-direita: um centro incluído entre as duas capaz de monopolizar
o sistema político, um centro inclusivo que inclui as diferenças entre esquerda e
direita diluindo-as e um centro transversal que invade o espaço de ambas esvaziando-
as de conteúdo (Anderson, 2005, p. 129). Os centros incluídos não diluem a dicotomia
e apresentam-se como uma alternativa política; os centros inclusivos tentam sintetizar
a esquerda e a direita de forma a cancelá-las, tornando-as duas partes de um todo
numa “totalidade dialética”; e, finalmente, os centros transversais que passam
facilmente da direita para a esquerda e vice-versa (Bobbio, 1996, pp. 3-11).
No entanto, os autores aos quais Bobbio se opõe têm razão quando dizem que
esses mesmos centros apelam para a importância de um facto basilar em política: é ao
centro que se ganham eleições. Se é verdade que esquerda e direita já estiveram
ambas em crise em períodos diferenciados da história e que nenhuma delas anulou os
princípios basilares da outra, o mesmo não se pode dizer da qualidade antitética do
centro que lhe permite congregar princípios não monopolizados pela esquerda ou pela
direita, o que afirma a sua existência entre a dicotomia. Neste sentido, o centro é uma
convergência divergente pois que se por um lado permite a convergência entre
princípios diferentes mas próximos, por outro afirma a divergência de princípios que
se excluem.
No entanto, os princípios em que Bobbio baseia a dicotomia não são
satisfatórios. Invés da divisão igualdade-desigualdade proponho o binómio igualdade-
liberdade. Argumentarei que os princípios que dividem esquerda e direita são também
os princípios que dão azo à complementaridade entre igualdade e liberdade, tendo a
propriedade privada como motivo inicial da discórdia (Bobbio, 1996, pp. 80-81).
Como refere Hannah Arendt (1998, pp. 29-32), foi a partir da propriedade privada que
se definiu o espaço de atuação da polis, enquanto espaço para lá das necessidades e
dos desejos individuais. No espaço público, o cidadão detentor de propriedade era
igualado ao seu concidadão, enquanto a liberdade surgia como o princípio basilar do
governo da polis, impedindo a violência ou o estado de natureza. Porém, estes dois
princípios foram sendo transformados no decorrer da história e, principalmente no
século XIX através da bipolarização entre liberalismo e marxismo. É a partir dessa
bipolarização que se fundam os princípios que separam esquerda e direita.
A liberdade enquanto princípio basilar da condição humana está bem patente
nas divisões que ao longo do tempo separaram conservadores como Hobbes e De
Maistre, de liberais como Locke e Stuart Mill; ou que opõem defensores dos
princípios da democracia direta e do fim da propriedade privada como Rousseau e
Marx, dos defensores da democracia representativa e da propriedade privada como
Benjamin Constant e Adam Smith. Os velhos liberais, como Stuart Mill, defendiam o
princípio da liberdade individual absoluta, sendo que a lei apenas limitaria o uso da
liberdade abusiva sobre os outros. Como argumenta Isaiah Berlin, o conceito de
liberdade negativa como defendido pelos velhos liberais, será substituído pelo
conceito de liberdade enquanto habilidade de nos tornarmos autónomos. É aliás este
princípio de liberdade que irá sustentar as primeiras críticas ao liberalismo. T. H.
Green, partindo de uma crítica da liberdade negativa como minimamente regulada
pelo Estado como defendida por Stuart Mill, desenvolveu um conceito de liberdade
positiva elaborando uma crítica às teorias do laissez-faire pois considerava que um
capitalismo desregulado não garantia essa liberdade, tornando-se o Estado o garante
da salvaguarda do indivíduo. Nesta mesma linha, Keynes desenvolve a sua teoria
económica contra a ideia de um mercado auto-regulador, defendendo os princípios da
liberdade do indivíduo contra os abusos da desregulação. Se as críticas de T. H. Green
e Keynes criam os fundamentos do chamado liberalismo social ou dos movimentos
literalmente ao centro e, mais tarde servem a crítica social-democrata ao marxismo, o
retorno às ideias do laissez-faire é feito por Von Mises, Hayek e Milton Friedman. A
liberdade é, no entender destes últimos, um princípio que se constrói contra a
intervenção estatal e pela liberdade individual baseada na propriedade privada. Não é
por acaso que a chamada New Right defende a ideia uma vez reproduzida por
Margaret Thatcher de que a sociedade é uma irrealidade e de que a família é o garante
de um tipo de cooperação que terá existido nas sociedades pré-modernas. O Estado
tem de ser mínimo para que e seguindo Hayek, a liberdade política tenha lugar
juntamente com a liberdade económica. É aliás Hayek que em The Constitution of
Liberty de 1960, distingue duas correntes de pensamento acerca da liberdade: uma de
tradição britânica primeiramente desenvolvida por Hume, Adam Smith e Adam
Fergunson e depois por Burke e Tucker e que entendiam a liberdade como um
mecanismo involuntário; e outra de tradição francesa desenvolvida por Descartes,
Condorcet e Comte, e que vêem as instituições sociais como garantes de uma
“liberdade premeditada” (Anderson, 2005, p. 15). Como é óbvio, Hayek posiciona-se
entre os primeiros, vendo no mecanismo involuntário a receita para combater o
planeamento, tão defendido por movimentos da esquerda ao centro-direita. Com o fim
da propriedade privada e com o planeamento, as liberdades políticas e económicas
ficariam em perigo em nome do princípio da igualdade.
Contrariamente ao princípio da liberdade baseado na propriedade privada, a
esquerda desde cedo desenvolveu o princípio da igualdade contra a propriedade
privada. O objetivo de uma sociedade sem classes permitiria o fim do egoísmo e dos
interesses individuais, baseando-se o coletivo na igualdade como razão inicial e
última do Homem. Marxistas e socialistas consideram que a desigualdade faz parte da
própria natureza da sociedade e que sem alterar as suas regras, a desigualdade
permanecerá. No entanto estas ideias seriam revistas pelas divisões criadas pela
Revolução bolchevique e pelo Congresso de Bad Godsberg. Se o primeiro separa
socialistas radicais como Lenine de moderados como Kautsky (Heywood, 1993, p.
111), o segundo traz o abandono das reminiscências marxistas dentro do movimento
social-democrata, o que levará nas décadas de 1970 e 1980 a uma revisão dos
princípios marxistas, depois do fim do marxismo bolchevista como lhe chamou Eric
Hobsbawn.
As reformas no marxismo são operadas por Nicos Poulantzas para quem o
Estado defende a classe que o governa impedindo a transformação do seu princípio de
igualdade, o que reforça o capitalismo e encontra paralelo no conceito de hegemonia
de Gramsci. Por outro lado, as reformas da social-democracia levariam, por um lado,
à adopção das regras do mercado e de um tipo de regulação keynesiana por parte de
social-democratas e, por outro, à rejeição da ideia da ditadura do proletariado e do
governo de partido único pelos eurocomunistas. Dinâmicas que em 1956 tinham já
sido previstas por Anthony Crosland em The Future of Socialism quando, rejeitando a
tese de Nicos Poulantzas, argumenta que o capitalismo deixara de ser um sistema de
exploração de classe. Argumento que é confirmado por Bryan Gould quando diz que
o objetivo do socialismo passou a ser a igualdade de poderes e não de riqueza
(Heywood, 1993, p. 132).
O grande dilema do movimento social-democrata e do centro-esquerda
europeu sempre esteve no equilíbrio entre liberdade económica e igualdade
socioeconómica. Tal como o princípio da liberdade encontrou entre liberais e
conservadores uma revisão dos princípios da direita e do centro-direita, com as cisões
no movimento socialista surgiram as primeiras revisões do princípio da igualdade
dentro da esquerda e do centro-esquerda. Aliás a atual crise do ajustamento ao centro
do princípio de igualdade materializado no Estado-Social levou ao que os autores de
What’s Left of the Left consideram ser uma crise do princípio basilar da esquerda e da
sua diluição pelas dinâmicas do centro-esquerda (Cronin, Ross & Shoch, 2011, pp. 3-
11). Tal como nos diz Perry Anderson (2005, p. 135) numa crítica que faz ao binómio
de Bobbio, a esquerda também adoptou o mercado e em certos países as
desigualdades socioeconómicas foram criadas por governos de esquerda. No mundo
inteiro a teoria do mercado parece prevalecer e tem sido usada como chavão do
desenvolvimento, do progresso e do crescimento. Tal como afirma Arendt (1998, 307-
308) esta é a vitória da felicidade enquanto princípio maior do utilitarismo. Sendo a
busca da felicidade a missão definidora da política, o mundo onde vivemos está
necessariamente centrado nesse objetivo.
Não tendo uma garantia axiomática, a dicotomia molda-se ao tempo, ao
espaço e às memórias e é por isso que, se hoje a esquerda parece enfrentar problemas
de isolamento do seu princípio basilar face a uma “teologia dos mercados” como nos
diz Adriano Moreira, também houve tempos em que a direita esteve em crise. No
entanto, o princípio da felicidade, enquanto busca coletiva não define, por si, a
diluição da esquerda ou da direita num centro hegemónico, pragmático e utilitarista.
Invés disso, a história do desenvolvimento económico e da democracia é a história do
equilíbrio entre igualdade e liberdade como em seguida demonstro.
Tal como concluem Shmuel Sandler e Jonathan Rynhold (2007, pp. 238-239)
sobre o atual sistema partidário israelita, os centros sempre existem mas vão alterando
o seu conteúdo, num centrismo que se baseia em novas relações de poder.
Contrariamente aos críticos da dicotomia esquerda-direita que têm desde a década de
1960 apontado as suas baterias para o fim da ideologia ou da história, o alinhamento
ao centro de ambos os princípios de igualdade e liberdade mantém ainda gradações
importantes que definem as diferenças essenciais entre os dois lados da contenda. Se é
verdade que ambos os termos definiram o espaço de desenvolvimento da democracia,
também é verdade que não podemos esquecer o facto histórico que separou e separa
democratas de anti-democratas e que em síntese juntou os defensores dos princípios
dos direitos humanos numa espécie de consenso internacional. Nestes termos, uma
das primeiras diferenças que podemos observar é a que separa os centros despóticos
dos centros consensuais.
O centro despótico, enquanto rejeição dos princípios democráticos, tenta
anular a pluralidade ao criar uma convergência autoritária e totalitária. Onde existe
um centro despótico, esquerda e direita desaparecem e dão lugar ao “Homem novo”,
ao “Estado Novo”, ao partido único, ao corporativismo e à coletivização. O centro
despótico foi uma forma de governo que se opôs aos partidos, aos parlamentos e à
delegação de poderes, preferindo eliminar a “mediocridade democrática” (Bobbio,
1996, p.24) e o erro do decisor, substituindo-os pelo decisor compulsivamente
infalível. Desta forma, o centro despótico, enquanto forma de degenerescência
política, vai além da síntese e tenta exacerbar o princípio antitético do centro, criando
uma oposição artificial entre esse centro e as margens. É por essa razão que os
regimes ditatoriais nunca se consideraram de esquerda ou de direita.
Pelo contrário, o centro consensual é produto, tal como a dicotomia, do jogo
democrático, da institucionalização dos parlamentos e do encapsulamento da esquerda
e da direita em organizações partidárias. Desde o início da luta entre esquerda e
direita que se tentou diferenciar ou aproximar as diferentes organizações partidárias e
movimentos políticos. Talvez o projeto que tenha tido mais sucesso no aproximar da
esquerda e da direita tenha sido o da economia mista que depois da crise de 1929
criaria as fundações do atual modelo social europeu. O projeto da economia mista,
que venceu extremistas com o fim da II Guerra Mundial e com a queda do muro de
Berlim, acabou por socializar os sistemas de decisão nacionais e internacionais e os
sistemas partidários, diluindo os princípios diferenciadores da dicotomia. Como notou
Gunnar Myrdal, antes do século XX a ideia de planeamento económico não tinha sido
abordada pela esquerda e são as inovações introduzidas pelo taylorismo que levarão
ao patrocínio do planeamento e da intervenção na economia (Nöel & Thérien, 2008,
p. 111). Com a crise de 1929, e tal como defendiam os primeiros liberais críticos do
laissez-faire e depois social-democratas e democrata-cristãos, chegou-se à conclusão
que os mercados não se auto-regulam e que o Estado tem de ser a salvaguarda da
liberdade e dos interesses coletivos. Esta premissa levaria à construção de variados
consensos ao centro, sendo o modelo social europeu o mais paradigmático,
congregando o liberalismo social, a democracia cristã, a social-democracia, a doutrina
social da igreja, eurocomunistas e socialistas. Cruzando a industrialização, o
crescimento económico e a intervenção do Estado, o Estado-Social é a síntese perfeita
entre a esquerda e a direita europeias num centro consensual.
Outro exemplo de centro consensual, desta feita global, tem-se desenvolvido
em torno da busca incessante pela felicidade como princípio utilitário máximo. Se
como vimos na Europa esse projeto sintetiza-se no Estado social, pelo resto do mundo
se repete a vitória do crescimento e do desenvolvimento como produtos de um novo
laissez-faire que dita o sucesso do modelo económico ocidental noutras partes do
mundo como a China, o Brasil e a Índia, no que alguns têm apelidado de consenso de
Washington. Estudado nestas últimas décadas por economistas políticos, este tem
gerado um consenso governativo à esquerda e à direita, com a proliferação do copy-
paste no processo de decisão. Com The End of Ideology publicado em 1960, já Daniel
Bell abordara o facto de que com o enfraquecimento do fascismo e do comunismo, as
grandes decisões políticas geravam-se em torno de um consenso enquanto os partidos
apenas se preocupavam em defender a prosperidade e o crescimento económico ,
ficando a política confinada a um debate técnico (Heywood, 1993, p. 296).
Paralelamente, Francis Fukuyama publica em 1989 o ensaio The End of History onde
proclama a vitória do modelo liberal sobre todos os seus rivais históricos. Apesar de
se basearem num facto que tem conduzido a política mundial nas últimas décadas,
ambos os autores não perceberam que o grande consenso é um consenso ideológico,
apesar de parecer hegemonicamente centralizado. As diferenças entre a direita e a
esquerda, ou seja, entre os princípios da liberdade e da igualdade, apesar das
metamorfoses e das colagens ao centro, mantiveram a sua essência. Como referiu
Antonio Negri, depois do final da guerra fria e quando se esperava que o mundo
político se reuniria em torno de um consenso, acabaram por formar-se uma
pluralidade ainda maior de movimentos que abraçam ou contestam o capitalismo em
diferentes gradações. Ainda nas décadas de 1970 e 1980 e no rescaldo do primeiro
reajustamento do famigerado consenso, viu-se bem como as teorias monetaristas se
opuseram ao próprio consenso e o transformaram, gerando também outros consensos
sobre a forma como o mercado deve ser regulado ou moralizado, o que leva, por
exemplo, John Rawls a defender os sistemas de redistribuição social-democratas mas
a partir de um princípio de desigualdade económica, pois sem ela não existiria um
incentivo para as classes mais pobres; ou que Habermas também defenda o mesmo
sistema de distribuição mas sem esquecer a necessária moralização do capitalismo e a
criação de um consenso globalmente conversável.
No entanto, as degenerescências do centro consensual foram mais longe e
tentaram ultrapassar a antítese, exacerbando o princípio da síntese, recriando várias
vezes o que Duverger apelidou de “pântano” (Mastropaolo, 2008, p. 400). Os sistemas
rotativos português, espanhol e italiano do século XIX são bem ilustrativos das
dinâmicas de um centro consensual que tenta a todo o custo ultrapassar as antíteses
através do caciquismo, da compra de votos e do clientelismo. Não é por acaso que
Paolo Farnetti argumenta que o sistema político italiano tentou sempre basear-se num
centrismo de forma a ultrapassar as divisões sociais, recriando um centro capaz de
alimentar as clientelas partidárias dependentes do orçamento de Estado, o que
encoraja os partidos a adoptar posições ao centro de forma a ter acesso a esses
recursos (Mastropaolo, 2008, p. 402). As estratégias de darwinismo partidário são
bem conhecidas da história das organizações partidárias. Com o alargamento dos
consensos, os partidos foram adoptando estratégias de caça ao voto, de que os
partidos catch-all são paradigma. Com a tese do partido cartel, Richard Katz e Peter
Mair (1995) chegaram à conclusão que depois que os sistemas partidários estão
consolidados e que se atingiu um determinado equilíbrio da competição eleitoral em
torno de uma clivagem monopolizadora, existe o risco dos partidos da governação
passarem a confundir-se com o Estado. Aliás este é um dos grandes problemas que
enfrentamos na Europa e em sociedades como a nossa em que os partidos têm-se
alicerçado num neo-clientelismo (Piattoni, 2001) que usa o Estado-Social como
moeda de troca eleitoral, criando um consenso sem resistência que impede as
reformas e emperra um sistema demasiado partidocrático, o que mancha a
representatividade e negligencia a sociedade civil e o eleitorado.
Outra divisão dentro do centrismo opõe os centros radicais dos centros
moderados ou, respetivamente, uma ideologia inclusiva face a uma anti-ideologia
inclusiva. Agnes Heller, depois de ter abandonado o marxismo, tem desenvolvido o
seu pensamento sobre a democracia a partir da adopção da filosofia de Kant e da
consequente rejeição do marxismo, do socialismo científico e da teoria do laissez-
faire (Tormey, 1998, p. 12). Heller tem defendido uma ideologia inclusiva que
ultrapasse o sentido populista dos centros consensuais e que mantenha os princípios
democráticos da igualdade e da liberdade, esperando, tal como Habermas, que o
“sistema dinheiro-poder” seja orientado não pelo sucesso material mas pelo mútuo
entendimento (Anderson, 2005, p. 116). O centrismo radical define-se anti-populista e
humanista, contra o abuso dos princípios utilitários usados pelos centros consensuais.
Como considera Heller, a democracia é infinita e dinâmica e a simples proliferação da
sociedade civil não é suficiente. Antes é necessária a institucionalização de governos
populacionais, evitando-se a subordinação e as hierarquias. Se a liberdade é um valor
universal e essencial na democracia então esta tem de assegurar que esse mesmo
princípio prevaleça. Pese embora o pensamento algo sintético de Agnes Heller, o
movimento radical centrista é, tal como o próprio centro, uma mescla plural de
movimentos e partidos que têm como bandeira a síntese dos princípios da liberdade e
da igualdade. Ambas as críticas ao liberalismo e ao marxismo são incluídas no centro
radical, o que leva partidos como o Lib-Dem inglês a defender ao mesmo tempo os
princípios de Stuart Mill, Keynes e Lloyd George. Aliás a integração das teses de
Stuart Mill em alguns movimentos do centro radical torna-os diferentes dos centros
moderados que rejeitam os princípios da liberdade negativa e falam no fim ou
diluição das diferenças entre esquerda e direita.
Por seu turno, Anthony Giddens, David Held, Anthony McGrew e Zaki Laïdi
desenvolveram as suas teses em torno da globalização argumentando que com o fim
da guerra fria a política deixara de ter respostas claras aos problemas da governação
(Nöel & Thérien, 2008, p.9). Aliás Giddens, será o primeiro destes autores a
considerar que os termos esquerda e direita não faziam mais sentido. Em Beyond Left
and Right e The Third Way, Giddens tenta encontrar um novo objetivo para a
esquerda, o que acaba por se materializar nos governos do New Labour de Tony Blair
e que tiveram reminiscências em vários governos e partidos de centro-esquerda
europeus. Tal como defende em The Third Way, Giddens crê que contrariamente ao
liberalismo e à social-democracia, a falência do marxismo deve-se à sua incapacidade
de ver o capitalismo como um sistema humanizável. Por sua vez, a crise da social-
democracia começa na sua difícil orientação num mundo sem alternativas ao
capitalismo. Nesse processo, Giddens reconhece cinco dilemas no futuro da social-
democracia: globalização, individualismo, dicotomia esquerda-direita, agência
política e problemas ecológicos. De forma a incluir estes dilemas globais na sua
doutrina política, a social-democracia deveria posicionar-se rigorosamente ao centro
de forma a contestar a esquerda e a direita radicais através de uma moderada
integração do princípio da igualdade na proteção dos mais vulneráveis e do princípio
da liberdade positiva (Giddens, 1998, p. 66). Giddens chega a considerar que a
social-democracia moveu-se para o centro por razões oportunistas e que uma
participação alargada deve ser dada aos cidadãos de forma a que a social-democracia
possa emergir através do princípio da emancipação e de um certo radicalismo na
forma de pensar temas e reformas consensuais (Giddens, 1998, pp. 45-46).
A terceira via, mais do que uma tentativa de demarcar o centro-esquerda da
esquerda e do centro-direita, é um projeto de anti-ideologia inclusiva, pois que ao
tentar desenhar um espaço de atuação para a nova esquerda negando o papel da
ideologia no mundo pós-moderno, acaba por delimitar uma determinada forma de se
fazer política. Não é por acaso que Giddens tenta ultrapassar a própria terceira via
com a publicação em 2003 de The Progressive Manifesto, o que demonstra a crise da
social-democracia e o relativismo de um projeto inclusivo sem navegação ideológica.
Sendo produto, síntese e antítese da dicotomia o centro tem ao longo da
história desenvolvido um diálogo permanente com a esquerda e a direita. Ponto de
encontro e de diálogo entre os princípios da liberdade e da igualdade, ajudou a criar
pontes entre moderados na socialização democrática, na luta contra os autoritarismos
e nos consensos que hoje nos governam. Sendo centro de consensos também se pode
assumir totalitário ou pantanoso, situacionista e partidocrático. Sendo uma
convergência divergente é nele que habitam as ideologias inclusivas e os movimentos
que se dizem a-ideológicos.
A SEMPITERNA CRISE
Se, por um lado, muitos politólogos culparam os sistemas ao centro, por outro
o centrismo permitiu a socialização dos sistemas partidários numa competição
pacífica. O estudo pioneiro de Maria José Stock (1985) demonstra como a
consolidação do sistema partidário português se desenvolveu em torno de um centro
onde se cimentaram as duas alternativas governamentais. Por exemplo, em Cabo-
Verde o rotativismo tem oferecido transições políticas pacíficas o que tem
democratizado as instituições e impede a polarização da sede do poder. A crítica tem
sido feita, em parte, pela noção de que os centros hegemónicos diluem as noções de
esquerda e direita num consenso degenerativo, ou seja, eliminando a pluralidade
necessária aos sistemas democráticos. Apesar das degenerescências óbvias ao longo
da história, os sistemas bipolares incluíram também movimentos centrípetos de forma
a impedir a proliferação de polaridades. Muitos destes sistemas, principalmente
aqueles que governaram a Europa até à I Guerra Mundial, recriaram uma imagética de
poderes paralelos onde tudo o que é tradicional é velho e tudo o que é progressivo é
novo, sem esquecer as divisões historicistas que opõem absolutistas e liberais,
monárquicos e republicanos, como se a política não fosse mais do que uma dicotomia
onde quem é de esquerda ou de direita tem de estar sempre de acordo com os valores
da sua família política. Porque aliás a própria existência do bipolarismo também criou
e recriou variados rotativismos em que as alternativas logo se foram assemelhando,
onde águas paradas impedem a proliferação de alternativas.
Se a pluralidade democrática é a causa original da dicotomia, o centro só
existe porque existe dicotomia. É por essa razão que o centro não escapa à sempiterna
crise que o diálogo político encerra. Onde existem esquerda e direita é natural que se
forme um centro pois que os movimentos, mesmo que institucionalizados em
partidos, também encerram histórias de faccionalismos, grupos e oposicionistas.
Partidos que não aceitam o pluralismo interno da esquerda ou da direita logo
patrocinam os Gulags da história e as perseguições, recriando, ironicamente, um
centro despótico.
A sempiterna crise que define a transformação constante dos conceitos de
igualdade e liberdade tem também um efeito sobre os centros. Baseados no princípio
da incerteza estes são, tal como a dicotomia, lugar de concórdia e discórdia, o que
apenas atesta que a política é, e parafraseando Carl Schmitt, uma arte interminável.
Referências Bibliográficas
Laurent de Briey 13
Marjorie Legendre 14
Introdução
Por mais comum que seja esta perceção do centro, ela não deixa de ser
paradoxal, uma vez que se as palavras têm um sentido, o centro deveria ser o ponto
fixo em torno do qual a política se manifesta. Etimologicamente, a palavra centro
deriva do grego «kentron» cuja tradução latina «centrum» designa o ramo fixo de um
compasso à volta do qual gira o outro, ou o meio de uma figura geométrica. 15 Poder-
se-ia no entanto estabelecer um inventário de fórmulas, umas mais desvalorizantes do
que outras, desta massa política não identificada, presa, de acordo com Pierre Abelin,
«entre os dois maxilares de um crocodilo».16
15
Lamarque, G., “La Monarchie de Juillet : une monarchie du centre ? Le juste milieu :évolutions et
contradictions de la culture orléaniste Juillet 1830-Février 1848”, in Guillaume, S. (dir.), Centre et
centrisme en France, Bordeaux, MSH, 2006,. P. 13.
16
Citado por Bernstein, in Bernstein, S., « Le centre à la recherche de sa culture politique », in
Vingtième siècle, Outubro, 1994, p. 19.
17
Ver por exemplo a obra recente de Salanski, L.M., La gauche et l’égalité, Paris, PUF, 2009.
18
Ver a obra de Eatwell, R., e O’Sullivan, N., The nature of the right :European and American politics
thought since 1789, London, Pinter, 1989.
19
É a orientação de d’A.-G. Slama, Les chasseurs d’absolu. Genèse de la gauche et de la drooite, Paris,
Grasset, 1980.
neo-liberalismo, fascismo) e ideologias de esquerda (anarquismo, socialismo (s),
etc),20 mas qual seria a ideologia do centro?
26
Guillaume, S. (dir.), idem, p. 10.
27
Ver Bernstein, S., « L’historien et la culture politique », in Vingtième siècle, 35 (Julho-Setembro),
1992.
28
Châtelet, F., e Pisier Kouchener, E., Les conceptions politiques au XX.ème siècle, Paris, PUF, 1981, p.
124.
onde permanece sob as formas mais diversas consoante os países. Na génese do
radicalismo encontram-se nada menos do que três teorias filosóficas e dois
acontecimentos históricos maiores: a Revolução inglesa de 1688 e a Revolução
francesa.29 De um ponto de vista teórico, combinam-se o progressismo das Luzes, tal
como é expresso por Locke, o utilitarismo de Jérémie Bentham e o empirismo
filosófico de John Stuart Mill.30 O resultado é uma filosofia progressista, liberal e
democrática que se traduz por uma defesa do parlamentarismo considerado como a
expressão mais adequada do ideal de soberania da nação, uma doutrina social original
de promoção pelo trabalho, a poupança e a escola e, finalmente, uma filosofia das
relações internacionais rejeitando a um tempo o antipatriotismo da extrema-esquerda
e o militarismo da direita nacionalista. O empenho resoluto no poder do radicalismo é
acompanhado no entanto por uma «vontade de cálculo e de legitimação» e de um
«experimentalismo» prático que lhe valem a crítica de oportunismo e de
indeterminação.31 Châtelet et Pisier Kouchner vêem antes nisso as consequências de
uma ambiguidade doutrinal, de um «idealismo mal ajustado».32
A democracia – cristã,33 por seu lado, nasceu enquanto força política moderna
no fim do século XIX.34 Ela exprime um desejo de conciliação dos princípios do
catolicismo, sobretudo o reformismo do cristianismo social e da herança da
Revolução francesa em matéria de soberania nacional e de expressão parlamentar
desta última.35
O sistema doutrinal da democracia cristã consiste num conjunto de contributos
sucessivos mesclados, por vezes contraditórios.36 Nele se distinguem primeiro os
29
Châtelet, F., e Pisier Kouchner, E., o.c., p. 131.
30
Nas alas direitas dos partidos socialistas de Itália, de Espanha, da social-democracia alemã, nos
diversos movimentos e partidos republicanos, no socialismo à escandinava, e entre alguns
democratas americanos. Para a França, Rémond nota que a fronteira entre esquerda e direita passa
doravante pelo radicalismo, com radicais de direita e de esquerda. Rémond, R., Les droites
aujourd’hui, Paris, Seuil, 2007, p. 246.
31
Bernstein, S., Ruby, M. (dir.), Un siècle de radicalisme, Villeneuve d’Ascq, PU du Septentrion, 2004,
p. 19.
32
Châtelet, F., e Pisier Kouchner, E., o.c., p. 126.
33
Aconselhamos sobre o assunto Durand, J.-D., L’Europe de la Démocratie chrétienne, Paris, Ed.
Complexe, 1995.
34
Léon XIII recusa, em« Inter sollicitudines » (1892),a aliança forçada do trono e do altar. Os cristãos
estão desde logo convidados a defender a sua conceção de sociedade do interior do sistema
democrático.
35
Ver Delbreil, J. C., Centrisme et démocratie chrétienne. Le Parti Démocrate Populaire des origines
au MRP 1919-1944, Paris, Publications de la Sorbonne, 1990.
36
Châtelet, F., Pisier Kouchner, E., op. cit., p. 111.
textos sagrados, a tradição dos Padres e Doutores da Igreja, e o magistério pontifício.
Em seguida encontram-se os pensadores e políticos católicos do século XIX, os
contributos do pensamento protestante, os filósofos cristãos do século XX, como
Jacques Maritain, Emmanuel Mounier, Henri Bergson, Etienne Borne, Nicolas
Berdiaev, etc. e as experiências políticas como o popularismo de Luigi Sturzo. Para
além destes contributos «cristãos», é preciso finalmente acrescentar os que pertencem
à corrente laica e republicana, do liberalismo e do socialismo democrático. Ao
Reivindicar-se do humanismo democrático, a democracia – cristã defende uma
conceção eminentemente ética da política.37 Ela quer colocar-se para além da
clivagem esquerda -direita, combatendo tanto o individualismo quanto o coletivismo,
em nome de uma ética da pessoa.38 Ela fixa-se como objetivo responder ao conjunto
das suas necessidades (materiais e não – materiais), criando as condições de uma vida
digna, autónoma, por uma articulação do conservadorismo – nomeadamente a defensa
de corpos intermédios39 – e da justiça social, preconizando um certo intervencionismo
estatal de um ponto de vista económico. Finalmente, a sua abertura ao universalismo e
a sua reflexão sobre os meios de estabelecimento de uma paz duradoura levam os
democratas – cristãos a advogar a criação de comunidades regionais supranacionais 40:
regionais para a identidade comum, supranacionais para ultrapassar a lógica
nacionalista belicosa.
A segundas razão pela qual uma justa apreciação é difícil prende-se com o
facto de que as soluções centristas foram não raro postas à prova em aliança com a
direita ou a esquerda de que incarnam uma visão moderada. Assim, em virtude das
suas origens religiosas, das suas alianças e do seu eleitorado, a democracia -cristã é
geralmente classificada como centro-direita, sugerindo-se implicitamente que é, in
fine, uma família de direita. Inversamente, o radicalismo foi amiúde qualificado como
sendo de esquerda em virtude do seu anticlericalismo, apesar de os radicais serem
37
Châtelet, F., Pisier Kouchner, E., op. cit, p. 93
38
Ver a propósito Lacroix, J., Le personnalisme, sources, fondement, actualité, Lyon, Chronique
Sociale
1981.
39
Respondendo o homem à sua essência apenas na participação na vida das suas comunidades
primeiras de pertença (regiões, professores, famílias), elas devem contribuir ao seu nível para a
elaboração do Bem comum.
40
Sublinhar-se-á o papel importante desempenhado pelos democratas – cristãos na construção
europeia.
defensores da propriedade privada e da livre empresa. Vê-se aqui o risco de confusão
entre topografia política e topografia conceptual: a necessidade institucional e/ou
eleitoral das alianças cria uma presunção de pertença que classifica politicamente – o
que é legítimo – mas também com demasiada frequência filosoficamente – o que é
menos legítimo – partidos que, na realidade, se pretendem portadores de um projeto
autónomo.
Demonstrar a existência de uma autêntica especificidade exige todavia a
identificação do que conceptualmente distingue o centro da direita e da esquerda. A
coerência e a estabilidade da esquerda e da direita assentam numa noção unificadora,
como a igualdade para a esquerda e o mérito para a direita. A coerência do centro
deve portanto ser encontrada em torno de um conceito articulado ou de conceitos
articulados, em relação tanto à esquerda como à direita.
42
Ver Guillaume, S., Garrigues, J., Centre et centrisme en Europe, op.cit., p. 18.
É a conceção alternativa do centro que nos interessa, a que vê nele o terceiro
inclusivo. Enquanto o terceiro incluído «procura um espaço entre dois opostos e,
introduzindo-se como algo situado entre um e outro, não os elimina mas afasta-os,
impedindo assim que se toquem (…); ele (o terceiro inclusivo) evita a alternativa
radical direita ou esquerda e (…) tende a ir além dos dois opostos englobando-os
numa síntese superiora e portanto anulando-os como tais». Dito de outro modo, o
terceiro incluído é uma via média enquanto o terceiro inclusivo é uma via alternativa
que transforma «estas duas totalidades exclusivas (esquerda e direita), não visíveis
simultaneamente (como o anverso e o reverso de uma medalha) em duas partes de um
todo, numa totalidade dialetica». Bobbio define esta última como «o resultado da
síntese de duas partes opostas de que uma é a afirmação ou tese e a outra a negação ou
antítese e a terceira, enquanto negação da negação é um quid novum que não se
apresenta como um composto, mas como uma síntese». A totalidade dialetica
distingue-se a um tempo da totalidade mecânica «na qual o todo é a combinação de
partes que se podem reunir porque compatíveis» e da totalidade orgânica «em que as
diferentes partes são função do todo e não são portanto antitéticas mas
convergentes.». 43
Enquanto um «centro – terceiro incluído» se define pela fórmula «nem direita
nem esquerda», um «centro – terceiro inclusivo» define-se pela expressão «direita e
esquerda». O primeiro apresenta-se antes de tudo como uma prática política sem
doutrina, ou pelo menos por defeito, consoante as forças políticas presentes num dado
momento. Inversamente, o terceiro inclusivo apresenta-se antes de tudo como uma
doutrina autónoma mas à procura de uma «praxis que, no momento em que é posta à
prova, se transforma em posição centrista». É aí que está a dificuldade: abster-se de
confundir nível político e nível conceptual. Politicamente, com efeito, terceiro
incluído e terceiro inclusivo situam-se no centro do xadrez político. As políticas que
propõem seriam políticas «centristas» no sentido de «moderadas». No entanto,
conceptualmente, terceiro incluído e terceiro inclusivo procedem de uma orientação
radicalmente diferente: enquanto o primeiro se contenta com uma posição «entre»,
portanto com uma definição negativa (no vago), o segundo procura posicionar-se
«para além de», com uma definição positiva. Este último é um compromisso entre
43
Bobbio, N., op. cit., p. 49. A referência é válida para o conjunto das citações do parágrafo.
dois extremos, «uma recusa e uma separação simultâneas»: ele «descobre a sua
própria essência, expulsando esses extremos». O primeiro, inversamente, «alimenta-se
do conflito» com o fito de propor uma superação, ou seja «uma aceitação e uma
supressão simultâneas»; em suma, esquerda e direita «são mantidas na sua oposição
mas reaproximada (s) na sua interdependência e suprimida (s) no tocante à sua
unilateralidade». 44
Pode compreender-se assim o facto de que os partidos liberais – o liberalismo
em termos mais gerais – sejam amiúde considerados como ocupando o centro da
clivagem. Devido à sua desconfiança relativamente ao político, o que é próprio do
liberalismo é definir-se pela negativa. Nesta vertente, corresponde bem à definição de
um centro – incluído. Representa o ponto de junção entre a esquerda e a direita e pode
portanto «inclinar-se tanto para a direita (até ao centro – direita) quanto à esquerda
(até ao centro – esquerda)».45
Na perspetiva de uma definição substantiva do centro, é portanto a conceção
do centro como centro – inclusivo que privilegiamos, como autêntica síntese da
esquerda e da direita. Mesmo assim, é preciso identificar primeiro o significado dos
conceitos de esquerda e de direita.
Ele considera com esta ideia que a aspiração à igualdade é a razão de ser dos
movimentos de esquerda como a formalização da opinião comum. Após uma análise
47
de diferentes autores (Galeotti, Cofrancesco, Laponce e Revelli), Bobbio verifica
que, apesar da diversidade de pontos de vista, o tema da oposição entre visão
44
Bobbio, N., op. cit., p. 50. A referência é válida para o conjunto das citações deste parágrafo.
45
Parenteau, D., Parenteau, I., Les idéologies politiques : le clivage gauche-droite », Québec, Presses
Universitaire du Québec, 2008, p. 21.
46
Bobbio, N., op. cit., p. 117-133 e 145-154.
47
Bobbio, N., op. cit., capítulos 4 e 5, pp.88 a 116.
horizontal ou igualitária da sociedade e visão vertical ou desigual da sociedade
aparece frequentemente. Ele nota também que, dos dois termos, é a esquerda que
parece ter guardado o valor mais constante, parecendo a direita menos unificada:
«Dir-se-ia quase que o par gira em torno do conceito de esquerda e que as suas
variações estão sobretudo do lado das diversas oposições possíveis ao princípio de
igualdade, seja o princípio desigual, o princípio hierárquico, ou o princípio
autoritário».48
Enquanto o historiador Roger Eatwell afasta este critério em virtude do seu
caráter multidimensional e evolutivo,49 Bobbio considera que é precisamente esta
qualidade que lhe permitiu sobreviver às mudanças históricas, sendo a história
50
moderna aliás, aos seus olhos, a de uma extensão da igualdade, tornando-se
injustificados, à medida da evolução da sociedade, os critérios de desigualdade que
pareciam pertinentes: assim é o caso da extensão do sufrágio, da emancipação
feminina, etc.
O fundamento da capacidade de renovação do critério de igualdade estriba-se
em que o valor da igualdade está vinculado à pertença comum à espécie humana.
Assim, enquanto existirem desigualdades, esquerda e direita continuarão a opor-se: «o
ideal igualitário de esquerda permanece como uma estrela polar para a qual se
continua a olhar. Nunca tanto como na nossa época foram postas à discussão as três
principais fontes de desigualdade: a classe, a raça, o sexo» .51
A oposição entre a esquerda e a direita assentaria então em definitivo «numa
avaliação contrastada daquilo que deve ser considerado como pertinente para
justificar uma discriminação»,52 ou seja na questão de saber se estes ou aqueles traços
característicos de indivíduos ou grupos merecem ou não um tratamento igual. Sendo
igualitária, a esquerda favoreceria políticas visando atenuar as diferenças, enquanto a
48
Bobbio, N., op. cit., p.115.
49
Eatwell, R., O’Sullivan, N. (éd.), The nature of the right: European and American politics and
political thought since 1789, London, Pinter, 1989, p. 53-55.
50
Bobbio, N., op. cit., p.153-4.
51
Bobbio vai mesmo ao ponto de salientar a extensão sob o impulso de um utilitarismo hedonista
como o de Peter Singer, do ideal de igualdade para além dos confins do género humano, “uma
extensão fundada no tomar em linha de conta que os animais são iguais a nós, humanos, pelo menos
na capacidade de sofrer”. Ver Bobbio, N., op.cit., p. 154. Há aqui como que um paradoxo, uma vez
que a igualdade é geralmente atribuída ao género humano.
52
Bobbio, N., op. cit., p. 130.
direita, sendo desigualitária, favoreceria políticas tendendo a encorajá-las (ou pelo
menos não favoreceria políticas visando atenuá-las).53
A análise de Bobbio é convincente, mas aparece mais como uma análise
centrada na esquerda, relegando a direita para uma definição pela negativa. Bobbio
está aliás consciente disso uma vez que insiste, por várias ocasiões, no facto de que a
assimilação da direita à defesa das desigualdades não implica um julgamento moral e
que é possível dar dessa postura uma definição positiva: «da mesma maneira que se
pode dar uma interpretação negativa da igualdade como nivelamento, pode dar-se
uma interpretação positiva da desigualdade, como reconhecimento da singularidade
irredutível de todo e qualquer indivíduo»54. Seja ela mais conservadora ou mais
liberal, «a direita não é desigualitária por perversidade (…), mas porque considera que
as desigualdades são não só impossíveis de eliminar – ou só o são asfixiando a
liberdade – mas também úteis na medida em que provocam uma luta incessante pela
melhoria da sociedade» 55.
A diferença entre esquerda e direita reside em definitivo no julgamento
diferenciado sobre a evidência de que «os homens são ao mesmo tempo iguais e
desiguais entre si»56. Com efeito, considerados enquanto espécie, os homens são
iguais uma vez que são todos animais racionais; mas considerados enquanto
indivíduos, no seio da espécie, são desiguais. Desde logo, duas inclinações são
possíveis, representadas respetivamente pela esquerda e pela direita: pensar que os
homens são mais iguais que desiguais. Mais ainda, « é correto denominar como
igualitários os que põem ênfase antes de mais no que aproxima os homens para
permitir uma boa vida em comum e, ao contrário, denominar como desiguais aqueles
53
Se Bobbio não estabelece esse elo, é notável que a definição da clivagem esquerda – direita
segundo a relação com a igualdade permite articular esta definição substantiva da esquerda e da
direita com uma perspetiva marxista assimilando a esquerda à defesa das classes desfavorecidas e a
direita à das classes privilegiadas. Sendo as classes desfavorecidas precisamente as que sofrem as
desigualdades presentes no seio da sociedade, a luta contra estas desigualdades coincide com a
defesa dos seus interesses. Inversamente, um partido que considera que estas desigualdades são o
reflexo legítimo das diferenças de mérito e de talento das pessoas adopta um posicionamento político
conforme aos interesses das pessoas que beneficiam das desigualdades sociais. É sem dúvida porque
a clivagem esquerda – direita coincide também com a oposição entre classes de interesses que ela é
predominante no campo político.
54
Bobbio, N., op. cit., p. 151
55
Bobbio, N., op. cit., p. 32
56
Bobbio, N., op. cit., p. 126.
que, partindo do mesmo pressuposto, consideram mais importante, para viver bem
juntos, dar prioridade à diversidade» 57.
57
Bobbio, N., op. cit., p. 127.
58
Casanova, J.-C., « Centre », in Commentaires, Número especial 30º aniversário 2008, p. 44-46.
parte de verdade tanto da esquerda como da direita com o fito de sublinhar,
simultaneamente, o que uma e outra esquecem ao tornarem unilateral a sua lógica. O
centro só terá consistência própria se não for um simples pólo entre duas vertentes
aceitando um certo grau de desigualdade. Deve exprimir uma síntese de duas
exigências normativas que se situam em dois planos distintos.
A teoria do reconhecimento e, em particular, os trabalhos de Axel Honneth
oferece-nos o quadro conceptual necessário para identificar esses dois planos59.
Honneth, inspirando-se em Hegel, distingue três formas fundamentais da procura de
reconhecimento de cada indivíduo. Cada indivíduo aspiraria a ser reconhecido [1]
como um indivíduo único, distinto de qualquer outro ser humano, no seio das relações
afetivas, [2] como um membro da espécie humana ao mesmo título que todo e
qualquer ser humano, e[3] como uma pessoa que tem um valor singular que se reflete
nos seus atos. A segurança de desfrutar da afeição de outrem e de sentir esta tão
incondicional quanto possível – sendo o amor parental o paradigma – constitui a base
da confiança em si e da representação de si como um indivíduo particular ao qual
nenhum outro pode ser substituído. O segundo modo de reconhecimento exprime-se
quanto a ele no igual respeito devido a todo e qualquer ser humano enquanto
participante da universalidade da espécie humana. Concretiza-se na igual dignidade
de todo o ser humano. Finalmente, a última forma de reconhecimento exprime a
expetativa de ser considerado socialmente em virtude da identidade singular que se
revela através dos nossos comportamentos e realizações.
Se o reconhecimento afetivo releva da esfera privada, as duas outras formas de
reconhecimento têm uma dimensão pública. É evidente para a exigência de respeito
ligada à segunda forma de reconhecimento que se concretiza juridicamente na
igualdade de direitos subjetivos. Mas é igualmente o caso da terceira forma de
reconhecimento que é dependente do sistema de valores dominante numa coletividade
e à medida do qual uma pessoa verá ser-lhe concedida uma certa consideração social.
O respeito e a consideração remetem para normatividades específicas60 : se o direito
universal a um respeito igual é concebível, a consideração social é necessariamente
59
Ver Honneth, A., La lutte pour la reconnaissance, Paris, Cerf, 2000.
60
Ver de Briey, L., Ferrarese, E., « Reconnaissance et justice. De la normativité de l’amour et de
l’estime», in Ethique publique, 9 (1), 2007, p. 127-143
diferenciada, deve «merecer-se». A distinção entre respeito e consideração remete
assim para lógicas normativas que vão ao encontro da clivagem esquerda – direita. A
«parte de verdade» da esquerda seria assim a de dar conta do igual reconhecimento
jurídico devido a cada ser humano na qualidade de participante da universalidade
humana, enquanto a da direita seria a de estar atenta à aspiração do reconhecimento
social de cada pessoa. Todavia, esquerda e direita sofreriam desde logo de uma
insuficiência simétrica: a generalização ao conjunto do campo social da
normatividade própria ao respeito e à consideração respetivamente. O centro deveria
por seu lado reconhecer a exigência de respeito e a aspiração à consideração social
como determinantes da condição humana irredutíveis entre si.
Isto não é todavia suficiente para propor uma definição do centro como um
autêntico terceiro inclusivo. Com efeito, se a exigência de respeito e a aspiração à
consideração se revelam inconciliáveis, a posição centrista apenas corresponderá à
procura de um compromisso entre duas lógicas normativas fundamentalmente
contraditórias. É pois necessário poder distinguir conceptualmente o que deve ser
regido pelo princípio da igualdade própria à lógica do respeito e o que releva do
campo da consideração social relativa ao reconhecimento do valor singular de uma
pessoa.
O elemento que falta é fornecido por uma outra distinção clássica em filosofia
política, a do justo e do bem 61. Para exprimi-lo de modo intuitivo, o justo corresponde
à repartição equitativa de um conjunto de recursos entre os indivíduos, enquanto o
bem remete para a interrogação sobre o uso que deveria ser feito desses recursos. O
justo entende pois assegurar a cada um as condições necessárias ao cumprimento da
sua liberdade, enquanto o bem enuncia os valores que devem orientar a nossa vida.
Uma grande diversidade de teorias da justiça distinguem-se umas das outras em
função, por um lado do critério de equidade (mais ou menos fortemente igualitário)
acolhido e, por outro lado, da extensão dos recursos considerados (dos direitos
privados e políticos aos recursos sócio – económicos, ou mesmo culturais), enquanto
nas sociedades contemporâneas se caraterizam pela importante pluralidade das
61
Ver, por exemplo, Rawls, J., « La priorité du juste et les conceptions du Bien » in Justice et
démocratie, Paris, Seuil, 1993, p. 287-320.
conceções do bem presente no seu seio, sem que essa pluralidade impeça todavia a
predominância de umas sobre as outras.
Um elo entre o justo e o bem, por um lado, o respeito e a consideração por
outro, pode facilmente ser sugerido. Enquanto o respeito devido a cada um é
determinado por princípios deontológicos de justiça, a consideração é, quanto a ela,
de natureza axiológica. Está dependente de normas axiológicas que enunciam, por um
lado, os ideais considerados socialmente constitutivos de uma vida boa e, por outro
lado, o grau mínimo expectável para a realização desses ideais. Predominando uma
rejeição desses ideais ou uma realização insuficiente dos mesmos, estaríamos perante
uma fonte de desconsideração social. Inversamente, a consideração social seria a
expressão de uma excelência na realização de um ou outro desses ideais.
Um conceito de centro como síntese da esquerda e da direita emerge desde
logo. Não se trata de encontrar um compromisso entre elas, mas de defender uma
conceção igualitarista do justo, fundando essa conceção no igual respeito devido a
todo o ser humano, ainda que insistindo na necessidade de diferenciar a consideração
devida a cada um. O erro da direita seria o de considerar que a consideração social
deveria exprimir-se através de uma repartição desigual dos recursos. O da esquerda
seria o de querer, paradoxalmente, assegurar a cada um uma mesma consideração
social quando a esperança de ser considerado positivamente condicionaria o
desenvolvimento de um projeto de vida portador de sentido.
No contexto das sociedades contemporâneas marcadas por um importante
pluralismo axiológico, a preocupação fundamental para um tal centro inclusivo é
desde logo a de identificar a conceção do bem e os valores chamados a presidir aos
juízos de consideração social. Trata-se com efeito de fazer da definição desses valores
um objeto propriamente político. Enquanto a direita conservadora esperará do Estado
que ele assegure a perenidade da conceção do bem historicamente dominante e que a
exigência liberal da neutralidade axiológica do Estado não impedirá que algumas
conceções do bem se imponham de facto socialmente, um centro inclusivo entenderá
interrogar continuamente a legitimidade das conceções do bem em vigor e promover a
elaboração democrática de um projeto de sociedade em torno de valores
coletivamente escolhidos.
Conclusão
62
No debate orçamental atual, a resistência da direita em aceitar novas receitas não se explica apenas
por uma recusa de ver o seu conforto material diminuído mas também pelo temor de desclassificação e
perda de consideração social.
63
Sobre a nossa interpretação desta oposição ver nomeadamente, L. de Briey, Le sens du politique,
essai sur l’humanisme démocratique, Wavre, Mardaga, 2009 et « Le foulard de la parlementaire.
Républicanisme critique ou criticisme républicain » in Revue philosophique de Louvain, 109, 2011, p.
697-721.
Bibliografia
ESQUERDA-DIREITA
JEAN-PHILIPPE THÉRIEN64
64
Licenciado em Ciência Política na Universidade de Montpellier. Doutorado em Sociologia do
desenvolvimento, na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris. Foi professor no Instituto
de Estudos Políticos de Bordeaux. Foi director científico do Centro de Estudos e de Investigações
Internacionais da Universidade de Montréal, Canadá. É professor titular do Departamento de Ciência
Política da Universidade de Montréal, Canadá. Recebeu o prémio de Investigador do CERIUM
Introdução
O texto que se segue propõe uma pista para responder a esta questão. Avança a
ideia de que a política nacional e a política internacional se unem pelo facto de que
estas duas esferas de acção pública estão estruturadas pela mesma clivagem
As noções de esquerda e de direita são difíceis de definir, e este texto não pode
abordar todos os problemas colocados pela formulação de tal definição. Limitar-me-ei
a retomar a conceção proposta pelo filósofo Norberto Bobbio e que continua a ser a
mais corrente66. O fundo da questão, de acordo com Bobbio, é que a esquerda atribui
maior importância do que a direita à igualdade. Esta posição não deve ser caricaturada
de modo a fazer crer que a esquerda seria «a favor» da igualdade e a direita «contra».
Mais subtilmente, significa que não lhe concedem ambos a mesma atenção. À direita,
65
Alain Noël, e Jean-Philippe Thérien, Left and Right in Global Politics, Cambridge, Ed. Cambridge
University Press, 2008.
66
Norberto Bobbio, Left and Right : the significance of a Political Distinction, Chicago, Ed. University of
Chicago Press, 1996.
os conservadores consideram que a igualdade de oportunidades é suficiente para
assegurar o bem-estar coletivo. Mais exigente, a esquerda acredita, por seu lado, que a
igualdade de oportunidades deve ser acompanhada de uma igualdade de resultados.
A distinção esquerda – direita constitui apenas uma metáfora uma vez que, no
mundo real, as opiniões políticas exprimem-se mais sob a forma de um espectro que
sob a forma de uma dicotomia. Além disso, o significado de «esquerda» e «direita»
varia consoante tempo e o espaço. Seja como for, é notável verificar que, a apesar de
todas as imprecisões que a rodeiam, a oposição esquerda – direita continua a estar no
centro das discussões que animam a filosofia política, a política comparada e a
sociologia política. Neste contexto, a quase ausência das noções de «esquerda» e de
«direita» no campo das relações internacionais tem algo de surpreendente. No fim de
contas, os temas da igualdade e da justiça social que definem a clivagem esquerda –
direita estão igualmente no centro de numerosas questões internacionais. De resto,
poucos contestarão a ideia de que a esquerda e a direita interpretaram os conflitos
Leste-Oeste e Norte-Sul das últimas décadas de maneiras bem diferentes. É tempo,
sem dúvida, de que esta banal constatação dê lugar a uma reflexão mais sistemática.
Debruçando-se sobre três aspectos maiores da globalização, o resto do presente texto
propõe orientar-se nessa direção.
A promoção do desenvolvimento.
Ao mesmo tempo que a atenção mediática de que é alvo não pára de aumentar,
diz-se por vezes que a questão do meio ambiente transcende as divisões ideológicas
tradicionais, e que um largo consenso se estabeleceu agora em favor do
desenvolvimento duradouro. Contudo, esta visão não é nada convincente. Para além
das surpreendentes alianças que por vezes originou, o meio ambiente nunca se
libertou do conflito esquerda–direita. Notemos desde logo que os partidos verdes, que
transformaram a paisagem política em vários países nos últimos vinte anos, têm a sua
origem no movimento progressista. Por outro lado, como se verá, ao lembrarmos os
grandes debates em curso mostraremos sem equívocos que a esquerda e a direita
abordam o meio ambiente de maneira contrastada.
A direita julga que as análises dos ambientalistas são, não raro, demasiado
alarmistas. Recentemente, por exemplo, inúmeros observadores deste campo punham
ainda em causa a própria existência do aquecimento climático. Essas mesmas pessoas
têm geralmente tendência para confiar no potencial da tecnologia, para resolver os
problemas que poderiam colocar no futuro a degradação dos ecossistemas e o
esgotamento dos recursos. Argumentando, por outro lado, que a proteção do meio
ambiente é responsabilidade de todos os Estados e que é preciso lutar contra a
concorrência desleal, a direita exige políticas ambientalistas muito mais estritas por
parte dos países em desenvolvimento. No fundo - sublinham os conservadores-, países
como a China e a Índia contam-se entre os maiores poluidores do mundo, enquanto
são os governos e as empresas dos países desenvolvidos que mais investem para o
desenvolvimento de tecnologias mais ecológicas.
Tanto ao nível global quanto nacional, os políticos de direita fazem valer que a
proteção do meio ambiente não deve comprometer o objectivo do crescimento
económico. Quando estava no poder, o presidente George W. Bush envidava assim
esforços para denunciar o protocolo de Kioto dizendo que este tratado ia destruir a
economia americana. Por outro lado, no programa de ação que ela privilegia, a direita
tem sistematicamente tendência a preferir as medidas voluntárias às coercitivas para
fazer face aos desafios do meio ambiente. Mais flexíveis por definição, as normas
voluntárias ajustam-se melhor ao funcionamento de uma economia de mercado do
que as regras obrigatórias. A direita é, finalmente, mais desconfiada em relação à
intervenção das instituições internacionais no domínio do meio ambiente.
Naturalmente, ela mostra-se pois pouco entusiasmada com a criação de uma
Organização Mundial do meio ambiente ou de um Conselho de segurança ambiental.
Conclusão
Estas oposições têm vindo a perder a rigidez de outrora. Com a queda do Muro
de Berlim, o colapso dos sistemas de Leste e a subsequente transformação das
referências ideológicas anteriores, a esquerda embrenhou-se numa crise profunda. O
surgimento de problemas nas sociedades contemporâneas que a esquerda tradicional
nunca tinha considerado (por exemplo, relacionados com a ordem e segurança),
associado ao desaparecimento de alguns pressupostos base dessa mesma esquerda
(com a fracasso dos sistemas socialistas), estão na origem da sua actual crise. Esta
crise caracteriza-se hoje pela observação de um interesse significativo do socialismo
em manter e explorar as estruturas do Estado, tradicionalmente associadas ao
desenvolvimento capitalista, de forma a alcançar os objectivos socialistas. Por isso,
Anthony Giddens afirma que hoje socialismo significa uma multiplicidade de coisas
diferentes não passando muitas vezes “de um chapéu para qualquer ordem social
putativa que um pensador particular deseje ver criada” (2000: 116). O autor refere
ainda que “para Marx, o socialismo manter-se-ia de pé ou seria derrubado de acordo
com a capacidade que demonstrasse para gerar mais riqueza do que o capitalismo e
para dividir a riqueza gerada de forma mais equitativa. A morte do socialismo deve-se
precisamente à derrocada destas premissas” (1999: 15).
69
A dimensão materialismo / pós-materialismo sintetiza-se da seguinte forma: materialismo identifica-
se com a preferência tradicional pela ordem, pela lei, pela segurança, pelo crescimento e estabilidade
económicos e, portanto, pelos aspectos mais economicistas da vida; o pós-materialismo designa a
adesão e a primazia dada aos valores da participação política e social, da estética e das liberdades
cívicas, associando-se assim, preponderantemente, às questões relativas à qualidade de vida (Inglehart,
1998; Montero, 1992; Montero e Torcal, 1992).
crescente de adeptos essencialmente entre os jovens e os que têm maior nível de
escolarização, e os que privilegiam objectivos pós-materialistas, estes novos
movimentos e partidos são predominantemente urbanos e tendencialmente de
esquerda (Betz, 1990; Kitschelt e Hellemans, 1990; Inglehart, 1998). A proliferação
destes tem sido mais visível nos países mais desenvolvidos, conseguindo mesmo em
alguns casos alcançar representação eleitoral significativa70 (Kitschelt e Hellemans,
1990).
Com efeito, parece ter-se operado nas últimas décadas uma mudança radical
nas definições estruturantes das ideologias tradicionais. Alguns autores alertam
mesmo para a possibilidade de a clivagem esquerda-direita não radicar mais na
clássica antinomia liberdade / igualdade, mas na nova clivagem materialismo / pós-
materialismo (Inglehart, 1998; em relação a Espanha: Montero, 1992).
70
Esta nova esquerda, por oposição à esquerda marxista tradicional, tem como principal componente
de sucesso os partidos ecologistas os quais têm vindo em caminhada ascendente desde os anos 70 na
generalidade dos países ocidentais. Trata-se não de uma esquerda materialista, tal como o era
tradicionalmente, mas de uma esquerda renovada e profundamente marcada pelos valores pós-
materialistas. Os Verdes da Alemanha Ocidental constituiriam o primeiro partido predominantemente
pós-materialista, com relevo eleitoral, no início da década de 80 (Betz, 1990).
71
Um conjunto de questões de natureza moral e jurídica impõem a tomada de novas decisões políticas,
de que é exemplo paradigmático as posições relativamente à legalização do aborto. Face à falta de
referências no passado e à própria natureza moral dos assuntos, a sua inserção nas categorias direita ou
esquerda apresenta grandes dificuldades, fazendo supor que a bipolarização política existente não é
suficiente para categorizar estes problemas emergentes.
movimentos e no discurso dos meios de comunicação social, o que demonstra que
continuam a ter validade conotativa. Bobbio é defensor de que as ideologias
tradicionais não desapareceram, apenas foram vestidas por novas roupagens – “não
existe nada mais ideológico do que a afirmação da crise das ideologias” (1995: 28/9).
Outros autores, suportam igualmente que a dimensão esquerda-direita persiste,
consistindo a esquerda na apologia da mudança social em direcção à igualdade
política, económica e social, enquanto a direita se suporta numa sociedade ancorada
nos valores tradicionais, de natureza hierárquica, e avessa à mudança para a igualdade
social (Inglehart, 1998; Giddens, 1999; Paim, 2001: 79). No que respeita à esquerda
materialista tradicional Inglehart argumenta que, apesar do declínio evidente das
últimas décadas, os partidos comunistas dificilmente desaparecerão porque, por um
lado, são suportados por um núcleo duro de apoiantes que asseguram a sua
permanência e, por outro, o papel que desempenharam na reivindicação de uma maior
igualdade material e a consequente integração das políticas sociais na generalidade
dos partidos da sociedade ocidental dão-lhe relativa visibilidade e reconhecimento
(1998). Esta será tanto mais a realidade quanto a conjuntura social e económica se
agudize e conduza ao depauperamento das condições de vida dos indivíduos.
Para Giddens, “o primeiro objectivo de uma política de terceira via devia ser o
de ajudar os cidadãos a encontrar um caminho através das revoluções mais
importantes do nosso tempo: globalização, transformação da vida pessoal e o nosso
relacionamento com a Natureza” (1999: 62). Tal afirmação compreende o aceitar do
processo de mundialização com uma atitude positiva de abandono da rigidez do
proteccionismo e não como algo essencialmente negativo; o perspectivar da justiça
social como preocupação central em que os direitos dos cidadãos não são apenas
obrigações da política central mas tem o seu correspondente nos deveres dos próprios
cidadãos.
De acordo com Giddens, “uma política de terceira via deve manter a justiça
social como preocupação nuclear, embora levando em linha de conta que o leque de
questões que não cabem na velha dicotomia esquerda / direita é mais amplo do que
nunca” (1999: 63). Tal preocupação implica a necessidade de reforma do Estado
Providência atendendo, porém, a que as medidas a tomar estabeleçam uma relação
saudável entre os investimentos sociais e as consequências económicas dessas
medidas. São os direitos subjugados à responsabilidade. Neste âmbito, o novo
trabalhismo britânico procurou estabelecer uma nova identidade de forma a construir
uma alternativa intelectual que se pretendia ser compatível com o pensamento da
esquerda. Blair almeja que o trabalhismo redescubra a sua identidade com base num
conjunto de valores fundacionais e não em qualquer rígida ideologia ou teoria
económica anacrónica.
Uma outra linha do New Labour decorre da intenção de não permitir que a
direita política fosse detentora de assuntos políticos exclusivos; ao invés, o partido
deveria encontrar soluções de centro-esquerda para esses assuntos. A esquerda
tradicional tentou explicar, e não propriamente solucionar, questões como o crime, a
desordem social, a migração e a identidade cultural. Giddens acusa a esquerda
tradicional de acreditar que a maior parte das formas de crime decorria da
desigualdade e que, uma vez mitigado o problema da desigualdade, o crime iria
inevitavelmente declinar (2010: 2). Para o autor, esta estratégia do New Labour de
captar e apresentar soluções para os assuntos políticos típicos da direita estabeleceu
uma quebra com a visão trabalhista tradicional, o foi vital para a longevidade do
mesmo no poder.
Mais do que uma posição intermédia entre esquerda e direita, entre socialismo
e neoliberalismo, entre o Estado e o mercado, a Terceira Via de Blair apresenta-se
como uma proposta de programa político, que procura responder aos problemas e
exigências do processo de globalização, liberto dos tradicionais constrangimentos
ideológicos. A nova agenda política procura compatibilizar a liberdade, a igualdade e
a solidariedade com o crescimento económico e a protecção do meio ambiente,
pautando-se por uma atitude que auto-denomina de realista. O novo Partido
Trabalhista defende, assim, uma verdadeira igualdade de oportunidades para todos (ao
invés da igualdade utópica de resultados da esquerda tradicional), e a conciliação dos
investimentos públicos e privados, optando muitas vezes por soluções públicas
configuradas por meio do mercado. Este posicionamento necessita, no entanto, de
diferenciação relativamente ao que Giddens denomina de política de redenção,
expressão utilizada para designar a visão excessivamente negativa da esquerda
tradicional sobre o capitalismo e seus agentes (1997). Esta terceira via visa assim
conciliar a criação de riqueza com a justiça social, o mercado e a comunidade.
4. Considerações finais
BIBLIOGRAFIA
Barrientos, Armando e Powell, Martin (2004), «The Route Map of the Third
Way», in Sarah Hale, Will Leggett, e Luke Martell (eds.) The Third Way and Beyond.
Criticisms, Futures and Alternatives, Manchester e Nova Iorque: Manchester
University Press, pp. 9-26.
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Parties», in Journal of Legislative Studies, 16(1), pp. 121-142.
Cammack, Paul (2004), «Giddens’s Way with Words», in Sarah Hale, Will
Leggett, e Luke Martell (eds.) The Third Way and Beyond. Criticisms, Futures and
Alternatives, Manchester e Nova Iorque: Manchester University Press, pp. 151-166.
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Policy & Politics, 28(2), pp. 147-161.
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Goes, Eunice (2004), «The Third Way and the Politics of Community», in
Sarah Hale, Will Leggett, e Luke Martell (eds.) The Third Way and Beyond.
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University Press, pp. 108-127.
Leggett, Will (2004), «Criticism and the Future of the Third Way», in Sarah
Hale, Will Leggett, e Luke Martell (eds.) The Third Way and Beyond. Criticisms,
Futures and Alternatives, Manchester e Nova Iorque: Manchester University Press,
pp. 186-200.
Ryner, Magnus (2010), «Na Obituary for the Third Way», at:
www.eurozine.com (30.12.2011).
Sik, Ota (1978), Argumentos para uma Terceira Via, Coimbra: Livraria
Almedina.
Treanor, Paul (2002a), Europe: The Third Way/Die Neue Mitte – Tony Blair
and Gerhard Schröder, at: http://web.inter.nl.net/users/Paul.Treanor/drittemitte.html
(30.03.2002).
Tradição e Renovação
73
Norberto Bobbio, Direita e Esquerda. Razões e Significados de uma Distinção Política, Lisboa,
Presença, 1994, p.27.
Defendida sob a nomenclatura de tese do apaziguamento ideológico deu lugar
a amplos debates. Com ponto de partida na Conferência de Milão de 1955, sobre o
futuro da liberdade, e os Colóquios de Rheinfelden 74, a tese do apaziguamento
ideológico desenvolveu-se em torno do princípio da despolitização da política no
sentido da administração deixar de ser dos homens para incidir apenas nas coisas.
Valores e Acção
Norberto Bobbio 77 num esforço de sistematizar esta questão averiguou a partir
da crítica da literatura sobre o tema, da existência de um critério distintivo a partir dos
74
Actas publicadas em Paris em 1960 de que foi relator Raymond Aron - sob a responsabilidade do
Congresso para a Liberdade da Cultura. Do mesmo autor, ainda sobre este tema. Aron desenvolve o
tema em L’Opium des Intellectuels, e em Fin des Idéologies, Renaissance des Idées, ambos publicados
em Paris, respectivamente em 1955 e 1965. Sobre as teses do apaziguamento ideológico cfra as
posições de Daniel Bell.
75
Para uma caracterização das sociedades afluentes vd John K. Galbraith, entre outras obras porventura
mais representativas, v. g. L'Ére de Opulence, Paris, 1961; Segundo este autor todas as teses anteriores
ao New Deal de Roosevelt deveriam considerar-se ultrapassadas.
76
Sarmento, Cristina Montalvão, Os Guardiões dos Sonhos. Teorias e Práticas dos anos 60, Lisboa,
Colibri, 2008.
77
Norberto Bobbio, Direita e Esquerda, ....Op. Cit., passim.
binómios: moderados/extremistas78; tradição/emancipação79; hierarquia/igualdade,
conservadores/progressistas; com a direita a corresponder à primeira zona do duo
comparativo e a esquerda ao segundo. Apesar da pretensão de não defender uma
tomada de posição, Bobbio inclina-se a aceitar os termos igualdade/desigualdade e
liberdade/autoridade como os elementos que mais esclareceriam respectivamente o
sentido dos termos esquerda/direita.
História e Experiência
78
Norberto Bobbio faz na citada obra uma análise à obra de J . A . , La Ponce, Left and Right. The
Topography of Political Perceptions, Toronto, University of Toronto Press, 1981, que considera
como o ponto de chegada de análises anteriores e ponto de partida dos estudos posteriores.
79
Distinção de D. Confrancesco - Destra e Sinistra, Genova, Presso il Basilisco, 1981 - , que advoga
que a utilização crítica dos dois conceitos só se torna possível, se renunciar a concebê-los como
totalidades históricas concretas, e se forem interpretados como comportamentos de fundo, como
intenções, de acordo com a definição de Karl Mannheim.
Os juízos sobre a antinomia direita e esquerda reflectem muitas vezes os
principais argumentos que revelam a confusão entre as ideias abstractas e os
compromissos a que essas ideias sofrem quando adaptadas à prática. Por isso não
faltam definições que retomam os históricos concretos e redefinem os conteúdos da
dicotomia recorrendo a exemplos históricos apropriados.
Tudo bem considerado, a esquerda está tão dividida quanto à natureza do seu
ideal e quanto à acção revolucionária85, como a direita quanto às reformas que é
80
Ernest Gellner, Condições da Liberdade, Lisboa, Gradiva, 1995, p.193.
81
Cfra Norberto Bobbio, O Futuro da Democracia, Lisboa, Publ. D. Quixote, 1988, p. 144.
82
Sobre o liberalismo metodológico, Vd, Paul Feyerabend, Contra o Método, Lisboa, Relógio D' Água,
1993.
83
Não estamos a considerar para o efeito que nos interessa as novas propostas de terceiras vias, como
por exemplo, a postura de Giddens, porquanto este trabalha exactamente a partir da oposição que aqui
discutimos.
84
Norberto Bobbio, O Perfil Ideológico del Siglo XX en Italia, México, Fondo de Cultura Económica,
1989, p. 205.
85
Segundo Adelino Maltez, terão terminado os duelos entre marxistas, mesmo que neo-marxistas ou
freudo - marxistas, à maneira da Escola Critica de Francoforte e os não marxistas. O que não implica a
consequente uniformidade de acção à esquerda. E não invalida a posição de Freund.
necessário realizar. Nesta medida, como salienta Julien Freund, a oposição entre
direita e esquerda não tem nada de específico, não passa no fundo da tradução
ideológica de uma longa querela entre a tradição e a aventura86.
Ideologia e Integração
86
Julien Freund, O Que é a Política? Lisboa, Ed. Futura, 1974, p.23.
87
Vd. os artigos dedicados à New Left e New Right em The Blackwell Encyclopaedia of Political
Institutions , Oxford, Basil Blackwell, 1987, pp388 e segs. Cfra também, Alain de Bénoist, Nova
Direita, Nova Cultura, Lisboa, Afrodite, 1981 e entre nós, Jaime Nogueira Pinto, A Direita e as
Direitas, Lisboa, Difel, 1996.
88
Paul Ricoeur, Ideologia e Utopia, Lisboa, Ed. 70, 1991. A citação referida pode ser encontrada na
obra do mesmo autor, Freud and Philosophy: An Essai on Interpretation, New Haven, Yale
University Press, 1970, p.35.
89
Karl Mannheim, Ideologia y Utopia, Introducción a la Sociologia del Conocimiento, México, Fundo
de Cultura Económica, 1993. |1836|, p. 270.
"as luminosas intuições" de Nietzsche, cujas linhas de desenvolvimento terão
conduzido às teorias de Freud e Pareto dos impulsos originais, e aos métodos por eles
criados com o objectivo de estudar o pensamento humano como uma deformação e
um produto de mecanismos instintivos.
REPENSAR A DICOTOMIA
DIREITA-ESQUERDA
Eduardo Currito 98
98
É licenciado em Engenharia Electrónica e computacional, ramo de Telecomunicações
electrónicas pelo Instituto Superior Técnico de Lisboa. É Mestre em Estudos Empresariais pelo ISCTE
em Lisboa. Tem uma pós-graduação em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade
Católica Portuguesa.É doutorado em Relações Internacionais pelo Instituto Superior de Ciências
Sociais e Políticas, da Universidade Técnica de Lisboa. Foi professor da Academia Naval Portuguesa,
do IADE (Instituto de Arte e Design), secretário-geral da Associação Empresarial Portuguesa,
supervisor do Grupo Espírito Santo, director do Banco Best do mesmo grupo, director e consultor da
empresa WF de Newark- cidade do Estado americano de Nova Jersey, assessor, consultor e director
financeiro de diferentes empresas e instituições, design manager, engenheiro de sistemas. Tem estado
ligado a várias associações empresariais e profissionais, tem expendido os seus conhecimentos em
várias conferências, seminários e colóquios e tem escrito para várias publicações.
1. INTRODUÇÃO
Num mundo pós-Fukuyama, pelo menos no que diz respeito às ideologias, não
se poderá dizer que o jogo terminou, que a luta ideológica de dois séculos chegou ao
fim, resultando no triunfo do liberalismo ocidental.
Não é necessário procurar muito longe para encontrar uma evidência contínua
das divergências ideológicas no palco mundial. Um exemplo disso foram os distúrbios
de 1999 em Seattle, por ocasião da cimeira da Organização do Comércio Mundial,
que acabaram numa grande desordem, com cenas de confronto violento entre a polícia
e os manifestantes. Da mesma forma, no mais recente World Economic Forum de
Davos, houve surtos de violência esporádica.
Direita e esquerda são termos espaciais, que começaram por dividir a câmara
francesa (durante a Revolução Francesa, 1789) entre os que se sentavam à direita e à
esquerda, entre os apoiantes da ordem e os da mudança. Esta bipolarização, contudo,
implica uma espécie de neutralidade entre as categorias que distinguem politicamente
a população100.
101
Celso Lafer, “Bobbio aos 94 anos”, in Revista Nova Cidadania, Ano V – Número 19, Janeiro/Março
2004, pp. 54-55.
102
Norberto Bobbio, Direita e Esquerda, São Paulo: UNESP, 2ª edição, 2001.
103
John Rawls, Uma Teoria da Justiça, São Paulo: Martins Fontes, 2ª edição, 2002.
104
Hélio Jaguaribe, A Proposta Social-Democrata, Brasília: ITV, 2ª edição, 1998, p. 12.
“Desde que o socialismo democrático abandonou a inspiração marxista e as
correntes neoliberais se distanciaram das teorias do Estado mínimo, já quase ninguém
entre os partidos moderados coloca em causa a necessidade de regulação da economia
pelo Estado e o imperativo ético de pôr em prática programas vastos de protecção
social. O que se discute é até onde deve ir essa regulação e como deve ser feita, bem
como a natureza e montante dos benefícios a conceder aos mais desprotegidos na
sociedade. Ou seja: todos reconhecem ao Estado uma vocação dupla,
simultaneamente reguladora e proteccionista.”105
“Em abono da verdade, sublinhe-se que muitos dos valores que a chamada
esquerda continua a reivindicar como fazendo parte da sua identidade própria formam
hoje um substrato comum a todos os grandes partidos. Acreditar no progresso e na
possibilidade de transformar o mundo para melhor, reparar as injustiças e
desigualdades humanas, a liberdade, a solidariedade, a igualdade de oportunidades, a
justiça social, o laicismo do Estado, a concertação social, as conquistas básicas do
movimento sindical, a defesa do ambiente e dos equilíbrios ecológicos, a previdência
105
Rui Valada, “Esquerda e direita”, in www.cienciapolitica.org
106
Entre os preconceitos, encontramos a ideia arreigada de que a direita defende o capitalismo
selvagem, as organizações religiosas, os grandes interesses económicos e a prepotência dos patrões, e
que é à esquerda que cabe o papel de defensora da regulação da economia pelo Estado, do laicismo e
independência deste, da salvaguarda dos direitos dos trabalhadores e do alargamento dos esquemas
de protecção social..Rui Valada, “Esquerda e direita”, in www.cienciapolitica.org
social, a luta em favor dos excluídos, a democracia representativa e a participação
directa dos cidadãos na vida política, o direito à diferença, a liberdade sexual, a defesa
dos direitos das minorias, o estímulo ao associativismo – tudo isto e mais qualquer
coisa pode ser encontrado nos textos programáticos e na acção política dos partidos de
todos os quadrantes do espectro ideológico das sociedades ocidentais.”107
3. A TERCEIRA VIA
107
Rui Valada, “Ser de esquerda, ontem (carta aberta a Mário Soares)”, in www.cienciapolitica.org
108
Anthony Giddens, A Terceira Via e seus Críticos, Rio de Janeiro: Record, 2001.
4. CONSERVADORISMO COMPASSIVO
109
Myron Magnet, “O que é o Conservadorismo Compassivo?”, in Revista Nova Cidadania, Lisboa,
Universidade Católica Portuguesa, Ano II, Número 8, Abril/Junho 2001, pp. 18-25.
vêem a necessidade de uma nova abordagem que implemente testes mais exigentes
para estudantes e professores
5. CONCLUSÃO
Existem amplas razões para acreditar que as divisões ideológicas entre direita
e esquerda, com origem na Revolução Francesa, estão longe do fim.
Desenvolvimentos dentro e fora do mundo democrático ocidental confirmam a sua
relevância actual. Vimos que podem emergir diferentes tendências ou vagas tanto à
esquerda (a “terceira via”) como à direita (o conservadorismo compassivo), mas
nenhuma delas representa um novo e real ponto de partida.
BIBLIOGRAFIA
António J. Caselas110
110
Licenciado em Filosofia, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Doutorado em
Filosofia Política, na Universidade de Évora. Membro do grupo Krisis da Universidade de Évora.
Membro do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa. Tem apresentado algumas comunicações
em conferências. Tem artigos e outros textos publicados.
Para além do confronto, da oposição e das múltiplas aproximações e analogias
entre as categorias de ‘esquerda’ e ‘direita’, o político (os níveis da estruturação e
fundamentação da comunidade organizada) como sucedâneo da política (as relações
de poder e os jogos institucionais e político-ideológicos) marca o nosso tempo. As
categorias determinantes que, no horizonte, se perfilam, ainda que dotadas de um
carácter polémico, já não se prendem com as inquietações históricas e as formatações
ideológicas das noções tradicionais. Elas deixaram de ser relevantes e, em
contrapartida, são convocadas à progressão irrecusável do pensamento, categorias
como excepção, biopoder, decisão activa e passiva, dispositivo, máquina biopolítica,
governação, globalização, imunidade, impolítico, despolitização. As categorias de
‘esquerda’ e ‘direita’ pertencem a um universo de confronto político-ideológico que
precedeu a consciência da complexidade da globalização e das tentativas posteriores
em racionalizá-la através da Filosofia e da Ciência Política. Dessas tentativas, fora da
reflexão das ciências sociais; é exemplo disso, as propostas de refundação política e
ideológica e de reformulação do espectro macroeconómico, apresentadas por algumas
organizações políticas tradicionais de ‘esquerda’.
Como, por vezes, tem sido assinalado, a consciência da globalização ou a sua
determinação prévia ao nível do pensamento político, encontra-se já no Manifesto do
Partido Comunista de Marx. Porém, a referência à vocação imperial do sistema
capitalista, a sua lógica de disseminação e de apropriação multinacional e a
capacidade de absorver, desvirtuar e de se apropriar das marcas identitárias das
nações à escala planetária, obedecem, no presente, a uma rede ou combinatória de
focos de poder e de interesses que são específicos. Para a sua compreensão, a
racionalidade multidisciplinar tem-se mostrado prudente e, em muitos casos,
inoperante. E as dificuldades e bloqueios que têm sido encontrados nessa análise já
não se dissolvem sob a lucidez ancestral das dicotomias mas, em grande medida, pela
identificação de ambiguidades e indeterminações. E justamente, em certas versões da
vertente biopolítica, deparamos com uma articulação entre as categorias tradicionais,
como sejam o poder, a soberania e o governo, com a inesperada emergência da
indeterminação e da disseminação desvanece as fronteiras concetuais assumidas pela
tradição. A indeterminação e a dissolução dessas fronteiras, assume, assim, um papel
predominante na reflexão acerca dos mecanismos e dispositivos do poder, quer
funcionem na relação entre os indivíduos, os grupos e o Estado, quer na relação mais
abrangente em que se torna, porventura, mais difícil identificar, ou seja, as entidades e
instituições envolvidas. A globalização já não se esgota no alargamento territorial,
político-ideológico e económico-financeiro; revela níveis de articulação de poder e da
autoridade soberana distintos daqueles que funcionaram no passado e que contiveram,
de certo modo, o caos nas fronteiras da ordem; revela, igualmente, uma
indeterminação no real e na nossa capacidade para dele se apropriar que já não é
consentânea com as análises materialistas tradicionais. Talvez, a similitude maior
entre o pensamento marxista e a nossa perceção da realidade do presente, seja a visão
que indicia, claramente, a incapacidade de regeneração do capitalismo como sistema
que adotou múltiplas faces e mutações.
A dimensão opressiva do poder acaba por se revelar, não apenas na
plasticidade do sistema económico-financeiro e ideológico que caracteriza o modo de
governação das sociedades contemporâneas, mas na cristalização da sua vertente
objectiva ou ultra-objectiva. É nesse sentido que se pode falar, por exemplo, numa
violência do sistema capitalista dos países mais industrializados e na realidade que
nalguns países emergentes pode apenas ser dissimulada à custa de algumas estratégias
de encenação ideológica já desgastadas. Balibar e Zizek, reafirmaram recentemente e
de forma clara, essa violência a que se associam os actos decisórios do poder
soberano quaisquer que sejam as suas configurações. Um sucedâneo de invisibilidade
económico-financeira marca essa objectividade: tal como sucedia com a invisibilidade
reguladora na visão liberal clássica do universo económico, a realidade objectiva do
funcionamento dos sistemas actuais retira-se por detrás de acontecimentos
correntemente verificáveis e não se deixa apreender facilmente nos seus mecanismos
e dispositivos mais profundos; no entanto, essa realidade é constatável e só a custo se
deixa submergir pela propaganda ou pela astúcia da ideologia ou pelas mutações
próprias da plasticidade do sistema capitalista que consiste na capacidade em assumir
interesses, finalidades e orientações programáticas ecológico-humanitárias.
Como sabemos, uma crise profunda marca os sistemas avançados da sociedade
contemporânea. À crise de base ideológico-política associou-se a crise material que
assume contornos sistémicos dificilmente resolúveis. O enfraquecimento consequente
do poder, conduz à dificuldade de aceitação da autoridade e das suas pretensas
modalidades legitimadoras. O real (a invisibilidade, a objectividade) que estrutura
esses sistemas coexiste com os seus efeitos aparentes e dissimuladores (visíveis,
subjectivos). Tal como sucedeu com os modelos ideológicos revolucionários que
deram lugar a sociedades fechadas, deparamos hoje com o fracasso dos sistemas
liberais e abertos. A situação de ambos os sistemas no limiar de uma falência terminal
e inultrapassável e o uso de certas estratégias desculpabilizadoras com o intuito de os
afastar da justeza da fonte de onde provieram, revela, no entanto, as suas
semelhanças. Ao estatuto pseudocientífico do sistema revolucionário socialista,
sucedeu a naturalização (ou mesmo a tentativa de neutralização ideológica) do
sistema capitalista; revelaram-se um embuste, quer do ponto de vista teórico quer
práxico. Às novas formas de centralização do poder instituídas no século XX, sucedeu
uma discutível liberalização legitimadora que apenas de um modo superficial (ou
formal) se pode referir como democrática. Nesta, a violência, por assim dizer, mística
da autoridade mantém plenamente a sua vigência e assume, mesmo, uma actualização
ou revelação factual inusitada quando analisamos ou pretendemos racionalizar a
situação actual das sociedades desenvolvidas. As novas ressurgências da autoridade já
não se encontram restritas ao universo político-ideológico mas multiplicam-se por
redes de interesses materiais. No momento presente, a referência negativa à figura da
autoridade e do seu domínio libertou-se do círculo limitado da esfera política da
soberania para se imiscuir em áreas aparentemente neutras da organização global das
sociedades. Se assim é, os sistemas ou subsistemas jurídicos podem ser considerados
reféns dessa atualização da autoridade soberana que podemos designar de polémica?
Podem os actos decisórios das entidades pertencentes aos enquadramentos político-
jurídicos clássicos, mais ou menos adaptados à realidade contemporânea, serem
pacificamente aceites? Não deparamos, pelo contrário, com um inesperado e
irrecusável desvelamento da condição ou estado de exceção que aspira à
permanência? Qual é a condição presente da autoridade e do estatuto político que a
encarna? De que forma se pode entender o poder e o seu exercício na actual fase de
desenvolvimento histórico-social em que as decisões já não são determinadas por
critérios de satisfação meramente consumista mas por interesses ou finalidades cuja
invisibilidade agrava ainda mais a sua propensão para o desregulamento? Pode a
simples ganância e interesse especulativo material e o seu imperativo protector
explicar essa propensão? Porventura, nunca como agora esses mecanismos decisórios
ocultaram uma encruzilhada em que o apelo à realização mística da autoridade
substitui as decisões baseadas na sabedoria e na orientação esclarecida e prudencial do
soberano. E nesse caso, a crença e a nova valorização mística do poder, ocupa o lugar
da instituição da autonomia do cidadão e da sua autêntica idealização ético-política. A
sua valorização ética cede lugar à realização de finalidades e desígnios,
verdadeiramente, ilegítimos e inaceitáveis.
Provavelmente, o fracasso da aplicação do poder e a perversão do seu
exercício através de dispositivos e efeitos a que não se pode referir nenhum ideal de
justiça, reside no facto de se ter desvirtuado a configuração, o confronto e a relação
rigorosa entre o público e o privado. A sua incompatibilização, subversão e
impossibilidade de harmonização é hoje mais notória do que nunca. Nesta relação
problemática, abre-se, provavelmente, um espaço de confronto em que um exclui o
outro ou em que ambos coexistem num relacionamento paradoxal de inclusão
exclusiva, tendo em conta que o que é público permite a inclusão daquele que, na
verdade, se encontra, cada vez mais, despojado do seu estatuto ético-político enquanto
cidadão autónomo, não podendo, por isso, assumir o ideal de universalidade na sua
existência quotidiana. Situada num espaço povoado por efeitos paradoxais e iníquos, a
relação de soberania encontra-se, igualmente, deslocada, ou seja, afastada de uma
determinação autenticamente política (e, nesse caso, desvirtuada e apartada da sua
necessária fundamentação ética) para se dispor e assumir, ainda que de modo não
visível, em entidades ou agentes diversos do poder soberano legitimado. À quebra
dessa legitimação associa-se a impossibilidade clara em realizar os ideais ou
princípios de justiça e da equidade, como princípios essencialmente ético-jurídicos
que foram legados à contemporaneidade.
O carácter espectral, disseminado, plástico, móvel, abrangente, cruel e
multiplicativo da lógica do capital financeiro assume, neste contexto, um domínio que
era suposto ser assumido pelo poder soberano representativo e formalmente legítimo.
O desequilíbrio das relações entre os agentes do poder e aqueles que se encontram a
ele submetidos tem origem no modo de estruturação desigual das novas modalidades
do exercício do poder. A visão neutralizadora dos efeitos desse poder, corresponde a
uma ficção ideológica, ainda que esta reivindique o seu contrário, ou seja, o seu
afastamento perante qualquer marcador ideológico; pretende-se, deste modo, mascarar
a assunção da lógica fugaz daquilo que tem sido designado pela ‘dança especulativa
do capital’. A categoria de pós-político, que recusa a qualificação pejorativa da
realidade política institucional e, também, a fundamentação teórica própria das
orientações ideológicas conhecidas é, na verdade, um embuste que serve para
contrariar a assunção da ideologia liberal que se tornou singularmente iníqua. A pós-
política serve, neste caso, o propósito de ocultar essa lógica que contraria
directamente o ideal ético-político da justiça e da equidade. A pós-política é um
engano devidamente identificado e, de certo modo, ‘neutralizado’ nos seus propósitos,
sejam eles declarados ou dissimulados. Porém, existe uma outra dimensão da pós-
política que poderíamos libertar dessa áurea de negatividade: trata-se da auto-
suficiência dos novos movimentos de protesto que, como é fácil de constatar, gozam
de uma espontaneidade e de uma autenticidade inquestionável. A pós-política,
serviria, assim, para qualificar uma realidade política que emergiu da contestação
irrefreável daqueles que se viram esmagados pela lógica do capital e dos seus
mecanismos ou dispositivos dissimulatórios, entre os quais, aqueles que são utilizados
pela designada ‘terceira via’. Esta seria, assim, a modalidade estritamente negativa e
dissimulada que exprime a ‘dança especulativa do capital’ e a sua reticular
abrangência.
A questão, no entanto, não se confina à indicação sumária dessa possível
positividade da pós-política que emergiu para além da terceira via; a ausência de uma
estruturação verdadeiramente política que a possa dotar de consistência doutrinária e
programática é um dos pontos mais débeis da sua existência como movimento que
alguns, de forma mais ou menos paternalista, pretendem desvirtuar. A esta orientação
pós-política incumbe a tarefa paradoxal de se reorganizar politicamente. Se isso não
suceder, poderá incorrer numa desestruturação que levará à sua dissolução ou à sua
absorção na implacável lógica da plasticidade do capital. A dificuldade de uma saída
que impeça a falência de uma possível vertente positiva da pós-política constitui,
aliás, o maior desafio do pensamento político contemporâneo. A proposta de um neo-
comunismo libertário que não incorra na armadilha da sua cristalização conservadora
e, estranhamente, próxima do modo como o seu inimigo ideológico se tentou
legitimar, parece ainda insuficiente ou, mesmo, decepcionante. Não se realiza a
necessária transformação da relação de forças sistémica que permitiu reinventar a
opressão e o despojamento material, que nalguns casos, se radicalizou, pela esperança
na sua humanização ou pela expectativa numa nova regulação racional dos seus
agentes. A ‘dança especulativa do capital’ ou é interrompida de forma abrupta e sem
hesitações, ou veremos os seus afeitos devastadores agravarem-se. A despolitização
da economia ou da orientação governativa revelaram-se, dispositivos ardilosos mais
débeis do que alguns previram. E, do mesmo modo, uma indesejável debilidade pode
atingir a face renovadora do ressurgimento da pós-política.
A política pode ser alterada e transformada mas o político deve manter o seu
vigor pós-revolucionário. Não se pode, ingenuamente, esperar que o ‘político por vir’
e a sua expressão na Polis se desvincule inteiramente das categorias e realidades que
devem requalificar a acção política e o seu ressurgimento global. Nessa
fundamentação da ‘Polis por vir’ já não poderá ocorrer a autonomização da lógica do
capital perante a realidade produtiva e económica, nem a negação do exercício da
livre cidadania. Dele depende a viabilização da liberdade perante a encenação
ideológica ou pretensamente pós-ideológica e a recusa da transformação das
sociedades democráticas em simulacros das injunções inerentes à lógica do capital. A
visão ingénua de uma reformulação ou, mesmo, alteração total da realidade política
sem uma intervenção institucionalizada ou politicamente organizada, deve dar lugar à
insistente tentativa de, mais uma vez, começar de novo, reorganizar partidariamente a
sociedade, libertá-la dos novos jugos globais que se disseminaram e que se retiraram,
cobardemente, por detrás de cenários macroeconómicos. A democracia despolitizada
(travestida na governance) e a economia impolítica são perigosas ficções que
escondem propósitos que já não permitem fundamentar o político e a Polis por vir. A
face conservadora da economia impolítica compromete a reinvenção da equidade e da
justiça: já não podemos aceitar uma ideia de regulação e auto-controlo que continua a
coexistir com a desigualdade e a autonomização ou valorização unilateral e excessiva
do valor troca. A iniquidade material não pode, impunemente, suceder à opressão
política do passado sem que se reaja energicamente contra isso, e sendo assim, a
indignação deve ceder o passo à revolta.
As múltiplas classificações possíveis da realidade que sucedeu ou que pareceu
suceder à política – não escondem essa dificuldade em qualificar a situação actual.
Podemos recusar a categorização da realidade social a partir do termo de pós-política
mas, na verdade, a incumbência em pensá-la para além dos padrões habituais,
mantém-se. E de nada adianta elencar as categorias do novo ou da novidade histórica
usando os termos de ultrapolítica, parapolítica, ou outros. A novidade escapa à
determinação e esse é um velho axioma da epistemologia anti-dogmática. Mesmo
aqueles que estão habituados a enfrentar essa novidade, sentem dificuldade em
racionalizar a realidade social sem a desvirtuar. É exemplo disso, o modo como certos
pensadores tentaram aproximar a violência social dos subúrbios franceses de um acto
gratuito e destituído de relação directa com a realidade. E o mesmo se passa com o
fenómeno da ocupação de sítios estratégicos das metrópoles ou das grandes cidades
com o propósito de publicitar e encontrar um ponto de ancoragem para uma
mobilização contra a iniquidade económica e política. Não podemos, portanto, confiar
totalmente nos esquemas totalizadores daqueles que usam a terminologia
qualificadora dessa novidade. A perceção da realidade engana-nos na exata medida
com que procuramos receber o novo absoluto. A tentativa de fugir a qualquer
capricho subjetivista pode revelar-se, na verdade, uma armadilha. E se começarmos a
reduzir a dificuldade em pensar o presente a uma série pontual de atos gratuitos e
destituídos de determinação política ou qualquer outra, podemos rever-nos na posição
daqueles que não a conseguem pensar de todo, por força do seu comprometimento
numa militância ou visão dogmática.
A visão empreendedora e positiva da pós-política não se pode limitar ao
enaltecimento de uma estreita colaboração entre tecnocratas conservadores e
obedientes à lógica implacável do capital e esclarecidos liberais que apregoam um
princípio de maior tolerância; trata-se de uma abertura de certo modo ao
desconhecido. Há um lado enganador e perigoso na recusa do poder instituído mas,
também, uma esperança numa justa distribuição da riqueza proveniente do
investimento produtivo. A negação recorrente dessa esperança, abre caminho aos
populismos de direita e de esquerda. Nesse sentido, a pós-política pode, certamente,
dar lugar a um espaço de reflexão e edificação (pelo menos, a título experimental) de
um mundo novo. E este procurará emergir das ruínas da globalização fracassada, quer
se deseje ou não. Já não se trata de uma pura ficção política mas de uma firme
exigência em alterar a realidade.
O esforço concertado dos povos para transformar a realidade, que pode
adquirir alguma eficácia no futuro, terá que passar pela organização política e não
simplesmente contrariar de modo empírico e mais ou menos recorrente o poder ou os
poderes instituídos. A vitimização por si mesma, que se afirma quase de forma auto-
suficiente, tem os seus dias contados ou, pelo menos, deixou de ter impacto na
formação de uma consciência social.
Nessa mudança inscreve-se a necessidade de tornar possível o que se designa
por Estado Social. Esta separa, muitas vezes, as determinações recorrentes e opostas
do que se consignou como sendo de ‘esquerda’ ou o que identifica a ‘direita’. A
coincidência entre os arcaicos projetos securitários e a definição do papel social e do
dever protetor do Estado, perdeu-se. Trata-se, assim, de assegurar um modelo de
funcionamento e instituição não eufemística de uma verdadeira proteção. É conhecida
a posição liberal que consiste em tentar assegurar um estatuto minimal para o Estado
Providência mas a proteção futura dos indivíduos e grupos pode ser posta em causa. A
precariedade pode invadir estratos inauditos da rede social maximizando tensões e
conflitos como resposta a essa minimização. Porém, o equilíbrio é sempre precário
qualquer que seja o modelo ou a solução preconizada. A insegurança e a desigualdade
podem atingir níveis de difícil sustentação visto que se retrocede a uma situação que,
mesmo no passado, se revelou inaceitável. E a defesa desse retrocesso é sentida como
uma necessidade ou é apenas o resultado do simulacro da sustentabilidade
económica? Essa questão põe em causa os bons auspícios daqueles que parecem
defender a proteção minimal com o argumento de proteger o futuro. O futuro, na
verdade, será dificilmente sustentável a partir dessa pretensão e essa posição não é, de
facto, assumida em toda a sua extensão e consequências. As novas promessas do
liberalismo baseadas na redução dos encargos estatais com a esfera social é indefinida
e mais exposta ao fracasso do que pode parecer a alguns, e só um esforço de invulgar
estratégia imaginativa permite defendê-la como viável. A insegurança social é uma
faceta da precariedade, da absoluta flexibilidade e mobilidade laboral. A esfera de
abrangência da insegurança pode ser total: não está, apenas, em causa a perda da
identidade e dos vínculos laborais mas da vida social e cívica no seu todo. E, nesse
caso, não é apenas o futuro que está em causa mas o presente. Perde-se o valor do
trabalho , da proteção futura e da aptidão para aceitar uma nova matriz, supostamente,
mais adaptada à realidade atual. No entanto, as contradições permanecem: existência
de mecanismos de sustentabilidade do Estado Providência que poderão, pelo menos
em parte, garantir a sobrevivência, mas laxismo em relação aos efeitos perniciosos de
uma política ou orientação económica ultra-liberal. Deixa de haver equilíbrio entre a
posição liberal e a assunção de riscos que escapam ao controlo das estruturas da
sociedade organizada; a proteção individual e social coexiste mal com a necessidade
da sua privatização. Os mecanismos e dispositivos com que se pretende assegurá-la
estão, também, expostos ao risco. O colapso dos sistemas de proteção social e das
soluções privadas que são apresentadas para o tentar superar torna-se uma ameaça
sempre presente. Esperar que um trabalhador e um futuro protegido pelo sistema
(público ou privado) tenha um bom desempenho profissional numa situação de grande
insegurança é uma ingenuidade; e a suspeição em relação a soluções pouco credíveis
pode prejudicar seriamente as relações laborais e outras que devem coexistir na
comunidade e contribuir para a sua coesão. A tendência inequívoca para desautorizar
politicamente qualquer matriz que conserve o actual Estado Providência, parece ser a
marca indelével de uma ideologia de ‘direita’ no momento presente. Mas a defesa
dessa condição de segurança em moldes, de certo modo, antiquados e
economicamente inviáveis, incorre numa nova forma de desautorização ou perda de
credibilidade, desta vez, dirigida à ideologia que nos habituamos, com as devidas
reservas, a designar de ‘esquerda’.
Quer se assuma uma ou outra posição, a querela mantém-se e, com ela, o
problema essencial: a impossibilidade de resolver a situação de sustentabilidade do
Estado Social pode comprometer a eficácia de uma posição, aparentemente
equilibrada e mais moderada. Como conjugar a vertente meramente económica e
material e a vertente mais política e ideológica já que ambas parecem estar
estreitamente conectadas? A estratégia da sua separação ou o obscurecimento de uma
pela outra pode ser alvo de suspeição mas a verdade é que, apesar das opções políticas
e ideológicas envolvidas, a vertente material mantém toda a sua pertinência: o
financiamento ou os modos de sustentação financeira dessa ‘conquista’ dos povos
ocidentais continua a ser um problema por resolver. E a sua solução não deve
negligenciar essa exigência. Distinta desta, seria a visão catastrofista ou derrotista que
a inviabiliza em qualquer previsão. Essa visão encontra-se, desde logo, enferma de
uma opção claramente ideológica: a ideia de que o Estado Social deve ser abandonado
ou mantido apenas à custa de um artifício de linguagem que conota eufemísticamente
a sua morte com uma mais prudente sustentabilidade. A dança especulativa do capital
implica que, com o seu deslocamento, muitas áreas se empobreçam ou sejam
abandonadas. A sua aparente sustentabilidade pode, na verdade, iludir uma situação
de iminente ou próxima rutura. O que significa, então, o investimento na sua
viabilidade ao nível do discurso para além de uma derradeira aposta ideológica? Com
ela pretende-se, provavelmente, quebrar o ímpeto da contrariedade que destrua
consensos que são a base de uma orientação ideológica mais profunda do liberalismo
que, Chantal Mouffe, por exemplo, assinalou na sua abordagem crítica. A armadilha
ideológica que está sempre presente não é iludível através da tarefa aparentemente
bem intencionada da busca do consenso. Uma procura obstinada por um consenso,
que na verdade, não tem razão de ser nem pode possuir a correspondência factual
torna-se, assim, mais prejudicial do que benéfica. A verdadeira face do político
mostra, também, o conflito e a rutura; como tem sido notório, na encenação do
consenso esconde-se uma outra procura concreta: a da hegemonia. Nesta, acabam por
se dissolver as diferenças e justas exigências sociais, nas quais se inscrevem os
esquemas protetores da função social de um Estado que garanta a existência não
reduzida ao quadro minimal de proteção. Só aparentemente é que esse quadro se
mostra eficaz porque, na verdade, o esquema minimal não pode garantir qualquer
proteção. Daí o paradoxo: pretende-se reduzir o Estado Social a uma condição
minimal que se considera ser a garantia da sua sobrevivência futura que,
verdadeiramente, não irá ocorrer. E a própria noção dessa impossibilidade é um dado
verificável. O minimalismo e a neutralidade ideológica são as verdadeiras faces da
destruição do Estado Social. A neutralidade consensual é, significativamente, a marca
da pseudo-neutralidade da pós-política.
Evitar a neutralidade e assumir a tarefa social como uma clara contrapartida da
defesa do consenso liberal, é precisamente a substância de uma posição que,
contemporaneamente, se designa de agonística. Iludir o contraditório, a contrariedade
e o reivindicativo torna-se, na prática, um perigoso e contestável elemento do
consenso liberal que, como vimos, se institui nos bastidores de uma hegemonia. Nas
condições que inviabilizam o consenso encontra-se, de facto, o quadro de interesses
que não pertencem á esfera do comum; a desigualdade e a injustiça agravam e
radicalizam as diferenças e tornam mais longínquo o consenso. Assumi-lo sob a capa
de uma pretensão ideologicamente neutral é um engano; pretender estabelecê-la
universalmente é uma utopia. Qualquer tese agonística que respeite as diferenças e se
afirme como o sucedâneo da luta de classes, não necessita de argumentos ideológicos
ou político-partidários; os próprios factos e tensões sociais revelam a sua pertinência.
No entanto, das diferenças por si só, não emergem soluções para esses conflitos e
tensões. A questão essencial e futuramente prioritária será, então, tentar forjar essas
soluções que realizem, pelo menos a título de pretensão assumidamente ideológica, o
apaziguamento do conflito que foi mascarado pelas estratégias ilusórias da
hegemonia. Essas soluções consistiriam, então, em realizar de forma política e não
“pós-política” os ideais de liberdade e igualdade. Pensar apenas no confronto
agonístico como estratégia anti-ilusória para a desconstrução do pseudoconsenso
liberal revela-se, ainda, claramente insuficiente.
Na atualidade, a ciência económica e a decisão política inserem-se no estado
de exceção económica que tende a tornar-se permanente; esse estado transforma-se
num campo experimental: a assunção da incerteza e da indeterminação coexiste com a
imposição de decisões políticas arbitrárias; negar a natureza experimental das
decisões num âmbito económico tornou-se, também, uma das formas de facilitar a sua
imposição e de atenuar o embaraço que a sua verdadeira face causaria; no sentido de
iludir a contrariedade que passa a ser vista como uma posição radical desfasada da
realidade, tenta-se naturalizar essa decisões, supor que devem aceder ao consenso em
razão da sua inevitabilidade. A condição de exceção que, pela sua lógica política,
tende a perpetuar-se, revitaliza-se à custa de acontecimentos que parecem transversais
a várias épocas e momentos históricos: a guerra (no passado), a ameaça terrorista e a
crise económica (no presente).
O experimentalismo convive perfeitamente com a negação da incerteza dos
resultados das decisões de tecnocratas nomeados num contexto e emergência, ou de
governos que parecem, cada vez mais, agir como um colégio de tecnocratas,
descurando, de forma mais ou menos dissimulada, a quebra da sua legitimidade
democrática. A tentativa de evitar a erosão do poder através da perversa denegação da
duvidosa eficácia das decisões experimentalistas, sobretudo, no domínio económico é,
precisamente, o traço fundamental da tendência cristalizadora do estado de exceção
ou de emergência. Se, no passado, esse experimentalismo se assemelhava a um cego
mecanismo de perpetuação do poder e à imposição autoritária de uma lógica
decisionista centralizada, no presente, trata-se de iludir a ausência de uma orientação
política comum e determinada, reutilizando formatações ideológicas que, no entanto,
já não se adaptam à situação sócio-política actual. Essas orientações correm o risco de
se tornarem nos sucedâneos da norma em Foucault e da lei em Carl Schmitt: puras
medidas tendencialmente administrativas, flexíveis e móveis, desprovidas de
conteúdo, maximamente adaptáveis à vida que pretendem reger, propícias à situação
económica dos povos, pretendendo apresentar-se como um saber virtual que impeça a
estagnação ou a regressão. A denominação virtual para esse decisionismo
administrativo que se sobrepõe à ação democrática, continua a ser governance. E,
como se sabe, a sua imposição como dimensão impolítica do poder governativo é
profundamente equívoca. A sobreposição de diretivas de sentido administrativo às leis
democráticas, constitui o correlato visível da nomeação discricionária de tecnocratas
para assumir cargos políticos. A suposta situação de emergência parece justificar e
manter, simultaneamente, um enquadramento institucional degenerado e um
afastamento, supostamente providencial, da realidade do político.
A exigência de enquadramento institucional por parte dos movimentos de
indignação e revolta alia-se a uma outra: a de encontrar, delegar e fazer intervir os
mais habilitados à participação cívica e política. Mas a quem incube a declaração da
face real do político em desfavor da propaganda e do discurso padronizado dos
representantes dos interesses parciais? Esse desígnio adquire maior importância num
tempo em que a condição democrática da representação institucional parece iludir
aqueles que, na prática, não são ouvidos ou afastados dos interesses assumidos pelo
poder governativo. Como, por vezes se diz e escreve, por regra, essa declaração cabe
aos ‘intelectuais’.
Mas a questão do envolvimento dos intelectuais, como agentes activos que
personificam a voz dos que não possuem voz na sociedade organizada, não passa
apenas pelo reconhecimento da pertinência do seu papel, ou pela sua capacidade e
poder para intervir e alterar a ordem das coisas. A ação dos intelectuais é polémica,
não apenas pela usurpação do lugar daqueles a quem parecem representar (os que não
possuem voz), ou pela capacidade anteriormente assinalada, mas devido a uma outra
razão que, acima de qualquer outra, pode ser, porventura, mais essencial e subtil: o
desconhecimento de algumas intenções ou interesses daqueles que são considerados
excluídos. A sua subtileza associa-se ao carácter ilusório desses interesses. Essa
questão situa-se para além do reconhecimento dos representantes dos excluídos, do
seu papel e poder e do desejo desses mesmos excluídos a falarem em nome próprio. É
uma questão difícil e incómoda. E articula-se com a novidade e, simultaneamente,
periculosidade presente na ideia de dissociar os intelectuais daqueles que não
possuem voz, ou parecem não a possuir. Em todo o caso, um dado permanece como
básico: os intelectuais (o mesmo sucedendo com os partidos, instituições e
organizações, aparentemente, independentes), devem ceder o lugar aos que não
possuem voz, ou seja, aqueles que, desde os primórdios da tradição marxista são
referidos como maximamente oprimidos. A universalidade dessa voz tem sido
devidamente assinalada, quer no pensamento político, quer na tradição revolucionária,
e ressurge nos actuais movimentos de protesto e revolta contra a globalização ou
contra os seus efeitos negativos. Os indivíduos que deles participam, pertencendo a
todos os estratos e condições sociais, fazem-se valer da sua pertença ao Todo ou a
uma totalidade de interesses, ou seja, afirmam-se como aqueles que se situam no
universo dos 99% contra 1%. Essa razão factual ou premissa empírica tem sido uma
constante na reafirmação, por assim dizer, propagandística, desse tipo de movimentos
que, pela sua novidade e grau de consciencialização política, tem criado dificuldades
aos analistas. Trata-se de tentar confrontar o papel dos intelectuais com os seus
representados, e neste caso, sobretudo com aqueles que não possuem voz e que,
mesmo assim, procuram aceder à universalidade. Neste sentido, impõe-se a questão
de saber, então, se os intelectuais os podem representar e aceder a níveis eficazes de
ação política para além da criação intelectual ou cultural, propriamente dita. E como
sabemos, pelo menos desde a abordagem clarificadora de Rancière, a intervenção que
se inscreve no domínio da política é sempre menos problemática do que a que se situa
no domínio do político. A ação que produz efeitos na realidade sociopolítica ou
aquela que se desenvolve na Polis é mais visível e empreendedora do que a que
requer um estatuto e uma configuração politicamente concreta; e, neste caso,
provavelmente, os intelectuais que acedem ou pretendam aceder a esta nível de
intervenção, tornam-se políticos, e o risco de perder o seu estatuto ou aura de
intelectuais é real. Não se trata, apenas, de assumir interesses e litígios que não são
seus e de se apropriar de um combate que possa, aparentemente, dignificar a tarefa
dos intelectuais mas de desvirtuar esse combate: o acesso ao poder (como destino
final da sua possibilidade de intervenção política) por parte dos intelectuais não é um
risco? Uma vez chegados ao poder não vão assumir a representação da célebre e
combatida globalização em desfavor da universalidade? Não vão dececionar aqueles
que neles confiaram e que pertencem à parte maioritária? Essa é uma questão
essencial mas que não pode ser singularizada ou isolada da luta mais abrangente pelo
reconhecimento. A lição do passado mostra-nos diversas formas desse desvirtuamento
da ação política por parte daqueles que, inicialmente, pareceram assumir a
reivindicação de justiça e equidade dos oprimidos ou mesmo, dos que foram sujeitos a
regimes de exploração mais severos. Perceber exatamente o papel dos intelectuais e a
possibilidade legitimadora da sua ação não é uma tarefa isenta de dificuldades. E o
suposto paternalismo dos intelectuais ou a sua falsa representatividade (como
categoria que exprime a falência da ilusão de que eles são os melhores agentes para
assegurar e tornar percetível os interesses daqueles que não possuem voz junto das
outras forças e estruturas da sociedade), não são os únicos problemas. A delegação de
papéis e ações é sempre problemática e revelou-se, no passado, prejudicial. Perante
essas dificuldades e riscos, resta saber se a ascensão de alguns membros pertencentes
à maioria dos que não possuem voz ao estatuto de representantes dessa maioria é,
também, isenta de riscos e problemas fundamentais ou dificilmente contornáveis. A
questão da melhor legitimidade de representação pode estar, à partida, assegurada,
mas resta, ainda, resolver a questão da consistência do seu pensamento, projeto e
ação. E essa resolução pode, em termos mais modestos, consistir, apenas, em perceber
ou tentar descortinar as metas e finalidades dessa ação que, no fundo, consiste, em
tentar aceder ao poder para contrariar uma lógica elitista, minoritária e desvirtuadora
dos interesses e da existência social da maioria.
Sendo assim, as questões problemáticas afetam, não apenas a
representatividade dos intelectuais mas, também, a ação dos representantes diretos
daqueles que se sentem desprezados, oprimidos ou excluídos. E os seus representantes
não podem, somente, aspirar ao mero reconhecimento como pares numa negociação
que, como afirmam alguns, já é uma vitória. Têm que perspetivar um resultado mais
ambicioso que os liberte de falsas modéstias ou imperativos propagandísticos. E,
neste caso, terão necessariamente que conseguir satisfazer os seus objetivos, em
termos mais abrangentes do que as simples reivindicações parciais, como na esfera
laboral ou noutras.
Uma autêntica intervenção política, conduzida por intelectuais ou por
representantes não intelectuais da maioria (ou daqueles que parecem nela inscrever-
se), requer sempre um projeto e uma destinação mais abrangente e não a satisfação de
interesses setoriais. Esse pressuposto ou axioma contraria qualquer visão
programática parcial que só de forma enganadora ou auto-ilusória aspira a um estatuto
político. Certos movimentos cívicos e ecologistas desgarrados dessa visão e projeto
global, pertencem a essa classe de visões particularizadas. Defender uma minoria, um
interesse corporativo ou um ideal humanitário ou eco-humanitário restrito, incorre
sempre nessa ótica limitada e limitadora. A necessidade de mensurar as metas dessa
intervenção particular é o melhor indício da sua visão redutora: não se pode partir
para uma ação verdadeiramente política sem uma margem de incerteza e utopia. E
essa face da intervenção política digna desse nome não é apenas a marca da narrativa
ou da matriz do intelectual mas pode, igualmente, ser expressa por aqueles que
desejam uma intervenção autónoma. Mas pode o sentido dessa autonomia coincidir
com a pretensão à inutilidade dos intelectuais? Apesar da acção dos intelectuais poder
ser relativizada ou até ser alvo de alguma suspeição, a referida pretensão é bastante
duvidosa. Existe, igualmente, um perigo distinto daquele que corresponde à falha na
legitimidade ou representatividade dos intelectuais: é o de deixar os excluídos
entregues à sua sorte. E sem qualquer acesso de paternalismo, devem os intelectuais
evitar esse perigo? Essa parece ser uma aposta, mais ou menos, consensual, que
poderá incluir os defensores do carácter polémico da ação dos intelectuais. A ausência
de fiabilidade e independência dessa ação tem sido confirmada pelos factos, mas a
perda de qualquer representatividade esclarecida é, igualmente, um risco que se pode
repercutir na quebra de eficácia política de qualquer movimento considerado legítimo
no seu confronto com a inequidade. Essa é, aliás, a prevenção a que nos tem
habituado a configuração espontânea dos recentes grupos de protesto. O confronto
com a violência económica, política e policial deve permitir a interpretação e a ação
futura e não apenas a reação imediata de indignação e revolta ao nível dos
sentimentos. O espaço público sofre hoje uma ameaça inédita que tem sido mascarada
pela tentativa em assegurar a sobrevivência do sistema global pré-crise. E mesmo nos
países em que o controlo anti-democrático era e mantém-se mais drástico e violento, o
medo tem sido destronado pela manifestação das energias renovadoras do espaço
público. A violência cega e, aparentemente, ilógica e irracional não foi suficiente para
evitar o confronto entre a esperança e o poder ilegítimo. E o esforço de interpretação
e, eventualmente, de reorientação por parte dos que são designados intelectuais não
deve ser menosprezado. Nenhum esforço dessa ordem ou de qualquer outra é neutro.
A ação política assumida declaradamente pelos intelectuais ou por outros agentes ou
atores do espaço público, implica sempre riscos. Ponderá-los e contorná-los numa
renovação que consiga afastar tacitamente os interesses parciais e setários é a tarefa
que parece impor-se.
A par das dificuldades assinaladas, constata-se, mais uma vez, a
crescente tentativa de neutralização ideológica da ação política e governativa que
constitui a premissa fundamental do consenso ou pseudo-consenso democrático. A
referida tentativa divergiu, recentemente, da “normalidade democrática” para as
conhecidas formas de governação tecnocrática, sem que estejam asseguradas
quaisquer modalidades de legitimação política formal. Sendo assim, assistimos a uma
aceitação tácita (e estranhamente, “consensual”, pelo menos ao nível de diversos
quadros parlamentares), do poder governativo que não pôde apresentar nenhuma outra
garantia para além da referida legitimação. Essa tentativa deve ser assinalada e, sendo
necessário, devidamente clarificada na sua natureza perversa pelos atores do processo
político. A urgência da disponibilização desses atores, nos quais incluímos os
intelectuais, sobrepõe-se ao problema da sua representatividade, tal com foi
anteriormente exposto. E, nesse caso, essa urgência que não pode ser reconduzida a
um debate meramente teórico, poderá justificar a intervenção política ativa desses
representantes dos que não podem ou não conseguem fazer-se representar por outros
meios, muito menos num contexto em que existe uma perda da legitimidade
democrática. Em que sentido e com que resultados pode ser realizada essa
intervenção? Em que contexto político e macro-económico pode ser feita a
recuperação da representatividade democrática? Que papel poderá estar reservado ao
poder financeiro no momento em que essa recuperação ocorrer? São questões que
devem ser respondidas a partir de uma contribuição mais construtiva do poder político
legítimo, tendo em conta a justeza das reivindicações atuais que têm sido
protagonizadas pelos movimentos cívicos ou de reivindicação de um reforço da
cidadania. Da sua positiva resolução dependerá um futuro promissor para a
governação democrática e da possibilidade de pacificação social. O momento presente
não é contextual nem configurável a partir das previsões que se revelaram profícuas
no passado; um dos erros mais comuns da interpretação da situação atual constitui,
seguramente, o apelo aos esquemas redutores do passado e às soluções que
permitiram superar as suas aporias. A antecipação das ocorrências futuras através de
esquemas teóricos, ideológicos ou pretensamente neutrais, que se revelaram
consistentes na interpretação de eventos do passado não pode ser reiterada; o
momento presente é distinto de qualquer desses eventos e será, porventura, irrepetível
nas suas trágicas consequências; por isso mesmo, é a diferença e o novo que, longe da
repetição, se devem instituir na criação da sociedade por vir.
REDUÇÃO AO SIMULACRO :
Pedro Sargento111
111
Licenciado em Filosofia, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Doutorado em
Filosofia, pela Universidade de Roma Tor Vergata. Professor Auxiliar na Escola de Comunicação, Artes,
Arquitectura e Tecnologias da Informação (ECATI), na Universidade Lusófona de Humanidades e
Tecnologias, em Lisboa. Foi investigador no projecto Filosofia e paisagem, do Centro de Filosofia da
Universidade de Lisboa, de que é membro. Tem vários artigos publicados, em revistas nacionais e
internacionais.
1.O mentor e a utopia
Nas cinco Conferências sobre a vocação do sábio com que Fichte se apresenta à
comunidade académica da Universidade de Jena, apenas na quarta nos é apresentada a
«destinação do sábio na sociedade». O texto, de 1794, interpreta de forma concisa e
exacta os pressupostos que o Iluminismo havia construído sobre a natureza e o papel do
intelectual (ou «sábio» ou, ainda, «douto» «Gelehrte»), com referências particulares que
dizem respeito ao pensamento de Kant. Se considerarmos a ordem das conferências,
chegaremos a saber qual o destino (ou «vocação», ou ainda «missão», «Bestimmung»)
do intelectual apenas depois de conhecermos qual a essência comum e universal da
humanidade e de que modo essa instância, que é a razão, existe e se desenvolve em
sociedade.
Afim à ideia de que o intelectual serve como uma espécie de farol que indica o
rumo seguro a seguir, está pois a asserção de que este deve atender exclusivamente aos
fins últimos. Para encontrar os elos que tornam estas noções complementares entre si, e
fundadoras de toda a actividade intelectual, é necessário recuar até à filosofia kantiana.
O «reino dos fins» proposto e teorizado por Kant 113 possui uma função primariamente
legitimadora dos meios, isto é, esse reino moral final não é visto como um topos que
podemos esperar atingir mas sim como uma autêntica u-topia que é postulada pela razão
moral e que orienta a acção, dando-lhe uma coordenada fixa e portanto simultaneamente
um valor e um sentido. Este fim supremo ético-moral é claramente definido por Fichte,
ainda nas Conferências, como inatingível, «enquanto o homem não tiver de deixar de
ser homem e não houver de se tornar Deus»114, sem, porém, deixar de ser
imprescindível.
112
FICHTE (1794), p.28.
113
KANT (1785), pp. 75 e segs.
114
FICHTE (1794), p. 19.
A concepção kant-fichtiana do intelectual, que podemos denominar
essencialista, parte do pressuposto de uma capacidade perfectível da espécie humana,
tema também ele central na antropologia filosófica iluminista. As ideias chave podem
então ser assim resumidas: cada homem, enquanto ser racional, tem em si uma
faculdade ética e moralmente soberana sobre o agir. A razão é a força reguladora da
acção e por isso é ela que determina a lei moral que deve orientar a humanidade.
Elevada à expressão máxima das suas determinações e potencialidades, a razão é o
veículo para alcançar uma sociedade moral. O intelectual (sábio, filósofo...) é aquele
que se situa num estádio muito elevado de autoconhecimento e, portanto, é aquele que
está à frente dos demais em termos de desenvolvimento da própria racionalidade. A ele
é dada a responsabilidade de iluminar o caminho comum, e é nesse sentido que ele é o
mentor, «mestre de e da humanidade»115.
115
SANTOS (1999), p. 67.
116
vd. BOBBIO (1994), p.49.
117
Id., p. 33.
seu sentido neutro (um conjunto de ideias que formam uma concepção política),
infunde-se na dicotomia esquerda/direita, porquanto se não pode aderir a um partido
defensor de uma certa ideia de organização e estruturação política sem, precisamente,
aceitar e defender esse «ideário». No entanto, é também importante notar que a
ideologia não apenas cobre o âmbito pluralista estabelecido pela divisão entre esquerda
e direita, mas também o ultrapassa, na medida em que regimes mono ou apartidários
possuem igualmente uma ideologia. De qualquer modo, a adesão a uma destas facções
pressupõe a adopção de uma ideologia, e tal acontece quer se tenha ou não dela uma
ideia precisa. A necessidade deste vínculo manifesta-se de um modo mais claro se
pensarmos que o conceito de ideologia começa a destacar-se no pensamento filosófico e
político precisamente ao mesmo tempo que se começa a traçar uma linha divisória
evidente entre esquerda e direita. Aqueles princípios de acção política que hoje dizemos
pertencerem «à esquerda» ou «à direita» são estabelecidos no contexto da Revolução
Francesa e dos estados gerais que a antecederam imediatamente, em 1789. E se a
esquerda e a direita foram adquirindo paulatinamente a sua identidade, já o seu
propalado fim, que se presume referir-se à falta de uma verdadeira significância deste
par de opostos no mundo contemporâneo, terá, assim, de estar ligado à mesma sentença
proferida contra a ideologia. O discurso sobre o fim das ideologias assinalaria enfim um
ponto decisivo no que diz respeito à compreensão da actual situação da dicotomia
esquerda/direita.
118
SANTOS (1999), p. 79.
119
MARX (1993), p. 45.
princípio geral, Marx analisa a Revolução, como de resto procede em todo o seu
pensamento, em modo dialéctico. A Revolução pode ser interpretada de modo
«subjectivo», como expressão da vontade burguesa em formar um sistema político de
acordo com os princípios da sociedade civil, mas também pode ser vista, agora
«objectivamente», como carregando consigo a própria aniquilação. A Revolução, ao
pretender transferir o poder para a burguesia, progride e instala-se precisamente pela
distinção e segregação necessária entre o «burguês» e o «não-burguês», o que, afirma
Marx, nega o seu critério definidor que é a universalidade. No entanto, é esta mesma
universalidade perdida e desmentida pela Revolução que instará Marx a conceder-lhe
um lugar determinante enquanto precursora de uma ordem comunista verdadeiramente
universal120.
120
vd. MARX; ENGELS (1976), pp.178-187 e AVINERI (1978), pp. 329 e segs.
pela subjugação do real ao racional. A Dialéctica do Iluminismo e, de resto, uma boa
parte do pensamento da escola de Frankfurt, procura compreender os fenómenos
políticos e sociais sob o ponto de vista das estratégias de poder, dos dispositivos de
controlo e da estratificação e diferenciação do corpo social a partir da actuação do poder
político e económico. Como é óbvio, as potencialidades de um campo de estudo assim
definido são imensas e radiculares, capazes de perspectivar as mais variadas temáticas.
O seu campo de influência envolve toda a analítica do poder, e a evidenciação, entre
outros, do elo dialéctico entre saber e poder. No interior deste elo, a formação e uso da
ideologia e o papel estratégico e efectivo dos intelectuais constituem dois pontos-chave
da teoria crítica. Notando-se uma clara inspiração no marxismo, é no entanto
fundamental notar que a razão pela qual a teoria crítica constitui um terceiro momento
da vida da ideologia é a sua própria tentativa de desvinculação e relação a qualquer
praxis ideológica. A ideologia «neutralizada», por assim dizer, é o resultado de uma
abordagem mais sociológica do que política às dinâmicas entre o poder, as instituições e
a sociedade.
121
LYOTARD (1979), p. 6.
122
Id., p.18.
123
STEINER (1971), pp.65-98.
124
SANTOS (1999), p. 26.
reflexão sobre um tema pós-moderno que podemos regressar à noção iluminista de
ideologia, e à figura do intelectual teorizada por Fichte, para lhe acentuar não tanto a
luminosidade esclarecida, mas sim para compreender de que modo é imposta a
centralidade da teoria, da produção cultural e da utopia.
125
PERNIOLA (2011), p.22.
4 Simulacro: nem ideologia nem real
Para ilustrar esta ideia, Perniola recorre a uma obra de Zbigniew Brzezinski,
Between two ages: America’s role in the technetronic Era, na qual o pensador polaco
observa a força de promoção de um imaginário associado a uma nação, mesmo quando
a realidade mostra uma estruturação social e política bem diferente, e considera a
relação entre imagem e acontecimento: «O acontecimento cristaliza o estado de ânimo;
ou melhor, ele age sobre este último como um catalizador, transforma uma veleidade
numa perspectiva concreta que se impõe»126. A imagem – escreve Perniola – situa-se
pois além do verdadeiro e do falso: não é o resultado de uma investigação científica
nem tão-pouco pode ser o resultado de uma campanha publicitária. Estas referências
apelam ambas a uma relação de adequação entre a imagem e o seu objecto, mesmo se
falsificadora; a imagem, pelo contrário, move-se num contexto dinâmico, no qual deixa
de existir a possibilidade de uma sedimentação, de uma cristalização, de um objecto. Ela
não é ideologia, porque procura a transformação do status quo; não é um projecto,
porque o acontecimento que a consolida ou enfraquece não lhe garante nem lhe retira
qualquer realidade.
126
BRZEZINSKI (1970), cit. in PERNIOLA (2011), p. 16.
127
PERNIOLA (2011), p. 13.
128
Vejam-se também as considerações de Tony Judt sobre as reivindicações dos anos 60, sublinhando
o uso meramente retórico da ideologia marxista, in JUDT (2010), pp. 90-95.
indiferente se esse sonho é o de uma progressão da sociedade em direcção a uma utopia
esclarecida ou uma restauração de uma ordem perdida.
BIBLIOGRAFIA
ADORNO, Theodor; HORCKHEIMER, Max (1998) [1947],. Dialéctica do
Esclarecimento, Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
DIREITA-ESQUERDA
I.
129
Licenciado em Direito e Relações Internacionais, na Pontifícia Universidade Católica de Goiás (Brasil).
Mestre em Direito, na London School of Economics and Political Science, em Inglaterra. Doutorado em
Direito, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Legal officer da Promotoria Internacional,
Divisão de Crimes de Guerra, Departamento Jurídico da Missão de Paz da ONU no Kosovo. Professor da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
educação, tributos, segurança, relação entre Estado e religião, conflitos entre grupos
sociais diversos, migração, etc. Nem sempre tais assuntos encontrarão coerência ou
unanimidade dentro das perspectivas de direita ou de esquerda; e, ademais, há outros
que podem questionar ambas, como talvez o meio ambiente e o surgimento dos partidos
verdes. Há ainda alguns assuntos que podem auxiliar na compreensão do próprio
significado do embate entre direita e esquerda, como o relativo aos direitos humanos –
tema do presente estudo.
A díade direta-esquerda,130 aludida tanto em sofisticadas discussões acadêmicas
quanto em simplificados debates eleitorais, passou a ser questionada no sentimento de
fin de siècle que marcou a derrocada do chamado “socialismo real” soviético e certa
perda de rumo de parte da esquerda. No âmbito teórico, mas com ramificações práticas,
dois contrapostos principais foram apresentados: aqueles que consideram que o embate
entre a direita e a esquerda “permaneceu no centro do debate político mesmo após a
queda do Muro”,131 e os que entendem que essas ideias “não têm mais o sentido que
tinham, e suas perspectivas políticas estão, à sua maneira, exauridas”.132 As obras que
contêm essas visões, Destra e Sinistra, de Norberto Bobbio, e Beyond Left and Right, de
Anthony Giddens, ambas publicadas no ano de 1994, se contrapõem na medida em que
a primeira considera relevante a díade direita-esquerda e a segunda a avalia superada. É
nesse contexto donde ainda não se retirou uma conclusão que esse estudo se insere.
Antes de expor como o discurso dos direitos humanos relaciona-se com a díade
em apreço, alguns pontos acerca dessa merecem esclarecimentos. Nomes de fácil
invocação mas de difícil determinação dos sujeitos, não há dúvida que se pode encontrar
diferentes vertentes, correntes e interpretações do que se entende por “direita” e por
“esquerda”. Sem procurar definir os termos como em um dicionário político, 133 Bobbio
os descreve como programas contrapostos de ideias, interesses e valores em relação aos
130
A forma de apresentação da direita e esquerda como uma díade é proposta por Bobbio: “A
contraposição entre direita e esquerda representa um típico modo de pensar por díades, a respeito da
qual já foram apresentadas as mais diversas explicações – psicológicas, sociológicas, históricas e mesmo
biológicas. (...) Na esfera política, direita-esquerda não é a única, mas pode ser encontrada onde quer
que se queira.” (BOBBIO, Norberto. Direita e Esquerda: Razões e significados de uma distinção política.
2ª ed., tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Ed. Unesp, 2001, p. 50).
131
Idem, p. 28.
132
No original: “(...) the terms left and right no longer have the meaning they once did, and each political
perspective is in its own way exhausted (...)” (GIDDENS, Anthony. Beyond Left and Right. Cambridge:
Polity Press, 1994, p. 78).
133
É interessante notar que não consta como verbete os termos “direita” e “esquerda”, ainda que sejam
utilizados em várias partes do livro Dicionário de Política, organizado por Norberto Bobbio, Nicola
Matteucci e Gianfranco Pasquino (Coordenação da tradução João Ferreira; revisão geral João Ferreira e
Luís Guerreiro Pinto Cascais. 5ª ed., Brasília: Ed. da UnB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000).
rumos que uma sociedade toma. Ou seja, para ele essas palavras se remetem mais a
lugares do espaço político do que a conceitos ontológicos. 134 Na sua interpretação,
seriam concepções relativas, mas sempre antitéticas, que fazem parte de uma díade que
se auto-governa: “onde não há mais esquerda, não há mais direita, e vice-versa.” 135 O
pensador italiano não nega que certa ambiguidade pode caracterizar essas palavras na
linguagem política corrente, mas opina que isso não seria capaz de subverter seus
significados.136 Mesmo fazendo uso de argumentos teóricos na sua proposta de um
critério para distinção entre esses opostos do espaço político, 137 ao narrar as razões e os
significados da díade, Bobbio faz uso de eventos da história mundial, posicionamentos
de partidos políticos e preferências por determinadas políticas públicas que um ou o
outro lado pode ter. Nessa mesma toada, a seguir será retomada a forma pela qual os
discursos que poderiam ser localizados em cada um dos extremos da díade
recepcionaram a proposta dos direitos humanos a partir da Revolução Francesa. Em
seguida, apresenta-se como a completa rejeição inicial é desfeita e passa-se a polarizar a
concepção dos direitos humanos, fragmentando-os de acordo com os interesses de
agendas políticas. Por fim, os direitos humanos aparecem como um possível exemplo
ou de superação ou de renovação da díade direita-esquerda.
II.
A Declaração dos Direitos da Revolução Francesa inaugurou uma tendência de
se considerar os direitos como “naturais, inalienáveis e sagrados”, que alguns autores
parecem interpretar como uma desobrigação com a história. Mesmo que se acate a
controvertida tese de que a concepção moderna de direitos humanos seja uma
continuação da tradição clássica da doutrina do direito natural, a afirmação isolada de
que todas as pessoas têm direitos inerentes em todas as partes do mundo simplesmente
pela sua condição de ser humano pode conduzir à imprecisão factual de desconectar o
contexto específico de seu nascimento. 138 A partir do estudo da genealogia dos direitos
134
BOBBIO, op. cit., 2001, p. 107.
135
Idem, p. 61.
136
Idem, p. 86.
137
Como elemento de distinção das duas referências dessa equação, Bobbio elege o critério da
igualdade: enquanto a direita entende que as desigualdades são naturais e inevitáveis, a esquerda
aponta para as causas sociais dessa desigualdade, devendo ser, portanto, combatidas (BOBBIO, op. cit.,
2001, p. 111-126). Sua proposta não passou incólume das mais variadas críticas, como por exemplo, a
de Perry Anderson, apresentada no apêndice do livro (BOBBIO, op. cit., 2001, p. 159-174).
138
Há autores que defendem que os direitos humanos ganham significado em outros momentos. O
jurista e filósofo conservador Michel Villey precisa no século XVII o momento de formação dos direitos
humanos. Para ele, a matriz desse pensamento deriva inicialmente da teologia cristã, ainda que de
humanos, é difícil desconsiderá-los como uma criação da modernidade. Os marcos
inaugurais usualmente apontados são a Declaração de Independência dos Estados
Unidos (1776) e a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789) – e,
posteriormente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). São marcos por
representarem momentos nos quais os direitos humanos adquirem significado político.
A historiadora estadunidense Lynn Hunt recorda que a Bill of Rights dos EUA só
passou a existir com ratificação das primeiras dez emendas, em 1791, e que na “década
de 1780 os direitos na América tinham assumido uma posição menos importante do que
o interesse em construir uma nova estrutura institucional nacional”, o que fez com que a
Declaração dos Direitos da Revolução Francesa atraísse mais atenção.139
As reações à Declaração de Direitos francesa não tardam, e vêm de antagonistas
políticos. De um lado, os conservadores denunciam o caráter abstrato e desligado da
história. O ensaio de Edmund Burke, Reflections on the Revolution in France
(Reflexões sobre a Revolução na França), de 1790, exemplifica uma vertente crítica à
Revolução e à Declaração de Direitos francesas, e pode ser considerado “o texto
fundador do conservadorismo”.140 Para Burke, tanto as leis quanto o próprio Estado são
identificados com a tradição, que se torna a medida de legitimidade e garantia da ordem
social. A Declaração de Direitos dos revolucionários franceses, além de não
corresponder aos costumes, é ainda calcada em “abstrações metafísicas”, distante da
realidade e incapaz de utilidade. Assim, em uma interpretação do que significa esse
raciocínio para os direitos humanos, para “os burkeanos de direita, o não-
reconhecimento ou a violação dos direitos humanos é logicamente impossível; direitos
são as criações da lei do Estado e o julgamento do direito é interno à história da
instituição.”141 Nessa concepção, o direito se confunde com as instituições que o
estabelecem e não há espaços para questionamento a partir de premissas exógenas.
forma desviada (VILLEY, Michel. O direito e os direitos humanos. Tradução de Maria Ermantina de
Almeida Prado Galvão. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, p. 137-142).
139
HUNT, Lynn. A invenção dos Direitos Humanos: uma história. Tradução de Rosaura Eichnberg. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 126. No mesmo sentido: “apesar da influência até mesmo
imediata que a revolução das treze colônias teve na Europa, bem como a rápida formação do Velho
Continente do mito americano, o fato é que foi a Revolução Francesa que constituiu, por cerca de dois
séculos, o modelo ideal para todos os que combateram pela própria emancipação e pela libertação do
próprio povo (BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 10ª reimpressão, tradução de Carlos Nelson
Coutinho; Apresentação de Celso Lafer. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 85).
140
HUNT, op. cit., 2009, p. 15.
141
DOUZINAS, Costas. O Fim dos Direitos Humanos. Tradução de Luzia Araújo. São Leopoldo: Unisinos,
2009, p. 176. Douzinas opina que também há “versões ‘esquerdistas’ contemporâneas” ( Idem, p. 175)
que podem ser feitas a partir da leitura de Burke da Declaração de Direitos francesa e que são
encontradas em teorias do comunitarismo, do pluralismo jurídico e do multiculturalismo.
Em um passo adiante, guiado pela interpretação de Ronald Dworkin, já seria
possível antever os argumentos do positivismo e do utilitarismo a partir das ideias de
Jeremy Bentham.142 Essa crítica dos direitos humanos, também de matriz reacionária,
segue a percepção de que os “direitos naturais são um mero absurdo: direitos naturais e
imprescritíveis, um absurdo retórico, um absurdo bombástico”.143 Essa perspectiva
intimista, que privilegia o estudo técnico do direito, dificulta a identificação e crítica de
interesses econômicos e políticos que geram, interpretam e aplicam esse direito. E,
mesmo que o direito proporcione compensações localizadas, para contentar seus
beneficiados, ele se mostra refratário à apresentação de um projeto alternativo para a
sociedade como um todo.
À crítica de matriz conservadora junta-se, paradoxalmente, a crítica de Karl
Marx. Esse pensador inaugura uma longa tradição de crítica aos direitos humanos com a
publicação em 1844 do ensaio Zur Judenfrage (Sobre a questão judaica). Ao ponderar
sobre a Declaração de Direitos francesa, Marx dá mostra de sua desconfiança do viés
burguês dela: “os chamados direitos do homem, diferente dos direitos do cidadão, nada
são além dos direitos do membro da sociedade civil [burguesa], i.e., do homem egoísta,
do homem separado do outro homem e da comunidade.” 144 Para Marx, a Revolução
Francesa separou o antes uno espaço social em uma esfera política, restrita ao Estado, e
os indivíduos, ou a sociedade civil burguesa, que cuidariam dos seus interesses
particulares, econômicos em essência. Diferentemente dos “direitos do cidadão”, os
“direitos do homem” enumerados na Declaração pretensamente invocariam uma ideia
universal de um homem abstrato, sendo que, na realidade, a concretude do homem seria
facilmente observada no indivíduo egoísta do capitalismo que se formava. Assim, a
“crítica de Marx aos direitos humanos era total e constante”, 145 o que fez com que os
142
“A teoria dominante [do direito] tem duas partes e insiste na independência de cada uma delas. A
primeira parte é uma teoria sobre o que é o direito: em linguagem menos dramática, trata-se de uma
teoria sobre as condições necessárias e suficientes para a verdade de uma proposição jurídica. Esta é a
teoria do positivismo jurídico, que sustenta que a verdade das proposições jurídicas consiste em fatos a
respeito das regras que foram adotadas por instituições sociais específicas e em nada mais do que isso.
A segunda parte é uma teoria acerca do que o direito deve ser e sobre o modo como as instituições
jurídicas que nos são familiares deveriam comportar-se. Essa é a teoria do utilitarismo (...). as duas
partes da teoria dominante derivam da filosofia de Jeremy Bentham.” (DWORKIN, Ronald. Levando os
direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. 3ª ed., São Paulo: Ed. WMF Martins Fontes, 2010, p. VII-VIII).
143
apud HUNT, op. cit., 2009, p. 125.
144
“the so called rights of man, the droits de l’homme as distinct from the droits du citoyen, are nothing
but the rights of a member of civil society, i.e., the rights of egoistic man, of man separated from other
men and from the community.” (MARX, Karl. On the Jewish Question. In: MARX, Karl e ENGELS,
Friedrich. Collected Works of Karl Marx and Friedrich Engels (1843-44). Volume 3. Nova York:
International Publishers, 1973, p. 162).
145
DOUZINAS, op. cit., 2009, p. 170. Cf. também: BOBBIO, op. cit., 2004, p. 91, 92 e 114.
mais tradicionais dos seguidores dessa corrente do final do século XIX ao começo do
século XX desconfiassem dos fundamentos sobre os quais os direitos humanos se
assentavam.
Contudo, ambas as posições críticas aos direitos declarados a partir das
revoluções oitocentistas se abrandam quando os direitos humanos são escolhidos como
um dos pilares na reconstrução da ordem internacional após a hecatombe da Segunda
Guerra Mundial. Se houve consenso momentâneo entre os aliados vencedores da guerra
na utilização do vocabulário dos direitos humanos na Carta das Nações Unidas (1945) e
na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), ele acompanhou a dissolução
das alianças entre Washington e Moscovo em relação ao seu conteúdo específico. O
debate passa a ser então sobre quais direitos seriam prioritários. A atenção detalhada e
crítica da leitura de Marx aos direitos civis e políticos terá eco nos defensores do
“socialismo real”, que escolhem privilegiar os direitos econômicos e sociais como
argumento contrário àqueles direitos burgueses. A agenda dos direitos humanos se
polariza com a Guerra Fria e atrasa em algumas décadas a especificação dos sistemas de
proteção desses direitos. O entrave das discussões políticas internacionais fragmenta os
documentos que visam a operacionalizar os direitos declarados em 1948, e ao final são
dois os Pactos Internacionais que emergem em 1966: o primeiro versa sobre direitos
civis e políticos, o segundo sobre direitos econômicos, sociais e culturais. O patrocínio
político dos Pactos segue a divisão ideológica dos países na bipolaridade e a aplicação
dos direitos humanos se submete a processos e projetos políticos antagônicos.
A arquitetura proposta nos pactos fomentou a conturbada tese das gerações de
direitos humanos. Para os que concordam com ela, os direitos humanos podem ser
categorizados em: (i) da “primeira geração”, os direitos civis e políticos; (ii) da
“segunda geração”, os direitos econômicos, sociais e culturais; e, (iii) da “terceira
geração”, como o direito ao desenvolvimento, à paz e ao meio ambiente. Há autores que
defendem ainda uma quarta geração, relacionada a questões de informática, eletrônica e
avanços da ciência. Ainda que essa separação atenda mais a propósitos didáticos e possa
ser criticada por aqueles que advogam uma concepção holística dos direitos humanos,
sua proposta é fruto da visão simplificadora que associa os dois lados da díade política
em análise às duas primeiras gerações de direito.
A partir da tese geracional, quais seriam os efeitos da transposição da díade
direita-esquerda para a questão dos direitos humanos? Em relação ao seu conteúdo, o
efeito mais perceptível é o da fragmentação dos direitos humanos. Ao se deparar com a
questão de quais são os direitos humanos, ou quais direitos são mais importantes, uma
determinada corrente política tende a enviesar sua resposta por um caminho que
coincida com seus valores e projetos políticos. A escolha de alguns direitos implicaria o
estabelecimento de certa hierarquia no rol dos direitos humanos. Sem necessariamente
negar os vários tipos, ou gerações, de direitos humanos, as agendas políticas de
determinadas correntes privilegiariam direitos associados a determinadas causas. Os
critérios de classificação dos direitos coincidiriam com as reivindicações políticas de
quem os elenca, se tornando assim menos rígidos quando da sua aplicação. Enquanto
alguns direitos provavelmente teriam maior aceitação, e.g., o direito à vida dificilmente
seria objeto de uma discórdia mais prolongada, outros, como o direito ao
desenvolvimento, seriam objeto de querelas. A fragmentação aconteceria na medida em
que os direitos coincidem ou se chocam com determinadas agendas políticas.
No tocante à efetivação dos direitos humanos, a contraposição direita versus
esquerda pode ter efeitos principalmente no papel do Estado. Caso se entenda que a
tradicional matriz de esquerda defende maior participação do Estado na sociedade e na
economia, enquanto as correntes de direita, principalmente as mais liberais, optam por
um maior afastamento do Estado, ou ainda uma minimização deste, o papel que o
Estado tem na promoção e proteção dos direitos humanos faz parte do debate central.
Com efeito, é por essa relação do Estado vis-à-vis os direitos humanos que se costuma
considerar a chamada primeira geração de direitos como “direitos negativos” e a
segunda e a terceira como “direitos positivos”: enquanto a efetivação dos primeiros se
dá a partir do afastamento e limitação do Estado, os segundos requerem uma maior
participação deste. A questão da participação do Estado na sociedade e na economia
pode ser interpretada como um dos grandes divisores entre direita e esquerda. Sua
consequência específica para os direitos humanos se dá quando da elaboração de
políticas públicas. Por exemplo, para os defensores de uma menor intervenção do
Estado na economia, a quebra de patentes farmacêuticas seria imprópria na medida em
que poderia prejudicar esse ramo industrial e consequentemente a economia como um
todo, além de desestimular pesquisas científicas. Para os que advogam uma atuação
mais ativa do Estado, o desenvolvimento de uma política pública que garantisse o
direito dos pobres à saúde talvez passasse pela necessidade de quebra de patentes
farmacêuticas ou alguma prática similar.
III.
Na prática, no entanto, os dois lados da díade direita-esquerda já esboçavam
superações dos seus posicionamentos da década de 1950 até à de 1980. O Estado do
bem-estar social avançava quando necessário e uma significativa parte dos países em
desenvolvimento já considerava, ainda que cautelosamente, os direitos civis e políticos.
A implosão soviética e o sentimento de vitória estadunidense minam a fragmentação
rígida sobre a divisão dos direitos humanos e o debate entre os direitos políticos e civis
versus os direitos econômicos e sociais perde força frente a outros, como, e.g., entre
universalistas e relativistas culturais. Os lisonjeios extremados das práticas da União
Soviética dão lugar à estratégia da “estrada democrática para o socialismo”, e tanto a
democracia quanto os direitos humanos passam a ser uma das plataformas para os
autores identificados com a esquerda.146
Ao assumir o desafio dos direitos humanos, tanto a esquerda intelectual 147 quanto
os partidos identificados com essa corrente 148 passam a rever as críticas iniciais de
Marx. “É como se os direitos humanos fossem invocados para preencher o vazio
deixado pelo socialismo”,149 explica Boaventura dos Santos.
Nesse cenário, a questão se os direitos humanos são uma causa da esquerda ou
da direita se coloca de forma renovada. O antes rejeitado discurso, hoje dificilmente
encontra opositores ontológicos nas duas searas. Afinal, como bem pontuou Michel
Villey, “os direitos humanos só têm amigos”.150 Tal sentimento de triunfalismo dos
direitos humanos parece ser confirmado pela observação da agenda política de partidos
que denominam de direita ou de esquerda. Ambos os lados da díade confirmam uma
consonância ideológica, o que esfacela o sentido da própria díade, pretensamente
antitética, esvaziando-a de um sentido mais profundo. O discurso eleitoral
provavelmente não deixaria a retórica de um embate entre direita e esquerda minguar,
146
DOUZINAS, op. cit., 2009, p. 178-179.
147
Douzinas lista alguns intelectuais marxistas que lidam com a questão: “Ernst Bloch e muitos pós-
marxistas, como Nicos Poulantzas, Claude Lefort e Etienne Balibar, enfatizavam a centralidade dos
direitos humanos para o socialismo. Além das pirotecnias ideológicas da Guerra Fria e de seu fim, o
pensamento marxista assumiu o desafio dos direitos humanos.” (DOUZINAS, op. cit., 2009, p. 179).
148
“Em nenhum outro lugar o progresso dos direitos humanos foi mais visível do que entre os
comunistas, que tinham resistido tanto tempo a esse apelo. Desde o início da década de 1970, os
partidos comunistas da Europa Ocidental (...) substituíram a ‘ditadura do proletariado’ nas suas
plataformas oficiais pelo avanço da democracia e endossaram explicitamente os direitos humanos”
(HUNT, op. cit., 2009, p. 209).
149
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma Concepção Multicultural dos Direitos Humanos. Contexto
Internacional. Rio de Janeiro, vol. 23, n. 1, janeiro/junho, pp. 07-34, 2001, p. 07.
150
VILLEY, op. cit., 2007, p. 11.
porquanto este seria útil apenas dentro dessa finalidade proposta e, na realidade, a
agenda política seria caracterizada mais por consensos do que dissensos.
Todavia, na medida em que os direitos humanos são usurpados como causa de
todos, passam a ser causa de ninguém e seu conteúdo político se dilui. Sua essência
contra-maioritária é perdida, e seu foco central nos oprimidos e necessitados desvia-se.
Sua aptidão de crítica social dá lugar a um rótulo neutro e instrumentalmente eficaz que
serve aos mais variados recipientes. De forma geral, ao se tornar uma ferramenta
maleável que pode conferir legitimidade a discursos e ações, os direitos humanos
acabam por se tornar um meio de compensação, na melhor das hipóteses, ou
justificativa para guerras, na pior. Especificamente no Direito, acabam restritos à
aplicação positivista, quando muito e quando submetidos aos sabores do sistema
jurídico nacional. Por concentrar as possibilidades de reivindicação social e ao mesmo
tempo exauri-las de reais chances de mudanças estruturais, o discurso dos direitos
humanos acaba por favorecer mais os detentores do poder, aqueles que acastelam a
manutenção do status quo.
Ao apresentar uma interpretação do problema que intitula este estudo, buscou-se
demonstrar como o discurso dos direitos humanos exemplifica ou um possível
esfacelamento do sentido da díade direita-esquerda ou então a sua renovação. No
primeiro cenário, na medida em que o espaço público se caracteriza mais por pontos de
convergência, ou ainda com novos caminhos ou terceiras vias – superando a tradicional
contraposição, em suma – os direitos humanos aparecem como consenso. O perigo
dessa perspectiva é, como se afirmou, o esvaziamento do seu próprio significado
enquanto instrumento de transformação social. Se, por outro lado, se entende que a
moldura dos direitos humanos é legítima e capaz de comportar o conteúdo de
emancipação social tradicionalmente arguido pela esquerda, e, para isso, aqueles
direitos que tocam nas questões de transformações econômicas e sociais deveriam ser
ressaltados, então o discurso dos direitos humanos pode fomentar novamente o embate
entre os dois opostos políticos.
Referências bibliográficas
151
Licenciada em Filosofia, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Mestre em Filosofia
Política, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Tradutora da obra de Paul Valadier :
Détresse du Politique, Force du Religieux, das Edições Piaget, Lisboa.
Será então possível encontrar, de forma universalmente válida, um ponto fixo no
espectro da ideologia política a partir do qual um sistema de ideias ou posições isoladas
possam ser consideradas ou de esquerda ou de direita? Parece unânime referir-se à
esquerda como a facção que defende mais Estado, e à direita como a que defende menos
Estado, mas “mais Estado” ou “menos Estado” são anda relacionais e implicam um
ponto, desta vez visível porque referente à quantidade de Estado de facto existente em
dado sistema, em que x se define à custa da sua posição em relação a y.
O critério para distinguir esquerda e direita não poderá então ser retirado da
observação concreta de posições efectivamente defendidas, para depois dela abstrair
uma definição universal. Para além do âmbito da descrição ou justificação das tomadas
de posição de esquerda e direita, temos então de ser capazes de identificar quais os
fundamentos dessa dicotomia, quais as crenças de fundo que tornam alguém mais ou
menos inclinado a preferir certa perspectiva de resolução do mesmo fenómeno.
2. O papel do Estado
A crença de que se pode arquitectar e criar as leis que permitirão instaurar uma
nova ordem político-social parte do princípio que a lei tem um poder total sobre a
realidade político-social, não existindo distinção entre a realidade político-social e as
leis que a criaram: as leis criam realidades. A posição oposta não põe em causa que a lei
possa ter um impacto na realidade político-social, mas terá reservas sobre as
consequências imprevisíveis dessa nova criação ou sobre a sua estabilidade ou efeitos a
longo prazo, preferindo sempre conservar a ordem em funcionamento desde que a sua
permanência no tempo tenha por si só provado o seu carácter inócuo. Todo o jogo
político se desenrola neste caso consoante o conhecimento que se tem sobre o assunto
no qual é proposta a acção do Estado. Em caso de dúvida, a atitude epistemológica da
direita será abster o juízo e a acção.
Concorde-se ou não com qualquer destes autores, é certo que em termos efectivos o
processo de globalização recoloca alguns desafios, o primeiro dos quais é o da igualdade e
equidade. Questionam-se os fundamentos das políticas sociais: «estará o Estado protector a
transformar-se num Estado activo, gerador de desafios, mais do que um actor responsável
por soluções acabadas?» As mesmas dúvidas sobre a articulação entre igualdade e/ou
identidade, ao nível das políticas culturais e de integração: «não estaremos a passar de um
Estado baseado no tratamento igualitário para um Estado que gera reivindicações
identitárias?». Nas sociedades com índices de desenvolvimento elevado mudaram também
as formas de gestão dos serviços públicos e das empresas públicas (escolas, hospitais,
serviços, caminhos de ferro, correios, telefones, gás e outros). Resta saber como no futuro
será possível articular uma lógica de gestão próxima da vigente no sector privado com as
exigências de igualdade e democracia, sem escamotear a dúvida: «igualdade e/ou
rentabilidade?». E que dizer dos modelos sociais, assentes no dilema entre redistribuição ou
recompensa? No contexto actual as lutas e movimentos sociais têm dificuldade em definir e
articular os seus objectivos de redistribuição e reconhecimento social. O futuro virá mostrar
qual dos factores irá vencer. A um outro nível «como se prevê a articulação entre cultura
local e/ou cultura global, uma vez que a globalização impõe um imaginário global ou
cultura mundial, mas também gera reacções e desejo de afirmação das especificidades
locais?» E, por último, resta saber como articular a distância entre expectativas (desejo de
realização pessoal e necessidades de consumo) e condições reais de vida (desemprego,
exclusão, xenofobia...), sem criar situações limite, sobretudo entre os mais jovens. Trata-se
de uma efectiva sociedade de risco.
153
Um exemplo comum é o da poluição, que não conhece fronteiras.
154
Porque certos perigos têm um período de vida longo, como sucede com os resíduos nucleares ou os
organismos geneticamente modificados.
155
Nos casos em que se torna difícil identificar um culpado, já que o problema resulta dos efeitos combinados
de vários actores.
FONTE: Elaboração própria.
Em termos académicos, uma vasta literatura tem sido produzida sobre a matéria,
estruturada em diferentes perspectivas, que espelham conotações políticas distintas. Em 2000
Held e McGrew dividiam estas abordagens em três correntes, os Hiperglobalizadores, dos
Cépticos e dos Transformacionistas (FIGURA 4). Em seu entender os primeiros (Ohmae,
Wriston, Redwood) defendem uma posição neo-liberal de perspectiva economicista e tendem
a adoptar posições de direita, embora com diferenças entre si. Por seu turno, os Cépticos
consideram que a actual fase não é mais que uma nova etapa em termos de economia-mundo,
à semelhança da vivida na história da Humanidade (como a Pax Britannica de 1870-1913).
Já o terceiro grupo inclui nomes bem conhecidos (Giddens, Castells, Scholle, Rosenau,
Underhill, Hoogvelt), a maioria oriundos da Economia Política. Embora com opiniões nem
sempre coincidentes, têm em comum o facto de considerarem a globalização a driving force
que justifica as alterações recentes ocorridas em termos mundiais nos diferentes sectores da
realidade. Internamente uma linha mais conservadora centraliza o debate em torno da
necessidade de reequacionar o papel do Estado de tipo estatocêntrico e o modo como este foi
forçado a reestruturar a sua acção num contexto pautado pela emergência de novos actores,
entre os quais as Organizações Internacionais. Os mais à esquerda centram o seu enfoque no
conceito de hegemonia (Robinson).
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Isabel Menezes156
156
Licenciada e doutorada em Psicologia pela Universidade do Porto, onde é Professora Associada com
Agregação em Ciências da Educação. Coordena a participação portuguesa no projecto europeu, PIDOP
(Processes Influencing Democractic Ownership and Participation). É investigadora responsável do
projecto EduCiPart (Educação para a Cidadania Participatória em Sociedades em Transição).
Parafraseando Mark Twain, poderíamos afirmar que os rumores sobre a morte da
política (Aron, 1955; Camus, 1951; Jost, 2006; Lipset, 1959 [1994]; Scott-Smith, 2002) têm sido
claramente exagerados, assumindo, como Hannah Arendt, que “a política repousa sobre um
facto: a pluralidade humana” (1950, p. XX). No entanto, esta concepção da política, que
valoriza o pluralismo e a diversidade como condimentos essenciais à qualidade da vida
democrática, tem vindo a ser fortemente ameaçada com apelos ao consenso e à unanimidade
– que estariam para além da “política” – que, como afirma Chantal Mouffe “deviam ser
reconhecidos como fatais para a democracia e, por isso, abandonados” (1996, p. 16). Temos
assistido a esta tendência no nosso País, com frequentes exortações à criação de “consensos
alargados” e a “pactos de regime”, protagonizados por líderes tanto da direita quanto da
esquerda, tanto antes como depois da troika, do mesmo modo que observamos,
recentemente, na Grécia, em Itália e um pouco por toda a Europa, como a democracia está em
suspenso porque “não há outro caminho”. Ora, a política assenta na arte de inventar caminhos
e de tomar partido por um deles – ou, como diria Walzer “a incontornável questão política é:
de que lado estás?” (2002, p.617). E dar resposta a esta questão é o direito essencial e
fundador da cidadania: agir politicamente porque se tem opinião.
Apesar destas diferenças serem assumidas desde há décadas, num trabalho recente,
Catherine de Vries, Armèn Hakhverdian e Bram Lancee (2011) argumentam que,
especialmente na Europa, a distinção entre ideologias se faz, hoje em dia, mais pelas atitudes
face aos imigrantes do que pelas tradicionais distinções de caracter económico, por exemplo,
sobre o centralismo do Estado e o lugar do mercado – o que reforça, mais uma vez, o caracter
dinâmico das ideologias, sugerindo que o seu núcleo programático vai sofrendo alterações ao
longo do tempo (Zaller, 2009).
Mas comecemos pela própria noção de ideologia política. Desde logo, a ideologia pode
ser concebida como “um conjunto de crenças sobre a organização adequada da sociedade e
como pode ser atingida” (Erikson & Tedin, 2003, p. 64), o que supõe que falamos de
concepções partilhadas por grupos, que têm funções simultaneamente interpretativas e
normativas, ou seja, descrevem o mundo como “é” e como “deveria ser” (Jost, Federico &
Napier, 2009). A discussão sobre a distinção esquerda-direita no âmbito da Psicologia Política
tem acentuado dois aspectos essenciais: as atitudes face à mudança social (valorizar vs. resistir
à mudança) e as atitudes face às desigualdades sociais (rejeitar vs. aceitar as desigualdades),
que assentariam em duas motivações básicas relacionadas com a incerteza e a ameaça. O
pressuposto é que a direita seria mais apelativa para pessoas com maior intolerância da
ambiguidade e necessidade de ordem e estrutura, o que justificaria a preferência pela
tradição; a esquerda seria mais apelativa para pessoas com maior tolerância da incerteza e
abertura a novas experiências, o que explicaria a preferência pela mudança social (e.g., Jost,
Federico & Napier, 2009; Jost, Krochik, Gaucher & Hennes, 2009; White-Ajmani & Bursik,
2011). Embora o processo de construção de ideologias seja concebido como resultado da
influência de elites políticas – que introduziriam no espaço público ideias que, ao longo do
tempo, seriam apropriadas por grupos sociais e partidos políticos (Zaller, 2009) – a opção por
uma determinada ideologia resultaria de processos cognitivos e motivacionais, resultantes de
estruturas epistémicas, existenciais e relacionais (e.g., influência da família) (vd., Jost, Federico
& Napier, 2009). As opções ideológicas desempenhariam uma função de grelha de leitura da
realidade a partir da qual os indivíduos avaliam os assuntos e candidatos políticos e estruturam
as suas opiniões face ao sistema político – deste ponto de vista, teriam uma importante função
de simplificação cognitiva da política (Pardos-Prado, 2011).
Esta visão, muito embora interessante, é susceptível de críticas. Desde logo, porque
parece repousar numa concepção relativamente dicotómica e fixa das ideologias que é, em si
mesma, uma simplificação do espectro de ideias políticas entre a esquerda e a direita
(Freeden, 2010), cuja coerência interna é, aliás, discutível (Zaller, 2009). Depois, e mais
fundamentalmente, porque assenta numa visão certamente pouco elaborada das estruturas
psicológicas de construção de sentido dos indivíduos, que não só parece depender de uma
concepção das pessoas como consumidores mais ou menos passivos das ideias políticas
produzidas por outrem, como parece assumir que este processo decorre num vácuo social:
ora, a investigação tem reforçado a relevância de uma perspectiva construtivista e ecológica
do desenvolvimento humano, que salienta o papel activo das pessoas na construção de
sentido a partir das suas experiências-em-contexto (e.g., Bronfenbrenner, 1979, 1989;
Coimbra, 1991; Demetriou, 1998; Kelly, 1986, 2010; Lind, 2000; Piaget, 1941, 1977; Menezes,
1999; Nelson & Prilleltensky, 2005; Rogoff, 1998; Trickett, 1994, 2009). Independentemente de
se reconhecer que o nível de literacia política e o nível educacional podem desempenhar um
importante papel na complexidade das identificações e concepções ideológicas e políticas
(Federico, Hunto & Ergun, 2009; Freire, 2006; Jost, Federico & Napier, 2009), a nossa própria
experiência de investigação neste domínio, com crianças e jovens, tem revelado como detêm
concepções sobre o mundo político relativamente elaboradas, acessíveis através do recurso a
metodologias centradas no discurso auto-gerado e produzido em relação (e.g., grupos focais,
entrevistas), mais do que no confronto com categorias hetero-produzidas (e.g., Dias &
Menezes, 2009; Ribeiro, Almeida, Fernandes-Jesus, Ferreira, Neves & Menezes, no prelo).
respeitar as tradições
igualdade de oportunidades
1.00 1.50
2.00 2.50
3.00 3.50
4.00 4.50
5.00 5.50
Gráfico 1
respeitar as tradições
igualdade de oportunidades
1.00 1.50
2.00 2.50
3.00 3.50
4.00 4.50
5.00 5.50
Gráfico 2
Como se pode observar nos Gráfico 3 e 4, a tendência é similar para os três indicadores
de atitudes positivas face à imigração (a imigração é boa para a economia do país, enriquece a
sua cultura e torna o país um lugar melhor para viver), com os respondentes que se situam na
esquerda ou extrema-esquerda a revelarem atitudes mais favoráveis do que os que se situam
no centro ou na direita que, por sua vez, valorizam mais estas afirmações do que os que se
situam na extrema-direita. Este padrão parece manter-se independentemente da situação de
crise económica, embora, e naturalmente, seja necessário prosseguir a avaliação do impacto
da crise ao longo do tempo, até porque o último ano tem sido determinante na
conscientização, em Portugal e no resto da Europa, das suas implicações.
A imigração ... (2006)
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Gráfico 3
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ExEsquerda Esquerda Centro Direita ExDireita
Gráfico 4
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157
Licenciada em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Mestre em Filosofia pela
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Doutorada em Filosofia pela Universidade de Évora. É
professora de Filosofia no Ensino Secundário. É fundadora e coordenadora de um clube de Direitos
Humanos, e de um núcleo regional da Amnistia Internacional. É formadora na área da «Educação para a
cidadania».
1 - Herdámos da modernidade e, mais precisamente, da Revolução Francesa, a
compreensão da realidade política como existindo dividida em direita e esquerda. Esta
concepção, que resultou do lugar ocupado por cada representante do povo na assembleia
constituinte, encontra-se ainda hoje presente no universo político e na linguagem aí
predominante. À direita, sentavam-se os defensores da ordem estabelecida, da tradição e
das instituições que garantiam a estabilidade. À esquerda, os apoiantes da mudança, os
defensores de posições que procuravam o novo, definindo-se pela sua radicalidade. A
tradição que se instituiu a partir desta disposição espacial traduziu-se em duas culturas
políticas diferentes: uma, conformista e de cepticismo acerca da possibilidade de mudar
o mundo e outra, optimista, dos que confiam na possibilidade de mudanças sociais
através da acção política. Esta forma de colocar o problema revela percepções da
realidade diferentes e assenta em matrizes antropológicas diversas, uma dando
prioridade ao imobilismo e individualismo e a uma certa naturalidade das
desigualdades, outra, valorizando a acção colectiva e a capacidade transformadora dela
decorrente. Esta última sublinha o carácter histórico/cultural dos seres humanos e da sua
acção, isto é, das suas construções simbólicas e materiais.
No trajecto efectuado nos três últimos séculos da nossa história, o mundo mudou
muito e a todos os níveis. Como tal, não pode, de modo algum, continuar a ser visto de
uma forma dicotómica, não pode ser fechado numa moldura a preto e branco. As
tonalidades são cada vez mais complexas e interdependentes. O desenvolvimento
técnico e científico foi acelerado, o que proporcionou bem-estar e crescentes níveis de
consumo, mas também muitas inquietações. Ao nível político, ultrapassados os
totalitarismos da primeira metade do século XX, a democracia parece ser reconhecida
consensualmente como a melhor forma de gerir aquilo que é comum. Os direitos,
primeiro os políticos e os civis e depois os sociais, parecem integrar a consciência
colectiva e servir de orientação às diferentes instituições das sociedades democráticas.
Estaremos, então, a assistir ao fim da história e das ideologias? Estará, como Daniel
Bell sugeriu, em 1960, a tecnocracia a substituir a política? Ou, pelo contrário, como
refere Boaventura Sousa Santos: “A suposta fadiga mortal da história, expressa na
ideia do fim da história, contém a armadilha de se transformar na fadiga mortal dos
homens e mulheres que fazem a história no seu dia dia?”158 Olhando com atenção para a
actual crise do sistema financeiro, parece vislumbrar-se uma resposta…
Tendo ainda como pano de fundo essa origem matricial que foi a Revolução
Francesa, pergunta-se: que é feito dos ideais de “liberdade, igualdade, fraternidade? Os
conceitos de direita e esquerda ainda fazem sentido? Em caso afirmativo, qual?
Tentarei, então, esclarecer a minha posição a partir da seguinte tese: sujeitos a re-
significação, estes conceitos são operativos para a compreensão da realidade social. E,
de igual modo, para o entendimento de nós próprios, enquanto agentes livres que se auto
constituem através da inter-relação com os outros e no reconhecimento da mútua
dependência.
Há, contudo, alguns aspectos que devem ser elucidados previamente de modo a
evitar o que me parecem ser as muitas imprecisões que circulam sobre esta temática. A
primeira consiste em ficar refém de uma abordagem dogmática, a partir de uma
simplificação excessiva da dicotomia direita/esquerda. De facto, é importante termos
presente que nenhuma teoria ou modelo “encaixa” uma realidade complexa. Nunca
assim foi, hoje menos o poderá ser. Também a relação entre os dois elementos da
dualidade, inclui não apenas oposições mas, nalguns casos, aproximações e
complementaridades. Depois, segundo me parece, é preciso ter claro que os conceitos
não têm correspondência total com a realidade empírica das formações políticas
(partidos políticos ou outras) que conhecemos, sendo que a forma mais adequada para
os usar de modo a expressar a diversidade factual, seria o plural, ou seja, direitas e
esquerdas. É igualmente necessário salientar que a prática política nem sempre tem
correspondido às determinações constituintes do conceito e que, por vezes, até é o seu
contrário.
Apresentados estes esclarecimentos prévios, coloco-me numa perspectiva
próxima de Norberto Bobbio que defende a validade da dicotomia e que estabelece a
igualdade como critério demarcador entre esquerda e direita. Partindo da constatação
empírica de que os homens entre si “são tão iguais como desiguais”, Bobbio considera
que a questão está na valorização do que une ou do que separa e, assim, segundo as suas
palavras: “(…) de um lado os que consideram que os homens são mais iguais que
desiguais, do outro, os que consideram que são mais desiguais que iguais.”159
158
Sousa santos, Boaventura, Esquerda no século XXI, As lições do Fórum Social Mundial,
inhttp://www.forumsocialmundial.org.br/noticias_textos.php?cd_news=431, consultado em 8/10/2011
159
BOBBIO, Norberto, Direita e esquerda, Lisboa, Editorial Presença, 1994, p.83
Em meu entender, é válido um património que rejeita um sistema construído
(neste caso, o capitalismo) como se correspondesse a uma “ordem natural das coisas”.
Dito de outro modo, com variantes múltiplas, podemos considerar, em termos
genéricos, duas posições político /existenciais. Uma, que sustenta a possibilidade de
uma prática emancipatória no sentido da igualdade, outra, que afirma a desigualdade
como natural e, portanto, inevitável. Na verdade, considerar que existem alternativas ao
sistema instituído, e que a justiça deverá ser implementada parecem-me propostas de
uma importância vital para fazer face aos problemas actuais. Numa linha de
continuidade com a sua história, a esquerda será a orientação política que propugna a
igualdade em termos políticos, sociais e económicos entre todos os seres humanos.
Contudo, numa linha de inovação e resposta a novos problemas, o conceito de esquerda
deverá incluir, também, a atenção às diferenças e aos que individualmente ou em grupo
são excluídos e lutam por reconhecimento, minorias étnicas, imigrantes, mulheres, etc.
Esta supremacia da noção de igualdade de algum modo continua a tradição
moderna da universalidade de direitos que foi incorporada na declaração de 1948.
Embora constatando que, no século XX, em nome da esquerda se cometeram
atrocidades contra a esquerda, Boaventura Sousa Santos reconhece a existência de
novas lutas, novos actores e novas linguagens para a tarefa, que considera urgente, de
reconstrução das esquerdas e da formulação de um novo contrato social. Na sua
definição, que me parece muito adequada, a esquerda refere-se a um “conjunto de
posições que partilham o ideal de que os humanos têm todos o mesmo valor e são o
valor mais alto.”160
Na actual filosofia política, existem outros contributos teóricos que interpreto
como relevantes e possíveis de colaborar numa via que enverede pela re-significação da
ideia de esquerda. Parece-me ser o caso de Nancy Fraser, filósofa americana que propõe
uma concepção dual de justiça. 161 Esta autora chama a atenção para o facto de
assistirmos hoje a um declínio da chamada política de classe a que corresponde um
grande desenvolvimento da política de estatuto, exemplificado pelo facto de muitos
conflitos sociais terem como força originária a luta pelo reconhecimento. Na sua
perspectiva, existe o risco de substituição, o que originaria um “economicismo truncado
por um igualitarismo igualmente truncado”162. Face a esta situação, Nancy Fraser
160
SOUSA SANTOS, Boaventura, Carta às esquerdas, Visão, 27 de Agosto, 2011
161
FRASER, Nancy, A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação, Revista Crítica de Ciências
Sociais, nº 63, Outubro de 2002, p. 7/20
162
Idem, p. 9
propõe uma re-significação do conceito de justiça, traduzido numa perspectiva
bidimensional, ligando a dimensão do reconhecimento e a da redistribuição.
Outro elemento que integra o património da esquerda, como concretização da
ideia de igualdade, é a reivindicação de direitos como forma de reduzir as diferentes
exclusões. Neste aspecto, parece-me que também aqui para além de persistir uma
continuidade, se devem integrar novos elementos, sendo um deles o conceito de
responsabilidade. Na actual era da globalização, a noção de internacionalismo, sempre
associada à esquerda, deverá ser colocada em termos de co-responsabilidade de todos os
cidadãos (e não apenas do Estado) pelos outros seres, os semelhantes, mas também por
todas as outras espécies. Ou seja, assumir que somos responsáveis pela vida do Planeta
e que, de uma solidariedade de classe, se pode transitar para uma solidariedade de vida.
163
JONAS, Hans, El princípio de responsabilidade, Herder, Madrid,2004, p.40
Afigura-se assim, na minha leitura, a hipótese de uma ligação entre as questões
ecológicas, o modo como são abordadas e as perspectivas de solução e um património
de valores que, historicamente foi integrado no âmbito da esquerda. Se atentarmos
naquele que avalio como o maior problema social e ético do nosso tempo - a fome e a
pobreza extrema - e sua indissociabilidade com a degradação ambiental, torna-se
perceptível que a continuidade da esquerda está numa visão global e integrada dos
problemas. Só esta possibilitará a sobrevivência de vida e de vida humana com
dignidade.
Por último, gostaria de sublinhar que uma outra diferença assinalável entre
direita e esquerda e que se mantém presente é a que se refere aos sujeitos da acção
política. Numa óptica de esquerda e, tendo como base a perspectiva antropológica
segundo a qual os seres humanos são agentes transformadores, a política terá que ser
entendida como exercício pleno da cidadania. Esse exercício é competência de todos os
que “nascem livres e iguais”. Numa outra óptica, a cidadania reduz-se ao exercício do
voto e a política é entendida como devendo estar a cargo de especialistas, de técnicos. O
que tem correspondência directa na defesa de uma certa despolitização da política. É
esta a perspectiva vigente nas democracias ocidentais dominadas pelos tecnocratas
independentemente dos partidos que exercem o poder. Ora, a resposta aos desafios
ecológicos e aos riscos que espreitam a sobrevivência da vida na Terra, requerem, a meu
ver, uma cidadania activa, participante. Exigem uma nova/velha ideia de política: a de
que todos os membros de uma comunidade, local ou global, devem ter um papel
interventivo e transformador.
O POSICIONAMENTO DO FEMINISMO NA
DICOTOMIA POLÍTICA ESQUERDA-DIREITA
Manuela Tavares164
164
Licenciada em Economia pelo Instituto Superior de Economia, em Lisboa. Doutorada em Estudos
sobre as mulheres pela Universidade Aberta, em Lisboa. Investigadora no CEMRI (Centro de Estudos das
Migrações e Relações Internacionais) da Universidade Aberta de Lisboa. Colaboradora em diversos
projectos de investigação e autora de artigos para revistas nacionais e estrangeiras, e de alguns
livros..Foi professora do Ensino Secundário e orientadora de estágios pedagógicos. É formadora de
formadores na área da igualdade de oportunidades e na área do desenvolvimento pessoal. Foi
presidente da UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta).
1. INTRODUÇÃO
Este texto procura mostrar que as raízes históricas dos feminismos se situam na
esquerda, enquanto projecto de modernidade, embora eivado por contradições no
assumir da cidadania das mulheres. Procura ainda abrir debate sobre os contributos do
marxismo para o feminismo e as limitações de um processo onde o dogmatismo fez os
seus estragos. Os feminismos como movimento social são ainda focados, em breves
pinceladas de percurso histórico, procurando-se também situar o debate nos desafios
actuais de resposta ao discurso neoliberal e conservador e a um feminismo de direita
que ganha contornos em alguns países nórdicos. A emergência de uma corrente política
dos feminismos é colocada tendo como base um sujeito feminista multifacetado em
termos de classe social, etnia, idade, orientações sexuais, estilos de vida.
167
A emergência do feminismo negro na década de 1960 demonstrou como um feminismo construído na base de
um conceito abstracto de “direitos universais” excluía direitos de diferentes grupos de mulheres: negras, lésbicas,
operárias, ...
2. A MATRIZ HISTÓRICA DOS FEMINISMOS
O chamado tempo dos direitos não é ainda o tempo das mulheres para os
principais mentores da revolução francesa. A Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão (1789) exclui as mulheres como sujeitos de direitos políticos. As mulheres
existem em função da sua função reprodutora. Assim argumenta Rousseau ao defender
que as mulheres se ocupem do “espaço privado” e os homens do “espaço público”.
Contra estas posições se insurgem: Olympe de Gouges (1748-1793) que escreve a
Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã (1791) onde declara que “a mulher
nasce livre e igual ao homem”; Mary Wollstonecraft (1759-1797) que escreve
“Vindication of the Rights of Women” (1792), contestando os fundamentos da natureza
feminina e o fundamento divino da subordinação das mulheres; Condorcet (1743-1794),
um dos poucos revolucionários que enfrenta as ideias de Rousseau e que no seu escrito,
“Admissão das mulheres ao direito de cidadania”, afirma: “como é possível não se
entender que se está a violar o principio da igualdade de direitos quando se excluem as
mulheres do direito de cidadania”. 170
168
AMÂNCIO, Lígia, CARMO, Isabel do (2004), Vozes insubmissas, Lisboa, D. Quixote, p. 27.
169
(Amélia Valcárcel, citada por Conceição Nogueira, Um olhar sobre os feminismos (2003), Porto, UMAR.
170
A consciência individual das discriminações sobre as mulheres já tinha tido vozes anteriores: 1405 (Christine de
Pizan – “La cité des dames”); 1673 (Poulain de la Barre – “Sobre a Igualdade dos sexos”). Em Portugal, há que
destacar o pensamento de uma mulher ligada à nobreza, Paula da Graça, que publica, em 1715, o livro “Bondade
das mulheres vindicada e malícia dos homens manifesta” onde aconselha uma jovem a não casar, colocando em
causa o papel tradicional da mulher. (Fina d’Armada, trabalho no âmbito do Mestrado em Estudos sobre as
Mulheres “O livro feminista de Paula da Graça – século XVIII, 2000)
Novos contributos para o feminismo em termos de pensamento e acção surgem,
algum tempo depois, por parte dos socialistas utópicos como Saint-Simon (1760-1825),
Charles Fourier (1772-1837), ao proclamarem que o grau de emancipação da mulher na
sociedade é o barómetro pelo qual se mede a emancipação geral, Jeanne-Désirée (1810-
1890) fundadora do jornal La femme libre, Claire Demar (1800-1833) e Pauline Roland
(1805-1852), entre outros(as). Também J. Stuart Mill (1806-1873) ao escrever, em
1866, “A sujeição da mulher”, recusa qualquer fundamento da “natureza feminina”
argumentando que a diferença entre sexos é uma fabricação social. Flora Tristan (1803-
1844), revolucionária e feminista, afirma que “numa sociedade onde a mulher não é
livre, a liberdade política é uma pura ilusão”; Jeanne Deroin (1805-1888) que funda o
Clube de Emancipação da Mulher e participa na “Comuna de Paris” tal como Louise
Michel (1830-1905).
171
PENICHE, Andreia, “Marxismo e feminismo: a construção das organizações feministas” (texto policopiado)
172
WEEDON, Chris (1989) Feminist Practise and Poststructuralist Theory,Londres, Basil, Blackwell, p. 27.
A dogmatização do marxismo trouxe estragos que levaram a um afastamento
dos feminismos. Importa entender que limitações surgiram neste campo.
1. Uma visão limitada dos feminismos. O feminismo não foi entendido nas
suas várias correntes e foi mesmo banido do vocabulário político marxista.
2. O não reconhecimento das contradições de género.
A contradição capital/trabalho acabou por ser erigida como uma
contradição que absorvia todas as outras: de género, etnia, orientação sexual, o
que provocou para além da perda de factores democráticos, a erosão da base
social das primeiras experiências de socialismo.
174
ENGELS, Friedrich, A origem da propriedade, da família e do estado, Lisboa, Presença, 1980. p. 76)
conceito de opressão das mulheres, não só enquanto classe, mas enquanto mulheres
subordinadas ao poder masculino.
175
HARTMANN, Heidi, “Un matrimonio mal avenido: hacia una unión más progressiva entre marxismo y
feminismo”, in Zona Abierta, nº 24,1980, pp.85-113.
176
MAGALHÃES, Maria José, ”Uma reflexão sobre feminismo e pós-modernismo, numa perspectiva de
emancipação”, in Comuna nº 4, Março de 2004.
O contraponto ao pensamento e discurso neoliberal coloca-se na afirmação da
identidade política dos feminismos. Na criação de uma forte corrente política dos
feminismos que faça frente ao discurso neoliberal. De que forma o marxismo actual se
posiciona perante esta necessidade? De que maneira pode dar o seu contributo para um
reforço sem tutelas do feminismo e de outros movimentos sociais ?
177
Este artigo foi publicado em 2002, na brochura da Câmara Municipal de Lisboa "Elina Guimarães -
movimento feminista", no âmbito do projecto "Mulheres século XX: 101 livros", dinamizado por Maria
Antónia Fiadeiro.
Os movimentos de libertação das mulheres destas duas décadas nascem da
conjugação de duas correntes: um feminismo político já organizado que pesa nas
instituições e um feminismo novo, radical, que conta com a participação de jovens,
militantes ou não de grupos de extrema esquerda e nas grandes mobilizações de
estudantes. Nos EUA, as jovens participantes nos movimentos contra a guerra do
Vietnam e pelos direitos dos negros contestam o feminismo reformista da NOW
(National Organization of Women) fundada por Betty Friedan em1966 (que tinha
publicado a Mística da Mulher no início dos anos 60). Seduzidas pelo marxismo e pelos
grupos da Nova Esquerda estas jovens fundam em 1967 o Movimento de Libertação das
Mulheres. Estes grupos radicais e a NOW constituem pólos de mobilização das
mulheres que em 1970 decretam uma greve nacional pela igualdade com uma marcha
de 50 mil pessoas nas ruas de Nova Iorque. Em França, o caminho é análogo. O
aparecimento de vários grupos da Nova Esquerda abertos aos direitos das mulheres.
Desta nova esquerda faz parte o movimento democrático feminino, nascido em 1962. O
MDF reivindica o feminismo palavra caída em desuso após a guerra e associado à
imagem das sufragistas. Em 1968, o MDF fez bancas na Sorbonne ocupada pelos
estudantes. As militantes de Maio de 68 do FMA (Feminism, Marxist, Action) juntam-
se depois de Antoinette Fouque e outras militantes do MDF que recusavam o termo
feminismo terem saído e formam o MLF (Movimento de Libertação das Mulheres). Na
Inglaterra, o movimento de libertação das mulheres tinha estreitas ligações com os
sindicatos e a esquerda política que entrou em contradição várias vezes com o
feminismo radical de Shulamith Firestone. A sua ligação com a esquerda institucional
permitiu obter o Equal Pay Act de 1970, mas limitou uma actuação mais forte contra o
poder patriarcal.
Como vozes desta segunda vaga dos feminismos destacam-se as de Kate Millet
que escreve, em 1972, Sexual Politics e Shulamith Firestone que edita em 1971 The
dialectic of sex. Estas são as teóricas feministas que mais marcaram a corrente radical
do feminismo de 2ª vaga. Simone de Beauvoir que publica em 1949 O segundo sexo é
uma referência histórica dos feminismos de segunda vaga.
A evolução das lutas das mulheres nas últimas duas décadas poderá revelar um
certo apagamento dos feminismos, contrastando com as décadas de 1960 e 1970 que
foram tempos de um novo impulso dos feminismos como movimento social na Europa e
nos Estados Unidos, em contexto de mobilização política e do despertar de outros
movimentos por mudanças radicais. A pluralidade expressa em diversas correntes e na
multiplicidade dos sujeitos mulheres, a autonomia e a crítica aos paradigmas
tradicionais da ciência foram marcas do feminismo da época. Os anos de 1980 e 1990
tiveram em comum uma menor mobilização das mulheres apenas acalentada pela
realização de conferências internacionais sob a égide das Nações Unidas. Nairobi
(1985), Viena (1993), Cairo (1994) e, sobretudo, Pequim (1995) foram momentos de
reflexão e de tentativa de comprometer governos com plataformas de acção para
eliminar discriminações, inserindo-se oficialmente os direitos das mulheres na área dos
direitos humanos.
No início do novo século 100 mil mulheres mobilizaram-se em 159 países contra
a pobreza e a violência, em torno da Marcha Mundial de Mulheres. Algumas questões
estão colocadas a debate. Estaremos perante um novo movimento internacional e
intergeracional de mulheres? Poderemos falar de uma ligação entre a geração feminista
das décadas de 60 e 70 do século passado e as novas gerações de mulheres
178
MAGALHÃES, Maria José (1998), Movimento Feminista e Educação-décadas de 70 e 80, Celta, 1998.
TAVARES, Manuela (2000), Movimentos de Mulheres em Portugal, décadas de 70 e 80, Lisboa, Livros
Horizonte.
alterglobalização ? Que respostas ao neoliberalismo podem ser geradas por estes
movimentos ?
179
Ver publicação de 2002 de MATLÁRY, Janne Haaland deputada do partido democrata cristão
norueguês que defende um feminismo de direita que ela designa como "novo feminismo".
180
As críticas pós-modernas centram-se nas seguintes questões: a desconstrução do “sujeito mulher”; a
recusa da grande narrativa da opressão da mulher, da ordem patriarcal e do fim da opressão; o
reconhecimento da diversidade das necessidades e experiências das mulheres; o abandono da noção de
situações únicas e universais; a crítica ao essencialismo; o abandono do conceito de patriarcado como
totalizador, ahistórico e essencialista.
Um dos perigos das teorias pós-modernas será, decerto, “o da erosão de
uma análise global da sociedade, que nos permita compreender as raízes estruturais e
históricas da subordinação e opressão que enfrentamos em cada momento e em cada
território”.181
Decerto que será importante não rejeitar novos discursos que desestabilizam o
“sujeito” unitário mulher, mas sim perceber como essas possibilidades teóricas podem
ser desafiadoras e libertadoras, mas ao mesmo tempo não esquecer que em
determinados momentos é necessário voltar ao “sujeito” para reivindicar direitos e
igualdade. 183
BIBLIOGRAFIA
Bibliografia
ÁLVAREZ, Ana de Miguel (2002), O feminismo ontem e hoje, Lisboa, Ela por
Ela.
AHMED, Sara, Jane Kilby, Celia Lury, Maureen McNeil e Beverly Skeggs
(2000), Transformations. Thinking ThroughtFeminism, Londres, Routledge, p.1
CHAPERON, Sylvie (2000 a), Les années Beauvoir (1945-1970), Paris, Fayard.
EISENSTEIN, Zillah (1979), Patriarchy and the case for Socialist Feminism,
Monthy Review, EUA.
HARTMANN, Heidi (1980), “Un matrimonio mal avenido: hacia una unión más
progressiva entre marxismo y feminismo”, in Zona Abierta, nº 24, pp.85-113.
MATLÁRY, Janne Haaland (2002), Para um novo feminismo, Cascais,
Principia.
Dimitris Michalopoulos184
184
É um autor grego, nascido em Atenas. Estudou na Escola Italiana de Atenas, na Faculdade de Letras
da Universidade de Atenas, foi bolseiro do governo francês na École de Hautes Études en Sciences
Sociales em Paris, onde se doutorou em História económica e social. Foi membro do gabinete particular
de Constantinos Caramanlis, então presidente da República helénica. Foi mestre – assistente na Faculdade
de Direito da Universidade de Salónica, e professor adjunto da mesma Faculdade. Foi conservador do
Museu da cidade de Atenas. Foi Director do Instituto de investigação sobre Eleutherios Vénisélos e a sua
época. É membro do Conselho de Administração deste Instituto. Tem diversos livros publicados.
185
Arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros grego (doravante : AYE), 1935, A/13/2/1, Spyridon
Polychroniadis, ministro grego em Moscovo, no Ministério dos Negócios Estrangeiros, nº. 226,
Moscovo, 14 de Fevereiro de 1935.
sempre».187 É evidente que as emendas de que Molotov era o relator foram adoptadas
por unanimidade188 e em 1936 a Constituição soviética foi reformada.189 A 12 de
Dezembro, por outro lado, tiveram lugar as eleições para a designação dos membros do
Conselho Supremo da União Soviética. A «democratização» foi verdadeiramente
«absoluta»; e isto não somente porque todos, sem distinção de nacionalidade, sexo, etc.
eram considerados como eleitores, mas também porque, para ter o direito de estar
190
inscrito na lista eleitoral, não era obrigatório ser-se membro do Partido Comunista.
Além disso, o mandato dos eleitos podia, em qualquer momento, ser revogado pelos
eleitores.191
A revogação do mandato era uma novidade à escala mundial; por essa razão a
medida teve muito bom acolhimento junto dos eleitores soviéticos. A abstenção nas
eleições de 1937 limitou-se a uns magros 4% de eleitores, num total de votantes que se
cifrou nos 90.000.000.192 Em suma, a Constituição soviética de 1936 foi a «mais
193
democrática» do nosso mundo. Além do mais, foi aplicada integralmente – tanto no
espírito quanto na letra. Graças a esta constituição, com efeito, consumou-se a
«democratização absoluta da União Soviética. Por intermédio desta democratização, foi
contudo o absolutismo tout court que se estabeleceu na Rússia. As eleições, que
deveriam supostamente concluir o processo de democratização iniciado em 1917,
depressa foram transformadas em referendos sobre medidas tomadas sob a iniciativa de
Estaline. E só a priori é que o resultado era, obviamente, conhecido.194 A equação:
democratização absoluta = absolutismo emergiu então claramente, e a simples questão
que se coloca é : porquê?
Eis uma pergunta a que não é difícil responder. No quadro do socialismo, bem
como no da democracia dita «burguesa» (liberal), os homens são considerados como
186
AYE, 1935, A/13/2/1, Spyridon Polychroniadis, no Ministério dos Negócios Estrangeiros, nº. 206,
Moscovo, 12 de Fevereiro de 1935.
187
AYE, 1935, A/13/2/1, Spyridon Polychroniadis, no Ministério dos Negócios Estrangeiros, nº. 226,
Moscovo, 14 de Fevereiro de 1935.
188
Idem.
189
Arthur Koestler, The Yogi and the Commissar. Traduzido em grego por Alexandros Kotzias, Atenas, Ed.
Galaxias, 1969, p. 130.
190
AYE, 1938, B/2/P, I.Th.Kindynis, encarregado de negócios da delegação grega em Moscovo, no
Ministério dos Negócios Estrangeiros, nº. 1347, Moscovo, 16 de Dezembro de 1938.
191
Idem.
192
Idem.
193
A.Koestler, The Yogi and the Comissar (tradução grega), p. 130.
194
AYE, 1938, B/2/P, I.Th. Kindynis, no Ministério dos Negóciosn Estrangeiros, nº. 1347, Moscovo, 16 de
Dezembro de 1938.
iguais,195 enquanto os seus dirigentes têm plena consciência de que «as ovelhas do seu
rebanho» não o são.196 Assim, não existe quase nunca uma maioria que repouse
exclusivamente sob a razão e, consequentemente, sob o «conhecimento imediato» do
bem-estar comum. As maiorias, com efeito, não são mais que o resultado do ascendente
sobre a sociedade de um grupo de pessoas que dispõem dos meios para que a sua
própria vontade seja anunciada como a «vontade de todos» ou, pelo menos, da
«pluralidade».197A consequência de um tal estado de coisas já foi muito bem descrita
pelo próprio Lenine: o domínio do capital torna-se «cínico e implacável» e «responde-se
imediatamente com a guerra civil» a toda e qualquer tentativa desencadeada pelas
massas para melhorar a sua sorte.198 Com efeito, «não é a consciência dos homens que
determina o seu ser, é inversamente o seu ser social que determina a sua consciência».
199
Eis, portanto porque é que a democracia «burguesa» /liberal, ainda que «erguida sobre
as ruínas da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classes». Apesar do
conceito de igualdade no qual se sustenta «ela não fez mais do que substituir novas
classes, novas condições de opressão, novas formas de luta às de outrora».200
195
Konstantinos Tsatsos, Politik (“A Política”), Atenas, Ed. Hoi Ekdoseis ton Philon, 2000, p.170.
196
Ibidem. Ver também Lenine, “O Estado e a Revolução”, Obras Escolhidas, vol. 2, Moscovo, Ed.
Progrès, 1975, pp. 353-354.
197
K. Tsatsos, Politikï, o.c., p. 166.
198
Lenine, De l’État, Pequim, edições em linguas estrangeiras, 1969, p. 23.
199
Lenine, Karl Marx, Pequim, edições em lingus estrangeiras, 1970, p. 16.
200
Ibidem, p. 19.
201
Ibidem, p. 39.
202
Lenine, Sur les questions nationale et coloniale, Pequim, edições em línguas estrangeiras, 1967, p. 2.
203
Lenine, De l’État, o.c., p. 24.
204
Cf. Diógenes Laércio, Vidas, doutrinas e sentenças dos filósofos ilustres, III, 39-40.
205
N.Kotzias, Historia tïs Philosophias, vol. I, Atenas, Ed. Mellön, 1876, pp. 173-174.
206
Heraclito, fragmento 29 (Tannery). Cf. N. Kotzias, Historia tïs Philosophias, p. 188.
leve),207 e por paradoxal que pareça, por Vidkun Quisling no decorrer do século XX,208 o
que prova a continuidade do pensamento de direita ao longo dos séculos. Portanto, se as
massas tomam o poder em nome da igualdade é o totalitarismo que irrompe, ou a
catástrofe. A democracia ateniense destrói a Grécia antiga 209 e se Napoleão e Estaline
«bonapartista» não tivessem chegado e permanecido no poder na França e na Rússia
revolucionárias, estes dois países teriam sido destruídos pouco tempo após os
acontecimentos de 1789 em Paris, no caso da França, e de 1917 em São Petersburgo, no
caso da Rússia.
Além disso, não se pode pensar que esta dicotomia se limita à política. Pelo
contrário, ela atravessa quase o conjunto do pensamento humano: o idealismo platónico
contra o materialismo aristotélico, os realistas medievais contra os nominalistas seus
contemporâneos. O que é, efectivamente, a realidade? A humanidade ou os homens?210
Ou, dito de outra maneira: as palavras de que fazemos uso respondem a realidades fixas,
211
que se encontram algures no além, ou são elas próprias as únicas realidades? Em
suma: a solução dos mistérios e o fim dos males da vida humana atinge-se objectiva ou
subjectivamente? A morte é o fim ou, pelo contrário, o início de uma outra vida, sem
dúvida melhor do que esta?
***
207
Platão, Fédon, 89e-90a.
208
Hans Fredrik Dahl, Quisling. Tradução em iglês por Anne-Marie Stanton-Ife, Cambridge, Ed.
Cambridge University Press, 1999, p. 9.
209
Panagiotïs Kanellopoulos, Apo ton Marathöna stïn Pydna (“Da batalha de Marathon à de Pydna”), vol.
I, Atenas, Ed. Kayros, 1963, p. 29.
210
Étienne Gilson, La philosophie au Moyen-Âge, Paris, Ed. Payot, 1922, p.39.
211
Pierre Lasserre, La jeunesse d’Ernest Renan. Histoire de la crise religieuse au XIX.ème siècle, vol. II,
Paris, Ed. Garnier, 1925, p. 25.
212
Primeira edição em 1945.
213
Boris Levytsky, The Use of Terror. Traduzido em inglês por H.A.Piehler, Londres, Ed. Sidgwick &
Jackson, 1971, p. 18.
santo: ele rejeita todo e qualquer uso da violência e está convencido que só os meios
espirituais são válidos. A chave de saída do «vale de lágrimas» que é a nossa vida só se
encontra no aperfeiçoamento moral dos humanos.
O que é notável em Koestler é o facto que, ainda que tivesse estado prestes a ser
fuzilado pelos nacionalistas espanhóis em 1937 214 ele põe no mesmo saco o comunismo
e o fascismo. No seu livro Arrival and departure, publicado em 1943215, ele estabelece
uma não mais do que ténue «linha de demarcação» entre o nacional-socialismo
hitleriano e o comunismo estalinista216. O que nos anos 20 era considerado como
«bolchevique» era tido por «nacional-socialismo» uma década mais tarde. 217 A escolha
entre os dois campos é, antes de tudo, uma questão psicológica. 218 Dito isto, ele procede
pois às seguintes observações: a)- o campesino é o inimigo por excelência do
socialismo;219 b)- falar de socialismo a propósito da Rússia de Estaline é um absurdo; 220
c)- o sistema soviético, evidentemente totalitário, foi muito mais asfixiante do que o
sistema hitleriano;221 d)- o nacional-socialismo alemão empreendeu realmente a criação
de um homo novus, ou mesmo até de um «super-homem». 222 Koestler, no entanto,
despreza tanto o «super-homem» nacional-socialista quanto o socialismo soviético. Ele
estava convencido de que os homens fazem a guerra não para quebrar as correntes mas
antes para as conservar223 - ou mesmo para as fazer brilhar. Daí o seu pessimismo
profundo que foi uma das razões do seu suicídio em 1983- o que era normal: rejeitando,
por motivos relacionados apenas com a psyché, o homo novus nacional–socialista;
alimentando um desprezo latente, mas profundo, para com os humanos «normais»;
estando certo que os «intelectuais», a saber «aqueles que aspiram ao livre pensamento»
não estão em condições de influenciar a opinião pública, ele caminhou voluntariamente
em direcção à morte – após ter vivido, bem entendido, uma vida muito interessante.
214
Ver o seu livro Spanish Testament. Traduzido em grego por Steph. Niarchos, Atenas, Ed.
T.Drakopoulos (s/d).
215
Traduzido em grego por Takïs Mendrakos , Staurophoria chöris stauro (“Uma cruzada sem cruz”),
Atenas, Ed. Papyros/Viper, 1972.
216
Ibidem, pp. 132-147.
217
Ibidem, p. 163.
218
Ibidem; The Yogi and the Comissar (tradução grega), p.87.
219
Staurophoria chöris stauro, p. 143.
220
The yogi and the Comissar (tradução grega), p. 154 e ss.
221
Ibidem, pp. 161-200.
222
Staurophoria chöris stauro, p. 143.
223
The Yogi and the Commissar (tradução grega), p. 158.
Koestler foi um exemplo típico dos intelectuais de esquerda durante o século
XX. As suas teses? Antipatia sem limites para com Estaline, simpatia por Trotsky,
aversão espontânea, mas crónica, contra o Fascismo/Nacional-Socialismo, rejeição do
conceito marxista do homo economicus, relevo dado aos motivos psíquicos que
determinam o comportamento político dos humanos, desconfiança profunda para com a
Humanidade in toto. Ele esteve em condições de influenciar André Malraux, se bem que
este preferisse, por oposição a Koestler, um cargo ministerial. Ora, em l’Espoir, história
romanceada de episódios notáveis da Guerra civil em Espanha, Malraux chega às
mesmas conclusões que Koestler: «Meu velho…, se soubesses como estou farto dos
homens! / Não é o melhor momento para isto…/Não te esqueças que estava em Burgos
antes de ontem. E era a mesma coisa… Os pobres idiotas fraternizavam com as tropas
…/Vai tu vendo, pá : aqui são as tropas que fraternizam com os pobres idiotas./E nos
grandes hotéis as condessas de casaco de peles bebiam com os camponeses
monárquicos, boné na cabeça e cobertor sobre os ombros …/E eles cuspiam quando
ouviam palavras como República ou sindicatos, pobres idiotas… ».224 Posto de lado o
fim trágico do POUM, ou mesmo do trotskismo espanhol, Malraux tem razão em
recuperar um pouco de optimismo e mesmo de afirmar a « possibilidade infinita do
destino dos homens ».225 É no entanto contra Koestler, que ele esquece de bom grado
que, não raro, quando nos «batemos de alegria na carlinga », é «o caça inimigo que
surge rente às nuvens ».226
224
André Malraux, L’espoir, Paris, Ed. Gallimard, 1972, p. 53.
225
Idem, p. 504.
226
Idem, p. 151. « Mon vieux…, si tu savais ce que j’en ai marre des hommes! /Ce n’est pas le meilleur
moment pour ça…/N’oublie pas que j’étais à Burgos avant-hier. Et c’était pareil… Les pauvres idiots
fraternisaient avec les troupes…/Dis donc, tortue : ici ce sont les troupes qui fraternisent avec les pauvres
idiots./Et dans les grands hôtels les comtesses en peau buvaient avec les paysans monarchistes, béret sur
la tête et couverture sur l’épaule…/Et ils crachaient quand ils entendaient des mots comme République ou
syndicats, tristes ballots… » (Excertos no original francês da obra de Malraux citados pelo autor).
Eis então as características principais dos intelectuais de esquerda durante o
século XX: decepção provocada pelo homo sovieticus; rejeição do homo novus criado
pelo Nacional–socialismo; condição de nevrose permanente 227 de onde só se podia
escapar através de uma vida confortável (às vezes pela oferta de um cargo de ministro).
***
A nação, com efeito, não é a raça. Pelo contrário, trata-se de um grupo humano
que levou a cabo «acções notáveis» no passado e que quer promover outras no futuro.
Isso compreende-se bem se tivermos em conta a experiência francesa. Os «antepassados
dos Franceses são os Gauleses»; ora o termo «França» é alemão. Foi portanto apenas
227
A.Koestler, The Yogi and the Commissar (tradução grega), pp. 90-93.
228
Tradução francesa da declaração : AYE, 1938, A/7/2.
229
Cf. Kerry Bolton, Revolution from Above, Londres, Ed. Arktos, 2011, p. 9.
230
Platão, Fédon, 102b-103a. Pelo contrário, Heraclito admite-a : fragmento 8 (Tannery).
231
Diógenes Laércio, Vidas, doutrinas e sentenças dos filósofos ilustres, III, 55.
232
Platão, Fédon, 101e-102a.
durante os acontecimentos decorridos entre os anos 1789 e 1792 em Paris, que o
conceito de nação se concretizou.233 Este conceito servia um objectivo prático: a
legitimação do regime revolucionário. Efectivamente, todos aqueles que se erguiam
contra o Terror e o seu impacto eram declarados ipso facto «inimigos da Nação». Em
todo o caso, o conceito sobreviveu ao Terror revolucionário e propagou-se mesmo,
primeiro pela Europa, e depois em todo o mundo. Contudo, mesmo em França a
conciliação das camadas «gaulesa» e «alemã» da população só se concretizou durante a
Primeira Guerra Mundial – mercê sobretudo às hecatombes que dizimaram a juventude
francesa da época. Nunca devemos esquecer, sem embargo, que o veiculo para a
propagação do nacionalismo, «presente» da Revolução francesa à Humanidade foi, no
século XIX, a esquerda e não a direita. Os casos mais significativos foram os
acontecimentos de 1848 nos territórios romenos (Valáquia, Moldávia),234 e também nos
Estados alemães.235 Ninguém duvida que Marx, bem como os seus epígonos, fossem
favoráveis à assim designada «unidade nacional» 236 e também ninguém duvida que o
nacionalismo foi legado pela esquerda à direita na época de Bismarck – e sobretudo
graças a ele.
***
233
Cf. Léon Trotsky, Histoire de la révolution russe. Traduzido em grego por L. Michaïl, Atenas, Ed. Neoi
Stochoi, 1971, p. 12.
234
Ver sobretudo a obra de Dan Berindei, A revolução romena de 1848-1849, Bucareste, Ed.
Enciclopedica, 1998.
235
Dimitris Michalopoulos, Fallmerayer et les Grecs, Istanbul, Ed. Ísis, 2011, p.18.
236
A título de exemplo : Karl Marx, “Adresse du Conseil Général de l’Association Internationale des
travailleurs sur la guerre civile en France en 1871”, na obra K. Marx, F. Engels, V.I.Lenine, Sur la
Commune de Paris, Moscovo, Ed. du Progrés, 1971, p. 61 : “A unidade da nação não devia ser quebrada,
mas ao contrário, organizada pela constituição comunal”.
237
K.R.Bolton, Thinkers of the Right challenging Materialism, Luton, Ed. Luton Publications, 2003, p.81.
«Nascemos para morrer!».238 A noção de morte é a demarcação da direita e da
esquerda. Para esta a morte é o fim absoluto: Deus é vencido por Satã», 239 por isso a
alma não existe.240 A direita não sabe exactamente o que acontece após a morte; ela
admite contudo que há algo, com toda a probabilidade de mais importante que a nossa
vida terrestre. Este conceito é tangível mesmo para os grandes filósofos atenienses que
foram os adversários ideológicos do regime democrático da sua pátria. 241 A
religiosidade é a condição sine qua non de todo e qualquer regime verdadeiramente de
direita242 e o fim supremo de tais regimes é a fundação de um Estado de cultura
(Kulturstaat): «A poesia é uma necessidade do Estado» declarava Mussolini. 243O Estado
dito «de potência» (Machstaat) ou mesmo «de direito» (Rechstaat) são finalmente de
rejeitar,244 uma vez que são apenas os meios para chegar ao Estado de cultura. Cristo é
visto amiúde como o grande precursor da marcha em direcção a um tal Estado, 245
enquanto grandes antepassados falecidos são convidados do sítio em que se encontram
actualmente para salvar o nosso mundo «da degeneração, da democracia e do
feminismo».246 Em suma, o além deste lado, «visível somente pelos ascetas, os santos,
os heróis assim como pelo coração ingénuo e primitivo do povo»,247 e o sistema
monetário do outro lado, que assenta na alta finança ou os grandes Bancos, sem os quais
«a construção do socialismo é impensável».248 Apesar da sua derrota na Segunda Guerra
mundial, a direita poderá retomar um dia a sua luta. Para isso, no entanto, é preciso que
ela mude de cavalo de batalha, dito de outro modo, ser-lhe-á necessário rejeitar o
nacionalismo que herda da esquerda. Quantas pessoas de direita, contudo, terão tido a
coragem de fazer, quanto mais não seja moralmente, o que Ezra Pound concretizou
entre 1940 e 1945 ? 249 Eis uma questão cuja resposta está escondida no futuro.
238
Guy Sajer, Le soldat oublié, Paris, Ed. Marabout, 1985, p. 195.
239
Paul Lafargue, La méthode historique de Karl Marx. Tradução em grego por Dinos Takopoulos, Atenas,
Ed.Klassikï Koultoura, s/d., p. 12.
240
Idem, p. 27.
241
Platão, Fédon, 106e.
242
Benito Mussolini, “Fascismo”, Enciclopedia Italiana di Scienze, Lettere ed Arti, vol. XIV, Roma, Ed.
G.Treccani, 1932, p. 847.
243
K.R.Bolton, Thinkers of the Right, o.c., p.87.
244
K.Tsatsos, Politikï, o.c., p. 72
245
K.R.Bolton, Thinkers of the Right, o.c., p. 110.
246
Idem, p. 61.
247
Benito Mussolini, “Fascismo”, o.c., p. 851.
248
Lenine, “Les bolcheviques garderont-ils le pouvoir ?”, Oeuvres choisies, vol. 2, Moscovo, Éd. Progrès,
1975, pp. 411-412.
249
K.R.Bolton, Thinkers of the Right, o.c., p. 90.
Tradução do francês por Fernando Couto e Santos
Catolicismo, Esquerda e Direita
250
É historiador e doutor em Ciências da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil. É
professor do Departamento de Ciências da Religião na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
Brasil. É presidente da Associação Brasileira de História das Religiões – ABHR. Desenvolve trabalhos de
Extensão Universitária no Núcleo de Direitos Humanos e Inclusão da Pró-reitoria de Extensão da mesma
Universidade.
amplíssimo alcance e permeio desses dois loci estruturadores da politicidade, que não
deixou intocado o multimilenar fenómeno religioso.
Embora não sendo uma instituição cujo núcleo estruturante seja de natureza
política, a Igreja Católica é uma das instituições históricas que marcou a política
ocidental de maneira profunda e densa. Infelizmente, sua relação com a política parece
ainda refém de larga influência intelectual dos séculos XVIII e XIX europeus que
compreendem a religião como uma espécie de erro antropológico, um câncer da razão.
Essa determinação onto-negativa do fenômeno religioso produz uma interpretação que
encobre o percurso dessa instituição e as contribuições de seus intelectuais para a
cultura universal.
O reacionário acredita em uma utopia com os faróis voltados para trás. Ele teme
a história que é o terreno do trânsito, da mudança continuada. Para seu desespero, a
única permanência da história é a sua condição de impermanente. Nela há apenas o
temporário. O seu anti-historicismo o torna um combatente romântico contra o caráter
diluidor da modernidade
251
Fragmento retirado da página http://gloriadaidademedia.blogspot.com/ no dia 25/12/11, às 21:44 horas.
laicidade é um grande mal por dotar essa empresa política da possibilidade do governo
sem a orientação religiosa. Como podemos observar na citação da carta Immortale Dei,
feita na página da internet citada acima:
Lembremos que o Papa Leão XIII também é o autor da carta encíclica “Rerum
Novarum – sobre a condição dos operários”, publicada seis anos após a acima citada e
que podemos considerar um importante documento da questão social no interior da
Igreja. Ela foi um documento importantíssimo para a esquerda católica que passamos a
tratar a seguir.
252
Citado por http://gloriadaidademedia.blogspot.com/ - grifos na página. Consulta feita em 25/12/11,
às 22:00 horas.
emancipação humana, ela torna-se o ato privilegiado para a marcha em direção ao
Cristo.
Esses cristãos não produziram a clássica evasão da história. O mundo não era o
vale de lágrimas do qual se deveria fugir na esperança de um paraíso redentor. Ele
deveria ser revolucionado. O Paraíso seria, assim, antecipado, ainda que precariamente.
O drama do humano poderia conhecer o princípio de sua superação ainda na história.
Essa segurança lastreia-se no dado de Jesus Cristo tê-lo vivido. O humano pode,
portanto, viver na história a antecipação do Absoluto. E essa antecipação pode acontecer
pela via da revolução que cumpra, de entre outras realidades, a efetivação da radical
igualdade entre os homens. Ser sal e fermento na massa pode ser compreendido como
ser revolucionário.
Nos dias atuais essas duas matrizes seguem orientando setores do cristianismo
católico. E como a palavra revolução não possui o mesmo apelo existencial profundo
que possuía até pelo menos a segunda metade do século XX, uma e outra operaram um
discurso extemporâneo. A direita segue pregando a sua contra-revolução, divulgando os
grandes males do socialismo e do marxismo. A esquerda, por sua, vez parece ter
perdido o seu objeto estruturante: a revolução. Na ausência de uma revolução possível
para superar o capitalismo, ela vê-se dividida, buscando temas para a sua militância.
Alguns militantes e intelectuais estão trabalhando com questões ambientais, e outros em
movimentos sociais como o brasileiro Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST). Esses dois setores estruturaram-se em torno do modelo de revolução possível no
século XX. Portanto, estão em profundo descompasso com as revoluções possíveis no
século XXI.
Referência Bibliográficas
Nº Tipo Nº Tipo
255
Segurança Humana - conceito cunhado em 1994 no Human Development Report das Nações Unidas, que
coloca o indivíduo no centro da análise das questões de segurança (Ferreira, 2010, p.21).
256
Segurança Cooperativa – é uma abordagem mais pacífica às questões de segurança baseada no pressuposto
de uma crescente harmonia e cooperação internacional para fazer face aos riscos, ameaças e conflitos
transnacionais (Cohen, 2001, p.2).
257
O conceito de securitização foi desenvolvido pela Escola de Copenhaga e pressupõe a existência de uma
ameaça existencial que legitima o quebrar de regras na realização de acções de emergência. Trata-se de um
processo que está para além do próprio processo político e que justifica a tomada de medidas urgentes
(Ferreira, 2010, p. 7-11).
1 Um Mundo em rede. 11 A demografia e as novas correntes migratórias.
FONTE: Leandro, J.E.G. (2009) Caminhos para uma Segurança Alargada em Portugal. Nação e Defesa, nº124,
4ª Série, Lisboa, pp.137-150.
259
Relatório das Ameaças Globais de 2011 do Fórum Económico Mundial, disponível em
http://riskreport.weforum.org/ [acedido a 19.12.11].
260
O conceito de governance, também traduzido em português por “governança” é definido pela Commission
on Global Governance (2000, p.12) como “the sum of the many ways individuals and institutions, public and
private, manage their common affairs. It is a continuing process through which conflicting or diverse interests
may be accomodated and cooperative action may be taken”.
261
NATO - Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), adoptamos aqui a sigla norte-americana mais
comummente usada.
262
OSCE – Organização para a Segurança e Cooperação na Europa.
263
UEO – União da Europa Ocidental.
264
ONU – Organização das Nações Unidas.
265
A Política Comum de Segurança e Defesa é o nome dado pelo Tratado de Lisboa à Política Europeia de
Segurança e Defesa (PESD) (Monge, 2011, p.150).
FIGURA 1. PANORAMA DAS AMEAÇAS GLOBAIS
A União Europeia tem procurado construir uma Política Externa e de Segurança Comum
(PESC), instituída pelo Tratado de Maastricht, que lhe permite ter uma só voz nas questões
mundiais. Os Estados Membros têm avançado significativamente neste campo, dispondo
actualmente de uma maior capacidade de decisão e actuação na gestão de crises e de conflitos. Este
é um desafio difícil, uma vez que toca questões sensíveis em que os 27 Estados frequentemente têm
interesses divergentes. Não importa aqui abordar as dificuldades e limitações desse processo, já que
outros o fizeram anteriormente (cf. Deighton, 2002), importa antes realçar os esforços da UE em
criar uma Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD). A PESD, consagrada no Tratado de Nice
(2000), surge como resposta à incapacidade europeia de lidar com a crise nos Balcãs. No entanto,
apenas assume uma maior importância com as profundas alterações ao sistema internacional pós
11 de Setembro (Teixeira, 2011, p.175). Com o Tratado de Lisboa, o termo “política comum” foi
institucionalizado, o que traduz o empenho dos Estados Membros em ultrapassar as suas
divergências e prosseguir objectivos comuns neste campo sensível, como é o da Segurança e Defesa
(Monge, 2011, p.150).
Deste modo, ao nível europeu, existe uma Política de Segurança e Defesa comum que co-
existe com as políticas nacionais dos Estados Membros. Tal implica cedências e uma maior
flexibilidade por parte dos Estados, que necessitam de encontrar pontos comuns e ultrapassar os
interesses nacionais e responder aos interesses colectivos. Assim, procura-se uma harmonização das
prioridades sobre esta matéria específica: as questões de Segurança e Defesa. A substituição do
conceito de “política árabe da França” pelo de “Parceria Euro-Mediterrânica” é um exemplo desse
esforço (Charillon, 2001, p.132).
A Europa é uma das regiões, senão a região com maior número de complexos de segurança
institucionalizado, que derivam da sua proximidade com a NATO, à UEO, à OSCE, entre outras
(Alcaro e Jones, 2011, p.18). O quadro atlantista, com a NATO, é em última análise, o garante da
266
Sempre que necessário recorrer-se-á à transcrição de frases ou excertos dos autores e fontes na língua
original, por ser mais fiel à ideia que se quer transmitir.
segurança europeia. Esta aliança político militar de países europeus e da América do Norte é não só
o maior poder militar mundial, cujo principal objectivo é a manutenção da paz e a defesa dos seus
Estados, mas representa também uma relação única entre estes dois continentes ao nível da
cooperação na área da Segurança e Defesa. A NATO, à qual pertence uma grande parte dos Estados
Membros da União Europeia, constitui o núcleo duro da segurança europeia. A UE não reúne a
capacidade militar nem a vontade política suficiente para se afirmar como actor de Segurança e
Defesa independente na NATO (Alcaro e Jones, 2011; Deighton, 2002). A criação de uma Política de
Segurança Comum efectiva depende da capacidade dos Estados Membros de dotarem a União com
uma estrutura institucional sólida. Esta deverá ser criada em articulação com a NATO, de modo a
evitar a duplicação de mecanismos e respostas, a maximizar os ganhos e a estreitar os laços
atlânticos (Conceito Estratégico de Defesa Nacional, 2003, p.281)
Não importa aqui caracterizar os conceitos de esquerda e direita, importa antes abordá-los
na lógica da Segurança. Bresser-Pereira (2006) propõe uma definição que foca sobretudo a questão
da segurança interna dos Estados, caracterizada pela oposição entre ordem e justiça social, mas
pode ser alargada à sua segurança externa:
Novas matérias políticas têm surgido nas últimas décadas, alterando significativamente a
definição das políticas. Questões como ecologia, a imigração, o nacionalismo e a diversidade
cultural, denominadas pós-materialistas, estão intimamente relacionadas com a soberania nacional,
pelo que são assimiladas nas ideologias partidárias (Hooghe e Marks, 2002, p.976). A
reconceptualização da Segurança traduz-se no reconhecimento de que as sociedades actuais se
caracterizam pela presença de outros que não se identificam com os discursos identitários
dominantes, daí serem considerados ameaças. Para além disso, temos a associação da imigração ao
crime, corrupção e terrorismo numa óptica geopolítica, o que causa instabilidade social (Rodrigues,
2010b, pp.17-28).
A dicotomia esquerda-direita pode ser representada numa escala ideológica que vai da
extrema-direita à extrema-esquerda. No centro assistimos a oscilações, que ora pendem mais para a
esquerda, ora para a direita. Esses movimentos resultam, segundo Bresser-Pereira (2006), do
esgotamento das propostas dos governos e da consequente deslocação dos eleitores mais ao centro
na direcção oposta. Para além disso, o centro também varia de país para país. Assim, políticas
consideradas de esquerda num país poderão ser consideradas de direita noutro. Procuraremos de
seguida analisar as questões de Segurança e Defesa com base nesta escala ideológica. Ao nível dos
valores na questão da Segurança, a direita defende valores materiais como a propriedade e o bem-
estar das famílias e cidadãos; já para a esquerda assume maior importância certos valores
imateriais, como são a justiça, os direitos humanos e a igualdade de direitos e oportunidades
(Motta, 2008, p.305). Estes valores orientam os enunciados destas ideologias.
Por sua vez, a direita acredita que a violência é inerente à natureza do homem (isto é, há
homens bons/honestos e há homens maus/delinquentes), pelo que é necessária a acção repressiva
do Estado como garante da ordem social. Em suma, segundo a formulação da direita, a sociedade
está dividida em dois grupos, os criminosos e os honestos, sendo defensável o recurso a acções de
carácter repressivo contra o primeiro grupo. A esquerda apresenta-se como defensora dos direitos
humanos e de uma maior justiça social (Motta, 2008, pp.305-311). Temos assim a oposição entre
ordem e justiça social. Num dos extremos do espectro surgem os partidos da extrema-direita. Para
estes a imigração é uma ameaça à Segurança nacional, pelo que sustentam a necessidade de
267
Disponível em http://www.bloco.org/media/tesespoliticasIV.pdf [acedido a 20.12.11].
defender os valores e a cultura nacional dos estrangeiros, que percepcionam como “invasores”.
Estes sentimentos anti-imigração traduzem-se na oposição por parte destes partidos à livre
circulação de pessoas no espaço europeu, o que explica a sua rejeição aos Acordos Schengen 268. A
defesa da independência e soberania nacional, bem como dos valores tradicionais, é central à
ideologia destes partidos. São defensores de políticas mais árduas de combate à criminalidade e
também de penas mais pesadas. Os últimos anos têm sido marcados pelo aparecimento e reforço
no espectro eleitoral de novos partidos da direita, nos quais se multiplicam discursos inflamados
contra uma série de ameaças à soberania nacional, com destaque para os temas relacionados com
imigração, influências estrangeiras, elites cosmopolitas e agências internacionais. Em termos
comunitários muitos destes consideram que o próprio processo de integração europeia representa
uma ameaça à soberania nacional (Hooghe e Marks, 2002, pp.976-977).
Os partidos de direita populistas (de que é exemplo o CDS-PP em Portugal), não são tão
extremistas, mas têm uma orientação conservadora. Defendem a soberania e a cultura nacional, o
que, por exemplo, os faz encarar com desconfiança a imigração, por considerarem que à partida se
arrisca a ameaçar a identidade nacional. Pelas mesmas convicções são tendencialmente contrários a
pressões externas (Hooghe e Marks, 2002, p.981). Estas diferentes perspectivas de encarar a
realidade evidenciam-se quando se trata de questões de Segurança e Defesa, consideradas como
prioridades fundamentais do Estado, uma vez que um dos principais deveres do Estado é a
segurança dos seus cidadãos (Cf. Programa Eleitoral sobre Segurança e Programa Eleitoral sobre
Defesa do CDS-PP269).
268
Tomemos como exemplo a Frente Nacional Francesa de Le Pen e o Partido Nacional Renovador (PNR) em
Portugal, cujas plataformas políticas defendem uma maior regulação da imigração.
269
O Programa Eleitoral sobre Segurança está disponível em http://www.cds.pt/index.php?
option=com_content&view=article&id=137:seguranca&catid=104:cds&Itemid=81 e o Programa Eleitoral sobre
Defesa Nacional e Antigos Combatentes em http://www.cds.pt/index.php?
option=com_content&view=article&id=122:defesa-nacional-e-antigos-
combatentes&catid=104:cds&Itemid=174 [acedidos a 15.12.11].
outros. Assim, os tratados internacionais reflectem os programas e ideologias da maioria dos
governos representados.
270
CPLP – Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa.
271
No caso português firmam-se em três vertentes: nacional, europeia e atlantista.
compromissos assumidos internacionalmente, mas também da procura de consensos internos (com
outros partidos, nomeadamente no caso de governos minoritários, neste caso também como forma
de evitar crises políticas) ou até da necessidade de ir ao encontro da sociedade civil, seja esta mais
de direita ou de esquerda272. Segundo Bresser-Pereira (2006), em democracias onde há um grande
hiato entre a sociedade civil e o povo existe maior tendência dos governos para encontrarem
legitimidade política junto da sociedade civil, indo ao encontro dos seus interesses e/ou para manter
a sua confiança. A política enquanto busca do bem comum, está dependente da capacidade dos
decisores políticos de alcançarem compromissos e fazerem cedências.
A Segurança Cooperativa e o papel dos EUA - Os EUA influenciaram, de modo mais ou menos
visível, a criação de estruturas internacionais reguladoras no pós II Guerra Mundial e a prossecução
de valores liberais e de defesa de valores fundamentais. Instituições de cooperação como as Nações
Unidas e a Aliança Atlântica promovem a ordem e segurança internacional, mas a ordem
internacional actual não resulta de uma imposição. Não existe uma imposição de interesses de um
governo a outros, antes o superar do interesse nacional e o estabelecimento de relações e alianças
que procuram respostas e mecanismos para lidar com ameaças comuns e uma crescente identidade
de interesses entre os Estados.
272
Bresser-Pereira (2006) faz a distinção entre “povo” e “sociedade civil”. Segundo este teórico o povo “(…) é o
conjunto de cidadãos iguais perante a lei, dotados do direito de voto; sociedade civil é esse povo no qual,
porém, o poder de cada cidadão é ponderado pelo dinheiro, pelo conhecimento e pela capacidade de
organização.”
273
A Liga das Nações, também conhecida como Sociedade das Nações, foi a organização antecessora das
Nações Unidas, concebida no Pós I Guerra Mundial, com o objectivo de promover a paz, segurança e
cooperação internacional.
A interdependência entre os Estados acentuou-se nas últimas décadas. De destacar num
primeiro momento a integração de mercados (de que é exemplo a UE e o MERCOSUL 274), a
regulação de fluxos de bens e serviços, seguida da integração em áreas tradicionalmente reservadas
aos poderes políticos estatais, como a Segurança. Neste início de século assistimos a uma crescente
convergência de expectativas e à progressiva homogeneização de comportamentos, através da
criação de estruturas comuns. O incremento da cooperação entre Estados reduz a capacidade
autónoma de decisão, nomeadamente na realização de guerras (Rocha, 2006) e no combate a
determinados riscos e ameaças.
Tomemos como exemplo a Guerra no Iraque em 2003, que parte de uma coligação entre os
EUA sob a administração de George W. Bush e o Reino Unido com o Primeiro-ministro Tony Blair.
Falamos de governos ideologicamente distintos: o Partido Republicano (Republican Party) de Bush
reflecte o espírito conservador americano e é considerado de centro-direita; por sua vez, o Partido
Trabalhista (Labour Party) de Blair é um partido socialista de centro-esquerda. Temos uma aliança
entre dois Estados com um ideário divergente, mas com uma ameaça comum, que consiste na
possibilidade do Iraque recorrer a armas de destruição maciça e desse modo pôr em causa a
segurança desses dois Estados e dos seus aliados regionais. No caso da Guerra no Iraque assistimos
à oposição de um grande número de Estados europeus, membros da NATO, a esta invasão por
considerarem que desta incursão militar resultaria um desastre humanitário e fragilizaria as
instituições internacionais, como as Nações Unidas, que procuram a universalização dos valores
democráticos (Rocha, 2006).
Considerações finais
1. É num sistema internacional complexo e em constante mutação que os Estados têm que
definir as suas políticas de Segurança e Defesa nacionais. Perante um conjunto de ameaças
e riscos tão alargado quanto diversificado, torna-se fundamental que as respostas se
baseiem na cooperação internacional, num quadro de Segurança Cooperativa. Para além
disso, a segurança internacional não pode ser apenas entendida como segurança dos
Estados, mas deve também asseverar a segurança das pessoas, numa lógica de Segurança
Humana.
2. Na Europa, e de modo especial em Portugal, o desenvolvimento das políticas de Segurança e
Defesa assenta num quadro multilateral. Com a criação da actual Política Comum de
274
MERCOSUL – Mercado Comum do Sul, é um acordo económico e político entre a Argentina, Brasil, Paraguai
e Uruguai.
Segurança e Defesa, assistimos a uma “europeização” da Segurança, que se traduz na
harmonização dos interesses dos Estados Membros sobre as questões de Segurança e
Defesa. A NATO é o eixo principal e fundamental da Segurança e Defesa euro-atlântica, pelo
que é necessária a articulação entre a UE e a NATO, a fim de evitar a duplicação de medidas
e meios e potenciar a complementaridade entre ambas. Os Governos devem respeitar os
compromissos celebrados com as organizações internacionais e sistemas de alianças a que
pertencem.
3. A dicotomia esquerda-direita está presente no gizar das políticas de Segurança e Defesa.
Para a direita, a natureza do homem (homens bons vs homens maus) define as suas acções,
pelo que defende políticas repressivas. Os partidos de direita sustentam a independência e
soberania nacional, opondo-se a tudo o que consideram uma ameaça (como a imigração e a
influência estrangeira). Por sua vez, a esquerda defende valores imateriais, como os direitos
humanos e a justiça social e procura defender os grupos minoritários de qualquer forma de
discriminação. Estas percepções servem como linhas orientadoras no gizar das políticas de
Segurança e Defesa nacionais. Para além disso, estão também inscritas nos tratados
internacionais celebrados, uma vez que os mesmos reflectem as orientações dos governos
representados.
4. Neste campo, como noutros, assistimos frequentemente a uma variação ideológica (mais
frequente ao centro) na adopção de medidas e políticas por parte dos governos. Tal deve-se
não só ao peso dos acordos multilaterais assinados e dos quadros intergovernamentais em
que cada entidade política se insere, mas também à procura de novos caminhos e de novos
consensos internos. Os compromissos são essenciais para o gizar de políticas consertadas e
compreensivas.
5. As políticas nacionais de Segurança e Defesa reflectem as tendências internacionais. Na sua
base encontramos a dicotomia esquerda-direita, a qual define as suas principais linhas
orientadoras (defesa da ordem vs defesa da justiça social). No caso europeu, a vertente
europeia e atlantista são centrais às políticas de Segurança e Defesa. Com o objectivo de
garantir a segurança e bem-estar dos seus cidadãos e fazer face ao ambiente político-
estratégico mundial, os Estados devem pensar as suas políticas de Segurança e Defesa numa
lógica internacional de crescente cooperação. É necessário ter em conta no gizar destas
políticas um conceito alargado de Segurança, independentemente da ideologia política
predominante, que integre não só a defesa da soberania e do território nacional, mas
também uma visão global das ameaças internacionais passíveis de virem a atingir o país,
optimizando os quadros internacionais em que o mesmo se insere.
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Weiner, Myron, Russel, Sharon Stanton (2001) Demography and National Security, New York-
275
Doutorada e agregada em Filosofia pela Universidade de Paris I, Sorbonne. Investigadora no Centro
Maurice Halbwachs, em Paris, onde também dirige investigações. Autora de diversos artigos e livros,
publicados em França e noutros países. Pertence a diversas Associações científicas, de França e de outros
países.Tem dado cursos como professora visitante, em algumas Universidades de França, e de outros
países.
interesses sociais, pessoais e profissionais, mas traduzem convicções morais fundadas e
motivadas por princípios.
276
A entrevista com Habib, conselheiro municipal de Educação (CPE), de 56 anos de idade, dá-nos um
exemplo : “Felizmente que há eleições. Eu diria que o top, o ideal, dado que há pessoas descontentes,
em geral, seja à direita ou à esquerda, o ideal seria que ninguém votasse ! Pelo menos um mandato e
veríamos a porcaria em que eles estariam metidos... ninguém poderá governar , uma vez que ninguém
terá sido eleito. Mas ninguém vota ! É utópico, é utópico. Para mim, continua a ser um sonho, que isto
um dia se concretize”.
tendencialmente mais inovadoras e as menos marcadas pelo existente são, as mais das
vezes, formuladas por indivíduos que têm preferências políticas pela esquerda. Tal é
igualmente o caso da designação de alternativas com normas existenciais
contemporâneas. Em compensação, os indivíduos que orientam o seu voto para a direita
tendem a privilegiar mecanismos de regulação mais rígidos nas reformas que esboçam.
As normas «utópicas consistem então, para algumas, na promoção do empenho
individual na solidariedade social – em particular nos inquiridos que têm preferências
políticas pela esquerda, para outras no reconhecimento social recíproco dos grupos
sociais, das profissões e das funções hoje desvalorizadas. Vários inquiridos propõem
soluções originais, susceptíveis de assegurar maior equidade no mercado de trabalho ou
no mundo empresarial. 277
Por outro lado, uma dicotomia das interpretações do mérito opera-se consoante
os indivíduos privilegiem o voto à direita ou o voto à esquerda. Assim a experiência,
entendida como uma competência ou o conhecimento do seu ofício, justifica, em
particular no discurso dos partidários da esquerda, uma remuneração salarial superior.
Em compensação, quando se trata das responsabilidades dos superiores hierárquicos,
são em maior número os inquiridos a distanciarem-se da ideologia dominante do mérito.
278
Uma interpretação possível destas correlações consiste em associar o conservadorismo social a um
estilo cognitivo e mais geralmente funcionamentos cognitivos (Stone, 1986) a algumas ideologias.
As crenças e opiniões que se prendem como o modo de criação das
desigualdades alimentam-se de informações colhidas no decurso de percursos
individuais. Juntamente com o conhecimento informal (por ouvir dizer), a trajectória
pessoal constitui uma das principais fontes de informação na qual os indivíduos
recolhem os materiais para a sua reflexão e as suas interpretações nesse domínio. As
diferenças de trajectória social explicam uma parte da variabilidade das interpretações
quanto á génese das desigualdades. As posições sociais e as trajectórias individuais (de
mobilidade social ascendente ou descendente) predispõem os indivíduos a privilegiar
alguns princípios axiológicos assim como a recorrer a esta ou aquela norma de justiça
nas suas avaliações morais. No entanto e contrariamente às conclusões das teorias sobre
o domínio social, o nível do diploma bem como o posicionamento político parecem
pesar mais, nas entrevistas conduzidas no âmbito do PISJ, na elaboração abstracta das
concepções de justiça do que as posições de vantagem relativa no seio do espaço social
ou profissional.
281
Jemor, quadro superior do sector privado, de 44 anos de idade, considera que “o que não é aceitável
é alguém a quem se propõe quinze vezes um trabalho e que diz não, só porque não tem vontade de
trabalhar. Alguém que poderia fazer o trabalho e que o recusa porque não tem vontade de trabalhar,
não é normal”.
categorias de diplomas e mostra deste modo que esta interpretação da génese da pobreza
é estruturante das representações que dela têm os indivíduos que votam à direita.
282
Jebea, operário qualificado, de 57 anos de idade, comenta igualmente a negociação da reforma da
aposentação em França em 2010 :”O projecto de lei não é equitativo no seu conjunto em relação ao
que o Governo propõe : que sejam unicamente os trabalhadores que pagam esta aposentação aos 62
anos e que o leque de receitas não seja alargado aos rendimentos financeiros”.
Conclusão
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Quadro 1
Esquerd
Variável Categoria Centro Direita Total
a
q65-0 As desigualdades de rendimento. 8,19 7,82 7,89 8,07
(1)-O questionário PISJ pedia aos indivíduos para indicarem as suas preferências
políticas, posicionando-se numa escala de 10 da esquerda para a direita, representando o 1 a
posição mais à esquerda. Constituímos três grupos de opiniões: esquerda para as posições de
1 a 4, centro para as posições 5, direita para as posições 6 a 10.
Quadro 3
Quadro 4
V de Cramer(1)
ÍNDICE
ABORDAGEM GERAL
Jean-Philippe Thérien
Eduardo Currito
António J. Caselas
- Redução ao simulacro : História e idade póstuma da ideologia
Pedro Sargento
Elisabete Joaquim
Isabel Menezes
Manuela Tavares
- Intelectuais de esquerda e pensadores de direita, ao longo do século XX :
uma análise comparativa
Dimitris Michalopoulos