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A DICOTOMIA POLÍTICA ESQUERDA-

DIREITA: A PROBLEMÁTICA DA SUA


VALIDADE E ATUALIDADE

Victor Correia (org.)


INTRODUÇÃO
Victor Correia

O MUNDO DAS DICOTOMIAS

As dicotomias (conceito originário do Grego dichotomia, que significa “divisão


em duas partes”), distribuem o ser e o dever ser, elas são uma tendência do nosso
modo de ver e de pensar o real, por um lado no sentido relacional, por outro lado no
sentido oposicional. As dicotomias, no sentido distintivo do seu conteúdo,
constituem uma representação de modo a descobrir e a pôr em evidência as
diferenças entre os dois termos nelas contidos, e a valorizar essas diferenças em
proveito de um dos termos e em detrimento do outro. Neste sentido, enquanto
oposição, ao interpretarem o outro como contrário, as dicotomias dão-se como
categorias de análise, estruturando o real, e sistematizando o pensamento.

As dicotomias constituem uma distinção que pretende dividir o universo em


dois campos, conjuntamente exaustivos, de modo a que todos os entes daquele
universo tenham lugar nessa distinção, sem nenhuma exclusão, campos esses que
são recíprocamente exclusivos, para que um ente incluído no primeiro desses
campos não possa estar simultaneamente incluído no segundo. A finalidade é
estabelecer uma divisão que é ao mesmo tempo total, enquanto todos os entes aos
quais atualmente e potencialmente a essa divisão se referem, nela devem ter lugar,
e hierárquicamente tende a fazer convergir em sua direcção outras dicotomias que
se tornaram em relação a ela secundárias.

As dicotomias são um mundo bastante vasto, desde logo através dos termos
que as significam, ou que são seus sinónimos : bi-categorização, dualismo, díade,
binómio, par, polaridade, distinção, oposição, etc. No nosso quotidiano usamos, quer
de forma linguística, quer na nossa relação com o mundo que nos rodeia, muitas
dicotomias : alto-baixo; grande-pequeno; doce-amargo; leve-pesado; húmido-seco;
quente-frio; dentro-fora; centro-periferia; passado-futuro; tudo-nada; público-
privado, Ciências Humanas-Ciências Exactas, etc., etc. Os diversos ramos do Saber
são dominados por dicotomias, caracteríticas dos seus objetos de estudo : por
exemplo no Direito, público-privado; na Economia, mercado-plano; na Antropologia,
natureza-cultura; na Sociologia, sociedade-plano; na Arte, clássico-romântico; na
Religião, sagrado-profano, etc. A Filosofia é uma das áreas que mais se encontram
dominadas por dicotomias, as quais têm alimentado ao longo da História o seu
trabalho de reflexão. A ênfase posta na dicotomia surge em Platão, através da
doutrina dos dois mundos, o inteligível e o sensível, a distinção entre essência e
aparência, original e cópia, em suma, nundo suprassensível, imutável, lugar do
verdadeiro, da pureza da ideia, das essências e do modelo, e mundo sensível,
mutante, de cópias e aparências.

O dualismo é portanto o sistema filosófico que explica a realidade pela


existência de dois princípios, ou seja, duas substâncias irredutíveis entre si, que não
se misturam : uno-múltiplo; finito-infinito; liberdade-necessidade; ser-aparência;
razão-paixão; tempo-eternidade; eu-outro; Natureza-Cultura; objetivo-subjetivo;
causa-efeito, etc. Alguns destes conceitos, assim como outros, deram origem a
outras dicotomias importantes na História da Filosofia : idealismo platónico-realismo
aristotélico; nominalismo-realismo medievais, etc., ou ainda a posicionamentos
opostos sobre filósofos (por exemplo a esquerda e a direita hegeliana). A Política
tem tido também as suas dicotomias : liberalismo-marxismo; capitalismo-socialismo;
democracia-autoritarismo; progressismo-conservadorismo; revolucionarismo-
reacionarismo; esquerda-direita, etc.

Atribuimos valores aos objectos, e aos ideais (políticos, morais, religiosos,


etc.). Ora, os valores são dotados de polaridade, tudo o que é considerado como
valor tem um carácter de bipolaridade, de oposição. Assim, os valores surgem
sempre aos pares : à beleza contrapõe-se a fealdade, ao sagrado o profano, ao útil o
inútil, ao saboroso o intragável, etc., valores esses que podem ser aplicados a
diferentes campos do real, segundo o ponto de vista do observador (assim, por
exemplo, determinada ideologia política, quer de esquerda, quer de direita, tanto
pode ser considerada como algo positivo como negativo). A polaridade torna-se
assim num maniqueismo, dividindo o mundo entre o bem e o mal, e esta avaliação
tende a ser atribuida à generalidade das dicotomias.

CRÍTICA DAS DICOTOMIAS

A divisão do real não é apenas dicotómica. Por vezes uma coisa dá origem
não apenas a uma outra coisa, ou tem como correspondente apenas uma outra
coisa, mas sim uma pluralidade de identidades. Em vez de uma dicotomia (divisão de
uma coisa em duas), temos antes uma politomia (divisão de uma coisa em várias
partes). Neste sentido, no nosso tempo fala-se muito em crise de identidade. O
homem da sociedade moderna tinha (ou julgava ter) uma identidade bem definida e
localizada no mundo social e cultural. Mas uma mudança estrutural está
fragmentando as diversas identidades (de etnia, de nacionalidade, de cultura, de
classe, de género, de sexualidade, etc.), as quais se antes eram consideradas sólidas
localizações, onde o sujeito se encaixava socialmente e culturalmente, hoje
encontram-se com fronteiras menos definidas, provocando no sujeito pós-moderno
uma crise de identidade.

Conforme sublinha o filósofo francês Jean-François Lyotard, a “condição pós-


moderna” caracteriza-se pelo fim das metanarrativas. Os grandes esquemas
explicativos teriam caído em descrédito e não haveria mais “garantias”, dado que
mesmo a Ciência já não poderia ser considerada como a fonte da verdade. Lyoytard
afirma que as filosofias modernas legitimavam as suas pretensões à verdade não
sobre bases lógicas ou empíricas (como elas pretendiam), mas antes sobre histórias
aceites (ou metanarrativas) a propósito do conhecimento e do mundo. Segundo
Lyotard, na nossa condição pós-moderna, estas metanarrativas já não permitem
legitimar estas pretensões à verdade. Lyotard afirma que, na sequência do
desmoronamento das metanarrativas modernas, os homens desenvolvem um novo
jogo de linguagem, um jogo que não reivindica a verdade absoluta mas que glorifica
antes um mundo de relações perpétuamente variáveis (relações entre as pessoas,
assim como entre as pessoas e o mundo).1

No âmbito do pensamento de Lyotard, os pensadores pós-modernos


desconfiam das dicotomias (oposições binárias) que dominam a metafísica e o
humanismo ocidentais, assim como das oposições entre verdadeiro e falso, corpo e
espírito, sociedade e indivíduo, liberdade e determinismo, presença e ausência,
dominação e submissão, masculino e feminino. Estes pressupostos do pensamento
ocidental são contestados, para pôr em seu lugar um pensamento da nuance, da
diferença, ou da subtileza.

Um desses pensadores pós-modernos, Jacques Derrida, é conhecido pelo seu


trabalho em torno do conceito de desconstrução. Para Derrida, a Filosofia é
fundamentalmente um trabalho sobre a linguagem, que visa desconstruir as
categorias da tradição dominante da Filosofia ocidental, em particular os seus pares
hierárquicos, como o escrito e o falado, o inteligível e o sensível, a cultura e a
Natureza, a Filosofia (ligada ao logos), e o mito (mythos), ou o masculino e o
feminino. Como escreve Derrida, “desconstruir a oposição é antes de mais, num
dado momento, destruir a hierarquia”.2 Depois, sem se contentar com esse derrube
ao querer re-totalizar as coisas à sua volta, há que abrir-se, pelo contrário, sobre a
diversidade, atitude essa a que ele chama a disseminação, entendida como “uma
multiplicidade irredutível e generativa” (p. 62). No fim dessa operação, tem-se um
pôr em causa de qualquer fundo, fundamento, ou origem, a favor do múltiplo.

Também Ludwig Wittgenstein faz no nosso tempo uma crítica dos escolhos
do substancialismo, ou seja, “a procura de uma substância que corresponda a um
substantivo”.3 Quando se dispõe de uma palavra, de um substantivo (como a
política, a cidade, o Estado, o cidadão, a democracia, ou a justiça), tem-se
espontaneamente a tendência para crer que por detrás dessa palavra existe uma
substância comum ao conjunto das realidades que ela é susceptível de designar.
1
Jean-François LYOTARD, Le différend, Paris, Ed. Minuit, 1984.
2
Jacques DERRIDA, Positions, Paris, Ed. Minuit, 1972, p. 57.
3
Ludwig WITTGENSTEIN. Utilizamos aqui a tradução francesa das obras deste autor. Le Cahier bleu et
le Cahier brun, Paris, Ed. Gallimard, 1965, p. 51.
Quando Wittgenstein conduz o inquérito sobre a palavra jogo, nota que “todos os
jogos (...) agrupam como uma família cujos membros têm um ar de parecença. Uns
têm o mesmo nariz, outros as mesmas sobrancelhas, outros ainda a mesma forma
de andar , e estas parecenças enredam-se umas nas outras”. 4 As nossas utilizações
comuns da linguagem, associadas ao que Wittgenstein chama “o nosso constante
desejo de generalização”,5 ou “desprezo pelos casos particulares”, 6 conduz o
pensamento a “confusões e enganos”, 7 na maneira de pôr os problemas, por
exemplo através de generalizações precipitadas. Contra este substantivismo, que é
um pensamento do Mesmo contra o Outro, e do Um contra o Múltiplo,
Witttgenstein sugere saír-se de um tal jogo de oposições. Daí a noção de dobradiça
(como a dobradiça de uma porta), que põe em evidência porque razão qualquer
discurso supõe o não interrogado simplesmente para poder ser enunciado : “as
questões que pomos e as nossas dúvidas assentam nisto : algumas proposições são
subtraídas à dúvida, como dobradiças em torno das quais rodam essas questões e
dúvidas. (...) Se quero que a porta rode, é preciso que as dobradiças estejam fixas”. 8
Essas dobradiças não são universais ou absolutas : variam conforme os momentos ,
os contextos, e aquilo a que Wittgenstein chama os jogos de linguagem. Por
exemplo, poderíamos falar de um jogo de linguagem do político, do sociólogo, do
ecologista, ou do sindicalista. Não estamos a lidar com fundamentos absolutos e
universais, mas com uma diversidade de dobradiças, como se houvessem
fundamentos, sem certeza absoluta.

Finalmente, nesta breve contextualização, é importante destacar também a


teoria sobre o fim das ideologias, surgida nos anos sessenta dos século XX, a partir
dos escritos de Daniell Bell, e de Seymour Lipset, segundo a qual as grandes
ideologias, mobilizadoras de massas no mundo contemporâneo, esgotaram a sua
utilidade funcional em meados so século XX, com o surgimento da sociedade e do
Estado do bem estar. Pacificadas as lutas anteriores, porque perdida a razão de ser

4
Ludwig Wittgenstein, o.c., 68.
5
Idem, Ibidem.
6
Idem, p. 70.
7
Idem, p. 68.
8
Idem, De la certitude, Paris, Ed. Gallimard, 1976, p. 89.
dos dualismos e dos antagonismos, o conflito, que fora assumido pela sociedade
como motor da mudança, ter-se-ia visto relegado, em favor do consenso. A teoria, a
ideologia, e todo o discurso de valores, deu lugar ao empírico e ao pragmático. 9
Mais recentemente um outro autor, Fukuyama, retomou a tese do fim das
ideologias, através daquilo que ele considera ser o fim da História, desfecho que este
autor situa no estado atual do mundo ocidental, que teria como que cumprido o seu
destino, ao fixar-se na economia de mercado e na democracia política. 10 Estas teorias
têm importantes aplicações no âmbito político, principalmente através da tese de
um outro autor, Giddens,11 sobre a despolitização, a desideologização da política, e
daquilo que ele considera ser uma superação da dicotomia política esquerda-direita.

A DICOTOMIA POLÍTICA ESQUERDA-DIREITA

A dicotomia política esquerda-direita remonta à Revolução Francesa, quando


os Estados Gerais, transformados em Assembleia Constituinte, iniciaram em
Versalhes um debate sobre o direito de veto do rei. Tratava-se de saber se, no
regime de monarquia institucional que se estava a instaurar, o monarca poderia ou
não dispor de um direito de decisão superior à soberania nacional, isto é, de um
poder com primazia em relação aos representantes do povo reunidos em corpo
político no que diz respeito à expressão da lei. Para manifestar a sua escolha, os
partidários do direito de veto real instalaram-se na sala (aquilo a que chamariamos
hoje um hemiciclo), à direita do presidente da mesma, enquanto que os adversários
desse direito de veto instalaram-se à esquerda. A dicotomia política direita-
esquerda, puramente topográfica no início, tinha nascido. Ela expandiu-se
progressivamente em toda a Europa, e depois no resto do mundo.

No entanto, existe hoje uma tendência para perguntar pela validade e pela
atualidade dessa dicotomia. Há várias maneiras de responder a esta questão. Uma
9
Daniel BELL, O crepúsculo das ideologias, Lisboa, Ed. Ulisseia, 1973 ; Seymour LIPSET, Political man :
the social bases of politics, London, Ed. Heinemann, 1959.
10
Francis FUKUYAMA, O fim da História e o último Homem, Rio de Janeiro, Ed. Rocco, 1992.
11
Anthony GIDDENS, Para além da esquerda e da direita, Oeiras, Ed. Celta, 1997; Para uma terceira
via, Lisboa, Ed. Presença, 1999.
delas consiste em interrogar-se sobre o sentido exacto que é necessário atribuir aos
termos de esquerda, e de direita, tentando relacioná-los quer a temas permanentes
que os caracterizam em si próprios, quer a temperamentos, isto é, a sensibilidades,
cuja existência se poderia assinalar no seio de famílias políticas bem determinadas,
quer ainda a conceitos-chave que constituiriam o seu núcleo duro e cujo valor
poderia facilitar a análise. Porém, esta tarefa não é fácil. Por um lado, os grandes
temas ideológicos não cessaram ao longo da História de viajar da direita para a
esquerda, e da esquerda para a direita. Há matérias que pertenciam
tradicionalmente à direita (por exemplo a defesa da etnicidade), que passaram a ser
também defendidas pela esquerda. Há matérias que pertenciam tradicionalmente à
esquerda (por exemplo a Ecologia), que passaram a ser também defendidas pela
direita. Por outro lado, houve sempre várias esquerdas e várias direitas, cuja redução
a um ideal-tipo unitário se revelou geralmente impossível. Há ainda a acrescentar
aqueles que não se consideram nem de esquerda nem de direita, mas sim do centro.
Finalmente, o que se entende por direita e esquerda varia consideravelmente
segundo as épocas e os lugares. Ora, tudo isto torna problemática a distinção
contida na referida dicotomia, problemática essa que motivou o presente livro.

Este livro reúne um conjunto de textos inéditos, escritos por diversos autores
nacionais e internacionais, provenientes de várias áreas das Ciências Sociais e
Humanas. Trata-se de uma análise da distinção política esquerda-direita (incluíndo o
chamado centro), tendo como objectivo principal reflectir sobre a validade e a
atualidade dessa distinção. No que concerne à validade, interroga-se aqui o sentido
do pensar dicotómicamente, aplicado à política, e por vezes a outras áreas, tendo
como fio condutor a referida dicotomia. No que concerne à atualidade, procura-se
pensar o significado dessa dicotomia nos tempos de hoje, comparando-a com o seu
significado tradicional. A sua validade e atualidade é defendida por alguns autores, e
contestada por outros. Por um lado, algumas diferenças tradicionalmente presentes
nesta dicotomia tendem hoje a ser contestadas sob várias perspectivas (moral,
social, económica, etc.), e em diferentes matérias (ecologia, identidade nacional,
etc.). Por outro lado, há diferentes graus de contestação dessa dicotomia,
considerando-a em crise, ultrapassada, ou apenas enfraquecida.

Essa contestação pode ter diversas justificações : a atuação dos Governos,


que embora ditos de esquerda (ou de direita), têm uma atuação política diferente e
por vezes oposta à da sua ideologia política; ao surgimento de novos partidos
políticos, dificilmente enquadráveis na esquerda ou na direita tradicionais; à
identificação política dos cidadãos, etc. A atuação incongruente dos Governos em
relação à ideologia política a que pertencem, a falta de polarização ideológica dos
partidos, e o surgimento de novos partidos políticos, não significa necessariamente
que os cidadãos, de uma forma geral, não se continuem a posicionar à esquerda ou à
direita, no sentido tradicional. Mas também é verdade que têm surgido algumas
convergências ou práticas comuns entre certas famílias políticas de esquerda e de
direita, mesmo se as suas posições parecem afastadas à primeira vista. Observa-se
por vezes uma inter-cadeia, um entrecruzamento crescente das idéias defendidas
pela esquerda e pela direita, ou novas posições tomadas por ambas, de modo que
por vezes se torna dificil a sua distinção em relação a determinadas matérias (por
exemplo na segurança, no nacionalismo, no significado atribuído aos conceitos de
liberdade e de igualdade, nas questões morais, etc.).

Por outro lado, a distinção política que existia entre esquerda e direita pode
ter deixado de ser válida e atual em algumas matérias (por exemplo a Ecologia), mas
continua a ser válida em outras matérias (por exemplo o papel do Estado). Por isso,
tanto têm uma concepção absoluta e uniformizadora da realidade, aqueles que
defendem que a referida dicotomia continua válida e atual, como aqueles que
defendem que ela está ultrapassada. Não se trata da dicotomia em si mesma, como
uma identidade imóvel, mas sim de determinada matéria ou outra que se tornou
defendida tanto pela esquerda como pela direita, mas isso pode não significar
necessáriamente a ultrapassagem da referida dicotomia, conforme defendem alguns
autores.
Todavia, o objetivo deste livro não é defender nenhuma posição específica
(que a referida dicotomia é válida e atual ou não, em em quê), dado que apresenta
diversas posições. O objetivo é abrir o debate e incentivar o confronto reflexivo
pluralista em torno desta problemática. No que concerne à abordagem geral, e à
relação estabelecida com determinadas matérias específicas, existirão no presente
livro quatro grandes posições, no plano do ser e do dever ser. Estas posições, não
esquecendo as suas nuances, são fundamentalmente as seguintes : a validade e a
atualidade da dicotomia política esquerda-direita continua a existir, e isso é algo
positivo; a validade e a atualidade dessa dicotomia continua a existir, e isso é algo
negativo; a validade e a atualidade dessa dicotomia deixou de existir, e isso é algo
positivo; a validade e a atualidade dessa dicotomia deixou de existir, e isso é algo
negativo.
I
ABORDAGEM GERAL
O CAMINHO DO MEIO OU O PRINCÍPIO DA
INCERTEZA : DIÁLOGOS AO CENTRO ENTRE
ESQUERDA E DIREITA

Bruno Gonçalves Bernardes12

Segundo o princípio da incerteza de Heisenberg, dependendo do local onde


estamos definimos e conceptualizamos a partícula que queremos estudar; uma vez
mudado o nosso ponto de partida a partícula acaba por aparecer noutro sítio
completamente diferente. Tal como na Física onde os fenómenos são também ditados
pelo observador, parece-nos que na Ciência Política, a objetividade está logo à partida
manchada pela condição humana. Como afirmou Carl Schmitt, a política é uma
“conversa interminável” pois o seu esprit de corps não se baseia num acordo
fundamental de certos princípios e conceitos (Farr & Seidelman, 1993, p. 7; Nöel &
Thérien, 2008, p. 215). Manchada pelo seu próprio objeto de estudo, a ciência política
é definida pelo espaço real da actuação política, tendo como seu paradigma a
dicotomia esquerda-direita. Não é por acaso que Raymond Aron afirmou que o
cientista social é um engagé, pois a academia, enquanto reprodução da vida política,
12
Licenciado em Relações Internacionais, pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da
Universidade Técnica de Lisboa. Mestre em Ciência Política, pelo Instituto de Ciências Políticas da
Universidade de Estocolmo, Suécia. Jornalista no Stockhoolm Journal of International Affairs em
Estocolmo, Suécia.
assenta nas mais diversas divisões metodológicas e conceptuais, nas visões sobre a
democracia e o poder, o papel do Estado e das instituições ou da sociedade civil e dos
indivíduos. Não sendo ingénuos, a escolha e o manuseio de variáveis demonstram
como os cientistas políticos se diferenciam nas suas abordagens e de que forma se
posicionam no espectro político. Como considerou Gabriel Almond (1990, p. 24), a
maioria dos cientistas políticos tende invariavelmente a posicionar-se no imenso
“refeitório do centro”, esquecendo-se que a escolha do método, da abordagem, das
variáveis e dos conceitos segue uma determinada “separação de cadeiras” que ora se
posicionam à esquerda ora à direita (Nöel & Thérien, 2008, p. 217).
Instalados na era da democracia, um sistema por excelência conflitual, pode-
nos também parecer que a dicotomia esquerda-direita tudo resume, como se todo o
debate político fosse meramente feito de opostos. Depois do conflito, o método
democrático procura o consenso num diálogo entre liberdade e igualdade que tem nos
parlamentos o lugar de encontro e representação das variadas sensibilidades políticas.
A história da democracia é também a da busca convergente, onde o que é progressivo
logo se torna tradicional e o que é radical logo acaba por ser socializado, moderado e
aceitável. Não é por acaso que Norberto Bobbio (1996, pp. 4-5) conclui que as
classificações esquerda-direita resultam de um contexto, alterando-se de uma geração
para a outra mas sem nunca perderem o intuito antitético da clivagem. Entre nós, José
Adelino Maltez (2008, para. 19) também considera que “a direita e a esquerda são
meras posições relativas” que dependem de uma relação tempo-espaço e que por isso
apresentam “padrões variados”, ou seja, não são ditados por meras bipolarizações. É
neste espaço que o centro se define, pois não sendo elementos estáticos, a esquerda e
a direita produzem ao mesmo tempo um espaço que lhes é comum mas que por
nenhuma delas é monopolizado. Como conclui Bobbio (1996) “o preto e o branco são
divididos pelo cinzento (…) mas o cinzento em nada diminui a distinção entre preto e
branco” (p. 5).
A história do centrismo é também a da socialização democrática que permitiu
a defesa intransigente dos direitos humanos contra os autoritarismos e recriou vários
centros ou pontos de encontro entre esquerda e direita, mas que também recriou o que
Duverger apelidou de “eterno marasmo” ou o situacionismo dos poderes
aparentemente inabaláveis. São disso exemplo os muito criticados sistemas europeus
como o juste-milieu de 1830 (Guillaume, 2005, p. 179), o Transformismo italiano, a
Restaurácion espanhola ou o Rotativismo português (Ramos, 2006, pp. 31-34;
Donovan & Newell, 2008, p. 386; Mastropaolo, 2008, p. 403), principalmente quando
está em causa enaltecer, por oposição, as graças do bipolarismo. Por exemplo, na sua
crítica ao sistema parlamentar italiano, Gaetano Mosca considerou o bipolarismo
inglês como a fórmula perfeita dos sistemas políticos. Maurice Duverger traçou uma
crítica do “eterno marasmo” pedindo um retorno ao dualismo que marcou a vida
política francesa desde a Revolução. Para Duverger, o centrismo dava um enorme
poder aos partidos e deslegitimava a autoridade do Estado. Nesta mesma linha
Giuseppe Maranini vai considerar que os centros e o centrismo são sintomas do
regime a que deu o nome de “partidocracia”. E Giovanni Sartori, ao classificar três
tipos de sistemas partidários - bipartidarismo, pluralismo moderado e pluralismo
polarizado - não deixa de fazer a sua crítica ao último, identificando-o com o sistema
partidário italiano onde a grande parte dos partidos convergia para o centro
(Mastropaolo, 2008, pp. 400-401).
Numa linguagem institucionalista, a “escola” de Leiden tem fornecido
importantes avanços no sentido de conceptualizar um determinado “equilíbrio da
competição partidária” onde, uma vez finda a transição democrática e consolidados os
partidos, o sistema acaba por girar em torno de uma clivagem monopolizadora (Mair,
1997; Van Biezen, 1998; Jalali, 2009, pp. 200-215). Tal como é conhecido no
trabalho de Downs é no centro que acontece a grande disputa de votos, pois dois
partidos em posições opostas quererão mover-se aos poucos na direção um do outro
na tentativa de roubar votos ao adversário, aproximando-se do eleitor médio. Na
década de 1960, Otto Kirchheimer desenvolveria a tese do partido catch-all, um
modelo organizacional pragmático que põe em causa a importância das clivagens
ideológicas e que demonstra a flexibilidade eleitoral de fenómenos como o centrismo.
Estas problemáticas levam-me a discutir a classificação que Bobbio faz da
dicotomia esquerda-direita. Definindo-a através do binómio igualdade-desigualdade,
o autor tenta ultrapassar os fenómenos que desde a década de 1970 definem o espaço
de atuação do centro-esquerda e do centro-direita. A realidade política é plural e a
dicotomia, apesar de representar ainda hoje uma clivagem eleitoral de enorme
importância, não se pode basear num princípio filosófico sobre a igualdade. Como
afirma Anderson (2005, pp. 130-131) muitos governos de esquerda já se comportaram
como governos de direita no campo da igualdade e os eleitores não se baseiam
somente neste qualificativo. O que tudo isto atesta é que fica difícil definir a
dicotomia partindo de um pressuposto que, se Bobbio diz que não é qualificativo
acaba sendo-o. Por isso, proponho para início da discussão dos fundamentos do
centrismo uma reavaliação do binómio apresentado por Bobbio. Ao fazê-lo, estarei a
considerar que o centro, tal como a esquerda e a direita, não é uma realidade estática,
mas que sem estes não existe. O centro é, pois, como em seguida argumentarei, uma
convergência divergente, consequência da relatividade dos termos esquerda e direita,
sendo produto, síntese e antítese dessa mesma dicotomia.

LIBERDADE E IGUALDADE
A existência de um centro atesta apenas que esquerda e direita, sendo termos
que se excluem, têm também pontos de contacto. Desta forma, o centro não é mais do
que o produto não só das interações entre esquerda e direita mas também das
dinâmicas que se geram dentro do espaço de cada uma. Desafiar a dicotomia é, pois,
desafiar os próprios termos em que se baseiam a pluralidade e o conflito necessários
numa democracia, numa tentativa de gerar algum movimento centrípeto que em certos
momentos pode gerar consenso mas que em outros pode representar o fim da própria
pluralidade de ideias. Não é por acaso que muitos cientistas políticos têm preferido os
sistemas partidários bipolares, em contraste com os centristas (Mastropaolo, 2008, p.
400), aceitando o que Karl Popper designou de “golpes de Estado sem efusão de
sangue”, ou seja, as transições pacíficas entre dois pólos divergentes que convergem
nos princípios da eleição livre, competitiva e participativa.
Bobbio tem razão quando diz que a dicotomia não está em crise. Apesar de por
vezes ora a direita ora a esquerda parecerem estar em crise, nenhuma delas anulou a
outra a favor de um centro dominante. Ambas se fundam em princípios divergentes e
é nesses princípios que o centro deixa de ter sentido. O que isto nos diz é que o centro
depende da dicotomia por ser uma síntese de certos princípios que se diluem entre
esquerda e direita, mas quando em face de princípios basilares de uma e de outra o
centro já não satisfaz e, por isso, é anulado. Norberto Bobbio cita três argumentos
centristas que até à data da sua obra tinham sido utilizados para desafiar a existência
da dicotomia esquerda-direita: um centro incluído entre as duas capaz de monopolizar
o sistema político, um centro inclusivo que inclui as diferenças entre esquerda e
direita diluindo-as e um centro transversal que invade o espaço de ambas esvaziando-
as de conteúdo (Anderson, 2005, p. 129). Os centros incluídos não diluem a dicotomia
e apresentam-se como uma alternativa política; os centros inclusivos tentam sintetizar
a esquerda e a direita de forma a cancelá-las, tornando-as duas partes de um todo
numa “totalidade dialética”; e, finalmente, os centros transversais que passam
facilmente da direita para a esquerda e vice-versa (Bobbio, 1996, pp. 3-11).
No entanto, os autores aos quais Bobbio se opõe têm razão quando dizem que
esses mesmos centros apelam para a importância de um facto basilar em política: é ao
centro que se ganham eleições. Se é verdade que esquerda e direita já estiveram
ambas em crise em períodos diferenciados da história e que nenhuma delas anulou os
princípios basilares da outra, o mesmo não se pode dizer da qualidade antitética do
centro que lhe permite congregar princípios não monopolizados pela esquerda ou pela
direita, o que afirma a sua existência entre a dicotomia. Neste sentido, o centro é uma
convergência divergente pois que se por um lado permite a convergência entre
princípios diferentes mas próximos, por outro afirma a divergência de princípios que
se excluem.
No entanto, os princípios em que Bobbio baseia a dicotomia não são
satisfatórios. Invés da divisão igualdade-desigualdade proponho o binómio igualdade-
liberdade. Argumentarei que os princípios que dividem esquerda e direita são também
os princípios que dão azo à complementaridade entre igualdade e liberdade, tendo a
propriedade privada como motivo inicial da discórdia (Bobbio, 1996, pp. 80-81).
Como refere Hannah Arendt (1998, pp. 29-32), foi a partir da propriedade privada que
se definiu o espaço de atuação da polis, enquanto espaço para lá das necessidades e
dos desejos individuais. No espaço público, o cidadão detentor de propriedade era
igualado ao seu concidadão, enquanto a liberdade surgia como o princípio basilar do
governo da polis, impedindo a violência ou o estado de natureza. Porém, estes dois
princípios foram sendo transformados no decorrer da história e, principalmente no
século XIX através da bipolarização entre liberalismo e marxismo. É a partir dessa
bipolarização que se fundam os princípios que separam esquerda e direita.
A liberdade enquanto princípio basilar da condição humana está bem patente
nas divisões que ao longo do tempo separaram conservadores como Hobbes e De
Maistre, de liberais como Locke e Stuart Mill; ou que opõem defensores dos
princípios da democracia direta e do fim da propriedade privada como Rousseau e
Marx, dos defensores da democracia representativa e da propriedade privada como
Benjamin Constant e Adam Smith. Os velhos liberais, como Stuart Mill, defendiam o
princípio da liberdade individual absoluta, sendo que a lei apenas limitaria o uso da
liberdade abusiva sobre os outros. Como argumenta Isaiah Berlin, o conceito de
liberdade negativa como defendido pelos velhos liberais, será substituído pelo
conceito de liberdade enquanto habilidade de nos tornarmos autónomos. É aliás este
princípio de liberdade que irá sustentar as primeiras críticas ao liberalismo. T. H.
Green, partindo de uma crítica da liberdade negativa como minimamente regulada
pelo Estado como defendida por Stuart Mill, desenvolveu um conceito de liberdade
positiva elaborando uma crítica às teorias do laissez-faire pois considerava que um
capitalismo desregulado não garantia essa liberdade, tornando-se o Estado o garante
da salvaguarda do indivíduo. Nesta mesma linha, Keynes desenvolve a sua teoria
económica contra a ideia de um mercado auto-regulador, defendendo os princípios da
liberdade do indivíduo contra os abusos da desregulação. Se as críticas de T. H. Green
e Keynes criam os fundamentos do chamado liberalismo social ou dos movimentos
literalmente ao centro e, mais tarde servem a crítica social-democrata ao marxismo, o
retorno às ideias do laissez-faire é feito por Von Mises, Hayek e Milton Friedman. A
liberdade é, no entender destes últimos, um princípio que se constrói contra a
intervenção estatal e pela liberdade individual baseada na propriedade privada. Não é
por acaso que a chamada New Right defende a ideia uma vez reproduzida por
Margaret Thatcher de que a sociedade é uma irrealidade e de que a família é o garante
de um tipo de cooperação que terá existido nas sociedades pré-modernas. O Estado
tem de ser mínimo para que e seguindo Hayek, a liberdade política tenha lugar
juntamente com a liberdade económica. É aliás Hayek que em The Constitution of
Liberty de 1960, distingue duas correntes de pensamento acerca da liberdade: uma de
tradição britânica primeiramente desenvolvida por Hume, Adam Smith e Adam
Fergunson e depois por Burke e Tucker e que entendiam a liberdade como um
mecanismo involuntário; e outra de tradição francesa desenvolvida por Descartes,
Condorcet e Comte, e que vêem as instituições sociais como garantes de uma
“liberdade premeditada” (Anderson, 2005, p. 15). Como é óbvio, Hayek posiciona-se
entre os primeiros, vendo no mecanismo involuntário a receita para combater o
planeamento, tão defendido por movimentos da esquerda ao centro-direita. Com o fim
da propriedade privada e com o planeamento, as liberdades políticas e económicas
ficariam em perigo em nome do princípio da igualdade.
Contrariamente ao princípio da liberdade baseado na propriedade privada, a
esquerda desde cedo desenvolveu o princípio da igualdade contra a propriedade
privada. O objetivo de uma sociedade sem classes permitiria o fim do egoísmo e dos
interesses individuais, baseando-se o coletivo na igualdade como razão inicial e
última do Homem. Marxistas e socialistas consideram que a desigualdade faz parte da
própria natureza da sociedade e que sem alterar as suas regras, a desigualdade
permanecerá. No entanto estas ideias seriam revistas pelas divisões criadas pela
Revolução bolchevique e pelo Congresso de Bad Godsberg. Se o primeiro separa
socialistas radicais como Lenine de moderados como Kautsky (Heywood, 1993, p.
111), o segundo traz o abandono das reminiscências marxistas dentro do movimento
social-democrata, o que levará nas décadas de 1970 e 1980 a uma revisão dos
princípios marxistas, depois do fim do marxismo bolchevista como lhe chamou Eric
Hobsbawn.
As reformas no marxismo são operadas por Nicos Poulantzas para quem o
Estado defende a classe que o governa impedindo a transformação do seu princípio de
igualdade, o que reforça o capitalismo e encontra paralelo no conceito de hegemonia
de Gramsci. Por outro lado, as reformas da social-democracia levariam, por um lado,
à adopção das regras do mercado e de um tipo de regulação keynesiana por parte de
social-democratas e, por outro, à rejeição da ideia da ditadura do proletariado e do
governo de partido único pelos eurocomunistas. Dinâmicas que em 1956 tinham já
sido previstas por Anthony Crosland em The Future of Socialism quando, rejeitando a
tese de Nicos Poulantzas, argumenta que o capitalismo deixara de ser um sistema de
exploração de classe. Argumento que é confirmado por Bryan Gould quando diz que
o objetivo do socialismo passou a ser a igualdade de poderes e não de riqueza
(Heywood, 1993, p. 132).
O grande dilema do movimento social-democrata e do centro-esquerda
europeu sempre esteve no equilíbrio entre liberdade económica e igualdade
socioeconómica. Tal como o princípio da liberdade encontrou entre liberais e
conservadores uma revisão dos princípios da direita e do centro-direita, com as cisões
no movimento socialista surgiram as primeiras revisões do princípio da igualdade
dentro da esquerda e do centro-esquerda. Aliás a atual crise do ajustamento ao centro
do princípio de igualdade materializado no Estado-Social levou ao que os autores de
What’s Left of the Left consideram ser uma crise do princípio basilar da esquerda e da
sua diluição pelas dinâmicas do centro-esquerda (Cronin, Ross & Shoch, 2011, pp. 3-
11). Tal como nos diz Perry Anderson (2005, p. 135) numa crítica que faz ao binómio
de Bobbio, a esquerda também adoptou o mercado e em certos países as
desigualdades socioeconómicas foram criadas por governos de esquerda. No mundo
inteiro a teoria do mercado parece prevalecer e tem sido usada como chavão do
desenvolvimento, do progresso e do crescimento. Tal como afirma Arendt (1998, 307-
308) esta é a vitória da felicidade enquanto princípio maior do utilitarismo. Sendo a
busca da felicidade a missão definidora da política, o mundo onde vivemos está
necessariamente centrado nesse objetivo.
Não tendo uma garantia axiomática, a dicotomia molda-se ao tempo, ao
espaço e às memórias e é por isso que, se hoje a esquerda parece enfrentar problemas
de isolamento do seu princípio basilar face a uma “teologia dos mercados” como nos
diz Adriano Moreira, também houve tempos em que a direita esteve em crise. No
entanto, o princípio da felicidade, enquanto busca coletiva não define, por si, a
diluição da esquerda ou da direita num centro hegemónico, pragmático e utilitarista.
Invés disso, a história do desenvolvimento económico e da democracia é a história do
equilíbrio entre igualdade e liberdade como em seguida demonstro.

OS VÁRIOS CENTROS DE QUE O CENTRO É FEITO

Tal como concluem Shmuel Sandler e Jonathan Rynhold (2007, pp. 238-239)
sobre o atual sistema partidário israelita, os centros sempre existem mas vão alterando
o seu conteúdo, num centrismo que se baseia em novas relações de poder.
Contrariamente aos críticos da dicotomia esquerda-direita que têm desde a década de
1960 apontado as suas baterias para o fim da ideologia ou da história, o alinhamento
ao centro de ambos os princípios de igualdade e liberdade mantém ainda gradações
importantes que definem as diferenças essenciais entre os dois lados da contenda. Se é
verdade que ambos os termos definiram o espaço de desenvolvimento da democracia,
também é verdade que não podemos esquecer o facto histórico que separou e separa
democratas de anti-democratas e que em síntese juntou os defensores dos princípios
dos direitos humanos numa espécie de consenso internacional. Nestes termos, uma
das primeiras diferenças que podemos observar é a que separa os centros despóticos
dos centros consensuais.
O centro despótico, enquanto rejeição dos princípios democráticos, tenta
anular a pluralidade ao criar uma convergência autoritária e totalitária. Onde existe
um centro despótico, esquerda e direita desaparecem e dão lugar ao “Homem novo”,
ao “Estado Novo”, ao partido único, ao corporativismo e à coletivização. O centro
despótico foi uma forma de governo que se opôs aos partidos, aos parlamentos e à
delegação de poderes, preferindo eliminar a “mediocridade democrática” (Bobbio,
1996, p.24) e o erro do decisor, substituindo-os pelo decisor compulsivamente
infalível. Desta forma, o centro despótico, enquanto forma de degenerescência
política, vai além da síntese e tenta exacerbar o princípio antitético do centro, criando
uma oposição artificial entre esse centro e as margens. É por essa razão que os
regimes ditatoriais nunca se consideraram de esquerda ou de direita.
Pelo contrário, o centro consensual é produto, tal como a dicotomia, do jogo
democrático, da institucionalização dos parlamentos e do encapsulamento da esquerda
e da direita em organizações partidárias. Desde o início da luta entre esquerda e
direita que se tentou diferenciar ou aproximar as diferentes organizações partidárias e
movimentos políticos. Talvez o projeto que tenha tido mais sucesso no aproximar da
esquerda e da direita tenha sido o da economia mista que depois da crise de 1929
criaria as fundações do atual modelo social europeu. O projeto da economia mista,
que venceu extremistas com o fim da II Guerra Mundial e com a queda do muro de
Berlim, acabou por socializar os sistemas de decisão nacionais e internacionais e os
sistemas partidários, diluindo os princípios diferenciadores da dicotomia. Como notou
Gunnar Myrdal, antes do século XX a ideia de planeamento económico não tinha sido
abordada pela esquerda e são as inovações introduzidas pelo taylorismo que levarão
ao patrocínio do planeamento e da intervenção na economia (Nöel & Thérien, 2008,
p. 111). Com a crise de 1929, e tal como defendiam os primeiros liberais críticos do
laissez-faire e depois social-democratas e democrata-cristãos, chegou-se à conclusão
que os mercados não se auto-regulam e que o Estado tem de ser a salvaguarda da
liberdade e dos interesses coletivos. Esta premissa levaria à construção de variados
consensos ao centro, sendo o modelo social europeu o mais paradigmático,
congregando o liberalismo social, a democracia cristã, a social-democracia, a doutrina
social da igreja, eurocomunistas e socialistas. Cruzando a industrialização, o
crescimento económico e a intervenção do Estado, o Estado-Social é a síntese perfeita
entre a esquerda e a direita europeias num centro consensual.
Outro exemplo de centro consensual, desta feita global, tem-se desenvolvido
em torno da busca incessante pela felicidade como princípio utilitário máximo. Se
como vimos na Europa esse projeto sintetiza-se no Estado social, pelo resto do mundo
se repete a vitória do crescimento e do desenvolvimento como produtos de um novo
laissez-faire que dita o sucesso do modelo económico ocidental noutras partes do
mundo como a China, o Brasil e a Índia, no que alguns têm apelidado de consenso de
Washington. Estudado nestas últimas décadas por economistas políticos, este tem
gerado um consenso governativo à esquerda e à direita, com a proliferação do copy-
paste no processo de decisão. Com The End of Ideology publicado em 1960, já Daniel
Bell abordara o facto de que com o enfraquecimento do fascismo e do comunismo, as
grandes decisões políticas geravam-se em torno de um consenso enquanto os partidos
apenas se preocupavam em defender a prosperidade e o crescimento económico ,
ficando a política confinada a um debate técnico (Heywood, 1993, p. 296).
Paralelamente, Francis Fukuyama publica em 1989 o ensaio The End of History onde
proclama a vitória do modelo liberal sobre todos os seus rivais históricos. Apesar de
se basearem num facto que tem conduzido a política mundial nas últimas décadas,
ambos os autores não perceberam que o grande consenso é um consenso ideológico,
apesar de parecer hegemonicamente centralizado. As diferenças entre a direita e a
esquerda, ou seja, entre os princípios da liberdade e da igualdade, apesar das
metamorfoses e das colagens ao centro, mantiveram a sua essência. Como referiu
Antonio Negri, depois do final da guerra fria e quando se esperava que o mundo
político se reuniria em torno de um consenso, acabaram por formar-se uma
pluralidade ainda maior de movimentos que abraçam ou contestam o capitalismo em
diferentes gradações. Ainda nas décadas de 1970 e 1980 e no rescaldo do primeiro
reajustamento do famigerado consenso, viu-se bem como as teorias monetaristas se
opuseram ao próprio consenso e o transformaram, gerando também outros consensos
sobre a forma como o mercado deve ser regulado ou moralizado, o que leva, por
exemplo, John Rawls a defender os sistemas de redistribuição social-democratas mas
a partir de um princípio de desigualdade económica, pois sem ela não existiria um
incentivo para as classes mais pobres; ou que Habermas também defenda o mesmo
sistema de distribuição mas sem esquecer a necessária moralização do capitalismo e a
criação de um consenso globalmente conversável.
No entanto, as degenerescências do centro consensual foram mais longe e
tentaram ultrapassar a antítese, exacerbando o princípio da síntese, recriando várias
vezes o que Duverger apelidou de “pântano” (Mastropaolo, 2008, p. 400). Os sistemas
rotativos português, espanhol e italiano do século XIX são bem ilustrativos das
dinâmicas de um centro consensual que tenta a todo o custo ultrapassar as antíteses
através do caciquismo, da compra de votos e do clientelismo. Não é por acaso que
Paolo Farnetti argumenta que o sistema político italiano tentou sempre basear-se num
centrismo de forma a ultrapassar as divisões sociais, recriando um centro capaz de
alimentar as clientelas partidárias dependentes do orçamento de Estado, o que
encoraja os partidos a adoptar posições ao centro de forma a ter acesso a esses
recursos (Mastropaolo, 2008, p. 402). As estratégias de darwinismo partidário são
bem conhecidas da história das organizações partidárias. Com o alargamento dos
consensos, os partidos foram adoptando estratégias de caça ao voto, de que os
partidos catch-all são paradigma. Com a tese do partido cartel, Richard Katz e Peter
Mair (1995) chegaram à conclusão que depois que os sistemas partidários estão
consolidados e que se atingiu um determinado equilíbrio da competição eleitoral em
torno de uma clivagem monopolizadora, existe o risco dos partidos da governação
passarem a confundir-se com o Estado. Aliás este é um dos grandes problemas que
enfrentamos na Europa e em sociedades como a nossa em que os partidos têm-se
alicerçado num neo-clientelismo (Piattoni, 2001) que usa o Estado-Social como
moeda de troca eleitoral, criando um consenso sem resistência que impede as
reformas e emperra um sistema demasiado partidocrático, o que mancha a
representatividade e negligencia a sociedade civil e o eleitorado.
Outra divisão dentro do centrismo opõe os centros radicais dos centros
moderados ou, respetivamente, uma ideologia inclusiva face a uma anti-ideologia
inclusiva. Agnes Heller, depois de ter abandonado o marxismo, tem desenvolvido o
seu pensamento sobre a democracia a partir da adopção da filosofia de Kant e da
consequente rejeição do marxismo, do socialismo científico e da teoria do laissez-
faire (Tormey, 1998, p. 12). Heller tem defendido uma ideologia inclusiva que
ultrapasse o sentido populista dos centros consensuais e que mantenha os princípios
democráticos da igualdade e da liberdade, esperando, tal como Habermas, que o
“sistema dinheiro-poder” seja orientado não pelo sucesso material mas pelo mútuo
entendimento (Anderson, 2005, p. 116). O centrismo radical define-se anti-populista e
humanista, contra o abuso dos princípios utilitários usados pelos centros consensuais.
Como considera Heller, a democracia é infinita e dinâmica e a simples proliferação da
sociedade civil não é suficiente. Antes é necessária a institucionalização de governos
populacionais, evitando-se a subordinação e as hierarquias. Se a liberdade é um valor
universal e essencial na democracia então esta tem de assegurar que esse mesmo
princípio prevaleça. Pese embora o pensamento algo sintético de Agnes Heller, o
movimento radical centrista é, tal como o próprio centro, uma mescla plural de
movimentos e partidos que têm como bandeira a síntese dos princípios da liberdade e
da igualdade. Ambas as críticas ao liberalismo e ao marxismo são incluídas no centro
radical, o que leva partidos como o Lib-Dem inglês a defender ao mesmo tempo os
princípios de Stuart Mill, Keynes e Lloyd George. Aliás a integração das teses de
Stuart Mill em alguns movimentos do centro radical torna-os diferentes dos centros
moderados que rejeitam os princípios da liberdade negativa e falam no fim ou
diluição das diferenças entre esquerda e direita.
Por seu turno, Anthony Giddens, David Held, Anthony McGrew e Zaki Laïdi
desenvolveram as suas teses em torno da globalização argumentando que com o fim
da guerra fria a política deixara de ter respostas claras aos problemas da governação
(Nöel & Thérien, 2008, p.9). Aliás Giddens, será o primeiro destes autores a
considerar que os termos esquerda e direita não faziam mais sentido. Em Beyond Left
and Right e The Third Way, Giddens tenta encontrar um novo objetivo para a
esquerda, o que acaba por se materializar nos governos do New Labour de Tony Blair
e que tiveram reminiscências em vários governos e partidos de centro-esquerda
europeus. Tal como defende em The Third Way, Giddens crê que contrariamente ao
liberalismo e à social-democracia, a falência do marxismo deve-se à sua incapacidade
de ver o capitalismo como um sistema humanizável. Por sua vez, a crise da social-
democracia começa na sua difícil orientação num mundo sem alternativas ao
capitalismo. Nesse processo, Giddens reconhece cinco dilemas no futuro da social-
democracia: globalização, individualismo, dicotomia esquerda-direita, agência
política e problemas ecológicos. De forma a incluir estes dilemas globais na sua
doutrina política, a social-democracia deveria posicionar-se rigorosamente ao centro
de forma a contestar a esquerda e a direita radicais através de uma moderada
integração do princípio da igualdade na proteção dos mais vulneráveis e do princípio
da liberdade positiva (Giddens, 1998, p. 66). Giddens chega a considerar que a
social-democracia moveu-se para o centro por razões oportunistas e que uma
participação alargada deve ser dada aos cidadãos de forma a que a social-democracia
possa emergir através do princípio da emancipação e de um certo radicalismo na
forma de pensar temas e reformas consensuais (Giddens, 1998, pp. 45-46).
A terceira via, mais do que uma tentativa de demarcar o centro-esquerda da
esquerda e do centro-direita, é um projeto de anti-ideologia inclusiva, pois que ao
tentar desenhar um espaço de atuação para a nova esquerda negando o papel da
ideologia no mundo pós-moderno, acaba por delimitar uma determinada forma de se
fazer política. Não é por acaso que Giddens tenta ultrapassar a própria terceira via
com a publicação em 2003 de The Progressive Manifesto, o que demonstra a crise da
social-democracia e o relativismo de um projeto inclusivo sem navegação ideológica.
Sendo produto, síntese e antítese da dicotomia o centro tem ao longo da
história desenvolvido um diálogo permanente com a esquerda e a direita. Ponto de
encontro e de diálogo entre os princípios da liberdade e da igualdade, ajudou a criar
pontes entre moderados na socialização democrática, na luta contra os autoritarismos
e nos consensos que hoje nos governam. Sendo centro de consensos também se pode
assumir totalitário ou pantanoso, situacionista e partidocrático. Sendo uma
convergência divergente é nele que habitam as ideologias inclusivas e os movimentos
que se dizem a-ideológicos.
A SEMPITERNA CRISE

Se, por um lado, muitos politólogos culparam os sistemas ao centro, por outro
o centrismo permitiu a socialização dos sistemas partidários numa competição
pacífica. O estudo pioneiro de Maria José Stock (1985) demonstra como a
consolidação do sistema partidário português se desenvolveu em torno de um centro
onde se cimentaram as duas alternativas governamentais. Por exemplo, em Cabo-
Verde o rotativismo tem oferecido transições políticas pacíficas o que tem
democratizado as instituições e impede a polarização da sede do poder. A crítica tem
sido feita, em parte, pela noção de que os centros hegemónicos diluem as noções de
esquerda e direita num consenso degenerativo, ou seja, eliminando a pluralidade
necessária aos sistemas democráticos. Apesar das degenerescências óbvias ao longo
da história, os sistemas bipolares incluíram também movimentos centrípetos de forma
a impedir a proliferação de polaridades. Muitos destes sistemas, principalmente
aqueles que governaram a Europa até à I Guerra Mundial, recriaram uma imagética de
poderes paralelos onde tudo o que é tradicional é velho e tudo o que é progressivo é
novo, sem esquecer as divisões historicistas que opõem absolutistas e liberais,
monárquicos e republicanos, como se a política não fosse mais do que uma dicotomia
onde quem é de esquerda ou de direita tem de estar sempre de acordo com os valores
da sua família política. Porque aliás a própria existência do bipolarismo também criou
e recriou variados rotativismos em que as alternativas logo se foram assemelhando,
onde águas paradas impedem a proliferação de alternativas.
Se a pluralidade democrática é a causa original da dicotomia, o centro só
existe porque existe dicotomia. É por essa razão que o centro não escapa à sempiterna
crise que o diálogo político encerra. Onde existem esquerda e direita é natural que se
forme um centro pois que os movimentos, mesmo que institucionalizados em
partidos, também encerram histórias de faccionalismos, grupos e oposicionistas.
Partidos que não aceitam o pluralismo interno da esquerda ou da direita logo
patrocinam os Gulags da história e as perseguições, recriando, ironicamente, um
centro despótico.
A sempiterna crise que define a transformação constante dos conceitos de
igualdade e liberdade tem também um efeito sobre os centros. Baseados no princípio
da incerteza estes são, tal como a dicotomia, lugar de concórdia e discórdia, o que
apenas atesta que a política é, e parafraseando Carl Schmitt, uma arte interminável.

Referências Bibliográficas

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O CENTRO, ENTRE RESPEITO E
CONSIDERAÇÃO

Laurent de Briey 13

Marjorie Legendre 14

Introdução

A revitalização da clivagem esquerda – direita é uma das consequências


indiretas da crise económica. As dificuldades orçamentais com as quais os Estados se
vêem confrontados colocam na ordem do dia uma oposição clássica entre os que
desejam reduzir prioritariamente as despesas sociais e os que privilegiam novas
13
Licenciado e Mestre em Economia, pela Universidade Católica de Lovaina, Bélgica. Doutorado em
Filosofia, pela mesma Universidade. Professor de Filosofia no Departamento de Ciências Políticas e
Sociais da Universidade de Namur, na Bélgica. É também investigador convidado no Centre de
Recherches en Éthique da Universidade de Montreal, Canada.
14
Licenciada em Ciência Política pela Instituto de Estudos Políticos de Paris. Mestre em Relações
Públicas pela mesma Universidade. Frequência de Doutoramento no Departamento de Ciências
Políticas e Sociais e membro da Cátedra Tocqueville em política de segurança, da Universidade de
Namur, na Bélgica. Licenciatura na Faculdade Livre de Teologia Evangélica de Vaux-sur-Seine, em
França.
receitas. Uns entendem que se deve favorecer os que «trabalham», que estão na
origem da criação da prosperidade e cujo mérito deve ser reconhecido. Os outros
apelam para a justiça social, para a necessidade de proteger os mais fracos e para a
contribuição dos que estão «mais abonados».

Neste contexto, o centro parece confinado a um papel de árbitro. Exprime a


inevitável procura de um compromisso entre aumento de receitas e redução de
despesas. Constitui a resultante da relação de forças entre a direita e a esquerda.
Aparece deste modo como uma categoria residual.

Por mais comum que seja esta perceção do centro, ela não deixa de ser
paradoxal, uma vez que se as palavras têm um sentido, o centro deveria ser o ponto
fixo em torno do qual a política se manifesta. Etimologicamente, a palavra centro
deriva do grego «kentron» cuja tradução latina «centrum» designa o ramo fixo de um
compasso à volta do qual gira o outro, ou o meio de uma figura geométrica. 15 Poder-
se-ia no entanto estabelecer um inventário de fórmulas, umas mais desvalorizantes do
que outras, desta massa política não identificada, presa, de acordo com Pierre Abelin,
«entre os dois maxilares de um crocodilo».16

Esta visão decorre, parece-nos, de uma falta de investimento da teoria política,


de um défice de conceptualização da noção de «centro». Com efeito, se encontramos
facilmente corpus teóricos à esquerda17 e à direita (ainda que mais dificilmente), 18 ao
centro a situação é rara. Há pensadores de referência à esquerda (Rousseau, Marx, etc)
e à direita (Burke, Hayek,etc) que nos ajudam a identificar, comparativamente, o
«temperamento» característico de cada bloco.19 Mas qual seria um autor de referência
para o centro? Sabe-se, finalmente, identificar ideologias de direita (conservadorismo,

15
Lamarque, G., “La Monarchie de Juillet : une monarchie du centre ? Le juste milieu :évolutions et
contradictions de la culture orléaniste Juillet 1830-Février 1848”, in Guillaume, S. (dir.), Centre et
centrisme en France, Bordeaux, MSH, 2006,. P. 13.
16
Citado por Bernstein, in Bernstein, S., « Le centre à la recherche de sa culture politique », in
Vingtième siècle, Outubro, 1994, p. 19.
17
Ver por exemplo a obra recente de Salanski, L.M., La gauche et l’égalité, Paris, PUF, 2009.
18
Ver a obra de Eatwell, R., e O’Sullivan, N., The nature of the right :European and American politics
thought since 1789, London, Pinter, 1989.
19
É a orientação de d’A.-G. Slama, Les chasseurs d’absolu. Genèse de la gauche et de la drooite, Paris,
Grasset, 1980.
neo-liberalismo, fascismo) e ideologias de esquerda (anarquismo, socialismo (s),
etc),20 mas qual seria a ideologia do centro?

Encontramos por outro lado uma quantidade de obras que analisam o


21
centrismo de um ponto de vista histórico e “politológico” definindo-o ora como
uma estratégia, ora como uma prática de governo. Como estratégia, o centrismo
corresponde à posição de algumas correntes ou personalidades, que, pouco à vontade
no seio de coligações de que fazem parte ou críticas para com os constrangimentos do
sistema eleitoral bipolar22 se situam na sua margem e se apresentam como uma
«ponte» para a união adversária: constituem a direita da esquerda (centro-esquerda) e
a esquerda da direita (centro-direita). Esta definição é problemática na medida em que
tende a excluir toda e qualquer existência de um centrismo claramente individualizado
em benefício de um universo de contornos difusos em que as cores vivas da direita e
da esquerda se esmaecem ao ponto de se confundir: «o centro não existe. Ou, para ser
mais exacto, só existe como álibi para a mediocridade».23
Como prática de poder, o centrismo está associado à ideia de moderação.
Sendo o universo político eminentemente conflituoso, o centrismo é desde logo
facilmente fustigado pela sua suposta incapacidade de tomar decisões corajosas
necessárias à adaptação da sociedade á evolução do mundo: «o centrismo gestionário
não seria nada mais, em relação ao poder, do que um pântano cujo imobilismo
constituiria o modo normal de ação».24 Esta imagem negativa do centro não é nova: é
mesmo contemporânea do seu aparecimento na cena política. Lamarque faz a seguinte
precisão: «o dealbar do século XIX prefere aliás utilizar, na sua definição, os
qualificativos de «pântano», «planície» ou «ventre» para uma política» ou «um
partido» que se situa ao centro».25
20
Parenteau, I., e Parenteau, D., Les idéologies politiques : le clivage gauche-droite, Québec, PU du
Québec, 2008.
21
Duverger, M. , “L’etérnel marais. Essai sur le centrisme français”, in Revue française de science
politique, nº. 1, 1964, pp. 33-51; Guillaume, S.(dir.), Le centrisme en France aux XIX.ème et XX. ème
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démocratique. Une formation du centre (1901-1920), Rennes, PUR, 2003.
22
Dury, M., La droite et la gauche. Les lois de la représentation politique, Paris, Ed. ESKA, 2001.
23
Jean-Pierre Chevènement citado por Bernstein, S.ibidem, p. 20.
24
Bernstein, S., o.c., p. 21.
25
Lamarque, G., in Guillaume, S. (dir.), Le centrisme en France, o.c., p. 13.
Deste tipo de análise, resulta uma coleção de estudos histórico – políticos de
«momentos centristas».26 No entanto, um grande número dos casos de estudo
propostos dizem respeito efetivamente a «coligações governamentais» centristas,
agrupando partidos moderados de direita e de esquerda. Este tipo de configuração é
típico de regimes parlamentares com sistema eleitoral proporcional como a Alemanha
ou a Bélgica. É também muito visível nos momentos de crise política em que os
extremos põem em perigo a estabilidade democrática, decidindo então os partidos
políticos moderados fazer frente às tentativas de subversão. Esta perspetiva é histórica
e politicamente interessante mas é conceptualmente vazia. Esta desde logo nos
antípodas da nossa orientação neste nosso contributo: interrogarmo-nos sobre a
possibilidade de uma definição conceptual do centro.

1-A dupla tradição centrista na Europa

Poderíamos ser tentados a ver na existência na Europa de uma muito longa


tradição centrista – dir-se-ia uma dupla tradição centrista: democrata -cristã e radical –
um argumento liminar a favor de uma definição positiva do centro. Estas tradições
tentaram, desde o século XIX, com maior ou menor sucesso, efetuar uma síntese entre
a esquerda e a direita e desenhar soluções consensuais, no sentido de «democráticas».
A dificuldade para o analista de perceber à sua justa medida um centro autónomo
também é igualmente dupla.
Em primeiro lugar, as duas culturas políticas que se reclamam do centro têm
uma herança histórica, referências doutrinais e valores profundamente diferentes. 27 O
radicalismo corresponde a uma corrente progressista surgida no século XIX entre os
republicanos da Europa por oposição às monarquias reinantes. Constitui a este nível a
primeira esquerda histórica.28 É a ascensão progressiva do socialismo no fim do
século XIX que o transcende pouco a pouco à sua esquerda e o empurra para o centro

26
Guillaume, S. (dir.), idem, p. 10.
27
Ver Bernstein, S., « L’historien et la culture politique », in Vingtième siècle, 35 (Julho-Setembro),
1992.
28
Châtelet, F., e Pisier Kouchener, E., Les conceptions politiques au XX.ème siècle, Paris, PUF, 1981, p.
124.
onde permanece sob as formas mais diversas consoante os países. Na génese do
radicalismo encontram-se nada menos do que três teorias filosóficas e dois
acontecimentos históricos maiores: a Revolução inglesa de 1688 e a Revolução
francesa.29 De um ponto de vista teórico, combinam-se o progressismo das Luzes, tal
como é expresso por Locke, o utilitarismo de Jérémie Bentham e o empirismo
filosófico de John Stuart Mill.30 O resultado é uma filosofia progressista, liberal e
democrática que se traduz por uma defesa do parlamentarismo considerado como a
expressão mais adequada do ideal de soberania da nação, uma doutrina social original
de promoção pelo trabalho, a poupança e a escola e, finalmente, uma filosofia das
relações internacionais rejeitando a um tempo o antipatriotismo da extrema-esquerda
e o militarismo da direita nacionalista. O empenho resoluto no poder do radicalismo é
acompanhado no entanto por uma «vontade de cálculo e de legitimação» e de um
«experimentalismo» prático que lhe valem a crítica de oportunismo e de
indeterminação.31 Châtelet et Pisier Kouchner vêem antes nisso as consequências de
uma ambiguidade doutrinal, de um «idealismo mal ajustado».32
A democracia – cristã,33 por seu lado, nasceu enquanto força política moderna
no fim do século XIX.34 Ela exprime um desejo de conciliação dos princípios do
catolicismo, sobretudo o reformismo do cristianismo social e da herança da
Revolução francesa em matéria de soberania nacional e de expressão parlamentar
desta última.35
O sistema doutrinal da democracia cristã consiste num conjunto de contributos
sucessivos mesclados, por vezes contraditórios.36 Nele se distinguem primeiro os

29
Châtelet, F., e Pisier Kouchner, E., o.c., p. 131.
30
Nas alas direitas dos partidos socialistas de Itália, de Espanha, da social-democracia alemã, nos
diversos movimentos e partidos republicanos, no socialismo à escandinava, e entre alguns
democratas americanos. Para a França, Rémond nota que a fronteira entre esquerda e direita passa
doravante pelo radicalismo, com radicais de direita e de esquerda. Rémond, R., Les droites
aujourd’hui, Paris, Seuil, 2007, p. 246.
31
Bernstein, S., Ruby, M. (dir.), Un siècle de radicalisme, Villeneuve d’Ascq, PU du Septentrion, 2004,
p. 19.
32
Châtelet, F., e Pisier Kouchner, E., o.c., p. 126.
33
Aconselhamos sobre o assunto Durand, J.-D., L’Europe de la Démocratie chrétienne, Paris, Ed.
Complexe, 1995.
34
Léon XIII recusa, em« Inter sollicitudines » (1892),a aliança forçada do trono e do altar. Os cristãos
estão desde logo convidados a defender a sua conceção de sociedade do interior do sistema
democrático.
35
Ver Delbreil, J. C., Centrisme et démocratie chrétienne. Le Parti Démocrate Populaire des origines
au MRP 1919-1944, Paris, Publications de la Sorbonne, 1990. 
36
Châtelet, F., Pisier Kouchner, E., op. cit., p. 111.
textos sagrados, a tradição dos Padres e Doutores da Igreja, e o magistério pontifício.
Em seguida encontram-se os pensadores e políticos católicos do século XIX, os
contributos do pensamento protestante, os filósofos cristãos do século XX, como
Jacques Maritain, Emmanuel Mounier, Henri Bergson, Etienne Borne, Nicolas
Berdiaev, etc. e as experiências políticas como o popularismo de Luigi Sturzo. Para
além destes contributos «cristãos», é preciso finalmente acrescentar os que pertencem
à corrente laica e republicana, do liberalismo e do socialismo democrático. Ao
Reivindicar-se do humanismo democrático, a democracia – cristã defende uma
conceção eminentemente ética da política.37 Ela quer colocar-se para além da
clivagem esquerda -direita, combatendo tanto o individualismo quanto o coletivismo,
em nome de uma ética da pessoa.38 Ela fixa-se como objetivo responder ao conjunto
das suas necessidades (materiais e não – materiais), criando as condições de uma vida
digna, autónoma, por uma articulação do conservadorismo – nomeadamente a defensa
de corpos intermédios39 – e da justiça social, preconizando um certo intervencionismo
estatal de um ponto de vista económico. Finalmente, a sua abertura ao universalismo e
a sua reflexão sobre os meios de estabelecimento de uma paz duradoura levam os
democratas – cristãos a advogar a criação de comunidades regionais supranacionais 40:
regionais para a identidade comum, supranacionais para ultrapassar a lógica
nacionalista belicosa.
A segundas razão pela qual uma justa apreciação é difícil prende-se com o
facto de que as soluções centristas foram não raro postas à prova em aliança com a
direita ou a esquerda de que incarnam uma visão moderada. Assim, em virtude das
suas origens religiosas, das suas alianças e do seu eleitorado, a democracia -cristã é
geralmente classificada como centro-direita, sugerindo-se implicitamente que é, in
fine, uma família de direita. Inversamente, o radicalismo foi amiúde qualificado como
sendo de esquerda em virtude do seu anticlericalismo, apesar de os radicais serem

37
Châtelet, F., Pisier Kouchner, E., op. cit, p. 93
38
Ver a propósito Lacroix, J., Le personnalisme, sources, fondement, actualité, Lyon, Chronique
Sociale
1981.
39
Respondendo o homem à sua essência apenas na participação na vida das suas comunidades
primeiras de pertença (regiões, professores, famílias), elas devem contribuir ao seu nível para a
elaboração do Bem comum.
40
Sublinhar-se-á o papel importante desempenhado pelos democratas – cristãos na construção
europeia.
defensores da propriedade privada e da livre empresa. Vê-se aqui o risco de confusão
entre topografia política e topografia conceptual: a necessidade institucional e/ou
eleitoral das alianças cria uma presunção de pertença que classifica politicamente – o
que é legítimo – mas também com demasiada frequência filosoficamente – o que é
menos legítimo – partidos que, na realidade, se pretendem portadores de um projeto
autónomo.
Demonstrar a existência de uma autêntica especificidade exige todavia a
identificação do que conceptualmente distingue o centro da direita e da esquerda. A
coerência e a estabilidade da esquerda e da direita assentam numa noção unificadora,
como a igualdade para a esquerda e o mérito para a direita. A coerência do centro
deve portanto ser encontrada em torno de um conceito articulado ou de conceitos
articulados, em relação tanto à esquerda como à direita.

2-O centro como terceiro incluído ou inclusivo

Uma tal orientação inscreve-se na senda dos trabalhos de Norberto Bobbio e


da sua tentativa de dar uma definição substantiva da clivagem esquerda – direita. A
nossa orientação apoia-se não só nesta definição à qual voltaremos mais adiante, mas
inscreve-se igualmente no que Bobio descreve como a assimilação do centro a um
terceiro inclusivo.
No primeiro capítulo de «Direita e esquerda. Ensaio sobre uma distinção
política», Bobbio distingue com efeito duas conceções possíveis de centro: ora uma
«terceiro incluído», ora como «um terceiro inclusivo».41 Encarar o centro como
«terceiro incluído» supõe uma visão em que, perante o binómio esquerda – direita, o
centro corresponderia a um espaço intermédio. O centro não tem portanto existência
por si próprio, mas unicamente em relação a uma esquerda e uma direita que
funcionam como um par de contrários, de que o centro constitui o espaço entre os
dois42, assim como o crepúsculo só pode existir porque o dia e a noite se distinguem
um do outro.
41
Ver Bobbio, N., Droite et gauche. Essai sur une distinction politique, Paris, Editions du Seuil,
1996, p. 45-51.

42
Ver Guillaume, S., Garrigues, J., Centre et centrisme en Europe, op.cit., p. 18.
É a conceção alternativa do centro que nos interessa, a que vê nele o terceiro
inclusivo. Enquanto o terceiro incluído «procura um espaço entre dois opostos e,
introduzindo-se como algo situado entre um e outro, não os elimina mas afasta-os,
impedindo assim que se toquem (…); ele (o terceiro inclusivo) evita a alternativa
radical direita ou esquerda e (…) tende a ir além dos dois opostos englobando-os
numa síntese superiora e portanto anulando-os como tais». Dito de outro modo, o
terceiro incluído é uma via média enquanto o terceiro inclusivo é uma via alternativa
que transforma «estas duas totalidades exclusivas (esquerda e direita), não visíveis
simultaneamente (como o anverso e o reverso de uma medalha) em duas partes de um
todo, numa totalidade dialetica». Bobbio define esta última como «o resultado da
síntese de duas partes opostas de que uma é a afirmação ou tese e a outra a negação ou
antítese e a terceira, enquanto negação da negação é um quid novum que não se
apresenta como um composto, mas como uma síntese». A totalidade dialetica
distingue-se a um tempo da totalidade mecânica «na qual o todo é a combinação de
partes que se podem reunir porque compatíveis» e da totalidade orgânica «em que as
diferentes partes são função do todo e não são portanto antitéticas mas
convergentes.». 43
Enquanto um «centro – terceiro incluído» se define pela fórmula «nem direita
nem esquerda», um «centro – terceiro inclusivo» define-se pela expressão «direita e
esquerda». O primeiro apresenta-se antes de tudo como uma prática política sem
doutrina, ou pelo menos por defeito, consoante as forças políticas presentes num dado
momento. Inversamente, o terceiro inclusivo apresenta-se antes de tudo como uma
doutrina autónoma mas à procura de uma «praxis que, no momento em que é posta à
prova, se transforma em posição centrista». É aí que está a dificuldade: abster-se de
confundir nível político e nível conceptual. Politicamente, com efeito, terceiro
incluído e terceiro inclusivo situam-se no centro do xadrez político. As políticas que
propõem seriam políticas «centristas» no sentido de «moderadas». No entanto,
conceptualmente, terceiro incluído e terceiro inclusivo procedem de uma orientação
radicalmente diferente: enquanto o primeiro se contenta com uma posição «entre»,
portanto com uma definição negativa (no vago), o segundo procura posicionar-se
«para além de», com uma definição positiva. Este último é um compromisso entre
43
Bobbio, N., op. cit., p. 49. A referência é válida para o conjunto das citações do parágrafo.
dois extremos, «uma recusa e uma separação simultâneas»: ele «descobre a sua
própria essência, expulsando esses extremos». O primeiro, inversamente, «alimenta-se
do conflito» com o fito de propor uma superação, ou seja «uma aceitação e uma
supressão simultâneas»; em suma, esquerda e direita «são mantidas na sua oposição
mas reaproximada (s) na sua interdependência e suprimida (s) no tocante à sua
unilateralidade». 44
Pode compreender-se assim o facto de que os partidos liberais – o liberalismo
em termos mais gerais – sejam amiúde considerados como ocupando o centro da
clivagem. Devido à sua desconfiança relativamente ao político, o que é próprio do
liberalismo é definir-se pela negativa. Nesta vertente, corresponde bem à definição de
um centro – incluído. Representa o ponto de junção entre a esquerda e a direita e pode
portanto «inclinar-se tanto para a direita (até ao centro – direita) quanto à esquerda
(até ao centro – esquerda)».45
Na perspetiva de uma definição substantiva do centro, é portanto a conceção
do centro como centro – inclusivo que privilegiamos, como autêntica síntese da
esquerda e da direita. Mesmo assim, é preciso identificar primeiro o significado dos
conceitos de esquerda e de direita.

3-A esquerda e a direita segundo Norberto Bobbio

No seu livro, Direita e esquerda, Bobbio defende uma definição essencialista


da distinção esquerda – direita com base na oposição entre igualdade e desigualdade.
46

Ele considera com esta ideia que a aspiração à igualdade é a razão de ser dos
movimentos de esquerda como a formalização da opinião comum. Após uma análise
47
de diferentes autores (Galeotti, Cofrancesco, Laponce e Revelli), Bobbio verifica
que, apesar da diversidade de pontos de vista, o tema da oposição entre visão
44
Bobbio, N., op. cit., p. 50. A referência é válida para o conjunto das citações deste parágrafo.
45
Parenteau, D., Parenteau, I., Les idéologies politiques : le clivage gauche-droite », Québec, Presses
Universitaire du Québec, 2008, p. 21.
46
Bobbio, N., op. cit., p. 117-133 e 145-154.
47
Bobbio, N., op. cit., capítulos 4 e 5, pp.88 a 116.
horizontal ou igualitária da sociedade e visão vertical ou desigual da sociedade
aparece frequentemente. Ele nota também que, dos dois termos, é a esquerda que
parece ter guardado o valor mais constante, parecendo a direita menos unificada:
«Dir-se-ia quase que o par gira em torno do conceito de esquerda e que as suas
variações estão sobretudo do lado das diversas oposições possíveis ao princípio de
igualdade, seja o princípio desigual, o princípio hierárquico, ou o princípio
autoritário».48
Enquanto o historiador Roger Eatwell afasta este critério em virtude do seu
caráter multidimensional e evolutivo,49 Bobbio considera que é precisamente esta
qualidade que lhe permitiu sobreviver às mudanças históricas, sendo a história
50
moderna aliás, aos seus olhos, a de uma extensão da igualdade, tornando-se
injustificados, à medida da evolução da sociedade, os critérios de desigualdade que
pareciam pertinentes: assim é o caso da extensão do sufrágio, da emancipação
feminina, etc.
O fundamento da capacidade de renovação do critério de igualdade estriba-se
em que o valor da igualdade está vinculado à pertença comum à espécie humana.
Assim, enquanto existirem desigualdades, esquerda e direita continuarão a opor-se: «o
ideal igualitário de esquerda permanece como uma estrela polar para a qual se
continua a olhar. Nunca tanto como na nossa época foram postas à discussão as três
principais fontes de desigualdade: a classe, a raça, o sexo» .51
A oposição entre a esquerda e a direita assentaria então em definitivo «numa
avaliação contrastada daquilo que deve ser considerado como pertinente para
justificar uma discriminação»,52 ou seja na questão de saber se estes ou aqueles traços
característicos de indivíduos ou grupos merecem ou não um tratamento igual. Sendo
igualitária, a esquerda favoreceria políticas visando atenuar as diferenças, enquanto a

48
Bobbio, N., op. cit., p.115.
49
Eatwell, R., O’Sullivan, N. (éd.), The nature of the right: European and American politics and
political thought since 1789, London, Pinter, 1989, p. 53-55.
50
Bobbio, N., op. cit., p.153-4.
51
Bobbio vai mesmo ao ponto de salientar a extensão sob o impulso de um utilitarismo hedonista
como o de Peter Singer, do ideal de igualdade para além dos confins do género humano, “uma
extensão fundada no tomar em linha de conta que os animais são iguais a nós, humanos, pelo menos
na capacidade de sofrer”. Ver Bobbio, N., op.cit., p. 154. Há aqui como que um paradoxo, uma vez
que a igualdade é geralmente atribuída ao género humano.
52
Bobbio, N., op. cit., p. 130.
direita, sendo desigualitária, favoreceria políticas tendendo a encorajá-las (ou pelo
menos não favoreceria políticas visando atenuá-las).53
A análise de Bobbio é convincente, mas aparece mais como uma análise
centrada na esquerda, relegando a direita para uma definição pela negativa. Bobbio
está aliás consciente disso uma vez que insiste, por várias ocasiões, no facto de que a
assimilação da direita à defesa das desigualdades não implica um julgamento moral e
que é possível dar dessa postura uma definição positiva: «da mesma maneira que se
pode dar uma interpretação negativa da igualdade como nivelamento, pode dar-se
uma interpretação positiva da desigualdade, como reconhecimento da singularidade
irredutível de todo e qualquer indivíduo»54. Seja ela mais conservadora ou mais
liberal, «a direita não é desigualitária por perversidade (…), mas porque considera que
as desigualdades são não só impossíveis de eliminar – ou só o são asfixiando a
liberdade – mas também úteis na medida em que provocam uma luta incessante pela
melhoria da sociedade» 55.
A diferença entre esquerda e direita reside em definitivo no julgamento
diferenciado sobre a evidência de que «os homens são ao mesmo tempo iguais e
desiguais entre si»56. Com efeito, considerados enquanto espécie, os homens são
iguais uma vez que são todos animais racionais; mas considerados enquanto
indivíduos, no seio da espécie, são desiguais. Desde logo, duas inclinações são
possíveis, representadas respetivamente pela esquerda e pela direita: pensar que os
homens são mais iguais que desiguais. Mais ainda, « é correto denominar como
igualitários os que põem ênfase antes de mais no que aproxima os homens para
permitir uma boa vida em comum e, ao contrário, denominar como desiguais aqueles

53
Se Bobbio não estabelece esse elo, é notável que a definição da clivagem esquerda – direita
segundo a relação com a igualdade permite articular esta definição substantiva da esquerda e da
direita com uma perspetiva marxista assimilando a esquerda à defesa das classes desfavorecidas e a
direita à das classes privilegiadas. Sendo as classes desfavorecidas precisamente as que sofrem as
desigualdades presentes no seio da sociedade, a luta contra estas desigualdades coincide com a
defesa dos seus interesses. Inversamente, um partido que considera que estas desigualdades são o
reflexo legítimo das diferenças de mérito e de talento das pessoas adopta um posicionamento político
conforme aos interesses das pessoas que beneficiam das desigualdades sociais. É sem dúvida porque
a clivagem esquerda – direita coincide também com a oposição entre classes de interesses que ela é
predominante no campo político.
54
Bobbio, N., op. cit., p. 151
55
Bobbio, N., op. cit., p. 32
56
Bobbio, N., op. cit., p. 126.
que, partindo do mesmo pressuposto, consideram mais importante, para viver bem
juntos, dar prioridade à diversidade» 57.

4-Uma síntese possível: um respeito igual mas uma consideração


diferenciada

Se efectivamente os homens são a um tempo iguais e desiguais entre si, ou,


para dizer de outro modo, se os homens entendem ser ao mesmo tempo reconhecidos
como membros iguais da espécie humana e como pessoas singulares, irredutíveis
umas às outras, não teremos de ver na esquerda e na direita posições que - embora
tendo cada uma a sua quota-parte de verdade - se afundam num unilateralismo
injustificado? Uma resposta afirmativa seria o que caracteriza o centro aos olhos de
Jean-Claude Casanova. Num artigo breve mas vivo58, ele considera que o centro
consiste em conciliar a justiça e a fidelidade, que assimila respetivamente à esquerda e
à direita, sem que se possa ver nestes considerandos uma tese verdadeiramente
diferente da de Bobbio. Com efeito, para Casanova, se a ideia central da esquerda é a
justiça, desta decorre a preocupação da igualdade, enquanto a ideia central da direita é
a fidelidade aos valores constitutivos da identidade coletiva, isto é, a base normativa
que justifica precisamente as desigualdades. A partir daí, interroga-se: «As duas
ideias, diretoras da esquerda e da direita, excluem-se uma à outra? Quem não gostaria
de ser ao mesmo tempo fiel e justo?». Para Casanova, a aspiração do centro decorre
precisamente desta evidência. Este deve portanto ser considerado como a terceira
força inclusiva, definida pela fórmula: «e…e».
A questão que nos preocupa desde logo é de determinarem que medida é
possível ser, a um tempo, fiel e justo e sensível às desigualdades e ao mesmo tempo
preocupado em reconhecer a singularidade de cada um. Isto pede a identificação da

57
Bobbio, N., op. cit., p. 127.
58
Casanova, J.-C., « Centre », in Commentaires, Número especial 30º aniversário 2008, p. 44-46.
parte de verdade tanto da esquerda como da direita com o fito de sublinhar,
simultaneamente, o que uma e outra esquecem ao tornarem unilateral a sua lógica. O
centro só terá consistência própria se não for um simples pólo entre duas vertentes
aceitando um certo grau de desigualdade. Deve exprimir uma síntese de duas
exigências normativas que se situam em dois planos distintos.
A teoria do reconhecimento e, em particular, os trabalhos de Axel Honneth
oferece-nos o quadro conceptual necessário para identificar esses dois planos59.
Honneth, inspirando-se em Hegel, distingue três formas fundamentais da procura de
reconhecimento de cada indivíduo. Cada indivíduo aspiraria a ser reconhecido [1]
como um indivíduo único, distinto de qualquer outro ser humano, no seio das relações
afetivas, [2] como um membro da espécie humana ao mesmo título que todo e
qualquer ser humano, e[3] como uma pessoa que tem um valor singular que se reflete
nos seus atos. A segurança de desfrutar da afeição de outrem e de sentir esta tão
incondicional quanto possível – sendo o amor parental o paradigma – constitui a base
da confiança em si e da representação de si como um indivíduo particular ao qual
nenhum outro pode ser substituído. O segundo modo de reconhecimento exprime-se
quanto a ele no igual respeito devido a todo e qualquer ser humano enquanto
participante da universalidade da espécie humana. Concretiza-se na igual dignidade
de todo o ser humano. Finalmente, a última forma de reconhecimento exprime a
expetativa de ser considerado socialmente em virtude da identidade singular que se
revela através dos nossos comportamentos e realizações.
Se o reconhecimento afetivo releva da esfera privada, as duas outras formas de
reconhecimento têm uma dimensão pública. É evidente para a exigência de respeito
ligada à segunda forma de reconhecimento que se concretiza juridicamente na
igualdade de direitos subjetivos. Mas é igualmente o caso da terceira forma de
reconhecimento que é dependente do sistema de valores dominante numa coletividade
e à medida do qual uma pessoa verá ser-lhe concedida uma certa consideração social.
O respeito e a consideração remetem para normatividades específicas60 : se o direito
universal a um respeito igual é concebível, a consideração social é necessariamente

59
Ver Honneth, A., La lutte pour la reconnaissance, Paris, Cerf, 2000.
60
Ver de Briey, L., Ferrarese, E., « Reconnaissance et justice. De la normativité de l’amour et de
l’estime», in Ethique publique, 9 (1), 2007, p. 127-143
diferenciada, deve «merecer-se». A distinção entre respeito e consideração remete
assim para lógicas normativas que vão ao encontro da clivagem esquerda – direita. A
«parte de verdade» da esquerda seria assim a de dar conta do igual reconhecimento
jurídico devido a cada ser humano na qualidade de participante da universalidade
humana, enquanto a da direita seria a de estar atenta à aspiração do reconhecimento
social de cada pessoa. Todavia, esquerda e direita sofreriam desde logo de uma
insuficiência simétrica: a generalização ao conjunto do campo social da
normatividade própria ao respeito e à consideração respetivamente. O centro deveria
por seu lado reconhecer a exigência de respeito e a aspiração à consideração social
como determinantes da condição humana irredutíveis entre si.
Isto não é todavia suficiente para propor uma definição do centro como um
autêntico terceiro inclusivo. Com efeito, se a exigência de respeito e a aspiração à
consideração se revelam inconciliáveis, a posição centrista apenas corresponderá à
procura de um compromisso entre duas lógicas normativas fundamentalmente
contraditórias. É pois necessário poder distinguir conceptualmente o que deve ser
regido pelo princípio da igualdade própria à lógica do respeito e o que releva do
campo da consideração social relativa ao reconhecimento do valor singular de uma
pessoa.
O elemento que falta é fornecido por uma outra distinção clássica em filosofia
política, a do justo e do bem 61. Para exprimi-lo de modo intuitivo, o justo corresponde
à repartição equitativa de um conjunto de recursos entre os indivíduos, enquanto o
bem remete para a interrogação sobre o uso que deveria ser feito desses recursos. O
justo entende pois assegurar a cada um as condições necessárias ao cumprimento da
sua liberdade, enquanto o bem enuncia os valores que devem orientar a nossa vida.
Uma grande diversidade de teorias da justiça distinguem-se umas das outras em
função, por um lado do critério de equidade (mais ou menos fortemente igualitário)
acolhido e, por outro lado, da extensão dos recursos considerados (dos direitos
privados e políticos aos recursos sócio – económicos, ou mesmo culturais), enquanto
nas sociedades contemporâneas se caraterizam pela importante pluralidade das

61
Ver, por exemplo, Rawls, J., « La priorité du juste et les conceptions du Bien » in Justice et
démocratie, Paris, Seuil, 1993, p. 287-320.
conceções do bem presente no seu seio, sem que essa pluralidade impeça todavia a
predominância de umas sobre as outras.
Um elo entre o justo e o bem, por um lado, o respeito e a consideração por
outro, pode facilmente ser sugerido. Enquanto o respeito devido a cada um é
determinado por princípios deontológicos de justiça, a consideração é, quanto a ela,
de natureza axiológica. Está dependente de normas axiológicas que enunciam, por um
lado, os ideais considerados socialmente constitutivos de uma vida boa e, por outro
lado, o grau mínimo expectável para a realização desses ideais. Predominando uma
rejeição desses ideais ou uma realização insuficiente dos mesmos, estaríamos perante
uma fonte de desconsideração social. Inversamente, a consideração social seria a
expressão de uma excelência na realização de um ou outro desses ideais.
Um conceito de centro como síntese da esquerda e da direita emerge desde
logo. Não se trata de encontrar um compromisso entre elas, mas de defender uma
conceção igualitarista do justo, fundando essa conceção no igual respeito devido a
todo o ser humano, ainda que insistindo na necessidade de diferenciar a consideração
devida a cada um. O erro da direita seria o de considerar que a consideração social
deveria exprimir-se através de uma repartição desigual dos recursos. O da esquerda
seria o de querer, paradoxalmente, assegurar a cada um uma mesma consideração
social quando a esperança de ser considerado positivamente condicionaria o
desenvolvimento de um projeto de vida portador de sentido.
No contexto das sociedades contemporâneas marcadas por um importante
pluralismo axiológico, a preocupação fundamental para um tal centro inclusivo é
desde logo a de identificar a conceção do bem e os valores chamados a presidir aos
juízos de consideração social. Trata-se com efeito de fazer da definição desses valores
um objeto propriamente político. Enquanto a direita conservadora esperará do Estado
que ele assegure a perenidade da conceção do bem historicamente dominante e que a
exigência liberal da neutralidade axiológica do Estado não impedirá que algumas
conceções do bem se imponham de facto socialmente, um centro inclusivo entenderá
interrogar continuamente a legitimidade das conceções do bem em vigor e promover a
elaboração democrática de um projeto de sociedade em torno de valores
coletivamente escolhidos.
Conclusão

A dupla distinção respeito/consideração - justo/bem oferece a base conceptual


necessária para elaborar uma definição do centro como terceira força inclusiva.
Filosoficamente e numa perspetiva diferente da que encara o centro como um terceiro
incluído, um tal conceito de centro não se caraterizará por uma aceitação de um certo
grau de desigualdades mas de um certo tipo de desigualdades: as que não configuram
uma iniquidade na repartição dos recursos, mas que exprimem uma diferença de
consideração social.
Politicamente, a distinção só terá todavia uma real pertinência na medida em
que as diferenças de consideração social não se concretizarem em desigualdades de
recursos.62 É por essa razão que um centro inclusivo não pode restringir a vida em
sociedade a uma associação pela produção e a repartição dos recursos no seio de um
mesmo espaço territorial. Deve valorizar a participação dos cidadãos e o seu
sentimento de pertença a uma comunidade política unida pela vontade de definir,
através das instituições políticas, um projeto de sociedade. Não pode assim ser
dissociado de uma conceção republicana política que contrasta com o liberalismo
político que domina atualmente. Um prolongamento possível do presente texto seria
assim verificar a hipótese segundo a qual a distinção entre as conceções do centro
como terceiro incluído e como terceiro inclusivo remete para a oposição entre
liberalismo e republicanismo63. Uma ideologia centrista poderia pois muito bem
existir.

Tradução do francês por Fernando Couto e Santos

62
No debate orçamental atual, a resistência da direita em aceitar novas receitas não se explica apenas
por uma recusa de ver o seu conforto material diminuído mas também pelo temor de desclassificação e
perda de consideração social.
63
Sobre a nossa interpretação desta oposição ver nomeadamente, L. de Briey, Le sens du politique,
essai sur l’humanisme démocratique, Wavre, Mardaga, 2009 et « Le foulard de la parlementaire.
Républicanisme critique ou criticisme républicain » in Revue philosophique de Louvain, 109, 2011, p.
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A INTERNACIONALIZAÇÃO DA DIVISÃO

ESQUERDA-DIREITA

JEAN-PHILIPPE THÉRIEN64
64
Licenciado em Ciência Política na Universidade de Montpellier. Doutorado em Sociologia do
desenvolvimento, na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris. Foi professor no Instituto
de Estudos Políticos de Bordeaux. Foi director científico do Centro de Estudos e de Investigações
Internacionais da Universidade de Montréal, Canadá. É professor titular do Departamento de Ciência
Política da Universidade de Montréal, Canadá. Recebeu o prémio de Investigador do CERIUM
Introdução

A globalização é hoje certamente um dos assuntos mais debatidos no âmbito


das ciências sociais. No domínio das relações internacionais, por exemplo, este tema
inspirou uma serie de estudos inovadores tratando de vertentes tão diversas quanto a
segurança, a economia, o meio ambiente e a saúde. De um ponto de vista mais
abstrato, a globalização contribuiu igualmente para se voltar a questionar a separação
clássica entre o «nacional» e o «internacional». Tradicionalmente, convém lembrá-lo,
a ciência política opôs a política doméstica, da qual se dizia que era ordenada e
regulada pelo direito, à política internacional, supostamente anárquica e dominada
pelas relações de força. Desde que a globalização tornou caduca esta distinção, vários
especialistas apelam a uma melhor integração das teorias da política nacional e da
política internacional. Mas o problema persiste: como proceder para atingir um tal
objetivo?

O texto que se segue propõe uma pista para responder a esta questão. Avança a
ideia de que a política nacional e a política internacional se unem pelo facto de que
estas duas esferas de acção pública estão estruturadas pela mesma clivagem

(Centre d’Études et de Recherches Internationales), da Universidade de Montréal, Canadá, devido ao


impacto internacional da sua investigação É autor de dezenas de artigos científicos, e de alguns livros.
fundamental entre a esquerda e a direita. Não se trata obviamente de negar que
existem toda a sorte de diferenças entre o nacional e o internacional, mas antes de
demonstrar que a distinção esquerda-direita permite estabelecer uma ponte entre estes
dois universos. Retomando alguns elementos de uma investigação mais vasta, 65
começaria por expor brevemente a importância da divisão esquerda-direita no estudo
dos fenómenos políticos. Posteriormente, explicarei de que maneira o conflito
esquerda-direita estrutura três questões transnacionais particularmente importantes: a
promoção do desenvolvimento, a luta contra o terrorismo, e a proteção do meio
ambiente. Apoiando-se numa discussão destas três questões o texto conclui que a
distinção esquerda – direita oferece uma grelha de análise fecunda para compreender
a dimensão política da globalização.

A clivagem esquerda – direita

Ao verificarem que as identidades e os interesses dos atores sociais se definem


através da linguagem, os construtivistas afirmam convincentemente que a política é
amplamente um assunto de discurso e de debates. Ora, no conjunto dos debates
políticos, o que opõe a esquerda e a direita é sem dúvida o mais tenaz e o mais
fundamental.

As noções de esquerda e de direita são difíceis de definir, e este texto não pode
abordar todos os problemas colocados pela formulação de tal definição. Limitar-me-ei
a retomar a conceção proposta pelo filósofo Norberto Bobbio e que continua a ser a
mais corrente66. O fundo da questão, de acordo com Bobbio, é que a esquerda atribui
maior importância do que a direita à igualdade. Esta posição não deve ser caricaturada
de modo a fazer crer que a esquerda seria «a favor» da igualdade e a direita «contra».
Mais subtilmente, significa que não lhe concedem ambos a mesma atenção. À direita,
65
Alain Noël, e Jean-Philippe Thérien, Left and Right in Global Politics, Cambridge, Ed. Cambridge
University Press, 2008.
66
Norberto Bobbio, Left and Right : the significance of a Political Distinction, Chicago, Ed. University of
Chicago Press, 1996.
os conservadores consideram que a igualdade de oportunidades é suficiente para
assegurar o bem-estar coletivo. Mais exigente, a esquerda acredita, por seu lado, que a
igualdade de oportunidades deve ser acompanhada de uma igualdade de resultados.

Desde a revolução francesa, quando os termos foram inventados, a divisão


esquerda-direita marcou todas as grandes lutas sociais, sobretudo as que tocam ao
direito de voto, ao desenvolvimento dos partidos políticos, à afirmação dos sindicatos,
à construção do Estado-providência, e à emergência do movimento feminista. De
Anthony Downs a Anthony Giddens, passando por René Rémond, vários intelectuais
de renome sublinharam aliás o caráter central da oposição esquerda – direita. A razão
é simples: esta clivagem oferece uma via analítica a nenhuma outra comparável para
captar a atitude dos cidadãos face a uma serie de questões políticas.

É verdade que enquanto categorias de origem ocidental, os termos «esquerda»


e «direita» estão mais enraizadas nos países desenvolvidas que nos países em
desenvolvimento. No entanto, deve notar-se que em países tão diferentes tais como a
África do Sul, o Chile ou a Índia, a clivagem esquerda-direita está solidamente
estabelecida. Com efeito, sondagens realizadas nos cinco continentes levam-nos a
pensar que a divisão entre conservadores e progressistas é um subproduto da
democracia. À medida que a democracia se impõe como único regime político
legítimo, a clivagem esquerda – direita tende a universalizar-se.

A distinção esquerda – direita constitui apenas uma metáfora uma vez que, no
mundo real, as opiniões políticas exprimem-se mais sob a forma de um espectro que
sob a forma de uma dicotomia. Além disso, o significado de «esquerda» e «direita»
varia consoante tempo e o espaço. Seja como for, é notável verificar que, a apesar de
todas as imprecisões que a rodeiam, a oposição esquerda – direita continua a estar no
centro das discussões que animam a filosofia política, a política comparada e a
sociologia política. Neste contexto, a quase ausência das noções de «esquerda» e de
«direita» no campo das relações internacionais tem algo de surpreendente. No fim de
contas, os temas da igualdade e da justiça social que definem a clivagem esquerda –
direita estão igualmente no centro de numerosas questões internacionais. De resto,
poucos contestarão a ideia de que a esquerda e a direita interpretaram os conflitos
Leste-Oeste e Norte-Sul das últimas décadas de maneiras bem diferentes. É tempo,
sem dúvida, de que esta banal constatação dê lugar a uma reflexão mais sistemática.
Debruçando-se sobre três aspectos maiores da globalização, o resto do presente texto
propõe orientar-se nessa direção.

A promoção do desenvolvimento.

Há mais de cinquenta anos que a questão do desenvolvimento internacional


nunca deixou de ser atravessada pelas tensões esquerda – direita. Se é verdade que o
debate se atenuou após a queda do comunismo, ele continua ainda hoje bem vivo.
Assim, a perspetiva liberal das instituições de Bretton Woods (Fundo Monetário
Internacional, Banco Mundial, e Organização Mundial do Comércio) e do mundo dos
negócios, continua a distinguir-se da perspetiva social-democrata geralmente adotada
pela ONU e a comunidade das organizações não – governamentais (ONG). Enquanto
uns defendem os valores do crescimento económico e do livre funcionamento dos
mercados, os outros insistem na necessidade de uma repartição mais equitativa da
riqueza e de um maior intervencionismo dos poderes públicos.

Esta clivagem esquerda – direita repercute-se sobretudo na análise que é feita


da globalização económica. De um modo geral, a direita considera que a integração
dos mercados e a expansão das trocas oferecem os meios mais eficazes para acelerar o
desenvolvimento e melhorar o destino das populações mais desfavorecidas. O
comércio, ouve-se dizer com frequência, «é bom para o crescimento» e o crescimento,
«é bom para os pobres». Para justificar semelhantes posições, é dito não raro que é
graças à sua política de abertura que economias emergentes como a China e a Índia
conseguiram reduzir os seus níveis de pobreza de maneira tão espetacular desde o
início dos anos oitenta.

Por seu lado, a esquerda vê a dinâmica do desenvolvimento sob uma luz


diferente. Mesmo reconhecendo que a globalização contribuiu para o enriquecimento
de algumas sociedades e alguns indivíduos, ela insiste sobretudo na ideia de que os
benefícios do processo estão muito mal repartidos. O discurso progressista denuncia o
facto de que dando demasiada importância aos mercados, as políticas do FMI e da
OMC originaram custos sociais desmesurados em vários países pobres. Para a
esquerda, o aumento das desigualdades (entre os países e no interior de inúmeros
países), ilustra na perfeição os insucessos de uma globalização assente na lógica do
capitalismo.

Para além da sua interpretação divergente da história recente do


desenvolvimento, conservadores e progressistas opõem-se também nas suas
prescrições políticas. Pondo ênfase na margem de manobra de que dispõe qualquer
governo, a direita afirma que os países em desenvolvimento deveriam começar por
arrumar as respectivas casas. Nesta ótica, os países do Sul são levados a empreender
reformas internas de envergadura tendo por objetivo a boa governação, a luta contra a
corrupção, o equilíbrio orçamental e o apoio ao setor privado. Comparativamente, as
mudanças desejadas pela direita a nível internacional são muito modestas e limitam-se
essencialmente a ajustamentos de fine-tuning.

Por seu lado, a esquerda considera que os obstáculos ao desenvolvimento dos


países pobres provêm sobretudo das políticas dos países ricos e de um ambiente
exterior hostil. A este título, insiste há muito para que os governos do Norte respeitem
as suas velhas promessas em matéria de ajuda externa. Mais amplamente, a ONU e as
ONG julgam que arquitetura internacional do desenvolvimento tem falta de
legitimidade. Exigem, em uníssono, que o respeito dos direitos humanos se una aos
objetivos perseguidos pelas grandes organizações económicas internacionais. A
esquerda propõe igualmente ambiciosas inovações institucionais como o lançamento
de um Plano Marshall para os países em desenvolvimento, a criação de um sistema
de taxação mundial e a de um Conselho de segurança económica. Até à data, todas
estas ideias receberam um acolhimento no mínimo reservado junto dos meios
conservadores.

De uma certa maneira, a esquerda e a direita concordam em reconhecer que a


divisão Norte–Sul foi afetada por duas décadas de globalização. A sua análise é
todavia profundamente diferente. A direita defende uma interpretação destes assuntos
que continua a ser inspirada pela teoria da modernização e a sua conceção por etapas
da História. Esta maneira de ver sugere que o subdesenvolvimento não é uma
fatalidade e que os Estados que tomam boas decisões podem aceder à prosperidade.
Por seu lado, indignada com o facto de que 80% das riquezas são controladas por 15%
da população mundial, a esquerda é nitidamente mais contestatária e mais impaciente.
Ela sustenta que o fosso que separa os ricos e os pobres a nível global é inaceitável e
requer uma ação coletiva urgente. Todas estas divergências mostram bem que, em
suma, no domínio do desenvolvimento, a distinção esquerda–direita continua no
centro do debate político.

A luta contra o terrorismo

Desde 11 de setembro de 2001 que o terrorismo se tornou mundialmente uma


preocupação dominante. Ora, no seio das elites assim como junto da opinião público
de inúmeros países, o debate sobre esta questão construiu-se em torno da clivagem
entre conservadores e progressistas. Como no tempo da guerra fria, a luta contra o
terrorismo opõe um pouco por toda a parte falcões, que se distinguem pela sua linha
dura, e pombas, que se caracterizam pela sua vontade de compromisso.

À direita, o terrorismo é descrito como um problema de segurança ameaçando


os valores e o estilo de vida do conjunto dos países civilizados. Rejeitando a ideia de
que os governos dos países ricos possam ser responsáveis – mesmo que de forma
indireta – pelo fenómeno terrorista, os conservadores atribuem antes a sua causa a
indivíduos fanáticos e a Estados – párias. A linha dura da direita nunca se exprimiu
tão bem quanto através da política externa do presidente americano George W. Bush
(2000-2008). Convencida de que a eliminação das ameaças terroristas no estrangeiro
era essencial para a segurança nacional, a administração Bush fez da guerra ao
terrorismo a pedra angular das suas relações exteriores. Este objetivo serviu sobretudo
para legitimar a intervenção militar no Afeganistão em 2001 e o desencadear da
guerra no Iraque em 2003. No plano das fianças públicas, conduziu igualmente a um
aumento espetacular do orçamento americano da Defesa. De modo previsível, o
governo americano da época procurou apresentar a luta contra o terrorismo como
estando acima das clivagens ideológicas tradicionais. Ora, importa notar que, de entre
as democracias ocidentais, foram os governos de direita os mais numerosos a apoiar a
política externa antiterrorista dos Estados Unidos.

Na arena doméstica, as forças conservadoras reagiram ao terrorismo exigindo


um reforço apertado sem precedentes da segurança interna. Em vários sítios, a
influência da direita manifestou-se através da adoção de novas leis visando dar maior
flexibilidade à polícia e aos tribunais na perseguição aos terroristas. Vários governos
adotaram, assim, políticas para facilitar a detenção de estrangeiros e reforçar os
controlos migratórios. Considerando que o Estado de Direito estava ele próprio em
perigo pela ameaça terrorista, a direita fez não raro valer que a legitimidade das
medidas tomadas devia ser avaliada pela sua eficácia mais do que em função de
princípios jurídicos abstratos.

No outro extremo do espectro político, a questão do terrorismo deu lugar a


interpretações muito diferentes. É, alias, revelador que esta questão tenha configurado
um dos principais domínios a partir dos quais o Democrata Barack Obama, que foi
eleito presidente dos Estados Unidos em 2008, tenha procurado distinguir-se do seu
antecessor Republicano. Regularmente acusada de moleza e de falta de patriotismo, a
esquerda sustenta que o terrorismo não poderá ser reduzido a um problema de
segurança resolúvel numa perspetiva militar. A vasta maioria dos progressistas estão
convencidos de que a utilização da força armada faz o jogo dos extremistas e atiça o
ódio ao Ocidente. O seu discurso insiste pois para que a luta contra o terrorismo tome
mais em linha de conta as causas económicas e sociais do fenómeno, que dê mais
lugar à ação diplomática e que respeite mais as normas do direito humanitário
internacional.

Após ter concedido um apoio circunstanciado à intervenção militar ao


Afeganistão, a esquerda sempre pôs em causa o envolvimento do governo iraquiano
no terrorismo internacional. Desde o seu início, a operação iraquiana foi de resto
denunciada como uma violação ilegal da Carta das Nações Unidas, uma vez que não
recebera o apoio do Conselho de Segurança da ONU. Rejeitando a doutrina da guerra
preventiva, os progressistas descreveram toda a estratégia do governo americano
como uma manobra para reforçar o ascendente dos Estados Unidos sobre as
populações e os recursos do Médio Oriente. Neste contexto, não é surpreendente que
a retirada do Iraque se tenha tornado num dos compromissos-chave da administração
Obama no domínio da política externa.

No plano interno, os grupos de esquerda bateram-se para que a luta contra o


terrorismo fosse conduzida no respeito pelas liberdades civis. Do seu ponto de vista,
agir de outra forma comportaria o risco de arrastar os regimes democráticos para a via
do autoritarismo. A esquerda criticou assim severamente a falta de imputabilidade das
autoridades antiterroristas e o papel crescente do poder militar na vida política. Por
outro lado, face à multiplicação dos casos de discriminação racial para com os Árabes
e os Muçulmanos, a esquerda denunciou amiúde o facto de que a luta contra o
terrorismo havia provocado a emergência de sentimentos xenófobos contrários aos
valores democráticos mais fundamentais. Como se pode ver, o debate sobre o
terrorismo internacional opõe permanentemente valores de ordem e de justiça. A este
título, inscreve-se perfeitamente dentro dos parâmetros clássicos da clivagem
esquerda-direita.

A proteção do meio ambiente

Ao mesmo tempo que a atenção mediática de que é alvo não pára de aumentar,
diz-se por vezes que a questão do meio ambiente transcende as divisões ideológicas
tradicionais, e que um largo consenso se estabeleceu agora em favor do
desenvolvimento duradouro. Contudo, esta visão não é nada convincente. Para além
das surpreendentes alianças que por vezes originou, o meio ambiente nunca se
libertou do conflito esquerda–direita. Notemos desde logo que os partidos verdes, que
transformaram a paisagem política em vários países nos últimos vinte anos, têm a sua
origem no movimento progressista. Por outro lado, como se verá, ao lembrarmos os
grandes debates em curso mostraremos sem equívocos que a esquerda e a direita
abordam o meio ambiente de maneira contrastada.

A direita julga que as análises dos ambientalistas são, não raro, demasiado
alarmistas. Recentemente, por exemplo, inúmeros observadores deste campo punham
ainda em causa a própria existência do aquecimento climático. Essas mesmas pessoas
têm geralmente tendência para confiar no potencial da tecnologia, para resolver os
problemas que poderiam colocar no futuro a degradação dos ecossistemas e o
esgotamento dos recursos. Argumentando, por outro lado, que a proteção do meio
ambiente é responsabilidade de todos os Estados e que é preciso lutar contra a
concorrência desleal, a direita exige políticas ambientalistas muito mais estritas por
parte dos países em desenvolvimento. No fundo - sublinham os conservadores-, países
como a China e a Índia contam-se entre os maiores poluidores do mundo, enquanto
são os governos e as empresas dos países desenvolvidos que mais investem para o
desenvolvimento de tecnologias mais ecológicas.

Tanto ao nível global quanto nacional, os políticos de direita fazem valer que a
proteção do meio ambiente não deve comprometer o objectivo do crescimento
económico. Quando estava no poder, o presidente George W. Bush envidava assim
esforços para denunciar o protocolo de Kioto dizendo que este tratado ia destruir a
economia americana. Por outro lado, no programa de ação que ela privilegia, a direita
tem sistematicamente tendência a preferir as medidas voluntárias às coercitivas para
fazer face aos desafios do meio ambiente. Mais flexíveis por definição, as normas
voluntárias ajustam-se melhor ao funcionamento de uma economia de mercado do
que as regras obrigatórias. A direita é, finalmente, mais desconfiada em relação à
intervenção das instituições internacionais no domínio do meio ambiente.
Naturalmente, ela mostra-se pois pouco entusiasmada com a criação de uma
Organização Mundial do meio ambiente ou de um Conselho de segurança ambiental.

Os Verdes e a esquerda em geral consideram por seu lado que a proteção do


meio ambiente representa uma urgência absoluta para o futuro da humanidade.
Voltada para um horizonte a longo prazo, a sua perspetiva insiste na ideia de que a
geração de hoje tem responsabilidades ambientais para com as gerações futuras. Além
de serem mais críticos relativamente ao modelo de desenvolvimento centrado no
crescimento, os ambientalistas distinguem-se também pela sua atitude abertamente
política. Eles fazem regularmente valer que a deterioração do meio ambiente tem
uma incidência direta sobre a irrupção da pobreza, dos conflitos e das migrações. Esta
visão holística interpela particularmente os países desenvolvidos que são os maiores
consumidores de energia e de recursos per capita. Ambientalistas e progressistas
concluem em uníssono que os recursos disponíveis pura e simplesmente não
permitem alargar o estilo de vida das populações do Norte ao conjunto da população
mundial.

Nas soluções que promove para favorecer a proteção do meio ambiente, a


esquerda parte do princípio de que o «laissez-faire» conduziria a uma destruição do
planeta e que, por conseguinte, um reforço das instituições e das normas nacionais e
internacionais é necessário. A este propósito, os grupos ambientalistas confiam muito
mais nas medidas preventivas e nas sanções do que nos métodos voluntários. Os
Verdes consideram finalmente que a crise ambiental atual não poderá ser resolvida
sem um contributo em massa de capitais públicos. Reclamam assim a aplicação de
novas taxas que poderiam incidir, por exemplo, sobre a utilização de energias não
renováveis como o petróleo. Tudo isto contribui para demonstrar que, para além das
aparências técnicas, a questão ambiental continua profundamente marcada pela
divisão esquerda-direita.

Conclusão

A oposição esquerda – direita é reconhecida como a base ideológica da


dinâmica partidária e da política doméstica. No entanto, longe de se deter nas
fronteiras do Estado, esta oposição impregna também de forma incisiva os debates
internacionais. O fenómeno não tem, com efeito, nada de surpreendente.
Conservadores e progressistas vêem simplesmente o mundo exterior com os mesmos
olhos com que vêem a sua «entourage» imediata. Da mesma forma que o conflito
esquerda – direita se impôs como a matriz dos debates políticos internos, ele tende
assim a modelar os debates de alcance global. Em todo o caso, nenhuma outra
clivagem social parece ser portadora de uma força explicativa suficientemente grande
para dar conta das divergências de atitudes face ao âmbito internacional. Em suma, a
distinção esquerda–direita estrutura fortemente o processo ( pouco estudado) da
globalização das ideologias. É em virtude desta propriedade que ela poderia
representar o elo que falta entre o campo da política comparada e o das relações
internacionais.
Tradução do francês por Fernando Couto e Santos

A TERCEIRA VIA DO NEW LABOUR : O FIM DA


DICOTOMIA ESQUERDA-DIREITA OU UMA
VISÃO ALTERNATIVA SOBRE O IDEÁRIO
POLÍTICO-IDEOLÓGICO ?
Ana Maria Belchior67

Luís Filipe Salvador68

A dimensão esquerda-direita, enquanto conceito político, é uma abstracção


utilizada para resumir a posição dos actores políticos por referência a questões
políticas relevantes. Trata-se da simplificação de uma realidade complexa. Nas
últimas décadas tem-se assistido a uma discussão persistente e mais ou menos
manifesta sobre a prevalência ou não da relevância desta dimensão para interpretar
posições políticas. Para muitos, direita e esquerda são agora conceitos sem
significado, numa sociedade cada vez mais complexa onde as inúmeras razões de
oposição política já não são passíveis de colocação à direita ou à esquerda. Surgiram
novos problemas que estão na origem de movimentos e partidos políticos cuja
inserção no esquema tradicional da polarização ideológica se torna difícil, como é o
caso dos movimentos ecologistas.

Nesta discussão, têm surgido diversas propostas políticas, ideológicas ou


programáticas, que apontam para a necessidade de reformar o campo ideológico
tradicional. De entre estas salientamos o contributo da Terceira Via. Esta é uma
expressão que pode assumir significados e encarnações diversos, sendo por vezes, por
essa razão, designada no plural. Não obstante a multiplicidade de acepções, sobressai
neste projecto de reforma da social-democracia um padrão no que respeita ao
67
Licenciatura em Sociologia, pela Universidade de Évora. Mestrado em Ciência Política, pela
Universidade de Évora. Doutoramento em Ciência Política, pela Universidade Católica Portuguesa.
Professora auxiliar do Departamento de Ciência Política e Relações Públicas do ISCTE-IUL, e
investigadora sénior do CIES-IUL. Tem estado envolvida em diversos projectos de investigação. Os
resultados da sua investigação têm sido publicados em diversas revistas científicas nacionais e
internacionais.
68
Licenciatura em Filosofia, pela Universidade Católica Portuguesa. Doutoramento em Ciência
Política, pelo ISCTE-IUL.
programa político, e que pretende ser uma superação da dicotomia ideológica
tradicional. O New Labour, que decorreu da governação de Tony Blair entre 1997 e
2007, é considerado o projecto mais emblemático desta reforma da social-democracia.
É, por isso, sobre este que incide em última análise o presente texto. Não é, no
entanto, o propósito analisar crítica e aprofundadamente este partido e governação,
mas apenas sistematizar descritivamente os seus pontos de vista mais emblemáticos,
sob a óptica da subsistência ou não da dicotomia esquerda-direita tradicional.

Procurando contribuir para o debate do fim da ideologia, o presente texto


sistematiza primeiro a discussão da tese do apaziguamento ideológico no que respeita
ao esvaziamento do conteúdo de esquerda e direita como conceitos antagónicos, em
seguida apresenta as respectivas contra-teses nas quais se enquadra a Terceira Via
social-democrata e, do ponto de vista aplicado, o projecto governativo britânico do
New Labour.

1. A díade esquerda-direita: continuidade ou colapso?

A dicotomização das ideias políticas dos séculos XIX e XX que opunha


liberalismo a marxismo, capitalismo a socialismo, democracia a autoritarismo,
esquerda a direita, tem vindo, nas últimas décadas, a encontrar dificuldades de
expressão nas democracias liberais. O debate sobre a crise ideológica assenta mais
directamente na supressão da distinção entre direita e esquerda, em vigor desde a
Revolução Francesa. É sobre este ponto que se debruça esta primeira secção.

O liberalismo atribuiu ao Estado o monopólio do poder e da segurança sobre a


comunidade de forma a garantir a actividade comercial e a prosperidade das famílias,
dando menor importância à liberdade política e social dos cidadãos. O marxismo, em
oposição, preocupou-se com a centralização da economia e das relações de produção,
tanto ao nível público quanto privado, excluindo da dimensão política os assuntos não
redutíveis ao conflito de classes. Liberdade e igualdade, embora constituam dois
valores democráticos e não necessariamente opostos, dão lugar a concepções e
práticas políticas diferenciadas consoante se privilegie um ou o outro. A esquerda
tradicional valoriza, sobretudo, a igualdade económica e de oportunidades (mediante a
intervenção do Estado), privilegiando também a liberdade cultural, de expressão e
política. A direita tradicional, por sua vez, tende a dar preferência à liberdade no
âmbito económico, defendendo também a igualdade no plano cultural e no respeito
pelas normas vigentes.

Estas oposições têm vindo a perder a rigidez de outrora. Com a queda do Muro
de Berlim, o colapso dos sistemas de Leste e a subsequente transformação das
referências ideológicas anteriores, a esquerda embrenhou-se numa crise profunda. O
surgimento de problemas nas sociedades contemporâneas que a esquerda tradicional
nunca tinha considerado (por exemplo, relacionados com a ordem e segurança),
associado ao desaparecimento de alguns pressupostos base dessa mesma esquerda
(com a fracasso dos sistemas socialistas), estão na origem da sua actual crise. Esta
crise caracteriza-se hoje pela observação de um interesse significativo do socialismo
em manter e explorar as estruturas do Estado, tradicionalmente associadas ao
desenvolvimento capitalista, de forma a alcançar os objectivos socialistas. Por isso,
Anthony Giddens afirma que hoje socialismo significa uma multiplicidade de coisas
diferentes não passando muitas vezes “de um chapéu para qualquer ordem social
putativa que um pensador particular deseje ver criada” (2000: 116). O autor refere
ainda que “para Marx, o socialismo manter-se-ia de pé ou seria derrubado de acordo
com a capacidade que demonstrasse para gerar mais riqueza do que o capitalismo e
para dividir a riqueza gerada de forma mais equitativa. A morte do socialismo deve-se
precisamente à derrocada destas premissas” (1999: 15).

Apesar de se ter verificado que, de facto, os meios preconizados pela esquerda


padeciam de incompatibilidade com o pleno desenvolvimento e bem-estar social, tal
não invalida que alguns dos seus princípios não sejam socialmente desejáveis (e
talvez cada vez mais). A igualdade e a justiça social constituem valores
tradicionalmente associados à esquerda, que ocupam hoje um lugar preponderante na
generalidade dos programas dos partidos políticos. O sucesso da reforma da esquerda
tradicional parece, por isso, depender da sua capacidade de adaptação às exigências e
necessidades das sociedades contemporâneas. Sugere-se que esta transformação
contemple uma maior abertura à participação e responsabilização eleitoral dos
partidos de esquerda em relação aos cidadãos, devendo tornar-se menos hierárquicos,
rígidos e fechados e a respectiva política assumir e desenvolver o carácter da cultura
política democrática. A emergência de partidos e movimentos de uma nova esquerda,
que alguns apelidam de pós-materialista69 ou apenas nova esquerda, tem sido a
expressão mais visível da resposta a esta necessidade de mudança (Escudero, 1994;
Inglehart, 1998).

A polarização tradicional esquerda-direita suportada em questões económicas,


em que a classe trabalhadora apoiava a esquerda e as classes mais altas a direita,
parece deixar-se substituir por um novo vector de segmentação política – a dimensão
materialismo / pós-materialismo. Este novo vector assume uma influência cada vez
maior na eleição dos partidos em muitas sociedades e constitui uma variável
importante na configuração das divisões políticas em muitos países ocidentais
(Inglehart, 1998). A dicotomização político-partidária das sociedades industriais
aparenta estar, gradualmente, a dar lugar a um novo espaço político, menos polarizado
e menos rígido, no qual outros grupos e organizações, não necessariamente
partidarizados, desempenham um papel activo na esfera pública, ancorando-se sobre
questões políticas emergentes, como a energia nuclear, os direitos das mulheres ou a
protecção ambiental.

De facto, os assuntos que tradicionalmente dividiam os partidos e as posições


políticas têm vindo a esbater-se, enquanto um conjunto de assuntos novos,
tradicionalmente considerados como não sendo essencialmente políticos (a poluição,
as questões das minorias, o aborto, ou a protecção ambiental) segmentam posições
políticas (Flanagan e Dalton, 1990). Os movimentos, ideológicos e não-ideológicos,
gerados em torno destes novos objectivos sociais começam a conquistar terreno
político nas últimas décadas, respondendo a novas preocupações tendencialmente de
carácter pós-materialista, relativamente às quais os partidos tradicionais têm
dificuldade de reacção (Wolinetz, 1990). Tendo vindo a conquistar um número

69
A dimensão materialismo / pós-materialismo sintetiza-se da seguinte forma: materialismo identifica-
se com a preferência tradicional pela ordem, pela lei, pela segurança, pelo crescimento e estabilidade
económicos e, portanto, pelos aspectos mais economicistas da vida; o pós-materialismo designa a
adesão e a primazia dada aos valores da participação política e social, da estética e das liberdades
cívicas, associando-se assim, preponderantemente, às questões relativas à qualidade de vida (Inglehart,
1998; Montero, 1992; Montero e Torcal, 1992).
crescente de adeptos essencialmente entre os jovens e os que têm maior nível de
escolarização, e os que privilegiam objectivos pós-materialistas, estes novos
movimentos e partidos são predominantemente urbanos e tendencialmente de
esquerda (Betz, 1990; Kitschelt e Hellemans, 1990; Inglehart, 1998). A proliferação
destes tem sido mais visível nos países mais desenvolvidos, conseguindo mesmo em
alguns casos alcançar representação eleitoral significativa70 (Kitschelt e Hellemans,
1990).

Adicionalmente, assuntos tradicionalmente associados à esquerda (como a


justiça social), assim como assuntos políticos emergentes (como os antes referidos),
são agora igualmente cobiçados pela esquerda e pela direita71 (Knutsen, 1995). Como
admite Giddens, “o conservadorismo, tornado radical, confronta-se assim com o
socialismo, tornado conservador” (1997: 2). Aponta-se como explicação deste facto a
tomada de consciência pela direita de que aqueles são assuntos importantes no que
respeita à competitividade nacional e, consequentemente, ao crescimento económico,
que por sua vez estão no cerne da acção da direita (Cerny, 1990).

Com efeito, parece ter-se operado nas últimas décadas uma mudança radical
nas definições estruturantes das ideologias tradicionais. Alguns autores alertam
mesmo para a possibilidade de a clivagem esquerda-direita não radicar mais na
clássica antinomia liberdade / igualdade, mas na nova clivagem materialismo / pós-
materialismo (Inglehart, 1998; em relação a Espanha: Montero, 1992).

Apesar do reconhecimento da conturbação político-ideológica, muitos autores


defendem, por oposição, que a díade sobrevive. De facto, direita e esquerda
continuam a ser usadas no debate político, nos programas políticos, pelos partidos,

70
Esta nova esquerda, por oposição à esquerda marxista tradicional, tem como principal componente
de sucesso os partidos ecologistas os quais têm vindo em caminhada ascendente desde os anos 70 na
generalidade dos países ocidentais. Trata-se não de uma esquerda materialista, tal como o era
tradicionalmente, mas de uma esquerda renovada e profundamente marcada pelos valores pós-
materialistas. Os Verdes da Alemanha Ocidental constituiriam o primeiro partido predominantemente
pós-materialista, com relevo eleitoral, no início da década de 80 (Betz, 1990).

71
Um conjunto de questões de natureza moral e jurídica impõem a tomada de novas decisões políticas,
de que é exemplo paradigmático as posições relativamente à legalização do aborto. Face à falta de
referências no passado e à própria natureza moral dos assuntos, a sua inserção nas categorias direita ou
esquerda apresenta grandes dificuldades, fazendo supor que a bipolarização política existente não é
suficiente para categorizar estes problemas emergentes.
movimentos e no discurso dos meios de comunicação social, o que demonstra que
continuam a ter validade conotativa. Bobbio é defensor de que as ideologias
tradicionais não desapareceram, apenas foram vestidas por novas roupagens – “não
existe nada mais ideológico do que a afirmação da crise das ideologias” (1995: 28/9).
Outros autores, suportam igualmente que a dimensão esquerda-direita persiste,
consistindo a esquerda na apologia da mudança social em direcção à igualdade
política, económica e social, enquanto a direita se suporta numa sociedade ancorada
nos valores tradicionais, de natureza hierárquica, e avessa à mudança para a igualdade
social (Inglehart, 1998; Giddens, 1999; Paim, 2001: 79). No que respeita à esquerda
materialista tradicional Inglehart argumenta que, apesar do declínio evidente das
últimas décadas, os partidos comunistas dificilmente desaparecerão porque, por um
lado, são suportados por um núcleo duro de apoiantes que asseguram a sua
permanência e, por outro, o papel que desempenharam na reivindicação de uma maior
igualdade material e a consequente integração das políticas sociais na generalidade
dos partidos da sociedade ocidental dão-lhe relativa visibilidade e reconhecimento
(1998). Esta será tanto mais a realidade quanto a conjuntura social e económica se
agudize e conduza ao depauperamento das condições de vida dos indivíduos.

De facto, direita e esquerda misturam-se nos programas partidários, fazendo


com que partidos de direita defendam posições tradicionalmente associadas à
esquerda e vice-versa. Porém, só se pode afirmar pelo entrelaçamento de posições de
esquerda e de direita se, por si só, estes conceitos continuarem a designar um
conteúdo ideológico preciso, mesmo que apenas utilizado como ponto de referência.
Dever-se-á considerar que estes não são conceitos absolutos e imutáveis, mas
temporalmente relativos. Sobre ambos, Bobbio preconiza - “não são conceitos
substantivos ou ontológicos. Não são qualidades intrínsecas do universo político. São
locais do espaço político, representam uma determinada topologia política, que nada
tem a ver com a ontologia política” (1995: 73). Também Bobbio propõe como critério
de prevalência da distinção de direita e esquerda a diferente atitude relativamente ao
ideal de igualdade, sendo que é historicamente reconhecida a associação entre a
esquerda e o igualitarismo.
2. A Terceira Via da social-democracia

Apresentada como uma alternativa e uma superação dos desaires da tradicional


alternância esquerda-direita, a Terceira Via afigura-se como a reforma da social-
democracia clássica, procurando adaptá-la às novas condições criadas pela
globalização da sociedade. A expressão Terceira Via foi criada na passagem do
século XIX tendo sido utilizada por Ota Sik no final da década de 70 para alertar para
a necessidade de encontrar uma solução económica entre o socialismo e o capitalismo
(1978) – o socialismo de mercado, de que fala mais tarde Anthony Giddens (1999). O
projecto governativo mais relevante da Terceira Via social-democrata – o New
Labour de Tony Blair – é em grande medida fruto da reflexão académica de Giddens,
que o aponta como reacção e uma proposta de superação do esbatimento das
diferenças entre esquerda e direita. Esta alternativa social-democrata surge num
período de grandes transformações políticas e ideológicas: a queda do Muro de
Berlim e com ele, o fim definitivo da Guerra Fria, o que levou ao debate do fim das
ideologias. Este projecto surge, por isso, como resposta ao momento social e político
vivido no início da década de 90.

A Terceira Via reconhece que um conjunto de questões escapam à visão


obsoleta do binómio esquerda-direita e procura responder ao conjunto dos assuntos
políticos de forma inovadora e pragmática, à margem de preconceitos ideológicos. A
política da Terceira Via procura uma nova relação entre o indivíduo e a comunidade e
uma redefinição dos respectivos direitos e obrigações. Pretende conciliar valores
como o da prosperidade, solidariedade, justiça social e liberdade, e sinergias entre o
sector público e privado (e associativo) utilizando a dinâmica do mercado, mas com o
interesse público como propósito último.

Eventualmente com uma significativa preponderância propagandística na luta


política, a política da Terceira Via não responde a uma base teórica conceptual e
sociologicamente consolidada. Não existe, de facto, uma concepção definida e oficial
do que é e em que consiste a Terceira Via. Existem sim, diversas manifestações de
ordem político-partidária e programática enquadradas no que se convencionou
designar Terceira Via, por vezes algo divergentes entre si, mas representando em
comum uma visão alternativa à dicotomia esquerda-direita, pretendendo designar um
meio-termo entre os tradicionais pólos antagónicos. Trata-se, portanto, mais de uma
forma de fazer política, com uma tónica essencialmente pragmática, do que de uma
nova teoria política ou ideologia.

Não obstante a diversidade de programas e políticas subjacente à expressão


Terceira Via (Przeworski, 2001; Barrientos e Powell, 2004), subsistem alguns traços
comuns que permitem caracterizá-la. Cingimo-nos em especial, nesta secção, ao
contributo de Giddens que permite não apenas sumarizar o programa político da
Terceira Via, mas também enquadrar teoricamente o programa governativo do New
Labour de Tony Blair, analisado na secção seguinte.

No quadro do debate sobre o futuro da social-democracia, Giddens propõe


uma tese que decorre do dilema da opção entre a regulação dos mercados capitalistas
de forma a eliminar o seu carácter desregrado e o seu funcionamento sem quaisquer
restrições. O “fim do «bem-estar social» (...) o descrédito absoluto do marxismo e as
profundas transformações sociais, económicas e tecnológicas que ajudaram a preparar
aqueles dois fenómenos” (Giddens, 1999: 9) são a razão de ser do debate. Como a
história sumamente o demonstrou, o controlo central não é economicamante eficiente
e conduz ao autoritarismo político. Todavia, o livre funcionamento do mercado
alimenta grandes disparidades nas oportunidades de vida das pessoas e regiões.
Giddens crê não apenas na sobrevivência da social-democracia, mas no seu
aperfeiçoamento ideológico e empírico. Com esse intuito assume uma atitude
normativa em relação à social- democracia indicando que esta deve ocupar o centro
ideológico, não apenas como um meio-termo entre esquerda e direita, mas como uma
solução política radical localizada na ala ideológica do centro-esquerda.

Para este autor o principal avanço da Terceira Via relativamente à social-


democracia consiste, no entendimento de Paim, na “compreensão da natureza do
mercado e do carácter falacioso da posição maniqueísta que lhe atribui todos os males
e, ao Estado, todo o Bem” (2001: 78). É este o ponto de partida da renovação, não
rejeitando completamente o apelo moral do Socialismo, antes superando a óptica
restritiva do mercado da esquerda tradicional. De acordo com esta visão, o mercado
produz desigualdades, mas também o Estado as pode produzir assim como pode gerar
outros efeitos negativos, afastando assim a ideia do Estado como bem absoluto.
Giddens corrobora neste ponto a posição de Tony Blair: ambos entendem ultrapassada
a ideia de que a subordinação ao mercado acarreta apenas perigos e malefícios, e que
é o Estado que deve centralizar a planificação.

Na medida em que se suporta em valores associados à protecção social e


atendendo a que este é um factor de afirmação e de diferenciação da esquerda
(Giddens, 1999; Paim, 2001), “a terceira via pode ser classificada como esquerda”
(Paim, 2001: 79). Talvez enquadrado num formato de nova esquerda na medida em
que os grandes princípios marxistas da velha esquerda são abandonados. Para Giddens
a Terceira Via comporta, todavia, um princípio básico: a aproximação do socialismo
ao liberalismo. O slogan que para o autor sintetiza estes argumentos é – “no rights
without responsability». Este princípio demonstra que a política social deve ser
entendida na dependência do desempenho económico. Os direitos sociais só fazem
sentido se associados a deveres, obrigações e responsabilidades individuais. E entre
estes, a prioridade vai para os últimos, em detrimento dos primeiros. A política social-
democrata tradicional faz perigar o crescimento económico pelo que esta nova
proposta visa alcançar os objectivos do bem-estar através dos mercados, como se
eficiência económica e justiça social fossem duas faces da mesma moeda. Ao invés da
redistribuição dos rendimentos, faz apologia da redistribuição das oportunidades: a
melhor via para evitar a pobreza é, não a protecção do Estado, mas o trabalho
individual pago por um salário justo (associado à educação e à formação).

Para Giddens, “o primeiro objectivo de uma política de terceira via devia ser o
de ajudar os cidadãos a encontrar um caminho através das revoluções mais
importantes do nosso tempo: globalização, transformação da vida pessoal e o nosso
relacionamento com a Natureza” (1999: 62). Tal afirmação compreende o aceitar do
processo de mundialização com uma atitude positiva de abandono da rigidez do
proteccionismo e não como algo essencialmente negativo; o perspectivar da justiça
social como preocupação central em que os direitos dos cidadãos não são apenas
obrigações da política central mas tem o seu correspondente nos deveres dos próprios
cidadãos.

A Terceira Via é também, segundo Giddens, perspectivada como processo de


aprofundamento e alargamento da democracia - “as deficiências da democracia liberal
numa ordem social globalizante sugerem a necessidade de outras formas de
democratização mais radicais” (1997: 13), que apelida de democracia dialógica. A
Terceira Via sustenta a luta pela extensão dos mecanismos democráticos e o
envolvimento dos cidadãos em processos de deliberação democrática como forma de
legitimação das políticas. Giddens resume esta ideia na fórmula - “no authority
without democracy”.

A democracia dialógica de Giddens assenta na reformulação da interpretação


dos princípios democráticos, apelando à abordagem da democracia enquanto meio
aberto de representação de interesses da comunidade, criando assim um espaço
público de debate e resolução de assuntos públicos apoiado na participação dos
cidadãos. Dá-se assim lugar à expressão da multiplicidade de percepções e opiniões,
ao invés de recorrer a formas pré-estabelecidas e centralistas do poder (Giddens,
1994; 1997). O propósito seria o de democratização da democracia na assunção dos
respectivos princípios ideológicos: a representação de interesses e a resolução de
questões controversas pelo diálogo e não por formas pré-estabelecidas de poder. A
descentralização constitui um factor determinante da democratização da democracia,
na medida em que introduz a possibilidade de formas alternativas de participação para
além do convencional processo eleitoral (Giddens, 1999). Esta democratização não
constitui uma extensão da democracia liberal ou o seu complemento, antes “à medida
que funciona gera formas de intercâmbio social susceptíveis de contribuir
substancialmente, ou talvez mesmo decisivamente, para a reconstrução da
solidariedade social” (Giddens, 1997: 98). A mobilização da participação da
comunidade é, assim, parte fundamental da política da Terceira Via.

A Terceira Via configura, desta forma, uma manifestação política que


contempla a necessidade de resposta do ponto de vista da individualidade associada a
um profundo sentimento comunitário, valores em que assentam uma melhor cidadania
e as bases para o desenvolvimento de uma cultura cívica. “O novo individualismo não
corrói inevitavelmente a autoridade, mas exige que ela seja repensada numa base de
participação activa” (Giddens, 1999: 64).

A Terceira Via de Giddens é criticada por assumir uma vertente neo-liberal, ao


invés de consistir numa proposta efectiva de renovação da social-democracia no
centro-esquerda. Esta proposta é acusada de ser uma forma de legitimação das
políticas neo-liberais, vestidas com os velhos chavões da social-democracia
tradicional, tais como: solidariedade, igualdade, redistribuição, ou justiça social;
reinterpretados à luz da doutrina neo-liberal. Fica, por isso, dominada por novos
chavões alheios à social-democracia tradicional: individualismo em vez de
solidariedade; oportunidades em vez de igualdade e redistribuição; responsabilidades
em vez de justiça social (Cammack, 2004; Goes, 2004; Leggett, 2004: 189-190).

Da mesma forma que Giddens, o programa governativo de Tony Blair deriva


da necessidade de ajustar a forma de fazer política às transformações decorrentes da
erosão dos valores sociais tradicionais. De outra forma: as velhas ideologias
anacrónicas ressentem-se com uma panóplia de novas necessidades e exigências
características do paradigma social emergente a que não conseguem dar resposta, o
que obriga ao seu abandono ou à sua adaptação dando origem a novos partidos
políticos, movimentos políticos e sociais e, indubitavelmente, a novos programas e
agendas políticas. É este o contexto justificativo em que emerge o New Labour.
Apresentam-se em seguida as principais linhas orientadoras deste programa
governativo, analisado à luz do projecto da Terceira Via.

3. O New Labour de Tony Blair

Os modernizadores do Labour Britânico tiveram como propósito retirar à


esquerda tradicional a excessiva concentração na intervenção do Estado e na
redistribuição, refocalizando-a na criação de riqueza e na responsabilização
individual. Para estes, o Estado deve agir como regulador dos bens públicos, mas não
como fornecedor directo. A vitória eleitoral do Partido Trabalhista (Labour) de Tony
Blair, em 1997, significou para muitos críticos de esquerda, o afastamento do partido
das suas raízes trabalhistas, e o abdicar do cunho socialista ou social-democrata do
partido em benefício da adopção de políticas neo-liberais típicas de um partido
conservador. Esta vitória representa a emergência governativa da Terceira Via
Britânica. Atestando o sucesso desta fórmula, Blair ganhou um segundo mandato, em
2001, com uma margem invulgarmente relevante.
Assente no entrelaçar de posições políticas, e numa clara apologia à
reconstrução da esquerda, o projecto político do New Labour, comummente
designado Terceira Via, cujo protagonista foi Tony Blair enquanto Primeiro-ministro
do Reino Unido, centra-se em torno de um pilar axiológico fundamental – a
comunidade (Goes, 1998a; 2004; Driver e Martell, 2000: 148). A comunidade é
encarada como factor de desenvolvimento pessoal, de promoção de uma melhor
cidadania e da ética cívica assentando em que só numa convivência social forte e
activa é possível aos indivíduos prosperar. Os indivíduos devem consertar esforços,
cumprir responsabilidades e desenvolver solidariedades para que consigam obter em
cooperação aquilo que lhes é vedado agindo a título individual. A essência da justiça
social assenta, desta forma, no apoio oferecido pela comunidade, em detrimento do
tradicional papel intervencionista do Estado.

De acordo com Giddens, “uma política de terceira via deve manter a justiça
social como preocupação nuclear, embora levando em linha de conta que o leque de
questões que não cabem na velha dicotomia esquerda / direita é mais amplo do que
nunca” (1999: 63). Tal preocupação implica a necessidade de reforma do Estado
Providência atendendo, porém, a que as medidas a tomar estabeleçam uma relação
saudável entre os investimentos sociais e as consequências económicas dessas
medidas. São os direitos subjugados à responsabilidade. Neste âmbito, o novo
trabalhismo britânico procurou estabelecer uma nova identidade de forma a construir
uma alternativa intelectual que se pretendia ser compatível com o pensamento da
esquerda. Blair almeja que o trabalhismo redescubra a sua identidade com base num
conjunto de valores fundacionais e não em qualquer rígida ideologia ou teoria
económica anacrónica.

O novo trabalhismo introduzido por Tony Blair pauta-se pela renúncia da


doutrina marxista, afastando-se decisivamente da ideia de propriedade colectiva dos
meios de produção. Os princípios que lhe estão subjacentes determinam um
inequívoco afastamento do trabalhismo relativamente à esquerda tradicional deixando
de se configurar como o legítimo representante da classe operária, aspirando
posicionar-se no centro-esquerda do espectro político-ideológico. Do ponto de vista
da estratégia económica, pauta-se pela divisão do trabalho entre as empresas e o
Estado: o papel deste último é estabelecer e vigiar a competitividade dos mercados
para estimular a inovação e investir estrategicamente em empresas quando estas não o
conseguem fazer (Glyn e Wood, 2001: 219-220).

Uma outra linha do New Labour decorre da intenção de não permitir que a
direita política fosse detentora de assuntos políticos exclusivos; ao invés, o partido
deveria encontrar soluções de centro-esquerda para esses assuntos. A esquerda
tradicional tentou explicar, e não propriamente solucionar, questões como o crime, a
desordem social, a migração e a identidade cultural. Giddens acusa a esquerda
tradicional de acreditar que a maior parte das formas de crime decorria da
desigualdade e que, uma vez mitigado o problema da desigualdade, o crime iria
inevitavelmente declinar (2010: 2). Para o autor, esta estratégia do New Labour de
captar e apresentar soluções para os assuntos políticos típicos da direita estabeleceu
uma quebra com a visão trabalhista tradicional, o foi vital para a longevidade do
mesmo no poder.

Mais do que uma posição intermédia entre esquerda e direita, entre socialismo
e neoliberalismo, entre o Estado e o mercado, a Terceira Via de Blair apresenta-se
como uma proposta de programa político, que procura responder aos problemas e
exigências do processo de globalização, liberto dos tradicionais constrangimentos
ideológicos. A nova agenda política procura compatibilizar a liberdade, a igualdade e
a solidariedade com o crescimento económico e a protecção do meio ambiente,
pautando-se por uma atitude que auto-denomina de realista. O novo Partido
Trabalhista defende, assim, uma verdadeira igualdade de oportunidades para todos (ao
invés da igualdade utópica de resultados da esquerda tradicional), e a conciliação dos
investimentos públicos e privados, optando muitas vezes por soluções públicas
configuradas por meio do mercado. Este posicionamento necessita, no entanto, de
diferenciação relativamente ao que Giddens denomina de política de redenção,
expressão utilizada para designar a visão excessivamente negativa da esquerda
tradicional sobre o capitalismo e seus agentes (1997). Esta terceira via visa assim
conciliar a criação de riqueza com a justiça social, o mercado e a comunidade.

Em sintonia com o discurso da Terceira Via de uma ideologia alternativa que


não é “nem esquerda, nem direita”, que articula dinamismo económico com justiça
social (Barrientos e Powell, 2004: 12-13), o New Labour considera a sua política
transversal à divisão esquerda-direita tradicional, assentando na articulação de
medidas políticas aparentemente antagónicas, tais como: cortar os impostos sobre os
lucros das empresas e introduzir o salário mínimo nacional; conceder independência
ao Banco de Inglaterra e desenvolver um programa de bem-estar social funcional;
reformar as escolas e endurecer as políticas em relação ao crime juvenil; ou conceder
mais dinheiro para a saúde e educação e apertar os limites globais dos gastos públicos
(Driver e Martell, 2000: 154-155).

Apesar de procurar constituir-se como alternativa às dificuldades das


ideologias tradicionais, esta opção política tem, todavia, sido sujeita a severas críticas
essencialmente por parte da ala da esquerda tradicional sendo apelidada por estes de
“versão requentada de neoliberalismo” (Giddens, 1999: 32; Leggett, 2004). O
pretenso descomprometimento ideológico de que faz apologia é questionado por
alguns autores. Para muitos, a Terceira Via preconizada pelo New Labour mais não é
do que uma variante do neoliberalismo de Thatcher, uma política de direita sob um
disfarce de esquerda. Alega-se que a transformação do trabalhismo aponta para uma
menor taxa de investimento no sector público do que os próprios conservadores e um
afastamento das políticas sociais, enquanto denota um claro privilegiar do mercado e
do sector privado (Désir et al, 2001; Przeworski, 2001; Glyn e Wood, 2001). Assente
em propostas políticas que enfatizam a flexibilização do mercado, a livre
concorrência, a glorificação do empresário em detrimento de medidas de protecção
social, a Terceira Via britânica é acusada de ser factor de exclusão social e de
acentuação das desigualdades (Treanor, 2002a, 2002b; Goes, 2004: 115-117;
Giddens, 2010). Por isso, a par de associada a uma forma alternativa de olhar a social-
democracia, a terceira via de Tony Blair é igualmente entendida como próxima à nova
direita e à política conservadora (Driver e Martell, 2000). Por isso, também, os
mentores do New Labour são acusados de salientarem o carácter inovador do
projecto, menosprezando as continuidades que o mesmo representa em relação à
esquerda tradicional ou à política conservadora de Thatcher (Driver e Martell, 2000:
149-150).
As fórmulas “no authority without democracy” e “no rights without
responsabilities” são acusadas de terem redundado em fracasso. Em especial, o
conflito no Iraque e os constrangimentos às liberdades individuais que daí advieram,
assim como a protecção das elites políticas de responsabilização face aos cidadãos,
transformaram o projecto social-democrata numa forma de fazer política que é por
alguns considerada mais autoritária do que democrática (Ryner, 2010: 8).

O segundo mandato de Tony Blair caracterizou-se por uma viragem ainda


mais à direita, em especial no que respeita aos temas da lei e da ordem, em grande
medida consequência da guerra no Iraque e como medida de contenção do terrorismo.
O New Labour afastou-se assim, decisivamente, dos princípios fundadores da Terceira
Via, assumindo uma política governativa claramente autoritária.

Não obstante as críticas, o mentor do New Labour, Giddens, estabelece um


saldo positivo após 10 anos de governo trabalhista: assistiu-se a um crescimento
económico ininterrupto (e em paralelo com a introdução de um ordenado mínimo
nacional); foram feitos investimentos de larga escala no sector público; e apesar de
não ter conseguido reduzir as desigualdades, o governo conseguiu, no entanto,
melhorar a condição dos mais desfavorecidos (Giddens, 2010: 2). Para o autor, o que
mais corroeu a imagem de Tony Blair foi, de facto, a parceria com os EUA na guerra
contra o Iraque (2010: 3).

4. Considerações finais

As abordagens à problemática da continuidade ou colapso das referências


ideológicas tradicionais não são unívocas; umas rejeitam a possibilidade da
bipolarização direita-esquerda, outras consideram-na ainda válida. Porém, e como de
resto sobressai das posições teóricas analisadas, há hoje um quase consenso que
aponta na direcção da persistência da bipolarização. A esquerda e a direita
tradicionais, e portanto, materialistas, subsistem associadas às clivagens de natureza
económica.
Porém, para além da esquerda e da direita materialistas, novas configurações
ideológicas se estão a desenhar com base nestas dimensões e no necessário
reajustamento a que a evolução recente da realidade social compele. Trata-se de um
atenuar de clivagens, de gestão de consensos e de racionalização de programas que
pressiona o aceitar de directrizes antes inaceitáveis. Em particular a esquerda pós-
materialista representa o concretizar mais expressivo dos valores emergentes nas
sociedades pós-modernas da participação, do ambientalismo, da defesa das minorias,
do localismo, entre outros. É neste quadro de mudança que se insere a proposta de
reforma da social-democracia designada Terceira Via e, por consequência, o projecto
governativo do New Labour de Tony Blair.

Será a Terceira Via uma expressão da superação da dicotomia ideológica


tradicional ? Será esta proposta uma solução política que materializa os novos valores
emergentes de expressão pós-materialista? A proposta de Giddens é de carácter
teórico-normativo e compreende os requisitos para que aponta a esquerda pós-
materialista: prevalência de uma esquerda reformada, salvaguarda dos mais
desfavorecidos (embora com responsabilidades), ambientalismo, comunidade,
diálogo, participação. Estes elementos estruturantes surgem, contudo, associados a
outros que são antagónicos à esquerda pós-materialista ou mesmo a uma renovação
ideológica da esquerda tradicional, como é o caso da prevalência do sector privado ou
da tónica na responsabilização individual. Estes são, na verdade, elementos da
ideologia neo-liberal.

O programa de Tony Blair é, por seu turno, pragmático e experimental, sendo


de facto expressão de uma nova abordagem ideológica. Tal como a Terceira Via de
Giddens, o New Labour aparenta ter algumas limitações no que respeita a alguns dos
valores básicos da social-democracia e mesmo da Terceira Via em que se inspira. São
disso exemplo a dificuldade em assimilar os valores da esquerda pós-materialista, o
ambientalismo ou a protecção social dos mais desfavorecidos. A solução política
adoptada não parece, desta forma, indicar uma alternativa efectivamente superadora
das dificuldades das referências ideológicas clássicas, mas antes uma versão
pragmática de uma nova forma de fazer política que mistura contributos à esquerda e
à direita. Na verdade, esta pode ser entendida como uma estratégia eleitoral bem
arquitectada e destinada ao sucesso, isto porque é bem conhecida a prevalência da
generalidade dos eleitorados no centro do espectro ideológico (Belchior, 2010).

Como argumentado por diversos autores, a Terceira Via envolve uma


combinação entre esquerda e direita, e não propriamente uma superação das mesmas.
Mistura princípios sobre os quais o debate entre esquerda e direita tem assentado,
como a igualdade e a eficiência económica, a coesão social e a economia de mercado,
a autonomia individual e o pluralismo, direitos e responsabilidades sociais, mas não
os supera. A novidade da Terceira Via está na forma como os contributos da esquerda
e da direita se conjugam, e não na sua superação (Driver e Martell, 2000; Leggett,
2004: 199). A Terceira Via não está, por isso, para além da esquerda e da direita como
sugere Giddens, uma vez que compreende princípios de ambas. É antes uma síntese
de contributos das duas, cujo produto não é esquerda nem direita. Mas também não as
anula.

Agora, com a crise financeira, o Keynesianismo e a intervenção pública na


economia estão de volta. O New Labour está morto enquanto tal. É Giddens, o seu
mentor teórico quem o diz (2010: 4). À sua semelhança, outros projectos governativos
inspirados na Terceira Via Britânica (como por exemplo o SDP de Shröder)
colapsaram em especial pela contextualização num cenário de estagnação e
austeridade, dando lugar à emergência de outros partidos políticos ancorados dos
extremos ideológicos, em particular na extrema-direita (Ryner, 2010: 8). Qualquer
que seja o projecto político, relevância ou longevidade, direita e esquerda subsistem
enquanto sinais que permitem a localização dos mesmos no espaço político.

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DIREITA E ESQUERDA :
INTEGRAÇÃO DA ACÇÃO POLÍTICA

Cristina Montalvão Sarmento72


72
Licenciada em Direito, pela Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa.
Licenciada em História, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Tem o Segundo Ciclo
em Relações Internacionais, pelo Institut Européen des hautes Études Internationales, em Nice,
França. Pós-graduada em Filosofia no curso de Mestrado da Universidade de Lisboa. Pós-graduada em
Ciência Política no curso de Mestrado do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da
Universidade Técnica de Lisboa. Doutorada em Ciência Política e Relações Internacionais, pela
Universidade Nova de Lisboa. Exerceu funções de gestão na Associação das Universidades de Língua
Portuguesa, subdirectora adjunta para a área da Investigação da Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa, e subdirectora do Centro de História da Cultura. Directora
do Observatório Político. Investigadora convidada do Laboratório de Redes de Poder e Relações
Culturais da UERJ, Brasil. Editou várias revistas internacionais, e é autora de diversos livros e artigos.
Uma das primeiras perguntas que se faz quando se fala de um homem político,
é se ele é de direita ou de esquerda. Quem se considera de esquerda, tal como quem se
considera de direita, em regra acha que as duas palavras se referem a valores
positivos. Por norma, o pensamento dedutivo permitiria, fazendo-se a enumeração
taxativa desses valores, identificar o conteúdo de cada termo. Todavia, o amplo debate
acerca do sentido destes termos é demonstrativo das dificuldades em os concretizar.

Tradição e Renovação

A"direita" e "esquerda" são termos antitéticos há mais de dois séculos


utilizados para exprimir a oposição das ideologias e dos movimentos, em que o
universo eminentemente conflitual do pensamento e da acção política está dividido73.

O pensamento dicotómico tem tido as mais diversas explicações e conhecem-


se exemplos deste modo de pensar em todos os domínios do saber, entre outros, a
economia contém a clássica dicotomia mercado – plano e em direito, a tradicional
divisão, entre público e privado.

Em qualquer par de termos antitéticos nem sempre os dois termos têm a


mesma força, e não se pode afirmar que há um que é sempre mais forte, e outro mais
fraco. A força respectiva pode mudar de acordo com os pontos de vista e os critérios
adoptados para a avaliar. A oposição tem sido contestada de vários lados e na origem
das primeiras dúvidas sobre o desaparecimento, ou pelo menos, sobre a redução da
força representativa da distinção, estaria a chamada crise das ideologias.

73
Norberto Bobbio, Direita e Esquerda. Razões e Significados de uma Distinção Política, Lisboa,
Presença, 1994, p.27.
Defendida sob a nomenclatura de tese do apaziguamento ideológico deu lugar
a amplos debates. Com ponto de partida na Conferência de Milão de 1955, sobre o
futuro da liberdade, e os Colóquios de Rheinfelden 74, a tese do apaziguamento
ideológico desenvolveu-se em torno do princípio da despolitização da política no
sentido da administração deixar de ser dos homens para incidir apenas nas coisas.

A tendência nas democracias estabilizadas, correspondentes aos conceitos de


sociedades industriais ou afluentes75, tenderiam para a perda de sentido entre direitas e
esquerdas porquanto as preocupações técnicas ultrapassariam as políticas. A expansão
espectacular das forças produtivas aliada a explicações de cunho mais sociológico
procurou assentar numa nova definição de capitalismo, que implicaria modificações
no espírito e nas práticas tradicionais, tudo impulsionado por uma nova elite dirigente
de formação tecnocrática.

No entanto, precisamente no interior das sociedades ocidentais, objecto de


meditação dos que sustentavam as teses do apaziguamento ideológico, as revoltas da
juventude76 que caracterizaram os anos sessenta, a revindicação de legitimidades pelas
contra-sociedades, entre outros fenómenos como o aparecimento de espaços
politicamente organizados e autoridades internacionais não políticas mas funcionais,
corresponderam a novos temas e ao aparecimento de novas ideologias. A força
representativa da distinção manteve-se válida sem estarem esclarecidos o sentido dos
seus termos.

Valores e Acção
Norberto Bobbio 77 num esforço de sistematizar esta questão averiguou a partir
da crítica da literatura sobre o tema, da existência de um critério distintivo a partir dos

74
Actas publicadas em Paris em 1960 de que foi relator Raymond Aron - sob a responsabilidade do
Congresso para a Liberdade da Cultura. Do mesmo autor, ainda sobre este tema. Aron desenvolve o
tema em L’Opium des Intellectuels, e em Fin des Idéologies, Renaissance des Idées, ambos publicados
em Paris, respectivamente em 1955 e 1965. Sobre as teses do apaziguamento ideológico cfra as
posições de Daniel Bell.
75
Para uma caracterização das sociedades afluentes vd John K. Galbraith, entre outras obras porventura
mais representativas, v. g. L'Ére de Opulence, Paris, 1961; Segundo este autor todas as teses anteriores
ao New Deal de Roosevelt deveriam considerar-se ultrapassadas.
76
Sarmento, Cristina Montalvão, Os Guardiões dos Sonhos. Teorias e Práticas dos anos 60, Lisboa,
Colibri, 2008.
77
Norberto Bobbio, Direita e Esquerda, ....Op. Cit., passim.
binómios: moderados/extremistas78; tradição/emancipação79; hierarquia/igualdade,
conservadores/progressistas; com a direita a corresponder à primeira zona do duo
comparativo e a esquerda ao segundo. Apesar da pretensão de não defender uma
tomada de posição, Bobbio inclina-se a aceitar os termos igualdade/desigualdade e
liberdade/autoridade como os elementos que mais esclareceriam respectivamente o
sentido dos termos esquerda/direita.

Não esquecendo como, antes dos termos se converterem numa metáfora da


linguagem política, o par direita – esquerda, teve uma conotação de valor unívoca a
começar pela linguagem religiosa, onde os bons estão sentados à direita do Pai e os
maus à esquerda. A identificação do sagrado e do profano, da direita com o sentido de
religião e a de esquerda com ateísmo, é também uma das conotações por vezes
presentes na discussão. Ao que não será estranho a posição de Sartre que foi dos
primeiros a referir-se aos conceitos de esquerda e direita como "caixas vazias".

Os binómios definidos são debatidos pelo seu conteúdo consoante a posição de


quem os discute, do mesmo modo a ligação ao sentido do sagrado e do profano tem na
prática a sua inequívoca desqualificação que vai desde o igualitarismo de inspiração
religiosa que sempre teve momentos revolucionários, como por exemplo a teologia da
libertação, aos defensores de direita com uma visão totalmente laica da política como
por exemplo Vilfredo Pareto. Já sem falar em posições extremas de que Nietzsche é
paradigma, que consideram os igualitarismos políticos, a democracia e o socialismo,
como o efeito da pregação cristã.

Consideraremos, para efeitos metodológicos, que na linguagem política o juízo


de valor positivo ou negativo atribuído à direita e à esquerda faz parte integrante da
própria luta política

História e Experiência

78
Norberto Bobbio faz na citada obra uma análise à obra de J . A . , La Ponce, Left and Right. The
Topography of Political Perceptions, Toronto, University of Toronto Press, 1981, que considera
como o ponto de chegada de análises anteriores e ponto de partida dos estudos posteriores.
79
Distinção de D. Confrancesco - Destra e Sinistra, Genova, Presso il Basilisco, 1981 - , que advoga
que a utilização crítica dos dois conceitos só se torna possível, se renunciar a concebê-los como
totalidades históricas concretas, e se forem interpretados como comportamentos de fundo, como
intenções, de acordo com a definição de Karl Mannheim.
Os juízos sobre a antinomia direita e esquerda reflectem muitas vezes os
principais argumentos que revelam a confusão entre as ideias abstractas e os
compromissos a que essas ideias sofrem quando adaptadas à prática. Por isso não
faltam definições que retomam os históricos concretos e redefinem os conteúdos da
dicotomia recorrendo a exemplos históricos apropriados.

Segundo Ernest Gellner80, a definição mais simples de socialismo que se


satisfaria com a observação da realidade social, e não emitiria juízos de valor, seria: o
socialismo é a forma de gerir uma sociedade industrial por comando administrativo.
Como salienta o autor, quem seja leal ao hábito de dotar o socialismo de uma carga
emocional positiva ressentir-se-á evidentemente desta definição, porque lhe parecerá
deliberadamente e injustamente provida de uma carga emocional negativa.

Entre os que não renunciam a ser de esquerda, reacendeu-se o interesse pelo


pensamento liberal e pela sua história através do novo entendimento de textos como o
On Liberty de John Stuart Mill 81. O facto dos intelectuais de esquerda terem relido e
aderido à descoberta do liberalismo político de Mill muitas vezes através do
liberalismo metodológico de Feyerabend 82 - trazendo à luz o problema existente entre
filosofia da ciência e filosofia política - concluem que faz falta à esquerda uma
autêntica "revolução copernicana"83.

Analogamente é paradoxal que uma das típicas ideologias do nosso tempo,


como o fascismo, ao formar-se se tenha apresentado de forma deliberada como um
movimento anti-ideológico84.

Tudo bem considerado, a esquerda está tão dividida quanto à natureza do seu
ideal e quanto à acção revolucionária85, como a direita quanto às reformas que é
80
Ernest Gellner, Condições da Liberdade, Lisboa, Gradiva, 1995, p.193.
81
Cfra Norberto Bobbio, O Futuro da Democracia, Lisboa, Publ. D. Quixote, 1988, p. 144.
82
Sobre o liberalismo metodológico, Vd, Paul Feyerabend, Contra o Método, Lisboa, Relógio D' Água,
1993.
83
Não estamos a considerar para o efeito que nos interessa as novas propostas de terceiras vias, como
por exemplo, a postura de Giddens, porquanto este trabalha exactamente a partir da oposição que aqui
discutimos.
84
Norberto Bobbio, O Perfil Ideológico del Siglo XX en Italia, México, Fondo de Cultura Económica,
1989, p. 205.
85
Segundo Adelino Maltez, terão terminado os duelos entre marxistas, mesmo que neo-marxistas ou
freudo - marxistas, à maneira da Escola Critica de Francoforte e os não marxistas. O que não implica a
consequente uniformidade de acção à esquerda. E não invalida a posição de Freund.
necessário realizar. Nesta medida, como salienta Julien Freund, a oposição entre
direita e esquerda não tem nada de específico, não passa no fundo da tradução
ideológica de uma longa querela entre a tradição e a aventura86.

Contudo quando se procura o fim do duelo surgem renovações da dicotomia. A


observação de que revistas como a New Left ou a Keep Left não têm correspondência à
direita é desmentida pelo aparecimento, nos últimos decénios por uma combativa e
ambiciosa nouvelle droite87. Avaliar os termos direita e esquerda denota o interesse
que eles continuam a suscitar e apesar da contestação que sofrem continuarem a ser
utilizados na linguagem política.

Qualquer que seja o conteúdo valorativo que se manifeste para quem se


considera de um lado ou do outro, refira-se que a apatia política própria da extensão
das nossas sociedades, a par do fenómeno da crise das ideologias, se aliam à
variabilidade dos critérios de juízo moral, à natureza técnica e à cada vez maior
complexidade dos assuntos políticos, todos em conjunto, com o pluralismo e a
segmentação das filiações sociais fazem inevitavelmente de cada cidadão, um
potencial sujeito político transversal em relação ao esquema axial direita - esquerda.
Potencialidade que importa ter sempre presente sobretudo quando se estuda no âmbito das
ideologias.

Ideologia e Integração

A discussão dos valores integrantes das ideologias implica apontar Marx,


Freud e Nietzsche a quem Ricoeur chamou "os mestres da suspeita" 88. Também
Mannheim não se abstém de referir que só o pensamento penetrante de Marx permitiu
pôr a descoberto "a medula do problema" para utilizar a sua terminologia 89. Salienta

86
Julien Freund, O Que é a Política? Lisboa, Ed. Futura, 1974, p.23.
87
Vd. os artigos dedicados à New Left e New Right em The Blackwell Encyclopaedia of Political
Institutions , Oxford, Basil Blackwell, 1987, pp388 e segs. Cfra também, Alain de Bénoist, Nova
Direita, Nova Cultura, Lisboa, Afrodite, 1981 e entre nós, Jaime Nogueira Pinto, A Direita e as
Direitas, Lisboa, Difel, 1996.
88
Paul Ricoeur, Ideologia e Utopia, Lisboa, Ed. 70, 1991. A citação referida pode ser encontrada na
obra do mesmo autor, Freud and Philosophy: An Essai on Interpretation, New Haven, Yale
University Press, 1970, p.35.
89
Karl Mannheim, Ideologia y Utopia, Introducción a la Sociologia del Conocimiento, México, Fundo
de Cultura Económica, 1993. |1836|, p. 270.
"as luminosas intuições" de Nietzsche, cujas linhas de desenvolvimento terão
conduzido às teorias de Freud e Pareto dos impulsos originais, e aos métodos por eles
criados com o objectivo de estudar o pensamento humano como uma deformação e
um produto de mecanismos instintivos.

O conceito de ideologia de Marx tem sido o paradigma dominante no


Ocidente e constituiu o modelo ao qual os restantes pensadores responderam. Marx
definiu essencialmente a ideologia como o que não é real - o contraste é entre
90
ideologia e realidade e não como no marxismo posterior entre ideologia e ciência -
definindo-a pois por oposição à praxis. O conceito de Marx de ideologia põe em
causa a autonomia concedida aos produtos da consciência. A ideologia enquanto
imaginário, "reflexo" ou "eco" do processo real da vida transforma-se em distorção.

No entendimento de Paul Ricoeur o conceito de Marx de ideologia como


distorção define-a a um nível superficial pois o que está em causa não é uma escolha
entre verdadeiro e falso, mas uma deliberação acerca da relação entre representação e
praxis91. A distorção será apenas um dos níveis dentro deste modelo, e não o modelo
para a própria ideologia. Ricoeur refuta Marx ao afirmar que a representação é tão
básica que chega a ser uma dimensão constitutiva no domínio da praxis. A
conjugação de ideologia e praxis redefinirá as concepções de ambas. O argumento de
Ricoeur é que a estrutura da acção é inextrincavelmente simbólica e que só na base
desta estrutura simbólica podemos compreender a natureza da ideologia como
distorção ou o sentido da ideologia em geral92.

Uma interpretação mais recente que continua a considerar a ideologia como


distorção, desta feita em oposição não à realidade mas à ciência, encontra-se no
marxismo posterior em especial no marxismo estruturalista de Louis Althusser. A
90
Acompanhamos aqui as lições de Paul Ricoeur, Ideologia e Utopia,.Op. Cit., em que a análise do
conceito de ideologia em Marx é mais metodológico do que histórico. Aliás Ricoeur entende que nas
obras posteriores de Marx, se avança para o modelo do marxismo clássico, que opõe ideologia e
ciência e sustenta que a apresentação mais completa deste modelo se localiza em Althusser.
91
Cfra Lição nº 5, Paul Ricoeur, Ideologia e Utopia , ...Op. Cit., p. 163 e segs. Entre nós, sobre a
categoria da prática como categoria filosófica é incontornavél. José Barata-Moura, vd nomeadamente,A
"Realização da Razão". Um Programa Hegeliano?, Lisboa, Caminho, 1990. Prática. Para uma
aclaração do seu sentido como categoria filosófica,Lisboa, Colibri, 1994. Materialismo e
Subjectividade. Estudos em torno de Marx, Lisboa, "Avante!", 1997. Ideologia e Prática, Lisboa,
Caminho, 1978.
92
George H. Taylor, organizador das lições de Paul Ricoeur na introdução às suas lições, Ideologia e
Utopia....Op. Cit., p. 22.
ideologia é descrita como o não-científico ou pré-científico numa realidade que
funciona com base em forças impessoais e anónimas. No domínio da inter - relação
estrutural da ciência marxista, Althusser ultrapassa-a a partir do conceito de "sobre
determinado". A infra-estrutura tem uma "eficácia" causal sobre a super-estrutura
ideológica, pelo que esta reage em resposta à infra-estrutura93.

O paradoxo da oposição entre ciência e ideologia alcança a sua plenitude na


expansão do conceito de ideologia com Mannheim até ao ponto em que envolve
inclusivamente aquele que a afirma. O ponto de vista do espectador absoluto, do que
não está envolvido no jogo social, é impossível, diz Mannheim. A circularidade da
ideologia constitui o seu paradoxo, de que Mannheim se tenta evadir pela afirmação
da possibilidade de chegar a uma posição avaliadora através da compreensão da
natureza do processo histórico94.

A substituição do modelo causal que informa o marxismo ortodoxo pelo


modelo motivacional de Weber, permite descobrir outro nível da ideologia. Esta
deixa de funcionar como distorção para passar a funcionar como legitimação. A
questão da legitimidade é inseparável da vida social pois não há nenhuma ordem
social que opere unicamente pela força. A ordem social procura nalgum sentido o
assentimento daqueles que governa, e é este assentimento que legítima o poder do
governante. Dois factores se encontram envolvidos: a pretensão de legitimidade pela
autoridade e a crença na legitimidade da ordem, admitida pelos seus súbditos. Esta
dinâmica só pode ser compreendida dentro de uma estrutura motivacional que é o que
Weber ajudou a esclarecer. Ricoeur partiu dos pressupostos de Weber para salientar
que o mais significativo da relação entre pretensão e crença é a discrepância entre
elas.

A tese de Paul Ricoeur, considerando a ideologia como legitimação assenta


93
Paul Ricoeur sustenta que Althusser conjuga sob uma única designação: ideologia antropológica,
duas noções diferentes. Uma é a " ideologia da consciência”, que Marx e Freud contestaram, a segunda
é o indivíduo nas suas condições, uma noção que pode ser expressa em termos não idealistas. No
entanto é interessante que Althusser não presume que a marcha da história conduza inevitavelmente ao
reinado da ciência; pelo contrário, diz que é utópico pensar que a ciência alguma vez venha a
substituir-se totalmente à ideologia. A ideologia possui a capacidade - que a ciência não possui - de nos
ajudar a dar sentido às nossas vidas. Paul Ricoeur comenta demoradamente esta avaliação positiva de
Althusser do papel da ideologia na lição nº 8, Ideologia e Utopia.Op. cit., p. 243- 267.
94
Karl Mannheim é o primeiro a situar a ideologia e a utopia numa única estrutura conceptual comum,
que descreve como formas de incongruência, pontos vantajosos em discrepância com a realidade
presente. O que realça as suas qualidades de representação.
em três elementos: o problema da ideologia refere-se ao hiato entre crenças e
pretensão - ao facto de as crenças dos dominados deverem contribuir com mais do
que é racionalmente garantido pela pretensão da autoridade governante; a função da
ideologia é preencher esse hiato; a exigência da ideologia preencher esse hiato sugere
a necessidade de uma teoria de mais-valia, desta feita em conexão com o poder.

Afastaremos as posições de Habermas que reorienta o conceito de praxis nas


relações de produção - e já não nas forças de produção - o que leva a aceitar que a
praxis inclui um certo quadro institucional. Por quadro institucional Habermas
entende "a estrutura da acção simbólica" e o "papel da tradição cultural". Ressuscita
deste modo, a possibilidade de uma ciência que evite a falsa oposição à ideologia,
pela distinção entre ciências instrumentais, histórico-hermenêutica e social crítica.
Nesta última, toma a psicanálise por modelo. O conceito psicanalítico de resistência
será o paradigma para a ideologia, pois ao comparar o esforço feito pela psicanálise
para vencer a resistência e chegar à auto-compreensão, explica o protótipo de esforço
para atingir a crítica da ideologia. No entanto a ideologia mantém o seu carácter de
distorção e só as ciências críticas poderiam ultrapassar a distorção sistemática.

É com Greertz 95 que se encontra o nível de análise mais elevado de ideologia.


96
A ideologia surge como elemento de integração. Ricoeur e Greertz encontram-se no
acento posto na estrutura simbólica da acção. Toda a acção social é já simbolicamente
mediatizada e é à ideologia que compete o papel de mediador no domínio social. A
ideologia é integração e não distorção. Com efeito só com base na função integradora
da ideologia, as suas funções legitimadoras e discursivas podem surgir. A ideologia
como mediação é constitutiva da existência social97. É neste sentido que a dicotomia
95
Clifford Geertz, "Ideology as a Cultural System", The Interpretation of Cultures, Nova Iorque, Basic
Books, 1973.
96
Os interesses de Ricoeur sobre os expedientes retóricos do discurso são nítidos quando afirma que a
ideologia pode ser proveitosamente comparada com eles: o sentido positivo da retórica junta-se ao
sentido integrador da ideologia porque a ideologia é a "retórica da comunicação básica". Vd sobre a
linguagem, Teoria da Interpretação. O Discurso e o Excesso da Significação, Lisboa, e. 70, s.d. |
1976|.
97
Neste sentido a ideologia é sempre um fenómeno inultrapassável e a distanciação, como contrapartida
dialéctica da participação, é a condição da possibilidade de uma crítica das ideologias, não fora mas
dentro da hermenêutica.
direita e esquerda continua a exercer a sua função, é o elemento integrador da acção
política que serve de elemento de mediação entre a ideologia e a própria existência
social no debate e na luta política.

REPENSAR A DICOTOMIA
DIREITA-ESQUERDA

Eduardo Currito 98

98
É licenciado em Engenharia Electrónica e computacional, ramo de Telecomunicações
electrónicas pelo Instituto Superior Técnico de Lisboa. É Mestre em Estudos Empresariais pelo ISCTE
em Lisboa. Tem uma pós-graduação em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade
Católica Portuguesa.É doutorado em Relações Internacionais pelo Instituto Superior de Ciências
Sociais e Políticas, da Universidade Técnica de Lisboa. Foi professor da Academia Naval Portuguesa,
do IADE (Instituto de Arte e Design), secretário-geral da Associação Empresarial Portuguesa,
supervisor do Grupo Espírito Santo, director do Banco Best do mesmo grupo, director e consultor da
empresa WF de Newark- cidade do Estado americano de Nova Jersey, assessor, consultor e director
financeiro de diferentes empresas e instituições, design manager, engenheiro de sistemas. Tem estado
ligado a várias associações empresariais e profissionais, tem expendido os seus conhecimentos em
várias conferências, seminários e colóquios e tem escrito para várias publicações.
1. INTRODUÇÃO

O presente ensaio pretende repensar a dicotomia direita/esquerda,


nomeadamente o seu sentido actual.
Pretendendo responder às seguintes questões: Qual a influência da
globalização na dicotomia direita/esquerda? Será real a aproximação entre direita e
esquerda? O que é a “terceira via”? O que é o conservadorismo compassivo? São
questões importantes para se perceber, tanto quanto possível, toda a complexidade da
dicotomia direita/esquerda.

2. APROXIMAÇÕES ENTRE DIREITA E ESQUERDA

Num mundo pós-Fukuyama, pelo menos no que diz respeito às ideologias, não
se poderá dizer que o jogo terminou, que a luta ideológica de dois séculos chegou ao
fim, resultando no triunfo do liberalismo ocidental.

Há quem defenda, num contexto internacional, não existir grande pertinência


em prolongar a discussão sobre a sobrevivência ou a natureza obsoleta do conceito
direita/esquerda. No entanto, apesar de existir um enfraquecimento civilizado das
posições, este não levou ao desaparecimento das tendências ideológicas tradicionais.
Continua a existir a validade – em termos conceptuais e operacionais – da direita e da
esquerda, pois os termos “direita” e “esquerda” permanecem vivos na linguagem
política.

Embora possam existir alianças, pontuais e por motivos diferentes, entre


movimentos de direita e de esquerda, impensáveis até há pouco tempo, como é no
caso do movimento anti-globalização.

Não é necessário procurar muito longe para encontrar uma evidência contínua
das divergências ideológicas no palco mundial. Um exemplo disso foram os distúrbios
de 1999 em Seattle, por ocasião da cimeira da Organização do Comércio Mundial,
que acabaram numa grande desordem, com cenas de confronto violento entre a polícia
e os manifestantes. Da mesma forma, no mais recente World Economic Forum de
Davos, houve surtos de violência esporádica.

“Tomar posições perante a globalização tornou-se inevitável para todos os


partidos, seja qual for a sua orientação dominante, porque a globalização se tornou um
facto político incontornável. Grande parte dos programas de acção dos partidos tem
de ser pensada em função dela ou arrisca-se a não ser credível. E se esta que temos é
desregulada, selvagem e predadora, como todos os quadrantes reconhecem, devido à
escassez de instituições globais ou supranacionais com capacidade para regulá-la, a
globalização alternativa e ética que se pode desejar está certamente também na mira
de todos, embora inevitávelmente sob diferentes versões.”99

Desde que houve conflito organizado nalgum tipo de contexto democrático, a


linguagem da política tem procurado bifurcar a maneira como as pessoas reagem, isto
é, as posições que elas assumem.

Direita e esquerda são termos espaciais, que começaram por dividir a câmara
francesa (durante a Revolução Francesa, 1789) entre os que se sentavam à direita e à
esquerda, entre os apoiantes da ordem e os da mudança. Esta bipolarização, contudo,
implica uma espécie de neutralidade entre as categorias que distinguem politicamente
a população100.

A direita era o partido das instituições tradicionais, tanto seculares como


religiosas. A esquerda ficava identificada com a oposição a uma monarquia poderosa
e até à própria monarquia, e com o desdém pela, ou a rejeição da, religião.

A direita tem representado tradicionalmente o lado da ordem, da estabilidade e


da tradição, a posição moral, legal, legítima. A esquerda, por outro lado, está
associada ao radical, ao perigoso e ao novo. Ao passo que a direita tende para o status
quo, a esquerda tende para a mudança. A direita pende para a monarquia, enquanto a
esquerda tem-se inclinado para a república.
99
Rui Valada, “Ser de esquerda, ontem (carta aberta a Mário Soares)”, in www.cienciapolitica.org
100
Seymour Martin Lipset, “Esquerda e Direita”, in Revista Nova Cidadania, Ano II – Número 8,
Abril/Junho 2001, pp. 10-17.
É Norberto Bobbio, nas palavras de Celso Lafer um “filósofo militante, que
dialoga criticamente com as experiências políticas e intelectuais do nosso tempo” 101,
que insistiu na validade da dicotomia102 tomando por base a tese segundo a qual a
direita enfatizaria a liberdade, enquanto a esquerda o faria em relação à igualdade.

Convém escalpelizar melhor o conceito de igualdade. Para António Paim, a


igualdade, actualmente, é discutida de maneira distinta em dois planos, a saber: o
plano académico e o plano político. No plano académico o tema ganhou força com a
tese de John Rawls, desenvolvida na sua obra “Uma Teoria da Justiça” 103, segundo a
qual a equidade seria o ponto de partida para se estruturar as instituições. No plano
político a discussão, agora atenuada, é entre a igualdade de oportunidades, e também
sobre a igualdade de resultados, que poucos defendem, além de não fazer qualquer
sentido.

Na realidade, antigamente, as posições de direita e esquerda eram


diametralmente incompatíveis, mas actualmente, essas duas posições se aproximam
muito, tornando-se inclusivé complementares. Segundo Hélio Jaguaribe, também
citado por António Paim, “a esquerda moderna visa ao máximo de bem estar social,
com o decorrente intento de minimização das diferenças sociais, dentro de condições
compatíveis com a satisfatória preservação da competitividade internacional da
respectiva sociedade; a direita moderna visa ao máximo de eficácia e de
competitividade, para a respectiva sociedade, dentro de condições compatíveis com
satisfatórios níveis de bem estar social e de redução das desigualdades.” 104 As
prioridades é que são diferentes.

A maior diferença entre direita e esquerda na política, existe nas posições


extremas dos partidos que ocupam as franjas do espectro ideológico. No que respeita
aos maiores partidos, os que disputam o poder, e naturalmente, o eleitorado do
“centro”, as intercepções de discursos e conceitos são notórias.

101
Celso Lafer, “Bobbio aos 94 anos”, in Revista Nova Cidadania, Ano V – Número 19, Janeiro/Março
2004, pp. 54-55.
102
Norberto Bobbio, Direita e Esquerda, São Paulo: UNESP, 2ª edição, 2001.
103
John Rawls, Uma Teoria da Justiça, São Paulo: Martins Fontes, 2ª edição, 2002.
104
Hélio Jaguaribe, A Proposta Social-Democrata, Brasília: ITV, 2ª edição, 1998, p. 12.
“Desde que o socialismo democrático abandonou a inspiração marxista e as
correntes neoliberais se distanciaram das teorias do Estado mínimo, já quase ninguém
entre os partidos moderados coloca em causa a necessidade de regulação da economia
pelo Estado e o imperativo ético de pôr em prática programas vastos de protecção
social. O que se discute é até onde deve ir essa regulação e como deve ser feita, bem
como a natureza e montante dos benefícios a conceder aos mais desprotegidos na
sociedade. Ou seja: todos reconhecem ao Estado uma vocação dupla,
simultaneamente reguladora e proteccionista.”105

“Durante as campanhas eleitorais, a retórica panfletária difunde a mensagem


de que existem diferenças abissais no modo de conduzir as coisas públicas; mas
quando os eleitos são obrigados a enfrentar os dossiers e as questões reais, a
perspectiva que domina é geralmente a tecnocrática.

Esquerda e direita são obrigadas a entender-se para quase todas as reformas


constitucionais, que exigem votações por maioria qualificada, e no resto limitam-se a
discutir, de forma artificialmente acirrada, as modalidades e os graus de intervenção
do Estado, os detalhes polémicos da concertação social, ao mesmo tempo que ambas
pactuam a seu modo com as instituições religiosas, os sindicatos, as associações
patronais e outras organizações, disputando entre si o controlo dos diversos lobbies.
Em todos estes aspectos, a diferença entre esquerda e direita não é de género, é de
estilo ou de eficácia.”106

“Em abono da verdade, sublinhe-se que muitos dos valores que a chamada
esquerda continua a reivindicar como fazendo parte da sua identidade própria formam
hoje um substrato comum a todos os grandes partidos. Acreditar no progresso e na
possibilidade de transformar o mundo para melhor, reparar as injustiças e
desigualdades humanas, a liberdade, a solidariedade, a igualdade de oportunidades, a
justiça social, o laicismo do Estado, a concertação social, as conquistas básicas do
movimento sindical, a defesa do ambiente e dos equilíbrios ecológicos, a previdência

105
Rui Valada, “Esquerda e direita”, in www.cienciapolitica.org
106
Entre os preconceitos, encontramos a ideia arreigada de que a direita defende o capitalismo
selvagem, as organizações religiosas, os grandes interesses económicos e a prepotência dos patrões, e
que é à esquerda que cabe o papel de defensora da regulação da economia pelo Estado, do laicismo e
independência deste, da salvaguarda dos direitos dos trabalhadores e do alargamento dos esquemas
de protecção social..Rui Valada, “Esquerda e direita”, in www.cienciapolitica.org
social, a luta em favor dos excluídos, a democracia representativa e a participação
directa dos cidadãos na vida política, o direito à diferença, a liberdade sexual, a defesa
dos direitos das minorias, o estímulo ao associativismo – tudo isto e mais qualquer
coisa pode ser encontrado nos textos programáticos e na acção política dos partidos de
todos os quadrantes do espectro ideológico das sociedades ocidentais.”107

3. A TERCEIRA VIA

Os anos 90 testemunharam o advento da “terceira via”, que começou com a


eleição do presidente Clinton, seguida por uma sucessão de novos líderes políticos na
Europa, com particular relevo para Tony Blair, no Reino Unido, e Gerhard Schroeder,
na Alemanha. Durante algum tempo as suas ideias do “novo centro” pareceram ter
posto em debandada os velhos conceitos, relegando as ideias batidas de direita e
esquerda para o caixote do lixo da História. Autores influentes como Anthony
Giddens108 e Will Huton, entre outros, escreveram tratados sobre a “terceira via” e
sobre a precariedade do capitalismo global.

Nas décadas de 80 e de 90, os partidos europeus de centro-esquerda


embarcaram num processo em que se procuraram desembaraçar dos seus elementos
mais extremistas num esforço para se tornarem elegíveis. Nos casos específicos do
Reino Unido e da Alemanha, a eleição de novos líderes coincidiu com a perda de
vigor de governos de direita que se mantiveram em funções durante muito tempo. O
eleitorado de ambos os países estava já cansado das mesmas caras e, por vezes,
vinham a lume alegações de corrupção e de abuso de poder. As mudanças que
ocorreram nas eleições britânicas e alemãs, de 1997 e 1998 respectivamente, tiveram,
certamente, mais que ver com a natureza cíclica da política partidária do que com a
emergência de qualquer “terceira via”. A relativa juventude e o encanto dos dois
novos líderes, combinados com a chegada quase simultânea de ambos ao poder,
tenderam para aumentar significativamente a importância da “terceira via”.

107
Rui Valada, “Ser de esquerda, ontem (carta aberta a Mário Soares)”, in www.cienciapolitica.org
108
Anthony Giddens, A Terceira Via e seus Críticos, Rio de Janeiro: Record, 2001.
4. CONSERVADORISMO COMPASSIVO

Se a “terceira via” pode ser afastada como mais um afluente da Amazónia


ideológica da ciência política, que dizer do “conservadorimo compassivo”? Esta
doutrina tem vindo a ser associada a George W. Bush e está a ser estudada
atentamente pelo Partido Conservador no Reino Unido. Sendo um dos principais
progenitores do conceito de conservadorismo compassivo, Myron Magnet109.

No âmago do conservadorismo compassivo estava a preocupação com os


pobres – o que não é uma preocupação tradicional do Partido Republicano.
Procurando afastar-se do que fora descrito como uma política de “negligência
benigna”, vários presidentes de câmara de grandes cidades e governadores de estados
urbanos republicanos deram prioridade crescente a esta área das políticas públicas. A
força do conservadorismo compassivo estava na diminuição do domínio quase
monopolista do Partido Democrata no que diz respeito à preocupação com os pobres.

Novas formas de ajudar os pobres – não basedas no que os comcons


consideravam ser as velhas ideias liberais – foram trabalhadas. Um dos exemplos é o
workfare, concebido para encorajar sentimentos de auto-estima e uma igual cidadania.
Em vez de encerrar os pobres num ciclo de dependência sem fim, os novos programas
procuraram incentivar a ética do trabalho, incentivando assim a autoconfiança e a
capacidade de recuperação de que todos necessitam em sociedade.

Segundo Magnet, os conservadores compassivos deram muita importância a


um tipo de ajuda aos pobres “carregada de valores”, em vez de uma assistência neutra
em relação aos valores, típica dos democratas. Da mesma forma, a garantia da
segurança dos cidadãos é tida como o dever mais fundamental do Governo – tal
como pode ser visto nas severas políticas de policiamento introduzidas na cidade de
Nova Iorque pelo Presidente de Câmara Giuliani, que levaram a uma grande quebra
na taxa de assassínios. A educação é outra área em que os conservadores compassivos

109
Myron Magnet, “O que é o Conservadorismo Compassivo?”, in Revista Nova Cidadania, Lisboa,
Universidade Católica Portuguesa, Ano II, Número 8, Abril/Junho 2001, pp. 18-25.
vêem a necessidade de uma nova abordagem que implemente testes mais exigentes
para estudantes e professores

5. CONCLUSÃO

Existem amplas razões para acreditar que as divisões ideológicas entre direita
e esquerda, com origem na Revolução Francesa, estão longe do fim.
Desenvolvimentos dentro e fora do mundo democrático ocidental confirmam a sua
relevância actual. Vimos que podem emergir diferentes tendências ou vagas tanto à
esquerda (a “terceira via”) como à direita (o conservadorismo compassivo), mas
nenhuma delas representa um novo e real ponto de partida.

O objectivo da divisão entre direita e esquerda é ajudar-nos a compreender as


realidades políticas. Ninguém insiste no facto de que todos os pontos de vista devam
ser identificados com precisão como um ou outro dos lados. Tal como dentro de cada
ser humano existe uma luta entre o bem e o mal, também se trava, dentro dos
indivíduos, uma luta entre a esquerda e a direita.

A divisão entre esquerda e direita ajuda-nos a compreender o mundo e – o que


é talvez mais importante – a nos compreendermos a nós próprios.

BIBLIOGRAFIA

-Bobbio, Norberto, Direita e Esquerda, São Paulo: UNESP, 2ª edição, 2001.


-Giddens,Anthony, A Terceira Via e seus Críticos, Rio de Janeiro: Record, 2001.
-Jaguaribe, Hélio, A Proposta Social-Democrata, Brasília: ITV, 2ª edição, 1998.
-Lafer, Celso, “Bobbio aos 94 anos”, in Revista Nova Cidadania,
Lisboa,Universidade Católica Portuguesa, Ano V – Número 19, Janeiro/Março 2004.
-Lipset, Seymour Martin, “Esquerda e Direita”, in Revista Nova Cidadania,Lisboa,
Universidade Católica Portuguesa, Ano II – Número 8, Abril/Junho 2001.
-Magnet, Myron, “O que é o Conservadorismo Compassivo?”, in Revista Nova
Cidadania, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, Ano II, Número8, Abril/Junho
2001.
-Rawls, John, Uma Teoria da Justiça, São Paulo: Martins Fontes, 2ª edição, 2002.
-Valada, Rui, “Ser de esquerda, ontem (carta aberta a Mário Soares)”, in
www.cienciapolitica.org, e “Esquerda e direita”, in www.cienciapolitica.org
PARA ALÉM DO CONFRONTO ENTRE A DIREITA
E A ESQUERDA : ACTUALIDADE DA PÓS-
POLÍTICA

António J. Caselas110

110
Licenciado em Filosofia, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Doutorado em
Filosofia Política, na Universidade de Évora. Membro do grupo Krisis da Universidade de Évora.
Membro do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa. Tem apresentado algumas comunicações
em conferências. Tem artigos e outros textos publicados.
Para além do confronto, da oposição e das múltiplas aproximações e analogias
entre as categorias de ‘esquerda’ e ‘direita’, o político (os níveis da estruturação e
fundamentação da comunidade organizada) como sucedâneo da política (as relações
de poder e os jogos institucionais e político-ideológicos) marca o nosso tempo. As
categorias determinantes que, no horizonte, se perfilam, ainda que dotadas de um
carácter polémico, já não se prendem com as inquietações históricas e as formatações
ideológicas das noções tradicionais. Elas deixaram de ser relevantes e, em
contrapartida, são convocadas à progressão irrecusável do pensamento, categorias
como excepção, biopoder, decisão activa e passiva, dispositivo, máquina biopolítica,
governação, globalização, imunidade, impolítico, despolitização. As categorias de
‘esquerda’ e ‘direita’ pertencem a um universo de confronto político-ideológico que
precedeu a consciência da complexidade da globalização e das tentativas posteriores
em racionalizá-la através da Filosofia e da Ciência Política. Dessas tentativas, fora da
reflexão das ciências sociais; é exemplo disso, as propostas de refundação política e
ideológica e de reformulação do espectro macroeconómico, apresentadas por algumas
organizações políticas tradicionais de ‘esquerda’.
Como, por vezes, tem sido assinalado, a consciência da globalização ou a sua
determinação prévia ao nível do pensamento político, encontra-se já no Manifesto do
Partido Comunista de Marx. Porém, a referência à vocação imperial do sistema
capitalista, a sua lógica de disseminação e de apropriação multinacional e a
capacidade de absorver, desvirtuar e de se apropriar das marcas identitárias das
nações à escala planetária, obedecem, no presente, a uma rede ou combinatória de
focos de poder e de interesses que são específicos. Para a sua compreensão, a
racionalidade multidisciplinar tem-se mostrado prudente e, em muitos casos,
inoperante. E as dificuldades e bloqueios que têm sido encontrados nessa análise já
não se dissolvem sob a lucidez ancestral das dicotomias mas, em grande medida, pela
identificação de ambiguidades e indeterminações. E justamente, em certas versões da
vertente biopolítica, deparamos com uma articulação entre as categorias tradicionais,
como sejam o poder, a soberania e o governo, com a inesperada emergência da
indeterminação e da disseminação desvanece as fronteiras concetuais assumidas pela
tradição. A indeterminação e a dissolução dessas fronteiras, assume, assim, um papel
predominante na reflexão acerca dos mecanismos e dispositivos do poder, quer
funcionem na relação entre os indivíduos, os grupos e o Estado, quer na relação mais
abrangente em que se torna, porventura, mais difícil identificar, ou seja, as entidades e
instituições envolvidas. A globalização já não se esgota no alargamento territorial,
político-ideológico e económico-financeiro; revela níveis de articulação de poder e da
autoridade soberana distintos daqueles que funcionaram no passado e que contiveram,
de certo modo, o caos nas fronteiras da ordem; revela, igualmente, uma
indeterminação no real e na nossa capacidade para dele se apropriar que já não é
consentânea com as análises materialistas tradicionais. Talvez, a similitude maior
entre o pensamento marxista e a nossa perceção da realidade do presente, seja a visão
que indicia, claramente, a incapacidade de regeneração do capitalismo como sistema
que adotou múltiplas faces e mutações.
A dimensão opressiva do poder acaba por se revelar, não apenas na
plasticidade do sistema económico-financeiro e ideológico que caracteriza o modo de
governação das sociedades contemporâneas, mas na cristalização da sua vertente
objectiva ou ultra-objectiva. É nesse sentido que se pode falar, por exemplo, numa
violência do sistema capitalista dos países mais industrializados e na realidade que
nalguns países emergentes pode apenas ser dissimulada à custa de algumas estratégias
de encenação ideológica já desgastadas. Balibar e Zizek, reafirmaram recentemente e
de forma clara, essa violência a que se associam os actos decisórios do poder
soberano quaisquer que sejam as suas configurações. Um sucedâneo de invisibilidade
económico-financeira marca essa objectividade: tal como sucedia com a invisibilidade
reguladora na visão liberal clássica do universo económico, a realidade objectiva do
funcionamento dos sistemas actuais retira-se por detrás de acontecimentos
correntemente verificáveis e não se deixa apreender facilmente nos seus mecanismos
e dispositivos mais profundos; no entanto, essa realidade é constatável e só a custo se
deixa submergir pela propaganda ou pela astúcia da ideologia ou pelas mutações
próprias da plasticidade do sistema capitalista que consiste na capacidade em assumir
interesses, finalidades e orientações programáticas ecológico-humanitárias.
Como sabemos, uma crise profunda marca os sistemas avançados da sociedade
contemporânea. À crise de base ideológico-política associou-se a crise material que
assume contornos sistémicos dificilmente resolúveis. O enfraquecimento consequente
do poder, conduz à dificuldade de aceitação da autoridade e das suas pretensas
modalidades legitimadoras. O real (a invisibilidade, a objectividade) que estrutura
esses sistemas coexiste com os seus efeitos aparentes e dissimuladores (visíveis,
subjectivos). Tal como sucedeu com os modelos ideológicos revolucionários que
deram lugar a sociedades fechadas, deparamos hoje com o fracasso dos sistemas
liberais e abertos. A situação de ambos os sistemas no limiar de uma falência terminal
e inultrapassável e o uso de certas estratégias desculpabilizadoras com o intuito de os
afastar da justeza da fonte de onde provieram, revela, no entanto, as suas
semelhanças. Ao estatuto pseudocientífico do sistema revolucionário socialista,
sucedeu a naturalização (ou mesmo a tentativa de neutralização ideológica) do
sistema capitalista; revelaram-se um embuste, quer do ponto de vista teórico quer
práxico. Às novas formas de centralização do poder instituídas no século XX, sucedeu
uma discutível liberalização legitimadora que apenas de um modo superficial (ou
formal) se pode referir como democrática. Nesta, a violência, por assim dizer, mística
da autoridade mantém plenamente a sua vigência e assume, mesmo, uma actualização
ou revelação factual inusitada quando analisamos ou pretendemos racionalizar a
situação actual das sociedades desenvolvidas. As novas ressurgências da autoridade já
não se encontram restritas ao universo político-ideológico mas multiplicam-se por
redes de interesses materiais. No momento presente, a referência negativa à figura da
autoridade e do seu domínio libertou-se do círculo limitado da esfera política da
soberania para se imiscuir em áreas aparentemente neutras da organização global das
sociedades. Se assim é, os sistemas ou subsistemas jurídicos podem ser considerados
reféns dessa atualização da autoridade soberana que podemos designar de polémica?
Podem os actos decisórios das entidades pertencentes aos enquadramentos político-
jurídicos clássicos, mais ou menos adaptados à realidade contemporânea, serem
pacificamente aceites? Não deparamos, pelo contrário, com um inesperado e
irrecusável desvelamento da condição ou estado de exceção que aspira à
permanência? Qual é a condição presente da autoridade e do estatuto político que a
encarna? De que forma se pode entender o poder e o seu exercício na actual fase de
desenvolvimento histórico-social em que as decisões já não são determinadas por
critérios de satisfação meramente consumista mas por interesses ou finalidades cuja
invisibilidade agrava ainda mais a sua propensão para o desregulamento? Pode a
simples ganância e interesse especulativo material e o seu imperativo protector
explicar essa propensão? Porventura, nunca como agora esses mecanismos decisórios
ocultaram uma encruzilhada em que o apelo à realização mística da autoridade
substitui as decisões baseadas na sabedoria e na orientação esclarecida e prudencial do
soberano. E nesse caso, a crença e a nova valorização mística do poder, ocupa o lugar
da instituição da autonomia do cidadão e da sua autêntica idealização ético-política. A
sua valorização ética cede lugar à realização de finalidades e desígnios,
verdadeiramente, ilegítimos e inaceitáveis.
Provavelmente, o fracasso da aplicação do poder e a perversão do seu
exercício através de dispositivos e efeitos a que não se pode referir nenhum ideal de
justiça, reside no facto de se ter desvirtuado a configuração, o confronto e a relação
rigorosa entre o público e o privado. A sua incompatibilização, subversão e
impossibilidade de harmonização é hoje mais notória do que nunca. Nesta relação
problemática, abre-se, provavelmente, um espaço de confronto em que um exclui o
outro ou em que ambos coexistem num relacionamento paradoxal de inclusão
exclusiva, tendo em conta que o que é público permite a inclusão daquele que, na
verdade, se encontra, cada vez mais, despojado do seu estatuto ético-político enquanto
cidadão autónomo, não podendo, por isso, assumir o ideal de universalidade na sua
existência quotidiana. Situada num espaço povoado por efeitos paradoxais e iníquos, a
relação de soberania encontra-se, igualmente, deslocada, ou seja, afastada de uma
determinação autenticamente política (e, nesse caso, desvirtuada e apartada da sua
necessária fundamentação ética) para se dispor e assumir, ainda que de modo não
visível, em entidades ou agentes diversos do poder soberano legitimado. À quebra
dessa legitimação associa-se a impossibilidade clara em realizar os ideais ou
princípios de justiça e da equidade, como princípios essencialmente ético-jurídicos
que foram legados à contemporaneidade.
O carácter espectral, disseminado, plástico, móvel, abrangente, cruel e
multiplicativo da lógica do capital financeiro assume, neste contexto, um domínio que
era suposto ser assumido pelo poder soberano representativo e formalmente legítimo.
O desequilíbrio das relações entre os agentes do poder e aqueles que se encontram a
ele submetidos tem origem no modo de estruturação desigual das novas modalidades
do exercício do poder. A visão neutralizadora dos efeitos desse poder, corresponde a
uma ficção ideológica, ainda que esta reivindique o seu contrário, ou seja, o seu
afastamento perante qualquer marcador ideológico; pretende-se, deste modo, mascarar
a assunção da lógica fugaz daquilo que tem sido designado pela ‘dança especulativa
do capital’. A categoria de pós-político, que recusa a qualificação pejorativa da
realidade política institucional e, também, a fundamentação teórica própria das
orientações ideológicas conhecidas é, na verdade, um embuste que serve para
contrariar a assunção da ideologia liberal que se tornou singularmente iníqua. A pós-
política serve, neste caso, o propósito de ocultar essa lógica que contraria
directamente o ideal ético-político da justiça e da equidade. A pós-política é um
engano devidamente identificado e, de certo modo, ‘neutralizado’ nos seus propósitos,
sejam eles declarados ou dissimulados. Porém, existe uma outra dimensão da pós-
política que poderíamos libertar dessa áurea de negatividade: trata-se da auto-
suficiência dos novos movimentos de protesto que, como é fácil de constatar, gozam
de uma espontaneidade e de uma autenticidade inquestionável. A pós-política,
serviria, assim, para qualificar uma realidade política que emergiu da contestação
irrefreável daqueles que se viram esmagados pela lógica do capital e dos seus
mecanismos ou dispositivos dissimulatórios, entre os quais, aqueles que são utilizados
pela designada ‘terceira via’. Esta seria, assim, a modalidade estritamente negativa e
dissimulada que exprime a ‘dança especulativa do capital’ e a sua reticular
abrangência.
A questão, no entanto, não se confina à indicação sumária dessa possível
positividade da pós-política que emergiu para além da terceira via; a ausência de uma
estruturação verdadeiramente política que a possa dotar de consistência doutrinária e
programática é um dos pontos mais débeis da sua existência como movimento que
alguns, de forma mais ou menos paternalista, pretendem desvirtuar. A esta orientação
pós-política incumbe a tarefa paradoxal de se reorganizar politicamente. Se isso não
suceder, poderá incorrer numa desestruturação que levará à sua dissolução ou à sua
absorção na implacável lógica da plasticidade do capital. A dificuldade de uma saída
que impeça a falência de uma possível vertente positiva da pós-política constitui,
aliás, o maior desafio do pensamento político contemporâneo. A proposta de um neo-
comunismo libertário que não incorra na armadilha da sua cristalização conservadora
e, estranhamente, próxima do modo como o seu inimigo ideológico se tentou
legitimar, parece ainda insuficiente ou, mesmo, decepcionante. Não se realiza a
necessária transformação da relação de forças sistémica que permitiu reinventar a
opressão e o despojamento material, que nalguns casos, se radicalizou, pela esperança
na sua humanização ou pela expectativa numa nova regulação racional dos seus
agentes. A ‘dança especulativa do capital’ ou é interrompida de forma abrupta e sem
hesitações, ou veremos os seus afeitos devastadores agravarem-se. A despolitização
da economia ou da orientação governativa revelaram-se, dispositivos ardilosos mais
débeis do que alguns previram. E, do mesmo modo, uma indesejável debilidade pode
atingir a face renovadora do ressurgimento da pós-política.
A política pode ser alterada e transformada mas o político deve manter o seu
vigor pós-revolucionário. Não se pode, ingenuamente, esperar que o ‘político por vir’
e a sua expressão na Polis se desvincule inteiramente das categorias e realidades que
devem requalificar a acção política e o seu ressurgimento global. Nessa
fundamentação da ‘Polis por vir’ já não poderá ocorrer a autonomização da lógica do
capital perante a realidade produtiva e económica, nem a negação do exercício da
livre cidadania. Dele depende a viabilização da liberdade perante a encenação
ideológica ou pretensamente pós-ideológica e a recusa da transformação das
sociedades democráticas em simulacros das injunções inerentes à lógica do capital. A
visão ingénua de uma reformulação ou, mesmo, alteração total da realidade política
sem uma intervenção institucionalizada ou politicamente organizada, deve dar lugar à
insistente tentativa de, mais uma vez, começar de novo, reorganizar partidariamente a
sociedade, libertá-la dos novos jugos globais que se disseminaram e que se retiraram,
cobardemente, por detrás de cenários macroeconómicos. A democracia despolitizada
(travestida na governance) e a economia impolítica são perigosas ficções que
escondem propósitos que já não permitem fundamentar o político e a Polis por vir. A
face conservadora da economia impolítica compromete a reinvenção da equidade e da
justiça: já não podemos aceitar uma ideia de regulação e auto-controlo que continua a
coexistir com a desigualdade e a autonomização ou valorização unilateral e excessiva
do valor troca. A iniquidade material não pode, impunemente, suceder à opressão
política do passado sem que se reaja energicamente contra isso, e sendo assim, a
indignação deve ceder o passo à revolta.
As múltiplas classificações possíveis da realidade que sucedeu ou que pareceu
suceder à política – não escondem essa dificuldade em qualificar a situação actual.
Podemos recusar a categorização da realidade social a partir do termo de pós-política
mas, na verdade, a incumbência em pensá-la para além dos padrões habituais,
mantém-se. E de nada adianta elencar as categorias do novo ou da novidade histórica
usando os termos de ultrapolítica, parapolítica, ou outros. A novidade escapa à
determinação e esse é um velho axioma da epistemologia anti-dogmática. Mesmo
aqueles que estão habituados a enfrentar essa novidade, sentem dificuldade em
racionalizar a realidade social sem a desvirtuar. É exemplo disso, o modo como certos
pensadores tentaram aproximar a violência social dos subúrbios franceses de um acto
gratuito e destituído de relação directa com a realidade. E o mesmo se passa com o
fenómeno da ocupação de sítios estratégicos das metrópoles ou das grandes cidades
com o propósito de publicitar e encontrar um ponto de ancoragem para uma
mobilização contra a iniquidade económica e política. Não podemos, portanto, confiar
totalmente nos esquemas totalizadores daqueles que usam a terminologia
qualificadora dessa novidade. A perceção da realidade engana-nos na exata medida
com que procuramos receber o novo absoluto. A tentativa de fugir a qualquer
capricho subjetivista pode revelar-se, na verdade, uma armadilha. E se começarmos a
reduzir a dificuldade em pensar o presente a uma série pontual de atos gratuitos e
destituídos de determinação política ou qualquer outra, podemos rever-nos na posição
daqueles que não a conseguem pensar de todo, por força do seu comprometimento
numa militância ou visão dogmática.
A visão empreendedora e positiva da pós-política não se pode limitar ao
enaltecimento de uma estreita colaboração entre tecnocratas conservadores e
obedientes à lógica implacável do capital e esclarecidos liberais que apregoam um
princípio de maior tolerância; trata-se de uma abertura de certo modo ao
desconhecido. Há um lado enganador e perigoso na recusa do poder instituído mas,
também, uma esperança numa justa distribuição da riqueza proveniente do
investimento produtivo. A negação recorrente dessa esperança, abre caminho aos
populismos de direita e de esquerda. Nesse sentido, a pós-política pode, certamente,
dar lugar a um espaço de reflexão e edificação (pelo menos, a título experimental) de
um mundo novo. E este procurará emergir das ruínas da globalização fracassada, quer
se deseje ou não. Já não se trata de uma pura ficção política mas de uma firme
exigência em alterar a realidade.
O esforço concertado dos povos para transformar a realidade, que pode
adquirir alguma eficácia no futuro, terá que passar pela organização política e não
simplesmente contrariar de modo empírico e mais ou menos recorrente o poder ou os
poderes instituídos. A vitimização por si mesma, que se afirma quase de forma auto-
suficiente, tem os seus dias contados ou, pelo menos, deixou de ter impacto na
formação de uma consciência social.
Nessa mudança inscreve-se a necessidade de tornar possível o que se designa
por Estado Social. Esta separa, muitas vezes, as determinações recorrentes e opostas
do que se consignou como sendo de ‘esquerda’ ou o que identifica a ‘direita’. A
coincidência entre os arcaicos projetos securitários e a definição do papel social e do
dever protetor do Estado, perdeu-se. Trata-se, assim, de assegurar um modelo de
funcionamento e instituição não eufemística de uma verdadeira proteção. É conhecida
a posição liberal que consiste em tentar assegurar um estatuto minimal para o Estado
Providência mas a proteção futura dos indivíduos e grupos pode ser posta em causa. A
precariedade pode invadir estratos inauditos da rede social maximizando tensões e
conflitos como resposta a essa minimização. Porém, o equilíbrio é sempre precário
qualquer que seja o modelo ou a solução preconizada. A insegurança e a desigualdade
podem atingir níveis de difícil sustentação visto que se retrocede a uma situação que,
mesmo no passado, se revelou inaceitável. E a defesa desse retrocesso é sentida como
uma necessidade ou é apenas o resultado do simulacro da sustentabilidade
económica? Essa questão põe em causa os bons auspícios daqueles que parecem
defender a proteção minimal com o argumento de proteger o futuro. O futuro, na
verdade, será dificilmente sustentável a partir dessa pretensão e essa posição não é, de
facto, assumida em toda a sua extensão e consequências. As novas promessas do
liberalismo baseadas na redução dos encargos estatais com a esfera social é indefinida
e mais exposta ao fracasso do que pode parecer a alguns, e só um esforço de invulgar
estratégia imaginativa permite defendê-la como viável. A insegurança social é uma
faceta da precariedade, da absoluta flexibilidade e mobilidade laboral. A esfera de
abrangência da insegurança pode ser total: não está, apenas, em causa a perda da
identidade e dos vínculos laborais mas da vida social e cívica no seu todo. E, nesse
caso, não é apenas o futuro que está em causa mas o presente. Perde-se o valor do
trabalho , da proteção futura e da aptidão para aceitar uma nova matriz, supostamente,
mais adaptada à realidade atual. No entanto, as contradições permanecem: existência
de mecanismos de sustentabilidade do Estado Providência que poderão, pelo menos
em parte, garantir a sobrevivência, mas laxismo em relação aos efeitos perniciosos de
uma política ou orientação económica ultra-liberal. Deixa de haver equilíbrio entre a
posição liberal e a assunção de riscos que escapam ao controlo das estruturas da
sociedade organizada; a proteção individual e social coexiste mal com a necessidade
da sua privatização. Os mecanismos e dispositivos com que se pretende assegurá-la
estão, também, expostos ao risco. O colapso dos sistemas de proteção social e das
soluções privadas que são apresentadas para o tentar superar torna-se uma ameaça
sempre presente. Esperar que um trabalhador e um futuro protegido pelo sistema
(público ou privado) tenha um bom desempenho profissional numa situação de grande
insegurança é uma ingenuidade; e a suspeição em relação a soluções pouco credíveis
pode prejudicar seriamente as relações laborais e outras que devem coexistir na
comunidade e contribuir para a sua coesão. A tendência inequívoca para desautorizar
politicamente qualquer matriz que conserve o actual Estado Providência, parece ser a
marca indelével de uma ideologia de ‘direita’ no momento presente. Mas a defesa
dessa condição de segurança em moldes, de certo modo, antiquados e
economicamente inviáveis, incorre numa nova forma de desautorização ou perda de
credibilidade, desta vez, dirigida à ideologia que nos habituamos, com as devidas
reservas, a designar de ‘esquerda’.
Quer se assuma uma ou outra posição, a querela mantém-se e, com ela, o
problema essencial: a impossibilidade de resolver a situação de sustentabilidade do
Estado Social pode comprometer a eficácia de uma posição, aparentemente
equilibrada e mais moderada. Como conjugar a vertente meramente económica e
material e a vertente mais política e ideológica já que ambas parecem estar
estreitamente conectadas? A estratégia da sua separação ou o obscurecimento de uma
pela outra pode ser alvo de suspeição mas a verdade é que, apesar das opções políticas
e ideológicas envolvidas, a vertente material mantém toda a sua pertinência: o
financiamento ou os modos de sustentação financeira dessa ‘conquista’ dos povos
ocidentais continua a ser um problema por resolver. E a sua solução não deve
negligenciar essa exigência. Distinta desta, seria a visão catastrofista ou derrotista que
a inviabiliza em qualquer previsão. Essa visão encontra-se, desde logo, enferma de
uma opção claramente ideológica: a ideia de que o Estado Social deve ser abandonado
ou mantido apenas à custa de um artifício de linguagem que conota eufemísticamente
a sua morte com uma mais prudente sustentabilidade. A dança especulativa do capital
implica que, com o seu deslocamento, muitas áreas se empobreçam ou sejam
abandonadas. A sua aparente sustentabilidade pode, na verdade, iludir uma situação
de iminente ou próxima rutura. O que significa, então, o investimento na sua
viabilidade ao nível do discurso para além de uma derradeira aposta ideológica? Com
ela pretende-se, provavelmente, quebrar o ímpeto da contrariedade que destrua
consensos que são a base de uma orientação ideológica mais profunda do liberalismo
que, Chantal Mouffe, por exemplo, assinalou na sua abordagem crítica. A armadilha
ideológica que está sempre presente não é iludível através da tarefa aparentemente
bem intencionada da busca do consenso. Uma procura obstinada por um consenso,
que na verdade, não tem razão de ser nem pode possuir a correspondência factual
torna-se, assim, mais prejudicial do que benéfica. A verdadeira face do político
mostra, também, o conflito e a rutura; como tem sido notório, na encenação do
consenso esconde-se uma outra procura concreta: a da hegemonia. Nesta, acabam por
se dissolver as diferenças e justas exigências sociais, nas quais se inscrevem os
esquemas protetores da função social de um Estado que garanta a existência não
reduzida ao quadro minimal de proteção. Só aparentemente é que esse quadro se
mostra eficaz porque, na verdade, o esquema minimal não pode garantir qualquer
proteção. Daí o paradoxo: pretende-se reduzir o Estado Social a uma condição
minimal que se considera ser a garantia da sua sobrevivência futura que,
verdadeiramente, não irá ocorrer. E a própria noção dessa impossibilidade é um dado
verificável. O minimalismo e a neutralidade ideológica são as verdadeiras faces da
destruição do Estado Social. A neutralidade consensual é, significativamente, a marca
da pseudo-neutralidade da pós-política.
Evitar a neutralidade e assumir a tarefa social como uma clara contrapartida da
defesa do consenso liberal, é precisamente a substância de uma posição que,
contemporaneamente, se designa de agonística. Iludir o contraditório, a contrariedade
e o reivindicativo torna-se, na prática, um perigoso e contestável elemento do
consenso liberal que, como vimos, se institui nos bastidores de uma hegemonia. Nas
condições que inviabilizam o consenso encontra-se, de facto, o quadro de interesses
que não pertencem á esfera do comum; a desigualdade e a injustiça agravam e
radicalizam as diferenças e tornam mais longínquo o consenso. Assumi-lo sob a capa
de uma pretensão ideologicamente neutral é um engano; pretender estabelecê-la
universalmente é uma utopia. Qualquer tese agonística que respeite as diferenças e se
afirme como o sucedâneo da luta de classes, não necessita de argumentos ideológicos
ou político-partidários; os próprios factos e tensões sociais revelam a sua pertinência.
No entanto, das diferenças por si só, não emergem soluções para esses conflitos e
tensões. A questão essencial e futuramente prioritária será, então, tentar forjar essas
soluções que realizem, pelo menos a título de pretensão assumidamente ideológica, o
apaziguamento do conflito que foi mascarado pelas estratégias ilusórias da
hegemonia. Essas soluções consistiriam, então, em realizar de forma política e não
“pós-política” os ideais de liberdade e igualdade. Pensar apenas no confronto
agonístico como estratégia anti-ilusória para a desconstrução do pseudoconsenso
liberal revela-se, ainda, claramente insuficiente.
Na atualidade, a ciência económica e a decisão política inserem-se no estado
de exceção económica que tende a tornar-se permanente; esse estado transforma-se
num campo experimental: a assunção da incerteza e da indeterminação coexiste com a
imposição de decisões políticas arbitrárias; negar a natureza experimental das
decisões num âmbito económico tornou-se, também, uma das formas de facilitar a sua
imposição e de atenuar o embaraço que a sua verdadeira face causaria; no sentido de
iludir a contrariedade que passa a ser vista como uma posição radical desfasada da
realidade, tenta-se naturalizar essa decisões, supor que devem aceder ao consenso em
razão da sua inevitabilidade. A condição de exceção que, pela sua lógica política,
tende a perpetuar-se, revitaliza-se à custa de acontecimentos que parecem transversais
a várias épocas e momentos históricos: a guerra (no passado), a ameaça terrorista e a
crise económica (no presente).
O experimentalismo convive perfeitamente com a negação da incerteza dos
resultados das decisões de tecnocratas nomeados num contexto e emergência, ou de
governos que parecem, cada vez mais, agir como um colégio de tecnocratas,
descurando, de forma mais ou menos dissimulada, a quebra da sua legitimidade
democrática. A tentativa de evitar a erosão do poder através da perversa denegação da
duvidosa eficácia das decisões experimentalistas, sobretudo, no domínio económico é,
precisamente, o traço fundamental da tendência cristalizadora do estado de exceção
ou de emergência. Se, no passado, esse experimentalismo se assemelhava a um cego
mecanismo de perpetuação do poder e à imposição autoritária de uma lógica
decisionista centralizada, no presente, trata-se de iludir a ausência de uma orientação
política comum e determinada, reutilizando formatações ideológicas que, no entanto,
já não se adaptam à situação sócio-política actual. Essas orientações correm o risco de
se tornarem nos sucedâneos da norma em Foucault e da lei em Carl Schmitt: puras
medidas tendencialmente administrativas, flexíveis e móveis, desprovidas de
conteúdo, maximamente adaptáveis à vida que pretendem reger, propícias à situação
económica dos povos, pretendendo apresentar-se como um saber virtual que impeça a
estagnação ou a regressão. A denominação virtual para esse decisionismo
administrativo que se sobrepõe à ação democrática, continua a ser governance. E,
como se sabe, a sua imposição como dimensão impolítica do poder governativo é
profundamente equívoca. A sobreposição de diretivas de sentido administrativo às leis
democráticas, constitui o correlato visível da nomeação discricionária de tecnocratas
para assumir cargos políticos. A suposta situação de emergência parece justificar e
manter, simultaneamente, um enquadramento institucional degenerado e um
afastamento, supostamente providencial, da realidade do político.
A exigência de enquadramento institucional por parte dos movimentos de
indignação e revolta alia-se a uma outra: a de encontrar, delegar e fazer intervir os
mais habilitados à participação cívica e política. Mas a quem incube a declaração da
face real do político em desfavor da propaganda e do discurso padronizado dos
representantes dos interesses parciais? Esse desígnio adquire maior importância num
tempo em que a condição democrática da representação institucional parece iludir
aqueles que, na prática, não são ouvidos ou afastados dos interesses assumidos pelo
poder governativo. Como, por vezes se diz e escreve, por regra, essa declaração cabe
aos ‘intelectuais’.
Mas a questão do envolvimento dos intelectuais, como agentes activos que
personificam a voz dos que não possuem voz na sociedade organizada, não passa
apenas pelo reconhecimento da pertinência do seu papel, ou pela sua capacidade e
poder para intervir e alterar a ordem das coisas. A ação dos intelectuais é polémica,
não apenas pela usurpação do lugar daqueles a quem parecem representar (os que não
possuem voz), ou pela capacidade anteriormente assinalada, mas devido a uma outra
razão que, acima de qualquer outra, pode ser, porventura, mais essencial e subtil: o
desconhecimento de algumas intenções ou interesses daqueles que são considerados
excluídos. A sua subtileza associa-se ao carácter ilusório desses interesses. Essa
questão situa-se para além do reconhecimento dos representantes dos excluídos, do
seu papel e poder e do desejo desses mesmos excluídos a falarem em nome próprio. É
uma questão difícil e incómoda. E articula-se com a novidade e, simultaneamente,
periculosidade presente na ideia de dissociar os intelectuais daqueles que não
possuem voz, ou parecem não a possuir. Em todo o caso, um dado permanece como
básico: os intelectuais (o mesmo sucedendo com os partidos, instituições e
organizações, aparentemente, independentes), devem ceder o lugar aos que não
possuem voz, ou seja, aqueles que, desde os primórdios da tradição marxista são
referidos como maximamente oprimidos. A universalidade dessa voz tem sido
devidamente assinalada, quer no pensamento político, quer na tradição revolucionária,
e ressurge nos actuais movimentos de protesto e revolta contra a globalização ou
contra os seus efeitos negativos. Os indivíduos que deles participam, pertencendo a
todos os estratos e condições sociais, fazem-se valer da sua pertença ao Todo ou a
uma totalidade de interesses, ou seja, afirmam-se como aqueles que se situam no
universo dos 99% contra 1%. Essa razão factual ou premissa empírica tem sido uma
constante na reafirmação, por assim dizer, propagandística, desse tipo de movimentos
que, pela sua novidade e grau de consciencialização política, tem criado dificuldades
aos analistas. Trata-se de tentar confrontar o papel dos intelectuais com os seus
representados, e neste caso, sobretudo com aqueles que não possuem voz e que,
mesmo assim, procuram aceder à universalidade. Neste sentido, impõe-se a questão
de saber, então, se os intelectuais os podem representar e aceder a níveis eficazes de
ação política para além da criação intelectual ou cultural, propriamente dita. E como
sabemos, pelo menos desde a abordagem clarificadora de Rancière, a intervenção que
se inscreve no domínio da política é sempre menos problemática do que a que se situa
no domínio do político. A ação que produz efeitos na realidade sociopolítica ou
aquela que se desenvolve na Polis é mais visível e empreendedora do que a que
requer um estatuto e uma configuração politicamente concreta; e, neste caso,
provavelmente, os intelectuais que acedem ou pretendam aceder a esta nível de
intervenção, tornam-se políticos, e o risco de perder o seu estatuto ou aura de
intelectuais é real. Não se trata, apenas, de assumir interesses e litígios que não são
seus e de se apropriar de um combate que possa, aparentemente, dignificar a tarefa
dos intelectuais mas de desvirtuar esse combate: o acesso ao poder (como destino
final da sua possibilidade de intervenção política) por parte dos intelectuais não é um
risco? Uma vez chegados ao poder não vão assumir a representação da célebre e
combatida globalização em desfavor da universalidade? Não vão dececionar aqueles
que neles confiaram e que pertencem à parte maioritária? Essa é uma questão
essencial mas que não pode ser singularizada ou isolada da luta mais abrangente pelo
reconhecimento. A lição do passado mostra-nos diversas formas desse desvirtuamento
da ação política por parte daqueles que, inicialmente, pareceram assumir a
reivindicação de justiça e equidade dos oprimidos ou mesmo, dos que foram sujeitos a
regimes de exploração mais severos. Perceber exatamente o papel dos intelectuais e a
possibilidade legitimadora da sua ação não é uma tarefa isenta de dificuldades. E o
suposto paternalismo dos intelectuais ou a sua falsa representatividade (como
categoria que exprime a falência da ilusão de que eles são os melhores agentes para
assegurar e tornar percetível os interesses daqueles que não possuem voz junto das
outras forças e estruturas da sociedade), não são os únicos problemas. A delegação de
papéis e ações é sempre problemática e revelou-se, no passado, prejudicial. Perante
essas dificuldades e riscos, resta saber se a ascensão de alguns membros pertencentes
à maioria dos que não possuem voz ao estatuto de representantes dessa maioria é,
também, isenta de riscos e problemas fundamentais ou dificilmente contornáveis. A
questão da melhor legitimidade de representação pode estar, à partida, assegurada,
mas resta, ainda, resolver a questão da consistência do seu pensamento, projeto e
ação. E essa resolução pode, em termos mais modestos, consistir, apenas, em perceber
ou tentar descortinar as metas e finalidades dessa ação que, no fundo, consiste, em
tentar aceder ao poder para contrariar uma lógica elitista, minoritária e desvirtuadora
dos interesses e da existência social da maioria.
Sendo assim, as questões problemáticas afetam, não apenas a
representatividade dos intelectuais mas, também, a ação dos representantes diretos
daqueles que se sentem desprezados, oprimidos ou excluídos. E os seus representantes
não podem, somente, aspirar ao mero reconhecimento como pares numa negociação
que, como afirmam alguns, já é uma vitória. Têm que perspetivar um resultado mais
ambicioso que os liberte de falsas modéstias ou imperativos propagandísticos. E,
neste caso, terão necessariamente que conseguir satisfazer os seus objetivos, em
termos mais abrangentes do que as simples reivindicações parciais, como na esfera
laboral ou noutras.
Uma autêntica intervenção política, conduzida por intelectuais ou por
representantes não intelectuais da maioria (ou daqueles que parecem nela inscrever-
se), requer sempre um projeto e uma destinação mais abrangente e não a satisfação de
interesses setoriais. Esse pressuposto ou axioma contraria qualquer visão
programática parcial que só de forma enganadora ou auto-ilusória aspira a um estatuto
político. Certos movimentos cívicos e ecologistas desgarrados dessa visão e projeto
global, pertencem a essa classe de visões particularizadas. Defender uma minoria, um
interesse corporativo ou um ideal humanitário ou eco-humanitário restrito, incorre
sempre nessa ótica limitada e limitadora. A necessidade de mensurar as metas dessa
intervenção particular é o melhor indício da sua visão redutora: não se pode partir
para uma ação verdadeiramente política sem uma margem de incerteza e utopia. E
essa face da intervenção política digna desse nome não é apenas a marca da narrativa
ou da matriz do intelectual mas pode, igualmente, ser expressa por aqueles que
desejam uma intervenção autónoma. Mas pode o sentido dessa autonomia coincidir
com a pretensão à inutilidade dos intelectuais? Apesar da acção dos intelectuais poder
ser relativizada ou até ser alvo de alguma suspeição, a referida pretensão é bastante
duvidosa. Existe, igualmente, um perigo distinto daquele que corresponde à falha na
legitimidade ou representatividade dos intelectuais: é o de deixar os excluídos
entregues à sua sorte. E sem qualquer acesso de paternalismo, devem os intelectuais
evitar esse perigo? Essa parece ser uma aposta, mais ou menos, consensual, que
poderá incluir os defensores do carácter polémico da ação dos intelectuais. A ausência
de fiabilidade e independência dessa ação tem sido confirmada pelos factos, mas a
perda de qualquer representatividade esclarecida é, igualmente, um risco que se pode
repercutir na quebra de eficácia política de qualquer movimento considerado legítimo
no seu confronto com a inequidade. Essa é, aliás, a prevenção a que nos tem
habituado a configuração espontânea dos recentes grupos de protesto. O confronto
com a violência económica, política e policial deve permitir a interpretação e a ação
futura e não apenas a reação imediata de indignação e revolta ao nível dos
sentimentos. O espaço público sofre hoje uma ameaça inédita que tem sido mascarada
pela tentativa em assegurar a sobrevivência do sistema global pré-crise. E mesmo nos
países em que o controlo anti-democrático era e mantém-se mais drástico e violento, o
medo tem sido destronado pela manifestação das energias renovadoras do espaço
público. A violência cega e, aparentemente, ilógica e irracional não foi suficiente para
evitar o confronto entre a esperança e o poder ilegítimo. E o esforço de interpretação
e, eventualmente, de reorientação por parte dos que são designados intelectuais não
deve ser menosprezado. Nenhum esforço dessa ordem ou de qualquer outra é neutro.
A ação política assumida declaradamente pelos intelectuais ou por outros agentes ou
atores do espaço público, implica sempre riscos. Ponderá-los e contorná-los numa
renovação que consiga afastar tacitamente os interesses parciais e setários é a tarefa
que parece impor-se.
A par das dificuldades assinaladas, constata-se, mais uma vez, a
crescente tentativa de neutralização ideológica da ação política e governativa que
constitui a premissa fundamental do consenso ou pseudo-consenso democrático. A
referida tentativa divergiu, recentemente, da “normalidade democrática” para as
conhecidas formas de governação tecnocrática, sem que estejam asseguradas
quaisquer modalidades de legitimação política formal. Sendo assim, assistimos a uma
aceitação tácita (e estranhamente, “consensual”, pelo menos ao nível de diversos
quadros parlamentares), do poder governativo que não pôde apresentar nenhuma outra
garantia para além da referida legitimação. Essa tentativa deve ser assinalada e, sendo
necessário, devidamente clarificada na sua natureza perversa pelos atores do processo
político. A urgência da disponibilização desses atores, nos quais incluímos os
intelectuais, sobrepõe-se ao problema da sua representatividade, tal com foi
anteriormente exposto. E, nesse caso, essa urgência que não pode ser reconduzida a
um debate meramente teórico, poderá justificar a intervenção política ativa desses
representantes dos que não podem ou não conseguem fazer-se representar por outros
meios, muito menos num contexto em que existe uma perda da legitimidade
democrática. Em que sentido e com que resultados pode ser realizada essa
intervenção? Em que contexto político e macro-económico pode ser feita a
recuperação da representatividade democrática? Que papel poderá estar reservado ao
poder financeiro no momento em que essa recuperação ocorrer? São questões que
devem ser respondidas a partir de uma contribuição mais construtiva do poder político
legítimo, tendo em conta a justeza das reivindicações atuais que têm sido
protagonizadas pelos movimentos cívicos ou de reivindicação de um reforço da
cidadania. Da sua positiva resolução dependerá um futuro promissor para a
governação democrática e da possibilidade de pacificação social. O momento presente
não é contextual nem configurável a partir das previsões que se revelaram profícuas
no passado; um dos erros mais comuns da interpretação da situação atual constitui,
seguramente, o apelo aos esquemas redutores do passado e às soluções que
permitiram superar as suas aporias. A antecipação das ocorrências futuras através de
esquemas teóricos, ideológicos ou pretensamente neutrais, que se revelaram
consistentes na interpretação de eventos do passado não pode ser reiterada; o
momento presente é distinto de qualquer desses eventos e será, porventura, irrepetível
nas suas trágicas consequências; por isso mesmo, é a diferença e o novo que, longe da
repetição, se devem instituir na criação da sociedade por vir.
REDUÇÃO AO SIMULACRO :

HISTÓRIA E IDADE PÓSTUMA DA


IDEOLOGIA

Pedro Sargento111

111
Licenciado em Filosofia, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Doutorado em
Filosofia, pela Universidade de Roma Tor Vergata. Professor Auxiliar na Escola de Comunicação, Artes,
Arquitectura e Tecnologias da Informação (ECATI), na Universidade Lusófona de Humanidades e
Tecnologias, em Lisboa. Foi investigador no projecto Filosofia e paisagem, do Centro de Filosofia da
Universidade de Lisboa, de que é membro. Tem vários artigos publicados, em revistas nacionais e
internacionais.
1.O mentor e a utopia

Nas cinco Conferências sobre a vocação do sábio com que Fichte se apresenta à
comunidade académica da Universidade de Jena, apenas na quarta nos é apresentada a
«destinação do sábio na sociedade». O texto, de 1794, interpreta de forma concisa e
exacta os pressupostos que o Iluminismo havia construído sobre a natureza e o papel do
intelectual (ou «sábio» ou, ainda, «douto» «Gelehrte»), com referências particulares que
dizem respeito ao pensamento de Kant. Se considerarmos a ordem das conferências,
chegaremos a saber qual o destino (ou «vocação», ou ainda «missão», «Bestimmung»)
do intelectual apenas depois de conhecermos qual a essência comum e universal da
humanidade e de que modo essa instância, que é a razão, existe e se desenvolve em
sociedade.

A razão é o tema fundamental do Iluminismo e é em torno da sua centralidade


que se desenvolve boa parte do pensamento político, antropológico e filosófico do séc.
XVIII. Para Fichte, ela não apenas deve orientar a acção como define a própria
humanidade, isto é, não se pode retirar ao homem a sua racionalidade sem negarmos
simultaneamente a sua humanidade. Ao homem mais consciente e sabedor das
determinações que lhe advêm da própria racionalidade corresponde então a figura do
intelectual-sábio. O sábio não é aquele que «sabe que nada sabe», mas sim o que
conhece o fundamento comum a todos os homens, e que compreende e aceita o
potencial construtivo e afirmativo da razão. Para usar os termos fichtianos, é sábio
aquele cujo «eu empírico» adquire consciência e clarividência em relação às
determinações fundamentais do «eu puro». Estas reduzem-se a dois princípios gerais: a
concordância do eu consigo mesmo e a transformação do mundo com vista à obtenção
da liberdade e autonomia de todos os seres racionais, o que configura uma concordância
entre o «eu» e o «não-eu», ou, ainda, uma «sociedade moral».

Naturalmente, considerando o mundo fenomenicamente, verifica-se que nem


todos os homens se encontram no mesmo degrau de sabedoria, e que nem todos sequer
tomaram consciência da própria liberdade. A prerrogativa moral de cada um «dirigir
todos os seus esforços, segundo o que melhor souber, para o fim último da
sociedade»112, realiza-se no intelectual, tornando-o um mentor universal, um guia para o
autoconhecimento e para o fim último da vida do indivíduo e da sociedade. Esta
concepção do intelectual como mentor autónomo, isto é, enquanto conhecedor do
desígnio último da existência e enquanto sabedor da fundação racional deste desígnio,
manifesta plenamente aquele princípio iluminista da libertação do homem de todas as
escravaturas e de todos os dogmas, através de exercício pleno da faculdade que o define.
Ser universal que exprime ao máximo a faculdade universal da razão, eis o leit-motiv do
intelectual.

Afim à ideia de que o intelectual serve como uma espécie de farol que indica o
rumo seguro a seguir, está pois a asserção de que este deve atender exclusivamente aos
fins últimos. Para encontrar os elos que tornam estas noções complementares entre si, e
fundadoras de toda a actividade intelectual, é necessário recuar até à filosofia kantiana.
O «reino dos fins» proposto e teorizado por Kant 113 possui uma função primariamente
legitimadora dos meios, isto é, esse reino moral final não é visto como um topos que
podemos esperar atingir mas sim como uma autêntica u-topia que é postulada pela razão
moral e que orienta a acção, dando-lhe uma coordenada fixa e portanto simultaneamente
um valor e um sentido. Este fim supremo ético-moral é claramente definido por Fichte,
ainda nas Conferências, como inatingível, «enquanto o homem não tiver de deixar de
ser homem e não houver de se tornar Deus»114, sem, porém, deixar de ser
imprescindível.

Para além do utopismo finalista, existe ainda um outro atributo identitário e


distintivo da acção intelectual, que é o «desinteresse». O mentor da sociedade é aquele
que sabe libertar-se dos interesses imediatos, individuais ou corporativos, e persegue
aquele fim, que é único e impossível, mas cuja impossibilidade é condição para a
progressão moral de cada um e portanto também da sociedade como um todo. A
consecução de um fim só é possível pela absoluta rejeição do intermédio como final, ou
seja, pela convicção que subjuga os meios ao fim e pela adesão a uma visão total da
realidade e da sociedade.

112
FICHTE (1794), p.28.
113
KANT (1785), pp. 75 e segs.
114
FICHTE (1794), p. 19.
A concepção kant-fichtiana do intelectual, que podemos denominar
essencialista, parte do pressuposto de uma capacidade perfectível da espécie humana,
tema também ele central na antropologia filosófica iluminista. As ideias chave podem
então ser assim resumidas: cada homem, enquanto ser racional, tem em si uma
faculdade ética e moralmente soberana sobre o agir. A razão é a força reguladora da
acção e por isso é ela que determina a lei moral que deve orientar a humanidade.
Elevada à expressão máxima das suas determinações e potencialidades, a razão é o
veículo para alcançar uma sociedade moral. O intelectual (sábio, filósofo...) é aquele
que se situa num estádio muito elevado de autoconhecimento e, portanto, é aquele que
está à frente dos demais em termos de desenvolvimento da própria racionalidade. A ele
é dada a responsabilidade de iluminar o caminho comum, e é nesse sentido que ele é o
mentor, «mestre de e da humanidade»115.

2. Esquerda, direita e ideologia. Uma leitura «conceptológica»

É hoje muito discutida a validade, o estatuto e o valor da dicotomia


esquerda/direita. O espectro por ela circunscrito parece definir toda a amplitude de
posicionamento político possível no interior de um regime democrático, caracterizado
pela alternância na ocupação dos órgãos de poder116. A tendência atual parece ser a de
uma crítica cerrada à distinção entre esquerda e direita, e ela manifesta-se tanto no
Lebenswelt da cultura popular como em algumas recentes invectivas na politologia, na
filosofia e na sociologia117. Esta convergência deve, no entanto, ser tomada com cautela
e não é caso para nos decidirmos imediatamente por uma consensual hostilidade contra
a indiferenciação dos órgãos de poder e dos seus ocupantes. Como habitualmente, a
análise cuidadosa dos problemas e a busca pela informação histórica que ajude a
contextualizar e a dar referências de comparação aos temas que abordamos revelam-se
muito mais úteis para uma verdadeira compreensão do que está em causa, do que
propriamente a reiteração condescendente de uma moda. O conceito de ideologia, no

115
SANTOS (1999), p. 67.
116
vd. BOBBIO (1994), p.49.
117
Id., p. 33.
seu sentido neutro (um conjunto de ideias que formam uma concepção política),
infunde-se na dicotomia esquerda/direita, porquanto se não pode aderir a um partido
defensor de uma certa ideia de organização e estruturação política sem, precisamente,
aceitar e defender esse «ideário». No entanto, é também importante notar que a
ideologia não apenas cobre o âmbito pluralista estabelecido pela divisão entre esquerda
e direita, mas também o ultrapassa, na medida em que regimes mono ou apartidários
possuem igualmente uma ideologia. De qualquer modo, a adesão a uma destas facções
pressupõe a adopção de uma ideologia, e tal acontece quer se tenha ou não dela uma
ideia precisa. A necessidade deste vínculo manifesta-se de um modo mais claro se
pensarmos que o conceito de ideologia começa a destacar-se no pensamento filosófico e
político precisamente ao mesmo tempo que se começa a traçar uma linha divisória
evidente entre esquerda e direita. Aqueles princípios de acção política que hoje dizemos
pertencerem «à esquerda» ou «à direita» são estabelecidos no contexto da Revolução
Francesa e dos estados gerais que a antecederam imediatamente, em 1789. E se a
esquerda e a direita foram adquirindo paulatinamente a sua identidade, já o seu
propalado fim, que se presume referir-se à falta de uma verdadeira significância deste
par de opostos no mundo contemporâneo, terá, assim, de estar ligado à mesma sentença
proferida contra a ideologia. O discurso sobre o fim das ideologias assinalaria enfim um
ponto decisivo no que diz respeito à compreensão da actual situação da dicotomia
esquerda/direita.

De que modo é possível falar de um fim das ideologias, isto é, do fim de um


sistema coerente de ideias de organização política? Em que sentido se apela a esse fim?
A resposta a estas questões não pode surgir apenas de uma noção de «ideologia» neutra
e abrangente, como aquela que acabámos de utilizar. Ela tem de ter em conta a
«fortuna» da ideologia, a diferenciação do seu campo semântico e da sua aplicabilidade
teórica. Neste labirinto da ideologia, das mutações no seu conceito, podemos distinguir
quatro grandes momentos: a ideologia como esclarecimento; a ideologia como crítica
dialéctica; a ideologia neutralizada e a ideologia desacreditada.
2.1 Da ideologia esclarecida ao esclarecimento da ideologia

O primeiro reporta directamente à génese histórica da ideologia enquanto


sistema de ideias políticas. Muito próximo do seu significado neutro, o termo aparece
como reflexo político da centralidade estruturadora e criadora da razão política, como
linguagem ordenada da razão contra os devaneios do instinto e a imprevisibilidade
caótica da natureza. A ideologia iluminista é a ideologia como esclarecimento do
homem, como soberania do racional sobre todos os outros domínios do real, da natureza
à moral, da religião à política. É esta a noção de ideologia que se instala quando, por
exemplo, os enciclopedistas, Kant ou Fichte estabeleciam a filosofia política iluminista,
baseada nos ideais da universalidade, da liberdade, da autonomia, da igualdade. Aqui, a
ideologia e esse mestre das ideias e da cultura, que é o intelectual, unem o real e o
imaginário com um fio lógico: aquele está em direcção a este, o mundo está a caminhar
para a utopia.

O segundo momento é a crítica histórica e dialéctica marxista. A Revolução


Francesa distingue-se pela tentativa de implementar um sistema feudal laico e por um
individualismo social e económico sem restrições de tipo naturalista ou tradicionalista.
O Estado deveria garantir esta secularização e a maximização do empreendedorismo
(dir-se-ia agora) individual, sob o signo da razão universal, esta sim verdadeira garante
da unidade do Estado e da economia118. Para a doutrina socialista de Marx, a Revolução
faz mais do que criar as condições para o aparecimento da sociedade civil, que se vê
pela primeira vez separada da esfera política. A sociedade civil, de resto, constitui-se
precisamente na medida em que se separa do Estado e o combate, sendo esta tensão uma
forma de reincidir na cisão alienante do homem, da mesma forma que a religião o fazia.
O estado político plenamente desenvolvido é criador de uma divisão, de uma dupla
existência humana. O homem – diz Marx - «vive na comunidade política, em cujo seio é
considerado como ser comunitário, e na sociedade civil, onde age como simples
indivíduo privado, tratando os outros homens como meios, degradando-se a si mesmo
em puro meio e tornando-se joguete de poderes estranhos» 119. Complementando este

118
SANTOS (1999), p. 79.
119
MARX (1993), p. 45.
princípio geral, Marx analisa a Revolução, como de resto procede em todo o seu
pensamento, em modo dialéctico. A Revolução pode ser interpretada de modo
«subjectivo», como expressão da vontade burguesa em formar um sistema político de
acordo com os princípios da sociedade civil, mas também pode ser vista, agora
«objectivamente», como carregando consigo a própria aniquilação. A Revolução, ao
pretender transferir o poder para a burguesia, progride e instala-se precisamente pela
distinção e segregação necessária entre o «burguês» e o «não-burguês», o que, afirma
Marx, nega o seu critério definidor que é a universalidade. No entanto, é esta mesma
universalidade perdida e desmentida pela Revolução que instará Marx a conceder-lhe
um lugar determinante enquanto precursora de uma ordem comunista verdadeiramente
universal120.

2.2 Da teoria crítica à descrença na meta-narrativa

A crítica marxista abre um novo campo hermenêutico que na sua generalização


máxima pode ser descrito como uma desconfiança em relação a uma total (e aparente)
transparência da Revolução, bem como em relação ao espírito unitário e, no fim de
contas, consciente e benévolo, do Iluminismo. A crítica marxista, presente nas suas
obras dos anos 40, não é a única obra deste período a marcar uma posição de carácter
«revisionista» em relação ao Iluminismo revolucionário. Veja-se, por exemplo, a
exaustiva investigação de Tocqueville intitulada Antigo regime e Revolução (1856), em
que são desveladas as coordenadas do espírito revolucionário bem no âmago do Ancien
Régime. Certo é que estas reinterpretações constituem o lastro categorial sob o qual
surge o terceiro grande momento da «biografia da ideologia», que aparece no séc. XX
sob o nome de «teoria crítica». A Dialéctica do Iluminismo (1947), de Max
Horckheimer e Theodor Adorno, é uma obra capital na qual estão delineadas as teses
que levam os dois filósofos, pioneiros da chamada «escola de Frankfurt», a reavaliar o
próprio conceito de iluminismo. Abordando o conceito de um modo historicamente
abrangente, a intenção é mostrar os mecanismos de domínio inerentes a uma procura

120
vd. MARX; ENGELS (1976), pp.178-187 e AVINERI (1978), pp. 329 e segs.
pela subjugação do real ao racional. A Dialéctica do Iluminismo e, de resto, uma boa
parte do pensamento da escola de Frankfurt, procura compreender os fenómenos
políticos e sociais sob o ponto de vista das estratégias de poder, dos dispositivos de
controlo e da estratificação e diferenciação do corpo social a partir da actuação do poder
político e económico. Como é óbvio, as potencialidades de um campo de estudo assim
definido são imensas e radiculares, capazes de perspectivar as mais variadas temáticas.
O seu campo de influência envolve toda a analítica do poder, e a evidenciação, entre
outros, do elo dialéctico entre saber e poder. No interior deste elo, a formação e uso da
ideologia e o papel estratégico e efectivo dos intelectuais constituem dois pontos-chave
da teoria crítica. Notando-se uma clara inspiração no marxismo, é no entanto
fundamental notar que a razão pela qual a teoria crítica constitui um terceiro momento
da vida da ideologia é a sua própria tentativa de desvinculação e relação a qualquer
praxis ideológica. A ideologia «neutralizada», por assim dizer, é o resultado de uma
abordagem mais sociológica do que política às dinâmicas entre o poder, as instituições e
a sociedade.

Finalmente, o quarto momento fundamental das concepções acerca da ideologia


aparece pelo final do séc. XX e relaciona-se muito de perto com a reflexão sobre o pós-
moderno. Em A condição pós-moderna (1979), Jean-François Lyotard propõe pela
primeira vez uma cartografia da pós-modernidade e traça os aspetos pelos quais
devemos considerar a modernidade como consumada. O escrito, um «relatório sobre o
saber nas sociedades modernas» comissariado pelo governo do Quebec, analisa as
relações instituídas entre as ciências, as instituições, e o discurso que as articula,
evidenciando a mutação de paradigma desde um espírito unitário e humanista, que
caracteriza as sociedades ocidentais desde o Renascimento, até uma actual
fragmentação cultural, uma prevalência de princípios utilitaristas e economicistas ou a
incidência de uma forte profissionalização e burocratização da esfera político-
institucional. Um dos resultados de uma tal fragmentação do discurso, dos saberes, dos
princípios organizativos das instituições e, ultimamente, de toda a sociedade, é ainda
uma perda da estabilidade das «combinações linguísticas» e do carácter denotativo e
essencialista do referente linguístico em relação ao seu objecto. Este último aspecto
pode ser considerado como a base da mais famosa enunciação de Lyotard acerca do que
melhor caracteriza a pós-modernidade: «Simplificando ao máximo, podemos considerar
“pós-moderna” a incredulidade nas meta-narrativas»121. Estas meta-narrativas são
pensadas por Lyotard como aqueles grandes «agregadores» de crenças e de ideias
políticas, religiosas, históricas e científicas para, em conjunto, formarem o campo total
do saber122. Através da descrença, da instabilidade da relação entre linguagem e real e da
quebra do elo da tradição metafísica que assegurava um valor essencial a certas
categorias (liberdade, igualdade, mas também alma, Deus, bem, belo), a ideologia,
como grande narração, como categoria meta-política e portanto como meta-narrativa,
acaba por enredar-se nas teias das múltiplas linguagens que cruzam o inteiro espectro
social. A verdade que a ideologia quer veicular sucumbe perante o desvanecer de
qualquer valor absoluto que a legitimasse enquanto sistema atendível, ou seja, enquanto
a própria verdade política para os seus seguidores. A dispersão e proliferação de
«verdades» e o pragmatismo tomam o lugar da crença e da mobilização ideológica nas
«sociedades informatizadas», para usar a expressão de Lyotard, e naquela que já antes
George Steiner havia denominado a «pós-cultura»123.

3 As ideias e o poder cultural

A ideologia esclarecida, criada pelo espírito iluminista e revolucionário, crente


na perfectibilidade e no progresso, acaba por dar lugar à rejeição e à incredulidade
generalizada. Este percurso das representações da ideologia está ligado ao percurso dos
intelectuais, pelo que a desacreditação da ideologia deve ser relacionada com a própria
queda dos intelectuais e com a sua situação actual, em toda a linha contrária àquela que
esses detinham no iluminismo. Se no iluminismo a situação dos intelectuais pode ser
descrita como um feliz acordo, em que os homens das letras e da cultura se colocam
«ipso facto do lado da burguesia empresarial, sem deixarem de postular a autonomia e o
universalismo da razão e, por conseguinte, a especificidade da sua prática
intelectual»124, na era pós-moderna a sua «prática» desenrola-se no seio de uma
sociedade que mecaniza, burocratiza e mediatiza as fontes do saber, minando as suas
tradicionais categorias do desinteresse e da universalidade. E é justamente a partir da

121
LYOTARD (1979), p. 6.
122
Id., p.18.
123
STEINER (1971), pp.65-98.
124
SANTOS (1999), p. 26.
reflexão sobre um tema pós-moderno que podemos regressar à noção iluminista de
ideologia, e à figura do intelectual teorizada por Fichte, para lhe acentuar não tanto a
luminosidade esclarecida, mas sim para compreender de que modo é imposta a
centralidade da teoria, da produção cultural e da utopia.

A ideologia, entendida como sistema de ideias que se pretendem eficazes na


organização política da sociedade, e mais do que a nítida proclamação de ideias e de
uma vontade de construir a utopia, torna-se o resultado do processo de autolegitimação
cultural do sábio num contexto revolucionário. É durante o período da Revolução
Francesa que a figura do intelectual se impõe na cena política dando início a um
sistema, tanto categorial como efectivamente institucionalizado, baseado precisamente
nas «ideias» e nos fins absolutos que devem orientar e reger a polis. A ideologia é
portanto o resultado da política cultural, uma actividade que acaba por tornar a cultura
um instrumento fundamental para a aquisição e a manutenção do poder, e não já apenas
um âmbito autónomo de produção de saber. A evolução do regime ideológico na
política dá eficiência à teoria, à troca de argumentos, à opinião pública, dimensões que
estavam ausentes no modelo pragmático do Ancien Régime. A substituição de uma
praxis política imediata e autocrática por uma política das ideias reestrutura a inteira
esfera institucional e redefine a posição dos agentes culturais, tornados assim
protagonistas da história. O regime ideológico baseia-se numa dialéctica entre o
conhecimento e a acção, entre o saber e o poder. A leitura de Mario Perniola vai neste
sentido. Numa obra recente, A sociedade dos simulacros (2011, reedição actualizada do
mesmo título publicado pela primeira vez em 1980), o filósofo italiano traça este quadro
preliminar acerca da emergência do intelectual na política para nos dar a referência do
que a sociedade acabou por perder. A ideologia ganha na produção cultural de índole
literária, artística e científica a sua própria legitimação, porquanto estas actividades
promovem uma concepção política, uma Weltanschauung calibradora dos diversos
aspectos da sociedade. A cultura da Revolução é responsável pelo surgimento de
profissões e fenómenos sociais efectivamente influentes no decurso político. São
exemplos «o nascimento de uma opinião pública separada do Estado, a alfabetização em
massa, o desenvolvimento do jornalismo, a organização do consenso mediante
argumentações culturais e a extensão do sufrágio político»125.

125
PERNIOLA (2011), p.22.
4 Simulacro: nem ideologia nem real

Se estas premissas configuram o aparecimento da noção mesma de ideologia, os


desenvolvimentos históricos mostram, como é sabido, alinhamentos plurais que
distinguem a ideias às quais aderem os grupos políticos. A dicotomia esquerda-direita
depende da viragem no posicionamento da acção cultural descrito por Perniola, uma vez
que tanto uma como outra se constituem justamente no contexto revolucionário da
passagem para o regime das ideias. O propalado fim da validade desta dicotomia,
repetido até à exaustão, pode assim ser compreendido como uma consequência do
«regime» meta-político que sucede ao aparecimento e desenvolvimento das ideologias
propriamente ditas, mas também das suas conceptualizações e usos histórico-
hermenêuticos. Este regime deixa-se delimitar pelo advento, nas sociedades modernas
ocidentais, de uma cultura do consumo visual e da voragem imagética que Perniola
reconduz, na esteira do que já havia proposto Jean Baudrillard, a uma «sociedade do
simulacro». Próprio do simulacro é a «desrealização» da sociedade e da política, porque
este anula as diferenças estabelecidas tradicionalmente através da metafísica clássica,
baseada no valor substancial das oposições (verdade/falsidade, essência/aparência,
bem/mal...). A situação cultural e política que hoje vivemos coloca-se, neste sentido,
como o ápice de um processo que incide na pura apresentação da imagem, e não na
imagem como representação, mais ou menos fiel, de um objecto real e separado da
própria imagem. Assim, o domínio da imagem desrealizante não se circunscreve apenas
à imagem retransmitida, ou seja, aos conteúdos dos media audiovisuais: ela, ao invés,
impõe-se à experiência imediata e à ação quotidiana, envolve-se no manto semântico do
«acontecimento», tornando-se algo como uma representação de si mesma, sem
referência a outro valor senão a supressão de qualquer valor legitimador, fosse ele
utópico ou nostálgico, sagrado ou histórico.

Para ilustrar esta ideia, Perniola recorre a uma obra de Zbigniew Brzezinski,
Between two ages: America’s role in the technetronic Era, na qual o pensador polaco
observa a força de promoção de um imaginário associado a uma nação, mesmo quando
a realidade mostra uma estruturação social e política bem diferente, e considera a
relação entre imagem e acontecimento: «O acontecimento cristaliza o estado de ânimo;
ou melhor, ele age sobre este último como um catalizador, transforma uma veleidade
numa perspectiva concreta que se impõe»126. A imagem – escreve Perniola – situa-se
pois além do verdadeiro e do falso: não é o resultado de uma investigação científica
nem tão-pouco pode ser o resultado de uma campanha publicitária. Estas referências
apelam ambas a uma relação de adequação entre a imagem e o seu objecto, mesmo se
falsificadora; a imagem, pelo contrário, move-se num contexto dinâmico, no qual deixa
de existir a possibilidade de uma sedimentação, de uma cristalização, de um objecto. Ela
não é ideologia, porque procura a transformação do status quo; não é um projecto,
porque o acontecimento que a consolida ou enfraquece não lhe garante nem lhe retira
qualquer realidade.

O acontecimento político moderno que confirma o pleno poder do regime


simulacral são as contestações de Maio de 68. Para Perniola, que de resto viveu por
dentro estes acontecimentos, os movimentos proletário-estudantis assumiram
explicitamente o regresso de todas as ideologias revolucionárias do passado sem que se
tenha, porém, dado alguma revolução. Este é um facto histórico de «importância
primária que não pode ser definido como “real”, no velho sentido da palavra» 127. É o
momento em que se torna evidente a transição efectuada desde um sistema de
«simulacros do poder» (no qual eram as próprias ideologias a postular a consecução de
um estado ideal) a um sistema no qual reina o «poder do simulacro». O mesmo 68 seria
um acontecimento fantasmático, para retomar a ideia de Brzezinski, pois não existe
propriamente uma ideia política para a qual a luta remeteria, mas apenas a condensação
da integralidade do fenómeno numa imagem condensada e efémera, imediatamente
esquecida e suprimida por outro simulacro128.

Se outrora a cultura teve, como vimos, o papel definidor e sistematizador da


acção política, através da viragem em direcção a uma política de ideias, na sociedade do
simulacro a cultura é investida daquilo a que Perniola chama o appiatamento della
società, isto é, a compressão da sociedade numa única dimensão. Rompendo o vínculo
entre real e imaginário, é a própria essência da ideologia a dissolver-se, pois deixa de ter
fundamento aquela duplicação entre realidade e imaginário que motiva a ideia de uma
acção política empenhada em tornar a realidade aquilo que a ideologia sonha. É

126
BRZEZINSKI (1970), cit. in PERNIOLA (2011), p. 16.
127
PERNIOLA (2011), p. 13.
128
Vejam-se também as considerações de Tony Judt sobre as reivindicações dos anos 60, sublinhando
o uso meramente retórico da ideologia marxista, in JUDT (2010), pp. 90-95.
indiferente se esse sonho é o de uma progressão da sociedade em direcção a uma utopia
esclarecida ou uma restauração de uma ordem perdida.

A dissolução da dicotomia seria então uma das consequências de uma ordem da


imagem no mundo contemporâneo, uma força de unidimensionalidade e de anulação
das hierarquias de valores, em prol de uma desrealização onde nem cultura nem política
encontram o seu lugar clássico de forças transformadoras das sociedades. Esquerda e
direita deixam de estar intimamente relacionadas; perdem a sua valência hegemónica e
perdem a sua própria razão de ser, na medida em que ambas dependem da ideia, da
crença e do imaginário anulados pelo simulacro e pelo pós-moderno.

Tudo isto constitui uma novidade desde a Revolução Francesa. Esta


desvinculação determina a remissão da acção política para o âmbito do espectáculo e da
tecnocracia, e a cultura para o âmbito da decoração superficial. A existir, o remédio para
a ditadura do simulacro não pode, portanto, incorrer na repetição de um fazer cultural
inconsciente da sua situação, iludido na perseguição a um ideal insustentável e
desacreditado. Mas também não pode a ele renunciar! Se a culturalização do poder e da
sociedade, como vimos, é a outra face da desrealização, (uma vez que os agentes e a
produção cultural se regulam pelas lógicas simulacrais pós-modernas), a acção cultural
contemporânea que quiser emancipar-se deve antes de mais compreender a sua posição
instrumentalizada e manietada. Há evidência histórica da sua capacidade de substituir
um regime absolutista - qualquer que seja a forma deste último – por um regime de
ideias. Restaurar a ideologia, e com ela a identidade da esquerda e da direita, a sua
própria razão de ser, significa restaurar a cultura e compreender a necessidade de uma
auto-exclusão. Se a prioridade é o regresso da ideia, o caminho parece ser o cinismo
cultural, o desinteresse consciente, a mobilização utópica desencantada.

BIBLIOGRAFIA
ADORNO, Theodor; HORCKHEIMER, Max (1998) [1947],. Dialéctica do
Esclarecimento, Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

AVINERI, Shlomo (1978) [1968], O pensamento político e social de Karl Marx,


Coimbra: Coimbra editora.

BAUDRILLARD, Jean (1991) [1981], Simulacros e simulação, Lisboa:


Relógio d’água.

BOBBIO, Norberto (2004) [1994], Destra e sinistra, Roma: Donzelli.

BRZEZINSKI, Zbigniew (1970), Between two ages: America’s role in the


technetronic Era, New York: The Viking Press.

FICHTE, Johann Gottlieb (1794), Conferências sobre a vocação do sábio, in


http://www.lusosofia.net/textos/fichte_conferencias_sobre_a_vocacao_do_sabio.pdf,
consultado a 22-11-2011.

JUDT, Anthony (2011) [2010], Um tratado sobre os nossos actuais


descontentamentos, Lisboa: Edições 70.

KANT, Immanuel (1997) [1785], Fundamentação da metafísica dos costumes,


Lisboa: Edições. 70.

LYOTARD, Jean-François (2008) [1979], La condizione postmoderna,


Milano: Feltrinelli.

MARX, Karl (1993) [1844], Manuscritos económico-filosóficos, Lisboa:


Edições 70.

PERNIOLA, Mario (2011), La società dei simulacri, Roma: Meltemi.

SANTOS, João de Almeida (1999), Os intelectuais e o poder, Lisboa: Vega.

STEINER, George (1992) [1971], No castelo do barba-azul, Lisboa: Relógio


d’água.
II

RELAÇÃO COM TEMAS ESPECÍFICOS


OS DIREITOS HUMANOS E A DÍADE

DIREITA-ESQUERDA

João Henrique Ribeiro Roriz129

I.

No espaço público onde se estabelecem as relações entre correntes políticas,


vários são os debates que podem caracterizar um sistema político determinado no
tempo. Quiçá um dos mais longevos, que ganhou especial força no decorrer do século
XX, é o da direita versus a esquerda. Em sua moldura, é extensa a lista de tópicos que
podem ser inseridos e se antagonizar: regulação da economia, políticas sociais,

129
Licenciado em Direito e Relações Internacionais, na Pontifícia Universidade Católica de Goiás (Brasil).
Mestre em Direito, na London School of Economics and Political Science, em Inglaterra. Doutorado em
Direito, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Legal officer da Promotoria Internacional,
Divisão de Crimes de Guerra, Departamento Jurídico da Missão de Paz da ONU no Kosovo. Professor da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
educação, tributos, segurança, relação entre Estado e religião, conflitos entre grupos
sociais diversos, migração, etc. Nem sempre tais assuntos encontrarão coerência ou
unanimidade dentro das perspectivas de direita ou de esquerda; e, ademais, há outros
que podem questionar ambas, como talvez o meio ambiente e o surgimento dos partidos
verdes. Há ainda alguns assuntos que podem auxiliar na compreensão do próprio
significado do embate entre direita e esquerda, como o relativo aos direitos humanos –
tema do presente estudo.
A díade direta-esquerda,130 aludida tanto em sofisticadas discussões acadêmicas
quanto em simplificados debates eleitorais, passou a ser questionada no sentimento de
fin de siècle que marcou a derrocada do chamado “socialismo real” soviético e certa
perda de rumo de parte da esquerda. No âmbito teórico, mas com ramificações práticas,
dois contrapostos principais foram apresentados: aqueles que consideram que o embate
entre a direita e a esquerda “permaneceu no centro do debate político mesmo após a
queda do Muro”,131 e os que entendem que essas ideias “não têm mais o sentido que
tinham, e suas perspectivas políticas estão, à sua maneira, exauridas”.132 As obras que
contêm essas visões, Destra e Sinistra, de Norberto Bobbio, e Beyond Left and Right, de
Anthony Giddens, ambas publicadas no ano de 1994, se contrapõem na medida em que
a primeira considera relevante a díade direita-esquerda e a segunda a avalia superada. É
nesse contexto donde ainda não se retirou uma conclusão que esse estudo se insere.
Antes de expor como o discurso dos direitos humanos relaciona-se com a díade
em apreço, alguns pontos acerca dessa merecem esclarecimentos. Nomes de fácil
invocação mas de difícil determinação dos sujeitos, não há dúvida que se pode encontrar
diferentes vertentes, correntes e interpretações do que se entende por “direita” e por
“esquerda”. Sem procurar definir os termos como em um dicionário político, 133 Bobbio
os descreve como programas contrapostos de ideias, interesses e valores em relação aos

130
A forma de apresentação da direita e esquerda como uma díade é proposta por Bobbio: “A
contraposição entre direita e esquerda representa um típico modo de pensar por díades, a respeito da
qual já foram apresentadas as mais diversas explicações – psicológicas, sociológicas, históricas e mesmo
biológicas. (...) Na esfera política, direita-esquerda não é a única, mas pode ser encontrada onde quer
que se queira.” (BOBBIO, Norberto. Direita e Esquerda: Razões e significados de uma distinção política.
2ª ed., tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Ed. Unesp, 2001, p. 50).
131
Idem, p. 28.
132
No original: “(...) the terms left and right no longer have the meaning they once did, and each political
perspective is in its own way exhausted (...)” (GIDDENS, Anthony. Beyond Left and Right. Cambridge:
Polity Press, 1994, p. 78).
133
É interessante notar que não consta como verbete os termos “direita” e “esquerda”, ainda que sejam
utilizados em várias partes do livro Dicionário de Política, organizado por Norberto Bobbio, Nicola
Matteucci e Gianfranco Pasquino (Coordenação da tradução João Ferreira; revisão geral João Ferreira e
Luís Guerreiro Pinto Cascais. 5ª ed., Brasília: Ed. da UnB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000).
rumos que uma sociedade toma. Ou seja, para ele essas palavras se remetem mais a
lugares do espaço político do que a conceitos ontológicos. 134 Na sua interpretação,
seriam concepções relativas, mas sempre antitéticas, que fazem parte de uma díade que
se auto-governa: “onde não há mais esquerda, não há mais direita, e vice-versa.” 135 O
pensador italiano não nega que certa ambiguidade pode caracterizar essas palavras na
linguagem política corrente, mas opina que isso não seria capaz de subverter seus
significados.136 Mesmo fazendo uso de argumentos teóricos na sua proposta de um
critério para distinção entre esses opostos do espaço político, 137 ao narrar as razões e os
significados da díade, Bobbio faz uso de eventos da história mundial, posicionamentos
de partidos políticos e preferências por determinadas políticas públicas que um ou o
outro lado pode ter. Nessa mesma toada, a seguir será retomada a forma pela qual os
discursos que poderiam ser localizados em cada um dos extremos da díade
recepcionaram a proposta dos direitos humanos a partir da Revolução Francesa. Em
seguida, apresenta-se como a completa rejeição inicial é desfeita e passa-se a polarizar a
concepção dos direitos humanos, fragmentando-os de acordo com os interesses de
agendas políticas. Por fim, os direitos humanos aparecem como um possível exemplo
ou de superação ou de renovação da díade direita-esquerda.

II.
A Declaração dos Direitos da Revolução Francesa inaugurou uma tendência de
se considerar os direitos como “naturais, inalienáveis e sagrados”, que alguns autores
parecem interpretar como uma desobrigação com a história. Mesmo que se acate a
controvertida tese de que a concepção moderna de direitos humanos seja uma
continuação da tradição clássica da doutrina do direito natural, a afirmação isolada de
que todas as pessoas têm direitos inerentes em todas as partes do mundo simplesmente
pela sua condição de ser humano pode conduzir à imprecisão factual de desconectar o
contexto específico de seu nascimento. 138 A partir do estudo da genealogia dos direitos
134
BOBBIO, op. cit., 2001, p. 107.
135
Idem, p. 61.
136
Idem, p. 86.
137
Como elemento de distinção das duas referências dessa equação, Bobbio elege o critério da
igualdade: enquanto a direita entende que as desigualdades são naturais e inevitáveis, a esquerda
aponta para as causas sociais dessa desigualdade, devendo ser, portanto, combatidas (BOBBIO, op. cit.,
2001, p. 111-126). Sua proposta não passou incólume das mais variadas críticas, como por exemplo, a
de Perry Anderson, apresentada no apêndice do livro (BOBBIO, op. cit., 2001, p. 159-174).
138
Há autores que defendem que os direitos humanos ganham significado em outros momentos. O
jurista e filósofo conservador Michel Villey precisa no século XVII o momento de formação dos direitos
humanos. Para ele, a matriz desse pensamento deriva inicialmente da teologia cristã, ainda que de
humanos, é difícil desconsiderá-los como uma criação da modernidade. Os marcos
inaugurais usualmente apontados são a Declaração de Independência dos Estados
Unidos (1776) e a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789) – e,
posteriormente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). São marcos por
representarem momentos nos quais os direitos humanos adquirem significado político.
A historiadora estadunidense Lynn Hunt recorda que a Bill of Rights dos EUA só
passou a existir com ratificação das primeiras dez emendas, em 1791, e que na “década
de 1780 os direitos na América tinham assumido uma posição menos importante do que
o interesse em construir uma nova estrutura institucional nacional”, o que fez com que a
Declaração dos Direitos da Revolução Francesa atraísse mais atenção.139
As reações à Declaração de Direitos francesa não tardam, e vêm de antagonistas
políticos. De um lado, os conservadores denunciam o caráter abstrato e desligado da
história. O ensaio de Edmund Burke, Reflections on the Revolution in France
(Reflexões sobre a Revolução na França), de 1790, exemplifica uma vertente crítica à
Revolução e à Declaração de Direitos francesas, e pode ser considerado “o texto
fundador do conservadorismo”.140 Para Burke, tanto as leis quanto o próprio Estado são
identificados com a tradição, que se torna a medida de legitimidade e garantia da ordem
social. A Declaração de Direitos dos revolucionários franceses, além de não
corresponder aos costumes, é ainda calcada em “abstrações metafísicas”, distante da
realidade e incapaz de utilidade. Assim, em uma interpretação do que significa esse
raciocínio para os direitos humanos, para “os burkeanos de direita, o não-
reconhecimento ou a violação dos direitos humanos é logicamente impossível; direitos
são as criações da lei do Estado e o julgamento do direito é interno à história da
instituição.”141 Nessa concepção, o direito se confunde com as instituições que o
estabelecem e não há espaços para questionamento a partir de premissas exógenas.

forma desviada (VILLEY, Michel. O direito e os direitos humanos. Tradução de Maria Ermantina de
Almeida Prado Galvão. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, p. 137-142).
139
HUNT, Lynn. A invenção dos Direitos Humanos: uma história. Tradução de Rosaura Eichnberg. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 126. No mesmo sentido: “apesar da influência até mesmo
imediata que a revolução das treze colônias teve na Europa, bem como a rápida formação do Velho
Continente do mito americano, o fato é que foi a Revolução Francesa que constituiu, por cerca de dois
séculos, o modelo ideal para todos os que combateram pela própria emancipação e pela libertação do
próprio povo (BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 10ª reimpressão, tradução de Carlos Nelson
Coutinho; Apresentação de Celso Lafer. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 85).
140
HUNT, op. cit., 2009, p. 15.
141
DOUZINAS, Costas. O Fim dos Direitos Humanos. Tradução de Luzia Araújo. São Leopoldo: Unisinos,
2009, p. 176. Douzinas opina que também há “versões ‘esquerdistas’ contemporâneas” ( Idem, p. 175)
que podem ser feitas a partir da leitura de Burke da Declaração de Direitos francesa e que são
encontradas em teorias do comunitarismo, do pluralismo jurídico e do multiculturalismo.
Em um passo adiante, guiado pela interpretação de Ronald Dworkin, já seria
possível antever os argumentos do positivismo e do utilitarismo a partir das ideias de
Jeremy Bentham.142 Essa crítica dos direitos humanos, também de matriz reacionária,
segue a percepção de que os “direitos naturais são um mero absurdo: direitos naturais e
imprescritíveis, um absurdo retórico, um absurdo bombástico”.143 Essa perspectiva
intimista, que privilegia o estudo técnico do direito, dificulta a identificação e crítica de
interesses econômicos e políticos que geram, interpretam e aplicam esse direito. E,
mesmo que o direito proporcione compensações localizadas, para contentar seus
beneficiados, ele se mostra refratário à apresentação de um projeto alternativo para a
sociedade como um todo.
À crítica de matriz conservadora junta-se, paradoxalmente, a crítica de Karl
Marx. Esse pensador inaugura uma longa tradição de crítica aos direitos humanos com a
publicação em 1844 do ensaio Zur Judenfrage (Sobre a questão judaica). Ao ponderar
sobre a Declaração de Direitos francesa, Marx dá mostra de sua desconfiança do viés
burguês dela: “os chamados direitos do homem, diferente dos direitos do cidadão, nada
são além dos direitos do membro da sociedade civil [burguesa], i.e., do homem egoísta,
do homem separado do outro homem e da comunidade.” 144 Para Marx, a Revolução
Francesa separou o antes uno espaço social em uma esfera política, restrita ao Estado, e
os indivíduos, ou a sociedade civil burguesa, que cuidariam dos seus interesses
particulares, econômicos em essência. Diferentemente dos “direitos do cidadão”, os
“direitos do homem” enumerados na Declaração pretensamente invocariam uma ideia
universal de um homem abstrato, sendo que, na realidade, a concretude do homem seria
facilmente observada no indivíduo egoísta do capitalismo que se formava. Assim, a
“crítica de Marx aos direitos humanos era total e constante”, 145 o que fez com que os
142
“A teoria dominante [do direito] tem duas partes e insiste na independência de cada uma delas. A
primeira parte é uma teoria sobre o que é o direito: em linguagem menos dramática, trata-se de uma
teoria sobre as condições necessárias e suficientes para a verdade de uma proposição jurídica. Esta é a
teoria do positivismo jurídico, que sustenta que a verdade das proposições jurídicas consiste em fatos a
respeito das regras que foram adotadas por instituições sociais específicas e em nada mais do que isso.
A segunda parte é uma teoria acerca do que o direito deve ser e sobre o modo como as instituições
jurídicas que nos são familiares deveriam comportar-se. Essa é a teoria do utilitarismo (...). as duas
partes da teoria dominante derivam da filosofia de Jeremy Bentham.” (DWORKIN, Ronald. Levando os
direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. 3ª ed., São Paulo: Ed. WMF Martins Fontes, 2010, p. VII-VIII).
143
apud HUNT, op. cit., 2009, p. 125.
144
“the so called rights of man, the droits de l’homme as distinct from the droits du citoyen, are nothing
but the rights of a member of civil society, i.e., the rights of egoistic man, of man separated from other
men and from the community.” (MARX, Karl. On the Jewish Question. In: MARX, Karl e ENGELS,
Friedrich. Collected Works of Karl Marx and Friedrich Engels (1843-44). Volume 3. Nova York:
International Publishers, 1973, p. 162).
145
DOUZINAS, op. cit., 2009, p. 170. Cf. também: BOBBIO, op. cit., 2004, p. 91, 92 e 114.
mais tradicionais dos seguidores dessa corrente do final do século XIX ao começo do
século XX desconfiassem dos fundamentos sobre os quais os direitos humanos se
assentavam.
Contudo, ambas as posições críticas aos direitos declarados a partir das
revoluções oitocentistas se abrandam quando os direitos humanos são escolhidos como
um dos pilares na reconstrução da ordem internacional após a hecatombe da Segunda
Guerra Mundial. Se houve consenso momentâneo entre os aliados vencedores da guerra
na utilização do vocabulário dos direitos humanos na Carta das Nações Unidas (1945) e
na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), ele acompanhou a dissolução
das alianças entre Washington e Moscovo em relação ao seu conteúdo específico. O
debate passa a ser então sobre quais direitos seriam prioritários. A atenção detalhada e
crítica da leitura de Marx aos direitos civis e políticos terá eco nos defensores do
“socialismo real”, que escolhem privilegiar os direitos econômicos e sociais como
argumento contrário àqueles direitos burgueses. A agenda dos direitos humanos se
polariza com a Guerra Fria e atrasa em algumas décadas a especificação dos sistemas de
proteção desses direitos. O entrave das discussões políticas internacionais fragmenta os
documentos que visam a operacionalizar os direitos declarados em 1948, e ao final são
dois os Pactos Internacionais que emergem em 1966: o primeiro versa sobre direitos
civis e políticos, o segundo sobre direitos econômicos, sociais e culturais. O patrocínio
político dos Pactos segue a divisão ideológica dos países na bipolaridade e a aplicação
dos direitos humanos se submete a processos e projetos políticos antagônicos.
A arquitetura proposta nos pactos fomentou a conturbada tese das gerações de
direitos humanos. Para os que concordam com ela, os direitos humanos podem ser
categorizados em: (i) da “primeira geração”, os direitos civis e políticos; (ii) da
“segunda geração”, os direitos econômicos, sociais e culturais; e, (iii) da “terceira
geração”, como o direito ao desenvolvimento, à paz e ao meio ambiente. Há autores que
defendem ainda uma quarta geração, relacionada a questões de informática, eletrônica e
avanços da ciência. Ainda que essa separação atenda mais a propósitos didáticos e possa
ser criticada por aqueles que advogam uma concepção holística dos direitos humanos,
sua proposta é fruto da visão simplificadora que associa os dois lados da díade política
em análise às duas primeiras gerações de direito.
A partir da tese geracional, quais seriam os efeitos da transposição da díade
direita-esquerda para a questão dos direitos humanos? Em relação ao seu conteúdo, o
efeito mais perceptível é o da fragmentação dos direitos humanos. Ao se deparar com a
questão de quais são os direitos humanos, ou quais direitos são mais importantes, uma
determinada corrente política tende a enviesar sua resposta por um caminho que
coincida com seus valores e projetos políticos. A escolha de alguns direitos implicaria o
estabelecimento de certa hierarquia no rol dos direitos humanos. Sem necessariamente
negar os vários tipos, ou gerações, de direitos humanos, as agendas políticas de
determinadas correntes privilegiariam direitos associados a determinadas causas. Os
critérios de classificação dos direitos coincidiriam com as reivindicações políticas de
quem os elenca, se tornando assim menos rígidos quando da sua aplicação. Enquanto
alguns direitos provavelmente teriam maior aceitação, e.g., o direito à vida dificilmente
seria objeto de uma discórdia mais prolongada, outros, como o direito ao
desenvolvimento, seriam objeto de querelas. A fragmentação aconteceria na medida em
que os direitos coincidem ou se chocam com determinadas agendas políticas.
No tocante à efetivação dos direitos humanos, a contraposição direita versus
esquerda pode ter efeitos principalmente no papel do Estado. Caso se entenda que a
tradicional matriz de esquerda defende maior participação do Estado na sociedade e na
economia, enquanto as correntes de direita, principalmente as mais liberais, optam por
um maior afastamento do Estado, ou ainda uma minimização deste, o papel que o
Estado tem na promoção e proteção dos direitos humanos faz parte do debate central.
Com efeito, é por essa relação do Estado vis-à-vis os direitos humanos que se costuma
considerar a chamada primeira geração de direitos como “direitos negativos” e a
segunda e a terceira como “direitos positivos”: enquanto a efetivação dos primeiros se
dá a partir do afastamento e limitação do Estado, os segundos requerem uma maior
participação deste. A questão da participação do Estado na sociedade e na economia
pode ser interpretada como um dos grandes divisores entre direita e esquerda. Sua
consequência específica para os direitos humanos se dá quando da elaboração de
políticas públicas. Por exemplo, para os defensores de uma menor intervenção do
Estado na economia, a quebra de patentes farmacêuticas seria imprópria na medida em
que poderia prejudicar esse ramo industrial e consequentemente a economia como um
todo, além de desestimular pesquisas científicas. Para os que advogam uma atuação
mais ativa do Estado, o desenvolvimento de uma política pública que garantisse o
direito dos pobres à saúde talvez passasse pela necessidade de quebra de patentes
farmacêuticas ou alguma prática similar.
III.
Na prática, no entanto, os dois lados da díade direita-esquerda já esboçavam
superações dos seus posicionamentos da década de 1950 até à de 1980. O Estado do
bem-estar social avançava quando necessário e uma significativa parte dos países em
desenvolvimento já considerava, ainda que cautelosamente, os direitos civis e políticos.
A implosão soviética e o sentimento de vitória estadunidense minam a fragmentação
rígida sobre a divisão dos direitos humanos e o debate entre os direitos políticos e civis
versus os direitos econômicos e sociais perde força frente a outros, como, e.g., entre
universalistas e relativistas culturais. Os lisonjeios extremados das práticas da União
Soviética dão lugar à estratégia da “estrada democrática para o socialismo”, e tanto a
democracia quanto os direitos humanos passam a ser uma das plataformas para os
autores identificados com a esquerda.146
Ao assumir o desafio dos direitos humanos, tanto a esquerda intelectual 147 quanto
os partidos identificados com essa corrente 148 passam a rever as críticas iniciais de
Marx. “É como se os direitos humanos fossem invocados para preencher o vazio
deixado pelo socialismo”,149 explica Boaventura dos Santos.
Nesse cenário, a questão se os direitos humanos são uma causa da esquerda ou
da direita se coloca de forma renovada. O antes rejeitado discurso, hoje dificilmente
encontra opositores ontológicos nas duas searas. Afinal, como bem pontuou Michel
Villey, “os direitos humanos só têm amigos”.150 Tal sentimento de triunfalismo dos
direitos humanos parece ser confirmado pela observação da agenda política de partidos
que denominam de direita ou de esquerda. Ambos os lados da díade confirmam uma
consonância ideológica, o que esfacela o sentido da própria díade, pretensamente
antitética, esvaziando-a de um sentido mais profundo. O discurso eleitoral
provavelmente não deixaria a retórica de um embate entre direita e esquerda minguar,
146
DOUZINAS, op. cit., 2009, p. 178-179.
147
Douzinas lista alguns intelectuais marxistas que lidam com a questão: “Ernst Bloch e muitos pós-
marxistas, como Nicos Poulantzas, Claude Lefort e Etienne Balibar, enfatizavam a centralidade dos
direitos humanos para o socialismo. Além das pirotecnias ideológicas da Guerra Fria e de seu fim, o
pensamento marxista assumiu o desafio dos direitos humanos.” (DOUZINAS, op. cit., 2009, p. 179).
148
“Em nenhum outro lugar o progresso dos direitos humanos foi mais visível do que entre os
comunistas, que tinham resistido tanto tempo a esse apelo. Desde o início da década de 1970, os
partidos comunistas da Europa Ocidental (...) substituíram a ‘ditadura do proletariado’ nas suas
plataformas oficiais pelo avanço da democracia e endossaram explicitamente os direitos humanos”
(HUNT, op. cit., 2009, p. 209).
149
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma Concepção Multicultural dos Direitos Humanos. Contexto
Internacional. Rio de Janeiro, vol. 23, n. 1, janeiro/junho, pp. 07-34, 2001, p. 07.
150
VILLEY, op. cit., 2007, p. 11.
porquanto este seria útil apenas dentro dessa finalidade proposta e, na realidade, a
agenda política seria caracterizada mais por consensos do que dissensos.
Todavia, na medida em que os direitos humanos são usurpados como causa de
todos, passam a ser causa de ninguém e seu conteúdo político se dilui. Sua essência
contra-maioritária é perdida, e seu foco central nos oprimidos e necessitados desvia-se.
Sua aptidão de crítica social dá lugar a um rótulo neutro e instrumentalmente eficaz que
serve aos mais variados recipientes. De forma geral, ao se tornar uma ferramenta
maleável que pode conferir legitimidade a discursos e ações, os direitos humanos
acabam por se tornar um meio de compensação, na melhor das hipóteses, ou
justificativa para guerras, na pior. Especificamente no Direito, acabam restritos à
aplicação positivista, quando muito e quando submetidos aos sabores do sistema
jurídico nacional. Por concentrar as possibilidades de reivindicação social e ao mesmo
tempo exauri-las de reais chances de mudanças estruturais, o discurso dos direitos
humanos acaba por favorecer mais os detentores do poder, aqueles que acastelam a
manutenção do status quo.
Ao apresentar uma interpretação do problema que intitula este estudo, buscou-se
demonstrar como o discurso dos direitos humanos exemplifica ou um possível
esfacelamento do sentido da díade direita-esquerda ou então a sua renovação. No
primeiro cenário, na medida em que o espaço público se caracteriza mais por pontos de
convergência, ou ainda com novos caminhos ou terceiras vias – superando a tradicional
contraposição, em suma – os direitos humanos aparecem como consenso. O perigo
dessa perspectiva é, como se afirmou, o esvaziamento do seu próprio significado
enquanto instrumento de transformação social. Se, por outro lado, se entende que a
moldura dos direitos humanos é legítima e capaz de comportar o conteúdo de
emancipação social tradicionalmente arguido pela esquerda, e, para isso, aqueles
direitos que tocam nas questões de transformações econômicas e sociais deveriam ser
ressaltados, então o discurso dos direitos humanos pode fomentar novamente o embate
entre os dois opostos políticos.

Referências bibliográficas

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Nelson Coutinho; Apresentação de Celso Lafer. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
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Imprensa Oficial do Estado, 2000.
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VILLEY, Michel. O direito e os direitos humanos. Tradução de Maria
Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.
O PAPEL DO ESTADO E A
DIVERGÊNCIA ESQUERDA-DIREITA

Elisabete Joaquim 151

O discurso dicotómico esquerda-direita é hoje bastante difuso. Não é incomum


ver o mesmo partido político ou o mesmo autor rotulados ora de esquerda ora de direita,
dependendo do observador. No seu uso político, os conceitos são usados ora em
referência à posição que o observador assume no espectro político, ora em referência a
um espectro abstraído da História do país, da qual o observador é inevitavelmente
dependente. Se esquerda e direita são na realidade propriedades relacionais – diz-se de x
que é de direita em virtude da sua posição em dado espectro ideológico em relação a y –
então tentar distinguir esquerda-direita apenas pelo seu uso em dado contexto histórico-
cultural é mais facilmente objecto de estudo para a Sociologia do que para a Filosofia.

151
Licenciada em Filosofia, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Mestre em Filosofia
Política, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Tradutora da obra de Paul Valadier :
Détresse du Politique, Force du Religieux, das Edições Piaget, Lisboa.
Será então possível encontrar, de forma universalmente válida, um ponto fixo no
espectro da ideologia política a partir do qual um sistema de ideias ou posições isoladas
possam ser consideradas ou de esquerda ou de direita? Parece unânime referir-se à
esquerda como a facção que defende mais Estado, e à direita como a que defende menos
Estado, mas “mais Estado” ou “menos Estado” são anda relacionais e implicam um
ponto, desta vez visível porque referente à quantidade de Estado de facto existente em
dado sistema, em que x se define à custa da sua posição em relação a y.

O critério para distinguir esquerda e direita não poderá então ser retirado da
observação concreta de posições efectivamente defendidas, para depois dela abstrair
uma definição universal. Para além do âmbito da descrição ou justificação das tomadas
de posição de esquerda e direita, temos então de ser capazes de identificar quais os
fundamentos dessa dicotomia, quais as crenças de fundo que tornam alguém mais ou
menos inclinado a preferir certa perspectiva de resolução do mesmo fenómeno.

1. Os fundamentos da divergência esquerda–direita

Em ordem a tratar o tema da dicotomia esquerda-direita de um ponto de vista


filosófico, é preciso tentar reconhecer do quê que se fala quando se diz que dada posição
se afasta ou aproxima de x e qual a natureza desse elemento que permite medir relações.
Pressupõe-se ainda que a relatividade do uso dos conceitos não tem como causa a
relatividade do seu referente, o que tornaria esquerda e direita conceitos vazios e
tornaria bastante difícil a explicação de continuarem a serem usados. Ironicamente,
mesmo os defensores da tese de que o paradigma esquerda versus direita é obsoleto, e
devia ser substituído pelo paradigma Estado versus cidadãos, parecem continuar a sentir
a necessidade não só de rotular posições com os conceitos de esquerda e direita mas
também de se auto-designarem por esses termos. De forma directa ou através da
selecção de influências, ideologias como o Socialismo libertário ou o Anarco-
comunismo, e o Libertarismo ou o Anarco-capitalismo, continuam a reclamar para si
algo que faz indiscutivelmente parte da estética da esquerda ou da direita,
respectivamente. Uso estética no sentido de forma de percepcionar o fenómeno político,
modo fundamental de se posicionar perante o político, estética essa indissociável da
ontologia política.
Parece então evidente que a distinção esquerda-direita não se pode estabelecer
pelo seu referente a posições concretas, inevitavelmente relacionais, mas sim pelas
crenças que predispõem à defesa dessas posições. Irei aqui propor que essas crenças são
de ordem epistemológica, isto é, que dependem de uma certa atitude cognitiva perante a
acção política, nomeadamente da existência ou ausência da crença de que o ser humano
pode, através de uma intervenção centralizada, criar e controlar realidades sociais.

1.a. Utopia versus Cinismo

Platão e Diógenes de Sínope representam talvez melhor, no seu extremo, a


atitude da esquerda e da direita perante a capacidade humana de organização político-
social centralizada: total fé no poder de arquitectar e manter dada ordem social, em
oposição a um cepticismo profundo sobre a capacidade e necessidade de uma
organização vertical. São várias as passagens da República de Platão em que assistimos
a uma descrição minuciosa do tipo de engenharia que é possível fazer em ordem a
atingir dado sistema político, criando de forma permanente novas realidades sociais
através de ferramentas políticas: ideias como a abolição da propriedade privada ou da
família só são possíveis num quadro mental de crença de que o poder político tem um
poder construtor total, substituindo uma realidade por outra. Diógenes, no seu total
oposto, recusou por completo que leis impostas verticalmente pudessem ser tão
eficientes quanto as geradas autonomamente, e cultivou uma atitude de escárnio para
com quem acreditava poder criar realidades que substituíssem as naturais. Mais do que
uma predisposição perante o poder político, estamos aqui perante crenças
epistemológicas sobre a capacidade do ser humano prever, criar e manter sistemas de
ordem social: a Utopia e o cinismo têm como corolário epistemológico uma atitude
positivista em oposição a uma atitude céptica perante a capacidade humana de
arquitectar, de forma centralizada, uma organização político-social.

1.b. Ontologia política

A crença de que a engenharia política é uma forma eficaz de criar realidades


político-sociais não pode ser separada da crença ontológica, e em certo sentido
metafísica, que a precede sobre a própria natureza do político. Dois paradigmas podem
ser encontrados na experiência de pensamento do estado de natureza. Para o primeiro, a
ordem política pré-existe ao estado civil. Para o segundo, é uma criação que ocorre
simultaneamente à instauração de um estado civil. Encontramos aqui o ponto zero da
divergência de crenças quanto à capacidade de criar ordens sociais através de
ferramentas legislativas ou políticas: acreditar que sem estado civil não haveria ordem
social é já acreditar que a ferramenta legal pode criar e controlar fenómenos sociais que
não existiriam sem ela. O poder que Rousseau confere ao Contrato Social no seu
Discurso sobre a Origem da Desigualdade é total, um poder radicalmente criador que
pode instaurar uma realidade social até então inexistente. O Contrato Social de Locke é
destituído desse poder criador uma vez que uma ordem social o precede e, nessa exacta
medida, o limita ontologicamente.

2. O papel do Estado

Se admitirmos então que esquerda e direita se distinguem quanto à sua atitude


epistemológica perante a ordem político-social – crença de que o ser humano pode com
eficácia e de forma centralizada criar e manter ordens político-sociais -, compreendemos
quão divergentes podem ser as suas posições sobre o papel que é possível atribuir ao
Estado. Se para a esquerda os limites da acção do Estado estão apenas no campo que a
cruza com a Ética (parte-se do princípio que a vontade humana é o único limite da
possibilidade de acção do Estado), para a direita a realidade que pré-existe à ordem
político-social criada verticalmente é o mais fundamental limite da acção do Estado,
acarretando fronteiras de precaução éticas e epistemológicas dado que a condição de
possibilidade e de manutenção de dada realidade criada verticalmente depende sempre
da sua compatibilidade ontológica com uma realidade que lhe é anterior. Grosso modo,
se para uns o Estado pode criar realidades, para os outros pode apenas garantir a sua
manutenção.

A crença de que se pode arquitectar e criar as leis que permitirão instaurar uma
nova ordem político-social parte do princípio que a lei tem um poder total sobre a
realidade político-social, não existindo distinção entre a realidade político-social e as
leis que a criaram: as leis criam realidades. A posição oposta não põe em causa que a lei
possa ter um impacto na realidade político-social, mas terá reservas sobre as
consequências imprevisíveis dessa nova criação ou sobre a sua estabilidade ou efeitos a
longo prazo, preferindo sempre conservar a ordem em funcionamento desde que a sua
permanência no tempo tenha por si só provado o seu carácter inócuo. Todo o jogo
político se desenrola neste caso consoante o conhecimento que se tem sobre o assunto
no qual é proposta a acção do Estado. Em caso de dúvida, a atitude epistemológica da
direita será abster o juízo e a acção.

2.a Intervencionismo versus Laissez-faire

Se para a esquerda o Estado pode criar realidades politico-sociais, poder e querer


sobrepõem-se e a pergunta O que pode o Estado fazer? substitui-se pela pergunta O que
deve o Estado fazer? – o papel do Estado define-se pela vontade existente na altura em
que a questão é colocada. O grau e as áreas de intervenção do Estado vão então
depender daquilo que é em certo tempo e espaço entendido como desejável. A
materialidade que é implicada pela intervenção é considerada como consequência e não
como factor de condicionamento, pelo qual apenas o design final, a ideia, o poder-
criativo de realidades respondem. Mais do que ser possível enunciar uma série de
acções políticas que pertencem ao campo ideológico da esquerda, a própria crença de
que o Estado é capaz de agir positivamente para criar realidades é aquilo que na sua
substância distingue a esquerda da direita. A direita rejeitará, pelo contrário, a crença na
funcionalidade do papel positivo do Estado, apelando à falibilidade das nossas
capacidades científicas quando aplicadas à acção do Estado na realidade político-social.
Podemos aplicar este raciocínio a todos os níveis em que a acção do Estado esteja em
causa, com uns a defender a possibilidade de controlo do Estado sobre essas áreas e
outros a preferir o risco inerente ao laissez-faire do que o risco da falibilidade de uma
acção centralizada.

Tomando um exemplo aparentemente inócuo como o aumento da idade da


escolaridade obrigatória que teve lugar em Portugal durante um governo de esquerda, o
objectivo manifesto da medida era o de construir no presente as bases que permitirão no
futuro a existência de uma realidade económica e social que, acredita-se, não existiria
sem a acção do Estado naquele momento. A acção obedece a um design que se
fundamenta na crença de que é possível uma engenharia centralizada da sociedade. Uma
perspectiva de direita tal como temos vindo a defini-la não discordará necessariamente
da bondade da vontade subjacente à medida, nem da crença de que maior educação
acarreta um maior desenvolvimento da sociedade, mas tenderá a apontar a falibilidade
potencial do projecto, enumerando quer resultados materiais indesejáveis, quer
consequências desconhecidas na psicologia dos alunos e, subsequentemente, na
qualidade do ensino; em suma apontando eventuais efeitos colaterais da medida que
podem, em última instância, fazê-la revelar-se contraproducente.

Quando confrontamos os dois paradigmas modernos sobre justiça redistributiva,


verificamos também que Rawls e Nozick se baseiam em crenças epistemológicas
opostas sobre o poder do Estado em resolver a desigualdade na distribuição da riqueza,
com Nozick a negar que o Estado tenha a capacidade cognitiva de redistribuir
justamente por ser manifestamente incapaz de regressar até um ponto zero da aquisição
de toda a propriedade adquirida ilegitimamente, e Rawls a defender que é possível,
mediante um correcto design de princípios de distribuição, chegar a um ponto óptimo de
justiça social. Outro factor que distingue os dois autores é de ordem ontológica: a defesa
do Estado Social em Rawls é indissociável da sua crença no poder de engenharia social
do Estado; enquanto que a defesa do Estado mínimo em Nozick é indissociável da sua
genealogia enquanto agência de protecção - a existência do Estado fica assim
directamente ligada e limitada à realidade que a antecede ontologicamente.

Na Economia, o raciocínio dicotómico é o mesmo e mantém-se quer a acção se


aplique a instituições, quer directamente a indivíduos. O confronto moderno entre os
dois paradigmas económicos defendidos por Keynes e Hayek é sobretudo de ordem
epistemológica, com um a defender que é possível prever, controlar e criar fenómenos
económicos, e outro a defender uma visão orgânica da economia e um subsequente
cepticismo quanto aos efeitos da intervenção do Estado na mesma.

Na actual questão da crise financeira mundial, o debate sobre a resolução da


mesma centra-se no tema da regulação, com a esquerda a defender que a solução passa
por maior regulação – ou melhor regulação já que o número de leis sobre o mercado
financeiro tem aumentado exponencialmente ao longo do tempo -, e a direita a defender
que a regulação do mercado financeiro está ela mesma na causa da crise, apontando a
perniciosidade das políticas monetárias dos bancos centrais e da intervenção dos
Estados no sistema bancário. Ainda aqui, mais uma vez, estamos perante um paradigma
de que a intervenção do Estado pode criar e controlar fenómenos, em oposição a um
paradigma que defende que uma criação artificialmente imposta de forma centralizada
estará à partida condenada à falibilidade epistemológica dos agentes, acarretando efeitos
colaterais e não desejados na realidade que pretende instaurar caso esta seja
ontologicamente incompatível com a realidade que precede a acção do Estado.

Quanto à moral, a noção comum de que a direita é intervencionista em questões


de moral e a esquerda não o é representa uma crença infundada. O intervencionismo
atribuído à direita nas questões morais é na realidade um intervencionismo negativo,
uma acção que o Estado desempenha não no sentido de criar novas realidades sociais
mas sim no sentido de cristalizar as já existentes, impedindo que ideologias se
propagem no sentido de as alterar. Mesmo tomando o caso extremo português do Estado
Novo, Salazar defende no seu Como Se Levanta um Estado que o Estado não é um
criador de moral ou um educador por excelência, reservando esse papel à família cujos
valores morais diz limitar-se a defender contra a livre circulação de valores que a
ameaçam. Em termos morais, a direita tenderá então a militar contra que novos códigos
morais atinjam um estatuto legal. Tomando o exemplo do casamento entre
homossexuais, é comum ouvirmos por parte da direita a justificação de que atribuir
estatuto legal é banalizar, no sentido em que aquilo que é entendido como uma prática
minoritária se torna prática normalizada, criando assim uma nova realidade social com
impacto imprevisível. A esquerda optará, ela sim, por um intervencionismo positivo,
militando a favor da criação de um quadro legal que reestruture a percepção da
sociedade sobre o fenómeno, com o objectivo da sua normalização e consequente não-
discriminação, partindo precisamente da crença de que o desenho vertical da sociedade
produz efeitos a nível horizontal. A crença da esquerda de que a acção do Estado deve
preceder a realidade social por ela criada, e assim intervir directamente na moral, é clara
na sua posição contra um referendo nessa matéria peticionado pela direita. Para tornar
ainda mais clara a distinção entre esquerda e direita quanto ao papel intervencionista do
Estado na moral, basta verificarmos que o projecto moral da direita de não normalizar o
casamento homossexual seria exequível sem a existência de Estado, enquanto que o
Estado é condição sine qua non do projecto moral da esquerda.

Em certo sentido, a esquerda é fundamentalmente ideológica - guia a sua


percepção da acção do Estado por construções mentais que pretende instaurar; e a
direita anti-ideológica – define-se muitas vezes à custa da sua reacção a projectos de
instauração de uma nova realidade de forma centralizada.
3. Possíveis contra-exemplos

Como se tem vindo a demonstrar, a defesa de uma existência positiva do Estado


é a consequência do raciocínio de que é possível manter uma ordem arquitectada dos
fenómenos sociais, crença que atribuímos à esquerda. Não obstante, existem correntes
ideológicas que se assumem de esquerda e que descartam simultaneamente a existência
de Estado - o que poderia à partida parecer um contra-exemplo à tese aqui desenvolvida
pode na verdade ser encarado como uma fé in extremis na engenharia social. O fim
último do comunismo de Marx realiza-se quando a sociedade já tiver atingido um grau
de ordem suficiente para que o Estado deixe de existir: a crença num comunismo puro
sem Estado assenta na crença de que o poder do Estado em instaurar novas realidades
sociais é tão radical que essa realidade permaneceria intacta mesmo aquando o
desaparecimento do reforço do Estado. Empurrando o espectro revolucionário ainda
mais para a esquerda, os Anarco-comunistas rejeitam de todo a existência de Estado,
mas não rejeitam a existência de uma instância organizacional que tenha por tarefa
harmonizar a sociedade perfeita – as comunas - nem a ideia de que um design precede
tal sociedade. As tarefas de distribuição dos bens e de controlo das relações económicas
pela abolição do comércio e expropriação da propriedade tornam por vezes as comunas
difíceis de distinguir das próprias funções centralizadoras que distinguem o Estado. Na
sua Conquista do Pão, Kropotkine descreve ao pormenor o design organizacional que
as comunidades terão de seguir para que a sociedade funcione.

Grosso modo, mesmo no seu maior extremo, a esquerda continua a distinguir-se


da direita pela sua fé numa organização arquitectada da sociedade, variando na escolha
das ferramentas ou no grau de uso das mesmas.

No caso da direita, e a título de possível contra-exemplo, existem hoje


fenómenos complexos como o Anarquismo Nacionalista que se reclama
simultaneamente anti-capitalista e de direita. É curioso verificar que apesar da
complexidade dessa família ideológica, a pertença à direita é ainda assim sentida na
crença de que existem elementos pré-existentes à política (como seja a cultura, a raça,
etnia, sendo até usado num sentido mais lato o conceito de tribo) que determinam a
organização social, rejeitando-se que categorias artificialmente impostas de forma
central – grosso modo conceitos igualitaristas – possam servir esse propósito.
Portanto, as crenças epistemológicas da esquerda e da direita são o factor que
determinam a maneira divergente como percepcionam a política e o seu poder de
construção social, e logo o papel do Estado. Se para a esquerda o Estado terá
inevitavelmente uma função social, sendo por excelência a ferramenta de criação de
realidades sociais, a direita não reconhece uma função criadora ao Estado, que tende
assim a permanecer como agente de regulação da realidade existente. Porém, como
vimos inicialmente, ambas as posições não estão isentas de ambiguidades no sentido em
que os conceitos de esquerda e de direita tendem a servir um uso prático no discurso
político, posicionando-se perante objectos concretos em discussão. Apenas num
discurso puramente filosófico ou ideal os conceitos de esquerda e direita aparecem
despedidos da sua utilidade pragmática e assumem de forma radical as posições
epistemológicas que lhes são subjacentes.
GLOBALIZAÇÃO :
DEFINIÇÕES, CONVERGÊNCIAS E DIVERSIDADES

Teresa Ferreira Rodrigues152

“Os riscos, ao contrário dos perigos do passado, são


consequências, que se relacionam com a força ameaçadora da
modernização e com a globalização da sua incerteza.”

Ulrich Beck, Risk Society. Towards a New Modernity, p.21

A globalização tem subjacente um processo multiforme e complexo, inscrito em


tempos e espaços diferentes, cuja existência enquanto processo definido e autónomo continua
a ser polémica e questionada. Tal transforma-a em matéria controversa e impossível de
compartimentar com base numa divisão política entre esquerda e direita (MILNER, 2005). O
Mundo encolheu (FIGURA 1). A globalização sugere uma compressão de tempo e também
de espaço, sujeito a processos de desterritorialização. Locais e objectos de poder podem estar
em continentes distintos e apesar do poder se apresentar cada vez mais organizado e pode ser
exercido à distância, ele sofre um processo de desnacionalização. Nas últimas décadas
transformou-se a ideia de espaço e o modo como as populações humanas, também elas novas
152
Licenciada e Doutorada em História, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade
Nova de Lisboa. Agregação em Relações Internacionais, pela mesma Faculdade, onde é docente, no
Departamento de Estudos Políticos, e também no Instituto Superior de Estatística e Gestão de
Informação. É responsável e membro de vários projetos e grupos de investigação, de âmbito nacional e
internacional. É também autora de muitos artigos, e de diversos livros.
populações, o percepcionam e utilizam. Mas a nova realidade mundial não esbate as
diferenças sociais e económicas entre povos, nem soluciona os desequilíbrios no acesso a
recursos naturais indispensáveis à vida e ao desenvolvimento, o que gera desafios e
oportunidades à sociedade de risco, que caracteriza o Mundo actual. A comunidade
internacional encontra-se numa fase de reavaliação e as próximas décadas serão de desafio e
oportunidade (RODRIGUES, 2011).

FIGURA 1. Dimensões da Globalização

FONTE: LEAL, 2011

O debate sobre o significado e abrangência do conceito de globalização é hoje


incontornável para compreender o sistema internacional contemporâneo e remete-nos para
um dos sustentáculos que enformam a sociedade internacional. Trata-se de um processo em
contínua construção, que tem como resultado mais evidente a circulação global de bens,
serviços e capital, bem como de informação, ideias e pessoas. Bastante referida, diversa nas
suas muitas definições possíveis e longe de esgotada, a globalização afecta hoje todos os
moldes em que assenta a realidade.

A globalização, entendida como uma entidade dinâmica, traduz-se em exigências,


impostas a um número crescente de actores. Mas se os seus efeitos em termos económicos
têm sido objecto de acesas discussões e avaliações cuidadas, foram-no bem menos a nível
político, social e sobretudo cultural (RODRIGUES, 2011: 1). (FIGURA 2)

FIGURA 2. Globalização: diferentes conceitos, processos e características

No Mundo pautado pelo acentuar da interdependência dos poderes, cabe ao Estado o


papel difícil de moderador entre os compromissos assumidos externamente no seio de outras
alianças e instituições internacionais, a sua aceitação pela sociedade civil e pelos organismos
não governamentais. Se nos países com melhores indicadores socioeconómicos o grau de
estruturação política e social consegue gerir, mesmo que com graus diferenciado de sucesso,
a ofensiva neoliberal, no caso de Estados mal consolidados o processo abre caminho a
situações de tensão e ruptura, consubstanciadas não raras vezes num agravamento das
desigualdades internas. Transforma-se a ideia de espaço e o modo como as populações
humanas, também elas novas populações, o percepcionam e utilizam. A nova realidade
mundial em construção não esbate as diferenças entre povos, antes parece potenciar a
distância entre ricos e pobres, associada a processos de exclusão, passíveis de tradução
espacial, os quais podem vir a constituir focos de risco de segurança humana à escala
internacional (BECK, 1998). A trilogia População-Recursos-Desenvolvimento regressa à
ordem do dia, numa sociedade de risco global (RODRIGUES, 2010:56-57). Talvez por esse
facto a relação entre globalização, economia e desenvolvimento continua do ponto de vista
discursivo e no debate que se estabelece entre esquerda e direita com grande ambiguidade.
Neste início de século o Mundo não está a ficar mais unido politicamente, mais
interdependente no campo económico ou mais homogéneo culturalmente. Ou estará?

Em torno de conceitos. Globalização e Sociedade de Risco - Quando falamos de


globalização falamos de um processo aberto e contraditório: “A Globalização refere-se à
multiplicidade de ligações e interconexões entre os Estados e as sociedades que
caracterizam o presente sistema mundial. Descreve o processo pelo qual os acontecimentos,
as decisões e actividades levadas a cabo numa parte do mundo acarretam consequências
significativas para os indivíduos e comunidades em zonas distintas do globo. A Globalização
compreende dois fenómenos distintos: alcance (extensão) e intensidade (profundidade). Por
um lado, define um conjunto de processos que abrangem a maioria do globo e que actuam
mundialmente; o conceito tem, por isso, uma conotação espacial. Por outro lado, está
também implícita uma intensificação dos níveis de interacção, interconjugação ou
interdependência entre os Estados e sociedades que constituem a comunidade mundial”
(GRUPO DE LISBOA, 1994: 47). Os seus defensores vêem o fenómeno da globalização
como o processo de criação de um Mundo ligado pela prosperidade. Já os seus críticos o
tendem a considerar fonte de instabilidade financeira, de exploração da mão-de-obra, de
lesões ambientais e foco de tensão a vários níveis.

Mas mesmo quando se discutem as suas vantagens e inconvenientes, existe acordo


quanto ao seu potencial futuro (HELD & McGREW, 2007). Sendo consensual que a
globalização é variável no seu alcance e altamente diferenciada nas suas consequências, o
que importa não é tanto destacar a tendência para a liberalização, a privatização e a
desregulamentação, que são três dos seus motores na actualidade, mas antes acentuar do
papel da regulação, de forma a evitar que os princípios da competição venham subjugar
outras formas de organização da vida económica, social e política (HELD, 1999). Desde o
final dos anos 80 vários investigadores tentaram dar um sentido à relação de forças no
Mundo global (GRATALOUP, 2007). Essas interpretações procuram encontrar os actores de
uma nova ordem. Desde O Fim da História de Fukuyama, a O Choque das Civilizações
editado em 1993, passando pela Geopolítica do Caos de 1997 e culminando em 2009, com o
livro de Robert Kagan sobre O Regresso da História e o Fim dos Sonhos. Procura-se uma
nova inteligibilidade nas Relações Internacionais na transição para um novo milénio
(CLARK, 1999).

Concorde-se ou não com qualquer destes autores, é certo que em termos efectivos o
processo de globalização recoloca alguns desafios, o primeiro dos quais é o da igualdade e
equidade. Questionam-se os fundamentos das políticas sociais: «estará o Estado protector a
transformar-se num Estado activo, gerador de desafios, mais do que um actor responsável
por soluções acabadas?» As mesmas dúvidas sobre a articulação entre igualdade e/ou
identidade, ao nível das políticas culturais e de integração: «não estaremos a passar de um
Estado baseado no tratamento igualitário para um Estado que gera reivindicações
identitárias?». Nas sociedades com índices de desenvolvimento elevado mudaram também
as formas de gestão dos serviços públicos e das empresas públicas (escolas, hospitais,
serviços, caminhos de ferro, correios, telefones, gás e outros). Resta saber como no futuro
será possível articular uma lógica de gestão próxima da vigente no sector privado com as
exigências de igualdade e democracia, sem escamotear a dúvida: «igualdade e/ou
rentabilidade?». E que dizer dos modelos sociais, assentes no dilema entre redistribuição ou
recompensa? No contexto actual as lutas e movimentos sociais têm dificuldade em definir e
articular os seus objectivos de redistribuição e reconhecimento social. O futuro virá mostrar
qual dos factores irá vencer. A um outro nível «como se prevê a articulação entre cultura
local e/ou cultura global, uma vez que a globalização impõe um imaginário global ou
cultura mundial, mas também gera reacções e desejo de afirmação das especificidades
locais?» E, por último, resta saber como articular a distância entre expectativas (desejo de
realização pessoal e necessidades de consumo) e condições reais de vida (desemprego,
exclusão, xenofobia...), sem criar situações limite, sobretudo entre os mais jovens. Trata-se
de uma efectiva sociedade de risco.

Imprescindível é ter a noção que do processo de mudança em curso resultam formas


de risco diferentes das anteriores, desafios e desigualdades. Os riscos não são uma invenção
da actualidade, mas a sua escala, magnitude e consequências são hoje diferentes, porque hoje
eles são cada vez mais entendidos como riscos sem fronteiras, que, também por esse facto,
exigem respostas articuladas a nível interno e tradicional (nacional na perspectiva
vestefaliana) de cooperação internacional. Confrontamo-nos hoje com mais um dilema, que
radica na escolha entre pensar global e agir global ou pensar global mas agir localmente, em
função das realidades em causa, territorialmente circunscritas e/ou detentoras de identidades
próprias. O risco é hoje bem menos identificável e localizável que no passado próximo e
vivemos em sociedades que criaram e criam ainda os principais riscos que têm de enfrentar.
Já não se trata, como no passado próximo, de utilizar a Natureza e moldá-la em função dos
interesses do Homem (FIGURA 3). Parte significativa do investimento actual é hoje
empregue na gestão e resolução ou mera mitigação dos problemas resultantes dos efeitos
decorrentes de opções tecnológicas e económicas das gerações precedentes. Confrontamo-
nos com diferentes tipos de risco (naturais, tecnológicos, globais/mistos) e com diferentes
dimensões de análise de risco: a espacial153, a temporal154 e a social155.

FIGURA 3. HOMEM e AMBIENTE. TEORIAS INTERPRETATIVAS

153
Um exemplo comum é o da poluição, que não conhece fronteiras.
154
Porque certos perigos têm um período de vida longo, como sucede com os resíduos nucleares ou os
organismos geneticamente modificados.
155
Nos casos em que se torna difícil identificar um culpado, já que o problema resulta dos efeitos combinados
de vários actores.
FONTE: Elaboração própria.

Perante a necessidade de actuar preventiva e proactivamente há que procurar um


compromisso entre duas grandes correntes extremas: a) a corrente do pessimismo ecológico,
que aponta a divergência entre o que é eticamente correcto e o que interessa aos grupos com
poder; e b) a corrente do optimismo tecnológico, de acordo com a qual os progressos
verificados a este nível contribuirão inexoravelmente para a melhoria de condições de vida
de todas as populações. Ou seja, a sociedade actual caracteriza-se pela globalização do risco,
em termos de Intensidade, de generalização, da existência ou imponderabilidade de certos
riscos e da criação de outros novos, da ambivalência de decisão relativamente aos riscos e da
necessidade de cooperação internacional para a sua regulação e neutralização.

Vivemos num Mundo pautado pela percepção e existência de graus diferenciados de


insegurança, incerteza e complexidade, onde as ameaças não são facilmente identificáveis e
onde impera um novo perfil de risco, que decorre da dinâmica da mudança. A queda do muro
de Berlim em 1989 provocou uma viragem no panorama geopolítico, conduzindo a uma
manifesta alteração da conflituosidade mundial e a novas perspectivas sobre o modo de tratar
os conflitos violentos. Traduziu-se igualmente na consciencialização quanto à urgência em
assegurar uma contribuição mais efectiva das organizações internacionais e regionais de
segurança no fluir das relações internacionais. Esta dinâmica de mudança é fomentada pela
necessidade de adaptação contínua, de formação de alianças, da pressão para a globalização e
da urgência em reconhecer e gerir pessoas e culturas intrinsecamente complexas (THOMAS,
2000; KENNEDY, 2002; SINGER, 2004; GRATALOUP, 2007).
Entre os principais focos de tensão figuram desde logo as relacionadas com a
inevitabilidade do aumento demográfico nas regiões com piores indicadores de
desenvolvimento humano, a degradação ecológica e transformação dos ecossistemas actuais,
o alargamento do hiato entre ricos e pobres, a persistência da violação dos direitos humanos e
a discordância face às estratégias de mudança. Uma vez mais na história da Humanidade
coloca-se a dúvida de como assegurar o equilíbrio entre população e recursos, sem pôr em
causa o necessário e desejado desenvolvimento económico, social e cultural, permitindo a
aproximação gradual entre populações. É possível agir sobre os modos de vida, a fim de os
tornar mais respeitadores do ambiente, natural e construído, e mais sustentáveis em recursos.
A verdadeira questão da qual depende o futuro da espécie humana é menos a do
número e mais a do modo de vida (RODRIGUES, 2010: 56-5¸ PISON, 2009) A relação do
Homem com os ecossistemas surge na actualidade acompanhada de novas dúvidas e
inquietações, suscitadas pelas mudanças exigidas pela globalização das Relações
Internacionais, com impactos visíveis no tempo (maior velocidade nos processos de
transformação), na escala geográfica (do local ao global), na intensidade (o que reduz a sua
capacidade de adaptação), no crescimento populacional e sobretudo nos padrões de consumo.
Trata-se de um processo aberto e contraditório, de que resultam diferentes formas de risco, só
resolúveis com novas formas de governação.
Como reagir num Mundo marcado por espaços contrastados? Os processos de
globalização tendem a homogeneizar os espaços sociais e acentuar os contrastes em
populações crescentemente urbanas. Certos comportamentos colectivos homogeneízam-se,
mas os vários tempos do processo originam realidades diversas. Aumenta a mobilidade
humana, complexificam-se as relações entre grupos, crescem as tensões sociais. Níveis de
vida e consumo tendem a aproximar-se, mas aprofunda-se a fractura entre ricos e pobres, a
nível económico, sanitário e educativo e estas não coincidem forçosamente (ou
maioritariamente) com as fronteiras políticas.
Alguns dos problemas actuais residem no facto do ritmo de exploração, degradação e
destruição de certos recursos naturais se ter tornado mais rápido que a capacidade da
Natureza para os repor. Mas está sobretudo nos moldes de consumo e nos valores que
subjazem à ideia de qualidade de vida. A relação do Homem com o planeta Terra passa hoje
por algo a que poderíamos designar “crise de reajustamento”, de duração imprevisível em
ritmo e intensidade, que poderá vir a adquirir uma gravidade crescente na segunda metade do
século XXI e se traduz no aumento da pegada ecológica.
Alguma controvérsia e muitas hesitações rodeiam as tentativas de hierarquização dos
grandes riscos actuais e futuros segundo uma ordem de importância relativa e absoluta, dada
a sua variabilidade consoante as regiões geográficas, as conjunturas a que nos reportamos e
as ópticas com que são vistos. A comunidade científica internacional tem considerado
relevantes os efeitos das alterações climáticas, a questão da saúde pública, os conflitos e a
corrida ao armamento, a instabilidade financeira, a má governação e a corrupção, a má
nutrição e fome, as migrações, a garantia de acesso a água potável e a estruturas de
saneamento, as barreiras comerciais (DURAND, 2008) Esta listagem, longe de esgotar as
inquietações emergentes pode ser ainda simplificada, em função dos problemas que reúnem
consenso (LOMBORG, 2004 e 2007): 1) Alterações climáticas e aquecimento global (MOL,
2003; DAUVERGNE, 2007); 2) Saúde pública: doenças contagiosas e “evitáveis” (LEE e
COLLIN, 2005) ; 3) A disponibilização de água ; 4) Os riscos tecnológicos; 5) Os impactos
do envelhecimento demográfico (NAZARETH, 2009); 6) A precariedade da vida nas grandes
megalópoles não europeias (DURAND, 2008); 7) A instabilidade gerada pelas migrações
internacionais (UNDP 2009); 8) A gestão da riqueza e das oportunidades (WBR, 2002) e 9)
O equilíbrio ecológico entre população, recursos, ambiente e desenvolvimento (VEYRET &
ARNOULD, 2008). O futuro tem de ser visto numa perspectiva de sustentabilidade e a
procura de sustentabilidade só se consegue através de um diagnóstico global. Encontramo-
nos numa fase de reavaliação, em que se procuram novos paradigmas e onde o ambiente,
natural e construído funciona como elemento estruturante (RODRIGUES, 2011).

Argumentação e contra-argumentação – O conceito de globalização continua a ser


um assunto de desacordo e mesmo a sua existência como processo independente é
questionada. Mas esta controvérsia não se baseia numa dicotomia política direita-esquerda.

Em termos académicos, uma vasta literatura tem sido produzida sobre a matéria,
estruturada em diferentes perspectivas, que espelham conotações políticas distintas. Em 2000
Held e McGrew dividiam estas abordagens em três correntes, os Hiperglobalizadores, dos
Cépticos e dos Transformacionistas (FIGURA 4). Em seu entender os primeiros (Ohmae,
Wriston, Redwood) defendem uma posição neo-liberal de perspectiva economicista e tendem
a adoptar posições de direita, embora com diferenças entre si. Por seu turno, os Cépticos
consideram que a actual fase não é mais que uma nova etapa em termos de economia-mundo,
à semelhança da vivida na história da Humanidade (como a Pax Britannica de 1870-1913).
Já o terceiro grupo inclui nomes bem conhecidos (Giddens, Castells, Scholle, Rosenau,
Underhill, Hoogvelt), a maioria oriundos da Economia Política. Embora com opiniões nem
sempre coincidentes, têm em comum o facto de considerarem a globalização a driving force
que justifica as alterações recentes ocorridas em termos mundiais nos diferentes sectores da
realidade. Internamente uma linha mais conservadora centraliza o debate em torno da
necessidade de reequacionar o papel do Estado de tipo estatocêntrico e o modo como este foi
forçado a reestruturar a sua acção num contexto pautado pela emergência de novos actores,
entre os quais as Organizações Internacionais. Os mais à esquerda centram o seu enfoque no
conceito de hegemonia (Robinson).

FIGURA 4. Globalização. Três Tendências conceptuais

FONTE: LEAL, 2011

Em termos das percepções políticas e ideológicas podemos considerar que o discurso


político de esquerda é mais céptico quanto às mais-valias trazidas pelo processo, porque
entende que este não se traduz numa vantagem para todas as sociedades, fomentando a
manutenção ou mesmo o reforço das diferenças entre ricos e pobres, dada a sua base
capitalista. Ainda assim a relação entre globalização e economia e desenvolvimento não
divide os discursos de esquerda e direita política, pese embora o facto de podermos de forma
algo simplista estruturar a nossa análise numa divisão entre discurso de esquerda
predominantemente contrário à globalização e direita (MILNER, 2005).

As matérias de controvérsia são quase sempre as mesmas e decorrem de uma óptica


eminentemente económica. No passado recente entre os discursos mais conservadores
predomina o optimismo neoliberal, visível em políticos como o ministro Tory John
Redwood, a que se juntam Percy Barnevik e Fukuyama na defesa das vantagens da
globalização. Os perdedores no processo são-no por não terem conseguido “globalizar-se o
suficiente”. Esta facção domina o poder político e tem acesso a organismos internacionais
relevantes. Mas nem toda a direita está unida nesta linha. Para alguns, sobretudo dos EUA e
Reino Unido (Borosage, Galbraith, Pat Buchanan, Robert Milken) a globalização arrisca-se a
ameaçar os valores tradicionais e o interesse nacional. Esta linha aumenta a sua influência
durante o governo de Tatcher e a administração Reagan. Mas a perspectiva neo-liberal da
globalização sofre alterações vindas de dentro, tendo como obras emblemáticas as de George
Soros, John Gray e Joseph Stiglitz na viragem para o século XXI. Procura-se regular os
moldes do processo e manter a lucidez critica, de forma a evitar discursos que introduzam
sentimentos de insegurança entre as populações, despoletando extremismos ideológicos. Dá-
se para esse fim um voto de confiança no papel a protagonizar por Organizações
Internacionais com o Banco Mundial, o FMI, a Organização Mundial de Comércio, etc.
Ao centro destacam-se dois grupos divergentes, o primeiro dos quais de inspiração
keinesiana (Underhill, Strange). Defendem as vantagens da regulação do capitalismo com
base nacional, a partir de um Estado democrático e social que regule os demais actores
económicos, o que lhes granjeou alguma simpatia na actual conjuntura e crise internacional.
O segundo grupo designado por alguns Nova Esquerda, por oposição à Nova Direita no
poder nos anos 80 subdivide-se em pós-marxistas, social-democratas e pós-modernistas, que
sobretudo no segundo caso sobem ao poder em vários países europeus nos anos 90 (Blair,
Schroder). Propõem uma Terceira Via, ou seja, um liberalismo sujeito a controle suficiente
para defrontar a instabilidade económica e social. No entanto, os governos saídos desta linha
limitaram-se a consolidar a ordem neo-liberal, sem enveredarem por reformas de actuação
política renovada, mesmo em países com piores indicadores de nível de vida e que menos
beneficiavam da lógica neoliberal que continua a predominar na economia mundial.
Intelectuais de esquerda como Jorge Castañeda (1993) defendem a aceitação da lógica
de mercado e a necessidade da sua adaptação às especificidades locais. Esta mesma postura
foi assumida por movimentos e governos associados a mudanças sociais profundas ou
políticas intervencionistas, como o African National Congress (ANC), o Institutional
Revolutionary Party (PRI) e os Sandinistas na Nicarágua. Parte desta aparente contradição
parece resultar da crise ideológica em que a Esquerda se viu mergulhada com o colapso da
URSS, mas ela resulta também de uma redução do espaço de manobra possível do discurso
político para se opôr ao esforço de abertura à globalização nos seus próprios países. Apesar
da base de recrutamento e apoio, a Nova Esquerda viu-se obrigada a reconhecer a falta de
alternativas ao modelo vigente.
A globalização tornou-se uma matéria altamente polémica no espectro da esquerda
política, mas o debate intenso não influencia as políticas públicas, porque não procede de
partidos actualmente no poder (Du Boff, Sivanadan). Os marxistas vêm na globalização uma
ilusão de mercado fomentada para esconder novas formas de imperialismo (Callinicos,
Amin, Petras e Veltmeyer). Outros, como Robinson, Gill & Law e Cox, acreditam que ela
não passa de uma fase do capitalismo, liderada por um bloco hegemónico de elites de âmbito
nacional e transnacional que regulam os capitais, a produção e as lógicas de penetração no
Mercado a nível económico e social.
Serão mortais as civilizações, como defendia Paul Valéry (PISON, 2009), e estará
em risco o Mundo que conhecemos?

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A DICOTOMIA DIREITA-ESQUERDA E ATITUDES FACE
AOS IMIGRANTES : NOVOS-VELHOS TEMAS
FRACTURANTES ?

Isabel Menezes156

156
Licenciada e doutorada em Psicologia pela Universidade do Porto, onde é Professora Associada com
Agregação em Ciências da Educação. Coordena a participação portuguesa no projecto europeu, PIDOP
(Processes Influencing Democractic Ownership and Participation). É investigadora responsável do
projecto EduCiPart (Educação para a Cidadania Participatória em Sociedades em Transição).
Parafraseando Mark Twain, poderíamos afirmar que os rumores sobre a morte da
política (Aron, 1955; Camus, 1951; Jost, 2006; Lipset, 1959 [1994]; Scott-Smith, 2002) têm sido
claramente exagerados, assumindo, como Hannah Arendt, que “a política repousa sobre um
facto: a pluralidade humana” (1950, p. XX). No entanto, esta concepção da política, que
valoriza o pluralismo e a diversidade como condimentos essenciais à qualidade da vida
democrática, tem vindo a ser fortemente ameaçada com apelos ao consenso e à unanimidade
– que estariam para além da “política” – que, como afirma Chantal Mouffe “deviam ser
reconhecidos como fatais para a democracia e, por isso, abandonados” (1996, p. 16). Temos
assistido a esta tendência no nosso País, com frequentes exortações à criação de “consensos
alargados” e a “pactos de regime”, protagonizados por líderes tanto da direita quanto da
esquerda, tanto antes como depois da troika, do mesmo modo que observamos,
recentemente, na Grécia, em Itália e um pouco por toda a Europa, como a democracia está em
suspenso porque “não há outro caminho”. Ora, a política assenta na arte de inventar caminhos
e de tomar partido por um deles – ou, como diria Walzer “a incontornável questão política é:
de que lado estás?” (2002, p.617). E dar resposta a esta questão é o direito essencial e
fundador da cidadania: agir politicamente porque se tem opinião.

Curiosamente, a relação entre as ideologias políticas e as atitudes face aos imigrantes


é, simultaneamente, clássica e nova. Clássica na medida em que um dos primeiros estudos de
Psicologia Política, liderado por Adorno (Adorno, Frenkel-Brunswik, Levinson & Sanford, 1950),
foi instado pela dificuldade em compreender o fenómeno da adesão individual ao fascismo,
que transformou cidadãos em colaboradores do regime Nazi, prontos a denunciar o “outro”. A
proposta de uma personalidade autoritária – caracterizada pela convencionalidade, submissão
autoritária, ou seja, o respeito acrítico e idealista por figuras de autoridade, e agressividade
autoritária, isto é, a hostilidade face aos que violam valores convencionais – assinalava uma
relação entre traços da personalidade individual e a predisposição para a adesão a ideologias
de tipo fascista; e, curiosamente, como aliás as experiências de Milgram (1963) viriam a
corroborar, estas características estavam disseminadas também em países democráticos, não
sendo um exclusivo de regimes totalitários. Embora a investigação original de Adorno e
colaboradores seja hoje, e simultaneamente, criticada pelo seu viés e lacunas conceptuais e
metodológicas (Martin, 2001) e louvada pela sua actualidade (Roiser & Willig, 2002), é verdade
que se trata de um esforço pioneiro de estabelecer relações entre atitudes individuais e
ideologias políticas, mesmo se é hoje fortemente questionável a perspectiva da existência de
“uma” personalidade que determina opções ideológicas. No entanto, os trabalhos posteriores
de Altemeyer (1996, 2003) sobre o autoritarismo de direita sugerem que estas características
pessoais são prevalentes em pessoas com atitudes mais negativas face a grupos como os
imigrantes, as “minorias” religiosas, as pessoas com orientação homossexual, etc..

Apesar destas diferenças serem assumidas desde há décadas, num trabalho recente,
Catherine de Vries, Armèn Hakhverdian e Bram Lancee (2011) argumentam que,
especialmente na Europa, a distinção entre ideologias se faz, hoje em dia, mais pelas atitudes
face aos imigrantes do que pelas tradicionais distinções de caracter económico, por exemplo,
sobre o centralismo do Estado e o lugar do mercado – o que reforça, mais uma vez, o caracter
dinâmico das ideologias, sugerindo que o seu núcleo programático vai sofrendo alterações ao
longo do tempo (Zaller, 2009).

Mas comecemos pela própria noção de ideologia política. Desde logo, a ideologia pode
ser concebida como “um conjunto de crenças sobre a organização adequada da sociedade e
como pode ser atingida” (Erikson & Tedin, 2003, p. 64), o que supõe que falamos de
concepções partilhadas por grupos, que têm funções simultaneamente interpretativas e
normativas, ou seja, descrevem o mundo como “é” e como “deveria ser” (Jost, Federico &
Napier, 2009). A discussão sobre a distinção esquerda-direita no âmbito da Psicologia Política
tem acentuado dois aspectos essenciais: as atitudes face à mudança social (valorizar vs. resistir
à mudança) e as atitudes face às desigualdades sociais (rejeitar vs. aceitar as desigualdades),
que assentariam em duas motivações básicas relacionadas com a incerteza e a ameaça. O
pressuposto é que a direita seria mais apelativa para pessoas com maior intolerância da
ambiguidade e necessidade de ordem e estrutura, o que justificaria a preferência pela
tradição; a esquerda seria mais apelativa para pessoas com maior tolerância da incerteza e
abertura a novas experiências, o que explicaria a preferência pela mudança social (e.g., Jost,
Federico & Napier, 2009; Jost, Krochik, Gaucher & Hennes, 2009; White-Ajmani & Bursik,
2011). Embora o processo de construção de ideologias seja concebido como resultado da
influência de elites políticas – que introduziriam no espaço público ideias que, ao longo do
tempo, seriam apropriadas por grupos sociais e partidos políticos (Zaller, 2009) – a opção por
uma determinada ideologia resultaria de processos cognitivos e motivacionais, resultantes de
estruturas epistémicas, existenciais e relacionais (e.g., influência da família) (vd., Jost, Federico
& Napier, 2009). As opções ideológicas desempenhariam uma função de grelha de leitura da
realidade a partir da qual os indivíduos avaliam os assuntos e candidatos políticos e estruturam
as suas opiniões face ao sistema político – deste ponto de vista, teriam uma importante função
de simplificação cognitiva da política (Pardos-Prado, 2011).
Esta visão, muito embora interessante, é susceptível de críticas. Desde logo, porque
parece repousar numa concepção relativamente dicotómica e fixa das ideologias que é, em si
mesma, uma simplificação do espectro de ideias políticas entre a esquerda e a direita
(Freeden, 2010), cuja coerência interna é, aliás, discutível (Zaller, 2009). Depois, e mais
fundamentalmente, porque assenta numa visão certamente pouco elaborada das estruturas
psicológicas de construção de sentido dos indivíduos, que não só parece depender de uma
concepção das pessoas como consumidores mais ou menos passivos das ideias políticas
produzidas por outrem, como parece assumir que este processo decorre num vácuo social:
ora, a investigação tem reforçado a relevância de uma perspectiva construtivista e ecológica
do desenvolvimento humano, que salienta o papel activo das pessoas na construção de
sentido a partir das suas experiências-em-contexto (e.g., Bronfenbrenner, 1979, 1989;
Coimbra, 1991; Demetriou, 1998; Kelly, 1986, 2010; Lind, 2000; Piaget, 1941, 1977; Menezes,
1999; Nelson & Prilleltensky, 2005; Rogoff, 1998; Trickett, 1994, 2009). Independentemente de
se reconhecer que o nível de literacia política e o nível educacional podem desempenhar um
importante papel na complexidade das identificações e concepções ideológicas e políticas
(Federico, Hunto & Ergun, 2009; Freire, 2006; Jost, Federico & Napier, 2009), a nossa própria
experiência de investigação neste domínio, com crianças e jovens, tem revelado como detêm
concepções sobre o mundo político relativamente elaboradas, acessíveis através do recurso a
metodologias centradas no discurso auto-gerado e produzido em relação (e.g., grupos focais,
entrevistas), mais do que no confronto com categorias hetero-produzidas (e.g., Dias &
Menezes, 2009; Ribeiro, Almeida, Fernandes-Jesus, Ferreira, Neves & Menezes, no prelo).

No entanto, este processo individual de construção de significados não decorre num


vácuo social, nem a-histórico, e as variáveis contextuais desempenham um importante papel,
que não pode ser negligenciado. Especificamente, alguma investigação tem chamado a
atenção para os níveis de diversidade e conflitualidade políticas expressas no contexto. Por
exemplo, Freire (2008) refere que a falta de polarização ideológica dos partidos nas
democracias mais recentes do Sul da Europa pode afectar a identificação ideológica dos
cidadãos. Em Portugal, Freire e Brito (2011) concluem que a polarização esquerda-direita é
frágil, embora fortemente influenciada pela exposição aos média e pela educação. Também
Viegas (2004) sublinha a relativa ausência de discursos e partidos xenófobos no nosso país,
que poderia explicar os resultados obtidos por Jorge Vala e colaboradores (Vala, Brito e Lopes,
1999) de que o conservadorismo político e a ideologia não eram, contrariamente ao que
acontecia noutros países europeus (Pettigrew, 1999), preditores significativos dos
preconceitos. Thorisdottir, Jost, Leviatan & Shrout (2007), usando os dados do European Social
Survey, encontraram evidência da validade de “factores tanto universais quanto específicos do
contexto na análise dos antecedentes cognitivos e motivacionais da orientação política
esquerda-direita” (p. 176). Similarmente, Christopher Cohrs e Monika Stelzl (2010) e Sergi
Pardos-Prado (2011) sugerem que o clima económico do país pode ser um mediador
importante na relação entre ideologia e atitudes face aos imigrantes, o que é congruente com
os resultados obtidos num estudo com jovens portugueses por Gil Nata (no prelo), que
concluiu que a percepção de ameaça afecta expressivamente o suporte de direitos dos
imigrantes, sendo que a percepção de ameaça pode ser mais saliente em períodos de crise
económica.

Nesse sentido, vale a pena explorar em que medida o posicionamento ideológico


esquerda-direita produz variantes nas atitudes face aos imigrantes, mas atendendo às
variações históricas e nacionais. Nesse sentido, usaremos as bases de dados do European
Social Survey (ESS) de 2006 (pré-crise) e de 2010 (em plena crise), atendendo apenas a um
grupo de dez países da Europa Ocidental, membros da União Europeia (Alemanha, Bélgica,
Dinamarca, Espanha, França, Holanda, Noruega, Portugal, Reino Unido, Suécia),
representativos de diversas vagas de democratização na Europa e, também, com diferentes
perfis em termos de acolhimento de imigrantes. Dada a sua especificidade, eliminamos desta
análise países do ex-Bloco Soviético.

Se atendermos à auto-identificação com uma escala de esquerda-direita (aqui


recodificada em 5 pontos, a partir do original de 11 posições), constatamos que a grande
maioria dos respondentes parece não ter dificuldades em se posicionar (Quadro 1), com a
grande maioria a colocar-se em posições mais próximas do centro, e menos de 5% a
identificarem-se com a extrema-direita ou a extrema-esquerda, respectivamente.
Quadro 1

Posicionamento ideológico em 2006 e 2010

Posicioname 2006 2010


Frequên % Frequên %
nto ideológico
cia cia
Extrema-
1154 4,5 854 4,4
esquerda
Esquerda 28, 26,
7343 5139
9 5
Centro 30, 28,
7793 5512
6 5
Direita 22, 27,
5743 5330
6 5
Extrema-
741 2,9 691 3,6
direita
Total 89, 90,
22774 17526
6 5
NS/NR 10,
2652 1847 9,5
4
Total 100 100
25426 19373
,0 ,0

Começaremos por explorar em que medida estas diferenças de posicionamento


ideológico se expressam em diferenças de valores, atendendo à proposta de duas dimensões
psicológicas fundadoras: as atitudes face à mudança social e às desigualdades sociais (Jost,
Federico & Napier, 2009). Foram seleccionados quatro valores da escola de valores humanos
do ESS; três são indicadores de atitudes face à mudança e diversidade pela positiva
(importância de compreender pessoas diferentes) e pela negativa (cumprir as regras e ordens
e respeitar as tradições), e um é indicador das atitudes face às desigualdades sociais (igualdade
de oportunidades). Realizamos uma análise multivariada de covariância (MANCOVA), com os 5
grupos ideologicamente distintos como factor de diferenciação, mas introduzindo o sexo e o
nível educacional como co-variantes, de forma a salientar os efeitos específicos do
posicionamento ideológico. Como se pode observar nos Gráficos 1 e 2, tanto em 2006 quanto
em 2010 o padrão de diferenças é o esperado, com os respondentes que se posicionam à
direita a valorizarem mais as tradições e o conformismo, e os respondentes que se posicionam
à esquerda a enfatizarem a igualdade de oportunidades e a compreensão de pessoas
diferentes. No entanto, nos dois momentos, a magnitude do efeito apenas é relativamente
saliente nos valores “respeitar as tradições” e “igualdade de oportunidades”. Ou seja, embora
reafirmando as limitações desta abordagem que explicitamos acima, o posicionamento
ideológico parece estar relacionado com atitudes mais gerais perante a existência.

Em que medida é importante para si ... (2006)

respeitar as tradições

seguir as ordens e regras

compreender pessoas diferentes

igualdade de oportunidades

1.00 1.50
2.00 2.50
3.00 3.50
4.00 4.50
5.00 5.50

ExEsquerda Esquerda Centro Direita ExDireita

Gráfico 1

Posicionamento ideológico e valores em 2006


Em que medida é importante para si ... (2010)

respeitar as tradições

seguir as ordens e regras

compreender pessoas diferentes

igualdade de oportunidades

1.00 1.50
2.00 2.50
3.00 3.50
4.00 4.50
5.00 5.50

ExEsquerda Esquerda Centro Direita ExDireita

Gráfico 2

Posicionamento ideológico e valores em 2010

No sentido de explorar em que medida este posicionamento ideológico gera


diferenças nas atitudes face aos imigrantes, realizamos agora uma nova sequência de análises
multivariada de covariância (MANCOVA), novamente com o sexo e o nível educacional como
co-variantes. Começaremos por atender ao conjunto dos países, e depois explorar em que
medida o perfil de resultados se mantém constante nos diversos países.

Como se pode observar nos Gráfico 3 e 4, a tendência é similar para os três indicadores
de atitudes positivas face à imigração (a imigração é boa para a economia do país, enriquece a
sua cultura e torna o país um lugar melhor para viver), com os respondentes que se situam na
esquerda ou extrema-esquerda a revelarem atitudes mais favoráveis do que os que se situam
no centro ou na direita que, por sua vez, valorizam mais estas afirmações do que os que se
situam na extrema-direita. Este padrão parece manter-se independentemente da situação de
crise económica, embora, e naturalmente, seja necessário prosseguir a avaliação do impacto
da crise ao longo do tempo, até porque o último ano tem sido determinante na
conscientização, em Portugal e no resto da Europa, das suas implicações.
A imigração ... (2006)

6.00
3.00
.00
ís
pa ís r
do pa ve
ia do vi
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a a lu
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pa ec ho
u el
a riq m
bo en m
é … nu
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pa
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a
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to

ExEsquerda Esquerda Centro Direita ExDireita

Gráfico 3

Posicionamento ideológico e atitudes face aos imigrantes em 2006

A imigração ... (2010)

6.00
3.00
.00
ís
pa ís r
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to

ExEsquerda Esquerda Centro Direita ExDireita

Gráfico 4

Posicionamento ideológico e atitudes face aos imigrantes em 2010


Quando procedemos a uma análise país a país (dados não apresentados para não
sobrecarregar o leitor), atendendo agora apenas aos dados de 2010, os resultados revelam
alguma diversidade. Por exemplo, nos países Nórdicos, o padrão é similar ao geral, mas com
diferenças mais expressivas entre todos os grupos; na Alemanha, Bélgica e Grã-Bretanha, pelo
contrário, os respondentes que se posicionam na extrema-esquerda tendem a diferenciar-se
dos que se posicionam na esquerda, manifestando estes últimos atitudes significativamente
mais favoráveis aos imigrantes; em Portugal, as diferenças entre os grupos são atenuadas, e os
respondentes na extrema-direita não se diferenciam significativamente dos que se situam à
direita ou ao centro – resultados que estão na continuidade com os estudos referidos acima.
Finalmente, se atendermos à magnitude dos efeitos, o posicionamento ideológico parece ter
um impacto particularmente expressivo na França, na Holanda e na Noruega sugerindo que a
presença de discursos e partidos políticos mais extremados na esfera pública pode contribuir
para uma maior saliência destes assuntos junto dos cidadãos – o que confirmaria a ideia de
que o conflito político aberto favorece a apropriação pelos cidadãos de elementos
constituintes das ideologias. Estes resultados vêm reforçar a ideia da necessidade de atender
ao contexto específico onde os significados de direita e esquerda são construídos, sugerindo
que o desenvolvimento da ideologia pelos indivíduos é (na linha do que tem sido registado
noutros domínios do desenvolvimento pessoal) um desenvolvimento-em-contexto.

Concluindo, a polarização – não propriamente a dicotomia – direita-esquerda ainda


parece explicar uma boa parte das atitudes face aos imigrantes. E creio que isso é um bom
sinal, sinal de que as pessoas ainda se relacionam com a políticas e as suas categorias mais
tradicionais, apesar de todo o discurso do cepticismo e da apatia e do apelo ao anti-político.
Mas neste processo de construção pessoal e social das ideologias nunca é demais chamar a
atenção para o papel das experiências políticas do quotidiano, desde as que se verificam em
contextos especificamente cívicos e políticos (e.g., os grupos ou associações cívica e
politicamente comprometidos), como as que decorrem na escola ou no trabalho, quando se
tomam decisões colectivas ou ainda se discutem temas do quotidiano, ou as que vamos
vivendo informalmente noutros contextos de vida – à hora de jantar, em família, vendo e
discutindo as notícias. No entanto, o impacto destas experiências na construção de formas
mais complexas e flexíveis de relação com a política é fortemente mediado, como temos vindo
a enfatizar na investigação que realizamos na Universidade do Porto (Carneiro, 2006; Azevedo,
2009; Ferreira, 2006; Ferreira, Azevedo & Menezes, no prelo; Nata, no prelo; Veiga, 2008) pela
existência de oportunidades de interacção com outras pessoas, num ambiente pluralista, onde
o dissenso é valorizado como sinal da diversidade humana e essência da política. E as atitudes
face aos imigrantes não dão conta disso mesmo?

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A ECOLOGIA SEGUNDO A ESQUERDA E A
DIREITA

Maria do Céu Pires157

157
Licenciada em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Mestre em Filosofia pela
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Doutorada em Filosofia pela Universidade de Évora. É
professora de Filosofia no Ensino Secundário. É fundadora e coordenadora de um clube de Direitos
Humanos, e de um núcleo regional da Amnistia Internacional. É formadora na área da «Educação para a
cidadania».
1 - Herdámos da modernidade e, mais precisamente, da Revolução Francesa, a
compreensão da realidade política como existindo dividida em direita e esquerda. Esta
concepção, que resultou do lugar ocupado por cada representante do povo na assembleia
constituinte, encontra-se ainda hoje presente no universo político e na linguagem aí
predominante. À direita, sentavam-se os defensores da ordem estabelecida, da tradição e
das instituições que garantiam a estabilidade. À esquerda, os apoiantes da mudança, os
defensores de posições que procuravam o novo, definindo-se pela sua radicalidade. A
tradição que se instituiu a partir desta disposição espacial traduziu-se em duas culturas
políticas diferentes: uma, conformista e de cepticismo acerca da possibilidade de mudar
o mundo e outra, optimista, dos que confiam na possibilidade de mudanças sociais
através da acção política. Esta forma de colocar o problema revela percepções da
realidade diferentes e assenta em matrizes antropológicas diversas, uma dando
prioridade ao imobilismo e individualismo e a uma certa naturalidade das
desigualdades, outra, valorizando a acção colectiva e a capacidade transformadora dela
decorrente. Esta última sublinha o carácter histórico/cultural dos seres humanos e da sua
acção, isto é, das suas construções simbólicas e materiais.
No trajecto efectuado nos três últimos séculos da nossa história, o mundo mudou
muito e a todos os níveis. Como tal, não pode, de modo algum, continuar a ser visto de
uma forma dicotómica, não pode ser fechado numa moldura a preto e branco. As
tonalidades são cada vez mais complexas e interdependentes. O desenvolvimento
técnico e científico foi acelerado, o que proporcionou bem-estar e crescentes níveis de
consumo, mas também muitas inquietações. Ao nível político, ultrapassados os
totalitarismos da primeira metade do século XX, a democracia parece ser reconhecida
consensualmente como a melhor forma de gerir aquilo que é comum. Os direitos,
primeiro os políticos e os civis e depois os sociais, parecem integrar a consciência
colectiva e servir de orientação às diferentes instituições das sociedades democráticas.
Estaremos, então, a assistir ao fim da história e das ideologias? Estará, como Daniel
Bell sugeriu, em 1960, a tecnocracia a substituir a política? Ou, pelo contrário, como
refere Boaventura Sousa Santos: “A suposta fadiga mortal da história, expressa na
ideia do fim da história, contém a armadilha de se transformar na fadiga mortal dos
homens e mulheres que fazem a história no seu dia dia?”158 Olhando com atenção para a
actual crise do sistema financeiro, parece vislumbrar-se uma resposta…
Tendo ainda como pano de fundo essa origem matricial que foi a Revolução
Francesa, pergunta-se: que é feito dos ideais de “liberdade, igualdade, fraternidade? Os
conceitos de direita e esquerda ainda fazem sentido? Em caso afirmativo, qual?
Tentarei, então, esclarecer a minha posição a partir da seguinte tese: sujeitos a re-
significação, estes conceitos são operativos para a compreensão da realidade social. E,
de igual modo, para o entendimento de nós próprios, enquanto agentes livres que se auto
constituem através da inter-relação com os outros e no reconhecimento da mútua
dependência.
Há, contudo, alguns aspectos que devem ser elucidados previamente de modo a
evitar o que me parecem ser as muitas imprecisões que circulam sobre esta temática. A
primeira consiste em ficar refém de uma abordagem dogmática, a partir de uma
simplificação excessiva da dicotomia direita/esquerda. De facto, é importante termos
presente que nenhuma teoria ou modelo “encaixa” uma realidade complexa. Nunca
assim foi, hoje menos o poderá ser. Também a relação entre os dois elementos da
dualidade, inclui não apenas oposições mas, nalguns casos, aproximações e
complementaridades. Depois, segundo me parece, é preciso ter claro que os conceitos
não têm correspondência total com a realidade empírica das formações políticas
(partidos políticos ou outras) que conhecemos, sendo que a forma mais adequada para
os usar de modo a expressar a diversidade factual, seria o plural, ou seja, direitas e
esquerdas. É igualmente necessário salientar que a prática política nem sempre tem
correspondido às determinações constituintes do conceito e que, por vezes, até é o seu
contrário.
Apresentados estes esclarecimentos prévios, coloco-me numa perspectiva
próxima de Norberto Bobbio que defende a validade da dicotomia e que estabelece a
igualdade como critério demarcador entre esquerda e direita. Partindo da constatação
empírica de que os homens entre si “são tão iguais como desiguais”, Bobbio considera
que a questão está na valorização do que une ou do que separa e, assim, segundo as suas
palavras: “(…) de um lado os que consideram que os homens são mais iguais que
desiguais, do outro, os que consideram que são mais desiguais que iguais.”159

158
Sousa santos, Boaventura, Esquerda no século XXI, As lições do Fórum Social Mundial,
inhttp://www.forumsocialmundial.org.br/noticias_textos.php?cd_news=431, consultado em 8/10/2011

159
BOBBIO, Norberto, Direita e esquerda, Lisboa, Editorial Presença, 1994, p.83
Em meu entender, é válido um património que rejeita um sistema construído
(neste caso, o capitalismo) como se correspondesse a uma “ordem natural das coisas”.
Dito de outro modo, com variantes múltiplas, podemos considerar, em termos
genéricos, duas posições político /existenciais. Uma, que sustenta a possibilidade de
uma prática emancipatória no sentido da igualdade, outra, que afirma a desigualdade
como natural e, portanto, inevitável. Na verdade, considerar que existem alternativas ao
sistema instituído, e que a justiça deverá ser implementada parecem-me propostas de
uma importância vital para fazer face aos problemas actuais. Numa linha de
continuidade com a sua história, a esquerda será a orientação política que propugna a
igualdade em termos políticos, sociais e económicos entre todos os seres humanos.
Contudo, numa linha de inovação e resposta a novos problemas, o conceito de esquerda
deverá incluir, também, a atenção às diferenças e aos que individualmente ou em grupo
são excluídos e lutam por reconhecimento, minorias étnicas, imigrantes, mulheres, etc.
Esta supremacia da noção de igualdade de algum modo continua a tradição
moderna da universalidade de direitos que foi incorporada na declaração de 1948.
Embora constatando que, no século XX, em nome da esquerda se cometeram
atrocidades contra a esquerda, Boaventura Sousa Santos reconhece a existência de
novas lutas, novos actores e novas linguagens para a tarefa, que considera urgente, de
reconstrução das esquerdas e da formulação de um novo contrato social. Na sua
definição, que me parece muito adequada, a esquerda refere-se a um “conjunto de
posições que partilham o ideal de que os humanos têm todos o mesmo valor e são o
valor mais alto.”160
Na actual filosofia política, existem outros contributos teóricos que interpreto
como relevantes e possíveis de colaborar numa via que enverede pela re-significação da
ideia de esquerda. Parece-me ser o caso de Nancy Fraser, filósofa americana que propõe
uma concepção dual de justiça. 161 Esta autora chama a atenção para o facto de
assistirmos hoje a um declínio da chamada política de classe a que corresponde um
grande desenvolvimento da política de estatuto, exemplificado pelo facto de muitos
conflitos sociais terem como força originária a luta pelo reconhecimento. Na sua
perspectiva, existe o risco de substituição, o que originaria um “economicismo truncado
por um igualitarismo igualmente truncado”162. Face a esta situação, Nancy Fraser

160
SOUSA SANTOS, Boaventura, Carta às esquerdas, Visão, 27 de Agosto, 2011
161
FRASER, Nancy, A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação, Revista Crítica de Ciências
Sociais, nº 63, Outubro de 2002, p. 7/20
162
Idem, p. 9
propõe uma re-significação do conceito de justiça, traduzido numa perspectiva
bidimensional, ligando a dimensão do reconhecimento e a da redistribuição.
Outro elemento que integra o património da esquerda, como concretização da
ideia de igualdade, é a reivindicação de direitos como forma de reduzir as diferentes
exclusões. Neste aspecto, parece-me que também aqui para além de persistir uma
continuidade, se devem integrar novos elementos, sendo um deles o conceito de
responsabilidade. Na actual era da globalização, a noção de internacionalismo, sempre
associada à esquerda, deverá ser colocada em termos de co-responsabilidade de todos os
cidadãos (e não apenas do Estado) pelos outros seres, os semelhantes, mas também por
todas as outras espécies. Ou seja, assumir que somos responsáveis pela vida do Planeta
e que, de uma solidariedade de classe, se pode transitar para uma solidariedade de vida.

2 - É comum a referência ao tema da ecologia como ilustrativo da ausência de


sentido da distinção direita/esquerda no tempo presente. De facto, há que reconhecer
que práticas políticas conotadas habitualmente com a esquerda não têm sido eficazes na
protecção do meio ambiente, mostrando, muitas vezes, alguma insensibilidade perante
esses problemas. E, apesar da boa vontade da comunidade internacional bem visível nos
Protocolos e Cimeiras Internacionais (Cancún, Copenhaga) regista-se uma grande
dificuldade em atingir as metas estabelecidas. Também é verdade que pessoas e
organizações habitualmente conotadas com a direita têm manifestado algum interesse
por estas questões, colocando-as na sua agenda política.
A proposta apresentada pelo filósofo norueguês Arne Naess, em 1973, de uma
“ecologia profunda” distinta de uma “ecologia superficial”, parece ser um bom exemplo
de uma perspectiva que se situa para além da direita e da esquerda. Da direita, porque é
claro que a origem dos problemas ambientais se situa no individualismo extremo, numa
lógica economicista de lucro, e numa sociedade consumista onde se criam falsas
necessidades. Da esquerda, porque sugere um novo paradigma que já não é o modelo
habitual da esquerda, antropocêntrico, mas um paradigma biocêntrico e uma nova
atitude, não compartimentada mas holística. Na mesma linha se situam as chamadas
éticas ambientais que se desenvolveram a partir dos anos 70, e que afirmam o valor
intrínseco da Natureza, não a considerando apenas com um valor instrumental para os
seres humanos. Nessa mesma década, as preocupações ambientais irão ter a sua
tradução institucional no surgimento de vários grupos, por exemplo, Greenpeace, e os
Partidos Verdes.
Sintetizando o que foi dito, parece-me que o estado actual desta questão se
bifurca em duas direcções. Por um lado, um posicionamento que vai para além da
direita e da esquerda e, por outro lado, e tomando como referência o quadro valorativo
da esquerda no sentido anteriormente apresentado, vários elementos parecem apontar
para uma ligação estreita entre esta e a defesa do meio ambiente e a preservação da
vida. Esta via enquadra-se num horizonte de valores que, na minha perspectiva, deverá
integrar o património de uma esquerda re-significada.
Na sua obra O Princípio de Responsabilidade, cuja primeira edição data de 1979,
Hans Jonas reformula o imperativo categórico kantiano nos seguintes termos: “Age de
tal modo que os efeitos da tua acção sejam compatíveis
163
com a permanência de vida humana autêntica na Terra”. Trata-se de um marco
fundamental na viragem do panorama ético pois a acção ética passa a incluir no seu
objecto não só os seres humanos, mas a totalidade da Natureza, referindo-se ao cuidado
na sua preservação e a noção de responsabilidade passa a direccionar-se para as
consequências da acção humana presente na sua relação com o futuro. Face às ameaças
de aniquilamento físico global e de declínio existencial, resultantes do desenvolvimento
tecnológico, a ética proposta por Jonas abrange não só a acção dos humanos e a sua
interacção, mas também a acção dos humanos sobre o não humano.
Deste modo, parece-me que a partir do contribuo de Jonas, a reflexão sobre as
questões ecológicas, os riscos de degradação e de extinção mas também sobre as
perspectivas de solução, poderão dar um contributo para o reequacionamento da ideia
de esquerda. Sobretudo a partir da nova ideia de responsabilidade que poderia “salvar”
as esquerdas da sua fixação exclusiva nas exigências de direitos. Também o retomar da
ideia de solidariedade como conceito chave não só para a solução dos problemas sociais
mas também dos problemas ambientais, poderá ser um contributo para essa re-
significação. O mesmo se pode dizer da ideia de interdependência humana pois é hoje
visível a nossa mútua interdependência enquanto seres que, com outros de outras
espécies, partilham um espaço comum. Ou seja, poder-se-á caminhar do
internacionalismo classista para um humanismo mais abrangente porque não limitado à
posição sócio-económica que cada um ocupa no todo social.

163
JONAS, Hans, El princípio de responsabilidade, Herder, Madrid,2004, p.40
Afigura-se assim, na minha leitura, a hipótese de uma ligação entre as questões
ecológicas, o modo como são abordadas e as perspectivas de solução e um património
de valores que, historicamente foi integrado no âmbito da esquerda. Se atentarmos
naquele que avalio como o maior problema social e ético do nosso tempo - a fome e a
pobreza extrema - e sua indissociabilidade com a degradação ambiental, torna-se
perceptível que a continuidade da esquerda está numa visão global e integrada dos
problemas. Só esta possibilitará a sobrevivência de vida e de vida humana com
dignidade.
Por último, gostaria de sublinhar que uma outra diferença assinalável entre
direita e esquerda e que se mantém presente é a que se refere aos sujeitos da acção
política. Numa óptica de esquerda e, tendo como base a perspectiva antropológica
segundo a qual os seres humanos são agentes transformadores, a política terá que ser
entendida como exercício pleno da cidadania. Esse exercício é competência de todos os
que “nascem livres e iguais”. Numa outra óptica, a cidadania reduz-se ao exercício do
voto e a política é entendida como devendo estar a cargo de especialistas, de técnicos. O
que tem correspondência directa na defesa de uma certa despolitização da política. É
esta a perspectiva vigente nas democracias ocidentais dominadas pelos tecnocratas
independentemente dos partidos que exercem o poder. Ora, a resposta aos desafios
ecológicos e aos riscos que espreitam a sobrevivência da vida na Terra, requerem, a meu
ver, uma cidadania activa, participante. Exigem uma nova/velha ideia de política: a de
que todos os membros de uma comunidade, local ou global, devem ter um papel
interventivo e transformador.
O POSICIONAMENTO DO FEMINISMO NA
DICOTOMIA POLÍTICA ESQUERDA-DIREITA

Manuela Tavares164

164
Licenciada em Economia pelo Instituto Superior de Economia, em Lisboa. Doutorada em Estudos
sobre as mulheres pela Universidade Aberta, em Lisboa. Investigadora no CEMRI (Centro de Estudos das
Migrações e Relações Internacionais) da Universidade Aberta de Lisboa. Colaboradora em diversos
projectos de investigação e autora de artigos para revistas nacionais e estrangeiras, e de alguns
livros..Foi professora do Ensino Secundário e orientadora de estágios pedagógicos. É formadora de
formadores na área da igualdade de oportunidades e na área do desenvolvimento pessoal. Foi
presidente da UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta).
1. INTRODUÇÃO

“O desejo de transformação anima a praxis feminista”.165 Assim tem sido ao


longo dos tempos.

Não sendo a história um registo neutro do passado, mas um produto escrito a


partir de posições assumidas, e porque os feminismos precisam de uma memória,
“construir essa memória e transmitir uma história dos feminismos é um desafio político
e historiográfico”, tal como afirmava Anne Cova na sessão de abertura do seminário
evocativo do I Congresso Feminista e da Educação realizado em Maio de 2011 em
Lisboa.

Este texto procura mostrar que as raízes históricas dos feminismos se situam na
esquerda, enquanto projecto de modernidade, embora eivado por contradições no
assumir da cidadania das mulheres. Procura ainda abrir debate sobre os contributos do
marxismo para o feminismo e as limitações de um processo onde o dogmatismo fez os
seus estragos. Os feminismos como movimento social são ainda focados, em breves
pinceladas de percurso histórico, procurando-se também situar o debate nos desafios
actuais de resposta ao discurso neoliberal e conservador e a um feminismo de direita
que ganha contornos em alguns países nórdicos. A emergência de uma corrente política
dos feminismos é colocada tendo como base um sujeito feminista multifacetado em
termos de classe social, etnia, idade, orientações sexuais, estilos de vida.

Fala-se hoje em feminismos, acrescentando um “s” ao termo original


“feminismo”166 para indicar que existem diferentes feminismos, não só em termos de
correntes políticas, como também dos interesses de diferentes mulheres em tempos e
lugares diversos.167
165
AHMED, Sara, Jane Kilby, Celia Lury, Maureen McNeil e Beverly Skeggs (2000), Transformations. Thinking
ThroughtFeminism, Londres, Routledge, p.1 (Introduction).
166
O termo apareceu em França no vocabulário médico em 1830, caracterizando um sujeito masculino com
características femininas. O filho de Alexandre Dumas utilizou-o em 1872 em L´homme-femme para caracterizar um
homem pouco viril que não hesitava em tomar o partido das mulheres "adúlteras". Em 1882, Hubertine Auclert
reivindicou-o pela primeira vez como emblema da luta pelos direitos das mulheres. Na viragem do século entrou em
moda e constituía o denominador comum de escolas e grupos de pensamento diferente. Daí ser classificado como
reformista, radical, cristão, socialista,...

167
A emergência do feminismo negro na década de 1960 demonstrou como um feminismo construído na base de
um conceito abstracto de “direitos universais” excluía direitos de diferentes grupos de mulheres: negras, lésbicas,
operárias, ...
2. A MATRIZ HISTÓRICA DOS FEMINISMOS

O feminismo nasce no século XVIII com o iluminismo e a modernidade em sinal


de protesto pelo facto das mulheres terem sido excluídas da cidadania. Segundo Lígia
Amâncio, a contradição fundadora da modernidade forjou-se, precisamente, na exclusão
das mulheres.168

“O feminismo é um fenómeno do século da razão mas é um filho não


desejado”169

O chamado tempo dos direitos não é ainda o tempo das mulheres para os
principais mentores da revolução francesa. A Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão (1789) exclui as mulheres como sujeitos de direitos políticos. As mulheres
existem em função da sua função reprodutora. Assim argumenta Rousseau ao defender
que as mulheres se ocupem do “espaço privado” e os homens do “espaço público”.
Contra estas posições se insurgem: Olympe de Gouges (1748-1793) que escreve a
Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã (1791) onde declara que “a mulher
nasce livre e igual ao homem”; Mary Wollstonecraft (1759-1797) que escreve
“Vindication of the Rights of Women” (1792), contestando os fundamentos da natureza
feminina e o fundamento divino da subordinação das mulheres; Condorcet (1743-1794),
um dos poucos revolucionários que enfrenta as ideias de Rousseau e que no seu escrito,
“Admissão das mulheres ao direito de cidadania”, afirma: “como é possível não se
entender que se está a violar o principio da igualdade de direitos quando se excluem as
mulheres do direito de cidadania”. 170

168
AMÂNCIO, Lígia, CARMO, Isabel do (2004), Vozes insubmissas, Lisboa, D. Quixote, p. 27.
169
(Amélia Valcárcel, citada por Conceição Nogueira, Um olhar sobre os feminismos (2003), Porto, UMAR.

170
A consciência individual das discriminações sobre as mulheres já tinha tido vozes anteriores: 1405 (Christine de
Pizan – “La cité des dames”); 1673 (Poulain de la Barre – “Sobre a Igualdade dos sexos”). Em Portugal, há que
destacar o pensamento de uma mulher ligada à nobreza, Paula da Graça, que publica, em 1715, o livro “Bondade
das mulheres vindicada e malícia dos homens manifesta” onde aconselha uma jovem a não casar, colocando em
causa o papel tradicional da mulher. (Fina d’Armada, trabalho no âmbito do Mestrado em Estudos sobre as
Mulheres “O livro feminista de Paula da Graça – século XVIII, 2000)
Novos contributos para o feminismo em termos de pensamento e acção surgem,
algum tempo depois, por parte dos socialistas utópicos como Saint-Simon (1760-1825),
Charles Fourier (1772-1837), ao proclamarem que o grau de emancipação da mulher na
sociedade é o barómetro pelo qual se mede a emancipação geral, Jeanne-Désirée (1810-
1890) fundadora do jornal La femme libre, Claire Demar (1800-1833) e Pauline Roland
(1805-1852), entre outros(as). Também J. Stuart Mill (1806-1873) ao escrever, em
1866, “A sujeição da mulher”, recusa qualquer fundamento da “natureza feminina”
argumentando que a diferença entre sexos é uma fabricação social. Flora Tristan (1803-
1844), revolucionária e feminista, afirma que “numa sociedade onde a mulher não é
livre, a liberdade política é uma pura ilusão”; Jeanne Deroin (1805-1888) que funda o
Clube de Emancipação da Mulher e participa na “Comuna de Paris” tal como Louise
Michel (1830-1905).

Como contributos do marxismo destacam-se: a obra de F. Engels (1820-1895)


“A origem da propriedade da família e do estado”(1884) que surge como a primeira
explicação histórica das origens da opressão das mulheres; o livro “A mulher e o
socialismo” (1879) de Auguste Bebel (1840-1913), onde declarava, referindo-se a
Proudhon, “há socialistas para quem a mulher emancipada é tão antipática como o
socialismo para os capitalistas” (Marx e Engels tiveram de enfrentar as posições
proudhonianas contra o trabalho das mulheres nos sindicatos); o pensamento e acção de
Rosa Luxemburgo (1871-1919) que chega a defender o voto das mulheres contra as
concepções do Partido Operário Belga, uma vez que este realiza uma greve geral pelo
sufrágio “universal” mas do qual exclui as mulheres; a acção internacionalista de
mobilização das mulheres protagonizada por Clara Zetkin (1857-1933) defensora da
perspectiva dos interesses não homogéneos das mulheres dada a sua pertença a
diferentes classes sociais, colocando como factores de emancipação das mulheres os
direitos políticos, entre os quais, o direito ao voto e a sua integração na produção; o
pensamento de Alexandra Kollontai (1872-1945) - a teórica russa que melhor articulou
feminismo e marxismo - ao defender que não bastava a abolição da propriedade e a
incorporação das mulheres na produção para alcançarem a emancipação; seria
necessária uma revolução da vida quotidiana e dos costumes, forjar uma nova
concepção do mundo e uma nova relação entre os sexos; afirmou que a revolução de
que a mulher necessita inclui a socialização do trabalho doméstico, uma nova
concepção de maternidade e um novo conceito de amor; em 1917, enquanto ministra do
governo saído da revolução de 1917, deu origem a reformas radicais: direito ao voto
para as mulheres, igualdade nas leis, divórcio sem noção de culpabilidade, aborto legal,
maternidade paga, supressão do poder marital, os mesmos direitos para os filhos
nascidos fora do casamento, igualdade entre os cônjuges na família.

3.CONTRIBUTOS E LIMITAÇÕES DO MARXISMO

Dos contributos teóricos anteriormente mencionados poderemos sintetizar


algumas ideias principais.
1. As causas da opressão das mulheres não são biológicas mas sociais,
questão essencial que ressalta da análise de Engels. “Desnaturalizando a opressão,
Engels destroi a ideia de um determinismo biológico que incapacitaria as propostas de
emancipação”.171
2. A valorização do direito ao emprego para as mulheres e a defesa da sua
libertação da escravidão doméstica (Marx e Engels enfrentaram forte oposição de
algumas correntes socialistas que se opunham ao trabalho das mulheres).
3. A produção de algumas ferramentas teóricas para perceber as relações de
poder e o processo histórico da opressão das mulheres (a análise marxista permite
estabelecer a ligação entre mudanças estruturais nas relações familiares e mudanças na
divisão do trabalho, por um lado, e a posição das mulheres na sociedade, por outro). É
ainda, “a ligação que os marxistas fazem entre ideologia e os interesses materiais e o seu
papel na reprodução de formas específicas de relações de poder na sociedade que é
importante para o feminismo”.172

3.1 – OS ESTRAGOS DO DOGMATISMO

171
PENICHE, Andreia, “Marxismo e feminismo: a construção das organizações feministas” (texto policopiado)
172
WEEDON, Chris (1989) Feminist Practise and Poststructuralist Theory,Londres, Basil, Blackwell, p. 27.
A dogmatização do marxismo trouxe estragos que levaram a um afastamento
dos feminismos. Importa entender que limitações surgiram neste campo.

1. Uma visão limitada dos feminismos. O feminismo não foi entendido nas
suas várias correntes e foi mesmo banido do vocabulário político marxista.
2. O não reconhecimento das contradições de género.
A contradição capital/trabalho acabou por ser erigida como uma
contradição que absorvia todas as outras: de género, etnia, orientação sexual, o
que provocou para além da perda de factores democráticos, a erosão da base
social das primeiras experiências de socialismo.

3. O esquematismo na ligação entre emancipação da mulher e propriedade


privada, “A emancipação da mulher será fruto da eliminação da propriedade privada” –
esta foi uma frase que ficou célebre, procurando traduzir a necessidade da alteração da
base material da sociedade para que se criassem condições para a emancipação das
mulheres. Contudo, o esquematismo neste pensamento produziu os seus efeitos na
secundarização da luta mais específica das mulheres.
4. A “equação” mulher na produção = independência = emancipação foi
encarada como uma "equação" simples. Se “o primeiro passo para a emancipação da
mulher é a sua integração no mercado de trabalho”, esse passo poderá ficar tolhido se
não se tiverem em conta as duplas e triplas tarefas que ainda pesam sobre a vida das
mulheres e as relações de dominação/subordinação que marcam as contradições de
género.
5. O marxismo não levou até às últimas consequências a análise de Engels
que permitia uma outra profundidade no estudo da relação sexual como um território de
poder. “O ângulo classista não basta para ler e interpretar o código desta relação
sexual...É que a fundamentação ideológica deste registo ultrapassa a realidade da classe
e legitima-se directamente na ideologia sobre o feminino e o masculino, na polaridade,
entendida de base biológica, da mulher como elemento passivo e do homem como
activo”.173
Considerando que a alteração das relações de produção constitui um factor
essencial num caminho emancipatório das mulheres, a visão dogmática do marxismo
não valorizou os contributos das feministas socialistas/marxistas que, na década de
173
NEVES, Helena, “Sexualidade e poder”, in A Comuna, nº 4, Março 2004, pp. 24-31.
1970, alertaram para o facto das relações sociais de sexo assumirem uma grande
importância, não só no capitalismo como no socialismo, pois a dominação masculina
continuava a fazer-se sentir nas relações de poder. Esta é de facto uma luta política e
cultural a passar por medidas concretas sem tempo de espera para novas consciências
sociais adquiridas ao longo dos anos.

3.2– OS CONTRIBUTOS DAS FEMINISTAS


SOCIALISTAS/MARXISTAS

Procurando responder a críticas da corrente radical do feminismo em relação


ao marxismo, algumas feministas socialistas/marxistas aprofundaram alguns aspectos
do marxismo que foram ignorados pela corrente oficial. Perderam-se, desta forma,
contributos teóricos que teriam sido essenciais para o pensamento marxista numa
perspectiva de evolução desta corrente política.

Juliet Mitchell escreve em 1973 Woman’s Estate, reconhecendo o patriarcado


como um sistema de dominação masculino relacionado com o sistema económico e as
relações de produção.

Sheila Rowbotham escreve em Women, Resistance and Revolution (1972) que é


necessário ter em conta tanto as relações sociais de produção como as de reprodução em
qualquer teoria revolucionária.

Zillah Einsenstein considera que uma compreensão separada do capitalismo e do


patriarcado não pode abarcar o problema de opressão das mulheres. (Patriarcado
capitalista e Feminismo Socialista – 1980).

O enfoque da opressão das mulheres é enriquecido pelo feminismo marxista que


pegando na análise de Engels de que o desmoronamento do direito materno tinha sido a
primeira derrota do sexo feminino e de que “a mulher se viu convertida em servidora,
escrava da luxúria do homem e em simples instrumento de reprodução” 174, alargou o

174
ENGELS, Friedrich, A origem da propriedade, da família e do estado, Lisboa, Presença, 1980. p. 76)
conceito de opressão das mulheres, não só enquanto classe, mas enquanto mulheres
subordinadas ao poder masculino.

3.3– FEMINISMOS E MARXISMO - O REENCONTRO POSSÍVEL ?

Heidi Hartmann escreve, em 1980, sobre um casamento mal sucedido entre


marxismo e feminismo e da necessidade de uma reaproximação.175 Qualquer tentativa
de reencontro só poderá ser feita se o marxismo for encarado como uma ciência viva em
constante evolução. Se souber dar novas respostas cortando com o dogmatismo em que
assentaram as primeiras experiências de socialismo incapazes de alterar a hierarquia de
género perdendo, por este e outros motivos, o carácter emancipador anunciado.

O reencontro entre marxismo e feminismo passa por se entenderem os desafios


hoje colocados, neste quadro de globalização, em que se alargam os espaços para o
feminismo, com milhares de mulheres a ganharem consciência da sua situação de
subalternidade.

Segundo Maria José Magalhães, é necessário aprofundar de que forma a


subordinação das mulheres se articula com a exploração capitalista e a opressão das
pessoas em função da “raça”, da “etnia” e de uma orientação sexual fora da
heterossexualidade compulsiva. “É isto que um feminismo liberal não consegue
oferecer. Incapaz de compreender de que forma a posição subordinada das mulheres se
encaixa num conjunto de outras subordinações e opressões, o feminismo liberal impede
um trabalho conjunto com outros movimentos sociais, fracturando alianças e
obstaculizando acções em prol da transformação global da sociedade”.176

“Existe uma profunda contradição entre o discurso neoliberal e de direita e o


espaço para o feminismo que se tem vindo a criar na última década. Há que entender as
contradições que estão colocadas a este nível, mesmo no seio das classes dominantes.

175
HARTMANN, Heidi, “Un matrimonio mal avenido: hacia una unión más progressiva entre marxismo y
feminismo”, in Zona Abierta, nº 24,1980, pp.85-113.
176
MAGALHÃES, Maria José, ”Uma reflexão sobre feminismo e pós-modernismo, numa perspectiva de
emancipação”, in Comuna nº 4, Março de 2004.
O contraponto ao pensamento e discurso neoliberal coloca-se na afirmação da
identidade política dos feminismos. Na criação de uma forte corrente política dos
feminismos que faça frente ao discurso neoliberal. De que forma o marxismo actual se
posiciona perante esta necessidade? De que maneira pode dar o seu contributo para um
reforço sem tutelas do feminismo e de outros movimentos sociais ?

4. O FEMINISMO COMO MOVIMENTO SOCIAL

O feminismo surge como movimento social, a partir da segunda metade do


século XIX. Inicia-se a 1ª vaga dos feminismos que dura até meados do século XX. As
principais reivindicações desta vaga situam-se nos direitos políticos, em especial no
direito ao voto das mulheres, no direito ao emprego e à educação; em direitos sociais
(protecção à maternidade, creches); na igualdade de direitos nas leis (divórcio,
protecção dos filhos fora do casamento).

O nascimento do feminismo enquanto movimento organizado esteve sempre


ligado à acção internacionalista: m 1888 é fundado em Washington o Conselho
Internacional das Mulheres que cria delegações em muitos países (é o caso do Conselho
Nacional das Mulheres Portuguesas fundado em 1914 por Adelaide Cabete); em 1904,
por divergências no CIM, é criada a Aliança Internacional para o Sufrágio das Mulheres
por se considerar que o Conselho não colocava como prioridade a luta pelo direito ao
voto; em 1910 realiza-se a Conferência Internacional Socialista das Mulheres onde
Clara Zetkin propõe um dia internacional das mulheres, pela igualdade de direitos, o
socialismo e a paz.; ainda, em 1910, realiza-se na Argentina, o 1ºCongresso Feminista
Internacional; em 1915, em Haia, a Aliança Internacional para o Sufrágio das Mulheres
realiza um Congresso com 1136 delegadas para reivindicar a resolução pacífica dos
conflitos mundiais e o direito ao voto das mulheres. Desta realização nasceu um Comité
Internacional das Mulheres pela Paz; em 1919 este Conselho transforma-se na Liga
Internacional pela Paz e pela Liberdade; em 1920, realiza-se em Genebra, um outro
Congresso da Aliança Internacional para o Sufrágio das Mulheres; há ainda a registar
congressos internacionais como os de Roma (1923); Washington (1924); Paris (1926)
em que participaram feministas portuguesas.
Como vozes desta primeira vaga dos feminismos destacam-se nomes como os
de: Hubertine Auclert (1848-1914) considerada a primeira sufragista que organiza uma
greve aos impostos, argumentando que se não tem o direito de votar e de decidir
também não tem o dever de pagar impostos. Emmeline Pankhurst (1858-1928) a mais
destacada sufragista britânica que foi presa várias vezes, fez greve de fome e criou a
organização sufragista “Women’s Social Political Union”, promovendo acções radicais
pelo direito ao voto das mulheres como forçar as portas do parlamento, entrar pelas
janelas, cercar o parlamento, destruir linhas telefónicas; Marguerit Durand (1864-1936)
feminista e jornalista, que funda, em 1897, o primeiro jornal feminista francês feito só
por mulheres La Fronde; Virginia Woolf (1882-1941) que denuncia a opressão das
mulheres nas suas obras literárias em especial naquela que mais a notabilizou “Um
quarto que seja seu”;

Elina Guimarães destaca no seu escrito “História do feminismo em Portugal” 177


as figuras de Angélica Porto e Adelaide Cabete; esta última fundadora da Liga das
Mulheres Portuguesas (1909) e do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas
(1914). Põe ainda em relevo mulheres como Aurora de Castro que com Adelaide Cabete
foi uma das principais organizadoras do I Congresso Feminista e da Educação em 1924.
Muitas outras podem ser referidas como Ana de Castro Osório, Carolina Michaelis de
Vasconcelos, Carolina Beatriz Angelo, Deolinda Lopes Vieira, Maria Lamas e a própria
Elina Guimarães cuja memória histórica deveria ser mais valorizada no ano em que se
completam os 100 anos do seu nascimento (1904-2004), como uma figura interveniente
e atenta às reivindicações feministas que percorreram todo o século XX.

Nas décadas de 1960 e 70 surgem novas formas de mobilização das mulheres e o


teor das suas reivindicações provoca rupturas com o pensamento da época. "O pessoal é
político" é o slogan que personifica uma nova forma de agir e de reivindicar: autonomia
das mulheres, controlo sobre o seu corpo, separação da sexualidade da procriação, luta
pela contracepção e legalização do aborto, luta contra a violência sobre as mulheres,
criação das primeiras casas de abrigo e das primeiras linhas de atendimento a mulheres
vítimas de violência

177
Este artigo foi publicado em 2002, na brochura da Câmara Municipal de Lisboa "Elina Guimarães -
movimento feminista", no âmbito do projecto "Mulheres século XX: 101 livros", dinamizado por Maria
Antónia Fiadeiro.
Os movimentos de libertação das mulheres destas duas décadas nascem da
conjugação de duas correntes: um feminismo político já organizado que pesa nas
instituições e um feminismo novo, radical, que conta com a participação de jovens,
militantes ou não de grupos de extrema esquerda e nas grandes mobilizações de
estudantes. Nos EUA, as jovens participantes nos movimentos contra a guerra do
Vietnam e pelos direitos dos negros contestam o feminismo reformista da NOW
(National Organization of Women) fundada por Betty Friedan em1966 (que tinha
publicado a Mística da Mulher no início dos anos 60). Seduzidas pelo marxismo e pelos
grupos da Nova Esquerda estas jovens fundam em 1967 o Movimento de Libertação das
Mulheres. Estes grupos radicais e a NOW constituem pólos de mobilização das
mulheres que em 1970 decretam uma greve nacional pela igualdade com uma marcha
de 50 mil pessoas nas ruas de Nova Iorque. Em França, o caminho é análogo. O
aparecimento de vários grupos da Nova Esquerda abertos aos direitos das mulheres.
Desta nova esquerda faz parte o movimento democrático feminino, nascido em 1962. O
MDF reivindica o feminismo palavra caída em desuso após a guerra e associado à
imagem das sufragistas. Em 1968, o MDF fez bancas na Sorbonne ocupada pelos
estudantes. As militantes de Maio de 68 do FMA (Feminism, Marxist, Action) juntam-
se depois de Antoinette Fouque e outras militantes do MDF que recusavam o termo
feminismo terem saído e formam o MLF (Movimento de Libertação das Mulheres). Na
Inglaterra, o movimento de libertação das mulheres tinha estreitas ligações com os
sindicatos e a esquerda política que entrou em contradição várias vezes com o
feminismo radical de Shulamith Firestone. A sua ligação com a esquerda institucional
permitiu obter o Equal Pay Act de 1970, mas limitou uma actuação mais forte contra o
poder patriarcal.

Como vozes desta segunda vaga dos feminismos destacam-se as de Kate Millet
que escreve, em 1972, Sexual Politics e Shulamith Firestone que edita em 1971 The
dialectic of sex. Estas são as teóricas feministas que mais marcaram a corrente radical
do feminismo de 2ª vaga. Simone de Beauvoir que publica em 1949 O segundo sexo é
uma referência histórica dos feminismos de segunda vaga.

A publicação, em 1972, das Novas Cartas Portuguesas de Maria Teresa Horta,


Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa e a solidariedade gerada em torno das
autoras quando do seu julgamento e da apreensão do livro, constituíram uma referência
inspiradora do feminismo de segunda vaga em Portugal. Há quem afirme que, em
Portugal, não houve feminismos de 2ª vaga. Contudo, estudos recentes 178, revelam a
existência de feminismos em Portugal, nos anos 1970 e 80 em Portugal. Corporizados
em diversas correntes, estes feminismos caracterizaram-se por insuficiência teórica e
pela falta de debate. Mas, foi devido à acção da corrente radical do feminismo que a luta
pela legalização do aborto se iniciou em Portugal e que se impôs na agenda política do
país entre 1979 e 1984.

5. DESAFIOS ACTUAIS – NOVA CORRENTE POLÍTICA DOS


FEMINISMOS

A evolução das lutas das mulheres nas últimas duas décadas poderá revelar um
certo apagamento dos feminismos, contrastando com as décadas de 1960 e 1970 que
foram tempos de um novo impulso dos feminismos como movimento social na Europa e
nos Estados Unidos, em contexto de mobilização política e do despertar de outros
movimentos por mudanças radicais. A pluralidade expressa em diversas correntes e na
multiplicidade dos sujeitos mulheres, a autonomia e a crítica aos paradigmas
tradicionais da ciência foram marcas do feminismo da época. Os anos de 1980 e 1990
tiveram em comum uma menor mobilização das mulheres apenas acalentada pela
realização de conferências internacionais sob a égide das Nações Unidas. Nairobi
(1985), Viena (1993), Cairo (1994) e, sobretudo, Pequim (1995) foram momentos de
reflexão e de tentativa de comprometer governos com plataformas de acção para
eliminar discriminações, inserindo-se oficialmente os direitos das mulheres na área dos
direitos humanos.

No início do novo século 100 mil mulheres mobilizaram-se em 159 países contra
a pobreza e a violência, em torno da Marcha Mundial de Mulheres. Algumas questões
estão colocadas a debate. Estaremos perante um novo movimento internacional e
intergeracional de mulheres? Poderemos falar de uma ligação entre a geração feminista
das décadas de 60 e 70 do século passado e as novas gerações de mulheres
178
MAGALHÃES, Maria José (1998), Movimento Feminista e Educação-décadas de 70 e 80, Celta, 1998.

TAVARES, Manuela (2000), Movimentos de Mulheres em Portugal, décadas de 70 e 80, Lisboa, Livros
Horizonte.
alterglobalização ? Que respostas ao neoliberalismo podem ser geradas por estes
movimentos ?

O discurso neoliberal assenta em vários pressupostos: às mulheres são dadas


oportunidades iguais para escolherem os seus percursos de vida, pelo que existe um
desafio que está colocado a cada uma delas – a sua valorização pessoal e social. Deste
modo, segundo este tipo de pensamento, não há razão para mobilizações colectivas e
para os feminismos, que são considerados “velharias do passado”. A igualdade jurídica
é a base fundamental. A materialização dos direitos é uma questão de evolução de
mentalidades. Daí que se desvalorize o papel do Estado Social e a criação de condições
sociais.

A este discurso neoliberal junta-se o discurso feminista de direita 179 da


“mulher-natureza” e dos hinos à maternidade como “condição maior que é exclusiva da
mulher”. A corrente “neo-conservadora ou de direita”, sem peso significativo em
Portugal, é o resultado do “backlash” dos anos oitenta e noventa tão bem caracterizado
pela jornalista Susan Faludi. A avaliação pessimista e destruidora que foi feita dos
feminismos das décadas de 1960 e de 1970 em alguns países, abriu espaço para que a
Nova Direita nos EUA viesse a condenar os trajectos de independência das mulheres e
para que surgissem, em alguns países nórdicos e na Alemanha, apelos à “natureza” das
mulheres, como factor de realização pessoal na família e na complementariedade de
funções com os homens, sob a capa de “um novo feminismo”, assente na diferença e na
recuperação da função da maternidade como um dos grandes desígnios das mulheres.

As implicações no feminismo das perspectivas da pós-modernidade 180


trouxeram novos desafios à teoria e lutas feministas. As críticas feministas mais radicais
à pós-modernidade surgem baseadas na argumentação de que o pensamento “pós-
moderno” é apolítico, ahistórico, irresponsável e contraditório” e que procura destruir o
movimento feminista, na medida em que nega a sua acção colectiva.

179
Ver publicação de 2002 de MATLÁRY, Janne Haaland deputada do partido democrata cristão
norueguês que defende um feminismo de direita que ela designa como "novo feminismo".
180
As críticas pós-modernas centram-se nas seguintes questões: a desconstrução do “sujeito mulher”; a
recusa da grande narrativa da opressão da mulher, da ordem patriarcal e do fim da opressão; o
reconhecimento da diversidade das necessidades e experiências das mulheres; o abandono da noção de
situações únicas e universais; a crítica ao essencialismo; o abandono do conceito de patriarcado como
totalizador, ahistórico e essencialista.
Um dos perigos das teorias pós-modernas será, decerto, “o da erosão de
uma análise global da sociedade, que nos permita compreender as raízes estruturais e
históricas da subordinação e opressão que enfrentamos em cada momento e em cada
território”.181

Contudo, as desconfianças não eliminam os desafios que estão colocados à


teoria feminista. Por isso, Nancy Fraser e Linda Nicholson não colocam de lado a crítica
pós-moderna, antes retiram dela o que pode ser importante para o feminismo: a crítica
ao essencialismo e a necessidade do pluralismo e da diversidade. As mesmas autoras
apontam a importância de manter uma análise histórica da situação da opressão, porque
o sexismo existe e as relações de poder entre mulheres e homens não se reduzem a um
aspecto da vida social. Deste modo, “a teorização deve ser explicitamente histórica,
atenta às especificidades culturais das diferentes sociedades e períodos, e aos grupos
dentro dessas mesmas sociedades, isto é que localize e situe as categorias dentro de
campos históricos, e evite o perigo de generalizações falsas”.182

Decerto que será importante não rejeitar novos discursos que desestabilizam o
“sujeito” unitário mulher, mas sim perceber como essas possibilidades teóricas podem
ser desafiadoras e libertadoras, mas ao mesmo tempo não esquecer que em
determinados momentos é necessário voltar ao “sujeito” para reivindicar direitos e
igualdade. 183

A complexidade da teoria feminista nos tempos actuais não deve ser


entendida como uma paralisia política só porque, por vezes, não é possível estabelecer
prioridades ou porque as situações de mudança estão mais entrelaçadas. Pelo contrário,
tal deve ser entendido como uma potencialidade, na medida em que as feministas não
precisam de chegar a um entendimento “universal”, podendo ficar envolvidas em
181
MAGALHÃES, Maria José (2004), “Uma reflexão sobre Feminismo e Pós-Modernismo numa
perspectiva de emancipação social”, in Comuna - feminismo e marxismo, pp. 10-15.
182
NOGUEIRA, Conceição (2001Um novo olhar sobre as relações sociais de género: feminismo e
perspectivas sociais, Fundação C. Gulbenkian p. 164.
183
O pragmatismo e a própria fluidez no posicionamento não é incongruente, nem incompatível, pode
ser até libertador. Hoje, teoricamente, pensarmos como não existir homem ou mulher e a lógica binária
desaparecer pode ser uma narrativa libertadora do ponto de vista utópico e teórico não nos inibe de no
mesmo dia nos posicionarmos pela reclamação dos direitos humanos por exemplo para as mulheres
(isso mesmo, mulheres) imigrantes. A teoria está orientada para a desconstrução, para a fluidez e para
“localismos”. O activismo, não pode negar as potencialidades teóricas libertadoras desse pensamento,
mas não pode e não deve ficar agarrado a essas ideias. Agir não é incongruente com pensar
desconstrutivamente. Este vaivém é em si mesmo interessante e desafiador. (Conceição Nogueira)
formas de acção mais pontuais e integrar também as suas acções nas agendas políticas
de outros movimentos sociais.

A reconfiguração das correntes do feminismo é hoje uma questão em


aberto, não só perante os novos desenvolvimentos teóricos, mas também porque os
contextos e as formas de acção se modificaram.

A emergência de um novo sujeito feminista pode consubstanciar-se numa


corrente política que abarque todos os sectores de mulheres que se reclamam de
feministas. num contexto de luta contra as concepções conservadoras e neoliberais. É a
própria situação das mulheres no mundo que reclama este novo sujeito e uma nova
corrente política do feminismo.

Os problemas vividos pelas mulheres em Portugal, na Europa e noutras regiões


do mundo têm em comum a mesma base discriminatória de uma sociedade onde a
dominação masculina continua a ter muito peso, mas diferem nas formas e níveis de
intensidade, embora cada mulher atribua à situação vivida uma dimensão própria. Os
chamados crimes de honra, a morte por apedrejamento, a mutilação genital, as violações
em cenário de guerra, a fome com rosto de mulher, os casamentos forçados, cruzam-se
com as mortes por violência, às mãos dos homens com quem se vive, com as
desigualdades salariais e em função da maternidade, com as duplas e triplas tarefas, com
a homofobia e o sexismo, com a reduzida participação no poder político, com a
precariedade dos quotidianos, com a opressão da escassez do tempo, numa sociedade
onde os níveis de escravidão do trabalho atingem proporções inimagináveis no século
XXI.

Podemos afirmar que em Portugal se vive uma situação paradoxal, onde


os avanços registados nas últimas décadas enfermam de uma “doença estrutural”: o
sexismo nas mentalidades, nas atitudes e nas relações de poder entre mulheres e
homens. Os elevados níveis de qualificação das jovens que saem das universidades não
se traduzem na eliminação das desigualdades salariais. O avanço nas mentalidades
quanto às relações mais democráticas na família, não tem provocado alterações
significativas na partilha das tarefas domésticas, registando-se mesmo uma reprodução
da divisão sexual do trabalho nas novas gerações. Apesar das campanhas a favor da
paridade e da aprovação da lei, as assimetrias de género continuam a ter muito peso no
poder político. A violência nas relações de intimidade continua a ter uma dimensão
significativa, apesar das medidas protagonizadas nos planos governamentais contra a
violência.

Uma ou várias agendas feministas, neste contexto, terão de estar ligadas


às agendas de outros movimentos, abrangendo diversos sectores sociais. As perspectivas
feministas não poderão ser ocultadas nem diluídas, mas terão de ter a capacidade de se
entrelaçar, influenciando, renovando os discursos políticos e criando novas abordagens
da política, da cultura e do social.

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INTELECTUAIS DE ESQUERDA E PENSADORES DE
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ANÁLISE COMPARATIVA

Dimitris Michalopoulos184

A 6 de Fevereiro de 1935 foram encerrados os trabalhos da 7ª Assembleia dos


Sovietes da então União Soviética. Tinha sido convocada para Moscovo e a sua tarefa
principal consistia na adopção da reforma constitucional proposta por Vyatcheslav
Mikhailovitch Molotov que era à época presidente do Conselho dos comissários do
povo, ou seja, primeiro-ministro. A reforma que submeteu à Assembleia comportava,
segundo as suas próprias afirmações, «a democratização absoluta» da União. 185 Em
consequência disso, toda e qualquer distinção social, tal como a que existia entre
operários e camponeses, devia ser abolida 186 e o voto secreto garantido «para

184
É um autor grego, nascido em Atenas. Estudou na Escola Italiana de Atenas, na Faculdade de Letras
da Universidade de Atenas, foi bolseiro do governo francês na École de Hautes Études en Sciences
Sociales em Paris, onde se doutorou em História económica e social. Foi membro do gabinete particular
de Constantinos Caramanlis, então presidente da República helénica. Foi mestre – assistente na Faculdade
de Direito da Universidade de Salónica, e professor adjunto da mesma Faculdade. Foi conservador do
Museu da cidade de Atenas. Foi Director do Instituto de investigação sobre Eleutherios Vénisélos e a sua
época. É membro do Conselho de Administração deste Instituto. Tem diversos livros publicados.

185
Arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros grego (doravante : AYE), 1935, A/13/2/1, Spyridon
Polychroniadis, ministro grego em Moscovo, no Ministério dos Negócios Estrangeiros, nº. 226,
Moscovo, 14 de Fevereiro de 1935.
sempre».187 É evidente que as emendas de que Molotov era o relator foram adoptadas
por unanimidade188 e em 1936 a Constituição soviética foi reformada.189 A 12 de
Dezembro, por outro lado, tiveram lugar as eleições para a designação dos membros do
Conselho Supremo da União Soviética. A «democratização» foi verdadeiramente
«absoluta»; e isto não somente porque todos, sem distinção de nacionalidade, sexo, etc.
eram considerados como eleitores, mas também porque, para ter o direito de estar
190
inscrito na lista eleitoral, não era obrigatório ser-se membro do Partido Comunista.
Além disso, o mandato dos eleitos podia, em qualquer momento, ser revogado pelos
eleitores.191

A revogação do mandato era uma novidade à escala mundial; por essa razão a
medida teve muito bom acolhimento junto dos eleitores soviéticos. A abstenção nas
eleições de 1937 limitou-se a uns magros 4% de eleitores, num total de votantes que se
cifrou nos 90.000.000.192 Em suma, a Constituição soviética de 1936 foi a «mais
193
democrática» do nosso mundo. Além do mais, foi aplicada integralmente – tanto no
espírito quanto na letra. Graças a esta constituição, com efeito, consumou-se a
«democratização absoluta da União Soviética. Por intermédio desta democratização, foi
contudo o absolutismo tout court que se estabeleceu na Rússia. As eleições, que
deveriam supostamente concluir o processo de democratização iniciado em 1917,
depressa foram transformadas em referendos sobre medidas tomadas sob a iniciativa de
Estaline. E só a priori é que o resultado era, obviamente, conhecido.194 A equação:
democratização absoluta = absolutismo emergiu então claramente, e a simples questão
que se coloca é : porquê?

Eis uma pergunta a que não é difícil responder. No quadro do socialismo, bem
como no da democracia dita «burguesa» (liberal), os homens são considerados como
186
AYE, 1935, A/13/2/1, Spyridon Polychroniadis, no Ministério dos Negócios Estrangeiros, nº. 206,
Moscovo, 12 de Fevereiro de 1935.
187
AYE, 1935, A/13/2/1, Spyridon Polychroniadis, no Ministério dos Negócios Estrangeiros, nº. 226,
Moscovo, 14 de Fevereiro de 1935.
188
Idem.
189
Arthur Koestler, The Yogi and the Commissar. Traduzido em grego por Alexandros Kotzias, Atenas, Ed.
Galaxias, 1969, p. 130.
190
AYE, 1938, B/2/P, I.Th.Kindynis, encarregado de negócios da delegação grega em Moscovo, no
Ministério dos Negócios Estrangeiros, nº. 1347, Moscovo, 16 de Dezembro de 1938.
191
Idem.
192
Idem.
193
A.Koestler, The Yogi and the Comissar (tradução grega), p. 130.

194
AYE, 1938, B/2/P, I.Th. Kindynis, no Ministério dos Negóciosn Estrangeiros, nº. 1347, Moscovo, 16 de
Dezembro de 1938.
iguais,195 enquanto os seus dirigentes têm plena consciência de que «as ovelhas do seu
rebanho» não o são.196 Assim, não existe quase nunca uma maioria que repouse
exclusivamente sob a razão e, consequentemente, sob o «conhecimento imediato» do
bem-estar comum. As maiorias, com efeito, não são mais que o resultado do ascendente
sobre a sociedade de um grupo de pessoas que dispõem dos meios para que a sua
própria vontade seja anunciada como a «vontade de todos» ou, pelo menos, da
«pluralidade».197A consequência de um tal estado de coisas já foi muito bem descrita
pelo próprio Lenine: o domínio do capital torna-se «cínico e implacável» e «responde-se
imediatamente com a guerra civil» a toda e qualquer tentativa desencadeada pelas
massas para melhorar a sua sorte.198 Com efeito, «não é a consciência dos homens que
determina o seu ser, é inversamente o seu ser social que determina a sua consciência».
199
Eis, portanto porque é que a democracia «burguesa» /liberal, ainda que «erguida sobre
as ruínas da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classes». Apesar do
conceito de igualdade no qual se sustenta «ela não fez mais do que substituir novas
classes, novas condições de opressão, novas formas de luta às de outrora».200

É assim que «mesmo a forma mais livre do Estado burguês, a república


democrática, não elimina de modo algum este facto, apenas lhe modifica o aspecto
(ligação do governo com a Bolsa, corrupção directa e indirecta dos funcionários e da
imprensa etc.)”.201 Em suma, a igualdade demonstrada por toda a espécie de democracia,
seja a burguesa/liberal, seja a socialista/integral,202 não passa de um «logro».203 E a
única, a verdadeira diferença entre a esquerda e a direita consiste no facto de rejeitar ou
adoptar este engano: a esquerda abraça-o enquanto a direita rejeita-o. Desde Heraclito
de Éfeso, a aletheia (a verdade) é o emblema da direita. 204 Ora, a verdade é sempre
inconcebível para as massas,205 que no dizer de Heraclito, “vivem como os bichos”
(ktinea).206 Este argumento foi retomado por Sócrates e Platão (pelo menos ao de

195
Konstantinos Tsatsos, Politik (“A Política”), Atenas, Ed. Hoi Ekdoseis ton Philon, 2000, p.170.
196
Ibidem. Ver também Lenine, “O Estado e a Revolução”, Obras Escolhidas, vol. 2, Moscovo, Ed.
Progrès, 1975, pp. 353-354.
197
K. Tsatsos, Politikï, o.c., p. 166.
198
Lenine, De l’État, Pequim, edições em linguas estrangeiras, 1969, p. 23.
199
Lenine, Karl Marx, Pequim, edições em lingus estrangeiras, 1970, p. 16.
200
Ibidem, p. 19.
201
Ibidem, p. 39.
202
Lenine, Sur les questions nationale et coloniale, Pequim, edições em línguas estrangeiras, 1967, p. 2.
203
Lenine, De l’État, o.c., p. 24.
204
Cf. Diógenes Laércio, Vidas, doutrinas e sentenças dos filósofos ilustres, III, 39-40.
205
N.Kotzias, Historia tïs Philosophias, vol. I, Atenas, Ed. Mellön, 1876, pp. 173-174.
206
Heraclito, fragmento 29 (Tannery). Cf. N. Kotzias, Historia tïs Philosophias, p. 188.
leve),207 e por paradoxal que pareça, por Vidkun Quisling no decorrer do século XX,208 o
que prova a continuidade do pensamento de direita ao longo dos séculos. Portanto, se as
massas tomam o poder em nome da igualdade é o totalitarismo que irrompe, ou a
catástrofe. A democracia ateniense destrói a Grécia antiga 209 e se Napoleão e Estaline
«bonapartista» não tivessem chegado e permanecido no poder na França e na Rússia
revolucionárias, estes dois países teriam sido destruídos pouco tempo após os
acontecimentos de 1789 em Paris, no caso da França, e de 1917 em São Petersburgo, no
caso da Rússia.

Além disso, não se pode pensar que esta dicotomia se limita à política. Pelo
contrário, ela atravessa quase o conjunto do pensamento humano: o idealismo platónico
contra o materialismo aristotélico, os realistas medievais contra os nominalistas seus
contemporâneos. O que é, efectivamente, a realidade? A humanidade ou os homens?210
Ou, dito de outra maneira: as palavras de que fazemos uso respondem a realidades fixas,
211
que se encontram algures no além, ou são elas próprias as únicas realidades? Em
suma: a solução dos mistérios e o fim dos males da vida humana atinge-se objectiva ou
subjectivamente? A morte é o fim ou, pelo contrário, o início de uma outra vida, sem
dúvida melhor do que esta?

***

A dicotomia em questão foi ilustrada, ainda que de forma esquemática, por


Arthur Koestler, na sua obra célebre The Yogi and the Comissar .212 É um feixe de raios
que representa o comportamento social dos humanos. Num extremo, encontra-se o
comissário: ele acredita que todos os males se curam por intermédio da revolução.
Trata-se de uma resposta espontânea à famosa questão retórica de Lenine: «Como se
pode fazer uma revolução sem execuções?»213 Portanto, ao fuzilar, cura-se tudo,
inclusive a colite e o complexo de Édipo. No extremo oposto, encontra-se o yogi, o

207
Platão, Fédon, 89e-90a.
208
Hans Fredrik Dahl, Quisling. Tradução em iglês por Anne-Marie Stanton-Ife, Cambridge, Ed.
Cambridge University Press, 1999, p. 9.
209
Panagiotïs Kanellopoulos, Apo ton Marathöna stïn Pydna (“Da batalha de Marathon à de Pydna”), vol.
I, Atenas, Ed. Kayros, 1963, p. 29.
210
Étienne Gilson, La philosophie au Moyen-Âge, Paris, Ed. Payot, 1922, p.39.
211
Pierre Lasserre, La jeunesse d’Ernest Renan. Histoire de la crise religieuse au XIX.ème siècle, vol. II,
Paris, Ed. Garnier, 1925, p. 25.
212
Primeira edição em 1945.
213
Boris Levytsky, The Use of Terror. Traduzido em inglês por H.A.Piehler, Londres, Ed. Sidgwick &
Jackson, 1971, p. 18.
santo: ele rejeita todo e qualquer uso da violência e está convencido que só os meios
espirituais são válidos. A chave de saída do «vale de lágrimas» que é a nossa vida só se
encontra no aperfeiçoamento moral dos humanos.

O que é notável em Koestler é o facto que, ainda que tivesse estado prestes a ser
fuzilado pelos nacionalistas espanhóis em 1937 214 ele põe no mesmo saco o comunismo
e o fascismo. No seu livro Arrival and departure, publicado em 1943215, ele estabelece
uma não mais do que ténue «linha de demarcação» entre o nacional-socialismo
hitleriano e o comunismo estalinista216. O que nos anos 20 era considerado como
«bolchevique» era tido por «nacional-socialismo» uma década mais tarde. 217 A escolha
entre os dois campos é, antes de tudo, uma questão psicológica. 218 Dito isto, ele procede
pois às seguintes observações: a)- o campesino é o inimigo por excelência do
socialismo;219 b)- falar de socialismo a propósito da Rússia de Estaline é um absurdo; 220
c)- o sistema soviético, evidentemente totalitário, foi muito mais asfixiante do que o
sistema hitleriano;221 d)- o nacional-socialismo alemão empreendeu realmente a criação
de um homo novus, ou mesmo até de um «super-homem». 222 Koestler, no entanto,
despreza tanto o «super-homem» nacional-socialista quanto o socialismo soviético. Ele
estava convencido de que os homens fazem a guerra não para quebrar as correntes mas
antes para as conservar223 - ou mesmo para as fazer brilhar. Daí o seu pessimismo
profundo que foi uma das razões do seu suicídio em 1983- o que era normal: rejeitando,
por motivos relacionados apenas com a psyché, o homo novus nacional–socialista;
alimentando um desprezo latente, mas profundo, para com os humanos «normais»;
estando certo que os «intelectuais», a saber «aqueles que aspiram ao livre pensamento»
não estão em condições de influenciar a opinião pública, ele caminhou voluntariamente
em direcção à morte – após ter vivido, bem entendido, uma vida muito interessante.

214
Ver o seu livro Spanish Testament. Traduzido em grego por Steph. Niarchos, Atenas, Ed.
T.Drakopoulos (s/d).
215
Traduzido em grego por Takïs Mendrakos , Staurophoria chöris stauro (“Uma cruzada sem cruz”),
Atenas, Ed. Papyros/Viper, 1972.
216
Ibidem, pp. 132-147.
217
Ibidem, p. 163.
218
Ibidem; The Yogi and the Comissar (tradução grega), p.87.
219
Staurophoria chöris stauro, p. 143.
220
The yogi and the Comissar (tradução grega), p. 154 e ss.
221
Ibidem, pp. 161-200.
222
Staurophoria chöris stauro, p. 143.
223
The Yogi and the Commissar (tradução grega), p. 158.
Koestler foi um exemplo típico dos intelectuais de esquerda durante o século
XX. As suas teses? Antipatia sem limites para com Estaline, simpatia por Trotsky,
aversão espontânea, mas crónica, contra o Fascismo/Nacional-Socialismo, rejeição do
conceito marxista do homo economicus, relevo dado aos motivos psíquicos que
determinam o comportamento político dos humanos, desconfiança profunda para com a
Humanidade in toto. Ele esteve em condições de influenciar André Malraux, se bem que
este preferisse, por oposição a Koestler, um cargo ministerial. Ora, em l’Espoir, história
romanceada de episódios notáveis da Guerra civil em Espanha, Malraux chega às
mesmas conclusões que Koestler: «Meu velho…, se soubesses como estou farto dos
homens! / Não é o melhor momento para isto…/Não te esqueças que estava em Burgos
antes de ontem. E era a mesma coisa… Os pobres idiotas fraternizavam com as tropas
…/Vai tu vendo, pá : aqui são as tropas que fraternizam com os pobres idiotas./E nos
grandes hotéis as condessas de casaco de peles bebiam com os camponeses
monárquicos, boné na cabeça e cobertor sobre os ombros …/E eles cuspiam quando
ouviam palavras como República ou sindicatos, pobres idiotas… ».224 Posto de lado o
fim trágico do POUM, ou mesmo do trotskismo espanhol, Malraux tem razão em
recuperar um pouco de optimismo e mesmo de afirmar a « possibilidade infinita do
destino dos homens ».225 É no entanto contra Koestler, que ele esquece de bom grado
que, não raro, quando nos «batemos de alegria na carlinga », é «o caça inimigo que
surge rente às nuvens ».226

Foi o britânico George Orwell que aprofundou a clivagem «estalinismo –


trotskismo/socialismo». Conhecemos bem a sua Homenagem à Catalunha. Ora foi em
Quinta dos animais que ele formulou a célebre máxima que exprime a essência do
bonapartismo estalinista: «Todos os animais são iguais mas alguns são-no mais do que
outros». Na prática, contudo, recapitulou de modo literário o que Koestler já havia
verificado…

224
André Malraux, L’espoir, Paris, Ed. Gallimard, 1972, p. 53.
225
Idem, p. 504.
226
Idem, p. 151. « Mon vieux…, si tu savais ce que j’en ai marre des hommes! /Ce n’est pas le meilleur
moment pour ça…/N’oublie pas que j’étais à Burgos avant-hier. Et c’était pareil… Les pauvres idiots
fraternisaient avec les troupes…/Dis donc, tortue : ici ce sont les troupes qui fraternisent avec les pauvres
idiots./Et dans les grands hôtels les comtesses en peau buvaient avec les paysans monarchistes, béret sur
la tête et couverture sur l’épaule…/Et ils crachaient quand ils entendaient des mots comme République ou
syndicats, tristes ballots… » (Excertos no original francês da obra de Malraux citados pelo autor).
Eis então as características principais dos intelectuais de esquerda durante o
século XX: decepção provocada pelo homo sovieticus; rejeição do homo novus criado
pelo Nacional–socialismo; condição de nevrose permanente 227 de onde só se podia
escapar através de uma vida confortável (às vezes pela oferta de um cargo de ministro).

Ora, os Estados democráticos do ocidente toleraram-nos – e, no fim de contas,


salvaram-nos dos massacres e dos suicídios «precoces».

***

A criação de um «homem novo» constituiu a ambição primordial dos pensadores


de direita. No início de 1938, o romeno Corneliu Zelea Codreanu, líder da Guarda de
Ferro fez a seguinte declaração a Virgilio Gayda, director do diário italiano Il Giornale
d´Italia : «O meu programa é construtivo. Penso na maior e mais difícil construção: o
homem novo. Não só do ponto de vista físico e intelectual…mas também do ponto de
vista moral». 228

Eis pois a diferença entre os intelectuais da esquerda e os pensadores da direita.


Para estes últimos o «livre pensamento» não constituía um fim em si mesmo. A famosa
dialéctica hegeliana «tese – antítese - síntese» 229 é de rejeitar, posto que a tese exclui a
antítese e vice-versa,230 dito de outro modo, a antítese produz uma outra antítese. 231 O
pensamento e a palavra não servem para nada se não provocarem o aperfeiçoamento dos
humanos.232 É preciso por isso que o pensamento seja ordenado, ou mesmo
sistematizado e visando alguns objectivos muito precisos. Ora, eles erigiram ainda que
inconscientemente um obstáculo à criação do tipo humano que desejavam. Era isso o
nacionalismo.

A nação, com efeito, não é a raça. Pelo contrário, trata-se de um grupo humano
que levou a cabo «acções notáveis» no passado e que quer promover outras no futuro.
Isso compreende-se bem se tivermos em conta a experiência francesa. Os «antepassados
dos Franceses são os Gauleses»; ora o termo «França» é alemão. Foi portanto apenas
227
A.Koestler, The Yogi and the Commissar (tradução grega), pp. 90-93.
228
Tradução francesa da declaração : AYE, 1938, A/7/2.

229
Cf. Kerry Bolton, Revolution from Above, Londres, Ed. Arktos, 2011, p. 9.

230
Platão, Fédon, 102b-103a. Pelo contrário, Heraclito admite-a : fragmento 8 (Tannery).

231
Diógenes Laércio, Vidas, doutrinas e sentenças dos filósofos ilustres, III, 55.
232
Platão, Fédon, 101e-102a.
durante os acontecimentos decorridos entre os anos 1789 e 1792 em Paris, que o
conceito de nação se concretizou.233 Este conceito servia um objectivo prático: a
legitimação do regime revolucionário. Efectivamente, todos aqueles que se erguiam
contra o Terror e o seu impacto eram declarados ipso facto «inimigos da Nação». Em
todo o caso, o conceito sobreviveu ao Terror revolucionário e propagou-se mesmo,
primeiro pela Europa, e depois em todo o mundo. Contudo, mesmo em França a
conciliação das camadas «gaulesa» e «alemã» da população só se concretizou durante a
Primeira Guerra Mundial – mercê sobretudo às hecatombes que dizimaram a juventude
francesa da época. Nunca devemos esquecer, sem embargo, que o veiculo para a
propagação do nacionalismo, «presente» da Revolução francesa à Humanidade foi, no
século XIX, a esquerda e não a direita. Os casos mais significativos foram os
acontecimentos de 1848 nos territórios romenos (Valáquia, Moldávia),234 e também nos
Estados alemães.235 Ninguém duvida que Marx, bem como os seus epígonos, fossem
favoráveis à assim designada «unidade nacional» 236 e também ninguém duvida que o
nacionalismo foi legado pela esquerda à direita na época de Bismarck – e sobretudo
graças a ele.

Aproveitar a questão deste «legado» extravasaria em muito o âmbito deste texto.


O importante, no entanto, é não perder de vista a afirmação de um pensador de direita,
Henry Williamson: a Segunda Guerra Mundial foi perdida pela direita por esta ser
«demasiado nacionalista»237. Ele tinha razão: a direita travou a sua batalha armada com
uma panóplia que não era a sua; ela perdeu pois, uma vez que lutou com as armas de
outros.

***

233
Cf. Léon Trotsky, Histoire de la révolution russe. Traduzido em grego por L. Michaïl, Atenas, Ed. Neoi
Stochoi, 1971, p. 12.
234
Ver sobretudo a obra de Dan Berindei, A revolução romena de 1848-1849, Bucareste, Ed.
Enciclopedica, 1998.
235
Dimitris Michalopoulos, Fallmerayer et les Grecs, Istanbul, Ed. Ísis, 2011, p.18.
236
A título de exemplo : Karl Marx, “Adresse du Conseil Général de l’Association Internationale des
travailleurs sur la guerre civile en France en 1871”, na obra K. Marx, F. Engels, V.I.Lenine, Sur la
Commune de Paris, Moscovo, Ed. du Progrés, 1971, p. 61 : “A unidade da nação não devia ser quebrada,
mas ao contrário, organizada pela constituição comunal”.
237
K.R.Bolton, Thinkers of the Right challenging Materialism, Luton, Ed. Luton Publications, 2003, p.81.
«Nascemos para morrer!».238 A noção de morte é a demarcação da direita e da
esquerda. Para esta a morte é o fim absoluto: Deus é vencido por Satã», 239 por isso a
alma não existe.240 A direita não sabe exactamente o que acontece após a morte; ela
admite contudo que há algo, com toda a probabilidade de mais importante que a nossa
vida terrestre. Este conceito é tangível mesmo para os grandes filósofos atenienses que
foram os adversários ideológicos do regime democrático da sua pátria. 241 A
religiosidade é a condição sine qua non de todo e qualquer regime verdadeiramente de
direita242 e o fim supremo de tais regimes é a fundação de um Estado de cultura
(Kulturstaat): «A poesia é uma necessidade do Estado» declarava Mussolini. 243O Estado
dito «de potência» (Machstaat) ou mesmo «de direito» (Rechstaat) são finalmente de
rejeitar,244 uma vez que são apenas os meios para chegar ao Estado de cultura. Cristo é
visto amiúde como o grande precursor da marcha em direcção a um tal Estado, 245
enquanto grandes antepassados falecidos são convidados do sítio em que se encontram
actualmente para salvar o nosso mundo «da degeneração, da democracia e do
feminismo».246 Em suma, o além deste lado, «visível somente pelos ascetas, os santos,
os heróis assim como pelo coração ingénuo e primitivo do povo»,247 e o sistema
monetário do outro lado, que assenta na alta finança ou os grandes Bancos, sem os quais
«a construção do socialismo é impensável».248 Apesar da sua derrota na Segunda Guerra
mundial, a direita poderá retomar um dia a sua luta. Para isso, no entanto, é preciso que
ela mude de cavalo de batalha, dito de outro modo, ser-lhe-á necessário rejeitar o
nacionalismo que herda da esquerda. Quantas pessoas de direita, contudo, terão tido a
coragem de fazer, quanto mais não seja moralmente, o que Ezra Pound concretizou
entre 1940 e 1945 ? 249 Eis uma questão cuja resposta está escondida no futuro.

238
Guy Sajer, Le soldat oublié, Paris, Ed. Marabout, 1985, p. 195.
239
Paul Lafargue, La méthode historique de Karl Marx. Tradução em grego por Dinos Takopoulos, Atenas,
Ed.Klassikï Koultoura, s/d., p. 12.
240
Idem, p. 27.
241
Platão, Fédon, 106e.
242
Benito Mussolini, “Fascismo”, Enciclopedia Italiana di Scienze, Lettere ed Arti, vol. XIV, Roma, Ed.
G.Treccani, 1932, p. 847.
243
K.R.Bolton, Thinkers of the Right, o.c., p.87.
244
K.Tsatsos, Politikï, o.c., p. 72
245
K.R.Bolton, Thinkers of the Right, o.c., p. 110.
246
Idem, p. 61.
247
Benito Mussolini, “Fascismo”, o.c., p. 851.
248
Lenine, “Les bolcheviques garderont-ils le pouvoir ?”, Oeuvres choisies, vol. 2, Moscovo, Éd. Progrès,
1975, pp. 411-412.
249
K.R.Bolton, Thinkers of the Right, o.c., p. 90.
Tradução do francês por Fernando Couto e Santos
Catolicismo, Esquerda e Direita

Wellington Teodoro da Silva250

Esquerda e direita apresentam-se para os estudiosos e para os políticos como


duas naus que percorrem o mar revolto da modernidade orientando tanto as matrizes
compreensivas acadêmicas quanto a efetividade das ações nos espaços públicos. Não
nos parece nenhum despropósito pensar que elas são os principais núcleos de sentidos
estruturadores da politicidade dos últimos dois séculos. Em torno do eixo de sentido
esquerda-direita os políticos são situados: extrema esquerda, esquerda moderada, centro,
centro esquerda, centro direita e etc. Pensamos não haver nenhum ambiente moderno
que não tenha sido navegado por essas naus e que lhes tenha ficado indiferente.

O cristianismo também se viu interpelado por esses dois lugares políticos.


Também é comum ver os cristãos serem situados dentro do arco de sentido esquerda
versus direita: esquerda católica, esquerda protestante, etc. Esse fenômeno manifesta o

250
É historiador e doutor em Ciências da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil. É
professor do Departamento de Ciências da Religião na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
Brasil. É presidente da Associação Brasileira de História das Religiões – ABHR. Desenvolve trabalhos de
Extensão Universitária no Núcleo de Direitos Humanos e Inclusão da Pró-reitoria de Extensão da mesma
Universidade.
amplíssimo alcance e permeio desses dois loci estruturadores da politicidade, que não
deixou intocado o multimilenar fenómeno religioso.

São recorrentes as análises que reputam à religião e à política a condição de


temas de análises privilegiadas para a compreensão do percurso humano na história.
Existem aqueles que compreendem que o humano é um animal político a conviver com
o complicador da religião. Para eles, a religião é a permanência de um grilhão para a
razão e a emancipação humana. De ser assim, ela torna-se uma pervertedora potente da
politicidade do humano. Por outro lado, também há os que compreendem que o humano
é, no mesmo ato existencial, um animal político e religioso. Nessa compreensão, a
politicidade não consegue conter toda a densidade existencial do humano, animal aberto
ao transcendente. Essa abertura pode ser a maior aventura intelectual e existencial do
humano por ser a tentativa de relacionar-se com uma realidade absoluta, universal e
sagrada. Nessas duas proposituras encontramos pessoas capazes de construir
argumentos lúcidos rigorosamente plausíveis. Sendo assim, encontram no espaço
acadêmico um ambiente relevante de análises e interpelações.

A Igreja Católica, de existência anterior à modernidade e mantenedora de


estruturas também pré-modernas, recebeu em suas águas a tempestade moderna que
trouxe os movimentos revoltos das ondas das esquerdas e das direitas. A análise desse
fenômeno oferece contribuições que ultrapassam a mera soma entre a religião e a
política. E é assim porque, no amplíssimo arco produtor de sentidos do humano, o
religioso e o político não se situam em extremos opostos. A política é passível de ser
sacralizada e a religião de ser politizada. Uma ressignifica a outra promovendo sínteses
cujas análises oferecem contributos fundamentais para compreender o século XXI que
apenas principia e já se apresenta em crises nas quais a religião ocupa lugar destacado.

Ao mesmo tempo em que é uma instituição de natureza religiosa, a Igreja


Católica possui a incontornável politicidade da condição profética do cristianismo. Seus
fiéis inserem-se nos espaços públicos defendendo interesses religiosamente legitimados.
Ela é política, mas não tem a política como um fim como o Estado Nacional. É uma
organização racional cujos fundamentos encontram-se num outro mundo. O sentido de
sua existência, que confere legitimidade para a sua organização e manutenção, aponta
para além da história. Anuncia a consumação do tempo e da história considerando-os
lugares onde principia a salvação. E esse é o núcleo duro do seu estar no mundo: o
anúncio da salvação para todo o humano acreditando ter sido mandatada para isso pelo
próprio Deus na história. Elabora sua auto-compreensão de peregrina e sinal do Reino
de Deus acreditando-se um sacramento universal de salvação do mundo. De ser assim,
produz-se e se reproduz com vistas ao momento escatológico. Embora seja uma
instituição racional é impossível não pensá-la como extemporânea ao ambiente
moderno. Se o Estado Nacional é uma empresa política a Igreja Católica é uma empresa
de salvação.

Seus fiéis apenas poderão assumir uma postura de esquerda ou de direita, na


condição de militantes católicos, se uma ou outra puder ter uma função salvífica. Esses
lugares políticos são filhos legítimos da modernidade. Surgiram no teatro das lides
políticas emancipadas da religião. Compreender que possam ser religiosamente
significados causa embaraços analíticos que têm sido recorrentemente evitados
recusando-se a própria análise. É uma estratégia de fuga intelectual: se o objeto é
complexo e fere as convicções íntimas do intelectual, ele simplesmente o recusa como
tema legítimo de estudo. Isso causa embaraços para a História, as ciências sociais e
políticas que são pródigas em reputar à cosmovisão religiosa a condição de redutora e
pervertedora da emancipada politicidade moderna.

Embora não sendo uma instituição cujo núcleo estruturante seja de natureza
política, a Igreja Católica é uma das instituições históricas que marcou a política
ocidental de maneira profunda e densa. Infelizmente, sua relação com a política parece
ainda refém de larga influência intelectual dos séculos XVIII e XIX europeus que
compreendem a religião como uma espécie de erro antropológico, um câncer da razão.
Essa determinação onto-negativa do fenômeno religioso produz uma interpretação que
encobre o percurso dessa instituição e as contribuições de seus intelectuais para a
cultura universal.

O caso da Igreja brasileira é paradigmático para pensar as questões políticas no


catolicismo alhures. Nesse país organizou-se um notável e globalmente referencial
pensamento de esquerda, com grande destaque para a Teologia da Libertação e para a
organização social dos católicos através, por exemplo, das Comunidades Eclesiais de
Base.

Em se tratando de uma instituição internacionalista, seus quadros e suas ideias


transitam admiravelmente. O pensamento e livros de autores europeus orientam a
formulação intelectual dos católicos brasileiros. Dentre os quais vale o destaque dos
seguintes: Mounier, De Lubac, Maritain, Bernanos, Leon Bloy, Berdiaff, Clerissac,
Chardin, Tesmontant, Chenu, De Lubac, Congar, Danielou, Lebret, Henri Massis,
Auguste Viatte, Charles Maurras, Chesterton e outros.

A partir da segunda guerra mundial, a modernidade tardia desse país se fazia


sentir em todas as forças vivas da sua sociedade. Elas se dividiram basicamente em dois
setores, a saber: aqueles que defendiam uma modernização conservadora e os que
defendiam a modernização plena da sociedade e de suas relações políticas e sociais. Os
primeiros representam a continuidade dos liberais autoritários da Primeira República
(1889 – 1930) que desejavam modernizar a economia mantendo as relações políticas
pré-modernas fundadas numa sociedade estratificada sem as liberdades políticas já
conquistadas nesse período da história européia e norte-americanas. Do outro lado
encontravam-se os setores que desejavam a modernização da base produtiva da
economia e das relações sociais e políticas da nação.

A segunda metade do século XX adensou aspectos terríveis da mundialização.


Após ter passado pela experiência da planetarização da guerra, outra forma de
beligerância foi inaugurada: a guerra fria. As tensões entre os dois blocos hegemônicos
foram recebidas no Brasil posicionando as forças vivas da sociedade num amplo
gradiente político. Elas se organizavam a partir de dois eixos opostos: por um lado, o
alinhamento aos Estados Unidos e, por outro, a revolução que superasse o capitalismo
na direção de um socialismo ainda que um tanto vago.

Os católicos foram interpelados e interpelaram esse ambiente dividindo-se em


diversos grupos. Dentre eles destacamos nessa análise dois extremos: os reacionários e
os progressistas. Entre os primeiros encontramos os setores que se vinculam à direita.
Entre o segundo encontramos os setores da esquerda católica. A modernidade e a
revolução são os temas-chave que dividem um e outro setor, elaborando as suas
compreensões da História e da fé cristã nas quais estruturam o estar humano no mundo.

A direita e a esquerda católica possuem uma grande negação em comum: a


radical recusa do capitalismo A divergência entre ambas acontece nas estratégias de
combate contra esse sistema. De ser assim, pensamos que ambas podem ser
adequadamente compreendidas dentro dos marcos do romantismo anticapitalista,
segundo o pensamento de Michel Lowy (LOWY, 1993), que o reconhece como enigma
indecifrável no qual se encontra o revolucionário (esquerda) e o contra-revolucionário
(direita).
Pensamos aqui, portanto, nos dois extremos românticos no catolicismo. O
extremo da direita reacionária e o extremo da esquerda revolucionária. A condição de
limite nos oferece a possibilidade de pensar todo o gradiente que existe entre um e
outro. A matriz estruturadora da realidade desses dois extremos permanece ainda hoje
nos movimentos religiosos dessa Igreja.

É entre os reacionários que devemos procurar a direita no catolicismo. Sobre


eles foi feito um admirável trabalho pelo eminente historiador Francisco Iglésias. Seu
estudo trata do pensamento reacionário do catolicismo brasileiro surgido na década de
1920, cujas matrizes ainda orientam esse pensamento, que se estrutura na defesa da
ordem e da tradição. Os valores da disciplina e da hierarquia são defendidos e
expressam claramente a desigualdade entre os homens como uma segunda natureza. A
ordem que se deseja não á positivista, que lhes apavora. O combate é travado pela
restauração de uma ordem que existiu num passado ideal. Segundo Iglésias:

O tradicionalista ou restaurador ignora ou quer negar que há um processo


que leva à permanente mudança: vê a realidade de maneira idílica, perfeita e
bela, que não deve ser alterada. Negando-se a aceitar ou não reconhecendo o
movimento, pensa-se em termos de uma filosofia que se supõe eterna, livre
do tempo ou do ambiente. Como a realidade que lhe é dado viver não é a que
idealizou, condena-a como erro, desvio da verdade, loucura dos homens. E
passa a combatê-la, a fim de restaurar o que lhe parece certo. Para ele é
absurdo a pretensão de igualdade, uma vez que os homens são naturalmente
desiguais; existe então uma hierarquia, com diferentes atribuições a cada um,
em sociedade em que há os que mandam e os que obedecem. Os
movimentos pela liberdade parecem-lhe não só perigosos como falsos, frutos
de ótica viciada, vistos antes como libertários, libertinos ou liberticidas.
(Iglésias, 1981, p. 112)

O reacionário acredita em uma utopia com os faróis voltados para trás. Ele teme
a história que é o terreno do trânsito, da mudança continuada. Para seu desespero, a
única permanência da história é a sua condição de impermanente. Nela há apenas o
temporário. O seu anti-historicismo o torna um combatente romântico contra o caráter
diluidor da modernidade

A sua filiação ao cristianismo parece acontecer por força do encantamento


produzido pela Igreja Católica em sua condição de grande mantenedora da ordem,
disciplina e hierarquia. Em sendo assim, suas mediações com o que lhes parece sagrado
foram elaboradas no período medieval, sobretudo. O seu Deus é o juiz medieval. O
reacionário conduz sua vida na espera pelo final dos tempos. Espera ardorosamente o
final dos tempos menos pela parusia do que pelo terror que o tempo lhe provoca. É um
evasivo da história.

A Idade Média é o seu período áureo. O reacionário a compreende como o


momento da hegemonia católica romana por sobre a realidade e mentalidades. Esse
momento quimérico é abalado pelas reformas protestantes, que principiam o processo
de decomposição da sociedade. Segue-se o racionalismo cartesiano; a revolução
francesa; a psicanálise e o demônio dos demônios: a revolução de orientação marxista.
E é assim, porque é historicamente mais próxima e faz a promessa de realizar aquilo que
a revolução francesa não conseguiu: a máxima igualdade entre os homens, que apenas é
possível se houver a igualdade económica. Se a primeira efetiva a igualdade política, a
segunda completa a obra com a igualdade na economia. A igualdade na sociedade é-lhes
insuportável.

Esse (anti)historicismo é observado nos tempos atuais, no qual a Internet é


utilizada para a divulgação do pensamento reacionário:

Interrogada por que só admitia em seu convento damas de alta linhagem,


quando o Senhor se rodeara de gente humilde, escreveu Santa Hildegarda:
“Deus vela junto de cada homem para que as classes baixas nunca se elevem
sobre as altas, como fizeram outrora Satanás e o primeiro homem, que
quiseram exaltar-se acima de seu próprio estado.
“Quem há que guarde num só estábulo todo o seu rebanho, bois e jumentos,
ovelhas e carneiros? Por isso devemos velar para que o povo não se
apresente todo misturado num só rebanho. De outro modo produzir-se-ia
horrorosa depravação dos costumes, e todos se dilacerariam mutuamente,
levados pelo ódio recíproco ao ver como as classes altas se rebaixariam ao
nível das classes baixas, e estas se alçariam até a altura daquelas. 251

A revolução é o evento de grande pavor, o máximo inimigo a ser combatido, por


ser o evento da máxima diluição que a história humana produziu. Ela é compreendida
como a máxima fonte de violência e caos. É o tempo adensado.

O Estado também é visto com desconfiança. A sua presença como o grande


normatizador da sociedade veio substituir o papel cumprido pela Igreja no medievo. A

251
Fragmento retirado da página http://gloriadaidademedia.blogspot.com/ no dia 25/12/11, às 21:44 horas.
laicidade é um grande mal por dotar essa empresa política da possibilidade do governo
sem a orientação religiosa. Como podemos observar na citação da carta Immortale Dei,
feita na página da internet citada acima:

“Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os Estados.


“Nessa época, a influência da sabedoria cristã e a sua virtude divina
penetravam as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as
categorias e todas as relações da sociedade civil.
“Então a Religião instituída por Jesus Cristo, solidamente estabelecida
no grau de dignidade que lhe é devido, em toda parte era florescente,
graças ao favor dos Príncipes e à proteção legítima dos Magistrados.
“Então o Sacerdócio e o Império estavam ligados entre si por uma feliz
concórdia e pela permuta amistosa de bons ofícios.
“Organizada assim, a sociedade civil deu frutos superiores a toda a
expectativa, cuja memória subsiste e subsistirá, consignada como está
em inúmeros documentos que artifício algum dos adversários poderá
corromper ou obscurecer”.
(Fonte: S.S. Leão XIII, Encíclica “Immortale Dei”, de 1º-XI-1885, "Bonne
Presse", Paris, vol. II, p. 39).252

Lembremos que o Papa Leão XIII também é o autor da carta encíclica “Rerum
Novarum – sobre a condição dos operários”, publicada seis anos após a acima citada e
que podemos considerar um importante documento da questão social no interior da
Igreja. Ela foi um documento importantíssimo para a esquerda católica que passamos a
tratar a seguir.

A década de 1960 é um momento privilegiado para pensar a esquerda no


catolicismo. Ela representa um ponto de inflexão em sua história, impulsionado por
eventos relevantes, dentre os quais se destaca o Concílio Vaticano II. Nesse momento
político e cultural efervescente, esses católicos afirmam que a história é o lugar onde
principia a salvação. Eles negam que Jesus Cristo seja um mero episódio sem
conseqüências para todos os tempos do homem e para o homem em todos os tempos. O
Cristo torna-se um lugar que se alcança na medida em que se avança na direção do
drama do humano. E se a revolução se impõe como único ato eficiente no sentido da

252
Citado por http://gloriadaidademedia.blogspot.com/ - grifos na página. Consulta feita em 25/12/11,
às 22:00 horas.
emancipação humana, ela torna-se o ato privilegiado para a marcha em direção ao
Cristo.

Por compreenderem que o cristianismo é uma força revolucionária na e da


história, esses católicos foram acusados de heréticos, materialistas, criptocomunistas,
inocentes úteis e ateus. No entanto, seguiam no seu empenho em cristianizar a
revolução retirando o monopólio compreensivo e propositivo do marxismo. A
revolução, compreendida como morte e ressurgimento de estruturas e mentalidades
novas e historicamente situadas, existe na matriz geracional do cristianismo que é morte
e ressurreição para uma realidade nova situada no final dos tempos, no Absoluto.
Portanto, o cristianismo é o grande pedagogo que preparou a cultura ocidental para ser
capaz de comportar um evento cuja envergadura promoveu uma mudança de época na
história.

Esses cristãos não produziram a clássica evasão da história. O mundo não era o
vale de lágrimas do qual se deveria fugir na esperança de um paraíso redentor. Ele
deveria ser revolucionado. O Paraíso seria, assim, antecipado, ainda que precariamente.
O drama do humano poderia conhecer o princípio de sua superação ainda na história.
Essa segurança lastreia-se no dado de Jesus Cristo tê-lo vivido. O humano pode,
portanto, viver na história a antecipação do Absoluto. E essa antecipação pode acontecer
pela via da revolução que cumpra, de entre outras realidades, a efetivação da radical
igualdade entre os homens. Ser sal e fermento na massa pode ser compreendido como
ser revolucionário.

O depoimento do jovem militante católico Hebert de Souza ajuda-nos a


compreender o ideário da esquerda católica. Chamamos a atenção para a defesa da
igualdade:

Há, no entanto, uma outra atitude fundamental de nossa geração: a adesão ao


drama do homem, de todos os homens, a luta pela universalização concreta
da Redenção colocada, não no plano de uma visão dualista, mas de uma
concepção do homem como um todo, indissociável, organicamente definido.
Quebramos definitivamente a perspectiva aristocrática e classista da
Salvação, e voltamo-nos para a perspectiva universal do Cristianismo: todos
os homens e o homem todo são objetos do amor e da Salvação. O
cristianismo é incompatível com qualquer perspectiva que, de qualquer
forma, faça um homem senhor e outro escravo, um sujeito universal de
direitos, outro sujeito relativo a determinadas condições restritivas (SOUZA,
1962, p. 100).

A direita reacionária e a esquerda avançada no catolicismo são anticapitalistas.


Sobre esse tema lembramos o texto de Michel Lowy (Lowy, 2000) “A ética católica e o
espírito do capitalismo: o capítulo da sociologia da religião de Max Weber que não foi
escrito”, no qual demonstra o anti-capitalismo católico. No entanto, há alguns elementos
que são separadores de oceanos.

A direita combate esse sistema buscando um retorno a um tempo idealizado no


passado. Tem horror à revolução e à modernidade por serem ato e momento de
dissolução. A esquerda católica levanta seu arsenal contra esse sistema buscando a
construção de uma realidade histórica nova idealizada no futuro. Nesse empenho, a
revolução lhe parece feita sob medida. Ela é a mais potente transformadora que a
história humana produziu.

Há ainda outro elemento de distinção entre a esquerda e a direita católicas que


nos remete diretamente ao pensamento de Norberto Bobbio (BOBBIO, 1995). A direita
rejeita a igualdade e a esquerda, por sua vez, defende-a como um elemento estruturante
de seu pensamento.

Nos dias atuais essas duas matrizes seguem orientando setores do cristianismo
católico. E como a palavra revolução não possui o mesmo apelo existencial profundo
que possuía até pelo menos a segunda metade do século XX, uma e outra operaram um
discurso extemporâneo. A direita segue pregando a sua contra-revolução, divulgando os
grandes males do socialismo e do marxismo. A esquerda, por sua, vez parece ter
perdido o seu objeto estruturante: a revolução. Na ausência de uma revolução possível
para superar o capitalismo, ela vê-se dividida, buscando temas para a sua militância.
Alguns militantes e intelectuais estão trabalhando com questões ambientais, e outros em
movimentos sociais como o brasileiro Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST). Esses dois setores estruturaram-se em torno do modelo de revolução possível no
século XX. Portanto, estão em profundo descompasso com as revoluções possíveis no
século XXI.

Referência Bibliográficas

ARENDT, Hannah. A promessa da política. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010.


BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda – razões e significados de uma distinção
política. São Paulo: UNESP, 1995.
IGLÉSIAS, Francisco. Ideologia e História. São Paulo: Editora Perspectiva, 1981.
LOWY, Michel. A guerra dos deuses – religião e política na América Latina.
Petrópolis: Vozes; 2000.
LOWY, Michel. Romantismo e política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
LÖWY, Michel e SAYRE, Robert. Revolta e melancolia: o romantismo na contramão
da modernidade. Petropolis, RJ: Vozes, 1995.
SOUZA, Herbert José de. Juventude cristã hoje. In: SOUZA, Herbert José
de et al. (Org.). Cristianismo hoje. Rio de Janeiro: Universitária, 1962.
SILVA, Wellington Teodoro. Revolução, tradição e religião: o catolicismo nas veredas
da política – o jornal Brasil, Urgente (1963-1964). Curitiba: CRV, 2011.
O BINÓMIO ESQUERDA-DIREITA NAS
POLÍTICAS DE SEGURANÇA E DEFESA

SUSANA DE SOUSA FERREIRA253


TERESA FERREIRA RODRIGUES254

No último quarto de século XX surgiram no sistema internacional novos actores,


dinâmicas regionais, desafios no âmbito da Segurança e da Defesa e também novas ameaças,
que transformaram profundamente as Relações Internacionais e, de modo especial, os
Estudos de Segurança. As concepções de Segurança têm também sofrido alterações
significativas nos últimos vinte anos, de que é exemplo a distinção entre Segurança Interna e
Segurança Externa, cada vez mais difícil de estabelecer, dada a crescente convergência
conceptual entre estas duas dimensões (Anderson e Apap, 2002, p.2). Acresce a este ponto o
facto de na actualidade, os limites entre as esferas de actuação em torno dos conceitos de
253
Licenciada em Relações Internacionais, pela Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho.
Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais, pela Faculdade de Ciências Socias e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa. Doutorada em Relações Internacionais, pela mesma Faculdade.
Investigadora do IPRI (Instituto Português de Relações Internacionais), e do CEPESE (Centro de
Estudos da População, Economia, e Sociedade).
254
Licenciada e Doutorada em História, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade
Nova de Lisboa. Agregação em Relações Internacionais, pela mesma Faculdade, onde é docente, no
Departamento de Estudos Políticos, e também no Instituto Superior de Estatística e Gestão de
Informação. É responsável e membro de vários projetos e grupos de investigação, de âmbito nacional e
internacional. É também autora de muitos artigos, e de diversos livros.
Segurança e Defesa, tal como de Segurança Interna e Externa, serem cada vez mais fluidos e
permeáveis, pelo que só uma leitura integrada e interdisciplinar pode encontrar as respostas
adequadas aos desafios de futuro.

Às tradicionais funções do Estado e dos actores de segurança juntam-se novos


deveres, como o de garantir independência económica e estabilidade social. Falamos de
novas noções de segurança, ao serviço de populações mais ricas e complexas na sua
identidade e, também por esse facto, com maiores exigências e de mais difícil compreensão.
No início do milénio os conceitos de segurança, liberdade e justiça foram reestruturados em
função do cidadão e de um novo paradigma fundado em novas ordens/alianças geográficas e
noções de territorialidade (Weiner, 2001). Este novo cenário caracteriza-se pelo paradigma
da Segurança Humana255, bem como da Segurança Cooperativa 256, em que a cooperação
internacional é fundamental.
No Mundo bipolarizado da Guerra-fria, marcado pela ameaça nuclear, as dinâmicas de
securitização257 estavam subordinadas aos interesses das duas superpotências, EUA e URSS. Com o
seu fim, assistimos a alterações significativas no sistema internacional. Inicia-se um período de
transição e de incerteza, em que surgem vazios de poder ambicionados pelas potências regionais, o
que obriga à tomada de novas medidas colectivas de Segurança e Defesa. Já o mundo pós Guerra-
fria é pautado pela dialéctica da fragmentação versus integração. Ao mesmo tempo que se assiste a
uma fragmentação do poder, da qual se destaca a proliferação dos conflitos regionais, ocorre uma
maior cooperação através de processos de integração regional (integração europeia e relações
transatlânticas, por exemplo). A atenção foca-se agora em ameaças transnacionais como o
terrorismo, o narcotráfico, o tráfico de seres humanos e outros. O aumento das reconhecidas
vulnerabilidades amplificou a percepção de ameaça e o consequente sentimento de insegurança. A
Segurança tornou-se, então, um imperativo (Ferreira, 2010, p.8).

TABELA 1. 20 SINAIS PREMONITÓRIOS DA NOVA ERA

Nº Tipo Nº Tipo

255
Segurança Humana - conceito cunhado em 1994 no Human Development Report das Nações Unidas, que
coloca o indivíduo no centro da análise das questões de segurança (Ferreira, 2010, p.21).
256
Segurança Cooperativa – é uma abordagem mais pacífica às questões de segurança baseada no pressuposto
de uma crescente harmonia e cooperação internacional para fazer face aos riscos, ameaças e conflitos
transnacionais (Cohen, 2001, p.2).
257
O conceito de securitização foi desenvolvido pela Escola de Copenhaga e pressupõe a existência de uma
ameaça existencial que legitima o quebrar de regras na realização de acções de emergência. Trata-se de um
processo que está para além do próprio processo político e que justifica a tomada de medidas urgentes
(Ferreira, 2010, p. 7-11).
1 Um Mundo em rede. 11 A demografia e as novas correntes migratórias.

2 Sacralização do Mercado. 12 Aumento da concentração urbana.

3 Drásticas alterações climatéricas. 13 Dificuldades dos Poderes tradicionais com o


aumento dos problemas sociais internos.

4 Falta de recursos hídricos e energéticos. 14 Alargamento do fosso entre os mais ricos e os


mais pobres.

5 Terrorismo transnacional e armas de 15 Os Extremismos do Desespero.


destruição maciça.

6 Emergência brusca de novas grandes 16 Os Estados Falhados.


potências.

7 A crença que não há limite para a 17 Confronto entre as Grandes Potências.


expansão da Ciência.

8 Tecnologia, informação e comércio global 18 Guerras Assimétricas.


tendem a igualar o Poder entre os
Estados.

9 O Poder das Igrejas e os diferentes modos 19 Enfraquecimento das Regras de


como são encarados. Relacionamento Internacional.

10 Manipulação das Massas pelos vários 20 Grandes alterações no comportamento


Poderes. individual.

FONTE: Leandro, J.E.G. (2009) Caminhos para uma Segurança Alargada em Portugal. Nação e Defesa, nº124,
4ª Série, Lisboa, pp.137-150.

O Mundo do século XXI herdou do anterior a necessidade de compreender e regular os desafios


e oportunidades gerados pelas rápidas e profundas alterações do sistema internacional, decorrente do
processo de globalização, e também a urgência de enfrentar os riscos a ela associados (Rodrigues,
2010a). Adoptam-se novos significados e conteúdos para os conceitos de Estado, Segurança, Identidade
Política ou Migrações e criam-se novos conceitos, como os de Sociedade em Rede ou de Informação,
Cidades Globais, Economia em Arquipélago (Durand, 2008; Badie, 1995; Baylis e Smith, 2005; Lomborg,
2004 e 2007). Transforma-se a noção de espaço e o modo como as novas populações humanas o
percepcionam e utilizam. A realidade mundial em construção não esbate as diferenças entre povos,
antes parece acentuar a distância entre ricos e pobres, associada a processos de exclusão, com
tradução espacial e entendidos como passíveis de poder constituir focos de insegurança 258. Garcia
Leandro (2009) refere para este início de milénio vive “sinais premonitórios de mudança de época
histórica”, os quais sintetizam a sua percepção sobre a evolução do Mundo actual (TABELA 1).
258
Pensemos na abordagem do conceito de Segurança na perspectiva da Teoria das Relações Internacionais,
designadamente a tendência multiculturalista humanitária de Ken Booth, Richard W. Jones, Bill McSweeney,
João Reis Nunes e J. Pedro T. Fernandes, entre outros. (Leal, 2009, pp. 7-16).
O sistema internacional hodierno, rico em desigualdades e instabilidades internas e
internacionais, apresenta vários e complexos desafios à segurança internacional. O World Economic
Forum elenca anualmente os riscos que considera afectarem o Mundo em termos globais 259. À
semelhança de anos anteriores, também em relação a 2011 identifica cinco grupos principais de
ameaças globais: (1) riscos económicos, ou seja, crise financeira, desacelerar da economia chinesa,
extrema volatilidade dos preços das energias, entre outros; (2) riscos geopolíticos, como conflitos
geopolíticos, crime organizado e o terrorismo; (3) riscos ambientais, por exemplo, inundações,
terramotos e erupções vulcânicas e governance260 dos Oceanos; (4) riscos societais, tais como
segurança alimentar, doenças infecciosas, disparidades económicas e migrações; e (5) os (novos)
riscos tecnológicos, entre os quais a segurança dos dados e informação online (FIGURA 1).

Neste complexo emaranhado de riscos e tendências internacionais coexiste um conjunto de


actores múltiplos, como a NATO 261, a OSCE262, a UEO263, a ONU264 e tantas outras, que procuram lidar
com estes desafios. A segurança internacional funciona numa lógica relacional, pelo que existe uma
multiplicidade de espaços de cooperação que lidam com as questões de Segurança e Defesa,
consideradas vectores essenciais à manutenção da paz internacional. Os complexos de segurança
(Buzan et al., 1998) definem-se pelos padrões de interacção e interdependência geográfica, ou seja,
pela crescente interdependência securitária dos Estados. Os principais núcleos de segurança
deslocam-se dos estados de tipo vestefaliano para uma lógica regional e acentuam-se os fluxos de
interacções entre as várias ameaças e riscos, no sentido da criação de dinâmicas comuns. Veja-se o
caso da União Europeia, relativamente à qual se torna claro que o processo de integração europeia
levou à criação de um complexo de segurança regional. Assim, temos hoje um conjunto de Estados
que se relacionam a vários níveis e cujas percepções de segurança estão de tal modo interligadas,
que levaram à criação de respostas e mecanismos comuns aos vários Estados, de que a actual
Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD) é um exemplo acabado 265.

259
Relatório das Ameaças Globais de 2011 do Fórum Económico Mundial, disponível em
http://riskreport.weforum.org/ [acedido a 19.12.11].
260
O conceito de governance, também traduzido em português por “governança” é definido pela Commission
on Global Governance (2000, p.12) como “the sum of the many ways individuals and institutions, public and
private, manage their common affairs. It is a continuing process through which conflicting or diverse interests
may be accomodated and cooperative action may be taken”.
261
NATO - Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), adoptamos aqui a sigla norte-americana mais
comummente usada.
262
OSCE – Organização para a Segurança e Cooperação na Europa.
263
UEO – União da Europa Ocidental.
264
ONU – Organização das Nações Unidas.
265
A Política Comum de Segurança e Defesa é o nome dado pelo Tratado de Lisboa à Política Europeia de
Segurança e Defesa (PESD) (Monge, 2011, p.150).
FIGURA 1. PANORAMA DAS AMEAÇAS GLOBAIS

FONTE: World Economic Forum, Global Risks Report 2011.

A Europeização das Políticas de Segurança europeias - Actualmente, as políticas de Segurança e


Defesa nacionais (de modo especial as europeias, e particularmente a portuguesa) só podem ser
entendidas numa lógica relacional, uma vez que são fruto dos vários quadros de segurança
internacionais (NATO, UE e vários outros acordos bilaterais ou multilaterais).

A União Europeia tem procurado construir uma Política Externa e de Segurança Comum
(PESC), instituída pelo Tratado de Maastricht, que lhe permite ter uma só voz nas questões
mundiais. Os Estados Membros têm avançado significativamente neste campo, dispondo
actualmente de uma maior capacidade de decisão e actuação na gestão de crises e de conflitos. Este
é um desafio difícil, uma vez que toca questões sensíveis em que os 27 Estados frequentemente têm
interesses divergentes. Não importa aqui abordar as dificuldades e limitações desse processo, já que
outros o fizeram anteriormente (cf. Deighton, 2002), importa antes realçar os esforços da UE em
criar uma Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD). A PESD, consagrada no Tratado de Nice
(2000), surge como resposta à incapacidade europeia de lidar com a crise nos Balcãs. No entanto,
apenas assume uma maior importância com as profundas alterações ao sistema internacional pós
11 de Setembro (Teixeira, 2011, p.175). Com o Tratado de Lisboa, o termo “política comum” foi
institucionalizado, o que traduz o empenho dos Estados Membros em ultrapassar as suas
divergências e prosseguir objectivos comuns neste campo sensível, como é o da Segurança e Defesa
(Monge, 2011, p.150).

Importa aqui clarificar o conceito de Segurança no âmbito das Relações Internacionais, o


qual se distingue da noção que empregamos diariamente. A perspectiva tradicional político-militar
da Segurança define-a como sobrevivência (Buzan, 1997, p.13), ou seja, como referem Buzan et al.
(1998, p.21), “[i]t is when an issue is presented as posing an existential threat to a designated object
(…). The special nature of security threats justifies the use of extraordinary measures to handle
them”266. Na verdade, a Segurança está para lá de uma qualquer ameaça ou problema. É necessário
que estas (ameaças e problemas) sejam consideradas ameaças existenciais, para que sejam objecto
de securitização. No conceito europeu, a Segurança não passa apenas por evitar o conflito armado
ou a violência, mas assume outros aspectos. “[I]t covers, economic, environmental, criminal,
humanitarian and human rights issues, as well as those of the illegitimate use of violence” (Deighton,
2002, p.727). Por seu turno, Charillon (2001, p. 105) considera que os Europeus re-inventaram o
conceito de Segurança e que este foi alargado a parceiros inter-regionais, compreendendo
dimensões tão diversificadas como o controlo das migrações, a cooperação militar, cultural,
comercial, etc. Contudo, persiste sobre esta matéria uma grande variedade de teorias e definições,
com diferentes prioridades e sensibilidades, o que se pode traduzir, e traduz frequentemente, em
agendas divergentes (Alcaro e Jones, 2011, p.18).

Deste modo, ao nível europeu, existe uma Política de Segurança e Defesa comum que co-
existe com as políticas nacionais dos Estados Membros. Tal implica cedências e uma maior
flexibilidade por parte dos Estados, que necessitam de encontrar pontos comuns e ultrapassar os
interesses nacionais e responder aos interesses colectivos. Assim, procura-se uma harmonização das
prioridades sobre esta matéria específica: as questões de Segurança e Defesa. A substituição do
conceito de “política árabe da França” pelo de “Parceria Euro-Mediterrânica” é um exemplo desse
esforço (Charillon, 2001, p.132).

A Europa é uma das regiões, senão a região com maior número de complexos de segurança
institucionalizado, que derivam da sua proximidade com a NATO, à UEO, à OSCE, entre outras
(Alcaro e Jones, 2011, p.18). O quadro atlantista, com a NATO, é em última análise, o garante da
266
Sempre que necessário recorrer-se-á à transcrição de frases ou excertos dos autores e fontes na língua
original, por ser mais fiel à ideia que se quer transmitir.
segurança europeia. Esta aliança político militar de países europeus e da América do Norte é não só
o maior poder militar mundial, cujo principal objectivo é a manutenção da paz e a defesa dos seus
Estados, mas representa também uma relação única entre estes dois continentes ao nível da
cooperação na área da Segurança e Defesa. A NATO, à qual pertence uma grande parte dos Estados
Membros da União Europeia, constitui o núcleo duro da segurança europeia. A UE não reúne a
capacidade militar nem a vontade política suficiente para se afirmar como actor de Segurança e
Defesa independente na NATO (Alcaro e Jones, 2011; Deighton, 2002). A criação de uma Política de
Segurança Comum efectiva depende da capacidade dos Estados Membros de dotarem a União com
uma estrutura institucional sólida. Esta deverá ser criada em articulação com a NATO, de modo a
evitar a duplicação de mecanismos e respostas, a maximizar os ganhos e a estreitar os laços
atlânticos (Conceito Estratégico de Defesa Nacional, 2003, p.281)

A dicotomia esquerda-direita nas questões de Segurança e de Defesa - As ideologias caracterizam


as sociedades industriais. Estas procuram sistematizar ideias e valores. A divisão entre esquerda e
direita funciona “(…) ao nível individual, como um instrumento para reduzir a complexidade do
universo e, ao nível sistémico, como um código de comunicação” (Freire, 2005, p.11). A
compreensão do real e da sociedade é necessária para compreender o indivíduo e naturalmente as
suas opções. Para a direita o ser humano é egoísta; a esquerda vê-o como altruísta. Na verdade, o
ser humano é por natureza contraditório, daí a dificuldade em antecipar o seu comportamento
(Bresser-Pereira, 2006).

Não importa aqui caracterizar os conceitos de esquerda e direita, importa antes abordá-los
na lógica da Segurança. Bresser-Pereira (2006) propõe uma definição que foca sobretudo a questão
da segurança interna dos Estados, caracterizada pela oposição entre ordem e justiça social, mas
pode ser alargada à sua segurança externa:

“A direita é o conjunto de forças políticas que, em um país capitalista e democrático, luta


sobretudo por assegurar a ordem, dando prioridade a esse objectivo, enquanto a esquerda
reúne aqueles que estão dispostos, até certo ponto, a arriscar a ordem em nome da justiça
— ou em nome da justiça e da protecção ambiental, que só na segunda metade do século
XX assumiu estatuto de objectivo político fundamental das sociedades modernas.”

Novas matérias políticas têm surgido nas últimas décadas, alterando significativamente a
definição das políticas. Questões como ecologia, a imigração, o nacionalismo e a diversidade
cultural, denominadas pós-materialistas, estão intimamente relacionadas com a soberania nacional,
pelo que são assimiladas nas ideologias partidárias (Hooghe e Marks, 2002, p.976). A
reconceptualização da Segurança traduz-se no reconhecimento de que as sociedades actuais se
caracterizam pela presença de outros que não se identificam com os discursos identitários
dominantes, daí serem considerados ameaças. Para além disso, temos a associação da imigração ao
crime, corrupção e terrorismo numa óptica geopolítica, o que causa instabilidade social (Rodrigues,
2010b, pp.17-28).

A dicotomia esquerda-direita pode ser representada numa escala ideológica que vai da
extrema-direita à extrema-esquerda. No centro assistimos a oscilações, que ora pendem mais para a
esquerda, ora para a direita. Esses movimentos resultam, segundo Bresser-Pereira (2006), do
esgotamento das propostas dos governos e da consequente deslocação dos eleitores mais ao centro
na direcção oposta. Para além disso, o centro também varia de país para país. Assim, políticas
consideradas de esquerda num país poderão ser consideradas de direita noutro. Procuraremos de
seguida analisar as questões de Segurança e Defesa com base nesta escala ideológica. Ao nível dos
valores na questão da Segurança, a direita defende valores materiais como a propriedade e o bem-
estar das famílias e cidadãos; já para a esquerda assume maior importância certos valores
imateriais, como são a justiça, os direitos humanos e a igualdade de direitos e oportunidades
(Motta, 2008, p.305). Estes valores orientam os enunciados destas ideologias.

A esquerda considera a violência como resultado de condições precárias (falta de meios e de


oportunidades), pelo que entende que a resposta a esta problemática se resolve indo à raiz do
problema, ou seja, através da prossecução de uma maior justiça social. Os partidos de esquerda
batem-se pelo combate às desigualdades e pelos direitos humanos. Defendem, por exemplo, os
direitos dos imigrantes e combatem a injustiça e políticas contra todas as discriminações ( vide Teses
Políticas aprovadas na VI Convenção do Bloco de Esquerda 267). No extremo desse espectro
ideológico surge a extrema-esquerda, que se vê a si mesma como uma força revolucionária, pelo
que defende o uso da violência para poder fazer a revolução do sistema.

Por sua vez, a direita acredita que a violência é inerente à natureza do homem (isto é, há
homens bons/honestos e há homens maus/delinquentes), pelo que é necessária a acção repressiva
do Estado como garante da ordem social. Em suma, segundo a formulação da direita, a sociedade
está dividida em dois grupos, os criminosos e os honestos, sendo defensável o recurso a acções de
carácter repressivo contra o primeiro grupo. A esquerda apresenta-se como defensora dos direitos
humanos e de uma maior justiça social (Motta, 2008, pp.305-311). Temos assim a oposição entre
ordem e justiça social. Num dos extremos do espectro surgem os partidos da extrema-direita. Para
estes a imigração é uma ameaça à Segurança nacional, pelo que sustentam a necessidade de

267
Disponível em http://www.bloco.org/media/tesespoliticasIV.pdf [acedido a 20.12.11].
defender os valores e a cultura nacional dos estrangeiros, que percepcionam como “invasores”.
Estes sentimentos anti-imigração traduzem-se na oposição por parte destes partidos à livre
circulação de pessoas no espaço europeu, o que explica a sua rejeição aos Acordos Schengen 268. A
defesa da independência e soberania nacional, bem como dos valores tradicionais, é central à
ideologia destes partidos. São defensores de políticas mais árduas de combate à criminalidade e
também de penas mais pesadas. Os últimos anos têm sido marcados pelo aparecimento e reforço
no espectro eleitoral de novos partidos da direita, nos quais se multiplicam discursos inflamados
contra uma série de ameaças à soberania nacional, com destaque para os temas relacionados com
imigração, influências estrangeiras, elites cosmopolitas e agências internacionais. Em termos
comunitários muitos destes consideram que o próprio processo de integração europeia representa
uma ameaça à soberania nacional (Hooghe e Marks, 2002, pp.976-977).

Os partidos de direita populistas (de que é exemplo o CDS-PP em Portugal), não são tão
extremistas, mas têm uma orientação conservadora. Defendem a soberania e a cultura nacional, o
que, por exemplo, os faz encarar com desconfiança a imigração, por considerarem que à partida se
arrisca a ameaçar a identidade nacional. Pelas mesmas convicções são tendencialmente contrários a
pressões externas (Hooghe e Marks, 2002, p.981). Estas diferentes perspectivas de encarar a
realidade evidenciam-se quando se trata de questões de Segurança e Defesa, consideradas como
prioridades fundamentais do Estado, uma vez que um dos principais deveres do Estado é a
segurança dos seus cidadãos (Cf. Programa Eleitoral sobre Segurança e Programa Eleitoral sobre
Defesa do CDS-PP269).

A dicotomia esquerda-direita está presente no próprio processo de integração europeu e


consequentemente nas suas políticas. Podemos considerar que a UE é resultado de um conjunto
político de actores de centro-direita, de centro e em menor número de centro-esquerda (Hooghe e
Marks, 2002, p.969). Num primeiro momento predominou a visão liberal, impressa nos Tratados de
Roma, cuja essência é a construção de um mercado comum. Mas com o Tratado de Amesterdão
(1997) assistimos a uma ténue viragem para o centro-esquerda, que reflecte o programa do então
Primeiro-ministro do Reino Unido, Tony Blair (Pollack, 1998, pp.6-7). Temos um alargamento das
competências em matérias de política social, igualdade de oportunidades, direitos humanos, entre

268
Tomemos como exemplo a Frente Nacional Francesa de Le Pen e o Partido Nacional Renovador (PNR) em
Portugal, cujas plataformas políticas defendem uma maior regulação da imigração.
269
O Programa Eleitoral sobre Segurança está disponível em http://www.cds.pt/index.php?
option=com_content&view=article&id=137:seguranca&catid=104:cds&Itemid=81 e o Programa Eleitoral sobre
Defesa Nacional e Antigos Combatentes em http://www.cds.pt/index.php?
option=com_content&view=article&id=122:defesa-nacional-e-antigos-
combatentes&catid=104:cds&Itemid=174 [acedidos a 15.12.11].
outros. Assim, os tratados internacionais reflectem os programas e ideologias da maioria dos
governos representados.

Políticas de Segurança e defesa – entre a divisão ideológica e a procura de consensos - Na Europa,


a definição das políticas de Segurança e defesa não pode ser entendida apenas numa lógica
nacional. As variáveis europeia e atlantista têm um grande peso no gizar destas políticas. No caso de
Portugal, de acordo com o Conceito Estratégico de Defesa Nacional adoptado em 2003, perante as
ameaças existentes e como forma de optimizar as respostas, a Segurança deve ser entendida numa
óptica cooperativa. Segundo o Conceito Estratégico (2003, p.283) “[a] política de defesa do Estado
democrático assegura a continuidade de Portugal enquanto país europeu, de centralidade atlântica
e vocação universalista”. O eixo estruturante da Segurança e Defesa de Portugal é a Aliança
Atlântica (NATO); ao nível da UE, Portugal defende o aprofundamento da política europeia de
Segurança e defesa e o reforço do papel da UE na resolução de conflitos ou crises; as relações com
os países de língua oficial portuguesa (CPLP 270) não podem ser esquecidas, nomeadamente no
quadro da Defesa; para além disso, existe ainda um conjunto de acordos multilaterais e bilaterais
centrais ao interesse estratégico português, como o Acordo de Cooperação e Defesa com os Estados
Unidos da América (EUA).

Ao nível da Segurança e Defesa um governo de direita pode adoptar medidas consideradas


de esquerda ou vice-versa, de acordo com a sua compreensão e anuência em termos de política
externa271. No Mundo onde a informação e o conhecimento circulam a uma velocidade vertiginosa e
as ameaças tradicionais de cariz militar deram lugar a um conjunto de ameaças e riscos imprevisíveis
e de carácter transnacional, os Estados, mesmo que regimes com ideologias diferentes, necessitam
de celebrar acordos, ultrapassando algumas das suas diferenças, para encontrarem instrumentos e
mecanismos para fazer face aos novos desafios. Porque “a política é a arte do compromisso”
(Bresser-Pereira, 2006), é necessário ultrapassar a lógica nacional e as diferenças ideológicas e
adoptar respostas cooperativas.

Para além disso, sobretudo ao nível nacional, acontece frequentemente um governo de


centro-direita oscilar mais para a esquerda, ou o contrário, na definição de políticas, quando esgota
todas as vias no seu campo, com vista a procurar novos alinhamentos. Os governos de centro-
esquerda ou centro-direita eleitos definem frequentemente políticas ou linhas de orientação que
divergem da ideologia central do seu próprio partido político. Tal está dependente, de

270
CPLP – Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa.
271
No caso português firmam-se em três vertentes: nacional, europeia e atlantista.
compromissos assumidos internacionalmente, mas também da procura de consensos internos (com
outros partidos, nomeadamente no caso de governos minoritários, neste caso também como forma
de evitar crises políticas) ou até da necessidade de ir ao encontro da sociedade civil, seja esta mais
de direita ou de esquerda272. Segundo Bresser-Pereira (2006), em democracias onde há um grande
hiato entre a sociedade civil e o povo existe maior tendência dos governos para encontrarem
legitimidade política junto da sociedade civil, indo ao encontro dos seus interesses e/ou para manter
a sua confiança. A política enquanto busca do bem comum, está dependente da capacidade dos
decisores políticos de alcançarem compromissos e fazerem cedências.

A Segurança Cooperativa e o papel dos EUA - Os EUA influenciaram, de modo mais ou menos
visível, a criação de estruturas internacionais reguladoras no pós II Guerra Mundial e a prossecução
de valores liberais e de defesa de valores fundamentais. Instituições de cooperação como as Nações
Unidas e a Aliança Atlântica promovem a ordem e segurança internacional, mas a ordem
internacional actual não resulta de uma imposição. Não existe uma imposição de interesses de um
governo a outros, antes o superar do interesse nacional e o estabelecimento de relações e alianças
que procuram respostas e mecanismos para lidar com ameaças comuns e uma crescente identidade
de interesses entre os Estados.

Estruturas como a ONU e a NATO têm um papel regulador da ordem internacional e


funcionam como mediadores de interesses e solução de conflitos. Não podemos, contudo, esquecer
o papel fundamental dos EUA na manutenção e institucionalização da ordem internacional (desde a
proposta da Liga das Nações273, à fundação da ONU e da NATO). A questão da Segurança e Defesa é
central à política externa dos EUA (a Guerra-fria e as suas relações com a ex-URSS e parceiros
regionais é em muito resultado desse aspecto). Assistimos não só a uma forte presença dos EUA nos
processos decisórios relevantes no sistema internacional, como à difusão das práticas e valores
norte-americanos. O ideário norte-americano pauta-se por valores de universalização da
democracia e das liberdades individuais. Estas ideias e valores tidos como universais estruturam os
processos políticos internacionais (Rocha, 2006).

272
Bresser-Pereira (2006) faz a distinção entre “povo” e “sociedade civil”. Segundo este teórico o povo “(…) é o
conjunto de cidadãos iguais perante a lei, dotados do direito de voto; sociedade civil é esse povo no qual,
porém, o poder de cada cidadão é ponderado pelo dinheiro, pelo conhecimento e pela capacidade de
organização.”
273
A Liga das Nações, também conhecida como Sociedade das Nações, foi a organização antecessora das
Nações Unidas, concebida no Pós I Guerra Mundial, com o objectivo de promover a paz, segurança e
cooperação internacional.
A interdependência entre os Estados acentuou-se nas últimas décadas. De destacar num
primeiro momento a integração de mercados (de que é exemplo a UE e o MERCOSUL 274), a
regulação de fluxos de bens e serviços, seguida da integração em áreas tradicionalmente reservadas
aos poderes políticos estatais, como a Segurança. Neste início de século assistimos a uma crescente
convergência de expectativas e à progressiva homogeneização de comportamentos, através da
criação de estruturas comuns. O incremento da cooperação entre Estados reduz a capacidade
autónoma de decisão, nomeadamente na realização de guerras (Rocha, 2006) e no combate a
determinados riscos e ameaças.

Tomemos como exemplo a Guerra no Iraque em 2003, que parte de uma coligação entre os
EUA sob a administração de George W. Bush e o Reino Unido com o Primeiro-ministro Tony Blair.
Falamos de governos ideologicamente distintos: o Partido Republicano (Republican Party) de Bush
reflecte o espírito conservador americano e é considerado de centro-direita; por sua vez, o Partido
Trabalhista (Labour Party) de Blair é um partido socialista de centro-esquerda. Temos uma aliança
entre dois Estados com um ideário divergente, mas com uma ameaça comum, que consiste na
possibilidade do Iraque recorrer a armas de destruição maciça e desse modo pôr em causa a
segurança desses dois Estados e dos seus aliados regionais. No caso da Guerra no Iraque assistimos
à oposição de um grande número de Estados europeus, membros da NATO, a esta invasão por
considerarem que desta incursão militar resultaria um desastre humanitário e fragilizaria as
instituições internacionais, como as Nações Unidas, que procuram a universalização dos valores
democráticos (Rocha, 2006).

Considerações finais

1. É num sistema internacional complexo e em constante mutação que os Estados têm que
definir as suas políticas de Segurança e Defesa nacionais. Perante um conjunto de ameaças
e riscos tão alargado quanto diversificado, torna-se fundamental que as respostas se
baseiem na cooperação internacional, num quadro de Segurança Cooperativa. Para além
disso, a segurança internacional não pode ser apenas entendida como segurança dos
Estados, mas deve também asseverar a segurança das pessoas, numa lógica de Segurança
Humana.
2. Na Europa, e de modo especial em Portugal, o desenvolvimento das políticas de Segurança e
Defesa assenta num quadro multilateral. Com a criação da actual Política Comum de

274
MERCOSUL – Mercado Comum do Sul, é um acordo económico e político entre a Argentina, Brasil, Paraguai
e Uruguai.
Segurança e Defesa, assistimos a uma “europeização” da Segurança, que se traduz na
harmonização dos interesses dos Estados Membros sobre as questões de Segurança e
Defesa. A NATO é o eixo principal e fundamental da Segurança e Defesa euro-atlântica, pelo
que é necessária a articulação entre a UE e a NATO, a fim de evitar a duplicação de medidas
e meios e potenciar a complementaridade entre ambas. Os Governos devem respeitar os
compromissos celebrados com as organizações internacionais e sistemas de alianças a que
pertencem.
3. A dicotomia esquerda-direita está presente no gizar das políticas de Segurança e Defesa.
Para a direita, a natureza do homem (homens bons vs homens maus) define as suas acções,
pelo que defende políticas repressivas. Os partidos de direita sustentam a independência e
soberania nacional, opondo-se a tudo o que consideram uma ameaça (como a imigração e a
influência estrangeira). Por sua vez, a esquerda defende valores imateriais, como os direitos
humanos e a justiça social e procura defender os grupos minoritários de qualquer forma de
discriminação. Estas percepções servem como linhas orientadoras no gizar das políticas de
Segurança e Defesa nacionais. Para além disso, estão também inscritas nos tratados
internacionais celebrados, uma vez que os mesmos reflectem as orientações dos governos
representados.
4. Neste campo, como noutros, assistimos frequentemente a uma variação ideológica (mais
frequente ao centro) na adopção de medidas e políticas por parte dos governos. Tal deve-se
não só ao peso dos acordos multilaterais assinados e dos quadros intergovernamentais em
que cada entidade política se insere, mas também à procura de novos caminhos e de novos
consensos internos. Os compromissos são essenciais para o gizar de políticas consertadas e
compreensivas.
5. As políticas nacionais de Segurança e Defesa reflectem as tendências internacionais. Na sua
base encontramos a dicotomia esquerda-direita, a qual define as suas principais linhas
orientadoras (defesa da ordem vs defesa da justiça social). No caso europeu, a vertente
europeia e atlantista são centrais às políticas de Segurança e Defesa. Com o objectivo de
garantir a segurança e bem-estar dos seus cidadãos e fazer face ao ambiente político-
estratégico mundial, os Estados devem pensar as suas políticas de Segurança e Defesa numa
lógica internacional de crescente cooperação. É necessário ter em conta no gizar destas
políticas um conceito alargado de Segurança, independentemente da ideologia política
predominante, que integre não só a defesa da soberania e do território nacional, mas
também uma visão global das ameaças internacionais passíveis de virem a atingir o país,
optimizando os quadros internacionais em que o mesmo se insere.
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CONCEPÇÕES DA JUSTIÇA E
POSICIONAMENTO POLÍTICO

Caroline Guibet Lafaye275

Um inquérito recente feito através de um questionário e conversas semi-


dirigidas, levado a cabo em França sobre o tema Percepção das desigualdades e
sentimentos de justiça (PISJ, em francês) colocou em evidência o papel estruturante –
ou mesmo preeminente tendo em conta outras características sociais – da oposição
esquerda/direita no tocante às concepções de justiça e o assumir dos princípios de
justiça distributiva. Uma hipótese explicativa desta incidência reside na coerência
intrínseca das representações morais – do justo – significando correlativamente esta
coerência que os julgamentos normativos individuais não são apenas a expressão de

275
Doutorada e agregada em Filosofia pela Universidade de Paris I, Sorbonne. Investigadora no Centro
Maurice Halbwachs, em Paris, onde também dirige investigações. Autora de diversos artigos e livros,
publicados em França e noutros países. Pertence a diversas Associações científicas, de França e de outros
países.Tem dado cursos como professora visitante, em algumas Universidades de França, e de outros
países.
interesses sociais, pessoais e profissionais, mas traduzem convicções morais fundadas e
motivadas por princípios.

Nas condições sociais actuais da sociedade francesa, verifica-se que o


posicionamento político é mais explicativo das representações do justo do que a posição
social. As preferências políticas traduzem e constituiriam um epifenómeno de lógicas
interpretativas gerais e compreensivas mais fundamentais, estruturando a compreensão
do justo e a percepção das desigualdades. Seguidamente, precisaremos a influência, na
sociedade francesa contemporânea, da posição social sobre o julgamento da justiça e
sobre os sentimentos de injustiça.

A heterogeneidade dos sentimentos de injustiça que se exprimem de acordo com


posições sociais individuais, a diversidade das atitudes em relação às desigualdades ou
face ao princípio da igualdade sugerem várias pistas interpretativas e uma elucidação
dos fenómenos de aceitação das desigualdades, dos seus mecanismos e das razões que
lhes subjazem. Haverá uma identidade social, política e/ou outros traços comuns nos
indivíduos que formulam argumentações de aceitação ou, inversamente, de rejeição das
desigualdades? Terão as posições de vantagem social e as preferências políticas uma
incidência sobre a tolerância às desigualdades?

Para perspectivar estas questões, apoiar-nos-emos no inquérito PISJ cujo


financiamento foi concedido pelo Instituto de França (Fundação Simone e Cino del
Duca) à Academia das Ciências Morais e Política e que foi dirigido cientificamente por
O.Galland e M.Forsé. O inquérito comportava uma vertente quantitativa e uma vertente
qualitativa. O inquérito quantitativo desenrolou-se de Setembro a Outubro de 2009
junto de um universo de 1711 indivíduos representativos por quota da população de
idade igual e superior a 18 anos, residentes na França metropolitana. A vertente
qualitativa do inquérito PISJ, coordenado pelo autor destas linhas e por Maxime Parodi,
foi levada a cabo, no essencial, durante o ano de 2010 e o início de 2011. Cinquenta e
uma entrevistas foram realizadas em cinco zonas geográficas francesas: as regiões de
Grenoble, Lille, Lyon, Nantes e Paris. Foram gravadas e integralmente transcritas para
serem depois submetidas a uma análise clássica de conteúdo assim como a uma análise
textual com a ajuda do programa Alceste.
1-Julgamentos de justiça e posicionamento político.

1.1-Normas utópicas e normas existenciais.

O julgamento de justiça convoca princípios sobre cuja natureza e origem a


literatura permanece dividida: quer tratando-se de princípios abstractos de justiça,
universalmente partilhados, ou de «normas existenciais», como, por exemplo, normas
efectivamente adoptadas e que presidem à interacção social na qual os actores estão
envolvidos. O modelo de «valor de estatuto» (status value), desenvolvido por Berger e
al. (1972) sugere que os indivíduos convocam, nos seus julgamentos e expectativas em
matéria de retribuição social, normas existenciais mais do que normas utópicas ou
princípios abstractos de justiça. O inquérito sociológico através de inquéritos
aprofundados PISJ sugere que se reconsiderem estas conclusões da psicologia e da
sociologia experimentais. O inquérito revela - como B.Wegener (1991) o sublinhou
igualmente - que os julgamentos de macro - justiça são guiados por crenças políticas e
ideológicas e tendem a ser fundados em normas mais «utópicas» do que «existenciais»
ou «existentes» de justiça (Jasso e Rossi, 1977).

A denúncia, nos testemunhos recolhidos, das falhas das distribuições sociais


actuais ou das normas existenciais, orquestrando alguns mecanismos sociais ou políticos
contemporâneos, fundamenta-se de modo recorrente em normas ideais de justiça. Estas
últimas motivam a descrição de sistemas de regulação política alternativos em que seria,
276
por exemplo, reforçado o controlo democrático. Elas qualificam subsistemas sociais
(a educação escolar ou a empresa, por exemplo) ou os funcionamentos macro – sociais
(a economia, a fiscalidade, os mecanismos de contratação). As propostas

276
A entrevista com Habib, conselheiro municipal de Educação (CPE), de 56 anos de idade, dá-nos um
exemplo : “Felizmente que há eleições. Eu diria que o top, o ideal, dado que há pessoas descontentes,
em geral, seja à direita ou à esquerda, o ideal seria que ninguém votasse ! Pelo menos um mandato e
veríamos a porcaria em que eles estariam metidos... ninguém poderá governar , uma vez que ninguém
terá sido eleito. Mas ninguém vota ! É utópico, é utópico. Para mim, continua a ser um sonho, que isto
um dia se concretize”.
tendencialmente mais inovadoras e as menos marcadas pelo existente são, as mais das
vezes, formuladas por indivíduos que têm preferências políticas pela esquerda. Tal é
igualmente o caso da designação de alternativas com normas existenciais
contemporâneas. Em compensação, os indivíduos que orientam o seu voto para a direita
tendem a privilegiar mecanismos de regulação mais rígidos nas reformas que esboçam.
As normas «utópicas consistem então, para algumas, na promoção do empenho
individual na solidariedade social – em particular nos inquiridos que têm preferências
políticas pela esquerda, para outras no reconhecimento social recíproco dos grupos
sociais, das profissões e das funções hoje desvalorizadas. Vários inquiridos propõem
soluções originais, susceptíveis de assegurar maior equidade no mercado de trabalho ou
no mundo empresarial. 277

As entrevistas realizadas confirmam, para alguns inquiridos de perfil muito


específico cujas posições políticas se exprimem, de modo vincado, a favor da esquerda
ou da extrema – esquerda, a primazia de princípios de justiça fundamentais nos
discursos de denúncia das injustiças e das desigualdades sociais como na expressão de
sentimentos de injustiça. Assim, os indivíduos que privilegiam o voto à esquerda
defenderiam princípios abstractos de justiça, num sentido a um tempo fraco e forte, isto
é, tanto de princípios actualmente não implementados, quanto de princípios (utópicos)
pertencentes a concepções compreensíveis da justiça que ainda não tomaram forma em
nenhuma sociedade. Os indivíduos que votam na direita apoiariam por seu lado,
sobretudo em algumas esferas de justiça particulares (como o trabalho assalariado ou a
saúde), normas existentes tais como a lei da oferta e da procura, o princípio da
remuneração do mérito e o da reciprocidade entre contribuição e retribuição.

1.2- Princípio do mérito e orientações políticas.

Quando se perspectiva este princípio de justiça fundamental que é o mérito, a


análise dos dados quantitativos do inquérito PISJ (Guibet Lafaye, 2011 a) sugere que os
indivíduos não encontram, na realidade francesa contemporânea, as normas de justiça
277
Rerub, quadro superior dirigente de uma PME, de 40 anos de idade, evoca “sistemas em que todos
são accionistas da sua sociedade. Há uma verdadeira partilha, dos patrões que têm um plafond para o
seu salário, porque para além de um determinado salário, eles acham que isso é mais uma tontice do
que outra coisa”.
que descrevem o mérito pessoal em termos de esforço, de resultados, de talento, de
diplomas, critérios que no entanto prezam. O inquérito PISJ, contrariamente a estudos
anteriores (Miller, 1999; Piketty, 2003), mostra que a principal clivagem em torno da
interpretação do mérito, plasmada na variável: «diferenças de rendimento são aceitáveis
quando remuneram méritos individuais diferentes» assim como as razões de preferência
axiológica por este princípio não são tanto de ordem social quanto política (Guibet
Lafaye, 2011 a, p.133-134). Os indivíduos que se posicionam à esquerda do espectro
político recusam a ideia que se tenha de ter em conta os resultados e o diploma para
fixar os níveis de rendimento. Os partidários da extrema – esquerda são os mais cépticos
em relação a este princípio: eles põem a dúvidas a sua legitimidade, bem como os
critérios, ou seja os esforços, os resultados e os talentos. Inversamente, os partidários da
direita tradicional formulam uma fidelidade ao princípio do mérito que interpretam de
modo privilegiado em termos de esforço e de talento, mais do que em termos de
diplomas e resultados.

Por outro lado, uma dicotomia das interpretações do mérito opera-se consoante
os indivíduos privilegiem o voto à direita ou o voto à esquerda. Assim a experiência,
entendida como uma competência ou o conhecimento do seu ofício, justifica, em
particular no discurso dos partidários da esquerda, uma remuneração salarial superior.
Em compensação, quando se trata das responsabilidades dos superiores hierárquicos,
são em maior número os inquiridos a distanciarem-se da ideologia dominante do mérito.

Da mesma forma, a interpretação dos princípios de justiça distributiva e as


concepções do justo, em matéria de distribuição dos recursos no campo da saúde
pública, variam consoante as orientações políticas. À esquerda do espectro político, os
inquiridos privilegiam uma cobertura universal na saúde, em nome de princípios
fundamentais do tipo: «Todos devem beneficiar dos mesmos cuidados» (Marine). Uma
parte dos partidários da direita adere igualmente a esta lógica universalista, mas uma
outra parte desenvolve um discurso mais restritivo, independentemente da sua situação
social. O sistema alternativo promovido remete para o campo dos seguros de saúde.
Estriba-se numa norma de reciprocidade entre contribuições individuais e benefícios
sociais, ou mesmo, no caso dos mais radicais, na promoção da responsabilidade
individual e da responsabilização dos utentes do sistema de saúde.
Estes exemplos e testemunhos confirmam que os indivíduos (seja qual for a sua
posição de vantagem relativa no espaço social mas mais particularmente quando votam
à esquerda) alimentam expectativas normativas em relação à sociedade na qual vivem,
precisamente porque têm uma concepção e uma representação abstracta do que é uma
sociedade justa e uma concepção desta forjada, em larga medida, ex ante,
contrariamente ao que a teoria social não raro sugere (Berger et al. 1972). Os
sentimentos de injustiça surgem então no desfasamento entre a representação individual
(eventualmente partilhada colectivamente) de uma sociedade justa e o que os indivíduos
percepcionam do estado actual da sociedade (Forsé et Parodi, 2009).

2-Concepções da justiça, posições sociais e políticas.

2.1-Factores sociais vs. Preferências políticas.

O posicionamento político está por outro lado intimamente ligado a determinado


aspecto e certifica representações do mundo e interpretações caracterizadas da génese
das desigualdades. Segundo as representações morais e as concepções de ordem social
assumidas (tendo por exemplo como referência o mercado livre, a luta de classes ou
formas de exploração entre grupos sociais), os indivíduos desenvolvem interpretações
heterogéneas da génese das desigualdades e da sua legitimidade. A preferência por esta
ou aquela norma (igualdade, necessidade ou mérito) nos julgamentos de justiça é
indissociável da legitimidade que lhe é reconhecida num dado contexto, sendo esta
legitimidade condicionada por representações sociais e morais, por visões do mundo
mais gerais e por concepções da responsabilidade (Kellerhals, 2003, p. 140).

A assunção do auto – posicionamento político que traduz, no campo público e


político, a preferência individual por determinada representação do mundo em vez de
uma outra, seria hoje um factor explicativo prevalecente, com tendência para relativizar
«o efeito posição social» que predispõe os indivíduos com melhor posição social a
privilegiar uma explicação mais individualista do que estrutural da génese das
desigualdades. A hipótese de domínio social, estipulando que as experiências dos
grupos variam consoante as respectivas posições na hierarquia social, interpretadas em
termos de opressão e de domínio (Shérif, 1967) parece assim esvair-se em prol de
outros paradigmas interpretativos estribados na coerência das condições morais e
políticas, como Kreidl (2000) verificou também.

Algumas análises, tendo em conta o raciocínio moral e as atitudes políticas,


mostraram que o nível «convencional» de Kohlberg (1981), e mais especificamente a
fase 4, em que se desenvolve o raciocínio moral convencional, é geralmente associado
ao conservadorismo e a uma ideologia política de direita (Fishkin, Keniston e Mac
Kinnon, 1973; Rest et al., 1974; Candee, 1976; Krebs, Vermeulen, Carpendale e
Denton, 1991), enquanto as orientações liberais – no sentido anglo-saxónico – são
positivamente associadas à fase 5 de tipo «pós – convencional.»O raciocínio moral
convencional apresenta igualmente convergências com algumas opiniões sociais
tradicionalmente conservadoras, por vezes de tipo repressivo, como a pena capital (de
Vries e Walker, 1986) ou associadas ao encorajamento de soluções militares (Westman
e Levandowski, 1991). Estas correlações emergem também em contextos teóricos não
kohlberguianos em que se mostrou que os sujeitos que têm tendência em assumir a ética
da consciência pessoal (Hogan, 1973) se caracterizam por orientações políticas liberais,
enquanto os que adoptam preferencialmente a ética da responsabilidade social são mais
conservadores ((Lorr e Zea, 1977 ; Gutkin e Suls, 1979).278

A convergência entre representações do mundo, princípios explicativos dos


estados do mundo e opções políticas, verifica-se especificamente nas questões de justiça
social. A explicação de um estado do mundo pela crença num mundo justo, a crença
num mundo injusto ou a crença num mundo de acontecimentos aleatórios está
estreitamente dependente das crenças e das convicções políticas. A mobilização para a
crença na justiça do mundo está associada ao conservadorismo (Rubin e Peplau, 1975 ;
Wagstaff e Quirk, 1983) assim como a algumas atitudes sociais que tendem a
desvalorizar as pessoas vítimas de injustiças sociais, por exemplo as mulheres ou os
Negros (Rubin e Peplau, 1973). Ou a imputar a pobreza a uma responsabilidade pessoal
(Furnham et Gunter, 1984).

2.2-Crenças na vontade individual: mobilidade social e posições políticas

278
Uma interpretação possível destas correlações consiste em associar o conservadorismo social a um
estilo cognitivo e mais geralmente funcionamentos cognitivos (Stone, 1986) a algumas ideologias.
As crenças e opiniões que se prendem como o modo de criação das
desigualdades alimentam-se de informações colhidas no decurso de percursos
individuais. Juntamente com o conhecimento informal (por ouvir dizer), a trajectória
pessoal constitui uma das principais fontes de informação na qual os indivíduos
recolhem os materiais para a sua reflexão e as suas interpretações nesse domínio. As
diferenças de trajectória social explicam uma parte da variabilidade das interpretações
quanto á génese das desigualdades. As posições sociais e as trajectórias individuais (de
mobilidade social ascendente ou descendente) predispõem os indivíduos a privilegiar
alguns princípios axiológicos assim como a recorrer a esta ou aquela norma de justiça
nas suas avaliações morais. No entanto e contrariamente às conclusões das teorias sobre
o domínio social, o nível do diploma bem como o posicionamento político parecem
pesar mais, nas entrevistas conduzidas no âmbito do PISJ, na elaboração abstracta das
concepções de justiça do que as posições de vantagem relativa no seio do espaço social
ou profissional.

A socialização primária e a socialização secundária têm igualmente uma


influência nas representações que as pessoas fazem das desigualdades e da sua génese.
Quando se considera a experiência da dificuldade do trabalho, observa-se que ela pesa
de maneira diferenciada nas representações morais individuais. A dificuldade
pessoalmente vivida parece mais induzir disposições individualistas, de acordo com a
lógica: «eu consegui, por isso, pode conseguir-se». Tal é menos evidente quando se é
testemunha dessa dificuldade, numa experiência de nível N + 1 no seu quadro familiar
por exemplo e que, graças a alguns estudos, se conseguiu ter acesso a profissões menos
duras fisicamente ou então quando nos vemos na situação de sermos uma testemunha
afastada dessa dificuldade. Em compensação, em indivíduos que orientam o seu voto à
direita, seja qual for a sua posição no espaço social, a assunção do querer individual e
dos esforços pessoais tem um papel decisivo nos juízos de valor. Assim sendo, é tendo
como referência a dicotomia responsabilidade social vs. responsabilidade individual que
as pessoas tiram conclusões de experiências de confronto com as desigualdades feitas,
em particular, neste local de aprendizagem social privilegiado que é o mundo do
trabalho.

Em matéria de justificação das desigualdades e dos diferenciais de posições


sociais, o sentimento de que «se quisermos, podemos» desempenha um determinado
papel no pensamento profano (Staerklé e al.,2007, p. 249). Todavia, a legitimidade
atribuída ao voluntarismo não parece hoje tão ligada ao nível de recursos culturais ou
económicos – como o havia sublinhado Hochschild (1981) - quanto às preferências
políticas e à especificidade das experiências pessoais. Assim, a crença no poder da
vontade individual é uma disposição muito fortemente assumida por profissões
independentes, por pessoas que conheceram trajectórias sociais favoráveis ou
confessaram posições muito individualistas (como Pascal, operário qualificado interino
de 38 anos que reconhece ter um comportamento de passageiro clandestino perante os
subsídios de desemprego). A referência à sua própria trajectória é importante – e não
raro explicito – por parte de inquiridos pouco qualificados. Para estes últimos, o
percurso pessoal, em particular quando decorre de formas de sucesso pessoal, constitui a
fonte principal de informações que validam os julgamentos normativos. As pessoas
mais favorecidas, quando beneficiam de uma forte ascensão social fazem um uso mais
mitigado desta referência autocentrada e tendem menos a instituir-se como exemplo.
São excepções as que desenvolvem uma imagem de si como ser autónomo. Num
momento em que já não se pode concluir que as categorias superiores pensam que as
desigualdades fundadas no esforço e no talento são legítimas (Dubet, 2006, p. 272), há
trajectórias pessoais favoráveis que em compensação alimentam, nos seus beneficiários,
algumas crenças relativas ao poder da vontade sobre os destinos pessoais, sejam quais
forem as suas posições no espaço social.

A mobilidade social parece ter portanto um grande efeito sobre a apreciação, a


curto e a médio prazo, das desigualdades sociais, isto é, sobre a forma como os
indivíduos recolhem e tratam a informação à qual estão confrontados como actores
sociais. Não se pode portanto concluir de forma tão simples, como o sugeriam as
perspectivas sociológicas fundadas no interesse pessoal, que a explicação da
desigualdade e da pobreza pelo individualismo cresce à medida que for mais elevada a
posição social. A análise das entrevistas PISJ sublinha preferencialmente o papel
preponderante do posicionamento político sobre o do nível de rendimento.

Com efeito, as orientações políticas pessoais introduzem variações notáveis


tendo em atenção a incidência da mobilidade social: todos os indivíduos que
beneficiaram de uma mobilidade social ascendente não atribuem sistematicamente o seu
sucesso aos seus esforços e às suas competências, contrariamente ao que sugerem
Kluegel e Smith (1986). Esta interpretação é assumida diversamente consoante os
inquéritos confessem uma preferência pela esquerda ou a direita do espectro político. O
posicionamento político obstaculiza, em alguns casos, a crença num mundo justo
(Lerner 1980), ou seja a convicção que cada um merece o seu estatuto social e é
responsável pelos seus resultados, ou ainda a explicação individualista das
desigualdades sociais. A fé no voluntarismo é atenuada entre os inquiridos mais
favorecidos socialmente que votam à esquerda, revelando-se assim conscientes dos
fenómenos de determinismo social e de desigualdade das dotações individuais face ao
esforço. Nem todas as pessoas, fortemente dotadas social e culturalmente, se declaram e
se reclamam como donas do seu destino, em referência a uma imagem de si, fundada no
valor do ser autónomo, contrariamente ao que a literatura concluiu no passado
(Kellerhals, 1974, p. 145). As orientações políticas e os percursos pessoais
desempenham um papel discriminatório na emergência destas representações. Não só a
referência à livre escolha atravessa o conjunto dos testemunhos, como a construção de si
enquanto indivíduo autónomo e dono do seu destino não constitui o denominador
comum das representações morais dos indivíduos interrogados mais favorecidos.

3. SENTIMENTOS DE INJUSTIÇA, SITUAÇÕES SOCIAIS E


PREFERÊNCIAS POLÍTICAS.

3.1-Uma sensibilidade política às desigualdades.

Os julgamentos de justiça e os princípios normativos variam consoante as


orientações políticas. Esta heterogeneidade afecta igualmente os sentimentos de
injustiça que se exprimem diferentemente consoante o meio social e, em particular,
consoante as posições de vantagem relativa e as preferências políticas. O inquérito por
questionário PISJ Sugere que as representações das desigualdades sociais na sociedades
francesa são heterogéneas no seio das categorias socioprofissionais (Guibet Lafaye,
2001 b). Da mesma forma, as atitudes normativas em relação às desigualdades,
desenvolvendo-se em discursos de legitimação ou de crítica social, variam consoante as
profissões. As denúncias podem cingir-se a desigualdades específicas como o mostram
os julgamentos dos quadros superiores em matéria de acesso aos cuidados de saúde (ver
quadro 1). A rejeição das desigualdades pode traduzir uma atitude geral face a toda e
qualquer diferença como o sugerem os julgamentos das profissões intermédias que
manifestam uma aversão generalizada pelas desigualdades. Em outras configurações, a
posição pessoal pesa nos julgamentos normativos: os quadros superiores revelam-se
mais tolerantes do que as outras categorias socioprofissionais às desigualdades de
rendimentos e de património, enquanto as profissões intermédias e os
operários/empregados, mais afectados por essas desigualdades mostram-se mais
sensíveis às desigualdades no alojamento (ver quadro 1). 279

No entanto, a distribuição socioprofissional dos sentimentos de injustiça tem a


forte concorrência da influência das preferências políticas. Desenha-se uma congruência
de opções políticas e de representações morais. Mais do que a posição social, o factor
decisivo em matéria de sensibilidade às desigualdades sociais parece ser o
posicionamento político assim como o sugerem os discursos e julgamentos recolhidos
de indivíduos que dirigem o seu voto para a direita, independentemente da sua posição
social. De modo análogo, as respostas à questão da existência de diferentes tipos de
desigualdades em França, no inquérito por questionário, manifestam desvios em relação
à média muito vincados para os indivíduos que declaram votar à esquerda e os que
declaram votar à direita (ver quadro 2). Os primeiros tendem a sobrestimar a existência
das desigualdades em França relativamente aos segundos, se exceptuarmos os
julgamentos sobre as desigualdades face ao desemprego, os riscos tecnológicos, a
insegurança e as gerações (sabendo que as pessoas mais idosas têm mais tendência para
votar à direita). Mais fundamentalmente, a inaceitabilidade das desigualdades,
considerada em todos os seus segmentos,280 é sempre sistematicamente mais
pronunciada entre os indivíduos que assumem preferências políticas de esquerda do que
os que se afirmam de direita (quadro 3). Ainda que os indivíduos que votam à esquerda
não tivessem permanentemente uma tão aguda consciência da importância de certas
desigualdades, denunciá-las-iam sistematicamente, revelando assim uma posição
determinada a esse respeito. Inversamente, a preferência política pela direita vem
associada a um grau superior de tolerância às desigualdades tanto de um ponto de vista
normativo quanto em matéria de sensibilidade a essas desigualdades,
independentemente do domínio em que elas mais se fazem efectivamente sentir.
279
Tal é igualmente a posição normativa dos artesãos , mas por outras razões. Os agricultores menos
expostos a estas dificuldades mostram-se relativamente mais tolerantes.
280
Ou seja, “as desigualdades de rendimento, património, as desigualdades face ao desemprego e aos
empregos precários, as desigualdades nos estudos escolares, as desigualdades de acesso aos cuidados
médicos, de exposição aos riscos tecnológicos, industriais ou científicos (nuclear, OGM, saúde...), as
desigualdades ligadas à origem étnica, as desigualdades entre homens e mulheres, entre jovens e
idosos, face à insegurança, as desigualdades de alojamento, as desigualdades no trabalho”.
Assim sendo, a importância atribuída às opiniões políticas, em matéria de
percepção e de tolerância às desigualdades, deixa surgir desvios mais vincados de que
quando são tidos em conta os níveis de rendimento. A comparação dos V de Cramer
mostra que as opiniões políticas explicam mais a apreciação da realidade das
desigualdades do que a categoria socioprofissional ou o nível de rendimento (quadro 4).
Tal é igualmente o caso para a tolerância às desigualdades, se exceptuarmos as
desigualdades de património, em que o nível de rendimento pesa mais bem como as
desigualdades inter – geracionais em que o factor socioprofissional é mais determinante.
Desenha-se assim uma nítida correlação entre sentimentos de injustiça e posicionamento
político. A análise dos discursos da fase qualitativa do inquérito PISJ permite por outro
lado captar a muito forte convergência e assimilação entre a ideologia política
contemporânea e o discurso sobre as desigualdades, a sua emergência e os mecanismos
interpretativos do funcionamento social.

3.2-Sentimentos típicos de injustiça e figuras da alteridade

Por um lado, o posicionamento político – traduzindo convicções morais – não


tem apenas um efeito sobre a substância dos sentimentos de injustiça e a sua
intensidade, mas também sobre a sua intencionalidade. Uma dupla causalidade se
desenha conjugando as preferências políticas e o posicionamento no seio do espaço
social. Com efeito, o sentido e o alcance conferidos aos sentimentos de injustiça
dependem do actor envolvido: o locutor (N+O), os próximos (N+1), os outros (como os
passageiros clandestinos) (N+n), a sociedade, sendo neste caso os sentimentos de
injustiça provocados pelo funcionamento macro – social (N+?). As pessoas que
privilegiam o voto à direita exprimem mais sentimentos de injustiça para com «os
outros» (N + n), neste caso «outros» não virtuosos que são, por exemplo, os passageiros
clandestinos. Da mesma forma, os indivíduos que têm posições socialmente
privilegiadas formularão de preferência julgamentos que põem em causa outrem e
assumem uma atitude menos compreensiva para com os mais favorecidos.
Inversamente, as pessoas cuja situação social e profissional é menos vantajosa tenderão
mais a pôr em questão o sistema ou a estrutura (N+ ?). Esta última atitude crítica
encontra-se reforçada quando os indivíduos afirmam preferências políticas à esquerda
do espectro político. Com efeito os indivíduos que declaram votar à esquerda, seja qual
for a sua posição no espaço social, mostrar-se-ão mais sensíveis às injustiças do
funcionamento macro – social (N +? ) bem como às que emergem de contextos micro –
sociais dos quais puderam ser testemunhas 8N+2). Esta última ocorrência verifica-se,
em particular, no mundo profissional. O voto à esquerda, nos espaços sociais mais
desafogados, parece pois ser um melhor indicador da natureza dos sentimentos de
injustiça incriminando prioritariamente a estrutura social pelas situações de
desigualdade e de injustiça consideradas. Por outro lado, o voto à esquerda e as posições
sociais mais débeis coincidem amiúde numa maior empatia para com os indivíduos em
situação difícil e desfavorecidos pelas desigualdades evocadas.

Assim, o posicionamento político – à esquerda como à direita – parece


fortemente vinculado à expressão de sentimentos de injustiça típicos assim como a uma
preocupação por níveis diferenciados nos quais surgem injustiças. A preocupação
empática pelas desigualdades sociais induzindo críticas a grupos sociais designados é
mais importante à esquerda. Todavia apenas se sublinha uma coerência de concepções
morais, uma vez que esta atenção social define intrinsecamente e explica a
singularidade deste posicionamento político. Desenha-se então menos uma causalidade
entre estas duas dimensões do que uma relação recíproca, pois que o posicionamento
político condensa e traduz um conjunto de sentimentos de injustiça e de convicções
morais relativos a estados do mundo contemporâneos.

Por um lado, a figura do «outro» esboça-se de maneira distinta nos juízos de


valor consoante as posições daqueles que se pronunciam a partir do espaço social e
consoante as preferências de voto. Do lado mais socialmente privilegiado e quando os
indivíduos votam à direita, «os outros» são, de modo recorrente, os pobres sem mérito,
os beneficiários de rendimentos excessivos, em particular os futebolistas, enquanto no
outro extremo da escala social, mas partilhando este posicionamento político, «os
outros» são, as mais das vezes, o patronato ou os preguiçosos. Neste sentido, a ausência
de recursos não constitui sistematicamente uma caução para o ostracismo fundando os
seus critérios de justa sanção numa imagem estatutária ou categorial do criminoso (não
raro o estrangeiro), do doente metal ou do drogado, sistematicamente considerados
como outro (Kellerhals, 1974, p. 145). Na designação destes «outros», que sofrem a
injustiça ou a perpetuam, esboça-se a constituição de uma alteridade cuja função
extravasa aquela à qual a confinaram as teorias da equidade, quando essas teorias
avaliavam a equidade da sua remuneração pela perspectiva dos indivíduos (Berger e al.,
1972 ; Cook, 1975 ; Jasso, 1980). A existência de uma alteridade como instância
atravessa os julgamentos normativos de justiça em geral mais do que simplesmente as
avaliações da sua remuneração. Desenha-se, por exemplo, uma classe de sentimentos de
injustiça que denunciam uma assimetria favorável a esses «outros» poderosos (e amiúde
não virtuosos) que são os patrões, os poderosos, os políticos.

A denúncia desses «outros» não virtuosos – que alimenta sentimentos de


injustiça típicos – articula-se com princípios de justiça específicos. Um sentimento de
injustiça característico que se verifica no discurso dos indivíduos que privilegiam o voto
à direita, estigmatiza a repartição desigual dos custos sociais e da contribuição social,
numa pluralidade de esferas da justiça assim como no tocante a comportamentos ditos
de passageiro clandestino, associados ou não a uma desaprovação moral. 281

Enquanto a equidade da contribuição social constitui um princípio estruturante


das concepções da justiça, independentemente das posições sociais e políticas dos
indivíduos, em compensação, a referência à preguiça desempenha o papel de caução
moral num discurso que denuncia o free riding. Sobre esta questão, a maior
discrepância ideológica verifica-se entre indivíduos que votam à direita e indivíduos que
votam à esquerda. Assim, no tocante à interpretação das causas da pobreza, estabelece-
se uma nítida oposição no plano estatístico, consoante os indivíduos manifestem
preferências políticas em favor da direita ou da esquerda do espectro político (ver
Guibet Lafaye, 2001b, quadro 7.4.1). Enquanto a direita imputa maioritariamente a
pobreza à preguiça ou à má – vontade (e, para uma parte deste grupo, à ausência de
apoio familiar), a esquerda privilegiará nitidamente a explicação estrutural a partir de
constrangimentos inerentes ao mercado do emprego ou em referência à falta de sorte
(ver Guibet Lafaye, 2011b, quadros 7.4.1 a 7.4.3). Quando se tem em linha de conta o
grau de habilitações e as preferências políticas, verifica-se que os indivíduos de menores
habilitações votantes da direita explicam a pobreza pela preguiça, ao contrário daqueles
que votam à esquerda (ver quadro Guibert Lafaye, 2011b, quadros 7.5.1 a 7.5.3).
Verifica-se uma oposição interpretativa similar entre os indivíduos com mais
habilitações. Esta divisão explicativa entre a esquerda e a direita atravessa todas as

281
Jemor, quadro superior do sector privado, de 44 anos de idade, considera que “o que não é aceitável
é alguém a quem se propõe quinze vezes um trabalho e que diz não, só porque não tem vontade de
trabalhar. Alguém que poderia fazer o trabalho e que o recusa porque não tem vontade de trabalhar,
não é normal”.
categorias de diplomas e mostra deste modo que esta interpretação da génese da pobreza
é estruturante das representações que dela têm os indivíduos que votam à direita.

O voto traduz portanto uma concepção do mundo das desigualdades e uma


representação moral e constitui assim uma indicação de posições morais em matéria de
justiça social. Os inquiridos que votam à direita terão mais o sentimento que trabalham
e pagam impostos enquanto outros ficam tranquilamente em casa, aproveitando as
ajudas sociais, sem trabalhar e vivendo dos benefícios propiciados pelos primeiros. Este
sentimento é próprio dos que perfilham este ideário político, independentemente da sua
posição no espaço social.

Inversamente, a atitude de pessoas, mais favorecidas socialmente, mas votando à


esquerda consiste antes em denunciar comportamentos estigmatizantes dos que têm
maiores rendimentos para com os mais desfavorecidos. Em certas ocasiões, os discursos
dos indivíduos que se situam à esquerda do espectro político denunciam a acumulação
de vantagens associadas a uma situação de abuso em relação a indivíduos mais
desfavorecidos. 282 O sentimento de injustiça é alimentado pela dupla exclusão suscitada
pela acumulação das vantagens e que afectam aqueles – e aquelas, no caso vertente –
que delas não beneficiam, ou pela acumulação dos custos sociais sofridos pelas camadas
mais desfavorecidas da população.

Da mesma forma, os sentimentos de injustiça suscitados pela consciência da


exploração, induzida por situações de dominação social, são recorrentes e mais vincados
à esquerda. O sentimento de instrumentalização e de exploração – denunciando por si só
um jogo obliquo de interacção social (Boudon, 1995) – alimenta uma representação
desta última fundada sobre «o efeito de ampulheta», isto é sobre a convicção que se
alguns ganham no jogo social é porque outros são relegados para posições de
perdedores. Jorou, professor de 40 anos, dá-nos sobre este assunto uma formulação
paradigmática: «Tenho tendência a pensar que as pessoas que ganham muito, fazem-no
em geral em detrimento de outros. A riqueza constrói-se nas costas dos outros e para
nos tornarmos ricos, é absolutamente necessário explorar os outros.

282
Jebea, operário qualificado, de 57 anos de idade, comenta igualmente a negociação da reforma da
aposentação em França em 2010 :”O projecto de lei não é equitativo no seu conjunto em relação ao
que o Governo propõe : que sejam unicamente os trabalhadores que pagam esta aposentação aos 62
anos e que o leque de receitas não seja alargado aos rendimentos financeiros”.
Conclusão

A determinação pelo empírico e o existencial dos juízos de valor não decorre


somente das desigualdades perspectivadas ou das configurações socioeconómicas
através das quais se desenham. As posições sociais, as preferências políticas e as
experiências da injustiça vividas influenciam os juízos de valor. No entanto, a
sociologia empírica permite pôr em evidência uma autonomia relativa das
representações do justo, ou seja, dos raciocínios relativos à micro e macro – justiça. Ela
traduz-se sobretudo por uma sensibilidade moral caracterizada, em alguns indivíduos,
ou na preferência marcada por alguns princípios de justiça que levarão as pessoas a ter,
face a certas situações, sentimentos de indignação que outros ignorarão. Esta
sensibilidade moral, mais do que as experiências de injustiça, pessoalmente vividas,
poderia ser o factor explicativo principal dos julgamentos e dos sentimentos de
injustiça, bem como de certas orientações políticas. O lugar central conferido a alguns
princípios de justiça fundamentais, na denúncia ou expressão de sentimentos de
injustiça prova-o, assim como a atitude para com as desigualdades e os juízos de valor
de inquiridos que exprimem preferências políticas bem vincadas a favor da esquerda ou
da extrema -esquerda.

Esta sensibilidade moral provoca sentimentos de injustiça para situações não


envolvendo directamente os indivíduos que se exprimem. Enquanto que não se pode
sistematicamente afirmar que o sentimento de injustiça é tanto mais intenso quanto o
indivíduo está intimamente envolvido na situação que denuncia, esta intensidade é
sempre, em compensação, tanto mais forte quanto as preferências políticas individuais
se dirigem para a esquerda do espectro político, a não ser quando os indivíduos que se
afirmam de direita denunciam os chamados comportamentos do passageiro clandestino.

A prevalência explicativa do posicionamento político no tocante à percepção das


desigualdades sobre o efeito «posição social», tanto nos dados quantitativos quanto
qualitativos, é reveladora de uma incontestável coerência das representações morais. Por
um lado, a distribuição dos sentimentos de injustiça parece mais fortemente afectada
pelas preferências políticas que pelas posições sociais nas duas perspectivas
metodológicas convocadas. Por outro lado, a inaceitabilidade de categorias de
desigualdades, sistematicamente enunciadas, é em geral mais afirmada pelos partidários
da esquerda. A proximidade política com a direita é associada a um grau superior de
tolerância às desigualdades, tanto de um ponto de vista normativo quanto em matéria de
sensibilidade à realidade dessas desigualdades, exceptuando para alguns tipos de
desigualdades sobre as quais se pode pensar que elas dizem mais respeito a indivíduos
com estas preferências. A correlação muito nítida entre sentimentos de injustiça e
posicionamento político sugere uma coerência das representações, articulando
interpretação da génese das desigualdades e as respectivas apreciações normativas assim
como mecanismos interpretativos do funcionamento social. As preferências políticas
traduzem, no campo público e social, convicções individuais relativas à emergência de
fenómenos macro – sociais e coincidem com representações do mundo especificamente
políticas. A correlação fundamental das preferências políticas e dos juízos de valor
prova a coerência das lógicas interpretativas e das representações morais, estruturando a
compreensão do justo e a percepção das desigualdades.

Tradução do francês por Fernando Couto e Santos

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Anexos

Quadro 1

Percepção da realidade e da aceitabilidade das desigualdades, consoante as


categorias socioprofissionais.

Média das respostas às questões: (a) «Existem vários tipos de desigualdades na


sociedade francesa. Para as que lhe vou citar diga-me se na sua opinião elas são
acentuadas ou não hoje? Dê a sua resposta numa escala de 1 para «não são nada
acentuadas a 10 para «Muito acentuadas»; (b) «Para cada uma das desigualdades
seguintes, quais são as que lhe parecem mais ou menos aceitáveis? Dê de cada vez a sua
resposta numa escala de 1 para «nunca são aceitáveis» a 10 para «são sempre
aceitáveis».
Quadros Profissões Operários e
Agricultores Artesãos superiores intermédias empregados
Forte Aceitávei Forte Aceitávei Forte Forte Aceitávei Forte
Aceitáveis Aceitáveis
  s s s s s s s s
As desigualdades de
7,45 5,08 7,54 4,10 8,00 4,77 8,15 4,26 7,88 3,84
rendimento
As desigualdades de
6,48 5,39 6,86 4,87 7,67 5,27 7,42 5,10 7,08 4,59
património
As desigualdades
face ao desemprego
6,48 4,14 7,14 3,57 7,45 3,68 7,38 3,43 7,47 3,43
e aos empregos
precários
As desigualdades
nos estudos 5,88 3,96 5,94 3,71 6,50 3,67 6,72 3,49 6,66 3,63
escolares
As desigualdades de
acesso aos cuidados 5,24 3,77 6,18 3,12 5,71 3,03 6,40 2,88 6,53 3,09
médicos
As desigualdades
ligadas à origem 6,13 4,48 6,31 2,86 7,17 2,97 7,20 3,07 6,87 3,35
étnica
As desigualdades
entre os homens e 5,81 3,55 5,90 3,00 6,62 3,15 6,59 2,94 6,64 3,21
as mulheres
As desigualdades
entre os jovens e os 5,18 3,70 6,14 3,78 6,36 3,75 6,29 3,49 6,36 3,61
mais idosos
As desigualdades de
6,20 3,79 7,23 3,07 7,41 3,26 7,49 3,13 7,46 3,15
alojamento
As desigualdades de
condições de 6,68 3,97 7,15 3,35 7,37 3,62 7,59 3,50 7,54 3,37
trabalho
Quadro 2

Apreciação da força das desigualdades em França segundo as preferências


políticas(1).

Esquerd
Variável Categoria Centro Direita Total
a
q65-0 As desigualdades de rendimento. 8,19 7,82 7,89 8,07

q65-1 As desigualdades de património. 8,73 8,73 8,6 9,23

As desigualdades face ao desemprego


q65-2 7,8 8,25 8,38 8,48
e ao emprego precário.

As desigualdades nos estudos


q65-3 7,52 6,73 7,29 7,37
escolares.
As desigualdades de acesso aos
q65-4 6,77 6,6 6,05 6,58
cuidados médicos.

As desigualdades de exposição aos


q65-5 riscos tecnológicos, industriais ou 8,23 7,91 8,42 8,92
científicos (nuclear, OGM, Saúde, etc.)

As desigualdades ligadas à origem


q65-6 7,61 7,69 7,44 7,82
étnica.
As desigualdades entre os homens e as
q65-7 6,91 6,93 6,48 6,93
mulheres.
As desigualdades entre os jovens e os
q65-8 7,07 6,8 7,24 7,11
mais idosos
q65-9 As desigualdades face à insegurança. 6,74 7,02 7,15 7,16
q65-10 As desigualdades de alojamento 7,96 7,61 7,68 7,9
As desigualdades de condições de
q65-11 7,88 7,35 7,79 7,86
trabalho

(1)-O questionário PISJ pedia aos indivíduos para indicarem as suas preferências
políticas, posicionando-se numa escala de 10 da esquerda para a direita, representando o 1 a
posição mais à esquerda. Constituímos três grupos de opiniões: esquerda para as posições de
1 a 4, centro para as posições 5, direita para as posições 6 a 10.
Quadro 3

Aceitabilidade das desigualdades em França segundo as preferências políticas

Variável Categoria Esquerda Centro Direita Total


q66-0 As desigualdades de rendimento 4,14 3,99 4,62 4,25
q66-1 As desigualdades de património 5,36 6,25 5,98 6,07
As desigualdades face ao desemprego e ao
q66-2 3,45 3,70 4,30 3,92
emprego precário

q66-3 As desigualdades nos estudos escolares 4,02 3,61 4,22 4,17


As desigualdades de acesso aos cuidados
q66-4 2,95 3,08 3,76 3,24
médicos
As desigualdades de exposição aos riscos
q66-5 tecnológicos, industriais ou científicos 4,31 4,55 4,99 5,24
(nuclear, OGM, Saúde, etc.)
q66-6 As desigualdades ligadas à origem étnica 3,29 3,74 4,51 4,2
As desigualdades entre os homens e as
q66-7 3,12 3,45 3,33 3,32
mulheres
As desigualdades entre os jovens e os mais
q66-8 3,80 4,09 3,79 4,07
idosos
q66-9 As desigualdades face à insegurança 3,66 3,62 4,10 3,89
q66-10 As desigualdades de alojamento 3,37 3,22 3,96 3,56
q66-11 As desigualdades de condições de trabalho 3,80 3,40 4,68 4,04

Quadro 4
V de Cramer(1)

PCS Rendimentos Opiniões políticas


  V de Cramer chi2 V de Cramer   V de Cramer  
As desigualdades de rendimento. 0,102 *** 0,105 *** 0,144 ***
As desigualdades de património. 0,083   0,08   0,143 ***

As desigualdades face ao desemprego e


0,091 0,087 0,129 ***
ao emprego precário.
   
As desigualdades nos estudos
0,085 0,074 0,14 ***
escolares.    
As desigualdades de acesso aos
0,079 0,088 0,139 ***
cuidados médicos.    
As desigualdades de exposição aos
riscos tecnológicos, industriais ou 0,073 0,087 0,085  
científicos (nuclear, OGM, Saúde, etc.)    
As desigualdades ligadas à origem
0,089 0,082 0,146 ***
étnica.    
As desigualdades entre os homens e as
0,082 0,074 0,098 *
mulheres.    
As desigualdades entre os jovens e os
0,085 0,083 0,121 ***
mais idosos.    
As desigualdades face à insegurança. 0,09 ** 0,088   0,68  
As desigualdades de alojamento. 0,088*   0,082   0,142 ***
As desigualdades de condições de
0,089 0,082 0,145 ***
trabalho. *  
As desigualdades de rendimento 0,097 ** 0,1 ** 0,125 ***
As desigualdades de património 0,097 ** 0,106 *** 0,109 **
As desigualdades face ao desemprego e
0,081 0,086 0,125 ***
ao emprego precário    
As desigualdades nos estudos escolares 0,079   0,067   0,122 ***
As desigualdades de acesso aos
0,079 0,072 0,098 *
cuidados médicos    
As desigualdades de exposição aos
riscos tecnológicos, industriais ou 0,069 0,061 0,112 **
científicos (nuclear, OGM, Saúde, etc.)    
As desigualdades ligadas à origem
0,077 0,069 0,165 ***
étnica    
As desigualdades entre os homens e as
0,081 0,073 0,135 ***
mulheres    
As desigualdades entre os jovens e os
0,083 0,079 0,093  
mais idosos *  
As desigualdades face à insegurança 0,072   0,068   0,081  
As desigualdades de alojamento 0,088 * 0,068 * 0,122 ***
As desigualdades de condições de
0,07 0,077 0.094  
trabalho.    

(1) ***Significativo no limiar de 1%; **significativo no limiar de 5%

ÍNDICE
ABORDAGEM GERAL

- O caminho do meio ou o princípio da incerteza : diálogos ao centro entre


esquerda-direita

Bruno Gonçalves Bernardes

- O centro, entre respeito e consideração

Laurent de Briey ; Marjorie Legendre

- A internacionalização da divisão esquerda-direita

Jean-Philippe Thérien

- A terceira via do new labour : o fim da dicotomia esquerda-direita ou uma


visão alternativa sobre o ideário político ideológico ?

Ana Maria Belchior ; Luís Filipe Salvador

- Direita e esquerda : integração da acção política

Cristina Montalvão Sarmento

- Repensar a dicotomia direita-esquerda

Eduardo Currito

- Para além do confronto entre a direita e a esquerda : actualidade da pós-


política

António J. Caselas
- Redução ao simulacro : História e idade póstuma da ideologia

Pedro Sargento

RELAÇÃO COM TEMAS ESPECÍFICOS

- Os Direitos Humanos e a díade direita-esquerda

João Henrique Ribeiro Roriz

- O papel do Estado e a divisão esquerda-direita

Elisabete Joaquim

- Globalização : definições, convergências e diversidades

Teresa Ferreira Rodrigues

- A dicotomia esquerda-direita e a atitude face aos imigrantes : novos-


velhos temas fracturantes ?

Isabel Menezes

- A Ecologia segundo a esquerda e a direita

Maria do Céu Pires

- O posicionamento do Feminismo na dicotomia política esquerda-direita

Manuela Tavares
- Intelectuais de esquerda e pensadores de direita, ao longo do século XX :
uma análise comparativa

Dimitris Michalopoulos

- Catolicismo, esquerda e direita

Wellington Teodoro da Silva

- O binómio esquerda-direita nas políticas de segurança e defesa

Susana de Sousa Ferreira ; Teresa Ferreira Rodrigues

- Concepções de justiça e posicionamento político

Caroline Guibet Lafaye

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