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Perfeição Original
____________________________________________
AS CINCO TRANSMISSÕES INICIAIS DE VAIROTSANA
________________________________________
Tradução e Comentário
Keith Dowman
Préfacio de
Bhaka Tulku Pema Rigdzin
Uma edição anterior deste livro foi publicada pela Vajra Publications, Kathmandu,
Nepal, em 2006, sob o título Eye of the Storm.
Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida de qualquer forma ou por qualquer
meio, eletrônico ou mecânico, incluindo fotografia, gravação ou qualquer sistema de
armazenamento e recuperação de informação ou tecnologias agora conhecidas ou
desenvolvidas posteriormente, sem permissão por escrito do editor.
2012049881
ISBN 9780861716807 eBook ISBN 9781614291350
17 16 15 14 13 5 4 3 2 1
Design da capa por Phil Pascuzzo. Design de interiores por Gopa & Ted2, Inc. Conjunto
em Garamond Premier Pro 11/14.
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Dedicado aos os mestres da grande perfeição, conhecidos e desconhecidos, quem
quer que sejam, onde quer que estejam, no entanto, eles aparecem.
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CONTEÚDO
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Apêndices
O Texto Tibetano e os Comentários
A Terminologia da Série da Mente
Bibliografia Selecionada
Sobre o Tradutor
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PREFÁCIO
_______________________________________________________________
Espero que muitas pessoas leiam esses textos e percebam o significado essencial e
atinjam espontaneamente a realização do Dzogchen Ati e juntem-se àqueles que
realizaram esta verdade última, mas permanecem anônimos. Que todos os seres
sencientes se libertem do samsara!
APÓS A PASSAGEM dos anos desde que este trabalho foi publicado em Katmandu, eu
ainda estou satisfeito com a introdução, que fornece uma ampla introdução ao
Dzogchen e particularmente ao Dzogchen radical que é encontrado nas transmissões
originais que Vairotsana transmitiu aos Tibetanos no oitavo século. Eu me encontrei
menos satisfeito, no entanto, com as próprias traduções. Vairotsana traduziu os versos
originais em um estilo poético altamente ambíguo que, ao transmitir uma rajada
poderosa do Dzogchen radical, ficou aquém da precisão didática que daria a um tradutor
as pistas gramaticais para fornecer uma interpretação segura. Assim, senti que, às vezes,
eu poderia ter sido mais preciso em minha tradução de frases poéticas – que aproveitei a
oportunidade desta nova edição para remediar. Mas e os comentários canônicos?
Certamente, eles elucidam um significado discursivo inequívoco? Infelizmente, os Dez
Sutras foram escritos séculos depois, quando o Dzogchen já estava se tornando parte
integrante de um estabelecimento egoísta e os comentários serviam para esse fim.
Retornando ao comentário dos Dez Sutras após esses anos, ele parece ser lido como
uma ferramenta para assimilar o imediatismo do caminho sem caminho do Dzogchen no
caminho graduado espaço-temporal do Vajrayana. Por outro lado, mostra quão radical o
efeito do Dzogchen tem no Vajrayana e como ele pode ser considerado inseparável dele.
A partir disso, podemos inferir, de fato, que qualquer forma cultural (Budista, xamã,
humanista ou pós-modernista) é igualmente iluminada – e liberada – pela luz do
Dzogchen.
Assim, na edição do texto para esta nova edição, eu em primeiro lugar reforcei o
significado usando a terminologia que desenvolvi nesse ínterim. “Gnose” (rig pa) é
agora “presença pura”, por exemplo; “igualdade” é “mesmidade”; (NT: aqui escolhi
manter “igualdade” na maioria das vezes) e “processo” (caminho) às vezes é
“modalidade”. “Campo da realidade”, que foi usado como o equivalente de
dharmadhatu, é agora “a espacialidade que é o campo da realidade” ou uma adaptação
dessas palavras. A transliteração da fonética Tibetana “Bairotsana” foi substituída por
Vairotsana que é mais facilmente reconhecível. O apêndice “Terminologia da Série da
Mente” ilumina essas mudanças. Eu recomendo que o leitor passe algum tempo com
este apêndice antes de entrar no texto para ter uma ideia do modo como muitos termos
Budistas bem conhecidos – como buda, bodichita e tatagatagarba – foram tratados no
presente trabalho. Em segundo lugar, ajustei os versos, fortalecendo seu sentido radical
enquanto intensifiquei a distinção entre eles e o comentário. No processo, corrigi alguns
erros que se insinuaram durante as etapas finais da publicação da edição anterior.
INTRODUÇÃO DO TRADUTOR
_______________________________________________________________
Quanto ao esforço místico, concebe-se que a busca da perfeição natural é tão extensa
como a história humana. Certamente isso está oculto nos mistérios da Babilônia, Egito,
Grécia e Roma, nos tantras Indianos, no Tao Chinês, no Sufismo Islâmico, na Torá
Judaica, nas heresias dos Cristãos Albigenses, Cavaleiros Templários e Alquimistas,
mesmo porque a perfeição natural é inerente ao ser humano e não se pode suprimi-la.
Privada de uma tradição linear, guias e preceitos, a busca da perfeição natural pode
surgir de modo espontâneo como um imperativo do espírito humano, como ocorreu na
Europa e na América nos anos sessenta. Independentemente do contexto cultural e
religioso, do tempo e do lugar, o "caminho sem caminho" da iluminação não-dual é
sempre o mesmo porque a natureza da mente é una, sendo ela a origem do tempo e do
espaço. Acontece, porém, que no século XXI, os modelos e depositários dessa tradição
viva são os Budistas Vajrayana do planalto Tibetano. O misticismo não-dual encontra o
seu fundamento em todo o âmbito do Budismo Tibetano, especialmente na tradição
Mahamudra Kagyu. Porém, é na sua primeira transmissão ao Tibete, na época em que a
tradição dos Antigos (Nyingmapa) ainda estava em sua fase inicial, que encontramos a
declaração mais pura e inequívoca dos princípios e a efusão poética do significado
essencial da Grande Perfeição. Esse é o chamado Dzogchen radical.
Tendo em conta que o mais velho e mais antigo não é necessariamente o melhor, a
qualidade de puro frescor, no entanto, reverbera ao longo dos séculos de uma cultura à
beira da ruptura. Essa qualidade pode ser percebida no Tibete do século oito e em
particular na obra do poeta e místico Vairotsana que naquela época escreveu os cinco
poemas apresentados neste livro. Em seu trabalho há uma sensação da luz do alvorecer
espalhando-se sobre a paisagem para iluminar a escuridão de uma só vez. A palavra do
Dzogchen chegou para iluminar a escuridão do xamanismo espiritualista, para
esclarecer as opções Budistas apresentadas pela Índia, China, Khotan, Brusha e
Oddiyana e exaltar os estilos de vida do povo do planalto Tibetano. O frescor e
vitalidade da obra de Vairotsana, escrita quando a língua Tibetana era tão jovem quanto
a língua inglesa na época em que Shakespeare escrevia, ainda tem o poder de iluminar,
apesar das sombras provocadas pelo apocalipse do materialismo e consumismo.
O poder das cinco obras originais de Vairotsana pode estar na magia da "transmissão" –
pois é assim que esses poemas são designados. Vairotsana não os atribuiu a si mesmo
enquanto poeta, mas os lançou nos moldes das revelações de Garab Dorje, a fonte
humana da tradição Dzogchen, porque é dito que todos os tantras, transmissões e
preceitos do Dzogchen têm a mesma origem atemporal. Os versos de cada uma das
cinco transmissões – consistindo geralmente de um quarteto de duas slokas ou dísticos –
podem se destacar como joias didáticas da expressão do Dzogchen, às vezes com apenas
uma conexão tangencial entre eles, mas são melhor vistos como as facetas de um globo
de cristal, cada uma refletindo um aspecto do todo. O conteúdo das transmissões é
sempre o mesmo – uma visão unitária da natureza da mente. A natureza da mente (onde
"natureza" só pode significar "essência") é a mente luminosa, a mente indivisível e não-
dual da perfeição natural. O produto holístico pode ser personificado como o todo-bom
buda Samantabadra, que é ao mesmo tempo a fonte suprema da transmissão e a própria
transmissão. O leitor, o recipiente da transmissão, é identificado, portanto, com a visão
todo-exelente da transmissão do Dzogchen.
O propósito desses cinco poemas, então, é induzir uma visão da perfeição natural na
mente do leitor. Isso não é feito por lógica ou conexão causal, mas através da magia, da
ambigüidade e da poesia. Como Patrul Rirnpoche escreve: "Não concordamos com o
dogma comum dos tradicionalistas, de que o único conhecimento válido é o
conhecimento mental testado pela razão face a prova textual e lógica. A compreensão
experiencial da percepção direta e nua na própria consciência primordial é a visão”.1
Nesse sentido, cada um dos cinco poemas constitui uma introdução direta – se não a
iniciação – à natureza da mente e a grande perfeição. A experiência das próprias
transmissões é autovalidante e qualquer avaliação racional de sua lógica ou de seus
termos de referência as diminue ou as arruina. O único requisito para alcançar a visão
estabelecida pelo poeta é uma mente bem aberta e, como todos os seres humanos são
dotados dessa mente, a Grande Perfeição está disponível para todos.
N1: Veja Patrul Rimpoche, “Os Três Preceitos Incisivos” (Dowman 2003, 181).
A visão que essas transmissões induzem não é como de uma mandala tântrica de budas,
deidades búdicas ou formas de luz padronizadas. Não há o menor indício de
simbolismo, seja abstrato ou antropomórfico. Não há nada a ser visto que tenha alguma
especificidade cultural. Não existe uma infraestrutura obscura e metafísica articulada à
visão. Nada existe que não seja intrínseco à natureza da consciência comum, à natureza
da luz comum do dia. Na verdade, não existe vestígio de qualquer coisa absolutamente.
Não existe estrutura alguma para a visão – a natureza da transmissão é, em última
análise, desconstrutiva. "Simplicidade" é a única palavra que pode descrevê-la. É uma
visão holística no sentido de que é todo-inclusiva e não-dual. Consiste na percepção
direta e nua da natureza da mente em cada instante da experiência.
A essência da transmissão é a percepção simples e direta. No momento atemporal do
aqui e agora não existe espaço para projeção e filtragem, nem tempo para avaliação,
reflexão e julgamento. É nisto que reside a perfeição natural. É aqui que reside o
segredo da realidade não-dual. Quando se fala em misticismo não-dual, o que é indicado
nada mais é do que a clara luz intrínseca à percepção cotidiana; contudo esta percepção
e esta função da consciência trazem a resolução final à condição humana. Todas as suas
dicotomias e contradições são resolvidas na luz unitária da consciência em si. Se é
possível dizer que a concepção e o ato existem, certamente não há um intervalo entre o
início do ato e a sua realização. O momento unitário é a sua própria recompensa. O
tempo e o espaço são resolvidos na totalidade que a tudo inclui do momento. Os
dilemas da encarnação são solucionados em cada momento. O paradoxo e as
contradições do gênero são resolvidos na unidade do momento. Esta é a transmissão da
Grande Perfeição, que não impõe uma nova estrutura condicionada à mente, mas revela
o que já está primordialmente presente. Isto vem por meio da confirmação, portanto
daquilo que sempre se soube: que a natureza do ser, a natureza da realidade e a natureza
da mente são imanentes como a perfeição consumada.
Nenhum lugar para ir! O aqui e agora é sempre completo no momento presente,
portanto, não há caminho a seguir, nenhuma busca, nenhuma jornada a perseguir e
nenhum destino. É impossível se afastar ou se aproximar da realidade da mente
luminosa, uma vez que ela está sempre aqui e agora. A inevitável, universal e
onipresente modalidade da realidade é sempre imanente. Não há outro destino que não a
dinâmica naturalmente libertadora do momento. Isto é ensinado particularmente na
segunda transmissão da Criatividade Radical.
Algumas pessoas estão convencidas de que seu desejo, raiva e confusão emocional são
um véu espesso sobre sua mente iluminada, mas o reconhecimento da luz e do puro
prazer na exibição maravilhosa da expressão enérgica dissipa tais crenças ilusórias.
Alguns estão convencidos de que a lógica implacável do intelecto e o apego aos seus
prazeres criam a armadilha que bloqueia a espacialidade, mas cada construção
intelectual e cada linha de pensamento constituem uma porta para o vasto espaço de
Vajrasattva. Para superar o que parecem ser obstáculos emocionais e intelectuais, as
pessoas comprometem-se a disciplinas de estilo de vida e moralidade, ioga e meditação,
fixando-se a meta da liberdade do apego e renascimento, mas a ansiedade envolvida em
prostituir o momento para algum benefício futuro e o esforço por um objetivo
conceitual é resolvido naturalmente no relaxamento da não-ação. A doença do esforço
calculado e da orientação a um objetivo que é chamado de materialismo espiritual é
curada pela intuição espontânea e inevitável da natureza pura da mente.
A futilidade de tentar pegar o que já está na gaiola ou procurar por toda parte os oculos
que já estão no fim do nariz inevitavelmente desperta o iogue ou a ioguine obscedados
por um objetivo, e é bom que estejamos preparados para esse desencantamento,
recordando da espacialidade e da radiância que conhecemos a partir da iniciação fortuita
na natureza da mente. Decisivamente, chegamos ao lugar onde os imperativos morais
instigados pela lógica simples e a simetria da crença no encadeamento cármico são
vistos como fornecendo ainda mais da mesma transmigração ansiosa de uma armadilha
neurótica para outra e onde o relaxamento no momento atemporal do aqui e agora – não
fazer nada – permite que a clareza e a vaziez do estado natural do ser brilhe e
transpareça. Quando as compulsões da causalidade cármica e a crença nos imperativos
morais desaparecem e se dissolvem e nos rendemos à dinâmica da natureza búdica da
contemplação espontânea, a consciência prístina prevalece naturalmente, substituindo
qualquer confiança residual no mundo do carma.
O que constitui a exibição de Samantabadra não pode diferir em espécie das formas dos
universos neuróticos que estão sendo neutralizados. O séquito de Samantabadra é
composto de budas e seres sencientes, e o brilho translúcido da luz de arco-íris inunda
as ilusões que uma vez pareciam tão concretas, tangíveis e enfastiantes. As projeções
dos ambientes psicológicos dos fantasmas famintos, por exemplo, podem ainda existir,
mas agora as invenções horripilantes da imaginação que povoam aqueles ambientes são
como as máscaras ferozes, porém vazias da dança dos lamas. Além disso, no reino
humano, muitas pessoas, particularmente Budistas, entraram nos vários caminhos
graduais para a iluminação. Cada um descansa em seu próprio nível que é completo e
perfeito em si mesmo. Todas as atividades dos deuses e dos homens são completas e
perfeitas em si mesmas e, embora possam perseguir atividades orientadas para uma
meta e constantemente criar ou encontrar falhas aparentes no processo universal da
realidade desperta, a capacidade libertadora de Vajrasattva que permeia os cinco
elementos que constituem a encarnação em um aparente ambiente concreto é sempre
imanente.
Finalmente, para distinguir entre os recipientes dessas transmissões, há aqueles que são
vasos prontos com uma afinidade inata para a grande perfeição natural. Este tipo atinge
a visão simplesmente por ler a transmissão ou ouvir os preceitos – portanto é a
"liberação pela audição". Através do reconhecimento do estado natural da mente, tudo
o que surge é liberado e se dissolve imediatamente sem deixar vestígios. A modalidade
existencial do iogue ou ioguine do Dzogchen é então proporcional à impressão de um
pássaro no céu. Toda experiência é como uma dança e como o jogo livre do prazer
sensual. Não há meditação nem meditador. Se surgirem falhas, elas serão transformadas
imediatamente em um momento atemporal de esforço mental e se tornarão uma porta de
volta ao espaço da grande perfeição que, de fato, nunca pode ser abandonado. Ele ou ela
assimila a afirmação e a confirmação da experiência iniciática que o atiyoga fornece na
transmissão e é absorvida sem reflexão na totalidade não-discriminatória de um corpo
anônimo de luz.
Então, há aqueles que percebem a visão como através de um vidro escuro e, rejeitados
pelo pensamento crítico enquanto lêem ou ouvem a transmissão, passam a
conceitualizá-la e analisá-la tornando-se suscetíveis à dúvida. Em um processo
racionalista, a visão é externalizada e distanciada e torna-se uma meta sutil e substancial
a ser alcançada com um senso coincidente de separação e inadequação diante disto. O
samsara é divorciado do nirvana neste processo de pensamento linear através do tempo
e apanhados pelos tentáculos das emoções conflitantes ficamos suscetíveis à expectativa
e apreensão. “Nossas ações são determinadas pelo carma”, dizemos. “Estamos sujeitos à
retribuição cármica. Estamos presos ao ciclo inevitável da transmigração na roda do
tempo.” “Recebemos a transmissão de Samantabadra que nos trouxe um vislumbre da
perfeição por um momento. Mas ficamos com apenas um entendimento intelectual e
isso não afetou nosso modo de ser”. “Vivemos em um mundo de preferências e
parcialidades, apegos e aversões, discriminação e julgamento, esperanças e medos.”
“Nós não estamos prontos”, objetamos com um senso de nossa própria inadequação.
“Somos apenas iniciantes. Precisamos melhorar a nós mesmos, ser bons e virtuosos,
controlar nossos padrões de energia, estabelecer metas e alcançá-las, subir a escada da
pureza espiritual”. Assolados por tal conflito intelectual e emocional, infectados por
esperanças e medos, concluímos que algo deve ser feito, que a ação corretiva é prescrita
a fim de atingir o estado não-dual da visão. Tais leitores podem passar a dedicar suas
vidas a um caminho gradual de esforço, praticando alguma técnica de meditação ou
ioga, deixando de adotar o reconhecimento da perfeição de seu estado natural.
Por outro lado, muitos ouvem a transmissão e pensam nela e sem qualquer experiência
iniciática, eles a rejeitam e se afastam. Para eles nunca pode haver nada além do estado
natural de perfeição, mas eles vivem como mendigos na roda da transmigração
acreditando que o mundo material é concreto e os estados mentais em que se encontram
são reais. Apegados ao prazeroso e aversos ao doloroso, inconscientemente eles
esperam a revelação da natureza da mente. Assim é dito.
No século VIII, na Ásia Central, o local do vigor político e cultural ainda estavam no
Tibete. Os nômades de um Tibet Central unido criaram um império militar que se
estendeu da Pérsia à China, do Nepal à Mongólia. Sua herança xamânica, sob a
influência de culturas sofisticadas que agora faziam parte de seu domínio, estava em
processo de transformação. Essas culturas, em sua maioria, eram Budistas, embora
fossem de vários tons e, juntamente com a cavalaria e os diplomatas, os comerciantes e
artesãos, viajando pelas rotas comerciais do Himalaia e todos com destino a Lhasa,
eram monges chan da China, panditas Vajrayana de Bengala, de Bihar e Khotan, iogues
tântricos da Caxemira e do Vale do Nepal, sadhus Hindus do sul da Índia e xamãs Bon
do antigo reino de Zhangzhung que haviam dominado o planalto Tibetano antes da
ascensão da dinastia do vale Yarlung. Templos Budistas de pedra foram construídos
nesta terra de tendas de cabelos de iaque e, embora a maioria da nobreza tribal
conservadora se opussesem a eles, o rei patrocinou uma academia monástica dirigida
por um abade Bengali que tinha ordenado um pequeno grupo de monges Tibetanos.
A menos de um dia de caminhada até o rio Yarlung Tsangpo a partir do local do novo
mosteiro, em um dos vales laterais férteis ao norte chamado Nyemo, estava a aldeia de
Jekhar. Foi a partir dali que o jovem Vairotsana foi convocado à ordenação Budista pelo
abade Bengali Shantarakshita. Sendo um dos mais brilhantes e fortemente motivados
dos jovens monges, ele foi escolhido para se concentrar no estudo da linguagem. As
questões existenciais eram uma preocupação constante entre um elemento significativo
da corte real, alguns dos quais também haviam recebido a ordenação Budista junto com
Vairotsana, e a discussão com monges visitantes do exterior era fervorosa e muitas
vezes aquecida. Um iogue-exorcista chamado Padma Sambava que tinha sido
convidado a Samye de Katmandu tinha sido bem sucedido em confrontar os xamãs Bon
e os Budistas estavam em ascendência. Este exorcista itinerante, um sadhu tântrico
Budista que perambulava pelos vales do Himalaia durante anos, deixando uma trilha de
dakini-consortes desconsoladas atrás dele, já ganhara notoriedade no Tibete ao seduzir
uma princesa local. Ele era originalmente de um reino no extremo oeste do Himalaia
chamado Oddiyana, a terra das dakinis. Oddiyana tinha se associado a uma disciplina
extraordinária chamada Dzogchen, conhecida pelos Tibetanos de Yarlung através de
seus confrades Bon de Zhangzhung que tinham conexões trans-Himalaias em Brusha e
outros reinos nos vales dos afluentes superiores do Indo. Talvez como uma reação a
uma sobrecarga de disputa doutrinal, talvez baseada em uma inclinação natural para
uma disciplina sem esforço prometendo a realização imediata, talvez devido a uma
palavra secreta transmitida pelo próprio Padma Sambava ou por outro iogue itinerante,
um nexo de opinião formado em Samye expunha que o Dzogchen era a resposta aos
problemas existenciais do povo Tibetano. Posteriormente, sob os auspícios do rei
Trisong Detsen, Vairotsana e um amigo foram escolhidos para viajar para Oddiyana
para trazer de volta ao Tibete a transmissão do Dzogchen.
A rota direta para Oddiyana estendia-se pelo vale de Yarlung Tsangpo, passando o
Monte Kailash para o sul, e depois continuando através do antigo coração de
Zhangzhung e descendo o vale do Indo através de Ladakh para Caxemira e Brusha e daí
para o sul até o que é agora Swat e leste do Afeganistão. A viagem de Vairotsana a
Oddiyana e sua reunião com o mestre Sri Singha, é o material da lenda. Perto do Lago
Dhanakosha, em uma floresta de sândalo, ele encontrou o velho mestre Shri Singha,
originalmente do lado Chinês do deserto Taklamakan, vivendo em um pagode de nove
andares. Ele precisava primeiro passar por uma velha ioguine protetora, uma porteira
que barrou seu caminho, mas com uma mente totalmente ingênua e um estoque de
moedas de ouro ele passou por ela e obteve uma audiência com o mestre. Shri Singha
ouviu o seu apelo para o extraordinário ensinamento do Dzogchen e sabia que estava
destinado que a transmissão deveria passar para o Tibete. No entanto, ele manteve
Vairotsana esperando até a manhã seguinte. Então ele prometeu ao jovem Tibetano que
lhe concederia a transmissão com a condição de ele se juntar aos panditas estudando as
abordagens graduais e causais durante o dia e somente à noite receber o ensinamento do
atiyoga. Devido ao Dzogchen Ati e o ciúme do rei de Oddiyana, sua propagação tinha
sido proibida, então durante as noites de transmissão o mestre escreveu as transmissões
da Série da Mente em seda branca com tinta de leite de cabra que só se tornaria visível
quando exposta ao calor. Então, com um pouco mais de insistência de Vairotsana, Shri
Singha concedeu-lhe os preceitos da Série da Matriz nos modos preto, branco e
variegado. Vairotsana ainda não estava satisfeito, mas Shri Singha não lhe daria mais.2
N2: Vairotsana recebeu pela primeira vez de Shri Singha as dezoito transmissões da Série da Mente,
que incluíam suas próprias cinco primeiras traduções (snga ’gyur lnga) e treze transmissões
traduzidas posteriormente por Vimalamitra, e depois as transmissões da Série da Matriz.
Depois desta exposição longa e intensa de Shri Singha, Vairotsana foi finalmente
preparado para encontrar o adiguru da tradição Dzogchen, a emanação nirmanakaya de
Vajrasattva, o próprio Garab Dorje. Este suposto encontro ocorreu em um terreno de
cremação chamado Dumasthira, o lugar do fogo e da fumaça, e Vairotsana emergiu do
encontro com a transmissão de todos os quatrocentos e sessenta mil versos do Dzogchen
e um corpo de luz.
Ele retornou ao Tibete central por meio de sua facilidade recém-adquirida de andar
rapidamente. Recebido com toda a devida honra, residindo no palácio real, ele começou
um período de tradução intensa, em primeiro lugar das cinco transmissões, que se
tornaram conhecidas como as Cinco Traduções Iniciais. Durante este período, ensinou
ao Rei Trisong Detsen os preceitos que ele estava traduzindo da mesma forma que Shri
Singha lhe ensinara – a abordagem progressiva durante o dia e o Dzogchen Ati à noite.
A proximidade com a corte, no entanto, foi para pôr fim à sua lua de mel no Dzogchen
radical e, ao mesmo tempo, para preservar sua linhagem de Dzogchen no Tibete durante
seu período de maior vulnerabilidade. Uma das consortes do rei tinha sido influenciada
pelo braço longo e invejoso do rei de Oddiyana, e para restringir a atividade de ensino
de Vairotsana o acusou de violá-la e procurou bani-lo. O rei relutou em acreditar em sua
rainha, mas acabou por sucumbir à sua repetida denúncia, ele exilou Vairotsana a Tsawa
Rong, no país de Gyelmo Rong, em Kham, no leste do Tibete. Lá Vairotsana ensinou
Dzogchen a três iogues, entre os quais Yudra Nyingpo era o principal, estabelecendo
uma tradição do Dzogchen separada e duradoura no leste do país.
N3: Esse relato de Vairotsana é derivado de várias fontes, às vezes conflitantes. Uma variação
significativa é o local do encontro de Vairotsana com Shri Singha, que é dado como Vajrasana
(Bodh Gaya) em algumas fontes, mais particularmente na Bairo ’dra ’bag, a hagiografia canônica de
Vairotsana (veja Yudra Nyingpo 2004, The Great Image: The Life Story of Vairochana). Mas
“Vajrasana” pode ser entendida figurativamente como o assento de toda iluminação. Veja também
Norbu e Clemente 1999, 46-56.
No texto aqui contido as linhas que introduzem cada uma das transmissões são uma
síntese do material tirado de A Fonte Suprema e dos Dez Sutras. Os versos raiz são
traduções das melhores leituras que pudemos extrair das várias fontes. O comentário
sobre os versos é uma tradução parafrástica do comentário dos Dez Sutras com notas
explicativas interpoladas. O Estandarte da Vitória Eterna: O Vasto Espaço de
Vajrasattva, de longe a mais longa das transmissões, é dividido em vinte e sete partes,
ou "momentos atemporais", encontrados na edição de A Coleção dos Tantras de
Vairotsana. Os títulos dos comentários aos versos do Estandarte da Vitória são tirados
dos Dez Sutras. A última linha do comentário é uma soma do significado de todo o
verso. A anotação ao texto indica apenas algumas das discrepâncias entre as várias
fontes.
Agradecimentos
Com profunda gratidão e respeito, agradeço a todos os mestres da tradição Tibetana pela
sua transmissão, em particular Dudjom Rimpoche e Kanjur Rimpoche, ambos filhos do
coração do grande descobridor de tesoros Trinle Jampa Jungne; também ao meu amigo
e mentor Bhakha Tulku Pema Rigdzin, um iogue Dzogchen, por toda a sua bondade; a
Chogyal Namkhai Norbu, o terton-rei de nossa época, por seu entendimento espaçoso; a
Adriano Clemente pelo seu trabalho preliminar sobre os textos; e a Terese Coe e Sondra
Hausner por sua impecável, profissional e sensível edição.
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NA ANTIGA tradição xamânica do Tibete, o cuco era um pássaro mágico, o rei dos
pássaros. Como a primeira chamada do cuco é o prenúncio da primavera, as seis linhas
da Canção do Cuco da Presença Pura introduzem a realidade do Dzogchen. Nesta
transmissão seminal, Samantabadra define a si próprio como a não-ação
espontaneamente completa e perfeita. Ele incorpora o preceito da atividade alegre e
não-discriminatória. Este é o texto raiz da Série da Mente do Dzogchen.4
Se as seis linhas são divididas em três pares de versos que descrevem a visão, a
meditação e a ação do Dzogchen respectivamente, as duas primeiras linhas expressam a
visão de que a mente luminosa é uma singularidade inefável e não pode ser analisada; as
segundas duas linhas indicam a não-meditação como o estado natural da exibição de
Samantabadra; e o terceiro dístico mostra a ação como a ação não-direcionada – não-
ação – da consciência espontânea.
N4: As seis linhas da Canção do Cuco (Rig pa'i khu byug) são chamadas Os Seis Versos Vajra (Rdo
rje tshig drug) na Fonte Suprema, onde eles definem a natureza do próprio Samantabhadra como a
não-ação espontaneamente completa e perfeita. O comentário dos Dez Sutras tomam os versos como
uma transmissão do preceito do gozo indiscriminado.
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CRIATIVIDADE RADICAL
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N5: A Fonte Suprema (Kun byed rgyal po) introduz a Criatividade Radical (Rtsal chen sprugs pa)
assim: “Esta grande transmissão é o inspirado preceito de Samantabadra e revela o campo imaculado
da forma livre (a espacialidade básica) como o campo de sua criatividade radical, que é a não-ação”.
1
Tudo e todos emanam de mim,
assim tudo e todos, o que quer que apareça,
é revelado como a transmissão,
a revelação da espacialidade básica atemporalmente pura.
2
Todo exterior e interior é o campo atemporal da
realidade espaçosa
e em um campo de jogo tão imaculado,
buda e seres sencientes não são distintos –
então, por que tentar mudar alguma coisa?
A mente luminosa e a realidade são uma só na espacialidade básica e é completamente
impossível fazer qualquer distinção. Dizemos que todos os fenômenos, quaisquer que
sejam, compostos de terra, água, fogo, ar e espaço, são externos, e que a mente
luminosa e a natureza da realidade são internas. Mas este é um pensamento especulativo
ocioso, imputando um mero significado nominal onde não há base real para isso. O
campo da realidade é uma unidade que a tudo inclui. Nessa esfera atemporal de
atividade não há distinção entre buda e seres sencientes. É impossível melhorar o
momento atemporal – já é perfeito e completo, o todo-bom Samantabadra. Não pode ser
alterado ou transformado porque é o imutável Vajrasattva.
3
Não há ambição na criatividade sem esforço plenamente
potencializada
e essa perfeição espontânea de forma livre é sempre a mesma;
no campo puro da realidade, onde a concepção e o ato são um,
por mais equivocados que sejamos, como podemos nós inocentes
fazer algum mal?
4
A união do puro prazer do comportamento senciente,
concebido pelo iludido como um caminho perverso,
é idêntico à modalidade pura de Samantabadra:
quem entende tal igualdade é buda, senhor de todos.
A união do puro prazer, sensorial ou sexual, seja como parte integrante da conduta
humana ou como um caminho tântrico, é insultada como imoral ou perversa pelo
ignorante. Mas o curso do comportamento humano, desde o início, é inseparável da
transmissão de Samantabadra como revelado acima – o jogo de forma livre. Estes dois
caminhos são realmente um só. Buda, o senhor do passado, presente e futuro é aquele
que percebe esses modos aparentemente incompatíveis como idênticos.
6
A instrução de mestres semelhantes a macacos que carecem
do insight direto
é repleta de conceitos falsos de preparação e técnica;
assim o mestre que limpa a mancha do ouro puro,
o professor autêntico, o recurso mais precioso,
ele vale o resgate não importa o preço.
Como um macaco que imita sem entender é o mesmo que o professor que dá preceito e
transmissão sem a base válida de entendimento que é o insight direto da natureza da
mente. Tal ensinamento induz na mente do discípulo uma noção conceitual do caminho,
um ponto de partida específico e um objetivo envolvendo preparação, apoio e técnica. O
mestre que vê a natureza da mente erradicou qualquer implicação de um caminho
condicionado. Isso é comparado à remoção de qualquer fina camada de mancha do ouro
puro através da aplicação de alúmen preto – uma prática tradicional. Nenhum
refinamento, como separar a escória do ouro puro, é necessário. A transmissão do
professor deste caminho sem caminho vale a pena para seus alunos, qualquer preço deve
ser pago. Nos primeiros tempos, o aluno demonstrava seu compromisso oferecendo
ouro ao mestre.
________________________________ _________________________________
O GARUDA é um pássaro mítico gigante semelhante a uma águia. Nas montanhas ele
plana alto no céu, com suas asas largas estendidas, cavalga as correntes de ar,
ocasionalmente batendo as asas em harmonia. Ele parece não colocar nenhum esforço
em seu voo. Ele está totalmente sozinho lá. Ele parece estar voando puramente para a
sua alegria. Ele tem maestria.
Dentro desta firme descrição do grande garuda em voo – o iogue do Dzogchen em uma
modalidade não-dual – aparecem referências a falhas e véus e também alusões às chaves
para as portas pelas quais o miasma existencial pode ser abandonado.6
N6: O Grande Garuda em Voo (Khyung chen lding ba) não deve ser confundido com o trabalho de
Shri Singha ou qualquer um dos vários outros com títulos semelhantes. O comentário dos Dez Sutras
distingue entre uma primeira parte (versículo 1-16) que constitui uma instrução específica,
principalmente sobre a não-meditação, e uma segunda parte (versículos 17-26) que trata vários
aspectos da carreira do iogue.
O ser puro, o darmakaya, concebido como um objeto na meditação artificial, não tem
conteúdo, nenhuma qualidade específica e nenhuma realidade e, portanto, é a
onipresente consciência autossurgida. Pense no ser puro – um espaço de igualdade
ilimitado e sem pensamento – e a mente é preenchida pela realidade não-dual da
consciência prístina espontânea. A mente luminosa é ao mesmo tempo a única causa e
efeito e, por essa razão, quando as formas de pensamento relativistas surgem no ser
puro, elas emergem espontaneamente da consciência prístina como um campo de forma
livre.
Assim, o campo natural da realidade não pode ser melhorado e não há nada a ser feito
para alcançá-lo. Na verdade, não há nenhum objeto para abordar neste campo, então
como pode ser feito algo a ele? Qualquer técnica meditativa orientada para uma meta
empregada para descobri-lo é uma tentativa contraproducente e vã que procura
transformá-lo em um objeto; mas a natureza do próprio método causal não pode deixar
de encontrar a realidade da essência pura da mente.
2
Buscando a essência em fenômenos interdependentes,
desfrute-a apenas em seu aspecto não-conceitual:
pois a essência manifesta é apenas o ser puro.
O campo da experiência é aperfeiçoado tal como se apresenta e nada precisa ser feito
para realizá-lo como o ser puro. De qualquer maneira que a essência pura da mente
apareça, a própria aparência encontra sua própria realidade intrínseca. Seu aparência
aparente é reconhecida como inconcebível e, portanto, sua manifestação é livre da
estruturação mental e somente como tal, livre de construções, pode ser desfrutada.
"Fenômenos interdependentes" devem ser entendidos como o mundo relativo que surge
pela dependência mútua das doze causas e condições (ignorância, tendências habituais,
consciência, nome e forma, os seis campos sensoriais, contato, sensação, desejo,
existência, nascimento, velhice e morte). Mas o que parece ser fenômenos
interdependentes é o campo de forma livre da essência pura da mente. “A espacialidade
básica que é o campo da realidade, imutavelmente vazia, é conhecida através dos
reflexos na natureza da mente.”7 A análise do samsara como uma cadeia causal de doze
elos pode ser empregada na técnica de meditação, através da qual a vaziez de cada
ligação é estabelecida e a fonte do samsara revelada. Mas, na visão aqui revelada, os
doze conceitos em si mesmos – nada além do ser puro – são os meios para sua própria
consumação imediata (ver também os versículos 24 e 25).
Relaxando em cada conceito com uma mente vazia, a consciência prístina do ser puro,
que é a essência pura da mente individualizada, está espontaneamente presente. Assim,
a maravilhosa exibição de Samantabadra é apreciada como sua natureza inconcebível e
não-estruturada. Uma vez que a essência pura da mente é intrínseca a tudo, nada além
do ser puro pode surgir dela e não há mais nada a ser alcançado. Dito de outra forma, a
expressão natural do ser puro é seu próprio antídoto e é reflexivamente liberado em si
mesmo.
N7: Sems nyid rang snang gi rnam pa las / stong pa ’gyur ba med pa’i dbyings shes bar byas. (Gnas
lugs mdzod ’grel ba, p. 84, fol. 35. Em Dowman 2009, canto 71: “Qualquer aspecto das imagens
gestálticas da natureza da mente deve ser conhecido como a espacialidade que é a imutável vaziez”.
3
Esta partícula todo-inclusiva, indivisível e
não-padronizada,8
é a realidade não-específica da consciência prístina;
nessa essência vivida, não-pensada e todo-aberta,
no caminho da pureza reside a igualdade soberana.
Essa partícula indivisível que nunca pode ser particularizado ou localizado é a essência
da mente luminosa evocada no verso anterior. Dentro dele a consciência pristina, sendo
não-composta, surge por e de si mesma. A singularidade dessa realidade é o significado
não-específico do coração que é a exaltação da consciência prístina. A consciência
prístina surge espontaneamente em e como o significado unitário das coisas. Essa
consciência primordial do ser puro permeia todos os fenômenos aparentemente
concretos em uma cognição unitária. É uma percepção vívida e direta, não-pensada e
desestruturada, uma extensão todo-aberta e ilimitada. Na modalidade da pureza total
que está imersa nessa não-dualidade perceptiva reside à consciência sem esforço da
mesmidade, a igualdade natural de todas as coisas, e esta é a natureza da essência pura
da mente.
N8: Essa "partícula" ou "núcleo" (rdul phran gcig) é ao mesmo tempo uma partícula subatômica que
não pode ser dividida e a única semente seminal da totalidade (thig le nyag cig). Existem leituras
variantes para gses shing.
4
No imutável e inalterável, não há nada a desejar,
nenhum objeto de percepção, nenhuma mente
percebedora;
a impulsão para a auto-percepção direta implica
fixação em uma causa,
mas nenhuma igualdade última pode surgir no êxtase
da paixão pela meditação.
Essa cognição prístina que surge naturalmente impede o apego porque não tem nenhum
objeto dentro dela para se apegar ou agarrar. Na ausência de qualquer objeto de apego
não há mente para se agarrar e nenhuma mente para se apegar e assim a mente é
ilimitada. Só existe o aqui e agora. Os fatores subjetivos e objetivos são resolvidos na
cognição unitária. A natureza imutável daquela consciência é como uma ausência
atemporal e primordial de um objeto a ser agarrado e de uma mente agarradora. Se, no
entanto, ainda estamos impressionamos com o imperativo de buscar e encontrar a
natureza da mente – esse absoluto atemporal e primordial – em um caminho de presença
pura, vivida e direta, então isso implica a fixação em um caminho causal de meditação.
Empregando tal técnica, muito provavelmente nos tornaremos intoxicados e obcecados
pelo prazer que surge no modo projetivo da absorção meditativa. Nesse apego por
prazer a possibilidade de alcançar a famosa igualdade soberana é negada.
5
Na dimensão búdica unitária e todo-abrangente,
nada pode ser acrescentado,
e uma vez que a espacialidade básica é ilimitada,
não pode ser diminuída;
na exibição da realidade não há lugar de humor
elevado especial,
pois o prazer reside igualmente por toda parte no vasto
campo autossurgido.
Nesta perspectiva não-dual, “a única dimensão búdica” é o ser puro que a tudo inclui
(darmakaya), que engloba as dimensões de clareza (sambogakaya) e compaixão
(nirmanakaya). Desde o início é completo e perfeito em si mesmo e nada pode aumentá-
lo ou melhorá-lo. Da mesma forma, como a realidade da consciência autossurgida não
pode ser alcançada pelo movimento em qualquer direção, sua espacialidade que é o
campo da realidade é o ilimitado aqui e agora e não pode, portanto, ser delimitado.
Assim, na experiência da mente luminosa não-dual não há variação no humor, apenas o
sabor único do puro prazer , pois a realidade é o jogo do prazer e o campo da realidade é
o playground do prazer.
6
Não há uma visão maravilhosa para ser vista aqui
com um olho de insight,
e nada específico para ser ouvido uma vez que nada
pode ser explicado;
aqui o sagrado e o profano estão sempre inextricavelmente
misturados,
e um objetivo final, um lugar superior, não pode ser
articulado.
N9: “Sagrado e profano” cria “Dharma e não-Dharma” (chos dang chos min).
7
O caminho da mente luminosa não pode ser
concebido como verdadeiro ou falso
porque a própria consciência autossurgida não
pode ser definida;
na presença vivida e direta da identidade
inclusiva e atemporal
o pensamento surge, porém como uma sombra.
Toda expressão verbal na mente ou na fala é transcendida por sua natureza como a
consciência prístina que ocorre de forma una com a fórmula verbal. Assim, os glifos
alfabéticos do pensamento e da fala – quer expressem significados discursivos positivos
ou negativos – são a fala búdica, e é inútil discutir consigo mesmo a validade de
qualquer dada experiência com vista em qualquer conclusão imaginada. O apego a
qualquer premissa, hipótese ou fórmula particular sobre qualquer outra é, portanto,
impedido e o argumento ou discussão torna-se uma questão morta. Toda experiência é
consumada em si mesma.
A essência não existe como qualquer coisa, mas emerge como uma ausência de
qualquer outra coisa. Do mesmo modo, a vaziez não é uma nulidade porque está
presente como um campo vazio. A “inexistência” e a “vaziez” da essência pura da
mente são ferramentas conceituais que negam a sua substancialidade e criam um espaço
inefável em que ocorre a não-ação e a criatividade espontânea. A “ausência” ou
“inexistência” descreve a fonte – a essência pura da mente – de um campo ou objeto
não-objetivável. A “vaziez” indica apenas a ausência de algo concreto ou específico
nesse campo e, além disso, implica a infusão de tal realidade indeterminada por uma
plenitude vital. O espaço é seu melhor análogo e, de fato, por evocar a experiência da
natureza do espaço, livre de qualquer desejo ou intenção, o puro prazer da mente
luminosa emerge em um campo de forma livre, permeado pela consciência prístina.
9
Os antigos ascetas, focando-se em uma vontade
apaixonado,
tornaram-se completamente perdidos no tormento do
esforço extenuante;
a onisciência que é a imersão no processo natural,
se for articulada, gera meditação conceitual.
N:10: "Sábios" (drang srong) pode se referir aos rishis indianos ou aos monges do Bon.
10
Anciar pelo puro prazer é uma doença do
apego;
se não for curada pela panaceia da igualdade
imperturbável,
mesmo as bases causais dos estados superiores
são infectadas pela paixão.
O desejo pela felicidade ou prazer através da meditação é um apego tão estranho como
o desejo por prazeres sensuais ou objetos materiais. A fome pelo puro prazer é uma
doença cardíaca crônica. A panaceia universal para o desejo e o apego é o nosso senso
imperturbável e inato da igualdade de toda experiência. Sem esse reconhecimento
natural, o desejo anula até mesmo o mérito acumulado com o propósito de atingir um
estado superior de ser. Sem isso, virtudes sociais como generosidade, paciência e
moralidade são infectadas e distorcidas. Assim, o desejo que alimenta a ambição de
atingir um objetivo espiritual é autodestrutivo.
11
Aqueles enredados em um processo negativo por
esta doença virulenta,
ansiosos pelo progresso, são como animais perseguindo
uma miragem –
seu destino não existe em lugar nenhum;
até mesmo as bases causais dos dez estágios
obscurecem a mente mais pura.
O anseio dirigido pelo objetivo implica um processo negativo que é como perseguir um
fantasma – o objetivo é uma invenção da imaginação e não pode ser alcançado, não
importa quão longa seja a viagem. O nirvana nunca pode ser alcançado pelo esforço. O
princípio aplica-se igualmente àqueles que buscam uma meta mundana quanto àqueles
que se esforçam para percorrer os dez estágios do caminho do bodisatva – os estágios e
os níveis não podem ser percorridos enquanto estiverem separados do ponto de partida
no aqui e agora onde a consciência prístina é uma fonte imediata de realização. Mesmo
quando o objetivo é um dos dez estágios de purificação no caminho do bodisatva ou do
próprio estado búdico, a ambição de alcançá-lo é uma falha no processo natural.11
N11: Veja Norbu e Clemente 1999, 280n205, para o comentário de Longchenpa sobre esses
primeiros onze versos.
12
13
Esta consciência prístina, a joia preciosa que realiza desejos, quando examinada sob o
microscópio parece inexistente. Mas ao relaxar naturalmente nela, ela emana
espontaneamente uma multiplicidade de qualidades positivas; é a matriz invisível de
onde emana a resolução de todas as nossas necessidades, e aqui o grande caminho é
revelado a todos. Na consciência prístina, onde a dualidade de sujeito e objeto, eu e
outro, é resolvida, há o mestre, o buda-guru e o professor. Essa é a terra do leite e do
mel, onde tudo é cumprido, um campo de realizações instantâneas. O mestre é um
bodisatva em sua terra pura que é uma emanação da compaixão altruísta. Este é o corpo
da emanação (tulku) que nunca deixa sua fonte da mente luminosa e nunca se torna um
objeto concreto – esta é a joia que realiza todos os desejos.
14
Sendo imóvel no interior, não é nada que possa ser
encontrado dentro
e virando-se para fora, ela não pode ser imaginada
ou isolada;
nem se afastando nem se intrometendo, essa compaixão
altruísta é inalienável – permanece aqui atemporalmente.
Esta joia preciosa da compaixão altruísta é idêntica à mente luminosa e, é dito que a
mente desperta existe no interior, porém não pode ser descoberta dentro ou mesmo em
qualquer lugar. Certamente ela não pode ser encontrada do lado de fora porque o que
aparece lá fora é uma projeção em uma tela vazia e não tem nenhuma realidade
substancial qualquer. Portanto, essa compaixão altruísta não pode ser nem irradiada nem
absorvida, nem aplicada ao outro nem absorvida de fora, pois não pode sair de sua
própria esfera, que é todo-abrangente. De modo algum pode ser intencional ou
conscientemente aplicada a um campo externo humano ou material, ou se reduzir a uma
piedade sentimental. Não pode ser focada em um alvo específico de simpatia. É uma
constante primordial e universal.
15
16
Onde não há buda não há buda para nomear
e rotular o buda revelado é um erro:
tentar pegar o buda 'lá fora' é um caminho falso
pois todas as coisas são sem forma, sem um pingo
de substância.
17
Consumado, além do desejo, sereno,
insubstancial, e totalmente anterior,
a natureza da ambrosia milagrosa
não depende de nenhuma técnica.
18
Esta realidade sublime, livre, aberta e que a tudo inclui,
oferece recursos para os pequenos;
mas quando os conceitos se dissolvem na vastidão
não há distinção entre grande e pequeno.
20
Nesta abordagem soberana e universal,
liberada e acolhedora, nossa natureza
não aspira a nada, não se apropria de nada,
e não induz a menor presunção.
21
Tal como acontece com o sublime garuda em voo,
sem complicação nem simplificação,
não tendo nada a perder e nada a ganhar.
O garuda, o rei mitológico dos pássaros, emerge de seu ovo completamente maduro e ao
nascer ele pode deslizar pelo universo com um único movimento de suas asas.
Completamente autossuficiente, destemido, sem qualquer ansiedade, ele não precisa de
saída ou entrada, não irradia e nem absorve nada, sem difusão ou concentração; voando
alto e livre, ele é completamente feliz em si mesmo sem expectativa ou trepidação,
esperança ou medo.
22
Esse espaço último que é como o oceano,
dá origem à multiplicidade das coisas;
o potencial criativo, de igual extensão
com o espaço,
é imprevisível nas formas que toma.
23
Na essência pura da mente,
o supremo samadi soberano surge
espontaneamente;
e a visão é como um vasto oceano,
não-estruturada, tão extensa quanto o espaço.
24
Neste campo de forma livre de Samantabadra
nada nasce e nada se transforma;
a cadeia causal dos doze elos
o denigre e o degrada.
26
Uma vez que as buscas sensuais são estimuladas
pela compaixão,
o prazer da mente luminosa é adotado em todas
elas;
açougueiros, prostitutas, quebradores de tabu,
pecadores terríveis e os excluídos,12
todos só podem conhecer o puro prazer
através da perfeição inclusiva, o elixir não-dual.
Quando não há lacuna entre a visão e a ação na roda da vida, quando a visão e a ação
são congruentes e simultâneas, qualquer que seja a forma que o continuum sensorial
tome, independentemente do opróbrio ou tabu social, só pode haver puro prazer. Na
percepção não-dual, a forma aparente é sempre uma mera ilusão tênue da mente
luminosa. Toda a atividade é permeada pela compaixão pelos outros. Isso inclui a
atividade de açougueiros e todo o deleite erótico – tudo é a ação da mente luminosa e o
puro prazer é o seu tom de sentimento inevitável. Mesmo a quebra dos tabus sociais é
permeada pela compaixão, independentemente de se tratar de uma única ação ou estilo
de vida. Os cinco tabus, ou crimes imperdoáveis da tradição budista são, matar a mãe,
matar um arhat, matar o pai, criar uma cisma na comunidade e derramar o sangue de um
tatagata com malícia – é dito que estas ações resultam no renascimento imediato no
inferno sem um momento para absolvição. O elixir da não-dualidade absolve –
absolutamente – toda a culpa, e na igualdade última só pode haver o puro prazer.13
N12: Essa linha ambígua também pode ser lida como “todos estão livres da moralidade
convencional” ou “todos abandonaram o pecado mundano” (kha na ma tho ’jig rten spong). Veja
também Dowman 2009, canto 122ii, p. 247
N13: Veja também Minério de Ouro Puro, verso 8, abaixo. As sete linhas seguintes foram
removidas do corpo da tradução porque parecem ser uma interpolação irrelevante quebrando o fluxo
do significado (os Dez Sutras não têm comentários sobre essas linhas). Talvez eles tenham sido
acrescentados devido à forte força de seu argumento, instigando a não-ação, que é o tópico dessa
transmissão em particular. “Porque toda a experiência está no presente, / a natureza da experiência é
o aqui e agora; / assim a mente fenomenal em busca de si mesma, / o espaço buscando a natureza do
espaço / como se a realidade fosse algo estranho, / é como tentar extinguir o fogo com fogo, e essa é
uma tarefa muito difícil.” O intelecto não pode ver ou isolar sua própria natureza, e no esforço e na
luta para objetivar a si mesmo, cria um fluxo de pensamento analítico e discursivo, juntamente com
ideias equivocadas sobre como alcançar a consumação que apenas torna a água mais turva. Por outro
lado, tentar parar de pensar apenas cria mais pensamentos e é como adicionar fogo ao fogo.
27
Essa essência pura, desestruturada e não-pensada
da mente
não pode ser ocultada no continuum da mente:
para os iogues de mente luminosa e indiscriminada
a mente luminosa está presente em todas as situações.
Nossa identidade real, sendo todo-inclusiva, perfeita e completa, nossa identidade como
a mente luminosa é inseparável do puro prazer. É conhecida como “a essência
inconcebível”. Não é algo discreto escondido em algum lugar na continuidade do ser ou
na personalidade. Está lá para todo mundo ver em cada situação que surge. Quando
agimos sem discriminação, nem rejeitando nem adotando o que quer que surja, ela está
implícita no senso de realização total. Não há nada faltando e nada supérfluo, ela reside
na ausência de motivação. É a equanimidade que existe na experiência da coisa-em-si, a
essência da experiência não-estruturada. Ela existe como a natureza da mente na
continuidade do pensamento.
________________________________ _________________________________
Assim como o minério é impregnado pelo ouro puro, toda experiência é permeada pela
mente luminosa. O minério, na verdade, é tão bom quanto o ouro. A experiência de
todas as coisas compostas pelos cinco elementos é, portanto, o professor a mente-pura-
luminosa. Aqui Samantabadra transmite o significado do coração desse axioma. A não-
ação natural é o tema e a não-meditação é o modo. Manjushri, o Príncipe Virgem e
Gentil, é evocado como o modelo desta transmissão inequívoca. O iogue repousa
naturalmente no prazer espontâneo da perfeição sem esforço!14
N14: O título Minério de Ouro Puro (Rdo la gser zhun) fornece uma metáfora para a pureza
intrínseca de todas as nossas experiências. Impregnado pelo ouro, o minério não é menos precioso
do que o ouro purificado em si. O jovem gentil, ou o príncipe virgem e gentil, que personifica a
mente luminosa que impregna toda a experiência, é Manjushri Kumara (Jam dpal gzhon nu),
conhecido mais convencionalmente como o bodisatva da inteligência e o protetor da mente.
Identificado com a pura essência da mente, a fonte de tudo e de todos, ele é onisciente.
Na essência pura da mente existe um samadi que transcende todo o campo das ideias e
está além da expressão. Descansando no samadi que está além da mentalidade, buda é a
percepção da essência pura da mente como a luz que é o professor, a Lâmpada Búdica e
o seu louvor. É o núcleo de tudo, de todos os fenômenos e de toda revelação, onde tudo
é conhecido. Esta onisciência é personificada como a juventude gentil, brilhando em
glória. Ele não tem objetivo a atingir e nada para se esforçar, assim nele a não-ação é
facilmente aperfeiçoada e sem qualquer esforço ele repousa na matriz do puro prazer.
A modalidade universal da liberação inerente à mente luminosa não pode ser concebida
e transcende o pensamento e a ausência de pensamento. Não tem ponto de referência em
nenhum nome ou forma concreta; não pode ser isolada ou localizada de qualquer forma.
É totalmente indeterminável e, portanto, não pode ser enquadrada em qualquer ideia e
não pode ser expressa verbalmente. Desta forma, é sutil e elusiva.
Seja Budista, Hindu ou Bon, o caminho clássico da meditação é uma armadilha e uma
ilusão quando o apego a ela se torna obsessivo e se torna um fim em si mesmo. O hábito
da meditação se torna uma doença quando não há função libertadora no processo. É
uma doença quando um estado de transe bem-aventurado aparentemente separa um
iogue arrogante de sua mente. Mas acima de tudo, é uma doença simplesmente porque é
orientada para um objetivo e promete a realização somente se o presente for prostituído
para o futuro. Esse estado de alienação é causado por confundir construtos mentais pelo
caminho, confundir a sombra do significado expresso em palavras pela coisa em si, seu
significado do coração. Os significados das palavras são considerados como conceitos
sagrados. A letra da instrução é levada a peito mais do que ao espírito. Tomar
literalmente a palavra do professor é, por exemplo, interpretar a realidade como algo
concreto a ser atingido, esforçando-se na técnica e no método, e não como uma porta
para a realidade do momento. As palavras e conceitos são um meio para sua própria
transcendência no aqui e agora. O fascínio pela estrutura é um desvio; a doutrina
professada como "verdadeira" e "correta" dá a Vajrasattva uma máscara do ridículo.
Na essência pura da mente, na condição natural, não há distinção entre a mente e suas
propensões. Portanto, não há chance de modificar ou mudar hábitos. O que quer que
apareça nas janelas da mente – as cinco janelas sensoriais – é determinado pelo hábito
mental e construído pela mente condicionada. Mas os próprios sentidos não fazem
distinção entre as formas que aparecem nessas janelas. Eles não fazem julgamento de
qualidade ou adequação. Não há atribuição de bom ou mau. Eles não suprimem ou
rejeitam algumas formas enquanto deixam outras entrarem. Os sentidos indiscriminados
permitem que cada sensação surja como decoração estética para ser desfrutada em e
como ela mesma, independentemente de sua forma. Não há absolutamente nada a ser
feito com ela. Qualquer intenção de alterá-la ou modificá-la impede o puro prazer.
Conhecemos a história pelas formas que a tradição nos transmite através da linguagem
corporal, sinais e símbolos, pela transmissão oral ou poética e através da literatura.
Também a conhecemos pela intuição primordial de Samantabadra e Vajrasattva.
Quando esse legado da tradição é assimilado à mente racional, testado e comprovado,
quando a “história” é transformada em um padrão linear e lógico pelo tempo e pelo
esforço intelectual, o iogue se torna condicionado às formas e significados da tradição e
perde a espontaneidade. Se a história da filosofia, do mesmo modo, discernida nas
camadas de véus que encobrem o ser puro momentâneo, se torna uma função da mente
lógica linear, condicionada pela abordagem acadêmica, é delusória. Se, entretanto, ele
pratica os três samadis do mahayoga de "corpo", "fala" e "mente" com absorção
meditativa, ele cultiva os três modos ou dimensões do ser (trikaya) em um caminho com
um objetivo em mente. (Os três samadis do mahayoga do aqui e agora, o samadi que a
tudo ilumina e o samadi da sílaba semente, referem-se respectivamente às três
dimensões da essência, natureza e compaixão.) Através da projeção e aplicação dos
princípios de gênero de meios e insight, ele está perdido em um caminho orientado para
uma meta. Seguindo os princípios estabelecidos de dogma e doutrina, ele pode se
envolver em filosofia comparativa e até mesmo em metafísica especulativa, ele pode até
ensiná-la, mas está perdido em esforço dirigido a um objetivo. Esse método de
estudiosos tradicionalistas e intelectuais convencionais cobre efetivamente a efusão
momentânea da transmissão espontânea de Samantabadra. A imperativa não-ação de
forma livre é perdida na camisa-de-força da tradição e disciplina orientada para um
objetivo.
N15: O texto tem lo rgyus don gnyis, que pode ser usado para indicar seu significado absoluto (rang
don) e específico (spyi don). Os Dez Sutras tratam a história (lo rgyus) sob três títulos: a bênção
(byin brlabs), a “própria essência” (rang gi ngo bo) e a escritura (tshig sdebs).
N16: Os três samadis do mahayoga são tomados como o samadi do aqui-e-agora (de bzhin nyid kyi
ting nge ’dzin), o samadi todo-iluminador (kun tu snang gi ting nge ’dzin), e o samadi da sílaba-
semente (rgyu’i ting nge ’dzin) e referem-se respectivamente às três dimensões da essência, natureza
e compaixão.
N17: Estas doze linhas anexadas ao Minério de Ouro Puro parecem ser uma inserção posterior. Os
Dez Sutras acrescentam este verso conclusivo: “Os seis núcleos todo-transcendentes, / imunes a
qualquer inflar ou desinflar, / por sua natureza não-nascida e incessante, revelam o significado da
não-meditação.” Os seis núcleos são o núcleo da realidade (chos nyid kyi thig le), o núcleo da
espacialidade básica (dbyings kyi thig le), o núcleo da espacialidade totalmente pura (dbyings rnam
par dag pa’i thig le), o núcleo da consciência prístina (ye shes chen pa’i thig le) ), o núcleo de
Samantabhadra (kun tu bzang pa’i thig le) e o núcleo da espontaneidade (lhun gyi grub pa’i thig le).
Pode ser relevante notar que algumas fontes incluem os Seis Núcleos Seminais (Thig le drug pa)
entre as Cinco Traduções Iniciais.
________________________________ _________________________________
N18: Também conhecido como O Vasto Espaço de Vajrasattva (Rdo rje sems dpa’ nam mkha’ che),
O Estandarte da Vitoria Eterna ou A Bandeira da Vitoria Sempre-Desfraldada (Mi nub rgyal
mtshan) é introduzida nos Tantras Coletados de Vairotsana como a raiz de toda instrução e
transmissão essencial. Na Fonte Suprema, Samantabhadra introduz a transmissão da seguinte forma:
“Ouça, Sempa Dorje, / Eu mostrarei a você, Sempa Dorje, / sua própria natureza. Eu, a fonte
suprema, sou sua natureza / e sou uma mente luminosa atemporal / e a mente luminosa é assim.”
1
O vasto espaço de Vajrasattva
a extensão do todo-bom do campo da realidade,
esta é a modalidade pura e todo-libertadora,
incriada, incessante e não-pensada.
N19: O terceiro sutra dos Dez Sutras aborda as três primeiras partes da excelência quíntupla do
professor, o ensinamento, seu séquito, o lugar e o tempo. A natureza do professor perfeito,
Samantabhadra, é demonstrada aqui (verso 1); o ensinamento excelente é a mente luminosa (verso
41 e também 42); a natureza do séquito excelente é os três modos de ser dentro da presença pura
(versículo 46). O lugar excelente é a vasta espacialidade do campo da realidade tratado nos
versículos 16 e 9; e o tempo excelente é a unidade do tempo tratada nos versículos 26 e 48.
2
A bondade amorosa já é consumada,
de modo que a compaixão não é perseguida;
supremamente vasta e profunda
nenhuma qualidade existe para aclamar.
A exaltação da consciência prístina é sua natureza imaculada e isso não pode ser
melhorado, alterado, nem conscientemente cultivado ou realizado. Tal exaltação é
profunda porque a percepção dualista é transcendida. Nesse espaço oculto e não-
referencial onde não há imperfeição ou defeito, não há falha para corrigir, e nenhuma
falha a reconhecer, assim como pode haver alguma qualidade particular para exaltar ou
qualquer sucesso para celebrar?20
N20: O quinto sutra dos Dez Sutras trata das cinco exaltações (che ba rnam lnga): a exaltação da
iluminação aqui e agora (mngon par sangs rgyas che) expressada como a excelência quíntupla (ver
nota 19 acima), exaltação do campo iluminado da realidade (versículo 16), exaltação da identidade
iluminada (versículo 33), exaltação da evidência da iluminação (versículo 40) e a exaltação da não-
iluminação (versículo 8).
3
As intenções não-agitadas de sua própria natureza,
por meio da não-ação são liberadas e ativam a
liberação;
não buscando a consciência autossurgida,
sendo libertadora, revela a modalidade da liberação.
A Transmissão Finalmente Resolvendo Toda a Experiência:
Nossa identidade – nossa individualidade – é a realidade inalterável da mente luminosa.
Nem mesmo nossas intenções e impulsos, nossas metas e objetivos, nossas reações e
respostas podem escapar de sua condição natural que é esta realidade inalterável. Não
fazendo absolutamente nada, sem atividade direcionada, livre de empenho e sem
esforço – que é a não-ação – a Grande Perfeição é reconhecida. A consciência prístina,
não condicionada por causas e condições, se libera por meio de seu estado natural não-
apreensível e revela a modalidade liberadora.
N21: O sétimo sutra dos Dez Sutras trata os três tipos de transmissão: a transmissão direta ou a
emanação na natureza da mente (verso 19); a transmissão auditiva (verso 22); e a transmissão,
finalmente, resolvendo toda a experiência (verso 3).
4
Vajrasattva é os grandes elementos
intrinsecamente presentes em todos os seres;
mesmo que noções falsas nos obcequem,
a liberação é autossurgida – mas somente nele.
A Consumação do Mahayoga:
A totalidade, Vajrasattva, está universalmente presente como os cinco "grandes"
elementos da terra, água, fogo, ar e espaço, e esses elementos são os cinco budas todo-
criadores. Todos os seis tipos de seres – deuses, homens, titãs, fantasmas famintos,
animais e seres dos infernos – são compostos por esses elementos. Assim, Vajrasattva é
uma presença constante e todo-abrangente. Podemos conceber os elementos de qualquer
maneira – simbolicamente, personificados, materialisticamente ou funcionalmente –
mas independentemente de tais noções e apesar de qualquer conceitualização de
Vajrasattva, como os cinco budas, ele é o lugar da liberação inevitável e espontânea.
A Consumação do Anuyoga:
A consciência prístina é impossível de localizar porque não tem referência, nem
endereço. A dificuldade de acesso pode ser superada através do reconhecimento da
união intrínseca da realidade e da presença pura. Isso parece implicar uma dependência
de uma dualidade nominal ineficaz, mas uma vez que a exaltação da consciência
prístina, – o puro prazer imediato – surge apenas de e na mente luminosa, que está
completamente além de causa e efeito, sua natureza só pode ser a espontaneidade.
A visão da realidade como ilusão é uma revelação espontânea que não pode ser forçada.
No entanto, este processo natural é facilitado no yogatantra exterior (sattva-yoga). O
processo envolve a visualização das qualidades de uma deidade-búdica (jnana-sattva) e
a subsequente identificação internalizada disso como sendo o compromisso (samaya-
sattva). A percepção da ilusão mágica surge espontaneamente nessa prática. Mas tal
meditação é uma brincadeira de criança (no versículo 36).
Neste verso e no seguinte, é mostrado que fazer qualquer esforço, qualquer tentativa de
encontrar a natureza ilusória da realidade, é fútil e contraproducente. Não há nada a se
fazer!
7
A natureza invisível da realidade
preenche a mente quando a busca pára;
enfatizar acerca do que e do por que
inibe seu surgimento espontâneo.
A Realização da Não-Meditação:
A ilusão de um ambiente material e a existência de seres animados não pode surgir na
não-dualidade perceptiva da mente luminosa. Esta realidade é uma ausência de
aparências. Simplesmente ao relaxar, sem estresse, sem querer nada – que é a suprema
meditação da não-meditação – aí está! A tentativa de definir aparências essencialmente
inexistentes, de insistir em algo concreto onde nada substancial existe, de buscar um
significado definitivo: isto é semelhante a tentar colocar um telhado sólido em uma casa
imaginária. Nada pode vir do nada.
Portanto, procurar por algo que já existe e o contra-resultado do esforço ansioso, é fútil.
8
Esta realidade hermeticamente selada 23
não pode ser transmitida ao ouvido;
e nem a língua tem o poder
para expressar um pouquinho disso.
A Exaltação da Não-Iluminação:
O ensinamento da perfeição que a tudo inclu não pode ser expresso por um buda, por
um homem ou por uma mulher e, portanto, não pode ser transmitido oralmente. Se não
pode ser falado ou ouvido, ele não existe. Então, o que é iluminação?
O estado búdico ou a iluminação é inatingível e sua realidade não pode ser ensinada ou
expressa. Está além da atividade mental, é não-referencial, indeterminável, carece de
qualquer indicação e é não-composto. Nesse sentido, não existe; é uma ausência, e nesta
vasta ausência reside a sua exaltação. A não-iluminação se traduz como a iluminação
universal.
N23: TB tem “realidade” (chos nyid, Skt. dharmata); BGB tem “ensinamento” ou “darma” (chos
’di).
Os seres humanos não podem ser irrevogavelmente condicionados pelo carma – não
precisam ser escravos do carma. A mente luminosa torna o condicionamento cármico
ineficaz e impotente. O carma é negado aqui como nada além de uma construção
ilusória do intelecto o produto cármico aceito como a base ilusória do método principal
do Dzogchen. A experiência dos seis tipos de seres, deve ser reconhecida como o
caminho principal (p.25). A presença pura que a tudo permeia da mente luminosa, no
entanto, subjuga o carma, tornando-o redundante. O carma é, afinal, mera imputação.24
Assim, a roda da vida surge da mente luminosa e permanece sempre a mente luminosa.
N24: O sétimo sutra dos Dez Sutras também aborda a instrução essencial (man ngag,
alternativamente traduzida como “preceito secreto”) sobre a mente luminosa (verso 9); sobre a não-
união (verso 52); sobre o tempo nocional (verso 48); e sobre a instrução seminal desta grande
transmissão (verso 55). Veja Dowman 2009, canto 84, p. 189, para o comentário do mestre sobre o
status do carma apresentado nos versículos 9 e 10.
10
Tendemos a interpretar distinções congruentes
como um relacionamento “cármico”;
na medida em que o "carma" impera
carece-se da consciência autossurgida.
Portanto, a crença no carma é como uma droga que domina a mente e inibe a
emergência da consciência prístina. Livre de todas as causas e circunstâncias a
consciência prístina surge espontaneamente. Assim, é afirmado que a crença no carma é
um obstáculo para o surgimento espontâneo da consciência prístina. O intelecto procura
concretizar distinções e reificar a ilusão, substanciando a relação causal. Mas o
pensamento não pode agitar a espacialidade básica.
11
A única causa, como a condição imutável,
nunca nasceu, portanto nunca será destruída;
nesta atemporal e primordial essência pura
da mente,
as formas de pensamento especulativas
não podem afetar a espacialidade básica.
N25: O sexto sutra dos Dez Sutras trata falhas e véus em uma enumeração sextupla: (1) a falha da
crença no progresso em um caminho (verso 21); (2) a falha do esforço (verso 20); (3) a falha da ação
dirigida a um objetivo (verso 54); (4) a falha da discriminação moral (verso 14); (5) a falha do
método sutil (verso 13); e (6) a falha da absorção concentrada (verso 12).
13
Alguns identificam a mente luminosa como uma
porta sutil:
buscando uma maneira de isolá-la
eles se fixam na vacuidade do fluxo mental –
se for forjada, é meditação conceitual.
A Falha do Método Sutil:
Não há dualismo perceptivo na não-meditação, mas dentro da consciência que constrói
elementos subjetivos e objetivos na percepção sensorial, a mente luminosa pode ser
concebida como a porta da liberação – algo infinitamente sutil, mas ainda concreto.
Num quadro dualista, a mente luminosa é assim considerada como uma entrada para um
estado mais elevado e não como o ponto de partida: o caminho e a meta juntos num só.
Baseado em tal idéia, em isolamento físico, livre de formas energeticas intrusivas, a
meditação se torna um método de colocar os campos sensoriais e a atividade mental em
suspenso por meio de um samadi muito fino da vacuidade. Quando os chakras de
"corpo", "fala" e "mente" são visualizados em tais técnicas de meditação, eles também
são sutilmente concretizados. Essa técnica é sempre artificial e de natureza orientada
para um objetivo. Qualquer meditação que envolva atividade intelectual, tal como
focalizar um aspecto particular da mente ou visualização, mesmo que sutil, e qualquer
meditação que possa ser desconstruída, é conceitual por natureza.26 Assim, a mente
luminosa, que carece de qualquer impulso de procurar a si mesma, induz a si mesma em
esforço meditativo sutil.
N26: Considere os preceitos do estágio de conclusão do mahayoga (rdzogs rim) da solitude física,
verbal e mental (lus sngags sems dben).
14
Alguns acreditam que ao designar causa e efeito,
tanto a virtude quanto o vício são claramente definidos
e o mundo mundano é transcendido;
a discriminação moral é a presunção suprema!
15
As palavras “apego” e “desapego”,
como no caminho do meio, não passam de eco,
e prazer e dor são básicamente os mesmos.
O Senhor dos Seres, Vajrasattva, disse isso.
N27: O oitavo sutra dos Dez Sutras trata das cinco certezas e três equívocos: (1) a unidade
inequívoca do tempo (versículo 26), (2) a identidade inequívoca do guru e da oferenda (versículo
49), (3) a ausência inequívoca de motivação na oferenda (versículo 50), (4) a ausência inequívoca de
indicação da realização (verso 43), e (5) a congruência inequívoca de prazer e dor (versículo 15);
juntamente com (6) a natureza equívoca da experiência (verso 35); (7) o intelecto ambíguo e
duvidoso (verso 45); e (8) a consciência prístina imprevisível (versículo 25).
16
Vajrasattva diz:
desejo, raiva e confusão
também ocorrem na modalidade sublime da mente
luminosa;
e os cinco prazeres sensuais
ornamentam a espacialidade que é o campo da realidade.
A Exaltação do Campo Iluminado da Realidade:
A realidade da mente luminosa é o campo da realidade de Samantabadra, a
escpacilidade básica que é o dharmadhatu. Os potenciais poluentes no caminho da
mente luminosa são o desejo, o ódio e a confusão; essas três tendências – positivas,
negativas e neutras – são imediatamente integradas à realidade existencial iluminada
através dos modos do "corpo", "fala" e "mente" búdicos respectivamente. Os cinco
prazeres sensuais do nosso comportamento habitual – visão, som, cheiro, sabor e
sensação tátil – que são mais potentes em situações sexuais-sensuais, são então adornos
desse campo da realidade, como pequenos cestos de flores lançados na superfície de um
rio. Eles são instantaneamente integrados como o puro ser e a consciência prístina.
Desta forma, o deleite no prazer sensual é a própria modalidade da mente luminosa e o
gozo é seu modo.
17
O espaço e o conceito de espaço são ambos
sem origem,
de modo que o próprio conceito é igual ao espaço;
no desapego do espaço dedicado
o espaço último auto-validante emerge.
Não pode haver apego ao ser puro conceitualizado (darmakaya) devido à sua natureza
ilusória e espaçosa. Todos os conceitos são dedicados como espaço, mas o ser puro
conceitual em particular – o ser puro de "corpo", "fala" e "mente", e "passado",
"presente" e "futuro" – visto como espaço, a realidade do ser puro é realizada como o
espaço auto-validante, que é o propósito último. Esta é uma análise de um processo
espontâneo e instantâneo.
Aqui é descrito o processo em que os seis campos sensoriais são reconhecidos como a
realidade da mente luminosa – o campo sensorial vajra. Esse reconhecimento é
realizado pela sua "dedicação" como espaço. Aqui dedicação significa “a projeção da
idéia de espaço sobre as construções que surgem nos campos sensoriais e, assim,
atualizando sua inerente realidade espaçosa”. Isso descreve as formas de pensamento e
prazeres sensuais que surgem espontaneamente como a consciência prístina. Não há
lacuna entre a intenção e a ação. O processo ocorre dentro da espontaneidade da
consciência autossurgida. A noção de "dedicação" atribui essa realidade momentânea ao
anuyoga.28
N28: O quarto sutra dos Dez Sutras trata as quatro yogas: a realidade do Dzogchen atiyoga
(versículo 42), a realidade do Dzogchen anuyoga (versículo 17), a realidade do mahayoga criativo
(verso 37) e a realidade do tantrayoga (versículo 36). ). Veja Grande Garuda, versículo 1, onde o
conceito do darmakaya é igualado ao próprio darmakaya, e aos versos 49 e 50 abaixo, onde a
realidade do anuyoga é superada pela espontaneidade.
18
A igualdade não-pensada, o ser puro,
como o reflexo da lua na água, não pode ser
agarrado;
na exibição todo-excelente de Samantabadra
ele é revelado como as vogais e consoantes ulteriores.
19
Como o A e o adorno TA,
como o PA e suas elaborações complexas,
no campo da experiência do mundo finito,
consequentemente a fala búdica emerge.
A "fala búdica" pode ser interpretada como vibração ou como padrões de energia, mas
nesta descrição do processo de emanação dentro do ser puro, tais constelações de
energia são formalizadas como glifos alfabéticos. O glifo PA é a primeira letra da
palavra “padma”, o som embrionário, o órgão gerador. Fora de PA surgem as vogais e
as consoantes correspondentes a um aspecto da emanação – os cinco agregados, os oito
tipos de consciência, as cinco emoções, os cinco prazeres sensuais, etc. – e na
complexidade da experiência sensual, da forma e sem forma, no campo da realidade,
elas soletram toda a gama de atividades possíveis. Uma vez que a realidade do prazer
sensual é não-nascida, é a consequente voz búdica. Uma vez que a realidade é não-
nascida, o conteúdo do momento é o ensino do estado búdico.
20
Não! O campo da experiencia búdica
não pode ser encontrado pela busca e esforço;
uma vez que a experiência sensorial sêxtupla
não fornece objeto
buscá-la é como um homem cego que tenta
apanhar o céu.
A Falha do Esforco:
Um desvio sério nas praticas do Dzogchen é procurar o que é espontâneo e
inevitavelmente presente. O ser puro e a consciência prístina que compõem o campo
maravilhoso da experiência búdica não dependem de nada. O campo em si é
instantaneamente autossurgido. Qualquer tentativa de agarrar os objetos desejáveis e
fascinantes dos sentidos está fadada a frustração porque nada substancial existe. O
impulso de estender-se para agarrar os seis objetos da consciência (que compõem a
"experiência sêxtupla") deriva de um dualismo perceptivo delusório. É tão fútil e tolo
como um homem cego esticando seus braços para agarrar o céu.
21
O caminho da pureza que se alcança de altura
em altura
está em desacordo com a modalidade da forma livre;
viajando no caminho sem caminho,
como no espaço infinito, não há destino.
22
Visto que as coisas são perfeitas tal como são,
no momento da revelação reside a realização;
a essência da mente luminosa é a fonte universal,
e toda a realidade é pura e simples. Sim!
A Transmissão Auditiva:
As coisas são puras e simples tal como são porque na realidade imutável do todo-bom
Samantabadra, não há tal coisa como evolução, desenvolvimento ou progresso. Apenas
a única realidade está continuamente presente. O que quer que apareça
momentaneamente no céu da mente é o objetivo completo, a totalidade última.
23
O que era antes e o que é agora
como a talidade é a mesma vastidão
intrínseca;
tal é a modalidade búdica
e a talidade é sua natureza.
A Perfeição do Caminho:
O passado é conhecido apenas através das construções de pensamento da memória, que
são a realidade da mente luminosa. O presente é o campo da realidade que é conhecido
pela consciência prístina. O futuro, como o passado, é conhecido apenas como
construções mentais ou projeções, que, novamente, são a realidade da mente luminosa.
A realidade, a coisa-em-si, a talidade do passado, presente e futuro é uma presença vasta
e espaçosa idêntica. A modalidade búdica através da qual o passado é conhecido não é
diferente da modalidade pela qual o futuro é conhecido e nem é diferente da modalidade
presente que é a realidade não estruturada em si. O passado, o presente e o futuro são
conhecidos no aqui-e-agora e a modalidade búdica através da qual eles são entendidos é
idêntica.
24
Portanto o aqui-e-agora é todo o processo
como a lua e seu reflexo em um;
mesmo sendo inteiramente a mesma
ela não pode ser vista com um foco seletivo.
25
O prazer atual e o prazer futuro,
são a percepção direta e sua sombra:
tal cálculo conceitual é um erro –
não confie nele.
A noção de uma "sombra" da percepção direta é derivada do apego ao seu puro prazer e
a esperança pelo prazer repetido. O apego à memória da bem-aventurança pode gerar
construções de apoio delusórias, como "passado" e "futuro", que minam a consciência
em que o êxtase é naturalmente inerente. A consciência prístina transcende todo esse
apego e é, portanto, ambígua, na medida em que desafia a previsão.
26
Passado, presente e futuro são um, não têm
distinção,
o passado nunca surgiu, o futuro nunca ocorreu;
abraçado pelo ser puro, tudo é um,
imanente como uma vastidão exaltada.
27
Com pleno envolvimento no universo triplo
as idéias aparecem como um encantamento
ilusório;
até mesmo a capital do imperador universal
é um lugar condicionado pela ilusão.
28
Aqueles cujas vidas são escravizadas pelo tempo
nunca veem um resultado no momento;
se a atividade estiver cheia de esperança
só pode ser uma ação “vazia”.29
Este verso mostra que a perfeição inerente do momento pode ser acionada mesmo
quando a mente do planejamento discursivo está sempre funcionando em um futuro
inexistente. Isso indica que o passado, o presente e o futuro, e as construções mentais
relacionadas particularmente ao futuro, são inevitavelmente abraçadas pela mente
luminosa.
Assim, mesmo que nossos desejos criem uma dependência contraproducente no tempo,
e mantenhamos noções concretas do passado e do futuro, há, entretanto, acesso
automático à mente luminosa.
N29: TB tem ma bral smon pas spyod pas na; BGB ma bral smon pa spyod pas na; e DC suporta
isso com chags dang ma bral. O NCG tem bya bral smon pa spyod pas na e assim inverte o
significado: “ação não-motivada no tempo / isto é ‘ação vazia’”; onde a conduta é não-motivada,
essa atividade é dita como "vazia".
29
Totalmente livre de imagem, como um,
o iogue é como a impressão de um pássaro no céu;
na essência desestruturada e não-nascida
onde estão os sinais alardeados de sua passagem?
30
Interior e exterior são um, o interior é o próprio
exterior,
de forma que não existem profundezas ocultas para
se descobrir;
sob o poder do mundo fictício
o samadi carece da igualdade absoluta.
Na mente luminosa, nossas vidas interior e exterior são uma, porque o próprio exterior é
o interior e o interior [é] a natureza do exterior, e lá nada está oculto ou encoberto. O
que tem significado é o aqui-e-agora – que é totalmente completo em si mesmo. Essa
identificação de exterior e interior também se aplica as vidas pública e privada. A
transparência e a invisibilidade completa é o que podia se esperar.
31
E mais uma vez sobre “exterior” e “interior”,
o corpo-mente é o espaço indiferenciado;
e passado, presente e futuro são inseparáveis
dentro dele,
todas essas designações são redundantes.
33
O que, quem e onde –
nossos modos e comportamentos psíquicos– ocorrem na
mente luminosa;
mas sobre quaisquer distinções entre homem e mulher,
o Senhor da Igualdade não tem nada a dizer.
Este verso ambíguo serve, assim, para demonstrar a perfeição imanente no método de
renuncia dos discípulos, segundo a qual os glifos a e pa podem ser a ocasião para o puro
prazer enquanto recebem instrução. Na superfície, no entanto, parece tratar do
tantrayoga. A prática do ascetismo implacável, fornecendo um espaço indeterminado e
ambíguo, permite que o êxtase do grande sidi surja na ioga da união. O apego a esse
êxtase é, no entanto, substituído pela união intrínseca dos glifos a e pa, representando a
mente luminosa como a fonte e a manifestação coincidentes [ver versículo 19].
N32: A BGB tem A dang par ni rnam ldan na, enquanto os dez sutras têm Lung gi a dang ston pa’i
sar ldan na: “dotado do a da transmissão no nível do professor”. Ver NCG, capítulos 7 e 8.
35
Devido à indeterminação da unidade,
no entanto, ela é percebida de modo que
aparece:
o prazer cobiçado nas aparências,33
é um pesado véu obscurecedor.
O apego a uma qualidade aparentemente existente "lá fora" está implícito no desejo por
um objeto sexual. Aceitando a natureza inexistente de todos os fenômenos e
experiências, e entendendo-as como projeções insubstanciais, embora aparentemente
concretas, de nossos hábitos mentais, esse apego é quebrado.
Assim, somos advertidos a não projetar aparências que servem apenas para satisfazer o
desejo.
N33: Esta linha (snang ’dod rtsol sems bde ba la) do TB é encoberta nos Dez Sutras por “anseio por
aparências” (snang bar ’dod cing rtsol sems byed pa), que é o obscurecimento. Veja também Grande
Garuda, verso 15, sobre este verso.
36
O método da prática tântrica da mente
luminosa
requer visualização do traje divino
como o reflexo da lua na água;
a nudez e o desapego surgem –
mas essa meditação é como a brincadeira
de uma criança.
A Realidade do Tantrayoga
A técnica empregada nos inúmeros métodos do yogatantra externo (tantrayoga) é a
visualização de formas simbólicas. Nesta prática, com o intelecto, uma deidade búdica é
visualizada junto com sua cor, sinais simbólicos e mudras, e em um transe mental a
visão translucida, embora ilusória, aparece. Então, a deidade búdica como um ser de
consciência prístina (jnanasattva), despida de todas as marcas e sinais dualistas e
desapegada de qualquer senso de eu, une-se ao iogue sem desejo. Mas essa meditação
exterior do yogatantra é como construir castelos de areia: uma busca infantil e fútil. A
consciência prístina é realizada pela ausência de desejo, mas depende de um exercício
intelectual que deve ser repetido várias vezes à medida que a visão entra em colapso
repetidamente.
Assim, é evidente que a prática do yogatantra pode induzir o êxtase do mahasidi, mas o
êxtase é uma função da técnica e, portanto, passageira.
37
Identificando-se com o corpo de Mahakrodha
em sua mandala de atributos irados,
mesmo que a sílaba-semente seja realizada,
o próprio nirvana não pode ser visto diretamente.
38
Sob a influência da emoção,
podando a parte de cima da árvore
ou incinerando a semente,
sua tirania pode ser evitada:
assim é ensinado.
É loucura tentar destruir o apego e a base da emoção quando se está sob a influência da
paixão. No processo graduado de erradicar a emoção, a paixão ainda está presente para
minar os compromissos que são a única proteção contra o retrocesso. O compromisso
samaya do Dzogchen, que não é um samaya, a perfeição espontânea do momento,
garante que ele nunca pode se deteriorar ou degenerar.
Assim, o apego ao êxtase do mahasidi que surge dentro da prática da ioga da união no
caminho tântrico mostra-se evitado através dos samayas do Dzogchen.
39
Cada uma das centenas de milhares de técnicas
tem um florir apropriado,
mas a perfeição sem marca e sem sinal,
não tem morada particular.
A Evidência da Iluminação
A mente do iogue é silenciosa na medida em que toda a discussão avaliativa e julgadora
dentro de si é transcendida na realidade da mente luminosa. Ele conhece a natureza
desestruturada e não-fabricada dela, e sua atividade e sua mente compassiva se unem.
Nisto reside sua grande fortuna; o prazer que surge sem uma causa é totalmente
acidental. Com uma mente silenciosa, no puro potencial do espaço, ele não tem nada
para fazer por si mesmo, e sem nada para incitá-lo a agir, ele não tem nada a fazer pelos
outros. Sua realidade é uma ilusão encantada, ocorrendo espontaneamente e sem
esforço, e lá ele joga em um campo natural da realidade. Em um estado de
encantamento feliz, o iogue personifica a exaltação do estado búdico aqui e agora.
42
O puro prazer surge espontaneamente
do poder intrínseco da presença pura,
e única e exclusivamente como a consciência prístina;
a realidade não pode estar em outro lugar.34
N34: Veja Norbu e Clemente 1999, 172, e Dowman 2009, canto 115, p. 231, que tem uma linha
interpolada entre a terceira e a quarta linha: "isto é conhecimento não-dual e ignorância".
43
Fácil e difícil, difícil porque é muito fácil,35
a mente luminosa, invisível, é onipresente;
não pode ser apontada pelo nome –
nem mesmo Vajrasattva pode mostrá-la.
Assim, uma vez que a mente luminosa é inseparável da percepção direta, ela não pode
ser acessada e nem tampouco pode escapar.
N 34: Rongzom (ver Clemente 1999, 55n9) “contaminou” (bslad) em vez de “fácil” (sla): o estado
natural é velado por conceitos contaminantes. A frase “ausência inequívoca de qualquer indicação de
realização” (dka 'sla mtshon du med pa) que encabeça o comentário é uma representação inadequada
da noção de que é impossível dizer se o acesso à mente luminosa é fácil ou difícil, ou se de fato
existe algum acesso a todos.
Assim, até mesmo a estupidez é impregnada pela mente luminosa. [Veja também
Mineiro de Ouro Puro, verso 5, e Grande Garuda, verso 19.]
45
Esta é a modalidade todo-inclusiva
naturalmente presente em todos os seres;
na tempestade de areia da delusão
nós chamamos pela medicina,
embora a natureza da mente seja a cura.36
Este verso mostra que mesmo a menor motivação para buscar a grande perfeição
impede de encontrá-la.
Este versículo e o próximo mostram como o buda é revelado no momento para todos.
N37: Nos caminhos progressivos, a compreensão (go ba), a experiência (nyams pa) e a realização
(rtogs pa) são três estágios de crescente assimilação do conhecimento para o intelecto. Nesta análise
do Dzogchen, dentro da mera compreensão (go ba), ou dentro de cada pensamento ou conceito
passageiro (rtog pa), reside a realização (togs pa).
47
Fora da luz de arco-íris nebulosa,
as qualidades distintivas das famílias aparecem;
do mesmo modo, como partículas vibrantes imóveis,
o senhor rege os cinco elementos.
A Consumação do Ubhayayoga
Na unidade nebulosa e amorfa, não pode haver diferenciação das cinco cores e
qualidades distintas das cinco famílias. No entanto, a luz de arco-íris da unidade, como
um feixe de luz branca difratada em um espectro, é diversificada na mente como cinco
cores separadas – branco, azul, vermelho, amarelo e verde. Dentro dessas cores, as
cinco famílias búdicas aparecem com suas qualidades específicas de consciência. Da
mesma forma, sem se mover um milímetro, a natureza da mente torna-se visível na
consciência autossurgida que a tudo inclui. Este é Vajrasattva, o soberano dos cinco
elementos, e os cinco elementos são os cinco budas.
Assim, todos os seres já são iluminados pela realidade que a tudo penetra de
Vajrasattva.
50
A espontaneidade, impedindo qualquer dedicação da
oferenda,
naturalmente puro, o universo como oferenda já
é ambrosia;
um senso específico e sua consciência,
no mais elevado samadi, são indivisíveis.
N38: Na terceira linha do verso (na segunda linha da tradução), TB tem “a oferenda que é vista”
(bltas ba'i tshogs ni) ao invés de “o poder do olhar” (bltas ba'i stobs), como é no BGB e nos Dez
Sutras.
52
Um lampejo de apreensão é a união
e a satisfação feliz é o compromisso;
movendo-se na dança dos meios hábeis,
a união não-dual é a oferenda.
N39: Em anuyoga, a união da presença pura (rig pa) e do campo da realidade (dbyings) é
representada pela união do buda-pai Samantabadrae da buda-mãe Samantabadri. Sobre a união, veja
também os versículos 5, 18 e 32.
N40: Obstáculos à meditação podem ser personificados como espíritos chamados geks (’gegs).
Essa falha no comportamento – que pode por extensão se aplicar a qualquer atividade na
qual o apego se encontre – é enfatizada como uma amarra terrível, não tanto pelo auto-
envolvimento inerente ao ato, mas pela motivação dirigida a um objetivo. Sem o samadi
da igualdade, somos pegos em uma amarra dupla. Não estamos errados se não
adorarmos o professor; estamos errados se o venerarmos com apego regular. É
imperativo fazer uma oferenda, mas apenas sem apego. Na prática da Grande Perfeição,
no entanto, a grande amarra é liberada reflexivamente. Aconteça o que acontecer, a
natureza do momento é a espontaneamente resolvida.
55
Sobre essa mesma transmissão,
se for estruturada, ela se torna um véu;
se conceitualizada, similarmente,
sua realidade nunca poderá ser alcançada.
Assim, somos advertidos de que as palavras da transmissão são o dedo apontando para
lua e não a lua em si.
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APÊNCIDE 1
O Texto Tibetano e Comentários
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Os seguintes versos ou linhas são citados por Longchenpa em Byang chub kyi sems kun
byed rgyal po’i don khrid rin chen sgru bo, traduzido no livro Você é os Olhos do
Mundo (Longchenpa 1987): Criatividade Radical, verso 6 em pp 24-25; Minério de
Ouro Puro, verso 7 na nota 42; Estandarte da Vitória Eterna, verso 16 na p. 40 e verso
40 em p. 43.
Os versos ou linhas seguintes são citados por Longchenpa em Gnas lugs mdzod ’grel
ba, que traduzi em Perfeição Natural (Dowman 2009): O Estandarte da Vitória Eterna,
versos 9 e 10 no canto 84, p. 189; o primeiro dístico do verso 30 no canto 85, p. 191 e
no canto 113, p. 228; e versos 41, 42 e 44 em partes no canto 115, p. 231. Os versos do
Grande Garuda 2–4 são citados em parte no canto 8, pp. 71–72; verso 10 no canto 33,
p. 121; verso 12 em parte no canto 63, p.158; verso 14 no canto 12, p. 228; e verso 21
em parte no canto 125, p. 242.
O Grande Garuda em Voo (Khyung chen lding ba) TB vol. ka, 87,2-91,6; KG, cap. 22
TB vol. ka, 455,1-462,4; DC, no oitavo sutra. BGB vol. nga, 308–14.
Norbu e Clemente 1999, 158-61. J. Valby 2011, 2: 26-29.
O Esntandarte da Vitória Eterna: O Vasto Espaço de Vajrasattva ((Mi nub pa’i rgyal
mtshan: Nam mkha’ che)
TB vol. ka, 105,2 a 113,1; KG, cap. 30
TB vol. ka, 352-499; nos décimos sutras da DC. BGB vol. nga, 383-95.
Clemente 1999.
Norbu e Clemente 1999, 168-73.
Valby 2011, 1: 4–10.
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APÊNCIDE 2
A Terminologia da Série da Mente
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Os textos do Dzogchen são divididos em três séries ou classes: A Série da Mente (sems
sde), A Série da Matriz (ou Vasta Extensão) (klong sde) e a Série do Preceito Segreto
(man ngag sde). As Cinco Traduções Inicicias são textos seminais da Série da Mente, e
a Fonte Suprema (Kun byed rgyal po) contém todos os principais textos da Série da
Mente. A explicação mais simples para a existência de três séries separadas consite nas
três fontes geográficas distintas da tradição. Poucas evidências existem em apoio a esta
hipótese, mas um exame comparativo da terminologia parece encorajá-la. Certamente o
vocabulário das transmissões ajuda a confirmar esses textos da Série da Mente como as
primeiras escrituras do Dzogchen. A terminologia do Dzogchen ainda estava
evidentemente em uma fase incipiente e não se desenvolveu no vocabulário da exegese
posterior. Era como se Vairotsana estivesse empregando uma expressão vernacular para
traduzir sua experiência, da mesma forma que lutamos para traduzir o Tibetano para o
Inglês-Português. A linguagem dos Dez Sutras, por outro lado, é escrita com um
vocabulário Dzogchen mais desenvolvido e defende uma data muito posterior de
composição por um autor diferente de Vairotsana. Nas transmissões, por exemplo, as
palavras “realidade” (chos nyid) e, surpreendentemente, “presença pura” (rig pa)
raramente aparecem, e igualmente “espacialidade básica do campo da realidade”
(dharmadhatu) e “ser puro” (darmakaya). A palavra “matriz” ou “extensão” (klong),
uma noção vital no Dzogchen elaborado, não aparece nas transmissões e apenas uma
vez no comentário. O termo “base do ser” (kun gzhi, skt. alaya) não aparece (no
entanto, veja PG2). A frase “percepção não-dual” (gzung 'dzin med pa) não aparece nas
transmissões, embora seja frequente nos comentários dos Dez Sutras. O termo “núcleo
seminal” ou “núcleo que a tudo inclui” (thig le chen po) aparece uma vez nas
transmissões (PG10), embora a noção de “uma partícula indivisível” (rgul phran gcig)
(GG3) pareça significar a mesma coisa. Previsivelmente, a “vaziez” (stong pa nyid), um
termo favorito dos dialéticos, não aparece nas transmissões, embora o comentário o use
ocasionalmente.
Embora não possa ser localizada, ela pode ser reconhecida na união natural de meios e
insight (anuyoga) (VB5). Desejo, raiva e confusão surgem como a consciência prístina
(VB16). A consciência prístina surge particularmente no estado de confusão como a
exibição milagrosa de Samantabadra (VB44). Ela surge espontaneamente no
pensamento (vs12), na espacialidade das construções mentais (anuyoga) (VB17). Na
perspectiva do sattvayoga, a deidade búdica da consciência prístina se identifica com o
iogue. Na visão do ubhayayoga, a consciência prístina se irradia da natureza da mente
como Vajrasattva, que é inseparável das cinco cores e dos cinco elementos (VB47c). A
oferenda dos prazeres sensuais, a mente individualizada que está fazendo a oferenda e a
consciência prístina são todos um dentro do ritual de oferenda (VBc49).
As cinco paixões surgem na mente luminosa, e os cinco prazeres sensuais são descritos
como “ornamentos” da espacialidade do campo da realidade. Como tal, eles participam
da natureza da realidade e, portanto, não podem ter aparência, nem forma, nem formato
e nem cor (VB16). Da mesma maneira, o universo como uma oferenda de prazer
sensual é descrito em termos de um “adorno” da espacialidade básica, de modo que a
oferenda é uma oferenda da espacialidade básica como vaziez (VB49).
As Cinco Traduções Iniciais pertencem aos capítulos da Fonte Suprema que tratam a
não-ação aperfeiçoada. Mas a palavra aparece apenas raramente na mesma e raramente
no comentário dos Dez Sutras. Sua importância, no entanto, é seminal na exegese do
Dzogchen.
A realidade é inexprimível e todos os adjetivos usados para descrevê-la nos Dez Sutras
apontam para essa inefabilidade por meio da negação. É não-dual (CSc), superando o
tempo linear (VB48), o espaço (VB31), o prazer e a dor (VBc15), e as cinco paixões
(VBc15); não é criada (CSc e VBc6); é não-discursiva (GGc1); não pode ser localizada
(GGc3) e não pode ser descoberta; não pode ser objetivada (GGc1); é insubstancial
(GGc15); é não-elaborada e indeterminável (VBc12); é imóvel (VBc3) e imutável
(VB41–43); é sem sinal (VBc21); e não pode ser realizada ou atestada (VBc55).
Dentro do ser puro, surge a ilusão mágica composta dos cinco agregados, que como
emanações secundárias das oito consciências compõem a esfera completa da atividade
do tríplice mundo finito mundano, um mundo que assume a forma dos cinco prazeres
sensoriais das cinco paixões (VBc19). Nesse sentido, o ser puro é todo-inclusivo. Mas
uma vez que a mente luminosa nunca se torna qualquer coisa, nunca toma qualquer
forma, tamanho ou cor e, portanto, na medida em que nunca se afasta de sua própria
natureza, ela é imutável e inalterável (VBc32); conhecida como o ser puro, presente
como a postura (mudra) do ser puro; e como um selo do ser puro é livre da dualidade
perceptiva. A consciência autossurgida do ser puro permanece constante em um samadi
imperturbável. Assim, o ser puro é a consciência prístina.
No Grande Garuda (versículos 1-3) é feita uma distinção entre o darmakaya nocional
que é o objeto da meditação orientada para um objetivo e o ser puro que é a consciência
prístina. O darmakaya nocional como um conceito não se refere a nada e, portanto,
simultâneo com a sua concepção surge a consciência autossurgida. O mesmo pode ser
dito para qualquer conceito, então, todo pensamento é o ser puro.
A ilusão mágica que a tudo inclui da mente luminosa é atualizada por uma realização
involuntária de sua natureza unitária da “talidade”. Então ela pode ser descrita como o
“ser puro” indivisível em sua realidade ôntica e a “consciência prístina” em seu aspecto
epistêmico (VBc6). Da mesma forma, na realização da roda da vida como a modalidade
da mente luminosa, a exibição fantasmagórica é uma união do ser puro e os cinco
aspectos da consciência prístina (VB9c). Novamente, na medida em que o campo da
experiência búdica é desprovido de dualidade perceptiva – qualquer estrutura baseada
na consciência, órgão dos sentidos e objeto sensorial, as ficções da análise dualista – a
experiência búdica no ser puro é descrita em termos do ser puro e da consciência
prístina (VBc16).
Enquanto no tantrayoga a noção de união seria empregada como o rodeio para indicar
uma interfusão imanente e atemporal (VB34), que pode aparecer como um lampejo de
cognição espontânea ou “não-união” (VB52). Na desconstrução do rito tântrico do
ganachakra, a união é uma dança infinita e atemporal (VBc52).
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BIBLIOGRAFIA SELECIONADA
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Yudra Nyingpo. 2004. The Great Image: The Life Story of Vairochana, the Translator.
Translated by Ani Jinba Palmo. Boston: Shambhala.
SOBRE O TRADUTOR
Na Índia, nos anos 60, ele teve a sorte de encontrar os refugiados avôs-lamas que
chegavam à Índia na esteira da invasão Chinesa do Tibete. Naqueles anos inebriantes,
quando os antigos lamas estavam totalmente receptivos à solicitação de discípulos
ocidentais em busca de confirmação da validade de suas trajetórias existenciais, ele
recebeu iniciação, empoderamento, instruções essenciais e orientação pessoal de
Dudjom Rimpoche Jigdral Yeshe Dorje e Kanjur Rimpoche Longchen Yeshe Dorje,
que se tornaram seus gurus raiz, entre muitos outros lamas Nyingma e lamas de outras
escolas, notavelmente o Oitavo Khamtrul Rimpoche e o Décimo sexto Karmapa Rikpai
Dorje. Como Chogyal Namkhai Norbu observou, “Em comunhão com muitos grandes
mestres [Keith Dowman] absorveu fortuitamente a realização do Dzogchen”.
Nos anos 80, ele traduziu vários textos do Vajrayana e, quando o Tibete abriu três anos
de caminhada sazonal no Tibete central, resultou em um guia de peregrinos para o
Tibete. Mais recentemente, ele se concentrou exclusivamente na tradução de textos do
Dzogchen. Da mesma forma, embora ele tenha ensinado o Vajrayana desde 1992, mais
recentemente ele se concentrou inteiramente no Dzogchen. Ele vive um estilo de vida
peripatético ensinando o Dzogchen radical derivado dos tantras Nyingma iniciais que é
livre da tendência para o materialismo espiritual tão evidente no Budismo Ocidental, um
darma facilmente assimilável na cultura Ocidental.
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