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07/11/21, 14:39 Corpos (in)capazes

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12/02/2021
/ ANÁLISE
SAÚDE

Corpos (in)capazes
POR
ANAHÍ DE MELLO

Na crítica marxista da deficiência, as lutas anticapacitistas e


anticapitalistas estão do mesmo lado da trincheira.
POR ISSO, FAZ SENTIDO A AFIRMAÇÃO DE QUE O CAPACITISMO ESTÁ PARA AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
COMO O RACISMO PARA AS PESSOAS NEGRAS E INDÍGENAS, O SEXISMO PARA AS MULHERES E A
LESBOHOMOTRANSFOBIA PARA AS PESSOAS LGBTI. REPRODUÇÃO ADVCOMM

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O texto a seguir foi publicado na 2ª edição impressa da Jacobin Brasil.


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A
s barreiras invisíveis que cercam a luta anticapacitista das
pessoas com deficiência no capitalismo sempre estiveram à
margem dos debates e das pautas da esquerda no Brasil. Essa
percepção se deve à narrativa hegemônica da deficiência
como uma experiência individual e “isolada”. Ao ser dissociada de outras lutas
sociais, a deficiência dificilmente é concebida enquanto experiência coletiva. 

A deficiência ora é um marcador social de diferença, ora uma forma de opressão


que opera com outras categorias como classe, gênero, sexualidade, raça. De
acordo com a teoria social “clássica” da deficiência, há duas maneiras de
compreender a deficiência, uma é baseada no modelo médico; outra, no modelo
social. Em poucas linhas, no modelo médico a deficiência está localizada no
corpo do indivíduo, de modo que ela é vista com um “problema” individual,
objetivando-se a cura ou a medicalização do corpo.

No modelo social, a deficiência não se encerra no corpo, ela é o produto da


relação entre um corpo com impedimentos físicos, visuais, auditivos,
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intelectuais ou psicossociais e um ambiente incapaz de prover acessibilidade.


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Desse modo, o modelo social da deficiência desloca a compreensão da
deficiência do corpo do indivíduo para o contexto das barreiras sociais
impostas pela estrutura social. A deficiência vai além da perspectiva
individualista, de âmbito privado, e passa a ser uma questão da esfera pública
do Estado e da sociedade. 

Ao passar do viés médico para o social, a deficiência deixa de remeter a ideias


como “incapacidade” e “limitação”, sentidos estes que podem ser atribuídos a
noções como falta, perda e déficit. Os movimentos sociais da deficiência do
Brasil passam a adotar, sem qualquer ressalva, os termos “deficiência” e
“pessoa com deficiência” como questão de orgulho porque entendem que a
deficiência é um atributo (uma qualidade) que a distingue de outros grupos
sociais e não um problema (incapacidade). 

Essa virada discursiva sobre a deficiência teve sua origem nos anos 1980, com
a contribuição da primeira geração de teóricos sociais da deficiência,
majoritariamente composta por homens com lesão medular alinhados à
perspectiva marxista. Essa geração apontou a discriminação socioeconômica
como uma das principais formas de opressão contra as pessoas com
deficiência, em sociedades capitalistas, já que o advento do capitalismo trouxe
grande desvantagem para as pessoas com deficiência a partir da percepção de
que elas não poderiam se adaptar às novas exigências laborais, por meio do
emprego especializado nas fábricas. Ou seja, a industrialização demandou
cada vez mais a separação e distinção do indivíduo em relação à sociedade à
medida que a divisão da mão-de-obra se especializa e se individualiza
crescentemente no mundo do trabalho, de modo que estar desprovido da
capacidade de trabalhar por causa de um corpo deficiente é estar desprovido
da capacidade de ser um membro “útil”, “ativo” e “pleno” de direitos e
deveres da sociedade.   

As pessoas com deficiência estão, portanto, excluídas do mercado de trabalho


não por culpa de suas limitações funcionais, tampouco por causa das atitudes e
práticas discriminatórias de empresas, mas devido ao próprio sistema de
organização do trabalho dentro da economia capitalista, que se baseia nos
princípios da competição e da obtenção do máximo lucro. Essa dimensão de
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exploração da força de trabalho das relações capitalistas implicou a ideia da


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deficiência como “tragédia pessoal”, cujo corpo requer tratamento médico a
fim de buscar a “cura” ou mesmo “recuperar” a funcionalidade perdida. Desse
modo, as pessoas com deficiência devem ser controladas, tuteladas pelo
Estado capitalista, por meio da institucionalização e medicalização forçadas
de seus corpos e subjetividades. 

Ademais, há a questão da “deficientização” do trabalhador, quando este se


torna uma pessoa com deficiência devido a acidentes de trabalho ou a
condições precárias do trabalho prolongado. Por exemplo, Friedrich Engels,
em seu texto A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (1845), registra
que somente no ano de 1843 o hospital de Manchester teve que tratar 962
lesões entre os “feridos” e “mutilados” devido a acidentes de trabalho
relacionados ao manuseio de máquinas. O autor narra:

Poucas vezes andei por Manchester sem cruzar com três ou quatro aleijados,
acometidos dessa deformação da coluna e das pernas que pude observar inúmeras
vezes; conheço pessoalmente um estropiado que foi mutilado em Pendleton, na
fábrica do senhor Douglas, industrial que ainda hoje desfruta, entre os operários, de
reputação pouco invejável por impor jornadas de trabalho extremamente longas,
que atravessavam noites inteiras. Não é difícil identificar de imediato, entre os
aleijados, aqueles que foram estropiados dessa maneira – todos têm o mesmo
aspecto: os joelhos curvados para dentro e para trás, os pés voltados para dentro, as
articulações deformadas e grossas e, frequentemente, a coluna desviada para a frente
ou para o lado.

Por isso, a deficiência é primariamente uma questão de classe, um componente


intrínseco das lutas anticapitalistas, devendo compor todas as pautas das lutas
da classe trabalhadora. Pensar os impactos do sistema capitalista capacitista
sobre os corpos deficientes provoca também uma reflexão sobre os modos
pelos quais as pessoas com deficiência elaboram a “economia pelo corpo”.
Falar da “economia pelo corpo” implica olhar para a materialidade do que
chamamos, abstratamente, de economia, pensando nos jogos de
“deficientização” do trabalho a partir dos entrelaçamentos da deficiência com
ambientes, barreiras, classe, gênero, raça, sexualidade, geração, Estado,
economia, política e cidadania. Aliás, a deficiência e o capacitismo como

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categorias de análise ampliam o


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potencial analítico e político de
superar hierarquias de opressão
sustentadas pela lógica capitalista
neoliberal que incide na
corponormatividade, na qual a
branquitude e a hetero-cis-
normatividade estão implicadas. 

O capacitismo é a opressão vivida


pelas pessoas com deficiência e sua
raiz se encontra nas mesmas
instituições econômicas e políticas
que servem de base para o
patriarcado heterossexista, o
racismo e a lesbohomotransfobia.
Esta é a primeira interpretação
para o capacitismo, isto é, uma
forma de discriminação contra um
grupo social específico, o das
pessoas com deficiência, estando
atrelado ao dispositivo da
“capacidade compulsória” que hierarquiza e induz pessoas com deficiência a
almejarem padrões de aparência e de funcionalidade implicados no ideário de
um corpo “saudável”, “belo”, “produtivo”, “funcional”, “independente” e
“capaz”.

Na perspectiva marxista, a pessoa com deficiência é um corpo fora da ordem


capitalista, por ser um corpo de “menor valor” e “incapaz” para o trabalho e
por isso um obstáculo para a produção. De fato, as pessoas com deficiência são
um grupo social bastante invisibilizado das lutas anticapitalistas e dos debates
sobre o mundo do trabalho no capitalismo contemporâneo, apesar da
materialidade do corpo deficiente ser fortemente demarcada do ponto de vista
da “aptidão” para o trabalho. 

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Esse padrão molda a corponormatividade de nossa estrutura social pouco


afeita à diversidade corporal, frequentemente ASSINAR
associando a capacidade de uma
pessoa com deficiência à funcionalidade de estruturas corporais de modo a
avaliar moralmente o que as pessoas com deficiência são capazes de ser e fazer.
Assim, quando uma pessoa não enxerga com os olhos, não ouve com os
ouvidos e não anda como um bípede, ela é lida como “deficiente” e passa a ser
percebida culturalmente como “incapaz”, inclusive incapaz para o trabalho.
Por isso, o capacitismo impede a percepção de que é possível um cadeirante
andar sem ter pernas, um surdo ouvir com os olhos e um cego enxergar com os
ouvidos. 

A segunda interpretação para o capacitismo é concebê-lo como uma estrutura,


ou seja, uma normatividade corporal e comportamental baseada na premissa
de uma funcionalidade total do indivíduo. Essa ideia remete ao pensamento de
Fiona Kumari Campbell, para quem o capacitismo reporta a uma matriz de
inteligibilidade corporal e comportamental que traça seus próprios limites
entre natureza e cultura ao definir como “ordem natural das coisas” uma
corporalidade completamente funcional e capacitada, isto é, um corpo sem
deficiências e doenças. Essa interpretação implica que várias corporalidades
podem ser lidas como ininteligíveis – incluídos corpos femininos, negros,
indígenas e LGBTI. E pressupõe, no entanto, uma hierarquia de corpos
dissidentes, com os corpos deficientes no topo da estrutura capacitista. Por
isso, faz sentido a afirmação de que o capacitismo está para as pessoas com
deficiência como o racismo para as pessoas negras e indígenas, o sexismo para
as mulheres e a lesbohomotransfobia para as pessoas LGBTI. 

A produção social da deficiência também é “naturalizada” pelos saberes


dominantes, cujos significados atribuídos à deficiência estão organizados em
um sistema de aparente oposição binária de presença e ausência (capacidade
versus deficiência) que, na verdade, se revelam interdependentes. Nesse
sentido, a noção de deficiência se materializa e se retroalimenta por meio de
práticas sociais e discursos que a colocam como o oposto da capacidade. No
entanto, o contrário da deficiência não é eficiência, mas capacidade. O oposto
da eficiência é ineficiência. Assim, não faz sentido usarmos (d)eficiência para

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indicar jogos binários entre “deficiência e eficiência” ou mesmo atenuar uma


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suposta valoração negativa da categoria deficiência. 

Se o capacitismo é uma estrutura que dificulta o acesso das pessoas com


deficiência à cidadania, sendo atravessado pelos muros das desigualdades de
classe, gênero, raça e sexualidade, então as lutas anticapitalistas, feministas,
antirracistas e antiLGBTfóbicas devem incorporar as pautas das lutas
anticapacitistas. A própria opressão capacitista se reflete nas relações
hierárquicas da divisão de classes que sustenta a divisão sexual, racial e
funcional do trabalho em sociedades capitalistas.

Por isso, se quebrássemos os muros que nos impedem de dialogar com todo o
campo progressista das lutas sociais das esquerdas, veríamos que a deficiência
deixaria de ser uma existência solitária para ser uma pauta interseccional, se
deslocando da experiência individual para a experiência coletiva, a fim de que
as lutas anticapitalistas, feministas, antirracistas, antiLGBTfóbicas e
anticapacitistas façam sentido e caminhem juntas.

Sobre os autores

ANAHÍ DE MELLO é doutora pela UFSC, pesquisadora do Instituto de


Bioética (ANIS) e membro do GT Estudios Críticos en Discapacidad da
CLACSO.

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