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EPISTEMOLOGIA

DA TEOLOGIA

Autoria: Kevin Daniel dos Santos Leyser

UNIASSELVI-PÓS
Programa de Pós-Graduação EAD
CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI
Rodovia BR 470, Km 71, no 1.040, Bairro Benedito
Cx. P. 191 - 89.130-000 – INDAIAL/SC
Fone Fax: (47) 3281-9000/3281-9090

Reitor: Prof. Hermínio Kloch

Diretor UNIASSELVI-PÓS: Prof. Carlos Fabiano Fistarol

Coordenador da Pós-Graduação EAD: Prof. Ivan Tesck

Equipe Multidisciplinar da
Pós-Graduação EAD: Prof.ª Bárbara Pricila Franz
Prof.ª Tathyane Lucas Simão
Prof. Ivan Tesck

Revisão de Conteúdo: Neivor Schuck


Revisão Gramatical: Equipe Produção de Materiais

Diagramação e Capa:
Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Copyright © Editora Grupo Uniasselvi 2017


Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri
Grupo UNIASSELVI – Indaial.

231.044
L685e Leyser, Kevin Daniel dos Santos

Epistemologia da teologia / Kevin Daniel dos Santos Leyser.


Indaial: UNIASSELVI, 2017.

242 p. : il.

ISBN 978-85-69910-60-2

1.Teologia.
I. Centro Universitário Leonardo Da Vinci.
Kevin Daniel dos Santos Leyser

Possui graduação em Psicologia com


Licenciatura Plena, Bacharelado e Formação pela
Universidade Comunitária Regional de Chapecó
(2005), em Filosofia com Licenciatura Plena pela
Universidade Comunitária Regional de Chapecó (2004),
em Teologia com Bacharelado pela Faculdade de Educação
Teológica Logos (2002). É especialista em Psicopedagogia
e Práticas Pedagógicas e Gestão Escolar pela Faculdade
de Administração, Ciências, Educação, Letras (FACEL)
(2007). Mestre em Educação pela Universidade Regional
de Blumenau (FURB) (2011). Trabalha há 11 anos no
Ensino Superior, atualmente é professor na FAMEG/
UNIASSELVI em Guaramirim (SC) e no Centro Universitário
Leonardo da Vinci/UNIASSELVI em Indaial (SC). Faz
parte do grupo de pesquisa em Filosofia da Educação
(EDUCOGITANS). Tem experiência na área de Filosofia,
com ênfase em epistemologia, pragmatismo e educação;
na área de Psicologia, com ênfase em psicoterapias
fenomenológico-existenciais, processos cognitivos,
aprendizagem sócio emocional e educação; na área
e Teologia, com ênfase em filosofia e epistemologia
da religião. Na EAD, publicou: Filosofia Geral e da
Religião; Psicologia Geral e da Religião; Filosofia
Política e Ética e Profissão.
Sumário

APRESENTAÇÃO.......................................................................7

CAPÍTULO 1
Introdução à Epistemologia ..................................................9

CAPÍTULO 2
A Epistemologia da Teologia e da Religião ........................53

CAPÍTULO 3
O Conhecimento Religioso e suas Implicações
Epistemológicas......................................................................89

CAPÍTULO 4
Argumentos Cosmológicos da Existência Divina.............125

CAPÍTULO 5
Argumentos Teleológicos da Existência Divina..............163

CAPÍTULO 6
Argumentos Ontológicos da Existência Divina...............193

CAPÍTULO 7
Problemas do Mal................................................................215
APRESENTAÇÃO
Caro(a) pós-graduando(a), este livro tem como objetivo sistematizar os
elementos básicos da disciplina de Epistemologia da Teologia, o qual proporcionará
um contato com os principais tópicos, autores e obras da área, além dos instrumentos
necessários, não apenas para acompanhar a disciplina ofertada, mas também para
os estudos autônomos posteriores.

A epistemologia, em uma perspectiva ampla, pode ser caracterizada como


o estudo do conhecimento. Dentro da disciplina da filosofia, a epistemologia é o
estudo da natureza do conhecimento e da justificação. Em particular, é o estudo do
conhecimento e da justificação em três aspectos: seus componentes definidores,
suas condições ou fontes substantivas, e os seus limites.

Tem sido comum na epistemologia dar atenção cuidadosa não apenas


à epistemologia como empreendimento genérico, mas também explorar
detalhadamente a epistemologia de disciplinas acadêmicas específicas. A
epistemologia da ciência, por exemplo, recebeu a maior parte do interesse. Mas
também se deu atenção à matemática, à história, à estética e à ética. O mandado
crucial para esses desenvolvimentos posteriores remonta a Aristóteles quando ele
insistiu no que poderíamos chamar de princípio de ajuste epistêmico. Devemos
ajustar nossas avaliações epistêmicas de forma apropriada ao assunto sob
investigação. Como resultado, não esperamos que as afirmações históricas sejam
avaliadas pelo tipo de argumentos que se aplicariam à matemática e às ciências
naturais. Surpreendentemente - dada a atenção dirigida a reivindicações teológicas
- esta visão não tem sido sistematicamente explorada no caso da teologia. Apesar
da riqueza do material disponível tanto na filosofia como na teologia ao longo dos
séculos, não tem havido nenhum esforço concertado para articular e examinar o que
conta como avaliação epistemológica apropriada em teologia.

Por epistemologia da teologia, entendemos uma investigação crítica da
desiderata epistêmica apropriada aplicada à teologia. Acreditamos que o tempo está
maduro na filosofia e na teologia para tal empreendimento. E estamos convencidos
de que há uma grande necessidade para o desenvolvimento desta nova conversa
que terá seu lugar natural na interseção da teologia e da filosofia. Este livro se propõe
a introduzir esta conversa.

No primeiro capítulo introduzimos o objeto de estudo da epistemologia e seus


métodos de investigação, identificando os principais problemas e questões que neste
campo são comumente levantadas.
No segundo capítulo nosso foco foi o de apresentar a epistemologia da teologia
ou da religião propriamente dita, descrevendo a relação entre estas áreas de
conhecimento. Exploramos aqui questões atuais de debates entre posições distintas
como o fideísmo, o evidencialismo e a epistemologia reformada.

No terceiro capítulo aprofundamos as implicações epistemológicas do


conhecimento religioso, percorrendo questões sobre a razoabilidade da crença
religiosa e da própria possibilidade de um conhecimento religioso. O foco aqui foi
particularmente na questão da justificação e da racionalidade de tal conhecimento.

No quarto, quinto e sexto capítulos, tratamos dos argumentos teístas e antiteístas


para a existência divina. Foram abordados os argumentos cosmológicos, teleológicos
e ontológicos respectivamente. A proposta foi expor de maneira mais objetiva possível
a lógica das argumentações em suas várias formas, iniciais e atuais, e de suas contra-
argumentações.

Finalmente, no sétimo capítulo, apresentaremos vários argumentos antiteístas,


assim como as respostas aos mesmos, ao problema do mal. A proposta aqui, tal
como nos três capítulos anteriores mencionados, é de explicitar a maneira como
a justificação e a racionalidade de argumentos filosóficos e teológicos podem ser
articuladas e permitirem uma análise mais apurada da própria crença religiosa.

Este é um dos principais objetivos da epistemologia da teologia ou da religião,


nos auxiliar a perceber a justificabilidade e a racionalidade do conhecimento religioso.
Aplicar, portanto, a epistemologia à teologia e ao conhecimento religioso é um
empreendimento certamente repleto de desafios, mas pleno de possibilidades para
um crescimento acadêmico e pessoal.

Boa jornada, rumo à edificação acadêmica, profissional e pessoal, e sucesso


frente aos desafios intelectuais, éticos e pessoais proporcionados pelo estudo da
Epistemologia da Teologia.

Prof. Kevin Daniel dos Santos Leyser.


C APÍTULO 1
Introdução à Epistemologia

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

� Compreender o objeto de estudo da epistemologia e seus métodos


de investigação.

� Identificar os principais problemas e questões levantados pela epistemologia.

� Comparar as diferentes abordagens de investigação da epistemologia


ao conhecimento humano.

� Distinguir as posições epistemológicas quanto ao conhecimento e à


justificação.
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

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Capítulo 1 Introdução à Epistemologia

Contextualização
Neste capítulo faremos uma introdução à epistemologia, elucidando seu
campo investigativo de modo geral, apresentando as principais abordagens, os
temas centrais e os problemas que surgem nesse empreendimento. Tal intro-
dução à epistemologia se faz essencial para que você, acadêmico, compreenda
o objeto de estudo da epistemologia e seus métodos de investigação, podendo
então, posteriormente, identificar a relação entre a epistemologia, a teologia e o
conhecimento religioso.

A epistemologia, em uma perspectiva ampla, pode ser caracteri-


zada como o estudo do conhecimento. Dentro da disciplina da filosofia, A epistemologia é o
a epistemologia é o estudo da natureza do conhecimento e da justi- estudo da natureza
ficação. Em particular, é o estudo do conhecimento e da justificação do conhecimento e
em três aspectos: seus componentes definidores, suas condições ou da justificação.
fontes substantivas, e os seus limites. Todavia, para simplificar a série
de tarefas com que os epistemólogos se preocupam, podemos classificar em duas
categorias.

Primeiro, o desafio é determinar o que entendemos por natureza do conhec-


imento. Isto é, o que significa dizer que alguém sabe, ou não sabe, alguma coisa.
Trata-se de compreender o que é o conhecimento e de distinguir entre casos em
que alguém conhece alguma coisa e casos em que alguém não conhece alguma
coisa. Embora haja algum consenso geral sobre alguns aspectos desta questão,
veremos que este tema é muito mais difícil do que se poderia imaginar.

Em segundo lugar, devemos determinar a extensão do conhecimento huma-


no. Isto é, quanto nós conhecemos ou podemos conhecer? Como podemos usar
nossa razão, nossos sentidos, o testemunho de outras pessoas e outros recursos
para adquirir conhecimento? Há limites para o que podemos conhecer? Por exem-
plo, existem algumas coisas que não podem ser conhecidas? É possível que nós
não conheçamos o tanto quanto nós pensamos que conhecemos? Deveríamos ter
uma preocupação legítima sobre o ceticismo, a visão de que não conhecemos ou
não podemos conhecer absolutamente nada?

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EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Murilo Ferraz e Marcos Carvalho Lopes recebem Alexandre


Meyer Luz, Doutor em Filosofia pela PUC do Rio Grande do Sul,
professor e coordenador do programa de pós-graduação em
Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina para falar sobre
Epistemologia. Veja a entrevista no site: <http://filosofiapop.com.br/
podcast/filosofia-pop-034-epistemologia/>.

Tipos de Conhecimento
O termo "epistemologia" vem do grego episteme, que significa
"conhecimento", e do termo logos, que significa, aproximadamente, "palavra
escrita ou falada, razão ou explicação". Logos é utilizada como a raiz de termos
como psicologia, antropologia, teologia e lógica, e tem muitos outros significados
relacionados, mas nestes contextos indica um âmbito do saber racional (NORRIS,
2007; FUMERTON, 2014).

A palavra "conhecimento" e seus cognatos são usados ​​ de diversas


maneiras. Um uso comum da palavra "conhecimento" é como uma expressão
de convicção psicológica. Por exemplo, podemos ouvir alguém dizer: "Eu
simplesmente sabia que não iria chover, mas depois choveu." Embora isso
possa ser um uso apropriado, filósofos tendem a usar a palavra "conhecer" em
um sentido factivo, de modo que não se pode conhecer algo que não é o caso.
Veremos mais sobre este aspecto no decorrer deste capítulo.

Mesmo se nos restringirmos a usos factivos, ainda existem múltiplos


sentidos de "conhecimento", e por isso precisamos distinguir entre eles.
Assim, o conhecimento pode ser explícito ou tácito. O conhecimento explícito é
autoconsciente, na medida em que o conhecedor está consciente do estado de
conhecimento relevante, enquanto o conhecimento tácito é implícito, escondido
da autoconsciência. Muito do nosso conhecimento é tácito: é genuíno, mas
desconhecemos os estados de conhecimento relevantes, mesmo que possamos
alcançar a consciência através de uma reflexão adequada (BOMBASSARO,
1992). Nesse sentido, o conhecimento se assemelha a muitos de nossos estados
psicológicos. A existência de um estado psicológico em uma pessoa não requer
a consciência da pessoa desse estado, embora possa exigir a consciência da
pessoa de um objeto desse estado (como o que é sentido ou percebido).

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Capítulo 1 Introdução à Epistemologia

Outro tipo de conhecimento é o “conhecimento procedural”, às vezes


chamado de competência, habilidade ou conhecimento de saber-como (know-
how). Por exemplo, pode-se saber como andar de bicicleta, ou pode-se saber
dirigir de Florianópolis a São Paulo. Outro tipo de conhecimento é conhecimento
de trato ou familiaridade, que é um conhecimento adquirido de forma direta sem
necessidade de justificativas (OLIVA, 1990). Por exemplo, pode-se dizer que se
conhece alguma pessoa, ou alguma coisa por estar familiarizado com ela.

Os epistemólogos normalmente não se concentram no


conhecimento procedural ou de familiaridade, no entanto, em vez disso, Uma proposição
preferem se concentrar no “conhecimento proposicional” (CHISHOLM, é algo que pode
1974). Uma proposição é algo que pode ser expresso por uma ser expresso por
sentença declarativa, e que pretende descrever um fato ou estado de uma sentença
coisas, como "cães são mamíferos", "2 + 2 = 7", "é errado assassinar declarativa, e que
pretende descrever
pessoas inocentes por diversão". Observe que uma proposição pode
um fato ou estado
ser verdadeira ou falsa, ou seja, não precisa realmente expressar de coisas.
um fato. O conhecimento proposicional, então, pode ser chamado
de “conhecimento-que”. Declarações de conhecimento proposicional (ou a falta
deste) são adequadamente expressas usando sentenças "que", tais como "ele
sabe que Florianópolis está em Santa Catarina" ou "ela não sabe que a raiz
quadrada de 9 é 3". No que se segue, estaremos preocupados apenas com o
conhecimento proposicional.

O conhecimento proposicional, obviamente, abrange conhecimentos


sobre uma ampla gama de assuntos: conhecimento científico, conhecimento
geográfico, conhecimento matemático, autoconhecimento e o conhecimento
sobre qualquer campo de estudo, como veremos no decorrer deste livro,
especificamente sobre o campo teológico e religioso. Qualquer verdade pode,
em princípio, ser cognoscível, embora possa haver verdades incognoscíveis. Um
dos objetivos da epistemologia é determinar os critérios de conhecimento para
que possamos saber o que pode ou não ser conhecido, ou seja, o estudo da
epistemologia inclui fundamentalmente o estudo da metaepistemologia (o que
podemos conhecer sobre o próprio conhecimento).

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EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

A metaepistemologia é, grosso modo, o ramo da epistemologia


que faz perguntas sobre questões epistemológicas de primeira
ordem. Investiga aspectos fundamentais da teorização epistêmica
como metafísica, epistemologia, semântica, agência, psicologia,
responsabilidade, razões para a crença e além. Assim, se,
como tradicionalmente concebido, epistemologia é a teoria
do conhecimento, a metaepistemologia é a teoria da teoria do
conhecimento (KYRIACOU, 2016).

Podemos também distinguir entre diferentes tipos de conhecimento propo-


sicional, com base na fonte desse conhecimento. O conhecimento não
O conhecimento
empírico ou a priori é possível independentemente ou antes de qualquer
não empírico ou
a priori é possível experiência e requer apenas o uso da razão. Exemplos incluem o co-
independentemente nhecimento de verdades lógicas tais como a lei da não contradição, bem
ou antes de como o conhecimento de reivindicações abstratas (tais como reivindica-
qualquer experiência ções éticas ou reivindicações sobre vários assuntos conceituais). O co-
e requer apenas o nhecimento empírico ou a posteriori só é possível depois, ou posterior,
uso da razão
a certas experiências sensoriais (além do uso da razão). Os exemplos
incluem o conhecimento da cor ou forma de um objeto físico ou o conhe-
cimento de locais geográficos (GRECO; SOSA, 2008).
O conhecimento
empírico ou a Podemos dizer que uma preocupação primordial da filosofia
posteriori só é moderna clássica, nos séculos XVII e XVIII, era a extensão do nosso
possível depois,
conhecimento a priori relativo à extensão do nosso conhecimento a
ou posterior, a
certas experiências posteriori. Racionalistas como Descartes, Leibniz e Spinoza sustenta-
sensoriais (além do vam que todo conhecimento genuíno do mundo real é a priori (HUENE-
uso da razão MANN, 2012), enquanto que empiristas como Locke, Berkeley e Hume
argumentavam que todo esse conhecimento é a posteriori (MEYERS,
2017). Em sua Crítica da Razão Pura de 1781, Kant (2001) buscou uma grande
reconciliação, com o objetivo de preservar as principais lições do racionalismo e
do empirismo.

Desde os séculos XVII e XVIII, o conhecimento a posteriori tem sido am-


plamente considerado um conhecimento que depende, para o seu sustento, de
alguma experiência sensorial ou perceptual específica. E o conhecimento a priori
tem sido amplamente considerado como um conhecimento que não depende do
seu fundamento em tal experiência (BONJOUR; BAKER, 2010). Kant (2001) e

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Capítulo 1 Introdução à Epistemologia

outros sustentam que o fundamento para o conhecimento a priori vem unicamente


de processos puramente intelectuais chamados de "razão pura" ou "entendimen-
to puro". O conhecimento de verdades lógicas e matemáticas serve tipicamente
como um caso padrão de conhecimento a priori, enquanto que o conhecimento da
existência ou presença de objetos físicos serve tipicamente como um caso padrão
de conhecimento a posteriori.

Uma tarefa importante para uma explicação do conhecimento a priori é


a explicação de quais são os processos puramente intelectuais relevantes e de
como eles contribuem para o conhecimento não empírico. Uma tarefa análoga
para uma explicação do conhecimento a posteriori é a explicação do que é a ex-
periência sensorial ou perceptual e como ela contribui para o conhecimento empí-
rico. Mais fundamentalmente, os epistemólogos têm buscado uma explicação do
conhecimento proposicional em geral, isto é, uma explicação do que é comum ao
conhecimento a priori e a posteriori.

Podemos também distinguir o conhecimento entre conhecimento


individual e conhecimento coletivo. A Epistemologia Social é o
subcampo da epistemologia que aborda a maneira como grupos,
instituições ou outros corpos coletivos podem adquirir conhecimento.
Pesquise mais sobre a Epistemologia Social começando pela leitura
da obra “Epistemologia Social: dimensão social do conhecimento”
(MÜLLER; RODRIGUES, 2013). Veja na lista de referências deste
livro o link para acessar o E-book.

A Natureza do Conhecimento
Proposicional
Tendo limitado nosso foco ao conhecimento proposicional, devemos nos
perguntar o que, exatamente, constitui o conhecimento. O que significa alguém
saber alguma coisa? Qual é a diferença entre alguém que sabe alguma coisa e
alguém que não sabe, ou entre algo que se sabe e algo que não se sabe? Uma vez
que o alcance do conhecimento é tão amplo, precisamos de uma caracterização
geral do conhecimento, que seja aplicável a qualquer tipo de proposição.

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EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Desde o Mênon e o Teeteto de Platão (2001a, 2001b), epistemólogos


O conhecimento
têm tentado identificar os componentes essenciais, definidores do
proposicional
(de que algo é conhecimento. A identificação desses componentes proporcionará uma
assim) tem três análise do conhecimento. Uma visão tradicional proeminente, sugerida
componentes por Platão e Kant, entre outros, é que o conhecimento proposicional (de
individualmente que algo é assim) tem três componentes individualmente necessários e
necessários e conjuntamente suficientes: crença, verdade e justificação. Nesta visão,
conjuntamente
o conhecimento proposicional é, por definição, uma crença verdadeira
suficientes:
crença, verdade e justificada. Esta é a definição tripartida que passou a ser chamada de
justificação análise padrão. Podemos esclarecê-la atendendo brevemente a cada
uma de suas três condições.

Atividades de Estudos:

1) Entre os diferentes tipos de conhecimento, vimos que o


proposicional é o alvo principal das investigações epistemológicas.
Sintetize a definição tradicional de conhecimento proposicional.
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a) A Condição de Crença

Comecemos com a observação de que o conhecimento é um estado mental.


Isto é, o conhecimento existe na mente de alguém, e as coisas não pensantes
não podem conhecer nada. Além disso, o conhecimento é um tipo específico de
estado mental (NORRIS, 2007). Embora as sentenças "que" também possam
ser usadas para descrever desejos e intenções, estas, de acordo com a análise
padrão, não poderiam constituir conhecimento. Em vez disso, o conhecimento é
uma espécie de crença. Se alguém não tem crenças sobre algo em particular, não
se pode ter conhecimento sobre isso.

Por exemplo, suponha que eu deseje que me seja dado um aumento salarial,
e que eu pretendo fazer o que eu possa para ganhar. Suponhamos, além disso,

16
Capítulo 1 Introdução à Epistemologia

que eu duvide que realmente me seja dado um aumento, devido à complexidade


do orçamento da empresa onde trabalho. Dado que eu não acredito que vai ser me
dado um aumento, não se pode dizer que eu sei que vou receber o aumento. Só
se eu estiver inclinado a acreditar em alguma coisa, posso conhecê-la. Da mesma
forma, os pensamentos que um indivíduo nunca tenha pensado não estão entre
suas crenças, e, portanto, não podem ser incluídos em seu corpo de conhecimento.

Deste modo, a condição de crença exige que qualquer pessoa que saiba
que p (onde “p” representa qualquer proposição ou declaração) deve acreditar
que p. Se, portanto, você não acredita que as mentes são cérebros
A condição de
(digamos, porque você nunca chegou a considerar o assunto),
crença exige que
então você não sabe que as mentes são cérebros. Um conhecedor qualquer pessoa
deve estar psicologicamente relacionado de alguma forma a uma que saiba que p
proposição que é objeto de conhecimento para aquele conhecedor. (onde “p” representa
Os defensores da análise padrão sustentam que somente a crença qualquer proposição
pode fornecer a relação psicológica necessária (MIGUENS, 2009). ou declaração) deve
acreditar que p.
Os filósofos não compartilham uma explicação uniforme da crença,
mas algumas considerações fornecem um terreno comum. As crenças não são
ações de assentimento para uma proposição. Elas são estados psicológicos
disposicionais que podem existir mesmo quando não manifestados (BONJOUR;
BAKER, 2010). Por exemplo, você não deixa de acreditar que 2+2=4 sempre que
sua atenção deixa a aritmética. Nossa crença que p parece exigir que tenhamos
uma tendência para assentir a p em certas situações, mas parece também ser
mais do que apenas essa tendência. O que mais a crença requer continua muito
controverso entre os filósofos.

Alguns filósofos, como Radford (1966), Schwitzgebel (2015), Rose e Schaffer


(2013), opuseram-se à condição de crença da análise padrão com base no fato
de que podemos aceitar ou assentir a uma proposição conhecida sem realmente
acreditar nela. Eles afirmam que podemos aceitar uma proposição mesmo que não
consigamos adquirir uma tendência, exigida pela crença, de aceitar essa proposição
em determinadas situações. Nesta visão, a aceitação é um ato psicológico
que não envolve qualquer estado psicológico disposicional, e tal Nosso conceito
aceitação é suficiente para relacionar psicologicamente um conhecedor de conhecimento
a uma proposição conhecida (RODRIGUES, 2013). Independente do requer que um
desempenho deste ponto de vista, uma suposição subjacente da análise conhecedor esteja
de alguma forma
padrão parece correta: nosso conceito de conhecimento requer que um
psicologicamente
conhecedor esteja de alguma forma psicologicamente relacionado a uma relacionado a
proposição conhecida (SMITH; SILVA FILHO, 2005; LANDESMAN, 2006; uma proposição
BRADLEY, 2015). Salvo essa exigência, encontraremos dificuldades conhecida
para explicar como os conhecedores possuem psicologicamente seu
conhecimento de proposições conhecidas.

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EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Mesmo se o conhecimento requer crença, a crença que p não requer


conhecimento que p, uma vez que a crença geralmente pode ser falsa. Esta
observação, familiar ao Teeteto de Platão (2001b), supõe que o conhecimento
tem uma condição de verdade. Na análise padrão, se você sabe que p, então é
verdade que p. Se, portanto, é falso que as mentes são cérebros, então você não
sabe que as mentes são cérebros. É, portanto, enganoso dizer, por exemplo, que
os astrônomos antes de Copérnico sabiam que a Terra é plana. Na melhor das
hipóteses, eles acreditavam justificadamente que eles sabiam disso.

Além disso, podemos observar que algumas crenças, aquelas que o indivíduo
ativamente processa, são chamadas de crenças ocorrentes. A maioria das crenças
de um indivíduo são não ocorrentes. Estas são crenças que o indivíduo tem como
plano de fundo, mas não são alvo de atenção em um determinado momento.
Correspondentemente, a maioria de nosso conhecimento é não ocorrente. Apenas
uma pequena quantidade do nosso conhecimento está sempre ativamente em
nossa mente (EYSENCK; KEANE, 2017).

b) A Condição de Verdade

O conhecimento, então, requer crença. Naturalmente, nem todas as crenças


constituem conhecimento. A crença é necessária, mas não suficiente para o
conhecimento. Todos nós, às vezes, nos enganamos no que cremos. Em outras
palavras, enquanto algumas de nossas crenças são verdadeiras, outras são
falsas. À medida que tentamos adquirir conhecimento, então, estamos tentando
aumentar nosso estoque de crenças verdadeiras, minimizando ao mesmo tempo
nossas crenças falsas.

Nosso conceito de Esta condição de verdade da análise padrão não atraiu para si
conhecimento parece nenhum desafio sério. A controvérsia sobre ela se concentrou, em vez
ter uma exigência
disso, na pergunta veemente de Pilatos: “O que é a verdade?” (BÍBLIA,
factual: sabemos
genuinamente que p João, 18, 38). Esta questão diz respeito sobre o que a verdade consiste
somente se é o caso e não sobre o nosso modo de descobrir o que é verdadeiro. As respostas
que p. influentes provêm de, pelo menos, três abordagens: a verdade como
correspondência (ou seja, o acordo, de algum tipo especificado,
entre uma proposição e uma situação real); a verdade como coerência (isto é, a
interconexão de uma proposição com um sistema especificado de proposições);
e a verdade como valor cognitivo pragmático (ou seja, a utilidade de uma
proposição para atingir certos objetivos intelectuais) (KIRHAM, 2003). Sem avaliar
essas abordagens proeminentes, devemos reconhecer, de acordo com a análise
padrão, que nosso conceito de conhecimento parece ter uma exigência factual:
sabemos genuinamente que p somente se é o caso que p. A noção pertinente
de "ser o caso" parece equivalente à noção de "como a realidade é" ou "como
as coisas realmente são". Esta última noção parece essencial à nossa noção de
conhecimento, mas está aberta à controvérsia sobre sua explicação.

18
Capítulo 1 Introdução à Epistemologia

Podemos dizer, então, que o propósito mais típico das crenças é descrever
ou apreender a maneira como as coisas realmente são. Isto é, quando se forma
uma crença busca-se uma correspondência entre a mente de alguém e o mundo
(BLACKBURN, 2006). Às vezes, é claro, formamos crenças por outras razões – criar
uma atitude positiva, enganar a nós mesmos, e assim por diante –, mas quando
buscamos o conhecimento, estamos tentando fazer as coisas de um modo específico.
Contudo, às vezes não conseguimos alcançar tal correspondência. Algumas de
nossas crenças não descrevem a maneira como as coisas realmente são.

Observe que estamos assumindo aqui que existe uma coisa como a
verdade objetiva, de modo que é possível que as crenças correspondam ou
não correspondam à realidade. Ou seja, para que alguém conheça algo deve
haver algo sobre o qual se conheça. Lembre-se de que estamos discutindo
conhecimento no sentido factivo. Se não há fatos da matéria, então não há nada
para conhecer (ou para deixar de conhecer). Esta suposição não é universalmente
aceita (DUTRA, 2001), em particular, não é compartilhada por alguns defensores
do relativismo, mas isso não será abordado neste momento. Contudo, podemos
dizer que a verdade é uma condição do conhecimento. Isto é, se uma crença não
é verdadeira, ela não pode constituir conhecimento. Por conseguinte, se não há
tal coisa como verdade, então não poderá haver conhecimento. Mesmo que haja
tal coisa como verdade, se existe um domínio no qual não há verdades, então
não pode haver conhecimento dentro desse domínio. Por exemplo, se a beleza
está no “olhar do espectador”, então a crença de que algo é bonito não pode ser
verdadeira ou falsa e, portanto, não pode constituir conhecimento.

c) A Condição de Justificação Nem todas as


crenças verdadeiras
constituem
O conhecimento, então, requer crença factual. No entanto, isso
conhecimento”
não basta para apreender a natureza do conhecimento. Assim como o (O’HEAR, 1997, p.
conhecimento requer alcançar com êxito o objetivo da crença verdadeira, 46). Somente as
também requer sucesso em relação à formação dessa crença. Em outras crenças verdadeiras
palavras, “nem todas as crenças verdadeiras constituem conhecimento” a que chegamos
(O’HEAR, 1997, p. 46). Somente as crenças verdadeiras a que chegamos de maneira
correta constituem
de maneira correta constituem conhecimento.
conhecimento.

Qual é, então, o caminho certo para chegar às crenças? Além da verdade,


quais outras propriedades uma crença deve ter para constituir o conhecimento?
Podemos começar observando que o raciocínio sadio e a evidência sólida
parecem ser a maneira de adquirir o conhecimento. Em contrapartida, um palpite
de sorte não pode constituir conhecimento. Da mesma forma, a desinformação e
o raciocínio falho não parecem uma receita para o conhecimento, mesmo se eles
levam a uma crença verdadeira. Diz-se que uma crença é justificada se for obtida
da maneira correta (NORRIS, 2007). Embora a justificação pareça, à primeira

19
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

vista, ser uma questão de uma crença estar baseada na evidência e no raciocínio,
e não na sorte ou na desinformação, veremos que há muito desacordo quanto à
forma de especificar os detalhes.

A exigência de que o conhecimento envolva justificação não significa


necessariamente que o conhecimento requer certeza absoluta. Os seres humanos
são seres falíveis, e o falibilismo é a visão de que é possível ter conhecimento
mesmo quando a crença verdadeira de alguém venha a ser confirmada como falsa
(RODRIGUES, 2013). Entre as crenças que são necessariamente verdadeiras e
aquelas que são verdadeiras unicamente pela sorte encontra-se um espectro de
crenças com relação ao qual nós temos alguma razão revogável para acreditar
que elas sejam verdadeiras. Por exemplo, se eu ouvi o meteorologista dizer que
há uma chance de 90% de chuva, e como resultado eu formo a crença de que vai
chover, então a minha crença verdadeira de que iria chover não era verdadeira
puramente por sorte. Mesmo que houvesse alguma chance de que minha
crença pudesse ter sido falsa, havia uma base suficiente para que essa crença
constituísse o conhecimento. Esta base é referida como a justificação para essa
crença. Podemos então dizer que, para constituir conhecimento, uma crença deve
ser verdadeira e justificada.

Observe que por causa da sorte, uma crença pode ser injustificada,
mas verdadeira. E por causa da falibilidade humana, uma crença pode ser
justificada, mas falsa (GRECO; SOSA, 2008). Em outras palavras, a verdade e
a justificação são duas condições independentes das crenças. O fato de uma
crença ser verdadeira não nos diz se ela é ou não justificada. Isso depende de
como chegamos a esta crença. Assim, duas pessoas podem ter a mesma crença
verdadeira, mas por razões diferentes, de modo que uma delas é justificada e
a outra é injustificada. Da mesma forma, o fato de que uma crença é
justificada não nos diz se é verdadeira ou falsa. É claro que uma crença
Algumas crenças
verdadeiras são justificada presumivelmente será mais provável de ser verdadeira do
apoiadas apenas que falsa, e crenças justificadas presumivelmente serão mais prováveis​​
por conjecturas com de serem verdadeiras do que crenças injustificadas (GOLDMAN,
sorte e, portanto, 1979). Como veremos mais adiante neste capítulo, a natureza exata da
não se qualificam relação entre verdade e justificação é contenciosa.
como conhecimento.
O conhecimento
requer que a Deste modo, podemos afirmar que o conhecimento não é
satisfação de simplesmente crença verdadeira. Como vimos, algumas crenças
sua condição verdadeiras são apoiadas apenas por conjecturas com sorte e, portanto,
de crença seja não se qualificam como conhecimento. O conhecimento requer
“apropriadamente que a satisfação de sua condição de crença seja "apropriadamente
relacionada” à
relacionada" à satisfação de sua condição de verdade. Esta é uma
satisfação de sua
condição de verdade maneira ampla de entender a condição de justificação da análise
padrão. Mais especificamente, poderíamos dizer que um conhecedor

20
Capítulo 1 Introdução à Epistemologia

deve ter indicação adequada de que uma proposição conhecida é verdadeira


(NORRIS, 2007). Se entendemos tal indicação adequada como uma espécie
de evidência que indica que uma proposição é verdadeira, alcançamos a visão
geral tradicional da condição de justificação: a justificação como evidência. As
perguntas sobre a justificação atraem a maior parte da atenção na epistemologia
contemporânea. A controvérsia centra-se no significado de "justificação", bem
como nas condições substantivas para uma crença ser justificada de uma forma
apropriada ao conhecimento.
 
Os debates atuais sobre o significado da "justificação" giram em torno da
questão de saber se (e se assim for, como) o conceito de justificação epistêmica
(relevante ao conhecimento) é normativo. Desde os anos 50, Roderick Chisholm
(1974) defendeu uma noção de justificação deontológica (orientada à obrigação/
dever). Podemos sintetizar essa noção na afirmação de que se uma proposição,
p, é epistemicamente justificada para você, significa que é falso que você
deva abster-se de aceitar p. Em outros termos, dizer que p é epistemicamente
justificado é dizer que aceitar p é epistemicamente permissível – pelo menos no
sentido de que aceitar p é consistente com certo conjunto de regras epistêmicas.
Essa interpretação deontológica goza de ampla representação na epistemologia
contemporânea. Uma concepção normativa da justificação não precisa ser
deontológica. Não precisa usar as noções de obrigação e permissão. Alston
(1989, 2008), por exemplo, introduziu um conceito normativo não deontológico
de justificação que se baseia principalmente na noção do que é epistemicamente
bom do ponto de vista de maximizar a verdade e minimizar a falsidade. Alston
vincula a bondade epistêmica a uma crença sendo baseada em fundamentos
adequados na ausência de razões imperativas que sejam contrárias.

Alguns epistemólogos esquivam-se das interpretações normativas da


justificação considerando-as supérfluas. Um ponto de vista digno de nota é
que "justificação epistêmica" significa simplesmente "suporte evidencial" de um
certo tipo. Dizer que p é epistemicamente justificável até certo ponto para você
é, nesta visão, apenas dizer que p é suportável em certa medida pelas suas
razões evidenciais. Essa concepção não será normativa desde que as
noções de suportabilidade e de razão evidencial sejam não normativas Podemos entender
a noção de uma
(CONEE; FELDMAN, 2004). Alguns filósofos tentaram explicar
“razão evidencial”
estas últimas noções sem depender dos relatos de permissibilidade através da noção
epistêmica ou de bondade epistêmica. Podemos entender a noção de um estado
relevante de "suporte" em termos de noções não normativas de psicológico que
vinculação e explicação (ou, respondendo questões de “por quê”). pode estar em uma
Podemos entender a noção de uma "razão evidencial" através da certa relação de
suporte indicadora
noção de um estado psicológico que pode estar em uma certa relação
de verdade às
de suporte indicadora de verdade às proposições (CARRILHO, 1991; proposições

21
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

OLIVA, 2011). Por exemplo, podemos considerar os estados não doxásticos de


"parecendo perceber" algo em virtude desses estados serem melhor explicados
por essas proposições. Se algo parecido com essa abordagem conseguir ser
bem-sucedido, poderíamos prosseguir sem as noções normativas de justificação
epistêmica mencionadas anteriormente.

Estados doxásticos e não doxásticos. Alberto Oliva (2011, p. 51-


52) esclarece:
O processo de justificação só pode ser dado por con-
cluído quando a evidência é conclusiva quando é impossível
para p ser falsa, dada a evidência e. O critério negativista,
socrático, que se devota a descartar crenças injustificadas ou
mal justificadas é insuficiente porque não pode ficar adstrito
à atividade de eliminar o pseudoconhecimento. Na busca de
uma teoria positiva da justificação, duas modalidades de fonte
de justificação são identificáveis: 1) a doxástica, aquela em
que para se justificar uma crença se recorre a outra crença ou
conjunto de crenças; e 2) a não doxástica, aquela em que não
se recorre a outra(s) crença(s) para se justificar determinadas
crenças. [...] São doxásticas as razões que promovem a justifi-
cação de uma crença com base em outra(s), e não doxásticas
quando se apoiam em registros perceptuais ou em intuições
racionais.

Atividades de Estudos:

1) Acabamos de ver as três condições para o conhecimento


proposicional como apresentado pela análise padrão ou teoria
tripartida do conhecimento. Descreva as características de
cada condição: crença, verdade e justificação. E comente
algumas dificuldades e desafios que as mesmas fazem emergir
em sua investigação.
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22
Capítulo 1 Introdução à Epistemologia

O Problema de Gettier
Por algum tempo, a teoria da crença verdadeira justificada foi amplamente aceita
como apreendendo a natureza do conhecimento. No entanto, em 1963, Edmund
Gettier publicou um artigo curto, mas amplamente influente, que deu forma a muitos
trabalhos subsequentes na epistemologia. Gettier (1963) forneceu dois exemplos
em que alguém tinha uma crença verdadeira e justificada, mas nos quais parece
negar que o indivíduo tenha de fato conhecimento, porque a sorte ainda parece
desempenhar um papel para que a sua crença tenha um resultado de ser verdadeira.

Considere um exemplo. Suponha que o relógio da faculdade (que mantém as


horas de modo preciso) parou de funcionar às 11h50min da noite passada, e ainda
não foi reparado. No meu caminho para a minha aula do meio-dia, exatamente doze
horas depois, eu olho para o relógio e formo a crença de que são 11h50min. Minha
crença é verdadeira, claro, desde que o horário seja de fato 11h50min. E minha crença
é justificada, pois não tenho nenhuma razão para duvidar de que o relógio esteja
funcionando, e não posso ser culpado por basear minhas crenças sobre o horário do
relógio. No entanto, parece evidente que eu não sei que o horário é 11h50min. Afinal,
se eu tivesse passado pelo relógio um pouco mais cedo ou um pouco mais tarde, eu
teria acabado formando uma crença falsa, em vez de uma verdadeira.
Os exemplos de
Este exemplo, embora talvez um tanto exagerado, parece mostrar tipo Gettier parecem
que é possível que a crença verdadeira justificada não consiga constituir mostrar que a
conhecimento. Em outras palavras, a condição de justificação destinava- crença verdadeira
se a assegurar que o conhecimento se baseasse em evidências sólidas justificada pode
ainda envolver
e não em sorte ou desinformação, mas os exemplos de tipo Gettier
sorte e, assim,
parecem mostrar que a crença verdadeira justificada pode ainda envolver ficar aquém do
sorte e, assim, ficar aquém do conhecimento. Esse problema é referido conhecimento
como "o problema de Gettier". Para resolver esse problema, devemos
mostrar que todos os casos de crença verdadeira justificada realmente constituem
conhecimento ou, ao contrário, refinar nossa análise do conhecimento.

Portanto, os contraexemplos tipo Gettier são casos em que uma pessoa


justificou a crença verdadeira que p mas não tem conhecimento de que p.
O problema de Gettier é o problema de encontrar uma modificação ou uma
alternativa para a análise padrão que evita dificuldades de contraexemplos tipo
Gettier. A controvérsia sobre o problema de Gettier é altamente complexa e ainda
não resolvida. Muitos epistemólogos consideram a lição dos contraexemplos estilo
Gettier que o conhecimento proposicional requer uma quarta condição, além da
justificação, da verdade e das condições de crença. Nenhuma quarta condição
específica recebeu aceitação esmagadora, mas algumas propostas tornaram-se
proeminentes. Vejamos a seguir um pouco dessas propostas para uma condição
adicional à análise padrão do conhecimento.
23
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Assista ao vídeo de Alexandre Meyer Luz sobre a definição de


conhecimento, respondendo à pergunta: O que é conhecer algo?
Este vídeo está disponibilizado no site: <https://www.youtube.com/
watch?v=0X8g6LOvsig>.

a) A Condição de Nenhuma Crença Falsa

Uma crença deve Podemos pensar que existe uma solução simples e direta para o
ser verdadeira problema Gettier. Observe que meu raciocínio foi tacitamente baseado
e justificada e na minha crença de que o relógio está funcionando corretamente, e
deve ser formada que essa crença é falsa. Isso parece explicar o que deu errado neste
sem depender de
exemplo. Consequentemente, poderíamos revisar nossa análise do
crenças falsas
conhecimento, insistindo que, para constituir conhecimento, uma crença
deve ser verdadeira e justificada e deve ser formada sem depender
de crenças falsas. Em outras palavras, poderíamos dizer que a justificação, a
verdade e a crença são todas necessárias para o conhecimento, mas elas não são
conjuntamente suficientes para o conhecimento. Há uma quarta condição, ou seja,
que nenhuma crença falsa esteja essencialmente envolvida no raciocínio que levou
à crença, o que também é necessário (BONJOUR; BAKER, 2010).

Infelizmente, isso não basta. Podemos modificar o exemplo para que minha
crença seja justificada e verdadeira, e não se baseie em crenças falsas, mas
ainda fica aquém do conhecimento. Tomemos o exemplo de Gettier, supracitado,
e o adaptemos a essa nova condição. Neste caso, suponha que eu não tenha
nenhuma crença sobre o estado atual do relógio, mas apenas a crença mais
geral de que o relógio geralmente está em funcionamento. Esta crença, que
é verdadeira, bastaria para justificar minha crença de que o horário é agora
11h50min. É claro, ainda parece evidente que eu não sei o horário.

b) A Condição da Ausência de Derrotadores Epistêmicos

A condição de nenhuma crença falsa não parece estar completamente


equivocada. Talvez possamos acrescentar alguma outra condição à justificação
e à verdade para produzir uma correta caracterização do conhecimento. Observe
que, mesmo que eu não tenha ativamente formado a crença de que o relógio está
funcionando corretamente, parece estar implícito no meu raciocínio, e o fato de
que é falso é certamente relevante para o problema. Afinal, se me perguntassem,
no momento em que olhei para o relógio, se ele está funcionando corretamente,
eu teria dito que sim. Por outro lado, se eu acreditasse que o relógio não estava

24
Capítulo 1 Introdução à Epistemologia

funcionando corretamente, eu não estaria justificado em formar uma crença sobre


o tempo baseado no que o relógio diz.

Em outras palavras, a proposição de que o relógio está Para constituir o


funcionando corretamente agora reúne as seguintes condições: é uma conhecimento,
proposição falsa, eu não percebo que é uma proposição falsa, e se eu uma crença deve
tivesse percebido que é uma proposição falsa, minha justificação para ser verdadeira e
justificada, e não
a minha crença de que é 11h50min teria sido anulada ou derrotada. Se
deve haver qualquer
denominarmos proposições como essas de "derrotadores epistêmicos", derrotador epistêmico
então podemos dizer que para constituir o conhecimento, uma crença para a justificação
deve ser verdadeira e justificada, e não deve haver qualquer derrotador dessa crença
epistêmico para a justificação dessa crença (OLIVEIRA, 2016). Muitos
epistemólogos acreditam que esta análise está correta.

c) Explicações Causais do Conhecimento

Em vez de modificar a explicação da crença verdadeira justificada do


conhecimento, adicionando uma quarta condição, alguns epistemólogos veem o
problema de Gettier como motivo para buscar uma alternativa substancialmente
diferente. Já observamos que o conhecimento não deve envolver sorte, e que
os exemplos de tipo Gettier são aqueles em que a sorte desempenha
algum papel na formação de uma crença verdadeira justificada. Em Para constituir
casos típicos de conhecimento, os fatores responsáveis ​​por justificar conhecimento,
uma crença também são responsáveis ​​ pela verdade desta crença uma crença deve
(GOLDMAN, 1967). Por exemplo, quando o relógio está funcionando ser verdadeira
corretamente, minha crença é verdadeira e justificada porque é baseada e justificada, e
sua verdade e
no relógio, que exibe com precisão o tempo. Mas uma característica
justificação devem
que todos os exemplos do tipo Gettier têm em comum é a falta de uma estar conectadas de
conexão clara entre a verdade e a justificação da crença em questão. alguma forma.
Por exemplo, a minha crença de que o horário é 11h50min é justificada
porque é baseada no relógio, mas é verdade porque eu passei por ele no momento
certo. Assim, podemos insistir que para constituir conhecimento, uma crença deve
ser verdadeira e justificada, e sua verdade e justificação devem estar conectadas
de alguma forma.

Essa noção de conexão entre a verdade e a justificação de uma crença


se torna difícil de formular com precisão, mas as explicações causais do
conhecimento procuram apreender o espírito dessa proposta alterando mais
significativamente a análise do conhecimento (NORRIS, 2007). Essas explicações
sustentam que, para que alguém conheça uma proposição, deve haver uma
conexão causal entre sua crença nessa proposição e o fato que a proposição
encapsula. Isso mantém a condição de verdade, uma vez que uma proposição
deve ser verdadeira para que ela possa encapsular um fato. No entanto, parece

25
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

ser incompatível com o falibilismo, uma vez que não permite a possibilidade de
que uma crença seja justificada, mas falsa. Estritamente falando, as explicações
causais do conhecimento não fazem referência à justificação, embora possamos
tentar reformular o falibilismo para fazer essa observação. Collier demonstra isso
em sua crítica ao artigo de Alvin Goldman (1967), no qual Goldman apresenta a sua
teoria causal do conhecimento. Kenneth Collier (1973) encontrou uma lacuna na
teoria causal do conhecimento elaborando um contraexemplo. O autor argumenta
(COLLIER, 1973), suponha que um sujeito tenha sido, sem que ele soubesse,
tratado com uma droga alucinógena. Se o alucinógeno fizer o sujeito pensar que
ele está sendo drogado, então (de acordo com a teoria causal) o sujeito sabe que
ele está sendo drogado. Collier sustenta que essa é uma conclusão inaceitável, e
que alucinações desse tipo, ou "alucinações verídicas", não é conhecimento, mas
apenas crença verdadeira.

Mesmo que os relatos causais do conhecimento já não sejam considerados


corretos, eles engendraram teorias confiabilistas do conhecimento, que serão
discutidas mais adiante.

Em suma, o problema de Gettier é epistemologicamente importante.


Qualquer ramo da epistemologia procura um entendimento preciso da natureza
(por exemplo, os componentes essenciais) do conhecimento proposicional
(FUMERTON, 2014). Deste modo, nosso entendimento preciso do conhecimento
proposicional requer que tenhamos uma análise desse conhecimento à prova
do problema de Gettier. Os epistemólogos precisam, portanto, de uma solução
defensável para o problema de Gettier, por mais complexa que seja a solução.

Atividades de Estudos:

1) Os problemas ou casos de Gettier possuem um lugar especial


na investigação epistemológica do conhecimento proposicional.
Explique o que é o problema de Gettier e esclareça a sua
importância para a epistemologia contemporânea.
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26
Capítulo 1 Introdução à Epistemologia

A Natureza da Justificação
Uma das razões pelas quais o problema de Gettier é seja confuso é que
nem Gettier, nem ninguém que o precedeu, ofereceu uma análise suficientemente
clara e precisa da justificação. Dissemos que a justificação é uma questão de uma
crença ter sido formada da maneira correta, mas ainda temos que dizer o que isso
significa. Devemos agora considerar este assunto mais de perto.

Observamos que o objetivo de nossas práticas de formação de crenças é


obter a verdade evitando o erro e que a justificação é a característica das crenças
que são formadas de modo a perseguir melhor essa meta. Se pensarmos, então,
no objetivo de nossas práticas de formação de crenças como uma tentativa de
estabelecer uma correspondência entre a mente de alguém e o mundo, e se
pensarmos também na aplicação ou na retenção da condição de justificação
como uma avaliação de se este encaixe foi obtido da maneira correta, então
parece haver duas abordagens óbvias para interpretar a justificação. Ou seja, em
termos da mente do sujeito que crê ou em termos do mundo, ou seja, em termos
de internalismo ou externalismo (KORNBLITH, 2001).

Geralmente, quando uma pessoa sabe alguma proposição, ela faz isso com
base em alguma evidência, ou boas razões, ou talvez algumas experiências que
ela teve. O mesmo é verdade para crenças justificadas que podem ficar aquém
do conhecimento. Essas crenças são justificadas com base em alguma evidência,
ou boas razões, ou experiências, ou talvez com base na maneira pela qual as
crenças foram produzidas (ROLLA, 2013).

O internalismo, em primeira instância, é uma tese sobre a base


do conhecimento ou da crença justificada. Esta primeira forma de Primeira forma
internalismo sustenta que uma pessoa tem ou pode ter uma forma de de internalismo
acesso à base do conhecimento ou crença justificada. A ideia-chave é sustenta que uma
que a pessoa ou é ou pode estar ciente desta base. Os externalistas, pessoa tem ou pode
ter uma forma de
pelo contrário, negam que se possa sempre ter esse tipo de acesso
acesso à base do
à base do conhecimento e da crença justificada. Uma segunda forma
conhecimento ou
de internalismo, ligada apenas à crença justificada, mas provavelmente crença justificada.
extensível ao conhecimento também, não diz respeito ao acesso, mas
sim à base de uma crença justificada. Mentalismo é a tese de que o que Externalistas negam
finalmente justifica qualquer crença é algum estado mental do agente que se possa
epistêmico sustentando essa crença (CONEE; FELDMAN, 2001). O sempre ter esse tipo
externalismo nessa dimensão, então, seria a visão de que algo diferente de acesso à base do
conhecimento e da
dos estados mentais funciona como justificadores. Uma terceira forma
crença justificada.
de internalismo diz respeito ao próprio conceito de justificação, e não
ao acesso ou à natureza dos justificadores. Esta terceira forma de internalismo é
o conceito deontológico de justificação, cuja ideia principal é que o conceito de

27
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

justificação epistêmica deve ser analisado em termos de cumprimento de deveres


ou responsabilidades intelectuais. O externalismo com respeito ao conceito de
justificação epistêmica seria a tese de que este conceito deve ser analisado em
termos diferentes de deveres ou responsabilidades especiais (ROLLA, 2013;
KORNBLITH, 2001).

a) Internalismo

A crença é um estado mental, e a formação de crenças é um processo


Tal visão, que mental. Consequentemente, pode-se raciocinar que, se uma crença pode
sustenta que a estar ou não justificada – se ela é formada do modo correto – isso pode
justificação depende ser determinado examinando os processos de pensamento do sujeito
unicamente de que crê durante a formação da sua crença. Tal visão, que sustenta que a
fatores internos à justificação depende unicamente de fatores internos à mente do crente, é
mente do crente,
chamada de internalismo (MIGUENS, 2009). O termo "internalismo" tem
é chamada de
internalismo significados diferentes em outros contextos, aqui, será usado estritamente
para se referir a esse tipo de visão sobre a justificação epistêmica.

De um modo geral, as concepções internalistas de justificação epistêmica


exigem que a justificação de uma crença seja interna ao crente de alguma forma.
Duas principais variedades de internalismo epistêmico sobre a justificação são
o internalismo de acesso e o internalismo ontológico (VALCARENGHI, 2008).
Os internalistas de acesso exigem que um crente tenha acesso interno ao(s)
justificador(es) de sua crença p, a fim de se justificar em acreditar p. Para o internalista
de acesso, justificação equivale a algo como o crente estar ciente (ou capaz de estar
ciente) de certos fatos que fazem sua crença em p racional, ou ela ser capaz de
dar razões para sua crença em p. No mínimo, o internalismo de acesso requer que
o crente tenha algum tipo de acesso reflexivo ou consciência a qualquer coisa que
justifique sua crença. O internalismo ontológico é a visão de que a justificação de uma
crença é estabelecida pelos estados mentais de cada um. O internalismo ontológico
pode ser distinto do internalismo de acesso, mas os dois são muitas vezes pensados
como ​​sendo concordantes, uma vez que são geralmente considerados capazes de
ter acesso reflexivo aos estados mentais (KORNBLITH, 2001).

Assim, de acordo com o internalismo, os únicos fatores que são relevantes


para a determinação de se uma crença é justificada são os outros estados mentais
do crente. Afinal de contas, um internalista argumentará, apenas os estados
mentais de um indivíduo – suas crenças sobre o mundo, seus inputs sensoriais (por
exemplo, seus dados sensoriais) e suas crenças sobre as relações entre suas várias
crenças – podem determinar quais novas crenças ele irá formar. Então somente os
estados mentais de um indivíduo podem determinar se alguma crença particular é
justificada. Em particular, para ser justificada, uma crença deve ser adequadamente
baseada ou apoiada por outros estados mentais (KORNBLITH, 2001).

28
Capítulo 1 Introdução à Epistemologia

Isso levanta a questão do que constitui a base ou relação de apoio


Uma elaboração
entre uma crença e os outros estados mentais. Podemos dizer que, sobre o que conta
para que a crença “X” seja devidamente baseada na crença “Y” (ou como uma boa
crenças Y1 e Y2, ou Y1, Y2 e ... Yn), a verdade de Y deve ser suficiente razão para a crença,
para estabelecer a verdade de X. Em outras palavras, Y deve implicar portanto, é uma parte
X. Vamos considerar a relação entre crenças e inputs sensoriais mais essencial de qualquer
explicação internalista
adiante. No entanto, se quisermos permitir a nossa falibilidade, devemos
da justificação.
dizer que a verdade de Y oferece uma boa razão para acreditamos que
X também é verdadeira, tornando plausível ou provável que X seja verdadeira. Uma
elaboração sobre o que conta como uma boa razão para a crença, portanto, é uma
parte essencial de qualquer explicação internalista da justificação.

No entanto, há uma condição adicional que devemos acrescentar: a crença


Y deve ser ela mesma justificada, uma vez que crenças injustificadas não
podem conferir justificação a outras crenças. Porque a crença Y deve também
ser justificada, deve haver alguma crença justificada Z em que Y é baseada?
Se assim for, Z deve ser justificada, e pode derivar sua justificação de alguma
outra crença justificada, W. Esta corrente de crenças derivando sua justificação
de outras crenças pode continuar para sempre, levando-nos em uma regressão
infinita (LANDESMAN, 2006). Embora a ideia de uma regressão infinita possa
parecer preocupante, as formas primárias de evitar tal regressão podem ter seus
próprios problemas também. Isso levanta o "problema da regressão", que começa
a partir da observação de que há apenas quatro possibilidades quanto à estrutura
das crenças justificadas de um indivíduo:

1) A série de crenças justificadas, cada uma baseada na outra, continua


infinitamente.
2) A série de crenças justificadas circula de volta ao seu início (X é baseada
em Y, Y em Z, Z em W, e W em X).
3) A série de crenças justificadas começa com uma crença injustificada.
4) A série de crenças justificadas começa com uma crença que é justificada,
mas não em virtude de basear-se em outra crença justificada.

Essas alternativas parecem esgotar as possibilidades. Ou seja, se alguém


tem alguma crença justificada, uma dessas quatro possibilidades deve descrever
as relações entre essas crenças. Como tal, uma explicação internalista completa
da justificação deve decidir entre as quatro possibilidades.

b) Fundacionalismo

Consideremos cada uma das quatro possibilidades mencionadas


anteriormente. A alternativa 1 parece inaceitável porque a mente humana pode
conter apenas um número finito de crenças, e qualquer processo de pensamento

29
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

que leve à formação de uma nova crença deve ter algum ponto de partida. A
alternativa dois parece não ser melhor, já que o raciocínio circular parece ser
falacioso. E a alternativa três já foi descartada, uma vez que torna a segunda
crença na série (e, portanto, todas as crenças subsequentes) injustificada. Isso
deixa a alternativa quatro, que deve, por processo de eliminação, estar correta.

Essa linha de raciocínio, tipicamente conhecida como argumento de regressão,


leva à conclusão de que existem dois tipos diferentes de crenças justificadas: aquelas
que começam uma série de crenças justificadas e aquelas que se baseiam
O fundacionalismo em outras crenças justificadas. As primeiras, chamadas de crenças
implica que há uma básicas, são capazes de conferir justificação a outras crenças não básicas,
relação assimétrica sem que elas mesmas tenham sua justificação conferida por outras
entre quaisquer crenças. Como tal, há uma relação assimétrica entre crenças básicas e
duas crenças: se
não básicas. Essa visão da estrutura da crença justificada é conhecida
A é baseado em B,
então B não pode como "fundacionalismo" (NORRIS, 2007). Em geral, o fundacionalismo
ser baseado em A. implica que há uma relação assimétrica entre quaisquer duas crenças: se
A é baseado em B, então B não pode ser baseado em A.

Consequentemente, segue-se que pelo menos algumas crenças (ou seja,


crenças básicas) são justificadas de alguma maneira, exceto por meio de uma
relação com outras crenças. As crenças básicas devem ser autojustificadas,
ou devem derivar sua justificação de alguma fonte não doxástica, como inputs
sensoriais (OLIVA, 2011). A fonte exata da justificação das crenças básicas
precisa ser explicada por qualquer explicação fundacionalista da justificação que
pretenda ser completa.

c) Coerentismo

Os internalistas podem estar insatisfeitos com o fundacionalismo, já que


permite a possibilidade de crenças justificadas sem se basear em outras crenças.
Uma vez que foi a nossa solução para o problema de regressão que nos levou
ao fundacionalismo, e uma vez que nenhuma das alternativas parece
palatável, podemos procurar uma falha no problema em si. Observe
sustentar que as
crenças derivam que o problema é baseado em uma suposição fundamental, mas até
sua justificação então não declarada: a saber, que a justificação é de estilo linear. Ou
por inclusão em seja, a afirmação do problema de regressão pressupõe que a relação
um conjunto de de base é paralela a um argumento lógico, com uma crença baseada
crenças que em uma ou mais crenças de forma assimétrica (MIGUENS, 2009).
possuem coesão
umas com as outras
Assim, um internalista que considera o fundacionalismo
como um todo. Um
proponente de tal problemático pode negar essa suposição, sustentando que a justificação
visão é chamado um é o resultado de uma relação holística entre crenças. Ou seja, pode-se
coerentista sustentar que as crenças derivam sua justificação por inclusão em um

30
Capítulo 1 Introdução à Epistemologia

conjunto de crenças que possuem coesão umas com as outras como um todo.
Um proponente de tal visão é chamado um coerentista (RODRIGUES, 2013).

A justificação para os coerentistas estabelece uma relação de apoio mútuo


entre muitas crenças, ao invés de uma série de crenças assimétricas. Uma crença
deriva sua justificação, de acordo com o coerentismo, não por ser baseada em
uma ou mais crenças, mas em virtude de sua participação em um conjunto de
crenças que se encaixam do modo certo. O coerentista precisa especificar o que
constitui a coerência, é claro, deve ser algo mais do que a consistência lógica,
já que duas crenças não relacionadas podem ser consistentes. Por isso, deve
haver alguma relação positiva de apoio. Por exemplo, algum tipo de relação
explicativa entre os membros de um conjunto coerente para que as crenças sejam
individualmente justificadas.

O coerentismo é vulnerável ao que chamamos de "objeção de isolamento"


(BONJOUR, BAKER, 2010). Isso indica que há a possibilidade de que um conjunto
de crenças tido como coerente, ou uma crença deste conjunto, esteja isolado da
realidade. Considere, por exemplo, um trabalho de ficção. Todas as declarações
no trabalho de ficção podem formar um conjunto coerente, mas presumivelmente
acreditar em todas as declarações, e somente nas declarações, de uma obra
de ficção não irá tornar alguém justificado. Na verdade, qualquer forma de
internalismo parece vulnerável a essa objeção e, portanto, uma explicação
internalista da justificação que seja completa deve abordá-la. Lembre-se de que a
justificação requer uma correspondência entre a mente e o mundo, e uma ênfase
desmedida nas relações entre as crenças na mente parece ignorar a questão de
saber se essas crenças correspondem à maneira como as coisas realmente são.

d) Fundacionalismo Versus Coerentismo

Ao falar de indicadores fundamentais de verdade nos leva a uma controvérsia-


chave sobre a justificação: a justificação epistêmica, e, portanto, o conhecimento,
tem fundamentos e, em caso afirmativo, em que sentido? Esta questão pode
ser esclarecida como a questão de se algumas crenças não só podem (a) ter
sua justificação epistêmica de forma não inferencial (isto é, à parte do suporte
evidencial de outras crenças), mas também (b) fornecer justificação epistêmica
para todas as crenças justificadas que carecem dessa justificativa não inferencial.
O fundacionalismo, como descrito acima, oferece uma resposta afirmativa a
esta edição, e é representado em diversas maneiras, por exemplo, Aristóteles,
Descartes, Russell, C. I. Lewis, e Chisholm (NORRIS, 2007).

Os fundacionistas não compartilham de uma explicação uniforme da


justificativa não inferencial. Alguns epistemólogos, como Bonjour (1978) e
Sellars (2008), interpretam a justificação não inferencial como autojustificação.

31
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Outros rejeitam a autojustificação literal das crenças e argumentam que as


crenças fundacionais têm sua justificação não inferencial em virtude do suporte
evidencial dos vereditos de estados psicológicos de não-crença. Estados estes
como a percepção (estados de “aparentemente-perceber”) – posição defendida
pelo epistemólogo Alston (2008), como a sensação (estados de "aparentemente-
sentir") – posição defendida por MacGrew (2003), ou como a memória (estados de
"aparentemente-lembrar") – posição defendida por Audi (2002, 2003). Outros ainda
entendem a justificação não inferencial em termos de uma crença que é "produzida
de forma confiável" (GOLDMAN, 1967, 1979), ou seja, causada e sustentada por
algum processo (sendo este processo não dependente da crença, não-crença)
ou fonte de crença (por exemplo, percepção, memória, introspecção) que tende
a produzir crenças verdadeiras e não crenças falsas. Esta última
Os fundacionistas
visão assume a fonte causal de uma crença como sendo crucial para
contemporâneos
separam claramente a sua justificação (GUIMARÃES, 2009). Ao contrário de Descartes, os
as reivindicações fundacionistas contemporâneos separam claramente as reivindicações
à justificação à justificação fundacional não inferencial daquelas reivindicações
fundacional não à certeza. Eles geralmente se contentam com um fundacionalismo
inferencial daquelas modesto, o que implica que crenças fundamentais não precisam ser
reivindicações à
indubitáveis ​​e infalíveis. Isso contrasta com o fundacionalismo radical de
certeza.
Descartes (RODRIGUES, 2013; BONJOUR, 2008; SARTORI, 2006).

O FUNDACIONALISMO DE RENÉ DESCARTES

O fundacionalismo moderno foi iniciado pelo filósofo francês


moderno René Descartes. Em suas Meditações (2004), Descartes
desafiou os princípios contemporâneos da filosofia, argumentando
que tudo o que ele tinha aprendido a partir ou através de seus
sentidos era dubitável. Ele usou vários argumentos para desafiar
a confiabilidade dos sentidos, citando erros perceptivos e as
possibilidades de estar sonhando ou sendo enganado por um
Demônio do Mal. Descartes (2002) tentou estabelecer as fundações
seguras para o conhecimento para evitar o ceticismo. Ele contrastou
a informação fornecida pelos sentidos, que é incerta e imprecisa,
com as verdades da geometria, que são claras e distintas. As
verdades geométricas são também certas e indubitáveis. Descartes
tentou assim encontrar verdades claras e distintas porque seriam
indubitavelmente verdadeiras e um fundamento adequado para o
conhecimento. O seu método era questionar todas as suas crenças
até que ele alcançasse algo claro e distinto que fosse indubitavelmente
verdadeiro. O resultado foi seu cogito ergo sum - “penso, logo, sou”,

32
Capítulo 1 Introdução à Epistemologia

ou a crença de que ele estava pensando – sua convicção indubitável


apropriada como fundamento para o conhecimento. Isso resolveu
o problema de Descartes do Demônio do Mal – a possibilidade de
que ele estava sendo enganado por um Demônio do Mal, tornando
falsas todas as suas crenças sobre o mundo externo. Mesmo que
suas crenças sobre o mundo externo fossem falsas, suas crenças
sobre o que ele estava experimentando ainda eram indubitavelmente
verdadeiras, mesmo se essas percepções não se relacionassem
com nada no mundo.

Como vimos anteriormente, o concorrente tradicional do fundacionalismo


é a teoria coerentista da justificação, isto é, o coerentismo episódico. Esta
teoria não é a definição de coerência da verdade propriamente dita. É a visão
de que a justificação de qualquer crença depende dessa crença ter suporte
evidencial de alguma outra crença através de relações de coerência, tais como
vinculação ou relações explanatórias. Proponentes notáveis desta teoria ​​incluem
Hegel, Bosanquet e Sellars (GRECO; SOSA, 2008). Uma proeminente versão
contemporânea do coerentismo epistêmico afirma que as relações de coerência
evidencial entre crenças são tipicamente relações explanatórias. A ideia, a grosso
modo, é que uma crença é justificada para você desde que melhor explique ou
seja melhor explicada por algum membro do sistema de crenças que tem poder
explanatório máximo para você. O coerentismo contemporâneo é uniformemente
sistêmico ou holístico. Ele encontra a fonte última de justificação em um sistema
de crenças ou crenças potenciais interconectadas (COSTA, 2002).

Assim o problema do argumento do isolamento continua preocupando


todas as versões do coerentismo que visam explicar a justificação empírica.
Vimos que de acordo com esse argumento, o coerentismo implica que você
pode estar epistemicamente justificado em aceitar uma proposição empírica que
é incompatível, ou pelo menos improvável, com sua evidência empírica total. A
suposição-chave desse argumento é que a sua evidência empírica
O coerentismo
total inclui os estados de consciência (de não-crença) sensoriais e
epistêmico, por
perceptivos, como a sua sensação de dor ou o aparentemente ver definição, faz da
alguma coisa. Estes não são estados de crença. O coerentismo justificação uma
epistêmico, por definição, faz da justificação uma função unicamente função unicamente de
de relações de coerência entre proposições, tais como as proposições relações de coerência
que o sujeito crê ou aceita. Assim, esse coerentismo parece isolar a entre proposições,
tais como as
justificação da importação evidencial de estados de consciência de
proposições que o
não-crença. Os coerentistas tentaram lidar com este problema, mas sujeito crê ou aceita
nenhuma resolução recebeu uma aceitação ampla.

33
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

e) Externalismo

Podemos pensar que focar unicamente em fatores internos à mente do sujeito


que crê conduzirá inevitavelmente a uma explicação equivocada da justificação.
A alternativa, então, é que pelo menos alguns fatores externos à mente do crente
determinem se ele está ou não justificado em acreditar. Um proponente de tal
visão é chamado de externalista (NORRIS, 2007).

As visões externalistas da justificação emergiram na epistemologia


As concepções durante o final do século XX. As concepções externalistas da
externalistas justificação afirmam que fatos externos ao crente podem servir como
da justificação
justificação para uma crença. De acordo com o externalista, um crente
afirmam que fatos
externos ao crente não precisa ter qualquer acesso interno ou compreensão cognitiva
podem servir como de quaisquer razões ou fatos que tornam sua crença justificada. A
justificação para avaliação da justificação do externalista pode ser contrastada com o
uma crença internalismo de acesso, que exige que o crente tenha acesso reflexivo
interno a razões ou fatos que corroborem sua crença para justificar-se
em mantê-la. O externalismo, por outro lado, sustenta que a justificativa para a
crença de alguém pode vir de fatos que são inteiramente externos à consciência
subjetiva do agente (ROLLA, 2013).

De acordo com o externalismo, a única maneira de evitar a objeção de


isolamento e garantir que o conhecimento não inclui a sorte é considerar alguns
fatores diferentes das outras crenças do indivíduo. Que fatores, então, devem
ser considerados? A versão mais proeminente do externalismo, chamada de
confiabilismo, sugere que devemos considerar a fonte de uma crença (OLIVA,
2011). Crenças podem ser formadas como resultado de muitas fontes diferentes,
tais como experiência sensorial, razão, testemunho, memória. Mais precisamente,
poderíamos especificar qual o sentido perceptivo usado, quem forneceu o
testemunho, que tipo de raciocínio é usado, ou quão recente é a memória
relevante (GUIMARÃES, 2009). Para cada crença, podemos indicar o processo
cognitivo que levou à sua formação.

Alvin Goldman é um dos mais famosos proponentes do externalismo na


epistemologia, conhecido por desenvolver o confiabilismo. Em seu
O confiabilismo artigo "O que é crença justificada?" (1979), Goldman caracteriza a
sustenta que se uma concepção confiabilista da justificação. O autor referido observa que um
crença é ou não processo confiável de formação de crenças é aquele que geralmente
justificada depende produz crenças verdadeiras.
se esse processo
de formação de
Então, em sua forma mais simples e mais direta, o confiabilismo
crenças é uma fonte
confiável de crenças sustenta que se uma crença é ou não justificada depende se
verdadeiras esse processo de formação de crenças é uma fonte confiável de

34
Capítulo 1 Introdução à Epistemologia

crenças verdadeiras (BRANDON, 2013). Uma vez que estamos buscando uma
correspondência entre a nossa mente e o mundo, crenças justificadas são aquelas
que resultam de processos que regularmente alcançam tal correspondência.
Assim, por exemplo, usar a visão para determinar a cor de um objeto bem
iluminado e relativamente próximo é um processo confiável de formação de
crenças para uma pessoa com visão normal, mas não para uma pessoa daltônica.
Formar crenças com base no testemunho de um especialista é susceptível de
produzir crenças verdadeiras, mas formar crenças com base no testemunho de
mentirosos compulsivos não é. Em geral, se uma crença é o resultado de um
processo cognitivo que confiavelmente (a maior parte do tempo – ainda queremos
deixar espaço para a falibilidade humana) conduz a crenças verdadeiras, então
essa crença é justificada.

Os exemplos acima começam a delinear um desafio ao confiabilismo, na


medida em que mesmo sendo a formação de uma crença um evento único, a
confiabilidade do processo depende do desempenho a longo prazo desse processo.
Por exemplo, uma moeda que é jogada apenas uma vez e cai com a cara para
cima, tem, no entanto, 50% de chance de cair com a coroa para cima, mesmo que
o seu desempenho real tenha rendido a cara 100% do tempo. E isso requer que
especifiquemos qual processo está sendo usado, para que possamos avaliar seu
desempenho em outras instâncias. No entanto, os processos cognitivos podem
ser descritos em termos mais ou menos gerais: por exemplo, o mesmo processo
de formação de crenças pode ser descrito de várias maneiras como experiência
sensorial, visão, visão de uma pessoa com visão normal, visão de uma pessoa com
visão normal à luz do dia, visão de uma pessoa com visão normal na luz do dia ao
olhar uma árvore, visão de uma pessoa com visão normal na luz do dia ao olhar uma
araucária, e assim por diante. O "problema da generalidade" observa que algumas
dessas descrições podem especificar um processo confiável, mas outras podem
especificar um processo não confiável, de modo que não podemos saber se uma
crença é justificada ou injustificada, a menos que conheçamos o nível apropriado
de generalidade para descrever o processo (LUZ, 2005).

Mesmo que o problema da generalidade possa ser resolvido, resta


outro problema para o externalismo. Keith Lehrer (2000) apresenta
Um processo
este problema por meio de seu exemplo do Sr. Truetemp. Truetemp cognitivo confiável
tem, sem o seu conhecimento, um “tempucomp” – um dispositivo que não pode render
lê com precisão a temperatura e causa uma crença espontânea sobre justificação a menos
essa temperatura – implantado em seu cérebro. Como resultado, ele que o crente esteja
tem muitas crenças verdadeiras sobre a temperatura, mas ele não sabe ciente do fato de
que o processo é
por que ele tem ou qual é a sua fonte. Lehrer argumenta que, embora
confiável.
o processo de formação de crenças do Truetemp seja confiável, sua
ignorância do tempucomp torna suas crenças de temperatura injustificadas e,
portanto, que um processo cognitivo confiável não pode render justificação a

35
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

menos que o crente esteja ciente do fato de que o processo é confiável. Em outras
palavras, o simples fato de que o processo é confiável não basta, conclui Lehrer,
para justificar quaisquer crenças que são formadas por meio desse processo.

f) Teorias Causais e Contextualistas

Alguns epistemólogos contemporâneos endossam o


contextualismo em relação à justificação epistêmica, uma visão
Em qualquer
sugerida por Dewey, Wittgenstein e Kuhn, entre outros (GRECO;
contexto de
investigação, SOSA, 2008). Nesta visão, todas as crenças justificadas dependem
as pessoas de seu suporte evidencial em algumas crenças injustificadas que
simplesmente não precisam de justificação. Em qualquer contexto de investigação,
assumem (a as pessoas simplesmente assumem (a aceitabilidade de) algumas
aceitabilidade proposições como pontos de partida para a investigação, e essas
de) algumas
proposições "contextualmente básicas", embora sem apoio evidencial,
proposições como
pontos de partida podem servir como suporte evidencial para outras proposições.
para a investigação, Os contextualistas enfatizam que as proposições contextualmente
e essas proposições básicas podem variar de contexto para contexto (por exemplo, da
“contextualmente investigação teológica à investigação biológica) e de grupo social
básicas”, embora para grupo social (DEROSE, 2008; RODRIGUES, 2013). O principal
sem apoio
problema para os contextualistas vem de sua visão de que suposições
evidencial, podem
servir como suporte injustificadas podem fornecer a justificação epistêmica para outras
evidencial para proposições. Precisamos de uma explicação precisa de como uma
outras proposições. suposição injustificada pode render suporte evidencial, como uma
crença não provável pode fazer outra crença provável. Neste aspecto
os contextualistas ainda não ofereceram uma explicação uniforme.

Como já referimos anteriormente, na seção sobre explicações causais do


conhecimento, alguns epistemólogos recomendaram que desistíssemos da
tradicional condição de evidência para o conhecimento. Eles recomendam que
interpretemos a condição de justificação como uma condição causal, a qual
comentamos na seção sobre os problemas de tipo Gettier (GOLDMAN, 1967). A
grosso modo, a ideia é que você sabe que p se é somente se (a) você acredita
que p, (b) p é verdadeiro, e (c) sua crença de que p é causalmente produzida
é sustentada pelo fato que torna p verdadeiro. Esta é a base da teoria causal
do conhecimento, que vem com detalhes variados. Qualquer teoria causal
enfrenta sérios problemas do nosso conhecimento de proposições universais.
Evidentemente, sabemos, por exemplo, que todos os dicionários são produzidos
por pessoas, mas nossa crença de que isso é assim parece não estar causalmente
suportada pelo fato de que todos os dicionários são humanamente produzidos.
Não é claro que este último fato causalmente produz qualquer crença.

36
Capítulo 1 Introdução à Epistemologia

Outro problema é que as teorias causais geralmente negligenciam o


que parece ser crucial para qualquer explicação da condição de justificação: a
exigência de que o suporte justificativo de uma crença seja acessível, em algum
sentido, ao crente (RODRIGUES, 2013). A ideia, a grosso modo, é que se deve
ser capaz de acessar, ou trazer à consciência, a justificação subjacente às
crenças. As origens causais de uma crença são, naturalmente, muitas vezes muito
complexas e inacessíveis para um crente. Portanto, as teorias causais enfrentam
problemas de uma exigência de acessibilidade sobre a justificação. O internalismo
em relação à justificação preserva uma exigência de acessibilidade sobre o que
confere justificação, enquanto o externalismo epistêmico rejeita essa exigência.
Os debates sobre internalismo e externalismo abundam na epistemologia atual,
mas os internalistas ainda não compartilham uma explicação detalhada e uniforme
da acessibilidade (KORNBLITH, 2001).

Atividades de Estudos:

1) Vimos que há um debate no centro das discussões


epistemológicas que podemos chamar de debate
Internalismo versus Externalismo. Em poucas palavras,
procure sintetizar a que se refere este debate.
_______________________________________________
_______________________________________________
_______________________________________________
_______________________________________________
_______________________________________________
_______________________________________________

Fontes de Conhecimento
Dada a caracterização do conhecimento realizada, há muitas Grande parte do
maneiras como se pode vir a conhecer alguma coisa. O conhecimento nosso conhecimento
de fatos empíricos sobre o mundo físico envolverá necessariamente a mais mundano vem
percepção, ou seja, o uso dos sentidos. A ciência, com sua coleção de dos sentidos, como
vemos, ouvimos,
dados e realização de experimentos, é o paradigma do conhecimento
cheiramos, tocamos
empírico. No entanto, grande parte do nosso conhecimento mais e saboreamos os
mundano vem dos sentidos, como vemos, ouvimos, cheiramos, vários objetos em
tocamos e saboreamos os vários objetos em nossos ambientes nossos ambientes
(KORNBLITH, 2008; FELDMAN, 2008).

37
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Mas todo o conhecimento requer alguma quantidade de raciocínio. Os dados


coletados pelos cientistas devem ser analisados ​​para que o conhecimento seja
posteriormente produzido, e nós extraímos inferências com base no que nossos
sentidos nos dizem. Além disso, o conhecimento de fatos abstratos ou não empíricos
dependerá exclusivamente do raciocínio. Em particular, acredita-se que a intuição é
uma espécie de acesso direto ao conhecimento do a priori (BEALER, 2008).

Uma vez que o conhecimento é obtido, ele pode ser sustentado


Uma vez que o e transmitido aos outros. A memória nos permite conhecer algo que
conhecimento é
conhecíamos no passado, talvez, se não nos lembrarmos mais da
obtido, ele pode
ser sustentado e justificação original. O conhecimento também pode ser transmitido de
transmitido aos um indivíduo para outro através do testemunho. Isto é, minha justificação
outros para uma crença particular poderia equivaler ao fato de que alguma fonte
confiável me disse que é verdade (AUDI, 2002; GUIMARÃES, 2009).

Em suma, há algumas teorias principais da aquisição do conhecimento. O


empirismo, que enfatiza o papel da experiência, especialmente a experiência
baseada em observações perceptivas pelos cinco sentidos na formação de
ideias, ao mesmo tempo em que descarta a noção de ideias inatas. Refinamentos
desse princípio básico levaram ao fenomenalismo, positivismo, cientificismo
e positivismo lógico. O racionalismo, que sustenta que o conhecimento não é
derivado da experiência, mas é adquirido por processos a priori ou é inato (na
forma de conceitos) ou intuitivo. O representacionalismo (ou realismo indireto ou
dualismo epistemológico), que sustenta que o mundo que vemos na experiência
consciente não é o próprio mundo real, mas apenas uma réplica em miniatura da
realidade virtual desse mundo em uma representação interna. O construtivismo
(ou construcionismo), que pressupõe que todo conhecimento é "construído", na
medida em que é contingente à convenção, à percepção humana e à experiência
social (BONJOUR; BAKER, 2010).

O Ceticismo
Os epistemólogos debatem os limites, ou escopo, do conhecimento. Quanto
mais restritos forem os limites do conhecimento, mais céticos somos. Dois
tipos influentes de ceticismo são o ceticismo do conhecimento e o ceticismo
da justificação. O ceticismo irrestrito do conhecimento implica que
Dois tipos influentes ninguém sabe nada, enquanto que o ceticismo irrestrito da justificação
de ceticismo são implica a visão mais extrema de que ninguém está nem mesmo
o ceticismo do justificado em acreditar em nada (SMITH, 2004). Algumas formas de
conhecimento e ceticismo são mais fortes do que outras. O ceticismo do conhecimento
o ceticismo da
em sua forma mais forte implica que é impossível para qualquer um
justificação.
saber alguma coisa. Uma forma mais fraca negaria a realidade do

38
Capítulo 1 Introdução à Epistemologia

nosso conhecimento, mas deixaria aberta a sua possibilidade (PEREIRA, 2007).


Muitos céticos restringiram seu ceticismo a um domínio particular de conhecimento
suposto: por exemplo, conhecimento do mundo externo, conhecimento de outras
mentes, conhecimento do passado ou do futuro ou conhecimento de itens não
percebidos. Tal ceticismo limitado é mais comum do que o ceticismo irrestrito na
história da epistemologia (WILLIAMS, 2008; LANDESMAN, 2006).

Argumentos apoiando ceticismo vêm em muitas formas. Um dos mais difíceis


é o problema do critério, cuja versão foi declarada pelo cético do século XVI,
Michel de Montaigne.

Para julgar [entre o falso e o verdadeiro] nas aparências das


coisas, precisamos de um método de distinção; para validar
esse método, precisamos de um argumento que o justifique;
mas, para validar esse argumento, precisamos do próprio mé-
todo em questão. E aí estamos, andando em círculos (MO-
SER; MULDER; TROUT, 2004, p. 166-167).

Esta linha de argumento cético se originou na Grécia antiga, com a própria


epistemologia (PEREIRA, 2007). Força-nos a enfrentar esta questão: como
podemos especificar o que sabemos sem ter especificado como sabemos, e
como podemos especificar como sabemos sem ter especificado o que sabemos?
Existe alguma maneira razoável de sair desse círculo ameaçador? Este é um dos
problemas epistemológicos mais difíceis, e uma epistemologia convincente deve
oferecer uma solução defensável para ela. A epistemologia contemporânea ainda
não tem uma resposta amplamente aceita a este problema urgente. Aqui, vamos
considerar dois dos argumentos mais proeminentes em apoio ao ceticismo sobre
o mundo externo.

a) O Ceticismo Cartesiano

Na primeira de suas Meditações, René Descartes oferece um argumento


em apoio ao ceticismo, que ele então tenta refutar nas Meditações posteriores. O
argumento observa que algumas de nossas percepções são imprecisas. Nossos
sentidos podem nos enganar. Às vezes confundimos um sonho com
uma experiência de vigília, e é possível que um demônio maligno esteja A versão moderna
nos enganando sistematicamente (SMITH, 2005). A versão moderna do cenário do
do cenário do demônio do mal, proposta por Hilary Putnam (2004), é demônio do mal,
proposta por Hilary
que você é um cérebro numa cuba, porque os cientistas removeram
Putnam (2004),
seu cérebro de seu crânio, conectando-o a um computador sofisticado é que você é um
e imerso em uma cuba de líquido de conservação. O computador cérebro numa cuba
produz o que parecem ser experiências sensoriais genuínas e também

39
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

responde às reações do seu cérebro para fazer parecer que você é capaz de se
movimentar em seu ambiente como você fazia quando seu cérebro ainda estava
em seu corpo. Mesmo que este cenário possa parecer muito exagerado, devemos
admitir que é pelo menos possível (MURCHO, 2006). Como resultado, algumas
de nossas crenças serão falsas.

Para obtermos a justificação de nossas crenças, devemos ter alguma


maneira de distinguir entre aquelas crenças que são verdadeiras (ou, pelo menos,
que são provavelmente verdadeiras) e aquelas que não são. Mas assim como
não há sinais conclusivos que nos permitam distinguir entre o despertar e o
sonhar, não há sinais que nos permitam distinguir entre crenças que são precisas
e crenças que são o resultado das maquinações de um demônio maligno. Essa
indistinguibilidade entre a crença confiável e não confiável, sustenta o argumento,
torna todas as nossas crenças injustificadas e, portanto, não podemos saber
nada. Uma resposta satisfatória a esse argumento, então, deve mostrar que
somos realmente capazes de distinguir entre crenças verdadeiras e falsas, ou que
não precisamos ser capazes de fazer tal distinção.

b) O Ceticismo Humeano

De acordo com este ceticismo, meus sentidos podem me dizer como as


coisas parecem, mas não como elas realmente são. Precisamos usar a razão para
construir um argumento que nos leve das crenças sobre como as coisas parecem
às crenças justificadas sobre como elas são. Mas mesmo se formos capazes de
confiar em nossas percepções, para que saibamos que elas são precisas, David
Hume argumenta que o espectro do ceticismo permanece. Observe que só
percebemos uma parte muito pequena do universo em qualquer momento dado,
embora pensemos que temos conhecimento do mundo além do que estamos
percebendo atualmente. Segue-se, então, que os sentidos por si só não
A razão é incapaz podem explicar esse conhecimento, e que a razão deve suplementar os
de justificar qualquer
sentidos de alguma forma para justificar tal conhecimento. No entanto,
crença sobre o
mundo externo argumenta Hume, a razão é incapaz de justificar qualquer crença sobre
além do escopo de o mundo externo além do escopo de nossas percepções sensoriais
nossas percepções atuais. Consideremos dois desses possíveis argumentos e a crítica de
sensoriais atuais. Hume a eles (PEREIRA, 2007; SMITH, 1995).

40
Capítulo 1 Introdução à Epistemologia

Assista ao vídeo Empirismo e Ceticismo: Hume - o sonho


dogmático da razão. Curso Livre de Humanidades – Filosofia, com
Roberto Bolzani Filho. Prof. Dr. de História da Filosofia Antiga/USP.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=PwzuU1_BUIA>.

• Identidade Numérica versus Qualitativa

Nós acreditamos tipicamente que o mundo externo é, na maior parte das


vezes, estável. Por exemplo, acredito que meu carro está estacionado onde eu
deixei esta manhã, embora eu não esteja olhando para ele. Se eu fosse espiar
para fora da janela agora e visse o meu carro, eu poderia formar a crença de que
o meu carro tem estado no mesmo espaço durante todo o dia. Qual é a base para
essa crença? Se for solicitado a tornar explícito o meu raciocínio, posso proceder
da seguinte forma:

1) Eu tive duas experiências sensoriais do meu carro: uma esta manhã e


outra agora.
2) As duas experiências dos sentidos foram (mais ou menos) idênticas.
3) Portanto, é provável que os objetos que as causaram sejam idênticos.
4) Portanto, um único objeto – meu carro – esteve naquele espaço de
estacionamento o dia todo.

Um raciocínio semelhante sustentaria todas as nossas crenças sobre


a persistência do mundo externo e de todos os objetos que percebemos. Mas
essas crenças são justificadas? Hume (2009) pensa que não, uma vez que o
argumento anterior (e todos os argumentos como ele) contém um equívoco. Em
particular, a primeira ocorrência de "idêntico" refere-se à identidade qualitativa.
As duas experiências dos sentidos não são uma e a mesma, mas são distintas.
Quando dizemos que elas são idênticas queremos dizer que uma é semelhante a
outra em todas as suas qualidades ou propriedades. Mas a segunda ocorrência
de "idêntico" refere-se à identidade numérica. Quando dizemos que os objetos
que causaram as duas experiências dos sentidos são idênticos, queremos dizer
que há um objeto, em vez de dois, que é responsável por ambos. Esse equívoco,
argumenta Hume, torna o argumento falacioso. Portanto, precisamos de outro
argumento para apoiar nossa crença de que os objetos persistem mesmo quando
não os observamos (SMITH, 1995).

41
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

O Tratado da Natureza Humana (2009), publicado em 1738, é


uma obra do filósofo escocês David Hume, considerada por muitos
ser a obra mais importante de Hume e uma das obras mais influentes
na história da filosofia. O Tratado é uma declaração clássica de
empirismo filosófico, ceticismo e naturalismo. Na introdução, Hume
apresenta a ideia de colocar toda a ciência e a filosofia em uma nova
base, a saber, uma investigação empírica sobre a natureza humana.
David Hume, nesta obra, apresenta seus argumentos sobre a
identidade numérica e qualitativa (citadas acima) e seus argumentos
contra a indução (que veremos a seguir).

• O Ceticismo de Hume Sobre a Indução

Suponha que um argumento satisfatório pudesse ser encontrado em apoio


de nossas crenças na persistência de objetos físicos. Isso nos forneceria o
conhecimento de que os objetos que observamos persistiram mesmo quando
não os observávamos. Mas, além de acreditar que esses objetos persistiram
até agora, acreditamos que eles persistirão no futuro. Também acreditamos que
objetos que nunca observamos de maneira semelhante persistiram e persistirão.
Em outras palavras, esperamos que o futuro seja mais ou menos como o passado
e as partes do universo que não observamos como as partes que observamos.
Por exemplo, acredito que meu carro persistirá no futuro. Qual é a base para essa
crença? Se for solicitado a tornar explícito o meu raciocínio, posso proceder da
seguinte forma:

1) Meu carro sempre persistiu no passado.


2) A natureza é a grosso modo uniforme através do tempo e do espaço (e
assim o futuro será mais ou menos como o passado).
3) Portanto, meu carro vai persistir no futuro.

Um raciocínio semelhante subjugaria todas as nossas crenças sobre o


futuro e sobre o não observado. Essas crenças são justificadas? Novamente,
Hume pensa que não, já que o argumento anterior, e todos os argumentos como
ele, contêm uma premissa não sustentada, ou seja, a segunda premissa, que
pode ser chamada de Princípio da Uniformidade da Natureza (PUN). Por que
devemos crer que esse princípio é verdadeiro? Hume (2009) insiste que nós
fornecemos alguma razão em apoio a esta crença. Como o argumento acima é
um argumento indutivo ao invés de um dedutivo, o problema de mostrar que é um
bom argumento é tipicamente referido como o "problema da indução" (PEREIRA,

42
Capítulo 1 Introdução à Epistemologia

2007; SMITH, 1995). Poderíamos pensar que existe uma solução simples e direta
para o problema da indução, e que podemos de fato apoiar nossa crença de que o
PUN é verdadeiro. Tal argumento seria o seguinte:

1) O PUN sempre foi verdade no passado.


2) A natureza é a grosso modo uniforme através do tempo e do espaço (e
assim o futuro será mais ou menos como o passado).
3) Portanto, o PUN será verdadeiro no futuro.

Este argumento, entretanto, é circular. A sua segunda premissa é o


próprio PUN. Consequentemente, precisamos de outro argumento para apoiar
nossa crença de que o PUN é verdadeiro e, assim, justificar nossos argumentos
indutivos sobre o futuro e o não observado.

Assista ao vídeo “Ceticismo e Empirismo”, do Curso Livre de


Humanidades – Filosofia, com Oswaldo Porchat de Assis Pereira.
Prof. Emérito/USP. Disponível no site: <https://www.youtube.com/
watch?v=bxrjJxuVqwI>.

Falibilidade e Ceticismo
Podemos então dizer que até mesmo as crenças bem Somos falíveis
fundamentadas podem estar equivocadas. Podemos ser enganados em questões
pelos nossos sentidos. Somos falíveis em questões perceptivas como perceptivas
como em nossas
em nossas memórias, em nosso raciocínio e em outros aspectos.
memórias, em nosso
Poderíamos então nos perguntar, como fazem os céticos, se sabemos raciocínio e em
mesmo que é improvável que agora estejamos enganados pelos outros aspectos.
nossos sentidos. Poderíamos também nos perguntar se estamos
mesmo justificados em nossa crença de que tal erro não ocorreu quando
começamos a ler este capítulo neste livro.

Suponha que não estejas justificado em acreditar que há um livro diante


de você e que você esteja lendo agora este capítulo. Se não, como podes estar
justificado em acreditar o que parecem ser verdades muito menos óbvias, como
que a sua casa é segura contra tempestades, que seu carro é seguro para
dirigir, e que sua comida não está envenenada? E como podes saber as muitas
coisas que precisas saber na vida, como que sua família e amigos são dignos
de confiança, que você pode controlar seu comportamento e, assim, podes
determinar parcialmente o seu futuro. São questões difíceis e importantes.

43
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Estas questões indicam como a vida humana seria insegura e desordenada


se não pudéssemos supor que possuímos crenças e conhecimentos justificados.
Nós colocamos em risco nossas vidas todos os dias sobre o que nós acreditamos
conhecer. Seria inquietante rever essa posição e recuar para a visão de que, na
melhor das hipóteses, temos justificativa para acreditar. Mas se tivéssemos que
desistir até dessa visão moderada e concluir, digamos, que o que acreditamos
não é nem sequer justificado, teríamos de enfrentar uma crise. Ao discutir
o ceticismo, são exploradas exatamente essas questões. Podemos, então,
suspender temporariamente os desafios céticos, e assumir o ponto de vista do
senso comum de que as crenças com uma base como a de minha crença de
que existe um livro diante de mim não são apenas justificadas, mas também
constituem conhecimento (PEREIRA, 2007).

Uma vez que procedemos nesta suposição do senso comum é fácil ver que
há muitos tipos diferentes de circunstâncias em que as opiniões se levantam de
tal maneira que são aparentemente justificadas e constituem o conhecimento. Ao
considerar essa variedade de circunstâncias que dão justificação e conhecimento,
podemos explorar como as crenças estão relacionadas à percepção, à memória,
à consciência, à razão e ao testemunho. Questões que exploraremos ao falarmos
sobre a epistemologia da teologia e do conhecimento religiosos nos próximos
capítulos deste livro.

Em suma, ao considerarmos a questão do que podemos


O ceticismo começa conhecer nos deparamos com o fato de que qualquer justificação do
com a aparente conhecimento dependerá de outra crença para sua justificação, o
impossibilidade que parece conduzir a uma regressão infinita. O ceticismo começa
de completar esta com a aparente impossibilidade de completar esta cadeia infinita de
cadeia infinita
raciocínio e argumenta que, em última instância, nenhuma crença é
de raciocínio e
argumenta que, em justificada e, portanto, ninguém realmente sabe nada. O falibilismo
última instância, também afirma que a certeza absoluta sobre o conhecimento é
nenhuma crença impossível, ou pelo menos que todas as pretensões ao conhecimento
é justificada e, poderiam, em princípio, ser equivocadas. Ao contrário do ceticismo,
portanto, ninguém no entanto, o falibilismo não implica a necessidade de abandonar o
realmente sabe
nosso conhecimento, apenas reconhece que, porque o conhecimento
nada.
empírico pode ser revisto por observação adicional, qualquer das
coisas que tomamos como conhecimento pode eventualmente revelar-se falsa.

Em resposta a esse problema de regressão, surgiram várias escolas de


pensamento, algumas já exploradas neste capítulo e outras que agora só iremos
mencionar. O fundacionalismo, que afirma que algumas crenças que apoiam
outras crenças são fundamentais e não necessitam de justificação por outras
crenças (autojustificação ou crenças infalíveis ou baseadas na percepção ou
em certas considerações a priori) (MIGUENS, 2009). O Instrumentalismo, que

44
Capítulo 1 Introdução à Epistemologia

é a visão metodológica de que conceitos e teorias são meramente instrumentos


úteis, e seu valor é medido pelo quão eficaz eles são na explicação e previsão
de fenômenos. O instrumentalismo, portanto, nega que as teorias sejam verdades-
avaliáveis (NORRIS, 2007). O pragmatismo, que é um conceito semelhante, que
sustenta que algo só é verdadeiro na medida em que funciona e tem consequências
práticas (VIDAL; CASTRO, 2006). O infinitismo, que tipicamente leva a série infinita
a ser meramente potencial, e um indivíduo precisa apenas ter a capacidade de
apresentar as razões relevantes quando surge a necessidade. Portanto, ao contrário
da maioria das teorias tradicionais de justificação, o infinitismo considera uma
regressão infinita como uma justificação válida (BRADLEY, 2015). O coerentismo,
que sustenta que uma crença individual é justificada circularmente pelo modo como
ela se encaixa (em coerência) com o resto do sistema de crenças de que faz parte,
de modo que a regressão não procede de acordo com um padrão de justificação
linear. E o funderentismo, termo criado por Susan Haack (1997), é outra posição
que se destina a ser uma unificação do fundacionalismo e coerentismo evitando
seus problemas (OLIVA, 2011).

A filósofa e epistemóloga Susan Haack desenvolve sua


proposta do Funderentismo em sua obra Evidência e Investigação
(1997). Nesta obra ela apresenta tanto o fundacionalismo quanto
o coerentismo, suas forças e debilidades, e possíveis alternativas
possibilitadas pela perspectiva pragmatista.

Como sugestão de uma leitura mais aprofundada, mas também


de fácil acesso e introdução aos principais temas da epistemologia,
temos o verbete “epistemologia” da The Stanford Encyclopedia
of Philosophy elaborado por Mathias Steup. Acesse este artigo
traduzido no seguinte endereço eletrônico: <https://www.academia.
edu/9792970/Epistemologia_-_Tradu%C3%A7%C3%A3o_do_
Verbete_Epistemology_da_Stanford_Encyclopedia_of_Philosophy>.

45
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Algumas Considerações
Neste capítulo introduzimos o campo prolífico da investigação epistemológica.
Abordamos os tipos de conhecimento e nos centramos no conhecimento
proposicional. Conseguimos explorar a natureza deste conhecimento abordando as
suas condições de crença, verdade e justificação, apontando também os problemas
que surgem de cada uma dessas condições, como demonstrado pelo problema
de Gettier e seus contraexemplos. Além disso, investigamos a natureza do
conhecimento a partir do internalismo, fundacionalismo, coerentismo, externalismo
e as teorias causais e contextualistas. O que nos levou ao desafio pervasivo do
ceticismo que perdura ainda em toda investigação do conhecimento humano.

Em suma, o estudo do conhecimento é um dos aspectos mais fundamentais
da investigação filosófica. Qualquer reivindicação de conhecimento deve ser
avaliada para determinar se ela realmente constitui conhecimento ou não. Tal
avaliação requer, essencialmente, uma compreensão do que é conhecimento e
de quanto conhecimento é possível. Enquanto esta introdução fornece uma visão
geral das questões importantes da epistemologia, é claro que deixa as perguntas
mais básicas sem resposta. A epistemologia continuará a ser uma área de
discussão filosófica enquanto estas questões permanecerem.

No próximo capítulo vamos introduzir a epistemologia da teologia e da


religião. Agora que você já possui um conhecimento sobre a epistemologia,
poderá compreender os desafios que este campo investigativo impõe sobre o
saber teológico e o conhecimento religioso. Deste modo, procure aprofundar os
tópicos e questões versadas aqui neste capítulo para aproveitar ao máximo os
temas e ideias que estão por vir a seguir.

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52
C APÍTULO 2
A Epistemologia da Teologia e da
Religião

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

� Identificar a relação entre a epistemologia, a teologia e o


conhecimento religioso.

� Conhecer o estado atual do debate entre o fideísmo, o evidencialismo


e a epistemologia reformada.

� Examinar as relações entre a fé e a razão no contexto epistemológico.

� Comparar as posições epistemológicas no contexto das crenças


religiosas.
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

54
Capítulo 2 A Epistemologia da Teologia e da Religião

Contextualização
A epistemologia religiosa é o estudo de como as crenças religiosas dos sujeitos
podem ter ou não ter alguma forma de status epistêmico positivo (como conhecimento,
justificação, autorização e racionalidade) e se elas precisam mesmo de tal status
apropriado para si. O debate atual enfoca mais centralmente no tipo de base sobre a
qual um crente religioso pode estar racionalmente justificado em manter certas crenças
sobre Deus (se Deus existe, quais são os atributos de Deus, o que Deus está fazendo
etc.) É necessário estar tão justificado para acreditar como um crente religioso deve
(em algum sentido de “deveria” mais geral do que a justificação racional). Engajando-
se nessas questões temos principalmente três grupos de pessoas, que se chamam
de “fideístas”, “epistemólogos reformados” e “evidencialistas”.

O fideísmo é difícil de definir porque aqueles que se denominam fideístas


possuem uma variedade de posições relacionadas, mas distintas. Os pontos de vista
assim chamados poderiam estar mais relacionados pela semelhança da família e
não por qualquer propriedade que eles tenham em comum. Os fideístas, podemos
dizer, ocupam posições ao longo de um espectro. O fideísmo em sua forma extrema
é a visão de que as crenças religiosas têm um status especial (ao invés de estarem
sujeitas a padrões de evidência comuns, por exemplo, os padrões da ciência, da lei
ou da história), de modo que alguém pode possuir racionalmente algumas crenças
teístas sem qualquer evidência de apoio ou até mesmo contrariamente ao que sua
evidência suporta. Um exemplo desta posição é a afirmação de Kierkegaard (2013,
p. 105): “Se eu posso apreender objetivamente, então eu não creio; mas, justamente
porque eu não posso fazê-lo, por isso tenho de crer”. Formalmente podemos
expressar o fideísmo forte da seguinte maneira: “Eu posso/devo acreditar na
proposição p precisamente porque parece absurdo e incrível”, ou um pouco menos
extremo, “para qualquer proposição p, eu posso/devo acreditar p, mesmo que (i) eu
não tenha evidências para p e (ii) p pareça incrível em seus próprios termos”.

Em uma forma moderada, o fideísmo é a visão de que a evidência é ambígua


para as crenças teístas, e, portanto, pode-se optar por manter as crenças teístas
devido à sua natureza especial moralmente centrada. Pascal (2005), por exemplo,
representa esta posição. Formalmente podemos expressar o fideísmo moderado
da seguinte maneira: “Para alguma gama de proposições p, eu posso/devo
acreditar p, mesmo que eu não tenha evidência para p, enquanto p: (i) parece
credível em seus próprios termos, e (ii) p é coerente com outras coisas em que eu
acredito na base de evidências adequadas”.

55
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

O fideísmo em uma forma fraca (mas certamente não incontroversa) é a visão


de que alguém deve ter fé ou confiança em Deus a fim de racionalmente manter uma
crença teísta. Ou seja, embora possamos ter bons argumentos e evidências para a
crença racional na existência de Deus, nós não precisamos utilizar tais argumentos
e evidências para estar racionalmente justificados ou estar em nosso direito
epistêmico de garantir a crença racional em Deus. Kelly James Clark (2001) situa
Alvin Plantinga assim com Tomás de Aquino nesta forma de fideísmo. Formalmente
podemos expressar o fideísmo fraco da seguinte maneira: “Para alguma gama de
proposições p, eu posso/devo acreditar p, embora eu não tenha evidência para p,
enquanto p: (i) parece credível em seus próprios termos, e (ii) p deriva de uma fonte
confiável ou fidedigna”.

Os epistemólogos reformados afirmam que alguém pode racionalmente manter


algumas crenças teístas (incluindo a crença de que Deus existe), sem qualquer
argumento ou inferência. Ou seja, algumas crenças teístas são adequadamente
básicas ou imediatamente justificadas de alguma forma (PLANTINGA, 2003).

Os evidencialistas afirmam que para qualquer crença teísta que alguém
justificadamente mantém, este alguém mantém essa crença com base em evidências
de apoio adequadamente suficientes. Chamaremos essa posição de evidencialismo
epistêmico, porque às vezes o evidencialismo, especialmente quando alvo dos
argumentos dos epistemólogos reformados, é usado para se referir à conjunção do
evidencialismo epistêmico – a visão de que a crença justificada requer evidência – e
posições adicionais, a saber, que (1) a evidência consiste inteiramente de um certo
tipo de proposições fundamentais e (2) as crenças teístas (por exemplo, que Deus
existe) não estão entre essas fundamentações. Chamaremos a conjunção destas
posições de hiperevidencialismo, que será posteriormente melhor explicado.

A seguir faremos, primeiramente, um breve levantamento histórico do


evidencialismo (epistêmico), do fideísmo e da epistemologia reformada. Após
apresentaremos a posição do fideísta, então a posição do evidencialista e,
finalmente, a posição do epistemólogo reformado, concluindo com alguns
comentários sobre o estado atual do debate.

Uma Breve História da Fé e da Razão


Na Idade Média temos já uma prolífica reflexão sobre a relação da fé e da
razão. Por exemplo, os teólogos medievais, como Boécio em sua Consolatio
Philosophiae (1998), sustentavam certas crenças sobre Deus, mas confiavam na
filosofia para fornecer razões para essas crenças. Outros, como Agostinho em seu
Sermão 43 (GILSON, 1995), diziam que devemos ter fé buscando o entendimento
fides quarens intellectum, ou seja, que temos crenças que nós transformamos

56
Capítulo 2 A Epistemologia da Teologia e da Religião

em conhecimento, entendendo-as. Temos também Anselmo no Proslogion (2008)


e no Monológio (1988), que sustentava que devemos crer para que possamos
entender (credo ut intelligam) e, para isso, oferecia um argumento ontológico para
a existência de Deus, defendendo que Deus tinha certos atributos e argumentando
que para que os pecados de alguém fossem expiados por Deus, Deus precisava
se tornar um ser humano. Entre estas reflexões não podemos esquecer de Tomás
de Aquino em sua Summa Theologica (2001), que sustentou que era conveniente
e necessário que acreditássemos nas coisas prováveis pela ​​ razão com base na
revelação. Ele afirmava que mesmo no que diz respeito às verdades sobre Deus
que a razão humana poderia ter descoberto, era necessário que o homem fosse
ensinado por uma revelação divina, porque a verdade sobre Deus como a razão
poderia descobrir, só seria conhecida por poucos, depois de muito tempo, com
muita análise, e ainda assim com muitos erros.

Estes teólogos medievais, entre outros, sustentavam, portanto, que


argumentos podem ser dados para o teísmo e que esses argumentos tornam
racional para alguém acreditar com base nesses argumentos. Além disso, de
acordo com Tomás de Aquino, podemos acreditar no teísmo sem provas teístas,
mas se acreditamos na base de provas, transformamos nossa crença em
conhecimento, que é uma condição epistêmica melhor para se ter.

Na Idade Moderna também podemos ver que os pensadores despendiam


seu tempo e reflexões sobre a fé e a razão. Por exemplo, Descartes, em suas
Meditações (2004), na Monadologia de Leibniz (2009), no Ensaio sobre o
entendimento humano de Locke (1999) e em Berkeley (1996) nos Três Diálogos.
Podemos perceber nestas obras e nestes autores, que todos ofereciam
argumentos para a existência de Deus. Ao oferecer esses argumentos e dedicar
um tempo considerável a eles, eles parecem indicar, às vezes em declarações
mais explícitas, que em circunstâncias normais um crente deve pelo menos
basear sua crença nesses argumentos e que haveria algo intelectualmente errado
com aqueles que não o fizessem.

Durante o Iluminismo, precipitado em parte pela filosofia de Locke (1999),


o pensamento parece ter sido sustentado por muitos de que a única maneira
racional de acreditar que Deus existe era através de argumentos. Locke sustentou
que devemos proporcionar nossa crença de acordo com a evidência, que a
evidência consiste em um conjunto de proposições que são diretamente vistas
como verdadeiras e que são indubitáveis ​​ou evidentes para os sentidos e que a
proposição de que Deus existe não estaria naquele conjunto de proposições.

57
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Para uma boa exposição da visão de Locke, veja a obra “John


Locke and the ethics of belief”, de Nicholas Wolterstorff (1996),
especialmente as páginas 88-133. Assim como a obra “Moral e
história em John Locke”, de Edgar José Jorge Filho (1992).

Locke (1999) pensava que Deus poderia iluminar as mentes das pessoas
e lhes revelar diretamente verdades, mas ele não achava que isso acontecesse
de fato. A visão de Locke, muitas vezes chamada de "visão iluminista" ou algo
semelhante, emparelhada com a visão de que o argumento para a existência de
Deus não é forte o suficiente para fazer a crença de que Deus existe racional – ou
pelo menos não é forte o suficiente para torná-la racional para alguém acreditar
com a convicção da qual a fé exige – é o que os epistemólogos reformados chamam
de “o desafio evidencialista" à crença religiosa (PLANTINGA; WOLTERSTORFF,
1983; WOLTERSTORFF, 2008).

Ainda na esteira do Iluminismo, Immanuel Kant afirma que os argumentos


tradicionais para a existência de Deus não conseguem ser uma base adequada
para acreditarmos no teísmo (KANT, 2001). Embora em seus primeiros trabalhos,
como em O único fundamento possível de uma demonstração da existência de
Deus, de 1763 (WOOD, 2008), ele permitiu um possível tipo de argumento em
apoio do teísmo. Entretanto, a filosofia de Kant parece impedir alguém de acreditar
que Deus existe com bases epistêmicas. Se acreditarmos que Deus existe, deve
ser por motivos práticos (KANT, 2003).

O pensador romântico Sören Aabye Kierkegaard concordou que não devemos


basear a crença teísta em argumentos. Todavia, para Kierkegaard (2010), a
verdadeira crença em Deus é a fé, e a fé é a crença de que você tem "em virtude
do absurdo". A fé, assim, estaria acima da razão, e se alguém agisse de acordo
com a fé, agiria contra ou fora da jurisdição da razão. Ou seja, Kierkegaard é um
defensor do fideísmo. O fideísmo também foi proposto mais tarde por Wittgenstein
(1998) e foi desenvolvido e modificado desde então, especialmente por Dewi
Zephaniah Phillips (2016), C. Stephen Evans (1998) e John Bishop (2007).

Os epistemólogos reformados também acreditam, em resposta ao "desafio


evidencialista", que é racional para alguém acreditar que Deus existe na ausência
de argumentos. Alvin Plantinga e Nicholas Wolterstorff (1983) publicaram o locus
classicus da epistemologia reformada, Faith and Rationality, e a epistemologia

58
Capítulo 2 A Epistemologia da Teologia e da Religião

reformada se desenvolveu ao longo do tempo em uma visão madura representada


pela obra Warranted Christian Belief, de Plantinga (2000). Hoje, muitos filósofos
se classificam como epistemólogos reformados, incluindo George Mavrodes
(1970), Michael Bergmann (2012) e William Alston (1993, 2008).

Warranted Christian Belief significa Crença Cristã Garantida.

O evidencialismo epistêmico também tem adeptos contemporâneos entre os


crentes religiosos, incluindo Richard Swinburne (2001), Paul Moser (2010), William
Lane Craig (2000), Trent Dougherty (2011) e Stephen Wykstra (1989). O trabalho
inovador de Paul Moser (2008) pode levar alguns a acreditar que ele não é um
evidencialista. No entanto, Moser considera-se um evidencialista (2010) e deixa
isso explícito, desde que a evidência não se restrinja às proposições. C. Stephen
Evans (2010) também se considera um evidencialista, desde que a evidência não
se restrinja a argumentos ou inferências formais.

Richard Swinburne (2004), por exemplo, ofereceu argumentos probabilísticos e


cumulativos para a existência de Deus. Ele reconhece que podemos justificadamente
crer que Deus existe sem argumentos, mas também afirma que os argumentos para
a existência de Deus tornam racional que alguém acredite que Deus existe.

A maioria dos filósofos ateus contemporâneos da religião assume o


evidencialismo epistêmico. Por exemplo, John Mackie (1994), Jordan Sobel
(2003) e Graham Oppy (2009). Todavia, não está claro se há qualquer adepto
contemporâneo ao hiperevidencialismo, pois há poucos epistemólogos que
aceitam o fundacionalismo clássico. Como podemos ver nas posições de
Timothy McGrew (1995) e Bonjour (2003), que defendem algo semelhante ao
fundacionalismo clássico, no entanto em nenhum lugar eles negam que se possa
ter alguma justificativa imediata para crenças teístas.

Dado que os três principais pontos de vista no debate não são mutuamente
exclusivos (na verdade, C. Steven Evans transita em cada categoria pelo menos
uma vez), não deve ser surpreendente descobrir que muitos aderentes de um lado
do debate igualmente mantêm uma posição suficiente para colocá-los em um dos
outros lados também. No entanto, os adeptos de uma posição muitas vezes rejeitam
a adesão aos outros lados do debate. Isto é frequentemente devido a diferenças de
ênfase que resultam de muitas influências diferentes, às vezes incluindo o contexto
histórico. Nas próximas três seções, descreveremos o fideísmo, o evidencialismo
(epistêmico) e a epistemologia reformada, respectivamente, com mais detalhes,
então diremos algo sobre como as visões interagem.

59
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Atividades de Estudos:

1) No contexto Iluminista, o “desafio evidencialista” foi proposto à


crença religiosa. Descreva o que seria este desafio.
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O Fideísmo
O fideísmo, em sua forma extrema, é a visão de que alguém pode
racionalmente manter certas crenças teístas contrárias ao que sua evidência
suporta ou sem qualquer evidência de apoio (HELM, 2008). Alguns, como John
Greco (2007), definem o fideísmo como a visão de que a fé se opõe à razão, mas
a natureza dessa oposição não é clara, e assim, definir o fideísmo dessa maneira
é inútil. O fideísmo é mantido também por Wittgenstein (1998), de acordo com D.
Z. Phillips. Phillips (2016) que, por exemplo, afirma que as crenças religiosas têm
critérios de aceitabilidade que outros tipos de crenças não possuem.

O pensamento de Wittgenstein é complexo, podemos separar em duas


fases. O dito primeiro Wittgenstein – do Tractatus Logico-Philosophicus (1968),
Conferência sobre ética (1990a) e Observações sobre o ramo dourado de Frazer
(2011) – descreve a religião e a teologia como não científicas e sem sentido. Nesta
fase do seu pensamento, a linguagem religiosa não se refere a fatos empíricos
observáveis ​​e ultrapassa os limites da linguagem apropriada. Deus não se revela
no mundo. Como não há fatos por trás dele, a religião não é científica. Isso
significa que, embora a religião se mostre ou se manifeste, não se pode falar dela.
Portanto, a posição do primeiro Wittgenstein sobre a religião pode ser resumida
como a algo não científico e inefável. No entanto, ele afirma que a carência de
sentido da religião é a sua própria essência e o desejo de dizer algo sobre o
sentido último da vida deve ser respeitado.

60
Capítulo 2 A Epistemologia da Teologia e da Religião

Já em uma conversa com o Círculo de Viena, em 1931, Wittgenstein observou


que o Tractatus é um livro dogmático (WAISMANN, 1979). Isto pode naturalmente
ser entendido como um primeiro passo para o seu trabalho posterior. Na verdade,
podemos considerar o seu livro Observações sobre o ramo dourado de Frazer
como um trabalho de transição. Afinal, embora ele ainda compare a religião à
ciência, já há um foco claro nas práticas da religião. Isso evoca associações com
o Investigações Filosóficas de Wittgenstein (1999), que será discutido a seguir.

A postura do dito segundo Wittgenstein – da Palestra sobre crença religiosa


(1996a), Investigações Filosóficas de Wittgenstein (1999), Da Certeza (1990b) e
Observações sobre as cores (1996b) – em relação à religião pode ser resumida
em sua visão da religião como prática e jogo de linguagem. Embora a religião
normalmente não se baseie em evidências científicas, existe um discurso religioso
com um critério próprio de significado. Religião, teologia e fala sobre Deus são
jogos de linguagem ou formas de vida em que os crentes se expressam por meio
de imagens religiosas (não verificáveis). No entanto, o significado das palavras
religiosas é o seu uso na linguagem religiosa. Portanto, a veracidade ou falsidade
não se baseia em um critério científico externo, mas no acordo entre crentes, por
exemplo, na teologia. O que a linguagem religiosa significa aparece da diferença
prática que eles proporcionam na orientação da vida de uma pessoa.

Na verdade, há um grande número de livros e artigos sobre comentários e


tópicos religiosos na obra de Wittgenstein (MICHELETTI, 2007; MEJIA, 2006;
SPICA, 2009; MALCOLM, 1993; ARRINGTON; ADDIS, 2001; MANDELI, 2012;
PHILLIPS, 1993, 2016). Eles discutem principalmente os seguintes tópicos:
a religião como jogo de linguagem ou forma de vida, a natureza da crença
religiosa e da linguagem, o uso de imagens na religião, a relevância teológica
da filosofia de Wittgenstein, a ideia de teologia como gramática, questões em
religião comparada e a concepção de Wittgenstein do misticismo. Além disso, os
pensamentos religiosos de Wittgenstein foram comparados, em particular, com
Aquino, Agostinho, Barth, Buber, Dewey, James, Kafka, Kierkegaard, Levinas,
Rosenzweig e Tolstoi.

O termo "fideísmo wittgensteiniano" pertence a Kai Nielsen, que atribuiu uma


posição fideísta a alunos ou seguidores de Wittgenstein, filósofos como Winch,
Hughes, Malcolm, Cavell, Phillips e mais tarde ao próprio Wittgenstein (NIELSEN,
1967). O que esses pensadores têm em comum é a ideia de que o discurso
teológico é sui generis e, portanto, não pode ser entendido e julgado em termos
diferentes dos seus. A verdade e o sentido de uma concepção religiosa do mundo
não devem ser entendidos com base no objeto que ela deseja representar, mas
apenas com base na tradição ou na comunidade dentro da qual a visão emergiu e
na qual ela tem sua função.

61
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

O fideísmo, que geralmente é atribuído a Pascal, Kierkegaard, James e


Wittgenstein, tem suas origens na pergunta de Tertuliano: "Que tem Jerusalém a
ver com Atenas?" (apud BRAATEN; JENSEN, 1990, p. 35), Isto é, qual é a relação
entre razão e fé? Hoje em dia, defende a visão de que as verdades religiosas
só podem ser conhecidas por meio da fé e não pela razão, são, portanto,
independentes dela ou mesmo hostis a ela. As verdades religiosas seriam, em
outras palavras, pré-racionais ou suprarracionais. A variante wittgensteiniana do
fideísmo é diversamente caracterizada por subscrever uma ou mais das seguintes
teses: 1) que a religião é logicamente isolada de outros aspectos da vida, 2) que o
discurso religioso é essencialmente autorreferencial e não nos permite falar sobre
a realidade, 3) que as crenças religiosas só podem ser compreendidas por crentes
religiosos e 4) que a religião não pode ser criticada (AMESBURY, 2009). Embora
seja duvidoso que Wittgenstein se reconheça nessas teses, pelo menos alguns de
seus seguidores aderiram a ela. Enfim, uma clara diferença com fideístas como
Pascal e Kierkegaard é que o próprio Wittgenstein não é um apologista cristão.

Em uma segunda interpretação, Wittgenstein é descrito como um religioso


antirrealista ou relativista (TRIGG, 2010). Em contraste com os realistas,
os antirrealistas não acreditam em uma realidade independente de nossas
concepções sobre ela. Eles acreditam que não há verdade, significado, fato ou
existência não relacionados à nossa compreensão da realidade. Se, por exemplo,
Deus como um Ser existe na realidade é inacessível, vai além da experiência
e, portanto, não faz sentido. Isso implica que o ateísmo é descartado pelo
antirrealismo. A ideia de que a forma como concebemos a realidade está ligada
às capacidades humanas, como nossa linguagem, se encaixa perfeitamente nos
pensamentos de Wittgenstein sobre os jogos de linguagem e as formas de vida.
A religião não seria uma questão de conhecimento ou evidência científica, mas
uma tentativa de falar sobre Deus, que não se revela em nossa realidade. Além
disso, o que conta é o que as religiões significam para a nossa vida prática. Uma
vez que o discurso religioso está entrelaçado com a linguagem religiosa, não há
possibilidade de ficar fora dela e de criticar ou apoiar a religião com base, por
exemplo, em fatos externos. A religião é sobre inteligibilidade e ininteligibilidade
em vez de veracidade ou falsidade. A partir daí, é um pequeno passo para o
relativismo religioso ou mesmo para o ceticismo. Uma religião específica não pode
mais ser universal ou objetivamente verdadeira, porque sua linguagem é relativa
à prática e as ideias não podem ser acessadas empiricamente. O significado do
mundo religioso depende unicamente do seu uso na linguagem religiosa.

62
Capítulo 2 A Epistemologia da Teologia e da Religião

Pensadores considerados fideístas wittgensteinianos, como Malcolm (1993)


e Phillips (1993), partem dessas duas interpretações sugeridas nos parágrafos
anteriores, tentando tecer uma narrativa possível para as crenças religiosas.
Assim, podemos dizer que tanto as inspirações do primeiro, quanto do segundo
Wittgenstein, estão presentes nas argumentações dos pensadores considerados
como fideístas wittgensteinianos.

Como exemplo, podemos descrever a posição de Norman Malcolm (1993),


que sustenta que as ideias de Wittgenstein sobre os jogos de linguagem
encontradas em Da Certeza (WITTGENSTEIN, 1990b), particularmente aquelas
que insistem em sua própria falta de fundamento, são especialmente válidas para
a linguagem através da qual as crenças religiosas são expressas. Por crença
religiosa, Malcolm não significa os aspectos doutrinários de uma crença em
Deus, mas a atitude das pessoas religiosas em geral, incluindo, por exemplo, a
dos budistas, que afirmam que não creem em Deus. Para Malcolm, a filosofia
da religião é interessante porque é o campo onde, por um lado, há uma forte
preocupação em proporcionar demonstrações e um desejo preeminente de
oferecer um fundamento racional a uma forma de vida e, por outro lado, há uma
evidente falha de tal esforço.

Malcolm (1993), juntamente com os outros fideístas wittgensteinianos


(PHILLIPS, 1993; HUANG, 1995) e fideístas de modo mais generalizado, mostra
uma marcada aversão por qualquer esforço para elaborar uma teologia que, a
partir da observação do mundo natural, chegaria através do raciocínio à definição
das características de Deus ou, com base no mesmo critério, procurariam avaliar
as doutrinas religiosas. Para ele, é impossível teorizar uma única abordagem
epistemológica de diferentes assuntos, é preciso cada vez usar a abordagem
apropriada ao objeto investigado, reconhecendo assim as limitações e o fracasso
de qualquer esforço para estudar o fenômeno religioso através de abordagens
reducionistas e com métodos emprestados de outras disciplinas.

Poderíamos, portanto, alegar que a estratégia dos fideístas parece destinada


a evitar o confronto eliminando o terreno comum entre as línguas que permite que
diferentes formas de vida se envolvam no diálogo. Em seu esforço de oposição a
uma tendência perigosa para a homologação de estilos expressivos, os fideístas
vão para o outro extremo, a atitude de acordo com a qual tudo é significativo.
Os limites do fideísmo wittgensteiniano, que em última análise é uma forma de
relativismo religioso, é que ele não pode esperar ser universalmente válido.

63
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

De qualquer modo, o fideísmo wittgensteiniano, para Malcolm (2000), é a


tese de que existem vários "jogos de linguagem" diferentes e que, embora seja
apropriado fazer perguntas sobre a justificação dentro de um jogo de linguagem, é
um erro perguntar sobre a justificação de "jogar" o Jogo em questão. Desta forma,
a epistemologia é relativizada aos jogos de linguagem, eles próprios relacionados
com as formas de vida, e é usada para avaliar as afirmações religiosas, sendo
menos rigoroso do que o evidencialismo. Aqui, sugere o autor supracitado, parece
haver uma tese de autonomia e uma tese de incomensurabilidade. A tese da
autonomia diz-nos que as declarações religiosas só devem ser julgadas como
justificadas ou não justificadas pelos padrões implícitos na forma de vida religiosa,
e isso pode ser restrito ainda mais, por exemplo, às formas de vida religiosa do
cristianismo, do hinduísmo ou de qualquer outra religião em particular. A tese da
incomensurabilidade nos diz que as declarações religiosas são diferentes das
afirmações científicas ou metafísicas e, portanto, estamos confundindo usos
diferentes da linguagem se julgarmos as declarações religiosas pelos padrões
da ciência ou da metafísica (PHILLIPS, 2016). Se pressionarmos a tese da
autonomia, aproximaremos o fideísmo wittgensteiniano ao fideísmo de muitos
religiosos conservadores, mas se pressionarmos a tese da incomensurabilidade,
o aproximaremos de uma posição liberal extrema, como aquela de Braithwaite
(1986), em que a religião trata de atitudes e não de fatos, o que, certamente, seria
rejeitado pelos religiosos conservadores.

Talvez a crítica mais óbvia ao fideísmo wittgensteiniano seja que, mesmo que
se conceda a teoria subjacente das formas de vida e dos jogos de linguagem, é
um fato histórico, justificado pelos critérios do "jogo" da história, que a maioria
dos judeus, cristãos e muçulmanos pertencem a uma forma de vida com fortes​​
compromissos metafísicos, e em que declarações tais como "Há um Deus"
são intencionadas tanto como "Há uma estrela com dez vezes a massa do
Sol", assim como "Há esperança". Portanto, o fideísmo wittgensteiniano seria
apenas apropriado para religiões como o Zen Budismo e para algumas vertentes
relativamente recentes e liberais do judaísmo e do cristianismo que rejeitaram o
compromisso metafísico tradicional, como em Don Cupitt (1999).

Bishop (2007) endossa uma versão moderada do fideísmo que ele chama
de "fideísmo jamesiano modesto", segundo o qual às vezes é moralmente (e
talvez epistemicamente) permitido que alguém assuma uma proposição como
verdadeira mesmo quando ela julga corretamente que a proposição não está
adequadamente apoiada por sua evidência total. Parece que Bishop sustenta
que a justificação epistêmica é subsumida sob justificação moral. “A questão
da justificabilidade como aplica-se às crenças de fé é, em última instância, uma
questão de justificabilidade moral [...]". Esta questão de justificabilidade é sobre

64
Capítulo 2 A Epistemologia da Teologia e da Religião

a justificabilidade epistêmica. Bishop argumenta assim: nós nos preocupamos


com a justificabilidade epistêmica das crenças de fé porque nós "devemos ter a
intenção de, em todas as nossas crenças, apreender a verdade e evitar o erro",
e temos essa intenção por causa das consequências práticas de nossas crenças
(BISHOP, 2007, p. 33).

Bishop (2007) oferece as condições em que é moralmente admissível
assumir uma proposição não adequadamente apoiada como verdadeira. Uma
dessas condições é que a evidência para a proposição seja ambígua. Diferentes
gestalts dos mesmos dados poderiam estar disponíveis (BISHOP, 2013), e quando
isso ocorre (e as outras condições se obtêm), uma pessoa estaria moralmente
autorizada a adotar uma das gestalts e assumir a proposição como verdadeira.
Vejamos como Bishop afirma isso:

A evidência [para o Deus teísta clássico] é "aberta" no sentido


de que ela não mostra a verdade da afirmação de que Deus
existe nem a verdade de que sua negação é significativamente
mais provável do que não. A tese descreve ainda esta situação
de evidência aberta como "ambiguidade", fazendo a afirma-
ção de que a evidência total disponível está sistematicamente
aberta a duas interpretações competitivas viáveis - num sen-
tido de "viável" que é difícil de torná-las totalmente precisas,
mas pode ser comparado por analogia com o sentido em que
o desenho do pato-coelho [...] está aberto a duas Gestalts per-
ceptivas viáveis. (2007, p. 71)

Figura 1 - Ilusão de ótica da cabeça de um pato ou de um coelho

Fonte: JASTROW, Joseph. The mind’s Eye. Popular Science Monthly. v. 54, p.
299-231, 1899. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:PSM_V54_
D328_Optical_illusion_of_a_duck_or_a_rabbit_head.png>. Acesso em: 12 jun. 2017.

65
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

A posição de Bishop é incompatível com o evidencialismo epistêmico. De


acordo com o evidencialismo epistêmico padrão, a atitude que se encaixa em
situações de ambiguidade evidencial é a suspensão do juízo ou, em um modelo
mais refinado, uma credibilidade de aproximadamente “0,5” (há maneiras com
as quais os evidencialistas lidam com a vaguidade, que não veremos aqui por
questões de brevidade). A grosso modo, as teorias da credibilidade demonstram
que a credibilidade de uma teoria sempre estará entre 0 e 1. O valor de uma
estimativa de credibilidade nos diz a proporção de variabilidade na medida
atribuível à pontuação verdadeira (HEGENBERG, 1965). Uma credibilidade de 0,5
significa que cerca de metade da variância da pontuação observada é atribuível à
verdade e metade é atribuível ao erro (uma credibilidade de 0,8 significaria que a
variabilidade é de cerca de 80% de capacidade à verdade e 20% de erro, e assim
por diante). Assim, embora não esteja claro se Bishop se considera opositor ao
evidencialismo epistêmico, sua posição parece incompatível com o evidencialismo
epistêmico padrão.

Eis porque Bishop não pode estar vendo a si mesmo como opondo ao
evidencialismo. Bishop argumenta contra o "evidencialismo moral" (2007, p. 62),
que é a conjunção do evidencialismo, como mencionado anteriormente, mais o
princípio da conexão moral: alguém é moralmente permitido manter uma crença
como verdadeira apenas se estiver justificada por sua evidência. Bishop parece
estar negando o princípio da conexão moral, não o evidencialismo. Além disso,
a ambiguidade evidencial de uma proposição é compatível com o evidencialismo
(POSTON, 2009).

C. Stephen Evans (1998) endossa uma versão fraca do fideísmo, uma


visão que ele chama de "fideísmo responsável". De acordo com essa visão, os
processos de raciocínio humano têm a tendência de errar em certos aspectos
como resultado do pecado, e esse erro só pode ser melhorado pela fé. Alguém
que tem fé pode apropriadamente ter uma crença que parece ser irracional por
aqueles que não têm fé, mas isso é de se esperar, e a pessoa que tem fé é, de
fato, razoável.

As posições de Evans e de Bishop diferem da forma extrema do fideísmo. Ou


seja, eles são compatíveis com a negação da visão de que alguém pode racionalmente
manter algumas crenças teístas ao contrário do que sua evidência suporta ou sem
qualquer evidência de apoio. Além disso, a visão de Evans é compatível com a
negação da visão de Bishop. A visão de Bishop, como descrevemos, é incompatível
com o evidencialismo epistêmico padrão, mas pode ser que alguns epistemólogos
reformados e evidencialistas epistêmicos tenham os mesmos compromissos que os
fideístas (como Evans) que mantêm uma forma fraca de fideísmo. Discutiremos a
interação entre fideísmo, evidencialismo e epistemologia reformada mais adiante. Na
próxima seção, descreveremos o evidencialismo.

66
Capítulo 2 A Epistemologia da Teologia e da Religião

Atividades de Estudos:

1) Há várias posições que podem ser consideradas como fideístas.


Nesta seção discorremos sobre a posição de alguns pensadores.
Compare as posições fideístas de Wittgenstein, Bishop e C.
Stephen Evans.
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O Evidencialismo
O evidencialismo epistêmico é a visão de que um sujeito está justificado
em acreditar em uma proposição somente se estiver adequadamente apoiada
por evidências. O evidencialismo epistêmico é tipicamente formulado em termos
de justificação proposicional. Isso pode ser descrito por condicionais cujos
antecedentes descrevem as experiências do sujeito (amplamente interpretadas)
e cujos resultados indicam que alguma proposição tem algum status epistêmico
positivo para essa pessoa (CHISHOLM, 1974). Alternativamente, ele pode ser
descrito por relações de apoio epistêmicas entre uma proposição-alvo e uma
proposição conjuntiva descrevendo as experiências do sujeito ou crenças básicas
ou o conhecimento (SWINBURNE, 2001). O que não está incluído na justificação
proposicional é que um sujeito realmente acredita na proposição-alvo. Enquanto
a justificação proposicional é uma relação entre proposições ou uma função das
experiências para o status epistêmico, a justificação doxástica é uma propriedade
de crenças em que o conteúdo proposicional da crença é justificado pela evidência
do sujeito e, além disso, o sujeito está apropriadamente atentivo e corretamente
responsivo a essas evidências. O evidencialismo epistêmico é antes de tudo uma
teoria sobre a justificação proposicional.

Como teoria completa da justificação epistêmica, o evidencialismo
epistêmico é a visão de que um sujeito se justifica em crer uma proposição
em algum momento específico se, e somente se a evidência do sujeito apoia
suficientemente essa proposição naquele momento (e, claro, porque a evidência
a suporta). Vale observar que aquilo que está entre parênteses não é parte oficial

67
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

da definição do evidencialismo, pelo menos como definido por seus principais


proponentes, Conee e Feldman (2004). No entanto, eles a endossam como parte
do projeto mais amplo do evidencialismo. Conee e Feldman (2004) declaram o
evidencialismo de três maneiras. Aqui estão duas:

1) EJ - A atitude doxástica D em relação à proposição p é epistemicamente


justificada para S em t se e somente se tendo D em relação a p corresponde
à evidência que S tem em t. (CONEE; FELDMAN, 2004, p. 83).

2) E - S justifica-se em acreditar p se e somente se a evidência de S está em


equilíbrio, apoia p. (CONEE; FELDMAN, 2008, p. 83)

“E” e (menos claramente) “EJ”, no entanto, têm um problema com a direção


do bicondicional da direita para a esquerda. Se a evidência de alguém apoia
uma proposição com apenas uma probabilidade de 0.5001, S não se justifica
em (plenamente) acreditar p (embora o sujeito se justificaria em manter uma
crença parcial muito tênue em grau 0.5001). O limiar de justificação para a crença
(plena) precisa ser maior do que simplesmente estar em equilíbrio, apoiado por
evidências. Se houvesse uma moeda que tivesse uma probabilidade de 0.5001
de cair com a cara para cima, eu não estaria justificado em (plenamente) acreditar
que em seu próximo giro, que ela iria cair do mesmo modo. A próxima tese de
Conee e Feldman exclui essa objeção.

3) ES - A justificação epistêmica da atitude doxástica de qualquer pessoa


em relação a qualquer proposição, em qualquer momento, sobrevém
fortemente à evidência que a pessoa tem no momento. (CONEE;
FELDMAN, 2004, p. 101).

Eles resumem a “ES” desta forma: o corpo total de evidências de alguém


estabelece inteiramente quais atitudes doxásticas em relação a quais proposições
são epistemicamente justificadas em qualquer circunstância possível.

Tentamos afirmar essa proposta de Conee e Feldman de forma


mais sucinta e menos técnica. Para aprofundar as discussões sobre
estas teorias da justificação e suas implicações, sugerimos a leitura
da obra O conhecimento como crença verdadeira justificada, de Luís
Estevinha Rodrigues (2013).

68
Capítulo 2 A Epistemologia da Teologia e da Religião

Locke e outros acrescentam uma tese de proporcionalidade, de que devemos


crer em uma proposição somente na medida, ou no grau em que ela é apoiada
por nossa evidência. Definimos o evidencialismo aqui sem nos comprometermos
com a tese mais forte da proporcionalidade, mas é uma extensão natural, dada
a gradualidade da crença. Aplicado às crenças sobre Deus, alguém estaria
justificado em acreditar em algo somente se sua evidência apoia o que ela
acredita. Ninguém estaria justificado em acreditar em algo sobre Deus sem
evidência suficiente para apoiar essa crença (KOSLOWSKI, 2009).

Os evidencialistas teístas com frequência oferecem argumentos para a


existência de Deus e para suas crenças sobre os atributos divinos. As provas
teístas incluem argumentos cosmológicos, morais, ontológicos, teleológicos e
de outros tipos para a existência de Deus. Atualmente esses argumentos são
oferecidos como parte de um caso cumulativo para o teísmo. A acumulação de
muitos argumentos plausíveis independentes para a mesma proposição oferece
a essa proposição uma probabilidade maior do que qualquer um dos argumentos
por conta própria. Os evidencialistas teístas também acham importante responder
a argumentos contra a existência de Deus, principalmente argumentos a partir
da magnitude, duração e distribuição do sofrimento no mundo e argumentos da
ocultação ou obscuridade divina (alguns chamam de argumento da descrença).

Para trabalhos recentes sobre o problema do mal, veja as obras


Deus, a liberdade e o mal, de Plantinga (2012); O problema do mal e
algumas variedades de ateísmo, de Rowe (2013), e Será que Deus
existe, de Swinburne (1998). Para aprofundar o conhecimento sobre
a ocultação divina, veja a obra Divine Hidenness, de Howard-Snyder
e Moser (2001).

A Epistemologia Reformada
Os epistemólogos reformados argumentam que alguém pode justificadamente
acreditar que Deus existe (e manter algumas outras crenças teístas) sem
quaisquer argumentos ou inferências. Plantinga (PLANTINGA; WALTERSTORFF,
1983) argumenta que alguém pode justificadamente acreditar que Deus existe
sem argumentos ou inferências. Em seu trabalho posterior (PLANTINGA, 2000),
"justificado" e seus cognatos se tornaram mais estreitos, de modo que se a crença
de alguém é propriamente básica, ela é justificada (mas não o contrário). Ainda
assim, se uma crença é propriamente básica, acredita-se nela sem argumentos

69
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

ou inferências, por isso, para Plantinga, essas crenças teístas justificadas (e


propriamente básicas) ainda são acreditadas sem quaisquer argumentos ou
inferências. Ou seja, se p está "sem argumentos ou inferências", queremos dizer,
como parece que Plantinga o faz, que p não está evidencialmente apoiado por
outras proposições. Para Plantinga, a questão central não é se alguém que possui
uma crença teísta p pode fornecer argumentos para p, mas se de fato existem
bons argumentos para p. (PLANTINGA, 2000; 2003).

Algumas crenças teístas são consideradas imediatas ou adequadamente


básicas. Isto é, são apropriadamente mantidas, mas não com base em outras
proposições. Deste modo, as crenças de que Deus existe (e outras crenças)
seriam muito parecidas com crenças perceptivas ou memórias. De acordo com
William Alston (1993), por exemplo, as crenças sobre Deus são justificadas com
base nas percepções que temos de Deus. De acordo com Alvin Plantinga (2000;
2003), quando a crença religiosa é produzida por Deus num crente religioso
do modo certo, o resultado é a fé, que é uma crença religiosa imediatamente
justificada (ainda mais garantida – warranted – ou com maior aval epistêmico).
Alguns epistemólogos reformados acreditam que temos uma faculdade especial,
chamada de sensus divinitatis, pela qual percebemos ou de outra forma
obtemos crenças imediatamente justificadas a respeito de Deus. No entanto,
a maioria dos epistemólogos reformados também acha importante responder
a argumentos contra a existência de Deus, principalmente argumentos a partir
da magnitude, duração e distribuição do sofrimento no mundo e argumentos
da ocultação divina. Descreveremos as opiniões de Plantinga e Alston com um
pouco mais de detalhes.

• Especificamente para Plantinga (2000), muitas crenças religiosas são


apropriadamente básicas. Isto é, são apropriadas e básicas. Uma crença é
básica para um assunto apenas no caso em que o sujeito mantém a crença
não com base em outras crenças que ele possa ter. Uma crença é apropriada
apenas no caso em que a crença é justificada, racional e garantida (com
aval epistêmico). Uma crença é justificada apenas no caso em que o
sujeito não está violando quaisquer obrigações intelectuais por acreditar.
A crença é racional apenas no caso em que o sistema cognitivo do sujeito
está funcionando corretamente e o sujeito tem feito o seu melhor no que diz
respeito à formação da crença. Uma crença é garantida apenas no caso em
que a crença do sujeito é produzida por um processo de formação de crenças
que está (1) funcionando corretamente, (2) em um ambiente epistêmico
apropriado, (3) projetado para atingir a verdade, e (4) com sucesso atinge a
verdade. De acordo com Plantinga, se o cristianismo é verdadeiro, as crenças
fundamentais sobre o cristianismo, incluindo as crenças teístas, atendem a
esses critérios e, portanto, são apropriadamente básicas.

70
Capítulo 2 A Epistemologia da Teologia e da Religião

• Especificamente para Alston (1993), muitas pessoas percebem Deus (onde


perceber algo não exige que a coisa percebida exista), e com base em
sua percepção de Deus, as pessoas formam crenças justificadas a respeito
de Deus. Alston argumenta por essa afirmação, oferecendo, primeiro,
relatos de pessoas que alegaram ter percebido Deus. Essas percepções
são semelhantes às experiências perceptuais paradigmáticas: consciência
do objeto, do objeto sendo-lhes apresentado, etc. Alston então argumenta
que mesmo que a percepção de Deus não ocorra através dos sentidos
normais, pode haver uma faculdade diferente responsável por oferecer
as percepções de Deus. Não podemos justificar crenças baseadas na
percepção sensorial normal sem argumentar em círculo, então precisamos
começar com nossas práticas de produção de crença normalmente aceitas
baseadas nas percepções que temos. As crenças relevantes sobre Deus,
que as pessoas que têm percebido Deus possuem, são justificadas com
base em suas práticas normais de formar crenças baseadas em percepções,
desde que não tenhamos razões suficientes para assumir as percepções
de Deus como não confiáveis. Mas, como acontece com as percepções
normais, não temos uma boa razão para considerar as percepções de
Deus como não confiáveis. Mesmo que haja relatos contraditórios sobre
as percepções de Deus, cada pessoa que percebe Deus, pelo menos, tem
uma razão interna suficiente para se engajar em práticas de formação de
crenças usando sua percepção de Deus.

A epistemologia reformada é motivada em pelo menos três maneiras.


Primeiro, a epistemologia reformada é parcialmente motivada por uma
interpretação particular das escrituras cristãs. Por exemplo, Plantinga (2000)
oferece sua explicação influenciada em parte por João Calvino. De acordo com
essa interpretação, os seres humanos são cognitivamente defeituosos devido
ao pecado. Os seres humanos cognitivamente defeituosos não obtêm ajuda
por acreditar nas premissas de um argumento teísta. Seria necessário um ato
especial de Deus para que os seres humanos tivessem crenças garantidas, com
aval epistêmico, sobre Deus.

O ponto de vista do epistemólogo reformado também é motivado pelo


fato de que muitas pessoas acreditaram no teísmo sem acreditar na base de
argumentos, às vezes chamados de forma enganosa de "evidência proposicional"
(ALSTON, 1993). Plantinga diz, por exemplo, que se precisássemos proporcionar
nossa crença de acordo com argumentos, então apenas algumas pessoas
estariam justificadas em suas crenças sobre Deus, e somente depois de muito
esforço e tempo, e sua crença seria ainda incerta e "atravessada com falsidade"
(PLANTINGA, 2000). Aqui, Plantinga está claramente ecoando a linguagem de

71
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Aquino em sua Summa Theologica. Se apenas algumas pessoas têm crenças


religiosas justificadas, então o teísmo estaria, como afirma Stephen Wykstra
(apud PLANTINGA, 1991, p. 290), em "grande problema doxástico". A maioria dos
crentes estaria agindo de forma contrária aos seus deveres intelectuais. Mas, o
argumento tenta assim sustentar, o teísmo não está com esse problema, então
não precisamos proporcionar nossas crenças de acordo com nossos argumentos.

A epistemologia reformada também obtém sua motivação argumentando


contra a visão de Locke – o que chamamos de "hiperevidencialismo", mas
que os epistemólogos reformados muitas vezes chamam simplesmente de
evidencialismo (MICHELETTI, 2007). Bergmann (2010) chama essa visão
opositora de "evidencialismo teísta".

Uma objeção ao evidencialismo semelhante à objeção do epistemólogo


reformado ao evidencialismo ocorre também fora da epistemologia religiosa.
Como podemos ver em Dougherty (2011), que afirma que outros desafios para
o evidencialismo vêm de exemplos de crenças justificadas que parecem não ter
qualquer evidência. No entanto, uma maneira de enquadrar esses debates não
é se o evidencialismo é verdadeiro, mas sim como ele deve ser compreendido,
como devemos entender a natureza da evidência, de tê-la, e de como ela apoia
uma proposição ou atitude.

No caso dos epistemólogos reformados, há dois tipos de argumentos contra


o hiperevidencialismo. O primeiro é mostrar que há muitas crenças que estamos
justificados em manter, mas que tais crenças não são mantidas com base em
quaisquer argumentos (ou evidência proposicional). Por exemplo, a crença de
que existem outras mentes, as crenças baseadas na memória e a crença de que
o mundo não foi criado há cinco minutos. Além disso, algumas pessoas acreditam
em coisas sobre Deus ao ver um belo pôr-do-sol sem qualquer evidência a
oferecer, e presumivelmente essas crenças são justificadas.

O segundo argumento contra a visão de Locke é que essa visão define os


padrões de crença justificada a respeito de Deus em um patamar muito elevado.
Ou seja, pelos padrões de Locke não poderia haver evidência suficiente para a
existência de Deus. Os padrões seguem algo como isto: as evidências de que
você precisa para fundamentar sua crença, para que ela seja justificada, devem
ser proposições que sejam autoevidentes, infalíveis, irrevogáveis, etc. Nenhuma
prova teísta tem premissas que sejam autoevidentes, infalíveis ou irrevogáveis.

72
Capítulo 2 A Epistemologia da Teologia e da Religião

Para ver que o alvo desse tipo de argumento é a visão de que


a evidência consiste inteiramente em proposições, argumentos ou
crenças, veja Advice to Christian Philosophers, de Plantinga (1984),
e Religious Epistemology, de Clark (2004). Para um argumento
contra a opinião de um oponente que as crenças fundamentais
devem ser infalíveis, veja Religion and Epistemology, de Plantinga
e Bergmann (2015). Para um argumento contra a visão de que as
crenças fundamentais devem ser autoevidentes, veja The Prospects
for Natural Theology, de Plantinga (1991).

Às vezes é difícil dizer se os epistemólogos reformados assumem


o seu alvo como sendo uma posição segundo a qual a evidência
consiste inteiramente em proposições ou segundo a qual a evidência
consiste inteiramente em crenças (ou no conteúdo de crenças). Para
permanecermos consistentes, vamos representar o alvo como uma
visão proposicional sempre que possível. Se o alvo for uma visão
doxástica, apenas pequenas alterações serão necessárias.

Além disso, até mesmo as provas teístas que são probabilísticas envolvem
muitas premissas cujas probabilidades precisam ser multiplicadas para render a
probabilidade da conclusão. Multiplicar as probabilidades das premissas resulta
em uma probabilidade muito baixa para a conclusão, uma probabilidade que não é
suficiente para justificar a crença na conclusão (PLANTINGA, 2000). Portanto, se
a visão de Locke é verdadeira, os padrões de justificação estabelecidos são muito
elevados e, como resultado, muitas crenças teístas careceriam de justificação.

Uma diferença entre a epistemologia reformada e o fideísmo é que o


primeiro exige defesa contra objeções conhecidas, como o Argumento Lógico do
Mal proposto por Mackie (1955), enquanto que o segundo pode descartar tais
objeções como irrelevantes ou, pior, como tentações intelectuais. Uma diferença
entre a epistemologia reformada e o fideísmo wittgensteiniano é que o primeiro
propõe um relaxamento universal das condições rigorosas do evidencialismo,
enquanto o último só propõe um relaxamento para o caso das crenças religiosas.

73
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

A epistemologia reformada poderia estar correta e, no entanto, ser muito


menos significativa do que seus proponentes consideram ser. Isso aconteceria se,
de fato, poucas crenças religiosas se fundamentassem nos tipos de experiências
religiosas comuns que a maioria dos crentes tem. Pois, na verdade, pode ser que
as crenças façam parte da causa da experiência e não ao contrário (KATZ, 1978).

Atividades de Estudos:

1) A epistemologia reformada é uma posição que traz inúmeras


questões para discussões na epistemologia da teologia e
da religião. Apresente sua compreensão sobre o que seria a
epistemologia reformada.
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O Estado Atual do Debate


O fideísmo e a epistemologia reformada são ambas reações à visão
Iluminista, tanto do Iluminismo inglês, representado pelos escritos de John Locke,
o Iluminismo escocês, representado pelos escritos de David Hume e Thomas
Reid, o Iluminismo francês, representado pelos escritos de Diderot e o Barão
de Holbach, e o Iluminismo alemão, representado pelos escritos de Immanuel
Kant. Entretanto, as contra-argumentações da epistemologia reformada estão
estreitamente associadas a posições expressas por Locke, que tem como núcleo
as três teses seguintes, que servem como premissas para a conclusão de que a
crença justificada de que Deus existe não é fundacional, que podemos chamar de
Evidencialismo Iluminista.

a) O argumento do hiperevidencialismo

1) Evidencialismo epistêmico: A crença B é justificada para S no momento t somente


se a evidência de S suporta suficientemente B no momento t (onde os critérios
gerais para o que conta como evidência para crenças religiosas são os mesmos
que os critérios para o que conta como evidência para crenças não religiosas).

74
Capítulo 2 A Epistemologia da Teologia e da Religião

A evidência E de S pode suportar B inferencialmente ou não inferencialmente.


A evidência E suporta não inferencialmente B apenas no caso em que E é uma
experiência não doxástica, interpretada amplamente, que S tem e B é uma resposta
epistemicamente adequada à E. A evidência de S suporta inferencialmente B
apenas no caso em que E consiste em outras crenças racionais que S tem e
o conteúdo de E dedutivamente, indutivamente, ou abdutivamente sustenta o
conteúdo de B.

O evidencialismo Iluminista também contém a visão de que o suporte


evidencial para uma proposição só pode ser obtido se a proposição for fundacional
ou suficientemente provável nas proposições fundacionais. Esta adição, no
entanto, é desnecessária para o argumento anterior. Além disso, o evidencialismo
epistemológico contemporâneo não contém essa adição.

2) A explicação fundacional clássica da evidência: a evidência de S consiste


inteiramente em proposições que são infalíveis, autoevidentes, irrevogáveis, etc.

As evidências a que nos referimos neste argumento são evidências básicas.


Algumas pessoas pensam que as coisas que são inferidas fazem parte das suas
próprias evidências, mas isso é só de uma maneira de falar. O que é verdade é
que as proposições inferidas podem servir como premissas em um argumento
convincente. Mas, como lemas, elas são sempre elimináveis ​​ e só servem a
um propósito pedagógico para nos permitir recorrer a regras mais simples de
inferência.

3) A tese teológica particular: A proposição de que Deus existe não é infalível,


autoevidente, irrevogável, etc.
4) A proposição de que Deus existe não faz parte da evidência de S (a partir das
premissas 2 e 3), então,
5) Hiperevidencialismo: Se a crença de S de que Deus existe é justificada,
está suficientemente apoiado por outras proposições (ou seja, é suportado
inferencialmente) - (a partir das premissas 1 e 4).

O principal objetivo da epistemologia reformada é incluir a proposição de que


Deus existe nos fundamentos, de modo a negar o hiperevidencialismo. A visão
do Iluminismo, representado pela posição de John Locke, conforme considerada
pelos epistemólogos reformados, inclui compromissos que impedem a proposição
de que Deus existe a partir dos fundamentos. Colocar Deus nas fundações requer
a rejeição de pelo menos um desses compromissos (geralmente a premissa 2).
Mas o argumento acima pode ser generalizado de modo a remover qualquer
referência ao fundacionalismo clássico. Qualquer fundacionalismo que exija que
as fundações tenham uma característica que a proposição de que Deus existe
não tem, gera a mesma conclusão de uma maneira muito semelhante:

75
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

b) O argumento generalizado do hiperevidencialismo

1) Evidencialismo epistêmico: A crença B é justificada para S se, e somente se,


a evidência de S suporta suficientemente B em t (onde os critérios gerais
para o que conta como evidência para crenças religiosas são os mesmos que
os critérios para o que conta como evidência para crenças não religiosas).
2) Explicação seletiva da evidência: a evidência de S consiste inteiramente em
proposições que têm a característica F.
3) Tese teológica particular: A proposição de que Deus existe não tem F.

Destes, segue-se que

4) A proposição de que Deus existe não faz parte da evidência de S. (a partir de


2 e 3)

Assim,

5) Hiperevidencialismo: Se a crença de S de que Deus existe é justificada,


está suficientemente apoiada por outras proposições (ou seja, é suportado
inferencialmente – a partir de 1 e 4).

O fideísmo em suas formas extremas e moderadas implica a negação


da premissa 1. Os fideístas do tipo extremo sustentam que alguém pode
racionalmente manter uma crença contrária à sua evidência ou sem qualquer
evidência de apoio, ou que os critérios para o que conta como evidência diferem
para crenças religiosas e para as crenças não religiosas. Os fideístas do tipo
moderado sustentam que às vezes é racional manter uma crença teísta, mesmo
que seja ambíguo o fato de se a evidência apoia essa crença. Se alguém negasse
a premissa 1, naturalmente não precisaria negar nenhuma outra premissa para
negar a premissa 5, e pensaria que seria irrelevante para a racionalidade das
crenças teístas se a premissa 4 fosse verdade. Por outro lado, os fideístas do
tipo fraco podem endossar a premissa 1 (a visão de Evans é compatível com
esta premissa – como descrevemos acima) enquanto que podem negar outra
premissa. Como a discussão restante sobre a epistemologia reformada deixará
claro, o endosso de um tipo fraco de fideísmo é compatível com um endosso da
epistemologia reformada.

Os epistemólogos reformados negam a premissa 5. De fato, eles definem


sua posição em oposição ao hiperevidencialismo (o que os epistemólogos
reformados chamaram simplesmente de evidencialismo). Quase todos os
epistemólogos reformados negam a premissa 5 porque negam a premissa 4: os
epistemólogos reformados sustentam que a existência de Deus pode ser uma
crença apropriadamente fundacional – não precisa estar apoiada por outras

76
Capítulo 2 A Epistemologia da Teologia e da Religião

proposições para ser justificada – e assim pode ser parte de nossa evidência, e
se for apoiada por evidências proposicionais (por exemplo, do tipo fundacionalista
clássico), isto seria meramente uma justificação "bônus". Se os epistemólogos
reformados negam a premissa 4, é porque eles negam a premissa 2 ou a 3.

Os epistemólogos reformados rejeitam qualquer fundacionalismo que propõe


uma condição necessária para ser fundacional, em que a proposição de que Deus
existe não pode se encontrar. Ao invés de fazer isso de forma fragmentada, no
entanto, eles sugerem o seu próprio fundacionalismo com uma condição suficiente
para a existência de Deus ser fundacional. Esta abordagem proativa origina uma
"epistemologia reformada" mais espessa, especialmente o modelo estendido
Aquino/Calvino de Plantinga. Mas o mesmo efeito é alcançado por certos
fundacionalismos moderados contemporâneos, incluindo o conservadorismo
fenomenal, que veremos mais adiante.

A epistemologia reformada é completamente consistente com a premissa 1)


Esta premissa é irrelevante se alguém é um epistemólogo reformado. Além disso,
como se mostrou nos parágrafos anteriores, se alguém negasse a premissa 1)
ela não precisaria negar a premissa 2 ou 3. Os fideístas extremos e moderados
negam a premissa 1 e os epistemólogos reformados não endossam o fideísmo
extremo ou moderado (WOLTERSTORFF, 1996). De fato, Plantinga endossa
explicitamente o evidencialismo epistêmico. Em sua obra, Plantinga (2000)
argumenta que a garantia (o aval epistêmico) requer evidência, de modo que um
sujeito não pode legitimamente acreditar que Deus existe sem evidência.

Os epistemólogos reformados argumentam contra a premissa 2. Por exemplo,


Kelly James Clark (2001), William Alston (1993) e Alvin Plantinga (2000), todos
epistemólogos reformados, argumentam explicitamente contra a premissa 2. Uma
maneira de caracterizar a epistemologia reformada, como em Greco (2007), é a
oposição à ideia de que as crenças sobre Deus precisam ser baseadas em um
tipo particular de fundamento – o tipo envolvido em dar razões ou argumentos
para as crenças de alguém. Mas as razões referidas são, como Greco deixa claro,
baseadas em crenças autoevidentes ou incorrigíveis. Esta estratégia pode, é
claro, ser generalizada.

Além disso, Paul Moser (2010) e C. Stephen Evans (2010), que poderiam
ser chamados de epistemólogos reformados, mas que também endossam o
evidencialismo epistêmico, também negam a premissa 2. Ainda mais, Richard
Swinburne (2004), um evidencialista que alguns dos epistemólogos reformados
dizem que ele desenvolve o projeto do Iluminismo tal como legado por Locke
(WOLTERSTORFF, 1998), nega a premissa 2 e endossa a visão de que a
experiência religiosa fornece evidência básica, não inferencial para o teísmo.
Além disso, o compromisso de Swinburne (2001) com o credulismo o compromete

77
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

a possibilidade de uma crença plenamente justificada na base da experiência


religiosa. Portanto, negar a premissa 2 não é exclusivo daqueles que se chamam
epistemólogos reformados. Na verdade, é negado por muitos que se chamam
também evidencialistas.

Não só muitos epistemólogos reformados (pessoas que mantêm que a crença


em Deus pode ser apropriadamente básica) mantêm o evidencialismo epistêmico,
mas também muitos evidencialistas epistêmicos sustentam que a crença em
Deus pode ser apropriadamente básica (e, portanto, epistemologia reformada).
Qualquer evidencialista que sustenta que a experiência religiosa fornece uma
base racional sobre a qual pode-se acreditar que Deus existe, endossa a visão de
que alguém pode racionalmente acreditar que Deus existe sem o argumento de
outras proposições. Para essa pessoa, a existência de Deus é imediata e básica.
Assim, quem pensa que a experiência religiosa fornece evidências com base nas
quais alguém pode racionalmente acreditar que Deus existe (ou manter outras
crenças teístas) é tanto um epistemólogo evidencialista quanto um epistemólogo
reformado.

O evidencialista epistêmico e epistemólogo reformado podem concordar,


contrariamente ao ponto de vista de Locke, que é racional ter como crença básica
que existem outras mentes e que o mundo não foi criado há cinco minutos. O
evidencialista epistêmico sustenta que é racional para um sujeito acreditar nessas
coisas com base em sua evidência. Se a evidência não se restringe a crenças
ou argumentos, o evidencialista epistêmico pode assumir que as evidências (em
alguns casos, pelo menos) são intuições, experiências ou estados aparentes. De
fato, os principais evidencialistas epistemológicos, como Conee e Feldman (2004,
2008), não mantêm teorias proposicionais de evidências, mas sim, afirmam
que a evidência em última instância consiste em experiências. Desta forma, o
evidencialista epistêmico também pode afirmar que é racional ter como crenças
básicas que há outras mentes e que o mundo não foi criado há cinco minutos.

Aqui está apenas um exemplo de como isso pode ser feito. Os


evidencialistas podem manter o evidencialismo epistêmico e sustentar que
alguém pode racionalmente acreditar que Deus existe sem argumento, mantendo
o conservadorismo fenomênico. Dougherty (2011), por exemplo, apresenta uma
breve história da experiência em evidências relacionadas ao conservadorismo
fenomênico. Já Conee apresenta seu "evidencialismo aparente" (CONEE;
FELDMAN, 2004), em que para ele as aparências que p fornece razões para
acreditar que p. Esta visão tem seus predecessores, Chisholm (1974) chama seu
ponto de vista de "common-sensism", uma variação da filosofia do senso comum.
No caso de Swinburne (2001), ele centra sua epistemologia em um "princípio da
credulidade", e Huemer (2001) chama seu ponto de vista de "conservadorismo
fenomênico".

78
Capítulo 2 A Epistemologia da Teologia e da Religião

Uma maneira de formular o conservadorismo fenomênico é esta: Se parecer para


um sujeito S que uma proposição p se mantém, então S tem uma razão (irrefutável) para
acreditar p. Esse não é o princípio da credulidade de Swinburne ou o conservadorismo
fenomênico de Huemer, ambos muito fortes. As aparências podem ser bastante fracas
para não fazer p provável ou justificado (mesmo prima facie), respectivamente. Se o
estado aparente é suficientemente forte, então S tem uma razão suficientemente
forte para acreditar p, de modo que S está justificado em acreditar p. Esses estados
aparentes não são crenças, não são autoevidentes e não são infalíveis, mas constituem
evidência. Assim como o funcionalismo apropriado de Plantinga, o conservadorismo
fenomênico é (ou poderia pelo menos ser facilmente incorporado) uma forma de
fundacionalismo não clássico (HUEMER, 2001).

Além disso, pode parecer-nos suficientemente forte que existem outras mentes
e que o mundo não foi criado há cinco minutos. Para o evidencialista conservador
fenomênico que aceita que as experiências religiosas fazem parecer que existe
um Deus, as crenças (não desviantes) resultantes dessas experiências serão
devidamente baseadas em evidências. Compare o relato de percepção que Alston
(1993, p. 5) oferece, “uma consciência de que algo está aparecendo a alguém
como tal e tal”, com um aparente, que é "uma espécie de experiência com conteúdo
proposicional" de Tucker (2011, p. 55-56). Se as percepções de Alston não coincidem
com os estados aparentes, talvez ele corresponda a um estado como-se-aparente,
que é não proposicional e que causalmente precede estados aparentes. Assim,
pode-se ser um evidencialista epistêmico e um epistemólogo reformado. Chris
Tucker (2011) até tentou reconciliar o evidencialismo conservador fenomênico com
a explicação do aval epistêmico – garantia/warrant – (e não apenas a justificação,
o aval epistêmico é tudo o que for adicionado à crença verdadeira para torná-la
conhecimento) e um lugar para o que alguns epistemólogos reformados acreditam
ser uma faculdade especial para perceber Deus: o sensus divinitatis.

Além disso, alguém que sustenta tanto o evidencialismo epistêmico quanto


a epistemologia reformada também pode ser consistentemente um fideísta do
tipo fraco. Esta pessoa pode considerar que existem condições para adquirir
adequadamente evidências, e uma dessas condições é a fé. Talvez essa evidência
seja uma experiência ou o aparente ou algum outro fundamento, e ao obter essa
evidência, a pessoa estaria imediatamente justificada em acreditar que Deus existe.

Talvez seja útil para alguém denominar-se um evidencialista (para mostrar


sua oposição ao fideísmo extremo ou moderado) ou um epistemólogo reformado
(para mostrar sua oposição à visão iluminista) ou um fideísta do tipo fraco (para
mostrar sua oposição à opinião de que o pecado ou a fé não é relevante à
formação racional da crença). Estes títulos são úteis como um meio de identificar-
se com uma determinada comunidade com distinções históricas particulares. No
entanto, deve ser claro que quando alguém diz que se identifica com um desses
três pontos de vista, eles não estão necessariamente se opondo aos outros.

79
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Para aprofundar seus estudos sobre estas três posições,


sugerimos a leitura dos seguintes artigos. Para a epistemologia
reformada veja os artigos de Uchôa, Epistemologia reformada,
anuladores e evidencialismo (2011) e Epistemologia reformada e
a racionalidade da crença cristã (2015); para o debate atual entre
fideístas, epistemólogos reformados e evidencialismo teísta veja
A racionalidade da crença religiosa, um mapa do debate filosófico
atual, de Oliveira (2013).

Algumas Considerações
Neste capítulo apresentamos apenas um aspecto introdutório da
epistemologia da teologia e da religião. Você foi convidado a revisitar brevemente
a história da fé e da razão como um plano de fundo para as posições hoje
sustentadas por pensadores que participam dos debates nesta área. Procuramos
caracterizar estas posições, o fideísmo, o evidencialismo e a epistemologia
reformada. Entretanto, podemos dizer que são apenas generalizações que podem
esconder diversas nuances e ramificações que ainda não exploramos. O que
levanta o desafio para que você, acadêmico, procure aprofundar seus estudos
sobre as questões introduzidas aqui.

No próximo capítulo vamos voltar a alguns temas já explorados, procurando


ampliar o debate sobre as implicações epistemológicas ao conhecimento religioso.
Portanto, não deixe de rever os conceitos e as posições apresentadas neste
capítulo para aproveitar ao máximo o conhecimento que estamos construindo
sobre este campo de investigação da epistemologia da teologia.

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87
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

88
C APÍTULO 3
O Conhecimento Religioso e suas
Implicações Epistemológicas

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

� Compreender a razoabilidade da crença religiosa e a possibilidade do


conhecimento religioso.

� Identificar as alternativas à filosofia Iluminista na proposta da


conscienciosidade epistêmica.

� Analisar as implicações do experiencialismo para o conhecimento


religioso.

� Constatar a complexidade da relação entre justificação e racionalidade.


EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

90
Capítulo 3 O Conhecimento Religioso e suas Implicações Epistemológicas

Contextualização
As crenças têm um
A religião é uma prática humana complexa que inclui emoções papel mais central
distintas, crenças, atos e criações artísticas e musicais que expressam para algumas
e promovem um sentido do sagrado. As pessoas que pertencem a uma pessoas do que
tradição de fé particular geralmente pensam que têm conhecimento para outras, e as
religioso adquirido através da prática de sua religião, mas suas crenças crenças são muito
mais importantes em
religiosas formam apenas uma parte da prática. As crenças têm um papel
algumas religiões do
mais central para algumas pessoas do que para outras, e as crenças que em outras.
são muito mais importantes em algumas religiões do que em outras.
O Cristianismo e o Islã são religiões doutrinárias cuja prática torna certas crenças
cruciais, enquanto o Budismo é muito menos focado em exigir a crença como parte
da prática. No entanto, uma maneira importante de distinguir uma religião de outra
religião está nas crenças que são características das diferentes tradições religiosas.
Também pode haver crenças que distinguem aqueles que praticam a religião
daqueles que não praticam nenhuma, mas essa diferença é mais difícil de identificar.

Os filósofos epistemólogos se interessam por saber se os ensinamentos de


qualquer religião são verdadeiros porque muitas religiões oferecem respostas às
perguntas que os filósofos fazem: Qual é a origem do mundo material? Qual é a
natureza da pessoa humana? Existe um Deus? De onde vieram o bem e o mal?
Existe uma vida após a morte? Os filósofos fazem essas perguntas fora da prática
de qualquer religião e sem supor que uma ou mais religiões oferecem respostas
verdadeiras a essas perguntas. A filosofia também é uma prática e, embora as
regras da filosofia sejam elas próprias um tema de debate filosófico, é justo dizer
que os filósofos epistemólogos sempre tiveram padrões especialmente fortes para
o que conta como respostas boas às perguntas similares àquelas descritas acima
e padrões especialmente fortes para avaliar as respostas que são propostas. Na
medida em que as crenças de uma prática religiosa competem com as crenças
de outra prática sobre questões que os filósofos epistemólogos levantam, a
epistemologia tenta julgar a disputa.

Os filósofos epistemólogos fazem mais distinções do que aquelas comumente


feitas fora da prática da filosofia. Uma importante distinção para o tema deste
capítulo é a distinção entre conhecimento e crença razoável. Os filósofos quase
sempre concordam que você não pode conhecer algo a menos que seja verdade,
mas pode ser razoável para você acreditar em algo mesmo que seja falso. Por
exemplo, pode ser perfeitamente razoável para você acreditar que o colesterol
alto aumenta suas chances de contrair doenças cardíacas, mas se a crença
for falsa, você não a conhece. Assim, acreditar razoavelmente não garante que
você obtenha a verdade, e por isso não garante o conhecimento, como vimos
anteriormente nos casos de tipo-Gettier (GETTIER, 1963).

91
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Também é possível que você obtenha a verdade sem acreditar razoavelmente.


Você pode ser irrazoável, mas sortudo. Então talvez você acredita que beber chá
verde aumenta a longevidade porque você leu em uma propaganda. Mas mesmo
que seja verdade que o chá verde vai fazer você viver mais tempo, você não sabe
disso se a sua fonte é uma simples propaganda. Você não sabe disso porque
a crença não é razoável em tais circunstâncias. Assim, o conhecimento parece
requerer alguma combinação de crer na verdade e crer razoavelmente.

A maneira pela qual a verdade e a crença razoável se separam torna


tentador pensar que os filósofos epistemólogos deveriam fazer uma discussão
da razoabilidade da crença religiosa independentemente de uma
investigação da verdade religiosa. Em outras palavras, a verdade
A verdade é uma
é uma coisa, a razoabilidade é outra, e o conhecimento é uma
coisa, a razoabilidade
é outra, e o combinação de ambas. Se assim for, a verdade religiosa é uma
conhecimento é uma coisa, a razoabilidade na crença religiosa é outra, e o conhecimento
combinação de religioso é uma combinação das duas. Isso pode sim ser basicamente
ambas. correto até certos limites, e para a maior parte deste capítulo vamos
nos concentrar na razoabilidade da crença religiosa e não na sua
verdade. Mais adiante do texto, examinaremos novamente a influente teoria do
conhecimento religioso – a epistemologia reformada – que rejeita a independência
da verdade e da razoabilidade no caso da crença cristã.

A Crença Religiosa e os Princípios


Orientadores da Filosofia Iluminista
Nós empreendemos, até o momento, uma investigação do conhecimento
religioso partindo da filosofia, não da religião, mas não é óbvio que esta é a maneira
correta de proceder. Se pensarmos que devemos começar com um tratamento
do conhecimento fora do domínio da religião, e depois aplicar esse tratamento
à questão do que é o conhecimento religioso e se este é possível, poderíamos
acabar com uma visão distorcida da natureza do conhecimento religioso. Isso
porque os filósofos geralmente começam com certos casos paradigmáticos de
conhecimento, e isso limita a forma como o conceito de conhecimento é aplicado
fora do domínio dos paradigmas.

Tipicamente, os paradigmas consistem em casos simples de conhecimento
perceptivo, conhecimento baseado na memória e casos incontroversos de
conhecimento científico. Este método cria problemas para a compreensão
de muitos tipos de conhecimento, particularmente o conhecimento moral, o
conhecimento que depende da habilidade e o conhecimento que depende
da experiência ou da sabedoria especial. Se há conhecimento que deriva da

92
Capítulo 3 O Conhecimento Religioso e suas Implicações Epistemológicas

sabedoria de algumas pessoas ou tradições excepcionais, ou que depende de


experiências que nem todo ser humano possui, o conhecimento religioso, sem
dúvida, estaria nessa categoria. Mas é difícil explicar esse tipo de conhecimento
se permitimos que os paradigmas padronizados do conhecimento ditem a maneira
como entendemos o conhecimento religioso.

Há razões pelas quais a filosofia contemporânea ainda lida com o projeto


moderno, mesmo que denunciando sua crise, como vemos nos trabalhos de
Hegel, Marx, Husserl e Heidegger, por exemplo (OLIVEIRA, 2001). Uma dessas
razões é que herdamos atitudes e princípios que limitam severamente as fontes
de conhecimento em que confiamos e que estabelecem normas para a correta
relação entre as crenças que aceitamos como razoáveis. A maioria dessas atitudes,
como já vimos nos capítulos anteriores, surgiu durante o Iluminismo (representado
por diferentes pensadores do Iluminismo inglês, escocês, francês e alemão,
como referido no capítulo anterior). Algumas delas são bem conhecidas e muitas
vezes debatidas, mas algumas delas foram tão completamente assimiladas que
nem sequer são notadas. Por exemplo, os estudiosos de Descartes estão bem
cientes de que Descartes era um fundacionalista. Ele pensava que nossas crenças
têm uma estrutura como uma pirâmide invertida, com algumas crenças na base
apoiando todo o edifício de nossas crenças. Para ter a estrutura mais razoável e
segura, as crenças fundamentais devem ser indubitáveis, absolutamente infalíveis
(NUNES, 2017; POLÓNIO, 2015). O legado de Descartes (LENNON, 2011) incluiu
uma propensão ao fundacionalismo extensamente discutida, mas deixou-nos
também algo mais: uma suspeita da autoridade epistêmica e uma falta de confiança
na sabedoria das tradições e dos outros indivíduos (SOUZA FILHO, 2004).
Descartes (2004) começa suas Meditações com um lamento de que as pessoas
e as instituições que ele anteriormente tinha confiado epistemicamente
o desapontaram. E seus próprios sentidos o haviam desapontado. Experiências de
Portanto, sua busca por um novo método de obtenção de conhecimento perda de confiança
baseava-se na perda da confiança epistêmica nos outros e na perda na autoridade
parcial da confiança em si mesmo. Experiências de perda de confiança e nas tradições
eram amplamente
na autoridade e nas tradições eram amplamente difundidas no início do
difundidas no início
período moderno. O resultado é que a suspeita da autoridade de todos do período moderno.
os tipos está profundamente enraizada na cultura moderna.

93
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Danilo Marcondes (2010, p. 255) define o projeto moderno


como “a busca da fundamentação da possibilidade do conhecimento
e das teorias científicas na análise da subjetividade, do indivíduo
considerado como sujeito pensante, como dotado de uma mente ou
consciência caracterizada por uma determinada estrutura cognitiva,
bem como por uma capacidade de ter experiências empíricas sobre o
real, tal como encontramos no racionalismo e no empirismo, embora
em diferentes versões”.

Temos herdado uma outra ideia do Iluminismo que afeta o modo como
abordamos o conhecimento religioso: o igualitarismo intelectual (ZAGZEBSKI,
2012). Supõe-se comumente que todos nós somos aproximadamente iguais em
nossas capacidades epistêmicas. Qualquer experiência que fundamenta a crença
deve ser uma experiência que qualquer pessoa pode ter. Além disso, supõe-se
que ninguém é especialmente sábio ou, se há pessoas sábias, não podemos
identificá-las de uma forma que seria útil para nós mesmos. Benedito Nunes
expressa bem essa herança ao afirmar que o Iluminismo se caracteriza pela:

[...] uniformidade da razão, que ligou entre, numa só matriz filo-


sófica, essa mesma ideia de Razão – o bom senso cartesiano,
igualmente compartilhado por todos os homens – e a ideia de
Natureza – o conjunto daquelas disposições que, acessíveis
ao livre exame analítico, seriam iguais em toda parte, escapan-
do à força do hábito, ao prestígio da autoridade, às tradições
e aos caprichos das circunstâncias históricas, bem como à in-
fluência, considerada perturbadora, das paixões e dos hábitos
[...] também decorreram dela o consensus gentium, como ins-
tância coletiva da razão uniforme, o cosmopolitismo abstrato,
nivelador de todas as diferenças nacionais e todas as particu-
laridades locais, e o igualitarismo intelectual, que se completou
por uma curiosa tendência anti-intelectualista, que defendia a
posse pacífica, pela simples aplicação do bom senso, de ver-
dades essenciais, acessíveis, em igual medida, aos cidadãos
civilizados europeus e aos selvagens [...] (NUNES, 1985, p. 56)

Portanto, se existem comunidades epistêmicas, elas não têm estrutura de


autoridade, não há tradições confiáveis ​​e não há pessoas a quem o resto de nós
deva depender de seus insights (visão clara, repentina, comumente intuitiva, de
um problema e sua resolução). Tanto o igualitarismo intelectual como a suspeita
moderna da autoridade são componentes importantes do liberalismo político.

94
Capítulo 3 O Conhecimento Religioso e suas Implicações Epistemológicas

Assim, a suspeita da autoridade epistêmica e o igualitarismo intelectual A suspeita da


têm raízes na teoria política moderna, bem como na epistemologia. autoridade
Esses aspectos da prática filosófica geralmente não são debatidos epistêmica e
porque são tomados como garantidos. o igualitarismo
intelectual têm
raízes na teoria
Há muitas maneiras diferentes em que esses princípios e atitudes política moderna,
afetam a maneira como os filósofos se aproximam da razoabilidade bem como na
da crença religiosa e da possibilidade do conhecimento religioso. Por epistemologia
exemplo, geralmente não é observado que as discussões sobre a
justificação da crença religiosa, pelo menos desde Hume (1992, 2009), assumem
duas formas diferentes de fundacionalismo. Primeiro, assume-se que a crença
teísta é a base para todas as outras crenças religiosas. Em segundo lugar, supõe-
se que as crenças são o fundamento da religião. A religião é uma prática em que
as crenças vêm em primeiro lugar e o resto da prática, incluindo emoções, atos e
rituais religiosos, derivam sua justificação da justificação independente das crenças
religiosas.

Álvaro Nunes (2017, p. 7) explica o que é o Fundacionalismo


da seguinte maneira: “A ideia base do fundacionismo é a de que
justificamos as nossas crenças apelando a outras crenças que são
mais básicas, até chegarmos a crenças tão básicas que não seja
possível ou razoável procurar justificá-las através de outras crenças.
Assim, de acordo com o fundacionismo há dois tipos de crenças, as
básicas, ou fundacionais, e as não básicas, ou não fundacionais.
As crenças não fundacionais são crenças que, para que sejam
consideradas conhecimento, têm de ser justificadas por outras
crenças. As crenças fundacionais, evidentemente, são as crenças
que justificam as crenças não fundacionais. Para o fundacionismo,
o conhecimento é como um edifício de crenças, em que as crenças
mais básicas suportam as outras, da mesma forma que os andares
inferiores de um edifício suportam os outros”.

95
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Essas duas formas de fundacionalismo, juntamente com o igualitarismo intelectu-


al e a suspeita da autoridade, explicam uma linha de pensamento sobre a religião que
persiste desde o Iluminismo. Esta linha de pensamento conduz a uma dúvida geral
sobre a razoabilidade da crença religiosa. Ela pode ser descrita da seguinte forma:

(1) A justificação da prática da religião depende da justificação das crenças reli-


giosas.

(2) A justificação das crenças religiosas depende da justificação do teísmo.

(3) A justificação do teísmo depende do sucesso de argumentos cujas premis-


sas devem ser acessíveis a qualquer pessoa inteligente ordinária. Nenhuma
experiência especial pode ser assumida, e nenhuma confiança na autoridade
pode ser realizada.

Essas premissas levam ao ceticismo sobre a religião se acrescentarmos mais


uma afirmação:

(4) Não há argumento sólido para o teísmo que comece com premissas acessíveis
a qualquer pessoa inteligente ordinária sem referência à experiência especial
ou à autoridade.

É possível, diante deste desafio imposto pelo fundacionalismo, assumir uma


abordagem diferente, uma em que não sejam as virtudes intelectuais baseadas no
evidencialismo ou no confiabilismo o critério único e último para o conhecimento.
Code (1987), Montmarquet (1993) e Zagzebski (1996), por exemplo, propõem a
conscienciosidade epistêmica como a virtude intelectual nuclear para chegarmos
ao conhecimento. Veremos na seção a seguir como podemos assumir esta abor-
dagem alternativa.

A Conscienciosidade Epistêmica:
Emoções, Confiança, Autoridade,
Testemunho, Imitação e Sabedoria
Podemos alegar que nenhuma das reivindicações (1)-(3) mencionadas
foi estabelecida. Na verdade, podemos até mesmo dizer que elas são todas
falsas. Seria preciso uma teoria muito mais elaborada da pessoa humana do
que os epistemólogos concordam em estabelecer na premissa (1). Por que
devemos pensar que as emoções devem ser justificadas por uma justificação
prévia e independente das crenças? É claro que algumas emoções precisam
ser justificadas por crenças. Por exemplo, meu medo do objeto em meu quintal
precisa ser justificado em minha crença de que é uma serpente. Todavia, algumas
emoções podem ser mais básicas do que qualquer crença e a emoção pode

96
Capítulo 3 O Conhecimento Religioso e suas Implicações Epistemológicas

servir para justificar a crença, e não vice-versa (BRUN; DOGUOGLU; Algumas emoções
KUENZLE, 2016). Podemos alegar que há emoções que fundamentam podem ser mais
as crenças morais dessa maneira. Sentimos repugnância diante de básicas do que
qualquer crença e a
uma exibição de arrogância, admiração por um ato de coragem e
emoção pode servir
indignação por atos de injustiça. Se somos adeptos da filosofia moral, para justificar a
poderemos explicar o que é bom sobre a coragem e como isso é um crença
ato de coragem e o que é mau sobre a arrogância e a injustiça e por
que esses atos particulares se qualificam como atos de arrogância ou injustiça.

Todavia, é altamente duvidoso que nos engajássemos em teorias morais


desse tipo se não fosse por uma visão mais fundamental sobre o valor ou a
desvalorização de atos particulares que detectamos através das emoções
(NUSSBAUM, 2012; SOLOMON, 2014; ZAGZEBSKI, 2004). Da mesma forma,
parece que há uma variedade de emoções religiosas, incluindo reverência, temor
e remorso que servem um papel paralelo em revelar o valor religioso para nós.
De qualquer forma, a possibilidade de que as emoções religiosas desempenhem
um papel fundamental na justificação da prática religiosa não foi descartada
(LEYSER, 2015).

A verdade da premissa (2) também não foi estabelecida. Sandra Menssen


e Thomas D. Sullivan (2002) argumentaram que nem sempre é razoável
estabelecer a existência de uma pessoa antes de estabelecer que essa pessoa
se comunicou com você. Eles dão o exemplo do programa de pesquisa SETI
(Pesquisa de Inteligência Extraterrestre) que monitora um grande número de
sinais de rádio do espaço na tentativa de descobrir se algum deles provavelmente
seria enviado por seres inteligentes em outras partes do universo. Suponha que
os pesquisadores descobrem uma sequência de 1126 bits correspondente aos
números primos de 2 a 101. Eles estariam justificados em acreditar que "alguns
seres altamente inteligentes enviaram esse sinal", e isso por sua vez os justificaria
inferir que "alguma forma de vida altamente inteligente existe (ou existiu) em
algum outro lugar no universo”. Menssen e Sullivan usam esse exemplo para
defender a falsidade da seguinte visão comum sobre a relação entre a crença em
afirmações de revelação e a crença no teísmo: “Não se pode obter um argumento
filosófico convincente para uma afirmação de revelação sem primeiro obter um
caso altamente plausível para a existência de Deus”.

Mas se Menssen e Sullivan estiverem certos ao afirmar que esse ponto


de vista é falso, a premissa (2) também seria falsa. Embora muitas vezes seja
dado como certo que não é razoável adotar as crenças de uma religião teísta
sem primeiro justificar a crença em Deus, isso pode não ser a maneira como uma
pessoa razoável opera. Por exemplo, uma crença de que "Eu fui perdoado por
Deus" pressupõe logicamente a crença de que “Deus existe”, mas não se segue
disso que eu não possa estar justificado em acreditar na primeira crença sem

97
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

primeiro estar justificado em acreditar na segunda. Em alguns casos, pode ser o


inverso.

A premissa (3) tem sido discutida com mais frequência do que as outras
duas, e tem muitos detratores. Alguns filósofos se opõem ao fato de que exclui
argumentos para o teísmo que se fundamentam na experiência religiosa
(PORTUGAL, 2002). William Alston (1993, 2008) propôs que a experiência religiosa
pode justificar a crença religiosa para as pessoas que têm essas experiências,
de uma forma que é paralela à justificação das crenças sobre o mundo físico
baseadas na experiência sensorial. Esta abordagem do conhecimento religioso é
particularmente atraente para os empiristas, uma vez que eles sustentam que a
experiência individual é a fonte última do conhecimento. Mas exige a rejeição de
uma forma forte de igualitarismo intelectual.

Há outras razões para rejeitar a premissa (3). A religião é uma prática


comum. É claro que pessoas individuais podem ser religiosas sem participar de
uma comunidade religiosa, mas a principal razão pela qual a maioria das pessoas
religiosas pensam ter conhecimento religioso é que o adquiriram por meio da
participação em uma comunidade religiosa com ensino autoritário (ZAGZEBSKI,
2012). A autoridade pode derivar de um texto sagrado ou da tradição ou de
alguma combinação dos dois, mas é muito duvidoso que a maioria das pessoas
pensa que seu conhecimento religioso deriva de sua experiência pessoal e
o uso de sua própria razão. Assim como não pensam que suas crenças são
baseadas em testemunhos de sua comunidade, cuja fidedignidade é algo que
eles podem demonstrar pelo uso de sua razão sem a ajuda de participantes na
mesma comunidade (COADY, 1992; GOLDBERG, 2010). Que explicação do
conhecimento e da crença razoável elucidaria isso?

Podemos dizer que a confiança em nós mesmos é a base, mas a


autoconfiança nos leva a confiar em alguns outros mais do que em nós mesmos
em certos aspectos. A autoconfiança apoia a confiança na autoridade e na
sabedoria de certos indivíduos (GOLBERG, 2010). Uma maneira de ver
A autoconfiança isso é que há um desejo natural pela verdade e há uma crença natural
apoia a confiança de que o desejo natural pela verdade é satisfatório. Confiar na crença
na autoridade e na
natural requer que tenhamos uma confiança básica de que nossas
sabedoria de certos
indivíduos faculdades naturais e disposições para formar crenças nos colocam
em uma boa posição para obter a verdade. Mas não confiamos em
nós mesmos do mesmo modo o tempo todo, e confiamos em nós mesmos, em
particular, quando temos o amor disciplinado pela verdade, o que podemos
chamar de conscienciosidade epistêmica (CODE, 1987; MONTMARQUET,
1993). Somos epistemicamente conscienciosos quando exercitamos nossas
faculdades formadoras de crenças da melhor maneira possível. Quando somos
epistemicamente conscienciosos, conscienciosamente passamos a acreditar que

98
Capítulo 3 O Conhecimento Religioso e suas Implicações Epistemológicas

existem outras pessoas que são mais confiáveis ​​do que nós mesmos, Somos
e uma vez que confiamos na maneira como chegamos a ter tal crença, epistemicamente
confiamos na própria crença (GRECO, 2015). Há indivíduos que têm conscienciosos
qualidades, das quais confiamos em nós mesmos, em maior grau quando exercitamos
do que nós próprios – conscienciosidade epistêmica, capacidade de nossas faculdades
formadoras de
avaliar evidências, bom juízo prático e muitas outras qualidades que
crenças da melhor
uma pessoa conscienciosa confia em sua busca pela verdade. Em maneira possível.
muitos casos, concordar com o juízo de tal pessoa resulta em uma
autoconfiança consistente.

Confiar em nós mesmos nos leva a confiar em certos outros mais do que em
nós mesmos de outra maneira também. Há emoções que a maioria de nós confia
e emoções que a maioria de nós não confia. Uma emoção que provavelmente
confiamos quando somos conscienciosos é a emoção da admiração (SOSA, 2013).
Quando confiamos em nossa emoção de admiração, confiamos que a pessoa
que admiramos é admirável, merecedora de admiração. Às vezes, admiramos
epistemicamente outra pessoa e confiamos nessa emoção. Confiamos então
que a pessoa que epistemicamente admiramos é epistemicamente admirável
(ZAGZEBSKI, 2012; LUZ, 2013). Se essa pessoa acredita algo no domínio de
sua admirabilidade, isso nos dá uma razão para acreditar também. Naturalmente,
essa razão pode ser derrotada por outras coisas em que confiamos mais, mas
muitas vezes não há nada em que confiamos mais.

A sabedoria está muitas vezes incrustrada nas comunidades A confiança nas


e não nos indivíduos. Isto é especialmente verdadeiro quando a pessoas sábias e
comunidade existe para transmitir a sabedoria de um indivíduo cuja na sabedoria das
sabedoria excepcional ocorre apenas uma vez em um milênio, ou uma comunidades é a
base da autoridade
vez em dez milênios. Uma pessoa pode pertencer a tal comunidade e
epistêmica. A
confiar nela de uma maneira que é semelhante à sua confiança em si autoridade repousa
mesmo (KUSCH, 2002). Ele pode admirar a qualidade da sabedoria sobre a confiança
que ele percebe na comunidade e pode confiar nessa admiração. e a confiança
Podemos dizer que a confiança nas pessoas sábias e na sabedoria na autoridade é
das comunidades é a base da autoridade epistêmica. A autoridade justificada pela
autoconfiança.
repousa sobre a confiança e a confiança na autoridade é justificada
pela autoconfiança.

A confiança na autoridade pode levar ao conhecimento (COADY, Conhecimento


através de
1992). Uma maneira é através do testemunho daqueles em autoridade,
testemunho pode
e conhecimento através de testemunho pode ser justificado por confiança ser justificado
conscienciosa. Não há nenhuma razão aparente para que não possa por confiança
haver conhecimento religioso adquirido através do testemunho dessa conscienciosa.
maneira (LACKEY, 2008; LACKEY; SOSA, 2011).

99
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Mas nós adquirimos conhecimento de outros em que temos


Nós adquirimos
muitos tipos de confiança por outras maneiras que não o testemunho. A posição
conhecimento, aqui é que nós adquirimos muitos tipos de conhecimento, inclusive
inclusive o o conhecimento religioso, imitando aqueles que o têm, os povos
conhecimento cuja sabedoria nós admiramos. Tomasello (1996) já afirmou que a
religioso, imitando transmissão cultural parece depender da imitação. Ao observar um
aqueles que o
modelo, há duas coisas que se pode imitar: o fim ou o meio. A emulação,
têm, os povos cuja
sabedoria nós por exemplo, é uma forma de aprendizagem observacional, diferente
admiramos. da imitação, que se concentra nos resultados ambientais da ação em
vez da ação de um modelo. A emulação não é sempre bem-sucedida,
no entanto, porque nem sempre é possível alcançar um fim sem conhecer os
meios adequados. Tomasello reserva o termo "imitação" para os casos em que os
observadores executam as ações que observam. Esta é uma ferramenta poderosa
para a transmissão social, e é algo em que os seres humanos são muito bons.

Além disso, autores como Christoph Wulf (WULF, 2016; GEBAUER; WULF,
2004), René Girard (2009) e Billett (2014) enfatizam o papel fundamental da
“mimese” no processo de aprendizagem e de humanização. Rene Girard chega a
argumentar que a mimese vai além da representação ou da verdade, que de fato
determina a ambas. Girard elabora uma espécie de epistemologia ética baseada
na mimese e na representação, sendo que a primeira determinaria a última
(SPARIOSU, 1984).

Montmarquet (1993) e Zagzebski (1996) alegam que uma pessoa


conscienciosa também pode imitar os hábitos intelectuais e os modos de
conhecer daqueles que ela admira epistemicamente. Esta é a maneira como nós
aprendemos uma área especializada de aprendizagem ou uma habilidade. Nós
imitamos aqueles que são autoridades na área por sua maestria e conhecimento
especializado. Existem métodos desenvolvidos pelos melhores praticantes de
cada área que são transmitidos para a próxima geração durante o curso da prática
daquela área de conhecimento. O mesmo se aplica aos métodos de meditação
e contemplação desenvolvidos ao longo de muitos séculos por mentores
espiritualmente sábios em comunidades religiosas. Com sorte, imitar um exemplo
de sabedoria espiritual pode resultar na aquisição de algumas das verdades mais
importantes que um ser humano pode aprender (ZAGZEBSKI, 2012).

Esta abordagem do conhecimento religioso é contrária ao valor moderno do


igualitarismo intelectual e à desvalorização da autoridade. Vivemos em uma época
que foi chamada de "a era da suspeita", como vários escritores desde Stendhal a
Nathalie Sarroute sustentaram, e tal suspeita já fora identificada nos pensadores
franceses como em Descartes, Pascal e Malebranche (MORIARTY, 2003).

100
Capítulo 3 O Conhecimento Religioso e suas Implicações Epistemológicas

Era da suspeita, porque tantas tendências intelectuais debilitam a O testemunho,


confiança – a confiança na autoridade política, religiosa e epistêmica a autoridade e
e a confiança nas tradições de sabedoria. No extremo epistêmico, a existência de
pessoas sábias
solapam a confiança no testemunho como fonte de conhecimento.
são cruciais para
Uma vez que o testemunho, a autoridade e a existência de pessoas a transmissão do
sábias são cruciais para a transmissão do conhecimento religioso conhecimento
como compreendido na maioria das grandes tradições religiosas, a era religioso como
da suspeita debilita a religião mais diretamente do que prejudica as compreendido na
práticas humanas que não dependem da sabedoria ou da autoridade, maioria das grandes
tradições religiosas
como a ciência moderna. Mas todas as práticas humanas exigem
confiança entre os participantes da prática, e todos os seres humanos precisam
confiar em si mesmos quando estão sendo conscienciosos (GOLDBERG, 2010).
É no mínimo duvidoso que nossa época possa debilitar a confiança na autoridade
e na sabedoria tão profundamente, sem solapar a confiança da qual ninguém
quer abrir mão.

Atividades de Estudos:

1) Qual é o legado do fundacionalismo iluminista para o


conhecimento religioso? Quais são as possíveis respostas a este
legado que possibilitam o conhecimento religioso?
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Conectando a Verdade da Religão com


a Crença Razoável: Alvin Plantinga
Alvin Plantinga é bem conhecido por seu ataque sustentado contra a
premissa (3) – a justificação do teísmo depende do sucesso de argumentos
cujas premissas devem ser acessíveis a qualquer pessoa inteligente ordinária.
Nenhuma experiência especial pode ser assumida, e nenhuma confiança
na autoridade pode ser realizada –. Plantinga não critica as características da
premissa (3) que mencionamos, e não ataca o fundacionalismo. Plantinga aceita

101
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

uma forma de fundacionalismo, mas argumenta que a crença na existência


de Deus pode estar na própria fundação (PLANTINGA, 1983, 1993). Em sua
outra obra, ele argumenta que a crença cristã também pode estar na fundação
(PLANTINGA, 2000). De acordo com o autor referido, a crença nas doutrinas
cristãs pode ser o resultado da instigação do Espírito Santo na ocasião em que
uma pessoa entra em contato com a doutrina, por exemplo, ao ouvir o Evangelho
proclamado. Se este processo de adquirir crença está de acordo com o plano
divino projetado para os seres humanos após a Queda, essas crenças são
produzidas por um processo confiável para obter a verdade, um processo que
resulta de faculdades epistêmicas funcionando apropriadamente tal como Deus
intencionou. Se essa suposição for verdadeira, crenças assim adquiridas são
racionais em vários sentidos diferentes de racional, e constituem conhecimento.
São crenças fundacionais ou crenças propriamente básicas (PLANTINGA, 2003).

O que torna razoável a crença cristã nessa abordagem não pode ser separado
da sua verdade. Anteriormente, neste capítulo, vimos que os filósofos
quase sempre separam a racionalidade ou a razoabilidade da verdade
Os filósofos quase
de uma crença. O que torna uma crença razoável é uma coisa. O que
sempre separam
a racionalidade ou a torna verdadeira é outra coisa. Uma crença pode ser razoável e falsa
a razoabilidade da ou verdadeira e irrazoável. Plantinga (2000) não rejeita a separação da
verdade de uma verdade e da razoabilidade em geral, mas defende uma maneira de
crença. O que torna pensar sobre a crença cristã que liga sua razoabilidade à sua verdade.
uma crença razoável Plantinga argumenta que, desde que o mundo seja de uma certa maneira
é uma coisa. O que
e os seres humanos sejam de uma certa maneira, é razoável acreditar
a torna verdadeira é
outra coisa em certas coisas que o cristianismo ensina, pois teríamos conhecimento
dessas coisas. Se o mundo for de uma maneira diferente, então não
seria razoável acreditar nessas coisas, e nós não as conheceríamos.

O argumento depende da ideia de que um dos dogmas do cristianismo é


um ensinamento sobre a maneira pela qual os cristãos passam a acreditar nos
princípios do cristianismo. O cristianismo não só explica o que é a verdade religiosa,
mas como é que nós passamos a acreditar nessas verdades de uma forma que seja
razoável. Assim, entre as principais doutrinas cristãs, como a doutrina de que Jesus
Cristo é o Filho de Deus, há uma doutrina que diz que os cristãos passam a crer
nessas doutrinas pelo poder do Espírito Santo, de acordo com um plano projetado
que visa a verdade da mesma forma que nossas outras faculdades, tais como
sensação, memória e raciocínio, visam a verdade. Segue-se que, se o conjunto
básico de doutrinas cristãs é verdadeiro, a crença no mesmo, na forma descrita
por uma das doutrinas do conjunto, é razoável. A verdade do cristianismo garante
sua própria razoabilidade, então a razoabilidade vem de graça. E se for verdadeiro,
também tem a combinação da verdade e da razoabilidade necessárias para o
conhecimento. Portanto, se o cristianismo é verdadeiro, a crença nele é razoável e
os cristãos têm conhecimento dos princípios do cristianismo (PLANTINGA, 2000).

102
Capítulo 3 O Conhecimento Religioso e suas Implicações Epistemológicas

Podemos dizer que Plantinga conseguiu demonstrar a tese condicional de


que “se” o cristianismo é verdadeiro e inclui entre suas doutrinas uma afirmação
crucial sobre a maneira pela qual os cristãos adquirem crenças cristãs, então crer
nessas doutrinas é racional para aqueles que acreditam no modo descrito por essa
doutrina. A questão é o que foi realizado para aqueles de nós que querem saber
se a crença cristã é racional. Dizer que é racional se for verdadeiro não é muito útil
para aqueles que pensam que sua verdade é indeterminada. Mesmo as pessoas
que são cristãs e, portanto, acreditam que as doutrinas cristãs são verdadeiras,
podem querer algo mais quando perguntam se a crença cristã satisfaz os padrões
de racionalidade. Para explicar esta questão, podemos primeiro identificar um
princípio de racionalidade que esclarece o que pode ser visto como preocupante
sobre a posição de Plantinga, e porque a questão do conhecimento religioso e da
crença razoável é um tópico apropriado para um livro de epistemologia.

Podemos supor que a racionalidade é uma parte intrínseca da natureza


humana, talvez até mesmo a parte que mais claramente a define (LUZ, 2013).
Isto não é afirmar que nenhum animal não humano seja racional, mas afirmar
que todos os seres humanos normais são racionais. Na verdade, é
parte do que entendemos por racionalidade que está conectado com a Princípio de
Reconhecimento
nossa humanidade. A racionalidade, portanto, transcende as diferenças
Racional: Se uma
individuais e as diferenças culturais, bem como as diferenças entre crença é racional,
uma tradição religiosa e outra. Ser racional é poder falar com outras sua racionalidade
pessoas e fazer-se compreender, não importa quem são essas outras é reconhecível,
pessoas. É o que nos permite formar uma comunidade humana, que em princípio, por
transcende as comunidades humanas individuais que habitamos, pessoas racionais
em outras culturas.
incluindo as comunidades religiosas. O fato de que a racionalidade é
uma parte intrínseca da nossa humanidade tem um corolário, e este é o princípio
da racionalidade que pretendemos propor. Podemos denominá-lo de Princípio
de Reconhecimento Racional: Se uma crença é racional, sua racionalidade é
reconhecível, em princípio, por pessoas racionais em outras culturas.

Este princípio, obviamente, precisa ser detalhado e muito tem de ser


incluído na qualificação "em princípio". Mas o que se está sugerindo aqui não é que
todo ser humano em todos os lugares seja capaz de compreender a racionalidade
de cada crença humana racional. Mas sugere-se que nossa humanidade comum
significa, pelo menos, que as pessoas mais racionais – as pessoas mais sábias
– em todas as culturas podem compreender a racionalidade das crenças das
pessoas racionais em outras culturas (SENOR, 1995). É esta propriedade que
explica porque a filosofia existe como uma disciplina transcultural e por que a
questão do conhecimento religioso é um tópico que os filósofos podem discutir,
aderindo ou não a qualquer tradição religiosa.

103
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Aparentemente, a estratégia de Plantinga (2000) viola o Princípio do


Reconhecimento Racional. Não permite que um observador racional, fora da
comunidade dos crentes, distinga entre a racionalidade do cristianismo defendida
por Plantinga e as crenças de qualquer grupo, por mais irracionais e bizarros que
se possa pensar que sejam, por exemplo, os adoradores do Sol, seguidores de
seitas, devotos dos deuses gregos etc. – assumindo que eles são inteligentes o
suficiente para construir suas próprias doutrinas epistêmicas em seus próprios
modelos à maneira como Plantinga o faz. Assim, um crente inteligente que
acredita em Zeus também pode acreditar que Zeus o atingiu com um raio que tem
o efeito de lhe dar crenças verdadeiras, incluindo a crença de que Zeus existe
e que o atingiu com um raio. Mas será que pensamos que o crente em Zeus
não é racional, mesmo que ele e os membros de seu culto sejam capazes de
produzir um argumento exatamente paralelo ao de Plantinga? Se assim for, a
racionalidade das crenças religiosas deve depender de outra coisa que não seja a
sua verdade. Essa outra coisa, portanto, deverá ser tal que sua racionalidade seja
compreensível para qualquer pessoa racional, se não para toda pessoa racional
em toda parte, pelo menos para as pessoas mais racionais em qualquer lugar.

Atividades de Estudos:

1) Quais são os argumentos de Alvin Plantinga em defesa da


razoabilidade e da verdade da crença teísta? Identifique ao
menos um aspecto problemático da proposta de Plantinga.
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Então, o que uma pessoa conscienciosa faz? A pergunta responde a si mesma.


Ela é conscienciosa. Ninguém pode esperar mais dela, mas também não devem
esperar menos. As restrições do Iluminismo sobre a crença religiosa com as quais
começamos são muito exigentes. Elas não permitem que uma pessoa razoável
confie no que ela confia quando ela é conscienciosa. Mas parece que as restrições
de Plantinga não são exigentes o suficiente. Uma pessoa conscienciosa presta
atenção a outras pessoas conscienciosas e presta atenção especial às pessoas

104
Capítulo 3 O Conhecimento Religioso e suas Implicações Epistemológicas

que ela considera sábias, sejam elas membros ou não de sua própria tradição.
Isso não quer dizer que ela deve ser igualitária e confiar nas pessoas de outras
comunidades, tanto quanto confia nos membros da sua própria comunidade, mas
que o seu reconhecimento da racionalidade comum a todos os seres humanos,
o qual está presente de forma exemplar em alguns seres humanos,
deve conduzi-la a tratar outras pessoas, mesmo aquelas fora de sua O conhecimento
religioso, em
comunidade, como verificações de suas crenças.
alguns aspectos,
é um tipo especial
O conhecimento religioso, em alguns aspectos, é um tipo de conhecimento
especial de conhecimento porque depende muito da confiança nas porque depende
autoridades e dos exemplos de sabedoria. Mas de outras maneiras o muito da confiança
conhecimento religioso é como qualquer outro conhecimento. Visa a nas autoridades e
dos exemplos de
verdade de uma forma que é epistemicamente conscienciosa (CODE,
sabedoria
1987; MONTMARQUET, 1993; ZAGZEBSKI, 1996).

Como sugestão de pesquisa para aprofundar seu conhecimento


sobre a relação da experiência religiosa, a crença teísta e seu
aval epistêmico, comparando a posição de dois autores que são
mencionados neste capítulo, William Alston e Alvin Plantinga,
indicamos a dissertação de Maurício Moto Saboya Pinheiro
(2006), “Experiência Religiosa e Crença em Deus”, que pode ser
acessada neste endereço eletrônico: <http://repositorio.unb.br/
bitstream/10482/1835/1/2006_Maur%C3%ADcio%20Mota%20
Saboya%20Pinheiro.pdf>.

Evidencialismo Versus
Experiencialismo
Podemos nos sentir ainda insatisfeitos e seguir perguntando: por que alguns
ainda pensam que nenhuma proposição religiosa pode ser conhecida? A base
mais comum para sustentar essa visão é, provavelmente, muito parecida com a
razão mais comum para sustentar que não há conhecimento moral, a saber, que
as proposições religiosas, como a de que Deus existe, não podem ser conhecidas
a priori ou com base na experiência (ZANGWILL, 2004), tal como inferir a
existência de Deus a partir da premissa de que o design de Deus para o universo
é a melhor explicação da ordem que encontramos nele.

105
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Ambos os aspectos dessa afirmação negativa têm sido discutidos por


filósofos e teólogos em grande extensão, e existem argumentos bem conhecidos
para a existência de Deus, que pretendem fornecer o conhecimento de que Deus
existe (ZILLES, 1989). Alguns deles fazem uso apenas de premissas a priori.
Outros usam apenas proposições empíricas como premissas. Por exemplo,
o argumento ontológico, de uma forma, procede das premissas a priori de que
Deus é supremamente perfeito (tem todas as perfeições no mais alto grau) e
que a existência é uma perfeição, para chegar à conclusão de que Deus existe.
Em contraste, o argumento da causa primeira (de uma forma) usa a premissa
empírica de que há movimento, juntamente com a premissa geral de que não
pode haver uma cadeia infinita de causas de movimento, e conclui que Deus,
como um primeiro motor imóvel, existe.

Há uma vasta literatura sobre estes e todos os outros argumentos


historicamente importantes para a existência de Deus (YANDELL, 1999; ZILLES,
1989; SWEETMAN, 2013). Não estamos agora preocupados com argumentos
para a existência de Deus. Vamos abordar estas questões em capítulos posteriores
neste livro. Apenas queremos dizer sobre esses argumentos que aparentemente
nada implica que pode ou que não pode haver argumentos convincentes para a
existência de Deus. Por exemplo, nada que digamos sobre as fontes básicas de
conhecimento ou sobre sua transmissão implica que essas fontes não poderiam
de alguma forma levar a argumentos que conduzam ao conhecimento de Deus ou
de alguma outra realidade espiritual. O mesmo se aplica à justificação de crenças
sobre Deus ou alguma realidade espiritual, e ambos os pontos se mantêm dentro
de uma epistemologia fundacionalista ou coerentista (WOLTERSTORFF, 2008).

E quanto à possibilidade – menos frequentemente discutida do que


Nada que digamos os argumentos para a existência de Deus – de um conhecimento direto
sobre as fontes (não inferencial) de Deus? Ou seja, uma espécie de "percepção direta
básicas de de Deus" que é confessadamente extrassensorial, isto é, não física, de
conhecimento fato uma percepção "na qual não está envolvida nenhuma consciência
ou sobre sua de qualia sensorial, sem cores, formas, sons, cheiros e coisas
transmissão implica
semelhantes” (ALSTON, 1993, p.16-17). O estudo da epistemologia
que essas fontes
não poderiam de exclui essa possibilidade? Considerações epistemológicas gerais às
alguma forma levar vezes tentam excluir, mas de fato não conseguem. Na verdade, se pode
a argumentos haver um conhecimento natural, como no caso do conhecimento direto
que conduzam ao de resultados aritméticos normalmente conhecíveis somente através de
conhecimento de cálculos, então há alguma razão para se pensar que o conhecimento
Deus ou de alguma
pode construir-se em uma pessoa de tal forma que a pessoa poderia ter
outra realidade
espiritual conhecimento direto de Deus. O tipo de conhecimento em questão foi
apoiado por João Calvino (1509-1564) e apelidado de “sensus divinitatis:

106
Capítulo 3 O Conhecimento Religioso e suas Implicações Epistemológicas

O primeiro livro de Calvino, Institutes of the Christian Religion


(Instituições da religião cristã), de 1559, começa discutindo este
problema fundamental da teologia cristã: como podemos saber
algo a respeito de Deus? Ele afirma que certo conhecimento
geral de Deus pode ser alcançado por meio da criação – na
humanidade, na ordem natural e no próprio processo histórico.
Identifica duas bases para este conhecimento: a primeira, sub-
jetiva; a segunda, objetiva. O primeiro fundamento é o “senso
da divinidade” (sensus divinitatis), ou a “semente da religião”
(sêmen religionis), implantado em cada ser humano por Deus.
Deus implantou nos seres humanos o sentido ou pressentimen-
to de sua existência divina. (McGRATH, 2005, p. 176).

É evidente que pode haver menos mistério sobre como um mero mecanismo
de cálculo possa ser implantado no cérebro, como no caso do Sr. Truetemp,
apresentado por Lehrer (2000), do que sobre como possa ocorrer o conhecimento
de uma realidade externa, espiritual. Mas um mistério não é uma impossibilidade.

Se, no entanto, é possível que exista um Deus todo-poderoso (onipotente),


então Deus poderia criar tal conhecimento teísta direto. Se pode haver tal
conhecimento, então uma forma do que é chamado evidencialismo estaria
equivocada, a saber, o evidencialismo sobre o conhecimento teísta, como já vimos
anteriormente, é a visão de que o conhecimento de Deus é impossível, exceto com
base em evidências adequadas. O tipo de evidência pretendida não é a "evidência
não inferencial dos sentidos", como aquela que temos de que há uma página de um
livro diante de nós, mas o tipo dito padrão de evidência, que teríamos na forma de
premissas a partir das quais poderia inferir-se conclusões teístas.

Como o evidencialismo se aplica à justificação? Temos os casos prima facie


de conhecimento direto de algo que normalmente é conhecível apenas através de
evidências ou inferências (ALSTON, 2008), tal como o resultado da multiplicação
de dois números de três dígitos. Se há conhecimento direto aqui, não precisa
ser um caso de crença justificada. Portanto, não podemos usar tais exemplos
para refutar o evidencialismo sobre a justificação teísta: a visão de que crenças
justificadas sobre Deus são impossíveis, exceto com base em evidências.

107
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

O termo prima facie vem da teoria ética proposta por Ross


(2002) e transposta à epistemologia por Chisholm (1964), referindo-
se à justificação à primeira vista. O princípio prima facie, portanto,
é um princípio que trata da crença justificada nos casos em que a
evidência contrária está ausente. O princípio pode ser declarado
deste modo: “Se alguém tem evidência prima facie para P e não há
evidência para não-P no tempo t, então este alguém está justificado
em acreditar P no tempo t.” A evidência prima facie, então, é tal
evidência que, na ausência de outras evidências, ela é suficiente
para estabelecer uma crença justificada. A aplicação ao argumento
para a existência de Deus é que, muitas pessoas conhecem Deus
(ou pensam que conhecem Deus) e que isto seria evidência prima
facie de Deus. Se supusermos que as evidências ateístas foram
refutadas, então alguém estaria justificado em crer em Deus.

Será que alguém poderia estar diretamente justificado em crer tais proposições
religiosas como aquela que Deus existe? Isso exigiria ter um sexto sentido, ou
algum tipo de faculdade mística? (ZANGWILL, 2004). E mesmo se houvesse tal
coisa, geraria uma justificação diretamente ou somente através de uma descoberta
de correlações adequadas entre suas deliberações e o que é crido através da razão
ou da experiência comum, por exemplo, através das visões religiosas que permitem
prever eventos publicamente observáveis? Neste último caso, a faculdade mística
não seria uma fonte básica de justificação. Antes que pudesse justificar as crenças
que ela produz, teria que ganhar suas credenciais de justificação por meio de uma
proporção suficiente dessas crenças recebendo confirmação de outras fontes,
como a percepção e a introspecção (PORTUGAL, 2002).

Há, porém, uma maneira de resistir ao evidencialismo e argumentar pela


possibilidade de justificação direta de certas crenças religiosas sem supor que
existam fontes de justificação além da razão e da experiência normal.
experiencialismo Em particular, essa abordagem não precisa de apreensões místicas,
fundamenta a como experiências inefáveis não mundanas, ou revelações divinas
justificação de especiais (JAMES, 1995).
algumas crenças
religiosas muito
importantes na Podemos denominar esta posição como experiencialismo, uma
experiência e não em vez que fundamenta a justificação de algumas crenças religiosas
crenças evidenciais muito importantes na experiência e não em crenças evidenciais ou na
ou na apreensão apreensão racional direta (PORTUGAL, 2002). As pessoas religiosas
racional direta

108
Capítulo 3 O Conhecimento Religioso e suas Implicações Epistemológicas

dizem, às vezes que, na vida perfeitamente comum, Deus fala com elas, elas
estão conscientes de Deus na beleza da natureza e podem sentir a presença de
Deus. Descrições desse tipo podem ser consideradas metafóricas. Mas se Deus
é, como muitos pensam, propriamente concebido como uma pessoa (divina),
estas declarações podem ter um significado literal.

É natural objetar que tudo o que se ouve diretamente nessas experiências é


um tipo especial de voz (presumivelmente em nível mental), que tudo o que se vê
diretamente é a beleza natural que o sujeito pensa que manifesta Deus, e que o
sujeito simplesmente sente um tom espiritual em sua experiência. A partir dessas
posições é fácil concluir que, na melhor das hipóteses, o sujeito está indiretamente
justificado em acreditar que está experienciando Deus. Afinal, o sujeito acredita
nisso inferencialmente. Por exemplo, com base na sua crença de que a voz que
ouve é de Deus, pode-se acreditar que a beleza que se vê é uma manifestação da
criação divina, e assim por diante.

A Analogia Perceptual e a Possibilidade


do Conhecimento Teísta Direto
Para avaliar o caso apresentado para mostrar que as crenças teístas são
inferenciais e, portanto, não candidatas a ser diretamente justificadas (ou
conhecimento direto), compare-a à percepção. Suponha que argumentemos
que alguém somente está indiretamente justificado em acreditar que existe um
campo verde à sua frente, uma vez que ele acredita nisso com base na crença de
que há grama, uma superfície com textura verde, e assim por diante. Devemos
aceitar isso? Provavelmente não. Normalmente não temos essas crenças quando
acreditamos que há um campo verde diante de nós, mesmo se o vemos, vendo a
sua superfície gramada.

No entanto, o assunto é muito mais complicado do que isso. Pode-se


argumentar que, uma vez que Deus é infinito e não físico, não se pode conhecer
Deus através da experiência. Mas este argumento é falho. Mesmo se um córrego
fosse infinitamente longo, eu ainda poderia vê-lo, ao ver parte dele. Ver uma coisa
infinita não é ver a sua infinitude.

Mas, se ao ver o fluxo não estamos vendo seu infinito, então como isso
pode ser visto como base para saber que o fluxo é infinito? Da mesma forma,
se Deus é experienciado, como a experiência pode revelar que é Deus que
está sendo experienciado? O problema não é que Deus é não físico. O não
físico pode ser facilmente experienciado, e de fato de forma direta. Assim,

109
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

minha experiência de meu próprio pensamento presumivelmente não precisa


ser de algo físico, mesmo que de fato seja de algo físico, digamos um processo
cerebral. E mesmo que deva ser físico, por causa de alguma conexão
necessária que pode conter entre o mental e o físico, esta experiência não é
de meus pensamentos como sendo físicos.

Se for possível O problema, então, não é que não possa haver experiência, até
alguém experienciar,
mesmo experiência não mística de Deus. É, ao menos em parte, que
digamos, o falar de
Deus, não estaria se for possível alguém experienciar, digamos, o falar de Deus, não
claro como este estaria claro como este alguém poderia saber (ou crer justificadamente)
alguém poderia que é Deus falando. Como alguém saberia que não estava tendo uma
saber (ou crer experiência meramente interna, como falar a si mesmo numa voz que
justificadamente) que se pensa ser de Deus, ou até mesmo alucinar uma voz divina?
é Deus falando
Em parte, a questão é como alguém pode reconhecer a Deus. Claramente,
isso requer ter um conceito de Deus. Mas isso é adquirível sem já ter conhecimento
da existência de Deus. Também se precisa de um conceito de, por exemplo,
uma sonata para reconhecer uma quando a ouvimos. Estes conceitos são muito
diferentes, mas qualquer um deles pode ser adquirido sem realmente se saber
(ou se ter experienciado) da existência daquilo que representa.

Aqui é importante recordar a analogia perceptual. Por que seria menos


provável que fosse alucinatória minha experiência de olhar para o campo verde? É
verdade que há uma diferença: podemos, com todos os outros sentidos, verificar
que vemos um campo gramado, enquanto que Deus parece perceptualmente
acessível, no máximo, à visão e à audição – presumivelmente indiretamente, já
que Deus é visto em coisas apropriadas e ouvido através de vozes ouvidas, quem
sabe por vozes internas, que não são literalmente a voz de Deus (pelo menos se a
voz de um ser deve estar fisicamente fundamentada em uma incorporação física,
embora, mesmo nesse caso, alguns diriam que a voz de Deus estava fisicamente
incorporada em Cristo).

Mesmo se Deus for acessível à visão e à audição apenas


Mesmo se Deus for
acessível à visão e indiretamente, não segue disso que o conhecimento e a crença sobre
à audição apenas Deus sejam indiretos. Como podemos ver na teoria do sense-datum
indiretamente, não (dados sensoriais), podemos saber uma coisa através de outra sem
segue disso que o inferir fatos sobre a primeira de fatos sobre a segunda (RUSSELL,
conhecimento e a 2008). Assim, a força dessa diferença entre a possível acessibilidade
crença sobre Deus
perceptual de Deus e aquela dos objetos físicos pode ser exagerada.
sejam indiretos.
Certamente não é verdade que a experiência sensorial só pode ser
confiável quando a verificação por todos os outros sentidos é possível. Se fosse
assim, não poderíamos justificadamente acreditar que vemos um feixe de luz que
é perceptualmente acessível apenas à nossa visão.

110
Capítulo 3 O Conhecimento Religioso e suas Implicações Epistemológicas

Os dados sensoriais são os supostos objetos dependentes da


mente de que estamos conscientes diretamente na percepção e que
possuem exatamente as propriedades que parecem ter. Por exemplo,
os teóricos dos dados sensoriais, como Moore, Russel, Price e Ayer,
dizem que, ao ver um tomate em condições normais, forma-se uma
imagem do tomate na mente. Esta imagem é vermelha e redonda.
Muitos filósofos, como Sellars, Ryle, Quine e McDowell rejeitaram a
noção de dados sensoriais, seja porque acreditam que a percepção
nos dá uma percepção direta dos fenômenos físicos, em vez de
meras imagens mentais, ou porque acreditam que os fenômenos
mentais envolvidos na percepção não têm as propriedades que
nos parecem (por exemplo, eu poderia ter uma experiência
visual representando um tomate vermelho, redondo, mas minha
experiência não é ela mesma vermelha ou redonda). Defensores
de dados sensoriais argumentaram, entre outras coisas, que os
dados sensoriais são necessários para explicar fenômenos como a
variação perspectiva, a ilusão e a alucinação. Os críticos dos dados
sensoriais opuseram-se ao compromisso da teoria com o dualismo
mente-corpo, aos problemas que levanta para o nosso conhecimento
do mundo externo, à sua dificuldade em localizar os dados sensoriais
no espaço físico e ao seu aparente compromisso com a existência
de objetos com propriedades indeterminadas (BLACKBURN, 1997).

Problemas da Abordagem
Experiencialista
Há muitas outras questões relevantes aqui. Tomemos primeiro uma questão
psicológica do tipo relevante para a epistemologia. Será que as pessoas realmente
acreditam diretamente que, digamos, Deus está falando com elas, ou tal crença é
baseada – mesmo que não de modo autoconsciente – em acreditar que a voz em
questão tem certas características, nas quais as pessoas creem que indicam a fala
de Deus? (VALLE, 1998). Em segundo lugar, por que é relevante a possibilidade
de corroboração por outras pessoas – o que poderíamos chamar de justificação
social? (MÜLLER; RODRIGUES, 2013).

Será que de fato importa para a justificação experiencial de acreditar em


Deus, por exemplo, que não seja qualquer pessoa normal que possa ver Deus na

111
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

beleza da natureza, enquanto que qualquer pessoa normal possa ver um campo
verde? Ou este contraste é atenuado pelas diferenças marcadas na acuidade
perceptual que encontramos entre pessoas claramente normais, particularmente
em questões complicadas como a percepção estética na música e na pintura,
onde o que é ouvido ou visto diretamente não pode ser visto nem ouvido sem a
prática e a sensibilidade?

Se é verdade que as Uma questão relacionada aqui é o possível papel do testemunho


crenças baseadas como fonte social de justificação direta (LACKEY; SOSA, 2011). Se
no testemunho são é verdade que as crenças baseadas no testemunho são geralmente
geralmente diretas,
diretas, então talvez certo testemunho teísta por alguns forneça
então talvez certo
testemunho teísta conhecimento de Deus para outros, como nos referimos anteriormente
por alguns forneça neste capítulo. Mesmo que supuséssemos que poucas pessoas têm
conhecimento de conhecimento teísta ou crença teísta justificada (pelo menos "de
Deus para outros primeira mão"), pode-se argumentar que as correntes de testemunho
relevantes podem se estender a muitas pessoas – seja durante um
determinado período de tempo ou, onde há uma comunidade de crentes, através
do tempo estendendo-se por milhares de anos.

Certamente, a justificação parece diferente do conhecimento aqui, pelo


menos na medida em que o sujeito deve ter justificativa para acreditar em alguém
como requisito para adquirir justificação do que foi atestado (LUZ, 2013). Mas
talvez, os crentes religiosos muitas vezes têm essa justificativa para aceitar o
testemunho em assuntos religiosos. Pelo menos não é óbvio, por exemplo, que,
para estar justificado nas crenças religiosas com base no testemunho, eles devem
ter uma espécie de justificação que está fora do seu alcance como pessoas
racionais (ZAGZEBSKI, 2012).

Seja qual for o lugar do testemunho para fornecer conhecimento ou


justificação teísta, pode-se expandir as possibilidades para experiência direta de
Deus. Poderia Deus ser visto, não necessariamente da maneira etérea e direta
como os místicos às vezes imaginam, mas de uma maneira mais comum e não
menos direta? Se assim for, há mais terreno para testemunhar, bem como menos
necessidade do testemunho como fonte de conhecimento ou justificação teísta
(JAMES, 1995). Poderia Deus ser visto, por exemplo, na natureza, ao invés de
ser inferido dela? Aqui está uma das expressões poéticas de Alberto Caeiro
(PESSOA, 1997, p. 93) dessa ideia:

Mas se Deus é as flores e as árvores


E os montes e o sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,

112
Capítulo 3 O Conhecimento Religioso e suas Implicações Epistemológicas

E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Afinal, se a natureza é a obra de Deus – talvez o trabalho contínuo de


Deus –, poderia haver um sentido no qual Deus é visto nela por aqueles com a
sensibilidade apropriada? Uma sensibilidade especial é necessária até mesmo
para ver a beleza em uma pintura. Com certeza, a relação da beleza com a
pintura que a possui é diferente da relação de Deus com a natureza concebida
como reveladora de Deus. O ponto, no entanto, é apenas que uma sensibilidade
especial pode ser necessária para a percepção teísta, e não que seja exatamente
como a percepção estética (ROCHA, 2010).

A sugestão não é que a natureza é em parte constitutiva de Deus, pelo menos


não da maneira que a forma e a textura pelas quais eu percebo uma árvore são em
parte constitutivas dela. Ainda assim, poderia a natureza ser parcialmente constitutiva
de Deus? Se assim for, então perceber diretamente a Deus pode, de certo modo,
ser muito fácil. Não se poderia ver uma bela paisagem sem ver Deus, embora se
pudesse ver a paisagem sem vê-la como manifestando Deus.
É muito difícil
As dimensões dessas questões se ampliam rapidamente e até estabelecer
mesmo os muitos pontos que surgiram não nos permitem determinar restrições absolutas
sobre quais tipos
com alguma confiança se pode haver crenças religiosas diretamente
de crenças podem
justificadas. Muitas vezes foi considerado óbvio que não pode haver, ser justificadas
entretanto, é importante ver porque não é realmente óbvio. Na diretamente
melhor das hipóteses, é muito difícil estabelecer restrições absolutas
sobre quais tipos de crenças podem ser justificadas diretamente (SWEETMAN,
2013). Isso vale até mesmo se a única maneira pela qual as crenças podem ser
justificadas diretamente seja em virtude de sua fundamentação nas fontes básicas
de justificação (LUZ, 2013).

Uma observação paralela vale ressaltar aqui para as restrições Há ocasiões em


absolutas sobre o que podemos justificadamente acreditar (ou que uma crença se
justifica não por um
conhecer) com base em um ou mais argumentos. É particularmente
ou mais argumentos
difícil determinar o que pode ser justificadamente crido (ou conclusivos, mas por
conhecido) através de uma combinação de argumentos plausíveis, seu apoio – o que
mas individualmente inconclusivos para a mesma conclusão. Como implica algum grau
os coerentistas e os fundacionistas moderados se esforçam por de coerência – em
mostrar, há ocasiões em que uma crença se justifica não por um ou muitos conjuntos
de premissas
mais argumentos conclusivos, mas por seu apoio – o que implica
independentes
algum grau de coerência – em muitos conjuntos de premissas em que nenhuma
independentes em que nenhuma das quais, por si só, bastaria para das quais, por si
justificá-la (SARTORI, 2006). Os argumentos que podem trabalhar só, bastaria para
juntos aqui não se limitam ao tipo tradicional procedente de premissas justificá-la

113
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

sobre o mundo externo. Quando se tem justificação não inferencial, digamos


de uma experiência perceptual, pode-se formular um argumento que procede
de premissas que descrevem a ocorrência e o caráter da experiência. Tais
argumentos da experiência podem ser combinados com o tipo tradicional.

Deve-se, no entanto, reconhecer que é difícil na prática distinguir, mesmo em


nosso caso, entre crenças que estão fundamentadas diretamente em uma das fontes
básicas e crenças que estão fundamentadas nessas fontes através de outras crenças
das quais podemos nem mesmo estar cientes, ou através de inferências que não
percebemos que estamos fazendo a partir de proposições que estamos conscientes
que acreditamos. Isso significa que o que consideramos ser crença direta, como
a crença de que Deus pediu a alguém fazer um sacrifício por outra pessoa, pode
realmente estar baseado em pelo menos uma outra crença e pode depender, para sua
justificação, na evidência ou fundamentos que alguma outra crença expressa. Ainda
assim, mesmo que não possamos dizer se uma crença é inferencial, poderemos ser
capazes de determinar em quais crenças adicionais se baseia se ela for inferencial, e
então poderemos defender sua justificação com base nestas.

Suponha, por razões de argumentação, que não possa haver crenças


religiosas diretamente justificadas do tipo que estamos discutindo. É importante
observar que ainda pode haver conhecimento direto de tais proposições, se
(como temos argumentado) pudermos conhecer certos tipos de coisas em virtude
de uma conexão com elas, mesmo que não se tenha justificativa para crer nelas.
Para algumas pessoas religiosas, até mesmo o conhecimento sem justificação
pode ser considerado muito precioso neste caso. Talvez seja um tipo de fideísmo.

Justificação e Racionalidade
Este tema sobre justificação teísta, às vezes, é chamado de questão de
fé e razão. Ao discutir essa questão, a razão – acima de tudo a racionalidade na
manutenção de crenças religiosas – é comumente considerada como sendo
aproximadamente equivalente à justificação. Podemos considerar, no entanto, que,
embora uma crença justificada deva ser racional, uma crença racional que não esteja
manifestamente injustificada não precisa ser justificada positivamente (SENOR,
1995). Considere a crença de que alguém gosta de você. Pode ser racional com base
em um vago sentido "intuitivo" antes de ser justificada pela evidência.

Além disso, a justificação parece mais ligada a justificadores específicos do


que à racionalidade a qualquer análogo de um justificador (LUZ, 2013). Se eu
acredito justificadamente que há um copo frio na minha mão, minha justificação
é (principalmente) minhas sensações táteis. Se eu acreditar racionalmente
que uma pintura é bela, não precisa haver nada comparável no modo de uma

114
Capítulo 3 O Conhecimento Religioso e suas Implicações Epistemológicas

base sensorial. Devo ter sensações de cor, mas não há nenhuma sensação
especificamente da beleza como há do copo frio.

Talvez a racionalidade em sua maior parte pertença às crenças que são


amplamente consoantes com a razão e contrastam principalmente com aquelas
que são irracionais (GERT, 1998), enquanto que as justificadas contrastam
principalmente com as injustificadas. Uma crença injustificada – como muitos
filósofos descobriram à sua própria maneira – não precisa ser irracional. Além
disso, a justificação não só contrasta com a irracionalidade, mas parece sempre
traçar algum tipo de fundamentação específica e adequada.

Em adição, há pelo menos um aspecto em que a justificação representa


um padrão normativo menos permissivo que a racionalidade. A mera ausência
de condições que tornariam uma crença injustificada não implica que ela esteja
justificada, mas, no máximo, pode-se suspender o julgamento de sua negação
em oposição a estar justificado em descrer a proposição em questão (acreditando
que ela seja falsa). Mas, uma pessoa racional, na ausência de condições que
tornariam irracional manter uma crença, ao menos em conjunto com certos padrões
experienciais ou sociais que a favorecem, tende a implicar que ela é racional
(ALSTON, 1989). Posso racionalmente acreditar que uma pintura é
bela se parece-me assim e eu não posso encontrar nenhuma razão do Se a racionalidade
contrário. Não posso crer justificadamente nisso sem algum fundamento é uma noção
normativa mais
(embora o fundamento possa ser apenas uma sensação de que é como
fraca – isto é, mais
outras pinturas foram amplamente consideradas belas por observadores permissiva – do
competentes). Se a racionalidade é uma noção normativa mais fraca – que a justificação,
isto é, mais permissiva – do que a justificação, ela ainda fornece um ela ainda fornece
status positivo significativo que uma crença teísta pode ter mesmo que um status positivo
não seja justificada (SENOR, 1995). Esse é um ponto importante. As significativo que uma
crença teísta pode
crenças científicas, morais e de outros tipos também podem alcançar
ter mesmo que não
a racionalidade mais facilmente do que a justificação, mesmo que, seja justificada
quando o fazem, é comumente um estágio no caminho da justificação.

Em qualquer caso, se a racionalidade é possível sem justificação,


mas é implícita por ela, uma conclusão plausível é que os fundamentos Os fundamentos
experienciais
experienciais e racionais que produzem justificação podem, mesmo
e racionais
quando não possuem peso suficiente para render a justificação, ainda que produzem
assim render uma crença baseada neles sendo racional. Uma crença justificação podem,
teísta poderia então ser racional, mesmo se não justificada. Poderia mesmo quando
haver, certamente, alguma consideração que pesasse no sentido da não possuem peso
justificação, e poderíamos falar aqui de algum grau de justificação. suficiente para
render a justificação,
Mas como os exemplos que nós exploramos anteriormente mostram,
ainda assim render
pode-se ter algum grau de justificação para uma proposição sem se uma crença baseada
ter uma justificativa geral para crer nela. neles sendo racional

115
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Esses pontos sobre a diferença entre justificação e racionalidade não


mostram que alguém de fato tenha crenças teístas racionais, ou até mesmo que
crenças científicas ou morais sejam sempre racionalmente mantidas. Mas se a
racionalidade é uma noção mais fraca do que a justificação, pelo menos haveria
melhor razão para se pensar que isso é assim do que haveria se os requisitos para
a racionalidade fossem tão fortes quanto os da justificação. Em particular, qualquer
que seja o peso das considerações que vimos favorecendo a possibilidade de
justificação de crenças religiosas, essas considerações pesam mais fortemente
em favor da possibilidade da racionalidade de tais crenças (STUMP, 1993).

Atividades de Estudos:

1) Podemos argumentar que há uma distinção entre justificação e a


racionalidade. Explique qual seria esta distinção e quais as suas
consequências para as crenças teístas.
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Aceitação, Presunção e fé
Há atitudes mais Uma outra linha de pensamento deve ser retomada aqui, antes
fracas do que a de finalizarmos o capítulo. Não precisamos explorar a justificação
crença no grau ou a racionalidade nesse domínio apenas em termos de crença. A
de convicção que
crença tem sido absolutamente dominante na maioria das discussões
elas implicam, mas
epistemológicas da cognição, mas não é a única atitude cognitiva
suficientemente fortes
nessa dimensão que levanta questões epistemológicas ou é avaliável em relação à
psicológica para guiar justificação ou fundamentos de apoio. Há atitudes mais fracas do que
o pensamento e a a crença no grau de convicção que elas implicam, mas suficientemente
ação. fortes nessa dimensão psicológica para guiar o pensamento e a ação.
Alguns filósofos consideram a aceitação desta maneira (STUMP, 1993).
Aceitar uma hipótese científica, nessa terminologia não implica acreditar nela,
mas pode levar alguém a comprometer-se a usar a hipótese – digamos, como a
hipótese de que determinada doença é causada por uma química em particular –
como premissa de raciocínio (experimental) e de orientação para a ação ordinária.

116
Capítulo 3 O Conhecimento Religioso e suas Implicações Epistemológicas

Da mesma forma, no âmbito da ética se pode presumir a verdade de uma


proposição moral (TRASFERETTI; MILLEN; ZACHARIAS, 2015), digamos que
um determinado trabalho envolveria alguém em um conflito de interesses, sem
que de fato acredite nisso. E na teologia, pode-se ter fé (STUMP, 1993) de que,
por exemplo, Deus é soberano no universo, sem crer nisso de modo absoluto –
embora, é claro, que não se pode ter fé que isso é assim se alguém não acredita.
Em todos os três casos – a aceitação, a presunção e a fé – não se pode ter
dúvidas muito fortes sobre a proposição, mas se pode ter ou entreter algum grau
de dúvida, de um modo que não se poderia ter se alguém realmente acreditasse.

Parece claro que o peso da evidência ou fundamentação necessária para


justificação ou racionalidade será menor para essas atitudes que não implicam
crença do que para a crença. Por exemplo, a fé de que um amigo vai se recuperar
de uma doença pode ser racional quando a situação é muito desoladora para uma
crença justificada de que a recuperação ocorrerá. Eu poderia ser perfeitamente
razoável, até onde as evidências me permitem ir, em ter fé onde eu
estaria injustificadamente minimizando os fatos se eu acreditasse Quaisquer
que a recuperação ocorreria. E posso aceitar uma hipótese, pelo que sejam os
menos para fins de determinar como pensar e agir em uma questão fundamentos
urgente, quando seria de fato prematuro acreditar. Com certeza, a fé necessários
para uma crença
religiosa difere de maneira significativa do tipo de fé que acabamos
teísta justificada,
de descrever, mas o ponto principal ainda se aplica: quaisquer que fundamentos mais
sejam os fundamentos necessários para uma crença teísta justificada, fracos bastarão para
fundamentos mais fracos bastarão para a fé teísta com o mesmo a fé teísta com o
conteúdo. mesmo conteúdo.

Algumas Considerações
Acontece, então, que a epistemologia amplamente concebida pode considerar
não apenas o alcance de nosso conhecimento e a crença justificada, mas também,
o alcance de nossa crença racional, de nossa conscienciosidade epistêmica e
até de outras atitudes racionais em relação a proposições, como certos tipos de
aceitação, presunção e fé. Esta extensão da avaliação epistemológica a outras
atitudes mais fracas fornece mais espaço para a racionalidade do que haveria se
a crença fosse o único objeto da racionalidade. A mesma força de evidência ou
fundamentação pode nos levar ainda mais longe no domínio de atitudes como
aceitação, presunção e fé do que na crença.

A questão de como nosso conhecimento e justificação se estendem além de


nossas crenças fundamentadas diretamente na experiência ou na razão acaba por
ser complicada. Pelo menos, temos justificativa para rejeitar a visão estereotipada
de que, embora exista, obviamente, o conhecimento científico como um resultado

117
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

de prova, é no mínimo duvidoso que exista qualquer conhecimento moral ou até


mesmo que possa haver qualquer conhecimento religioso. Parece um erro falar de
prova científica se isso significa prova (dedutiva) de hipóteses científicas ou teorias
a partir de evidências observacionais ou outras evidências científicas. Além disso,
o conhecimento científico não representa com frequência crenças incontroversas
de generalizações precisas, mas é comumente conhecimento aproximado,
muitas vezes reconhecido por necessitar de refinamento, ou conhecimento de
aproximação, formulado com as restrições apropriadas não especificadas.

No próximo capítulo vamos aprofundar as questões sobre a fé e a


racionalidade, centrando-nos na questão de se a fé religiosa pode mesmo
escapar ao desafio da irracionalidade. Por isso, é fundamental que você,
acadêmico, compreenda bem os conceitos apresentados no primeiro capítulo
sobre a epistemologia geral, no segundo capítulo sobre a epistemologia da
teologia e da religião e neste capítulo sobre as implicações da epistemologia para
o conhecimento religioso.

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123
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

124
C APÍTULO 4
Argumentos Cosmológicos da
Existência Divina

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo, você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

� Compreender os argumentos teístas cosmológicos da existência


divina, clássicos e contemporâneos.

� Identificar as objeções antiteístas aos argumentos cosmológicos da


existência divina.

� Comparar os argumentos cosmológicos da contingência, da razão


suficiente e kalam.

� Analisar o argumento cosmológico para o ateísmo.


EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

126
Capítulo 4 Argumentos Cosmológicos da Existência Divina

Contextualização
Por pelo menos dois milênios filósofos têm tentado demonstrar, por meio
da razão e do argumento, que Deus existe. É claro que nem todos os teístas
concordam que a existência de Deus pode ser demonstrada através de
argumentos, e alguns até mesmo concordam com a tese ateísta de que nenhuma
explicação racional da existência de Deus pode ser oferecida. Alguns teístas,
porém, têm ido tão longe a ponto de afirmar que existem meios racionais para
provar que Deus existe, enquanto outros afirmam que a existência de Deus pode
ser demonstrada de forma plausível, mas não comprovada.

Muitos argumentos foram construídos para provar, ou, pelo menos, fornecer
razões à crença em Deus, e neste e nos próximos dois capítulos estaremos
examinando três deles. Neste capítulo vamos trabalhar através de várias formas do
argumento cosmológico (MORELAND, 2013; CRAIG, 2001; ROWE, 2011). Cada
uma das diferentes versões do argumento cosmológico começa concentrando-se
em algum fato empírico do universo a partir do qual se segue que algo fora do
universo deve ter causado a sua existência. Suponha que, usando um exemplo
de inúmeras possibilidades, em alguma futura exploração tripulada a um planeta
distante, os astronautas descobrissem seis objetos esféricos descansando
perfeitamente um em cima do outro. Certamente, esses descobridores concluiriam
que esses objetos e sua estrutura hierárquica devem ter vindo de alguma coisa
e de algum lugar. Mas eles também poderiam perguntar sobre outras coisas,
como: “Qual foi a causa da existência dessa coisa que fez com que esses objetos
existissem?” E assim em diante. Mas pode esta série de causas para as coisas
continuarem indefinidamente? Intuitivamente, parece que ela deve parar em
algum lugar – deve haver alguma causa originária. Assim, também, argumentam
os defensores do argumento cosmológico, quando começamos a examinar as
causas das (ou as razões para) as coisas que existem no universo, e das quais o
universo é composto, a cadeia causal deve parar em algum lugar. Para os teístas,
essa causa é Deus.

No que se segue, vamos primeiro considerar três argumentos cosmológicos


da existência de Deus, bem como várias objeções para eles. Essa demarcação
tripartite dos argumentos cosmológicos foi primeiro oferecida por William Craig
(2001) e se tornou a maneira padronizada de delimitar tais argumentos. Após esta
consideração, exploraremos uma espécie de argumento cosmológico que conclui
que Deus não existe.

127
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

O argumento cosmológico: a partir dos termos gregos


cosmos (mundo ou universo) e logos (razão ou explicação racional).
O argumento cosmológico, desenvolvido pela primeira vez pelos
antigos filósofos gregos, assume uma variedade de formas. O tema
comum entre todos eles é que, desde que há um cosmos que existe,
ao invés de apenas nada, deve ter sido causado por algo além dele.

O Argumento da Contingência
A pessoa que provavelmente recebeu o maior reconhecimento por oferecer
um argumento cosmológico para a existência de Deus é o monge católico, Tomás
de Aquino (1224-1274).

São Tomás de Aquino (1224-1274) foi um teólogo proeminente,


filósofo e apologista cristão medieval da Igreja Católica Romana.
Ele escreveu muitos livros sobre uma grande variedade de tópicos,
incluindo a fé e a razão, revelação, epistemologia, ontologia, ética
e governo. Seu estilo de escrita é complexo e conciso, e muitas
vezes segue o estilo da dialética medieval. Sua obra mais influente
é o seu opus magnum – o Summa Theologiae (2001) – uma teologia
sistemática maciça. São Tomás foi canonizado pela Igreja Católica
em 1326.

Em sua obra a Summa Theologiae, Tomás de Aquino (2001) oferece


cinco argumentos concisos para a existência de Deus, dos quais quatro são
cosmológicos em sua natureza. Aquino não inventou os argumentos cosmológicos;
eles remontam, pelo menos tanto quanto os antigos filósofos gregos Platão (c.
428- c. 348 AEC) – verifique sua obra As leis (2010), no livro 10, para uma versão
do argumento cosmológico – e Aristóteles (384-322 AEC) – verifique sua obra
Metafísica (2002), no v. 2, livro 12, e sua obra Física (2009), v. 1, livros 7 e 8 – e
são mais plenamente articulados pelos pensadores medievais judaicos, cristãos e
islâmicos. Em nenhum outro lugar, no entanto, eles são tão clara e concisamente
postos do que na obra de Tomás de Aquino, a Summa – todos os três argumentos

128
Capítulo 4 Argumentos Cosmológicos da Existência Divina

estão contidos em pouquíssimas páginas (2001, p. 110-113). O mais O mais famoso


famoso dos argumentos cosmológicos de Aquino é o seu argumento dos argumentos
chamado de “terceira via”. Também conhecido como o argumento da cosmológicos de
Aquino é o seu
contingência ou o argumento cosmológico tomista (derivado de seu
argumento chamado
nome, Tomás de Aquino), ele o expõe como segue: de “terceira via”.

A terceira via é a que se deduz do possível e do necessário. E


diz: Encontramos, entre as coisas, as que podem existir ou não
existir, uma vez que algumas podem ser produzidas ou des-
truídas, e consequentemente é possível que existam ou que
não existam. Mas é impossível que as coisas submetidas a tal
possibilidade existam sempre, pois o que leva em si mesmo
a possibilidade de não existir, em um tempo não existiu. Se,
pois, todas as coisas levam em si mesmas a possibilidade de
não existir, houve um tempo em que nada existiu. Mas se isto
é verdade, tampouco agora existiria nada, posto que o que não
existe não começa a existir, mas que por algo que já existe. Se,
pois, nada existia, é impossível que algo começasse a existir;
em consequência, nada existiria; e isto é absolutamente falso.
Logo nem todos os seres são somente possibilidade; senão
que é preciso algum ser necessário. Todo ser necessário en-
contra sua necessidade em outro, ou não a tem. Por outro lado,
não é possível que nos seres necessários se busque a causa
de sua necessidade levando este proceder indefinidamente,
como já ficou provado ao tratar das causas eficientes. Portan-
to, é preciso admitir algo que seja absolutamente necessário,
cuja causa de sua necessidade não esteja em outro, senão
que ele seja a causa da necessidade dos demais. O que todos
chamam Deus (AQUINO, 2001, p. 112).

A característica central deste argumento cosmológico é descrita no


"Argumento da contingência" no Quadro 1 a seguir.

Quadro 1 – O argumento da contingência


Há coisas contingentes no mundo; isto é, há coisas (ou seres) no
mundo que:

1) • Começam a existir em algum momento.


• São causadas a existir por alguma outra coisa.
• Poderiam deixar de existir, em algum momento.
• Poderiam nunca ter existido.
Mas nem todas as coisas podem ser coisas contingentes, pois nesse
caso nada existiria agora desde que o que começa a existir o faz
2)
através do que já existe (ou seja, o nada não pode causar algo a
existir).

129
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Uma vez que existem coisas contingentes, deve haver alguma coisa
não contingente ou necessária. Ou seja, deve haver alguma coisa
(ou ser) que:

3)
• Não começou a existir em algum momento.
• Não é causado a existir por alguma outra coisa.
• Não deixará de existir em algum momento.
• Não poderia não ter existido.
• É o que causou as coisas contingentes a existir.

4) Nós chamamos essa coisa necessária (ou ser) Deus.

Fonte: O autor.

Seguindo o próprio Tomás de Aquino em seus escritos


posteriores, nesta forma do argumento estamos evitando a questão
do infinito temporal e centrando-nos na dependência lógica das
coisas contingentes em uma causa não contingente (ou necessária).
Concordamos com aqueles estudiosos que afirmam que enquanto
Aquino se refere ao tempo nesse argumento, esta referência é,
em última análise simplesmente um dispositivo retórico e não uma
declaração de um estado de coisas real. Para um resumo conciso
e útil das primeiras quatro vias, veja Norman Geisler e Winfried
Corduan (2003), nas páginas 158-160.

Poderíamos simplificar o argumento ainda mais: 1. Se existem coisas


contingentes, então um fundamento (necessário) não contingente deve existir
para explicar a sua existência; 2. Coisas contingentes existem; 3. Portanto, um
fundamento (necessário) não contingente deve existir para explicar sua existência.

Uma vez que o argumento é válido, o que significa que se as premissas são
verdadeiras a conclusão deve seguir, a pergunta diante de nós é se as premissas
são ou não verdadeiras. Voltemos, portanto, ao Quadro 1.

A premissa 1 é amplamente sustentada: há coisas contingentes no mundo.


Por exemplo, considere gato do meu amigo, Cheshire. O gato Cheshire começou
a existir, foi causado a existir por alguma outra coisa (principalmente seus pais),
eventualmente deixará de existir, e poderia nunca ter existido (suponha que seus
pais nunca tivessem se encontrado). Portanto, há coisas contingentes, ou seres,
no mundo. A premissa 1, então, parece razoável para acreditarmos. No entanto, o
passo seguinte no argumento – a premissa 2 – não é tão intuitivamente plausível.
130
Capítulo 4 Argumentos Cosmológicos da Existência Divina

É o caso de que nem todas as coisas podem ser coisas Aquino argumenta
contingentes? Aquino argumenta que, se todas as coisas são que, se todas
contingentes, então nada poderia vir a existir uma vez que não teria as coisas são
contingentes, então
havido qualquer agência causal originária pela qual pudesse causar
nada poderia vir a
qualquer coisa a existir. Existem várias formas de apoiar este ponto. existir uma vez que
Em primeiro lugar, pode-se argumentar que nada poderia ter vindo não teria havido
à existência porque, nesse caso, uma série contingente teria de ser qualquer agência
de fato uma série infinita, mas uma série infinita real é impossível (a causal originária pela
noção de uma série infinita real será discutida a seguir na seção sobre qual pudesse causar
qualquer coisa a
o argumento kalam). Entretanto, o próprio Aquino não sustenta essa
existir
visão, por isso vamos ignorá-la aqui.

Em segundo lugar, independentemente de ser possível, ou não, uma série


causal infinita real, argumenta-se que, desde que coisas contingentes são coisas
que poderiam não existir, então elas não são coisas necessárias (ou seres
necessários); a sua existência é uma existência possível, não uma existência
necessária – ela depende de outra. Mas nem toda a existência pode ser existência
possível, pois o que é meramente possível não pode contar como o que é real.
Por exemplo, se g foi causado por f e f foi causado por e, e e foi causado por
d, e assim por diante, parece que a série é inexplicável por si só, não importa
quanto retrocedermos. Se todas as coisas na série são contingentes (isto é,
coisas dependentes de outras coisas), parece que a soma total da série também
é contingente. Uma vez que cada coisa na série de coisas contingentes precisa
de uma causa para a sua existência, como pode a série tomada como um todo
também não necessitar de uma causa?

Em um famoso debate do século XX entre o filósofo ateu Bertrand Russell


(1872-1970) e o filósofo católico Padre Frederick Copleston (1907-1994), este
último resumiu o ponto central de forma concisa:

Se somarmos chocolates, obteremos, no fim, chocolates, e


não um carneiro. Se acrescentarmos chocolates até o infini-
to, obteremos, presumivelmente, um número infinito de cho-
colates. Se somarmos seres contingentes até o infinito, ainda
obteremos seres contingentes, e não um ser necessário. Uma
série infinita de seres contingentes será́ , a meu ver, tão incapaz
de se causar a si mesma como um ser contingente (RUSSEL,
1972, p. 108-109).

131
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Escute o debate antológico promovido pela BBC em 1948.


Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Bz67ogt745w>.
Ou leia o debate na íntegra no livro de Bertrand Russel, Por que não
sou cristão (1972). Outro excelente livro, com um capítulo específico
sobre os argumentos cosmológicos é Bruce e Barbone (2013), Os
100 argumentos mais importantes da filosofia ocidental. No capítulo
2 deste livro, Mark Nelson (2013), descreve elucidativamente o
argumento da contingência.

Assim, como enunciado na premissa 3, parece que uma causa externa –


uma que é em si não causada e fundamenta a série contingente – é necessária
para a série (veja a Figura 2). Como veremos na próxima seção, este argumento
para a premissa 2 é muito semelhante ao argumento de razão suficiente.

Figura 2 – A necessidade de uma causa externa não causada

Fonte: O autor.

Além disso, os defensores do argumento da contingência podem argumentar


que este fundamento não causado da série contingente é o que se entende por
Deus. Portanto, Deus deve existir.

Claro, nem todos concordam com esta conclusão. De modo a negar a


conclusão, no entanto, deve-se negar uma ou mais das premissas. A seguir estão
algumas das várias objeções a esta forma do argumento cosmológico.

Objeção 1: A série contingente simplesmente é

A primeira resposta é alegar de que a série causal não precisa de uma


explicação; ela simplesmente é. Esta foi uma resposta básica oferecida por

132
Capítulo 4 Argumentos Cosmológicos da Existência Divina

Bertrand Russell no debate observado acima. Ele argumentou que derivamos


nossa compreensão de uma causa de nossas observações sobre o que acontece
no mundo. Mas por que ir além disto? Não há nenhuma razão, sustenta ele, para
ir além de nossa experiência e supor que toda a série precisa de uma explicação.
Como ele diz: "não vejo nenhuma razão para pensar que haja qualquer causa.
Todo conceito de causa se deriva de nossa observação de coisas particulares;
não vejo razão alguma para supor que o total tenha qualquer causa [...].
Eu diria que o universo simplesmente está aí, e isso é tudo" (RUSSEL, Uma vez que cada
parte da série
1972, p. 109).
precisa de uma
causa então a série
Como um defensor do argumento cosmológico responderia a como um todo deve
essa objeção? Uma forma seria a alegação de que uma vez que cada precisar também de
parte da série precisa de uma causa então a série como um todo deve uma causa, pois a
precisar também de uma causa, pois a série é nada mais do que a série é nada mais do
que a soma de suas
soma de suas partes. No entanto, isso leva à próxima objeção.
partes.

Bertrand Arthur William Russell (1872-1970) era um


matemático britânico, lógico, filósofo e reformador social. Ele se
tornou um membro do Trinity College, em Cambridge e mais tarde
em sua carreira um Docente em Filosofia. Em 1916, ele foi demitido
de sua posição na universidade devido ao seu agnosticismo e ao
seu pacifismo. Mais tarde ele foi reintegrado, mas recusou a oferta.
Ele escreveu uma série de livros importantes, incluindo Principia
mathematica (2001, coautoria com A. N. Whitehead) e Os problemas
da filosofia (2008). Em 1949, ele recebeu o Prêmio Nobel de
Literatura.

Objeção 2: A falácia da composição

À medida que o debate continuou, Russell acusou Copleston de cometer uma


falácia lógica – a falácia da composição. Veja como a objeção é feita: só porque
as partes de um todo têm um atributo específico (tais como ser contingente),
não segue daí que o todo também tenha esse atributo. Vários exemplos podem
ser citados para demonstrar o ponto. Por exemplo, apesar de todas as pedras
que formam a parede de um castelo medieval sejam pequenas, não segue disso
que a parede do castelo medieval também seja pequena. Assim também com o
universo, argumenta-se, só porque cada parte que o compõem é contingente, e,
portanto, em necessidade de uma explicação causal, não segue disso que o todo
é contingente e, portanto, em necessidade de uma explicação causal.

133
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Só porque as partes Os defensores do argumento cosmológico respondem,


de um todo têm um argumentando que esta analogia do castelo é defeituosa. Uma analogia
atributo específico mais acurada, eles mantêm, é a seguinte: uma vez que a parede do
(tais como ser
castelo medieval é feita de pedras, a mesma é uma parede de pedra
contingente), não
segue daí que o todo do castelo. Ou seja, uma vez que todas as partes que compõem esta
também tenha esse parede do castelo são pedras, a parede como um todo é de pedra.
atributo Assim também com o universo, uma vez que cada uma das partes que
o compõem é contingente, o conjunto deve ser contingente também.
Os objetores discordam, e o debate então gira em torno de qual tipo de analogia
melhor reflete o universo e suas partes constituintes.

Objeção 3: Explicando as partes de um todo explica o todo em si mesmo

Se as partes Uma objeção relacionada com a anterior é que, se as partes


individuais que
individuais que formam uma coisa são todas explicadas, então, a coisa
formam uma
coisa são todas toda em si mesma é explicada também. O historiador e filósofo escocês
explicadas, então, David Hume (1711-1776) escreveu uma obra-prima em filosofia da
a coisa toda em si religião intitulada Diálogos sobre a religião natural (1992). Ao fazer este
mesma é explicada tipo de objeção, Hume afirma o seguinte:
também

Mas o todo, você diz, precisa ter uma causa. Minha resposta
é que a união dessas partes em um todo, assim como a união
de várias províncias diferentes em um reino, ou de vários mem-
bros distintos em um corpo, realiza-se simplesmente por um
ato arbitrário da mente e não tem influência sobre a natureza
das coisas. Se eu lhe tivesse mostrado as causas particulares
de cada indivíduo de uma coleção de vinte partículas mate-
riais, seria muito pouco razoável que você me perguntasse, a
seguir, pela causa das vinte como um todo. Pois ela já foi sufi-
cientemente explicada ao se explicarem as causas das partes
(HUME, 1992, IX, p. 123).

Hume está certamente correto que por vezes é o caso que uma explicação
sobre as partes de uma coisa explica o todo do qual as partes consistem, pelo
menos em um nível. Usando o seu próprio exemplo referindo-se a um reino
particular, uma explicação para "Por que isso é um reino?" poderia ser "Porque há
várias províncias unidas". Mas, é claro, em outro nível esta resposta é incompleta.
Pode-se também buscar razoavelmente a causa por que as províncias foram, de
fato, unidas umas às outras para formar o reino, pois os reinos são os tipos de
coisas que envolvem a união de províncias por razões específicas. Portanto, esta
analogia, bem como a que ele usa sobre os membros de um corpo, não parecem
funcionar no modo como Hume havia imaginado.

134
Capítulo 4 Argumentos Cosmológicos da Existência Divina

Para que possamos afirmar que o universo como um todo não precisa de uma
causa, parece que teríamos de afirmar que os indivíduos contingentes do qual
a série consiste também não precisam de causas. Mas isso seria simplesmente
afirmar que eles não são contingentes afinal de contas. De fato, alguns sustentam
a visão de que não existem seres contingentes, e o fazem isso por várias razões.
Uma destas razões oferecidas é que os termos “contingente” e “necessário”
carecem de sentido.

Objeção 4: Quem causou deus a existir?


Se Deus não
Pode-se objetar que, se o universo como um todo precisa de uma precisa de uma
causa, então a série
explicação porque a série contingente da qual ele consiste precisa de
contingente que
uma explicação, então assim também Deus precisa de uma explicação. compõe o universo
Por outro lado, se Deus não precisa de uma causa, então a série não precisa de uma
contingente que compõe o universo não precisa de uma causa também. causa também.

Em resposta, os defensores do argumento concordam que a série causal


deve parar em algum lugar – deve haver uma explicação fundamentadora. No
entanto, por definição, coisas contingentes necessitam causas, ao passo que as
coisas necessárias não. Assim, por definição, Deus (como um ser necessário não
contingente) não precisa de uma causa. Isso significa que, por definição, Deus é
a causa não causada que explica a série contingente que compõe o universo. Se
Deus realmente existe ou não é uma questão separada desta resposta à objeção;
ela só está afirmando uma definição comumente aceita de Deus, e, em seguida,
observando que tal definição, de fato, fornece uma explicação fundamentadora
para a série que de outra forma seria inexplicável.

Objeção 5: Mesmo admitindo a existência de uma causa necessária,


esta causa não precisa ser deus

Há um número de diferentes aspectos desta objeção, mas a essência dela é


que mesmo se admitirmos as premissas 1-3, não há nenhuma razão para acreditar
que este ser necessário é Deus – certamente não o Deus das religiões teístas.
Esta é uma séria objeção a esta forma do argumento cosmológico. Por que se
deve inferir que o ser necessário é equivalente a Deus? Talvez a ser necessário
é mais semelhante ao “Deus” de Aristóteles, um "motor imóvel" de pensamento
impessoal puro. Tal ponto de vista de Deus está muito longe daquele pessoal,
envolvente sendo oferecido pelas grandes religiões teístas.

135
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Se o conceito de Uma resposta a essa objeção é manter que o ser necessário


um ser necessário é exigido pelo argumento cosmológico é melhor compreendido como o ser
expresso em termos mais perfeito do argumento ontológico, um exemplo de tal posição pode
do conceito de um
ser visto nas partes A605-7 e 508-10 da Crítica Razão Pura de Kant
ser mais perfeito (e
o último é central (2001). Vamos examinar o argumento ontológico no Capítulo 6, mas
para o argumento uma dificuldade aqui, como observado por Immanuel Kant (1704-1824),
ontológico), isto é que, se o conceito de um ser necessário é expresso em termos do
parece fazer conceito de um ser mais perfeito (e o último é central para o argumento
o argumento ontológico), isto parece fazer o argumento cosmológico dependente
cosmológico
do argumento ontológico, e muitos têm argumentado que o argumento
dependente
do argumento ontológico é deficiente.
ontológico
Outra resposta a essa objeção é simplesmente conceder e
admitir que este argumento cosmológico, tomado por si só, não implica o Deus
das religiões tradicionais. Respondedores desta espécie tipicamente sustentam
que ele fornece razão para acreditar em algum tipo de Deus, e assim fornece
razão para não ser um ateu.

O Argumento da Razão Suficiente


Deve haver uma Uma segunda forma de argumento cosmológico é chamada de
razão suficiente,
o argumento da razão suficiente, ou o argumento cosmológico da
ou explicação (e
não uma causa), razão suficiente. É semelhante ao argumento da contingência, mas
para a existência é baseado na premissa de que deve haver uma razão suficiente,
de qualquer ser ou explicação (e não uma causa), para a existência de qualquer ser
contingente, assim contingente, assim como para o universo contingente como um todo.
como para o Os primeiros defensores do argumento da razão suficiente foram o
universo contingente
filósofo racionalista alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) –
como um todo.
verifique sua obra A monadologia (2009) – e o filósofo Inglês Samuel
Clarke (1675-1729) – verifique a sua obra A demonstration of the being and
attributes of God (1728). O Quadro 2 a seguir, “O argumento da razão suficiente”,
mostra um modo de declarar tal argumento.

Quadro 2 - O argumento razão suficiente


Todas as coisas (seres) que existem devem ter uma razão suficiente para a
1)
sua existência.
A razão suficiente para a existência de uma coisa deve estar na coisa em si
2)
ou fora da coisa.
Todas as coisas no universo são coisas para as quais a razão suficiente das
3) mesmas se encontra fora delas mesmas (ou seja, nada no universo fornece
sua própria explicação para a sua existência).

136
Capítulo 4 Argumentos Cosmológicos da Existência Divina

4) O universo não é nada mais do que a coleção das coisas que o compõem.
Assim, deve haver uma razão suficiente, para o universo como um todo, que
5)
se encontra fora dele mesmo.
Não pode haver uma regressão infinita de tais razões suficientes, pois então
6)
não haveria nenhuma explicação final das coisas.
Portanto, deve haver uma coisa (ser) primeira autoexplicativa cuja razão
7) suficiente para a sua existência encontra-se em si mesma, em vez de fora de
si (ou seja, um ser necessário cuja não existência é impossível).

Fonte: O autor.

Em termos simples, a essência desse argumento é que tudo o que existe


no mundo precisa de uma explicação para a sua existência, e nada no mundo
fornece uma explicação para si mesmo (incluindo o mundo como um todo). Então,
deve haver uma explicação fora dele – uma explicação que é suficiente em si
mesma. E nós chamamos essa explicação "Deus".

Uma pergunta relacionada colocada por Leibniz é esta: "Por que existe algo
em vez de nada?" Por que o universo existe, em vez de apenas nada? Não parece
razoável buscar uma explicação para sua existência? Uma analogia pode ser útil
neste momento. O filósofo Richard Taylor (1919-2003) nos pede para imaginar que
estamos caminhando por uma floresta e nos deparamos com uma bola translúcida:

Suponha, então, que você tenha encontrado esta bola trans-


lúcida e esteja mistificado por ela. Agora seja o que for que
você pondere sobre ela, há uma coisa que você dificilmente
questionaria; nomeadamente, que ela não apareceu lá por si
só, que ela deve a sua existência a algo. Você pode não ter
a mais remota ideia de onde e como ela veio parar lá, mas
você dificilmente duvidaria de que houvesse uma explicação.
A ideia de que ela poderia ter vindo do nada, de que poderia
existir sem que haja qualquer explicação para sua existência, é
uma que poucas pessoas consideram digna de entretenimento
(TAYLOR, 1969, p. 100-101).

Ele continua:

Isso ilustra uma crença metafísica que quase parece fazer par-
te da própria razão, mesmo que apenas alguns homens pensem
nisso; a crença de que há uma explicação para a existência de
qualquer coisa, alguma razão do por que isso deve existir ao invés
de não. A não-existência de algo, o que não deve ser confundida
com a extinção da existência de algo, nunca requer uma explica-
ção; mas a existência requer. Que nunca devesse haver qualquer
bola na floresta não exige qualquer explicação ou razão, mas que
devesse haver tal bola, exige (TAYLOR, 1969, p. 100-101).

137
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Se referindo a alguma coisa de concreto em particular, como um taco de


beisebol ou a bola translúcida mencionada acima ou ao universo como um todo,
dada a sua existência, parece razoável pedir uma explicação para a mesma. O
defensor do argumento da razão suficiente, então, coloca o detrator na defensiva
e faz a pergunta: "Quem está sendo mais razoável, a pessoa que sustenta que há
uma razão suficiente para a existência do universo, ou a pessoa que nega isso?".
À primeira vista, a resposta parece óbvia.

Em resposta, tem havido uma série de objeções levantadas contra o


argumento de razão suficiente. Várias das objeções mencionadas acima em
relação ao argumento da contingência, por exemplo, também podem ser aplicadas
a este argumento. Nós não vamos ensaiar essas objeções aqui, mas outras foram
levantadas especificamente em relação ao argumento da razão suficiente.

Objeção 1: Não há maneira alguma de demonstrar que o princípio da


razão suficiente é verdadeiro

De acordo com essa objeção, não há maneira de provar o princípio


Não há evidência de Leibniz da razão suficiente (que cada fato e declaração verdadeira tem
empírica alguma uma razão suficiente para o porquê é do jeito que é e não o contrário).
para provar o Em primeiro lugar, não há evidência empírica alguma para provar o
princípio – que
princípio – que não se pode inferir a partir de nossa experiência sensorial
não se pode
inferir a partir de que cada fato e declaração verdadeira tem uma razão suficiente para
nossa experiência a maneira que é. Em segundo lugar, não é uma verdade logicamente
sensorial que cada necessária – a sua verdade pode ser logicamente negada. Em terceiro
fato e declaração lugar, não é uma verdade a priori; enquanto uma série de filósofos tem
verdadeira tem uma acreditado que o mesmo seja verdadeiro, outros negaram que é. Desde
razão suficiente para que a premissa 1 do argumento é baseada neste princípio, esta objeção
a maneira que é.
levanta sérias dúvidas sobre o argumento da razão suficiente.

Uma maneira de responder a essa objeção é manter que o princípio da razão


suficiente é mais razoável de acreditar do que de negar. Pode-se, por exemplo,
argumentar que é uma crença propriamente básica (como a minha crença de que
eu existo, ou a minha crença de que há realmente um mundo externo) ou que se
pode simplesmente intuir sua verdade. Parece de fato que muitos, se não a maioria
das pessoas, acreditam que há alguma razão porque as coisas existem e não o
contrário. Pode-se, também, observar que a própria prática da ciência pressupõe
que este princípio é verdadeiro. Imagine um cenário em que um cientista, com a
intenção de encontrar a razão pela qual vinte ratos experimentais desenvolveram
em seu laboratório tumores grandes, concluir que não há nenhuma razão afinal
para tais crescimentos! É duvidoso que o cientista seria levado a sério.

É claro que essas respostas pressupõem que o princípio em si seja coerente,


mas, como veremos a seguir, alguns têm argumentado que não o é.

138
Capítulo 4 Argumentos Cosmológicos da Existência Divina

Crença propriamente básica. Uma crença propriamente básica


é uma crença da qual é possível, mas insensato exigir justificação.
Os exemplos incluem as crenças de que eu existo, de que há outras
mentes, e de que há um mundo externo.

Objeção 2: O princípio da razão suficiente é incoerente

De acordo com essa objeção, o princípio da razão suficiente acaba por


ser uma noção incoerente em relação à existência do universo. Veja como a
objeção se desenvolve. Ou a explicação para a existência do universo
contingente está em si mesma em necessidade de mais explicações, Se o universo está
ou ela não está. Se ele está em necessidade de mais explicações, implicado por um
então ela também é contingente, e por isso não fornece uma explicação ser necessário,
última (ou seja, não é uma razão suficiente) para o universo. Por então ele também
outro lado, se a explicação para a existência do universo contingente deve ser necessário.
Se o universo é
é em si mesma uma explicação necessária, então o que explica (isto
necessário, então
é, o universo) deve também ser necessário. O universo teria que ser ele não precisa de
necessário, em vez de contingente, uma vez que o que se explica por uma explicação
uma razão suficiente também está implicado por ela. Portanto, se o externa para sua
universo está implicado por um ser necessário, então ele também deve existência.
ser necessário. Se o universo é necessário, então ele não precisa de
uma explicação externa para sua existência.

Em resposta, os defensores do argumento da razão suficiente concedem


que a explicação para a existência do universo contingente deve ser ela mesma
contingente, ou necessária, e eles concluem que ela deve ser necessária. No
entanto, eles não concordam com o ponto de que, desde a explicação do universo
é um ser necessário, o universo deve ser ele mesmo necessário. A razão de
que não teria de ser necessário, eles argumentam, é que se o ser necessário –
ou seja, Deus – tem livre arbítrio, então Deus poderia ter escolhido não criar o
mundo. Por isso, é contingente, não necessário.

No entanto, se Deus não precisava ter criado o mundo, então citar a sua
existência não fornece uma razão suficiente para a existência do mundo. É
necessário haver uma razão por que ele escolheu fazer o mundo. Se esta é uma
razão suficiente, então Deus não poderia deixar de ter criado o mundo e sua
escolha não foi livre (em um sentido indeterminístico). Se é um fato contingente que
Deus escolheu criar este mundo, o princípio da razão suficiente não será satisfeito,
porque exige que todos os fatos contingentes tenham uma explicação suficiente.

139
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Se Deus é o ser Além disso, respondem aos objetores, se Deus é o ser mais
mais perfeito perfeito (como os teístas tradicionais sustentam), e se um ser perfeito
(como os teístas não criaria um universo inferior (como os teístas tradicionais também
tradicionais
sustentam), então Deus teve que criar este mundo – o melhor de todos
sustentam), e se
um ser perfeito não mundos possíveis. Portanto é necessário, não contingente. (Veja,
criaria um universo por exemplo, William Rowe (2011), especificamente o Capítulo 2, “O
inferior (como os argumento cosmológico”). E assim o debate continua.
teístas tradicionais
também sustentam), Objeção 3: A subjetividade de uma explicação
então Deus teve que
criar este mundo – o
melhor de todos Outra objeção é que, mesmo supondo que cada coisa tem uma
mundos possíveis. explicação suficiente, o que constitui uma justificação satisfatória para
uma pessoa pode não ser para outra. A este respeito a visão de mundo
dos indivíduos pode entrar em jogo. Uma explicação satisfatória para um ateu de
um dado fenômeno pode ser muito diferente daquela para um teísta, ou para um
panteísta, ou para um panenteísta.

Objeção 4: A ciência tem demonstrado que não é necessário haver


razões ou explicações para todas as coisas e eventos

Muitos físicos e filósofos da ciência contemporâneos sustentam uma


interpretação indeterminista da mecânica quântica em que certos eventos
quânticos acontecem sem qualquer causa ou razão prévia. Então, por que se
deve sustentar que o próprio universo necessita de uma razão ou explicação?
Talvez tenha simplesmente sempre existido, ou talvez tenha surgido na existência
por nenhuma razão afinal.

No entanto, nem todos concordam com esta interpretação da mecânica


quântica e alguns têm argumentado que a questão aqui é epistemológica, não
ontológica. Em outras palavras, só porque não sabemos por que um determinado
evento quântico ocorreu, isso não quer dizer que não houve razão para esse
evento. Albert Einstein (1879-1955), que foi agraciado com o Prêmio Nobel por
sua contribuição à teoria quântica, por exemplo, nunca concordou com essa
interpretação. Como ele disse, "Deus não joga dados" com o universo. No
entanto, seu colega Niels Bohr (1885-1962) – cofundador da (indeterminística)
interpretação de Copenhague da mecânica quântica – disse isso em resposta:
“Einstein, não diga a Deus o que fazer". Na época, cada lado desta disputa
científica acusava o outro de ter o ônus da prova. Atualmente ainda há debate,
e novas evidências sugerem avanços e mais complexidades. Stephen Hawking
(1999, s.p., tradução nossa), por exemplo, afirmou que “o futuro do universo não

140
Capítulo 4 Argumentos Cosmológicos da Existência Divina

é completamente determinado pelas leis da ciência, e seu estado atual, como


pensava Laplace. Deus ainda tem alguns truques na manga”. Entretanto Hawking
(1999, s.p. tradução nossa) é enfático ao posicionar-se referente à posição de
Einstein sobre o assunto. Ele diz que Einstein estava duplamente errado quando
disse que ‘Deus não joga dados’. “Deus não só joga dados, mas Ele às vezes nos
confunde jogando-os onde ninguém os pode ver [...] o universo não se comporta
de acordo com as nossas ideias preconcebidas. Ele continua a nos surpreender”.

O Argumento Kalam
Uma terceira forma do argumento cosmológico é referida como o argumento
Kalam – o termo "kalam” é uma palavra árabe que significa “teologia especulativa".
Foi desenvolvido nos tempos medievais por dois filósofos islâmicos, al-Kindi
(c. 801-c. 873) e al-Ghazali (1058-1111). O seu principal defensor nos últimos
tempos é o filósofo cristão William Lane Craig (1949-), e, ao explicar e defender o
argumento, estabelece a estrutura mostrada na Figura 3 a seguir.

Para uma história e defesa do argumento Kalam, veja a obra de


William Lane Craig, The Kalam Cosmological Argument (2000) ou o
texto de Harry Lesser (2013), que sintetiza a proposta de Craig.

Figura 3 - OS dilemas do argumento Kalam

Fonte: O autor.

141
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Os dilemas são óbvios. O universo teve um começo ou não teve. Se teve,


este começo foi causado ou não foi causado. Se ele foi causado, a causa foi
pessoal ou foi impessoal. Com base nesses dilemas, o argumento pode ser
colocado na forma lógica demonstrada no Quadro 3 “O argumento kalam”.

Quadro 3 – O argumento Kalam


1) Tudo que começa a existir tem uma causa para sua existência.
2) O universo começou a existir.
3) Portanto, o universo tem algum tipo de causa para sua existência.
4) A causa do universo, ou é uma causa impessoal ou um Deus pessoal.
5) A causa do universo não é impessoal.
6) Por isso, a causa do universo é um Deus pessoal.
Fonte: O autor.

Se alguma coisa Como foi dito, o argumento é logicamente válido. Então, mais uma
vem a ser, ou vez, a questão importante é, são as premissas verdadeiras? A primeira
passa à existência,
premissa parece intuitivamente óbvia. Se alguma coisa vem a ser,
deve haver algo
que causou a sua ou passa à existência, deve haver algo que causou a sua existência.
existência. Historicamente, esta primeira etapa não foi muitas vezes negada, até
mesmo por aqueles que duvidaram ou negaram a existência de Deus,
pela simples razão de que os eventos físicos parecem ser rastreáveis às causas
anteriores (em teoria, se não na prática real). Mas enquanto a sua verdade pode
ser intuitiva, como observado na seção anterior têm surgido nos últimos tempos
objeções significativas para ela. Por exemplo, Quentin Smith (2010, p. 128), um
filósofo ateu, escreve um excelente texto argumentativo para “mostrar que esta
segunda parte “teísta” [do argumento Kalam] não é sólida e que há uma segunda
parte “ateia” sólida que mostra que o universo se causa a si mesmo”.

Um tipo diferente de objeção a esta primeira premissa é que, se tudo o que


existe tem uma causa, Deus também não precisaria de uma causa? Esta objeção
também foi discutida anteriormente. Mas observe que a alegação no argumento
Kalam não é que TUDO o que existe necessita de uma causa. Em vez, é que tudo
o que começa a existir tem uma causa.

142
Capítulo 4 Argumentos Cosmológicos da Existência Divina

Al-Ghazali (1058-1111) foi um destacado teólogo, filósofo e


místico do islã medieval. Ele tem sido celebrado como a “Prova do
Islã” e o “Renovador da Religião”. Sua obra mais famosa é a The
incoherenceofthephilosophers (AIncoerência dos filósofos), em que
ele ataca uma versão aristotélica da filosofia árabe. Neste trabalho,
ele argumenta que a razão por si só não é capaz de fornecer uma
prova completa para uma visão de mundo teísta. Mas ele não fornece
um argumento de que o universo teve um começo no tempo – um
argumento Kalam – pois ele sustenta que acreditar em um universo
eterno é equivalente a acreditar no ateísmo.

Na explicação padrão cristã, judaica, islâmica e hindu teísta, Deus não


começou a existir. Deus sempre existiu; Deus é a causa não causada. Então,
perguntar quem/o que causou a causa não causada é fazer uma pergunta
incoerente. Claro que se poderia opor-se a esse significado de Deus, mas
o opositor pode, pelo menos, conceder que tal significado é coerente; se é
verdadeiro ou falso é uma questão diferente.

Outras críticas da primeira premissa foram oferecidas, no entanto, a etapa no


argumento que tem sido mais contestada pelo antagonista do argumento Kalam
não é a premissa 1, mas a premissa 2. Craig e outros têm sustentado que existem
argumentos filosóficos e evidências científicas que apoiam fortemente a alegação
de que o universo começou a existir. Então, vamos agora examinar evidências
para essa afirmação, bem como respostas a elas.

Um Argumento Filosófico Para o


Início do Universo
Existem dois principais argumentos filosóficos para a premissa de que o
universo teve um começo. Nós só temos espaço aqui para um deles – aquele
que vários filósofos consideram ser o mais plausível – que vamos chamar de “o
argumento da travessia do infinito". Este pode ser expresso em três etapas.

143
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Quadro 4 – O argumento da travessia do infinito (Sustentando a premissa


2 do argumento Kalam)
A série de eventos no tempo que compõe toda a história do universo é uma cole-
1)
ção formada adicionando um membro após o outro.
Uma coleção formada adicionando um membro após o outro não pode ser um infi-
2)
nito real.

Por conseguinte, a série de eventos no tempo que se torna toda a história do uni-
3)
verso não pode ser um infinito real.

Fonte: Adaptado de Craig (2000).

Uma vez que a série não pode ser um infinito real, deve ser finita. Sendo
finita, a série de eventos no tempo deve ter um começo. Assim, o universo deve
ter um começo.

Vamos examinar cada uma das etapas desse argumento. Em primeiro lugar,
prima facie, a etapa 1 parece ser bastante clara. Os eventos que formam toda a
história são tomados um após o outro. Eles não ocorreram todos simultaneamente,
mas foram sequencialmente ocorrendo na medida em que o tempo avançou.
Assim como os eventos que ocorreram em sua vida a partir das 8 horas desta
manhã até as 20 horas desta noite são uma coleção de eventos formados por
uma adição sucessiva (eles são uns adicionados após o outro), assim também
são todos os eventos em sua vida e, de fato, todos os eventos na história.
Embora, esta visão do tempo não seja universalmente aceita, e uma objeção a
esta premissa é que ela implica uma noção errada da natureza do tempo. Sugere-
se que a premissa está pressupondo uma Teoria-A, ou série-A, do tempo, na qual
há fluxo temporal real. Mas essa visão do tempo é debativel (veja as leituras do
LEO-DICAS).

Para aprofundar nas questões da filosofia e física do


tempo, sugerimos a leitura dos seguintes textos. Os capítulos
Natureza do tempo, Análises adicionais do tempo, e Natureza
relativística do tempo, de Osvaldo Pessoa Jr (2014) – capítulos 7,
8 e 9, respectivamente –, o artigo A irrealidade do tempo (2014) de
MacTaggart J. e MacTaggart E., e o texto de Craig (2010), Começar a
existir. Todos estes disponíveis on-line (verifique na referência deste
Livro para acessar os textos). Outra importante obra é o livro Uma
breve história do tempo, de Hawking (2015).

144
Capítulo 4 Argumentos Cosmológicos da Existência Divina

A premissa 2 é geralmente a mais criticada por opositores. Antes Um infinito potencial


de analisá-la, no entanto, a frase "infinito real" precisa ser explicada é um conjunto
brevemente. Por definição, um infinito real é uma totalidade ou conjunto incompleto em
que ele continua
de coisas ou acontecimentos completos em vez de indefinidos. A fim de
indefinidamente,
ter clareza sobre isso, é útil contrastar um infinito real com um infinito mas nunca alcança
potencial. Um infinito potencial é um conjunto incompleto em que ele o ponto de ser um
continua indefinidamente, mas nunca alcança o ponto de ser um infinito infinito real.
real. Por exemplo, você poderia começar a contar agora e continuar
para sempre. Mas você nunca iria chegar ao lugar onde você poderia parar e dizer:
"Eu finalmente terminei a contagem de um conjunto infinito real de números".

Um infinito potencial, então, é indefinido no sentido em que ganha novos


membros, à medida que se expande, mas nunca chega a um fim. Um infinito
real, por outro lado, é definido – é um conjunto completo; tem um número fixo
de membros nele. O ponto aqui é que desde que você nunca poderia alcançar
um infinito real, movendo-se de um membro após o outro (isto é, pela adição
sucessiva), mas ainda assim, aqui estamos no final do conjunto de eventos que
compõem a história até este ponto, o conjunto de eventos que compõe o passado
não pode ser realmente infinito. Assim, o conjunto de eventos que formam o
passado devem ser finitos, e, portanto, o universo deve ter um começo.

O campo da matemática que trata de infinitos reais é chamado


de “teoria dos conjuntos”, e há um debate animado sobre se conjuntos
infinitos reais existem na realidade ou são meras ideias na mente.
Para saber mais sobre a teoria dos conjuntos, consulte a monografia
de Renan Maneli Mezabarba, Uma introdução à teoria axiomática
dos conjuntos (2012). Veja também a monografia de Christiano O.
de Rezende Sena (2011), para aprofundar a relação do conceito de
infinito com a teoria dos conjuntos.

Objeção: As séries temporais não têm começo

Várias objeções foram oferecidas para este argumento da travessia


É apenas no
do infinito, e uma delas é dada por Nicholas Everitt (2004) – veja as assumir um início/
páginas 63-64. Talvez, sugere ele, não há nenhum ponto de partida afinal começo de uma
para as séries temporais; talvez a série não tenha um membro mais série infinita que
antigo. Nenhum regresso vicioso emerge de tal afirmação, argumenta se cria o problema
ele, pois assim como o futuro pode continuar para sempre, assim objecionável.
também o passado poderia voltar para sempre. É apenas no assumir um
início/começo de uma série infinita que se cria o problema objecionável.

145
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

No entanto, a seguinte resposta pode ser feita. Se houvesse uma série sem
começo, seria absurdo supor que em algum momento nós poderíamos alcançar o
momento presente.

O problema aqui não é nem uma questão de não ter tempo suficiente nem
de infinitamente adicionar um membro após o outro. Pelo contrário, parece ser um
absurdo metafísico. Craig (2014, s.p.) expressa desta forma:

De fato, a ideia de uma série sem começo terminando no pre-


sente parece absurda. Para dar apenas uma ilustração: supo-
nha que encontremos um homem que afirma ter contado atra-
vés da eternidade e agora está terminando: …, -3, -2, -1,0.
Poderíamos perguntar por que ele não terminou de contar on-
tem ou anteontem ou no ano passado? Até lá um tempo infinito
já teria se passado, então ele já deveria ter terminado naquele
tempo. Portanto, em nenhum ponto no passado infinito pode-
ríamos encontrar o homem terminando sua contagem, porque
em tal ponto ele já deveria ter terminado! De fato, não importa
quão longe voltemos ao passado, nós nunca poderemos en-
contrar o homem terminando a contagem, pois em qualquer
ponto que o alcançarmos ele já terá terminado. Mas se em
nenhum ponto do passado podemos encontrar ele contando
[até o fim], isto contradiz a hipótese de que ele esteve contando
pela eternidade. Isto ilustra o fato de que a formação de um
infinito real por adição consecutiva é igualmente impossível se
alguém o faz até ou do infinito.

Os objetores poderiam responder argumentando que a noção de uma série


sem começo pode parecer absurda, mas o fato é muitas vezes mais estranho
que a ficção. Parece absurdo supor que o objeto físico perante mim, um teclado
de computador, é na verdade principalmente espaço vazio com inúmeras
micropartículas girando em altas taxas de velocidade. Mas de acordo com as
nossas melhores teorias físicas, isto é precisamente o que o teclado é. Muitas
outras objeções concisamente afirmadas a este argumento filosófico contra
a travessia do infinito estão expostas nas páginas 219-224 da obra de Richard
Sorabji (1983).

Duas Supostas Evidências Científicas


Para o Início do Universo
O universo é grande tanto no espaço como no tempo e, durante grande parte
da história da humanidade, estava além do alcance de nossos instrumentos e
nossas mentes. Isso mudou dramaticamente no século XX. Os avanços foram
conduzidos igualmente por ideias poderosas da relatividade geral de Einstein

146
Capítulo 4 Argumentos Cosmológicos da Existência Divina

às teorias modernas das partículas elementares e instrumentos poderosos dos


refletores de 100 e 200 polegadas que George Ellery Hale construiu, que nos
levou além da nossa Via Láctea, ao Telescópio Espacial Hubble, que nos levou
de volta ao nascimento das galáxias. Ao longo dos últimos 20 anos, o ritmo
do progresso acelerou com a percepção de que a matéria escura não é feita
de átomos comuns, a descoberta da energia escura e o surgimento de ideias
ousadas, como a inflação cósmica e o multiverso.

O universo de 100 anos atrás era simples: eterno, imutável, consistindo de


uma única galáxia, contendo alguns milhões de estrelas visíveis. A imagem hoje
é mais completa e muito mais rica. O cosmos começou há 13,7 bilhões de anos
atrás com o Big Bang. Uma fração de segundo após o início, o universo era uma
sopa quente e sem forma das partículas, quarks e léptons mais elementares. À
medida que expandiu e arrefecia, camada em camada de estrutura desenvolveu:
nêutrons e prótons, núcleos atômicos, átomos, estrelas, galáxias, aglomerados
de galáxias e, finalmente, superaglomerados. A parte observável do universo está
agora habitada por 100 bilhões de galáxias, cada uma contendo 100 bilhões de
estrelas e provavelmente um número similar de planetas. As próprias galáxias são
mantidas unidas pela gravidade da misteriosa matéria escura. O universo continua
a se expandir e, de fato, o faz em um ritmo acelerado, impulsionado pela energia
escura, uma forma de energia ainda mais misteriosa, cuja força gravitacional
repele em vez de atrair.

Neste contexto podemos ao menos, para o nosso propósito argumentativo,


apresentar duas das evidências científicas mais recorrentes nos textos científicos
de cosmologia sobre a origem do universo.

Evidência 1: A segunda lei da termodinâmica

Uma das leis mais estabelecidas da ciência hoje é a segunda lei da


termodinâmica. A entropia é fundamental para esta segunda lei, que é entendida
como sendo a medida da energia indisponível, ou distúrbio, num sistema fechado.
Um exemplo de entropia seria a medida da diminuição de energia térmica numa
brasa. À medida que a brasa arrefece, a energia na madeira dissipa-se enquanto
o calor se dispersa no ambiente circundante. De acordo com a segunda lei, a
quantidade de energia disponível em um sistema termodinâmico fechado – um
sistema no qual nenhuma nova massa ou energia é posta – diminui ao longo
do tempo. Se o universo é um sistema termodinâmico fechado, a entropia do
universo está aumentando ao longo do tempo. Para colocá-lo de forma diferente, a
quantidade de energia disponível e de ordem no universo está diminuindo ao longo
do tempo. Como tal, irá acabar por atingir um estado de equilíbrio termodinâmico
(neste caso, tal equilíbrio significaria que a temperatura se manteria constante).
Todas as estrelas quentes no universo, por exemplo, eventualmente acabariam

147
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

por se esfriar e permaneceriam estáveis ​​a uma temperatura constante – não


gastando mais energia de calor. O universo acabará por chegar a um estado de
equilíbrio termodinâmico e de desordem máxima, o que alguns se referem como
a “morte térmica" do universo (SWEETMAN, 2001). A questão, então, levantada
pelos proponentes do Kalam, é esta: “Por que o universo já não chegou a este
estado de equilíbrio termodinâmico?"

Considere a seguinte analogia. Suponha que você entra em uma


Uma vez que o sala e vê uma xícara de café expresso posta sobre a mesa perante de
universo ainda você. Você pondera quanto tempo ela está posta ali e então, enquanto
está “quente” (note
ninguém está olhando, você toma um gole. Você descobre que o café
a estrela quente
no nosso próprio ainda está quente. Você, então, concluiria que a xícara de café estava
sistema solar, por ali por meses, semanas ou até mesmo dias? Claro que não. Por que
exemplo – o sol), não? Por causa da segunda lei da termodinâmica e da entropia; a
argumentam os energia térmica no café não foi totalmente dissipada, e por isso não
defensores do poderia ter estado lá por muito tempo. Uma vez que o universo ainda
argumento Kalam,
está "quente" (note a estrela quente no nosso próprio sistema solar, por
ele não poderia ter
existido para sempre exemplo – o sol), argumentam os defensores do argumento Kalam, ele
ou ele também já não poderia ter existido para sempre ou ele também já teria "esfriado"
teria “esfriado” há há muito tempo. Portanto, o universo não poderia ter existido para
muito tempo. sempre; ele deve ter um começo. Nem todos concordam com esta
conclusão, é claro.

Objeção 1: A teoria do universo oscilante escapa ao controle da segunda


lei e elimina a necessidade de um início do universo

Alguns físicos têm argumentado que o universo poderia escapar da morte


térmica elaborando a hipótese de um ciclo de expansão e contração do universo,
conhecida como a "Teoria do Universo Oscilante" – ou pulsátil – (HOLT, 2013).
Neste modelo, depois de uma expansão do universo, a gravidade, eventualmente,
o detêm, provoca uma contração, e ele colapsa novamente em uma singularidade.
Após a contração e o colapso, algum mecanismo faz com que o universo exploda
em um novo universo e, então, inicia o processo de expansão mais uma vez.
Uma vez que este ciclo pode continuar indefinidamente, não há necessidade de
postular uma morte térmica final, e, portanto, não há necessidade de postular um
ponto final ou início ao universo. A evidência empírica ao longo dos últimos 50
anos tem favorecido fortemente o modelo padrão do Big Bang, no entanto, e não
tanto o modelo oscilante. A evidência para o Big Bang tem sido tão forte, de fato,
que praticamente ninguém sustenta o modelo oscilante atualmente (HAWKING,
2015; CRAIG, 2014).

148
Capítulo 4 Argumentos Cosmológicos da Existência Divina

Objeção 2: O universo é infinito, e assim a segunda lei da termodinâmica


não se aplica ao universo como um todo

De acordo com essa objeção, o universo é infinito e, portanto, não é um


sistema termodinâmico fechado. Desde que não é um sistema deste tipo, a
segunda lei não se aplica ao próprio universo. Atualmente existe um debate entre
os cosmólogos sobre se o universo é infinito ou finito em extensão e volume
espacial. No entanto, de acordo com a cosmologia do Big Bang, o universo
observável (a região do espaço que qualquer observador hipotético pode ver, e
que é cientificamente relevante) é certamente finito.

Evidência 2: A teoria do Big Bang

Um segundo tipo de evidência científica oferecida para o início do universo é


a teoria do Big Bang. Por muitos séculos, os astrônomos e cientistas geralmente
aceitaram que o Universo era estático – que era estacionário e não em expansão,
pelo menos não em qualquer sentido significativo. No entanto, no início de 1900,
uma série de observações científicas muito importantes estava ocorrendo e que
mudariam o velho paradigma. Uma dessas observações foi do astrônomo Vesto
Slipher (1875-1969), em 1914. Ele observou que um número de nebulosas (uma
nebulosa é uma massa difusa de gás ou poeira interestelar) foi se afastando
da Terra variando em altas taxas de velocidade. Os astrônomos da época não
sabiam o que fazer com esta descoberta observacional e seu significado passou
despercebido.

Então, na década de 1920, o astrônomo Edwin Hubble (1889-1953) – usando


um grande telescópio de 100 polegadas – observou que as nebulosas observadas
por Slipher eram na verdade galáxias muito além de nossa própria galáxia Via
Láctea e que elas estavam, de fato, se movendo mais longe em distância e em
altas velocidades. Veja como Hubble demonstrou esta recessão de galáxias. Ele
estava estudando a luz de galáxias distantes, e ele observou que as cores (cores
entendidas como comprimentos de onda de luz) emitidas por estas galáxias não
se encaixavam com os comprimentos de onda esperadas. Em vez disso, elas
se deslocaram para a extremidade do espectro vermelho, e este desvio para o
vermelho (redshift) da luz das galáxias aumentava numa proporção direta a
distância em que as galáxias foram localizadas. Este efeito redshift observacional
combinava com as concepções teóricas que os cosmólogos já tinham sugerido –
que o universo estava realmente em expansão.

149
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

A evidência observacional de Hubble, juntamente com os postulados


teóricos, causou a maioria dos cosmólogos atuais a concordarem que o universo
se originou em uma singularidade infinitamente densa e que, a partir deste início
inicial, o próprio espaço se expandiu com a passagem do tempo (veja a Figura 3).
Como o físico teórico Stephen Hawking (1942- ) expressa: "Quase todo mundo
agora acredita que o universo, e o próprio tempo, teve um começo no Big Bang”
(HAWKING; PENROSE, 1997, p. 20).

Stephen Hawking é Professor Lucasiano de Matemática da


Universidade de Cambridge (uma posição mantida por Sir Isaac
Newton). Ele é amplamente reconhecido como o mais físico teórico
brilhante desde Einstein. Sua pesquisa centrou-se principalmente
sobre as leis básicas que governam o universo e, junto com Roger
Penrose, ele mostrou que a Teoria da Relatividade Geral de Einstein
implica que o espaço e o tempo tiveram um começo no Big Bang
e irão acabar em buracos negros. Ele já publicou tantos artigos
acadêmicos e livros populares, incluindo o best-seller Uma breve
história do tempo (2015).

Figura 4 – A expansão do espaço com a passagem do tempo

Fonte: O autor.

150
Capítulo 4 Argumentos Cosmológicos da Existência Divina

Objeção: Alternativas para o Big Bang

Nem todos concordam com a teoria do Big Bang, no entanto. Existem


outros modelos do universo que têm sido propostos ao longo das últimas
décadas, incluindo as novas teorias da “cosmologia de branas” que introduzem
multidimensões do universo (HORVATH et al., 2007; NOVELLO, 2010). Estes
modelos são atualmente considerados protocientíficos, e talvez as próximas
décadas oferecerão novos insights sobre sua plausibilidade. Neste momento, no
entanto, o modelo mais bem estabelecido do universo – o que continua a ser mais
corroborado pela evidência científica – é a teoria tradicional do Big Bang. Ela não
explica tudo o que precisa ser explicado sobre o nosso universo, porém, e, como
acontece com todas as teorias científicas, pode ser bem aconselhável mantê-la
provisoriamente.

A Causa do Universo é um Deus


Pessoal?
Até agora, em nossa análise do argumento Kalam, os argumentos têm focado
principalmente sobre se o universo começou a existir, e no caso afirmativo, se a
sua existência precisa de uma causa. O elemento final do argumento Kalam tem a
ver com a causa do universo é um Deus pessoal ou não.

Quais podem ser algumas das razões para sustentar que a causa do universo
é pessoal, como os proponentes do argumento Kalam mantêm? De acordo com
a cosmologia do Big Bang, antes do início do universo (antes em um
sentido ontológico, não temporal) não havia tempo, espaço, matéria De acordo com a
cosmologia do Big
ou energia, e, portanto, nenhuma mudança de um estado de coisas
Bang, antes do
para outro. Mas em tal estado, como pode um primeiro evento ocorrer? início do universo
Poderia surgir espontaneamente e sem uma causa? Isto pareceria ser (antes em um
menos do que razoável. Outra possibilidade é que é um evento pessoal sentido ontológico,
em que um agente escolhe livremente agir. Esta é a resposta teísta: um não temporal)
Deus pessoal atemporal, sem espaço, sem matéria, trouxe o universo não havia tempo,
espaço, matéria ou
à existência por sua própria escolha livre. Deste ponto de vista, a
energia, e, portanto,
decisão de Deus de criar o universo não foi determinada por uma causa nenhuma mudança
anterior. Pelo contrário, foi um evento autocausado deliberadamente de um estado de
escolhido por um Deus pessoal para uma razão (não determinativa) ou coisas para outro.
conjunto de razões (ABBAGNANO, 2007; O’CONNOR, 2000).

151
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Mas a ideia de um evento de autocausado – e de forma mais ampla o que


é referido como "causação por agente" (BONJOUR; BAKER, 2010) – tem seu
próprio conjunto de dificuldades, não sendo a menor delas a questão de que um
evento autocausado parece ser um evento não causado. Se assim for, postular
um Deus pessoal como a primeira causa não resolve nada.

Outra possibilidade é que não há um agente causal externo ao nosso


universo que é pessoal, mas não é Deus (pelo menos no sentido tradicional).
Talvez um ser pessoal, mas finito de fora do universo causou a singularidade Big
Bang. No entanto, dadas as constrições do modelo padrão do Big Bang, tal ser
necessitaria ser imaterial e atemporal, e estas são propriedades que os ateus
consideram onerosas.

Veja o vídeo O argumento cosmológico Kalam, de William Lane


Craig, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=1nHsebfA_
Gs>. Assista também à refutação deste argumento por Peter Millican,
no vídeo Argumento Kalam refutado. Disponível em: <https://www.
youtube.com/watch?v=d-10EFV5u8s>.

Um Argumento Cosmológico Para


Ateísmo
Embora o Embora o argumento Kalam utilize o trabalho recente em
argumento Kalam cosmologia do Big Bang como suporte científico para o início do
utilize o trabalho universo, tem-se também argumentado que a teoria do Big Bang
recente em é incompatível com o teísmo. O principal defensor deste argumento
cosmologia do Big
cosmológico para o ateísmo é Quentin Smith (1952- ), e seu argumento
Bang como suporte
científico para o pode ser apresentado na forma mostrada no Quadro 5, “O argumento
início do universo, cosmológico para o ateísmo", a seguir.
tem-se também
argumentado que a
teoria do Big Bang é
incompatível com o
teísmo.

152
Capítulo 4 Argumentos Cosmológicos da Existência Divina

Quadro 5 – O argumento cosmológico para o ateísmo


A singularidade Big Bang (o ponto inicial do universo onde a curvatura do espaço
1
se torna, pelo menos teoricamente, infinita) é o estado mais antigo do universo.
O estado mais antigo do universo é inanimado (2 segue a partir de 1 desde que
2 a singularidade envolve as condições de temperatura infinita, curvatura infinita, e
densidade infinita hostis à vida).
Nenhuma lei governa a singularidade Big Bang e, consequentemente, não há
garantia de que ela irá emitir uma configuração de partículas que irá evoluir num
3
universo animado (com base no princípio da ignorância, de Stephen Hawking em
que a singularidade é inerentemente caótica e imprevisível).
O estado mais antigo do universo não é garantido que evoluirá para um estado
4
animado do universo (implicado pelas premissas 1-3).
A premissa 4 é inconsistente com a hipótese de que Deus – a visão judaico-cristã-
-islâmica clássica de Deus como criador do universo – criou o estado mais antigo
5* do universo, pois é verdade que, se Deus criou o estado mais antigo do universo,
então, Deus teria assegurado que o primeiro estado do universo evoluiria num
estado animado do universo.
Portanto, o Deus judaico-cristão-islâmico clássico não existe (implicado pelas
6+
premissas 4-5).
* Acrescentamos as premissas 5 e 6 com base nas conclusões que derivam das
quatro primeiras premissas.

Fonte: Adaptado do argumento de Quentin Smith (2010, 1992).

Para resumir o argumento, o estado imprevisível e caótico da singularidade


Big Bang é incompatível com o Deus criador das religiões teístas. O argumento é
logicamente válido, portanto, novamente devemos considerar se as premissas são
verdadeiras. Os teístas têm oferecido uma série de objeções a este argumento, e
vamos considerar em seguida três das principais.

Objeção 1: A singularidade não é ontologicamente real

De acordo com essa objeção, a premissa 1 do argumento é falsa, pois


enquanto a explosão do Big Bang é tomada como sendo um evento real, a
singularidade é entendida como sendo uma ficção teórica, e, portanto, não sendo
o estado mais antigo do universo. Se a premissa 1 é falsa, o argumento ateísta
entra em colapso. Um proponente desta objeção é William Lane Craig:

[...] A singularidade não tem status ontológico positivo: à medida


em que alguém rastreia a expansão cósmica de volta no tempo,
a singularidade representa o ponto em que o universo deixa de
existir. Não faz parte do universo, mas representa o ponto em que
o universo em contratação invertido no tempo desaparece no não
ser. Não houve um primeiro instante do universo justaposto à sin-
gularidade. A série temporal é como uma série de frações que con-
vergem para 0 como seu limite: 1/2, 1/4, 1/8, ..., 0. Tal como não
existe uma primeira fração, assim também não há um primeiro es-
tado do Universo. A singularidade é, portanto, equivalente a nada
ontologicamente (CRAIG; SMITH, 1995, p. 224, tradução nossa).

153
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Craig argumenta ainda que uma boa razão para interpretar a singularidade
como irreal é que ela é descrita como não tendo dimensões espaciais e sem
duração temporal. Como ele diz: "A singularidade tem zero dimensionalidade e
existe por nenhum período de tempo; ela é de fato um ponto matemático" (CRAIG;
SMITH, 1995, p. 227, tradução nossa). Sustentar que tal ponto é real é reificar
uma mera construção matemática.

Smith contrapõe essa objeção, argumentando que não há razão para rejeitar
a realidade da singularidade; ao contrário, ele argumenta que, na cosmologia do
Big Bang padrão, a singularidade é o término real dos caminhos espaço-temporais
convergentes dirigidos ao passado. O debate, então, gira em torno da metafísica
do tempo, do espaço e da matemática.

Singularidade Big Bang: um ponto hipotético no espaço-tempo


onde as leis da física deixam de funcionar e a densidade do universo
e a curvatura do espaço-tempo se torna infinita. Na maioria dos
modelos Big Bang do universo, este é o ponto onde o tempo em si
mesmo começou.

Objeção 2: Deus não é limitado por leis ou pela falta delas para realizar
os propósitos divinos

De acordo com essa objeção, a premissa 3 é falsa, pelo menos por duas razões.
Em primeiro lugar, poderia ser o caso de que o plano de Deus fosse de intervir nos
estágios iniciais do universo, a fim de garantir que os organismos vivos, incluindo os
seres humanos, acabariam eventualmente por evoluir. Não é, necessariamente, um
sinal de planejamento mau ou irracional da parte de Deus fazer isso. Pode ser que,
ao contrário do universo do relojoeiro postulado pelos deístas, Deus está envolvido
criativamente no universo em diferentes fases do seu desenvolvimento. Enquanto
que isto pode não ser a maneira mais eficiente para criar um universo, argumentam
os objetores, o Deus das religiões teístas não está preocupado principalmente com
a eficiência. Tal Deus não está preocupado com a escassez de poder.

Em segundo lugar, pode ser que, ao contrário de Smith (e de Hawking), a


singularidade não é um "caldeirão de ilegalidade violento e aterrorizante" (CRAIG;
SMITH, 1995, p. 235). Talvez existam leis que governam a singularidade que
ainda necessitam ser descobertas – leis que irão demonstrar que o princípio da
ignorância é falso.

154
Capítulo 4 Argumentos Cosmológicos da Existência Divina

Outra resposta correlata é negar a premissa 5 que Deus teria assegurado


um estado animado do universo. Não parece haver qualquer necessidade
lógica ou metafísica para Deus criar este universo acima e além de um universo
inanimado, ou para não criar qualquer universo em absoluto. No entanto, os
teístas admitem que parece sim haver alguma força existencial e possivelmente
um suporte religioso para a crença de que o Deus das principais religiões teístas
iria criar organismos vivos (especialmente racionais e morais). Mas talvez esses
sentimentos são apenas anseios antropocêntricos.

Objeção 3: A hipótese teísta da criação é mais simples e, portanto, mais


propensa a ser verdade do que a hipótese ateísta

Uma criação divina


Essa objeção, levantada pelo filósofo Richard Swinburne (1934- ) é
é uma visão mais
que uma criação divina é uma visão mais simples do que a visão ateísta, simples do que a
e como tal, é mais provável que seja verdadeira (SWINBURNE, 1998). visão ateísta, e
Swinburne está operando no princípio científico de que quanto mais como tal, é mais
simples a explicação para algo, mais provável é para esta ser verdadeira. provável que seja
Este princípio, juntamente com a suposição (1) que o universo físico verdadeira
é uma coisa bastante complexa, e a suposição (2) que Deus é um ser
simples (simples, no sentido que um ser com poder, conhecimento, e bondade
infinitos é mais simples do que um ser, ou objeto, com valores finitos), conduz à
conclusão de que uma explicação teísta para o universo é mais provável de ser
verdadeira do que aquela de um ateu.

O ateu pode responder em pelo menos duas maneiras. Primeiro, ele poderia
conceder o princípio da simplicidade e da suposição (2), mas negar a suposição (1).
Isto é precisamente o que Smith faz. Ele concede o princípio, mas nega a suposição
(1) pelo seguinte motivo: uma vez que a singularidade tem zero volume espacial,
zero duração temporal, e não tem valores finitos particulares para sua densidade,
"Parece razoável supor [... que] este ponto instantâneo é o objeto físico mais simples
possível" (SMITH, 1992, s.p.). Concedendo que este objeto simples é pelo menos
tão simples quanto a hipótese teísta, é mais simples supor que o universo começou
a partir do mesmo tipo de material básico (ou seja, coisas materiais) do que postular
algum tipo adicional de material (ou seja, "coisa-divina" imaterial).

155
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

No artigo “Um argumento cosmológico a partir do Big Bang


para a inexistência de Deus”, Quentin Smith (1992) levanta objeções
argumentativas às propostas de Craig e Swinburne, entre outros
argumentos cosmológicos. Vale a pena conferir a tradução deste
artigo no seguinte site: Disponível em: <https://rebeldiametafisica.
wordpress.com/argumentos-ateologicos/>.

Uma segunda resposta que um ateu poderia oferecer é negar o princípio da


simplicidade (provavelmente não seria uma boa jogada, dado o modo como a
ciência é realmente praticada) ou negar a suposição (2).

Atividades de Estudos:

1) Vários argumentos cosmológicos foram formulados ao longo


dos anos para evidenciar a existência divina. Normalmente os
argumentos podem ser expostos em uma série de premissas
seguidas de uma conclusão. Veja o seguinte argumento: 1 - Tudo
que começa a existir tem uma causa para sua existência; 2 - O
universo começou a existir; 3 - Portanto, o universo tem algum
tipo de causa para sua existência; 4 - A causa do universo, ou
é uma causa impessoal ou um Deus pessoal; 5 - A causa do
universo não é impessoal; 6 - Por isso, a causa do universo é
um Deus pessoal. Assinale a alternativa correta sobre qual foi o
argumento descrito acima.

a) Argumento Cosmológico para o Ateísmo.


b) Argumento da Contingência.
c) Argumento Kalam.
d) Argumento da Razão Suficiente.

156
Capítulo 4 Argumentos Cosmológicos da Existência Divina

Algumas Considerações
O argumento cosmológico é menos um argumento particular que um
tipo de argumento. Ele usa um padrão geral de argumentação (logos) que faz
uma inferência de fatos particulares alegados sobre o universo (cosmos) para
a existência de um ser único, geralmente identificado ou referido como Deus.
Entre esses fatos iniciais, esses seres ou eventos particulares no universo são
causalmente dependentes ou contingentes, que o universo (como a totalidade das
coisas contingentes) é contingente em que poderia ter sido diferente do que é, que
o Grande Fato Contingente Conjuntivo possivelmente tem uma explicação, ou que
o universo veio a existir. A partir desses fatos, os filósofos inferem dedutivamente,
indutivamente ou abdutivamente por inferência à melhor explicação de que uma
causa inicial ou sustentadora, um ser necessário, um motor impassível ou um
ser pessoal (Deus) existe e que este causou e/ou sustenta o universo. Podemos
assim dizer que o argumento cosmológico faz parte da teologia natural clássica,
cujo objetivo é evidenciar a afirmação de que Deus existe.

Por um lado, o argumento surge da curiosidade humana quanto ao porquê


tem algo em vez de nada ou algo diferente. Invoca uma preocupação com
algumas explicações completas, últimas ou melhores daquilo que existe de
forma contingente. Por outro lado, levanta questões filosóficas intrinsecamente
importantes sobre a contingência e a necessidade, a causalidade e a explicação,
o relacionamento parte/todo (meriologia), o infinito, os conjuntos, a natureza do
tempo e a natureza e origem do universo.

De acordo com o que vimos neste capítulo, a melhor definição de um


argumento cosmológico é que é um argumento a posteriori para uma causa ou
razão para o cosmos. Três itens nesta definição merecem ênfase. Primeiro, o
cosmológico é um argumento de a posteri. Ao contrário do argumento ontológico,
o argumento cosmológico sempre contém uma premissa existencial, isto é, afirma
que existe algo. O fato de que também pode empregar princípios a priori, como a
contradição ou o princípio da causalidade, não anula o fato de que o argumento
como um todo é a posteriori, uma vez que a verdade é sobre o fato de que algo
existe. Segundo, o argumento cosmológico busca uma causa ou razão. Algumas
versões do argumento, como vimos, concluem há um ser que é a primeira causa
do universo, seja no sentido temporal como no sentido hierárquico. Outras
versões colocam um ser que é a razão suficiente para o mundo. A distinção entre
causa e razão é uma que raramente é apreciada, mas que deve ser mantida se
entendemos corretamente as diferentes formas do argumento. Em terceiro lugar,
como vimos, o argumento cosmológico procura explicar o cosmos. A maioria das
versões do argumento cosmológico e certamente todos as modernas tentam
explicar a existência do mundo. Mas os argumentos do primeiro motor imóvel não

157
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

procuram uma causa da existência do mundo, mas uma causa para o mundo ser
um cosmos, geralmente, postulando um sistema astronômico de esferas, iniciado
pelo motor. Aqui, um limite um tanto arbitrário e nebuloso é desenhado entre os
argumentos cosmológicos e teleológicos, este último também busca uma causa
de que o mundo seja um cosmos, mas com ênfase na ordem, no design e na
adaptação dos meios aos fins. O argumento cosmológico, portanto, não precisa
necessariamente concluir uma causa da existência do universo, pois suas formas
antigas eram dualistas e buscavam apenas explicar o movimento cósmico.

O argumento cosmológico tem uma longa e venerável história, possuindo


uma resiliência sob a crítica que é verdadeiramente notável. Seu apelo é amplo,
e tem sido proposto por pagãos, muçulmanos, judeus, cristãos, católicos e
protestantes, e até mesmo panteístas. Entre o catálogo de seus defensores
estão as maiores mentes do mundo ocidental: Platão, Aristóteles, al-Ghazali,
Maimônides, Anselmo, Boaventura, Aquino, Descartes, Spinoza, Berkeley, Locke
e Leibniz. A durabilidade do argumento e a estatura de seus defensores é um
testemunho eloquente do fato de que, para o homem, esse mundo aponta para
uma realidade maior além de si mesma.

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161
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

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______. Será que Deus existe? Trad. de Desidério Murcho, Ana


Cristina Domingues e Miguel Fonseca. Lisboa: Gradiva, 1998.

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WHITEHEAD, A. N.; RUSSELL, B. 1910-1913 Principia mathematica,


vol. s I (1910), II (1912) e III (1913). [S.l.]: Merchant Books, 2001, 3 v.

162
C APÍTULO 5
Argumentos Teleológicos da
Existência Divina

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

� Compreender os argumentos teístas teleológicos da existência divina,


clássicos e contemporâneos.

� Identificar as objeções antiteístas aos argumentos teleológicos


da existência divina.

� Comparar os argumentos teístas teleológicos do desígnio, do


ajuste fino e do design inteligente.

� Analisar as objeções antiteístas aos argumentos do desígnio, do ajuste


fino e do design inteligente.
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

164
Capítulo 5 Argumentos Teleológicos da Existência Divina

Contextualização
Como vimos no capítulo anterior, os argumentos cosmológicos começam com
o fato de que existem coisas existentes contingentemente no mundo e concluem
com a existência de um criador não contingente para explicar a existência dessas
coisas. Os argumentos teleológicos (ou argumentos do, ou para o design), por
outro lado, são bastante diferentes, pois eles começam com certas propriedades
do mundo e concluem com a existência de um grande arquiteto/designer do
mundo – um designer com certas propriedades mentais, tais como intenção,
conhecimento e propósito.

A origem do argumento teleológico retorna aos pensadores antigos do


Oriente e do Ocidente. Na Índia, por exemplo, o argumento foi proposto pela
escola Nyaya (100-1000 EC), que defendeu a existência de Deus com base
na ordem do mundo – ordem esta que foi comparada com artefatos e com o
corpo humano (VALLE, 1997; COLLINS, 2013). No Ocidente, o argumento pode
ser rastreado até Heráclito (c. 535-575 AEC), Platão, Aristóteles e os estoicos.
Embora o argumento continuasse a ser utilizado de vez em quando ao longo da
história, o seu renascimento ocorreu no início do século XIX, com William Paley
(1743-1805), talvez o seu defensor mais ardente.

Argumento teleológico: deriva dos termos gregos telos (fim


ou objetivo) e logos (razão ou explicação racional). O argumento
teleológico, primeiro desenvolvido por antigos filósofos gregos e
indianos, assume uma variedade de formas. O tema comum entre
todas elas é que a ordem meios/fins que existe no mundo natural é
melhor explicada por um design intencional/proposital.

165
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

O Argumento do Desígnio (Design)


de Paley
O livro de William Paley, Natural Theology (2006) – Teologia Natural,
originalmente publicado em 1802, é uma defesa e explicação sustentada do
argumento do desígnio. Começa com estas palavras:

Ao atravessar uma charneca, suponha que eu choquei meu


pé contra uma rocha, e pergunto-me como a pedra foi parar lá.
Eu poderia possivelmente responder à minha curiosidade, que,
por tudo o que eu possa saber, a pedra tinha estado lá desde
sempre. Absurda seria esta resposta, ainda que porventura
não fosse fácil demonstrar que assim o é. Mas suponha que
eu tivesse encontrado um relógio no chão, no lugar da rocha, e
devesse investigar como o relógio passou a estar nesse lugar.
Eu dificilmente pensaria na resposta que eu tinha antes dado,
que, por tudo o que eu possa saber, o relógio pode sempre ter
estado lá. No entanto, por que não deveria esta resposta servir
para o relógio, bem como para a pedra? Por que não é admis-
sível no segundo caso, como no primeiro? Por esta razão, e
por nenhuma outra, que, quando chegamos a inspecionar o re-
lógio, percebemos (o que não poderíamos descobrir na pedra)
que suas várias partes são enquadradas e unir com um propó-
sito, e. g. que elas estão assim formadas e ajustadas de modo
a produzir o movimento e que o movimento assim regulado
de modo a apontar a hora do dia; que, se as diferentes partes
tivessem sido formadas diferentes da que são, de um tamanho
diferente do que elas são, ou postas de qualquer outra forma,
ou em qualquer outra ordem, do que aquela em que elas são
postas, nenhum movimento em absoluto teria sido exercido na
máquina, ou nenhum movimento que teria respondido à utili-
zação que agora é servida por ele [...]. Sendo observado este
mecanismo (que exige de fato uma análise do instrumento e,
talvez, algum conhecimento prévio do assunto, para perceber
e compreendê-lo; mas, sendo uma vez, como já dissemos, ob-
servado e compreendido), a inferência, pensamos, é inevitável,
que o relógio deve ter tido um fabricante: que deve ter existido,
em algum momento, e em algum lugar ou outro, um artífice
ou artífices que o formaram com o propósito que posso hoje
observar; que compreendeu a sua construção, e projetou o seu
uso [...]. Cada indicação de artifício, toda a manifestação de
desígnio, que existia no relógio, existe nas obras da natureza;
com a diferença, no lado da natureza, de ser maior e mais nu-
merosa, e num grau que excede todo cálculo (PALEY, 2006, p.
7-8, 16, tradução nossa).

166
Capítulo 5 Argumentos Teleológicos da Existência Divina

William Paley (1743-1805) foi um teólogo inglês, filósofo e


apologista cristão. Ele se tornou um membro do Christ College de
Cambridge, em 1766. Escreveu uma série de livros, incluindo o The
Principles of Moral and Political Philosophy, que se tornou o livro-
texto de ética na Universidade de Cambridge. Sua obra mais famosa
é a Natural History: or evidences of the existence and attributes of
the Deity, collected from the appearances of nature (1802) – o livro
no qual ele apresenta sua analogia do relojoeiro. O livro Teologia
Natural pode ser lido em espanhol na íntegra, em sua edição de
1825, no Google Books, disponível em: <https://books.google.com.br/
books?id=hQVeAAAAcAAJ&hl=pt-BR&source=gbs_navlinks_s>.

Paley está usando um argumento da analogia: uma vez que podemos inferir
um designer (arquiteto) de um artefato, como um relógio, dado o seu propósito
evidente e sua estrutura ordenada, assim também devemos inferir um grande
designer das obras da natureza, uma vez que elas são ainda maiores em termos
de sua ordem e de sua complexidade – o que ele posteriormente descreve como
“meios ordenados para fins". O argumento de Paley pode ser esboçado na forma
apresentada no Quadro 1 "O argumento do desígnio de Paley".

O argumento de Paley, é claro, não permaneceu sem ser desafiado. Algumas


das objeções mais ardentes surgiram a partir dos trabalhos de David Hume e de
Charles Darwin.

Quadro 6 – O argumento do desígnio de Paley


Artefatos (como um relógio), com suas configurações de meios para fins, são os
1)
produtos de desígnios (humanos).
2) As obras da natureza, tais como a mão humana, se assemelham a artefatos.
3) Assim, as obras da natureza são, provavelmente, os produtos de desígnio.
Além disso, as obras da natureza são muito maiores em número e maiores em
4)
complexidade.
Por isso, as obras da natureza foram, provavelmente, os produtos de um grande
5)
designer – muito mais poderoso e inteligente do que um designer humano.

Fonte: O autor.

167
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

a) Objeções 1-3: As refutações de Hume

Talvez as objeções mais familiares ao argumento do desígnio


Uma importante
refutação de de Paley são aquelas refutações oferecidas pelo filósofo cético David
Hume é que a Hume em seu livro, publicado em 1779, Diálogos sobre a Religião
analogia entre as Natural (1992). É importante notar que, embora a obra de Hume
obras da natureza tivesse sido publicada 23 anos antes da obra de Paley, por alguma
e os artefatos razão este último não referenciou ou não levou em consideração a obra
humanos não é
de Hume. O que parece é que ele simplesmente não estava ciente da
particularmente
forte. mesma. De qualquer modo, uma importante refutação de Hume é que
a analogia entre as obras da natureza e os artefatos humanos não é
particularmente forte. Vemos esta refutação nas partes VI e VII dos Diálogos sobre
a Religião Natural (1992). Existem várias razões pelas quais a analogia é fraca,
incluindo: (1) ao contrário de relógios, existe apenas um universo, e, portanto, não
temos outros universos para compará-lo ou julgá-lo, e (2) em muitos aspectos o
mundo (ou seja, a acumulação das obras da natureza) não é como um artefato ou
máquina humana e poderia tão facilmente ser concebido como um grande animal
ou vegetal. Como tal, ela levanta a falácia de uma petição de princípio (petitio
principii) supondo que o mesmo foi designado.

Petição de princípio (do latim, petitio principii). Também


chamada de argumento circular ou, em inglês, begging the question,
é uma falácia informal. Neste tipo de argumento, a conclusão que visa
ser provada é utilizada como uma premissa no mesmo argumento.
O erro, portanto, não se encontra no aspecto formal do argumento,
assim, a forma da inferência não chega a ser inválida. Entretanto,
as premissas não sustentam devidamente a verdade da conclusão,
podendo gerar engano.

Mesmo que Outra refutação é que mesmo que possamos inferir um grande
possamos inferir designer do universo, esse designer acaba por ser algo menos do que
um grande designer o Deus das religiões teístas. Desde que efeitos semelhantes surgem de
do universo, esse causas semelhantes, a partir de um mundo finito não podemos inferir
designer acaba por um designer infinito. Além disso, existem imperfeições brutas e males
ser algo menos do
consideráveis ​​no mundo. Então, se o mundo é designado, é razoável
que o Deus das
religiões teístas. concluir que o designer (ou designers, já que não há razão para presumir
apenas um), deve ter esses defeitos correspondentes também.

168
Capítulo 5 Argumentos Teleológicos da Existência Divina

Uma terceira refutação é que só porque um universo tem a aparência de


desígnio, não se segue que é de fato projetado (HUME, 1992 – parte VIII). Hume
cita como uma alternativa a hipótese de Epicuro, que propôs que o universo
é composto por um número finito de partículas que se deslocam em movimento
aleatório. Eventualmente estas partículas vão acabar em um estado estável, e este
estado teria a aparência de desígnio, sem realmente o ser. Em outras palavras, o
universo aparentemente projetado pode vir a ser o resultado de mero acaso.

David Hume (1711-1776), filósofo e historiador escocês, é


amplamente reconhecido como o filósofo mais importante a escrever
em inglês e um dos pensadores mais importantes na história da
filosofia ocidental. Entre suas obras filosóficas mais significativas
estão o Tratado da Natureza Humana (1739-1740), Ensaios sobre
o Entendimento Humano (1748), e sua obra mais controversa,
Diálogos sobre a Religião Natural (publicado postumamente em
1779), no qual ele ataca o argumento do desígnio. Outros textos que
apresentam uma leitura de tais refutações são os seguintes: Marcos
R. da Silva (2006), Marília Cortês Ferraz (2012) e Evelise R. T. Laux
(2010). Todos disponíveis on-line. Verifique os endereços eletrônicos
nas referências respectivas no final deste capítulo.

O que pode ser dito em resposta a essas refutações? Em primeiro lugar,


contrariamente à alegação de Hume, pode-se argumentar que, mesmo o mundo
sendo único, não se segue que um argumento da analogia não se pode aplicar.
Se analogias não pudessem ser aplicadas a eventos exclusivos, conclusões
absurdas viriam a seguir. Por exemplo, nunca se poderia chegar à conclusão
sobre um artefato único (digamos, descoberto a partir de um período antigo)
que ele fora projetado. Mas tais conclusões são com frequência alcançadas por
arqueólogos. Em segundo lugar, enquanto a analogia do relógio/mundo pode não
ser perfeita, ainda assim capta o ponto central: em que a finalidade, a ordem e a
intenção são evidentes, é razoável postular um designer. E as obras da natureza
parecem refletir finalidade, ordem e intenção. Mais será dito sobre isso abaixo.

Com relação à segunda refutação, várias respostas podem ser oferecidas.


Em primeiro lugar, Hume está certo ao notar que o argumento não prova que o
Deus das religiões existe. No entanto, isso sem dúvida fornece provas de que
é provável que exista um grande designer do mundo (ou seja, um designer das
obras da natureza das quais o mundo é composto). Outros argumentos poderiam

169
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Deus pode não ser ser utilizados para apoiar este em uma tentativa de demonstrar a
capaz de criar um existência do Deus das religiões. Em segundo lugar, quanto ao mal e
mundo com seres às imperfeições no mundo, pode ser respondido que este argumento
livres que nunca
não aborda a questão da onibenevolência divina, mas, sim, a questão
cometeriam atos
maus, mesmo que da finalidade, da intenção e do design. Deus pode não ser capaz de criar
Deus seja um ser um mundo com seres livres que nunca cometeriam atos maus, mesmo
onibenevolente e que Deus seja um ser onibenevolente e onipotente (FERRAZ, 2012).
onipotente Veremos mais sobre esta questão no capítulo 7, “Problemas do Mal”.

A terceira refutação de Hume, de que o mundo poderia ter surgido a partir


de um mero acaso, nos leva a uma quarta objeção ao argumento de Paley, e nos
conduz a Charles Darwin.

b) Objeção 4: Uma visão darwiniana dos organismos biológicos

Talvez o pensador mais influente do século XIX foi Charles Darwin (1809-
1882). Em seu livro A Origem das Espécies (2009), publicado em 1859, Darwin
propôs o que se tornou uma das teorias mais significativas na história do
pensamento humano: que os organismos vivos se desenvolveram a partir de
formas simples às formas mais complexas gradualmente ao longo do tempo
e através dos processos puramente naturais e não intencionais de variação
aleatória, a seleção natural e a sobrevivência do apto. Esta é, naturalmente, a
teoria da evolução de Darwin.

Para uma apresentação clara da Teoria da Evolução, leia a obra


de Ernst Mayr, O que é a evolução (2009), a obra de Mark Ridley,
Evolução (2006) e a obra de Douglas Futuyama, Biologia Evolutiva
(2009). Essas três obras apresentam não somente a história da
teoria, mas as evidências em diversas áreas da ciência e seu status
atual. Um texto excelente que visa esclarecer algumas dúvidas sobre
a confusão que muitos fazem se a evolução é uma teoria ou um fato
é o texto Evolução é um fato e uma teoria, de Laurence Moran (1993)
– Disponível em: <http://www.darwin.bio.br/?p=75>.

170
Capítulo 5 Argumentos Teleológicos da Existência Divina

À primeira vista, a teoria da evolução parece soar a sentença de morte para o


argumento do desígnio de Paley, pois aqui temos o acaso e as leis da natureza, em
vez de intenção, propósito e desígnio, explicando as obras da natureza. Portanto,
não há necessidade de postular um grande designer do mundo. O que segue abaixo
é uma visão comum da aparente destruição de Darwin do argumento do desígnio:

Tem sido geralmente aceito (então e agora) que a doutrina da


seleção natural de Darwin efetivamente demoliu o clássico argu-
mento do desígnio de William Paley para a existência de Deus.
Ao mostrar como a adaptação cega e gradual poderia falsificar o
projeto aparentemente proposital que Paley [...] e outros tinham
observado nos artifícios da natureza, Darwin os privou de seu
argumento da inferência analógica que o propósito evidente a
ser observado nos artifícios pelo qual os meios e os fins estavam
relacionados na natureza era necessariamente uma função da
mente (GILLESPIE, 1979, p. 83-84, tradução nossa).

Enquanto que a teoria de Darwin providenciou claramente uma


alternativa significativa para uma história grandiosa da criação sobre as
Nem todo mundo
obras da natureza, pelo menos duas respostas podem ser oferecidas
está convencido
quanto à sua aparente força destrutiva para o argumento do desígnio. de que um relato
Em primeiro lugar, como veremos a seguir, nem todo mundo está puramente
convencido de que um relato puramente naturalista, não intencional, naturalista, não
fornece uma explicação completa de toda a flora e a fauna que existem intencional, fornece
no mundo natural. Em segundo lugar, mesmo tendo em conta uma uma explicação
completa de toda a
visão darwiniana total das coisas, o defensor do argumento do desígnio
flora e a fauna que
poderia afirmar que este processo evolutivo é o próprio método pelo qual existem no mundo
o designer está realizando suas intenções e propósitos para o mundo. natural.
Um argumento semelhante a este é levantado por F. R. Tennant (1956).

Na verdade, o próprio Darwin pode ter mantido este ponto de vista, pelo menos
em um ponto em sua carreira. No ano seguinte ao que ele publicou A Origem das
Espécies, ele disse o seguinte em duas cartas (de 22 de maio e 26 de novembro
de 1860, respectivamente) ao biólogo de Harvard, Asa Gray [estas cartas estão
disponíveis em português na obra organizada por Burkhardt, Evans e Pearn (2009)]:

Estou inclinado a olhar para tudo como resultado de leis de-


signadas, com os detalhes, seja bom ou ruim, deixados para
a elaboração de que podemos chamar de acaso [...](DARWIN
apud MARTIN, p. 162, tradução nossa).

Eu não posso pensar que o mundo como o vemos é o resul-


tado do acaso; entretanto eu não posso olhar para cada coisa
separada como o resultado de um desígnio (DARWIN apud
RUSE, p. 273, tradução nossa).

171
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

As refutações de No entanto, as refutações de Hume, combinadas com a explicação


Hume, combinadas evolucionista de Darwin dos organismos vivos, afundaram o argumento
com a explicação do desígnio no século XIX e no início até meados do século XX
evolucionista
(DAWKINS, 2005; GOULD, 1993; LIMA FILHO, 2015; BRAUSTEIN,
de Darwin dos
organismos vivos, 2014; BIZZO, 2007, 2010). No entanto, ele foi “ressuscitado” na
afundaram o segunda metade do século XX em uma variedade de formas e até
argumento do agora é provavelmente o argumento mais amplamente discutido e
desígnio no século influente para a existência de Deus. Duas das versões recentes mais
XIX e no início até importantes são o ajuste fino (fine-tuning) e argumentos do design
meados do século
inteligente. Vamos primeiro dar uma olhada no ajuste fino.
XX

Charles Darwin (1809-1882) foi um naturalista inglês que


é considerado um dos pensadores mais influentes na história da
civilização ocidental. Suas observações feitas durante sua viagem
de cinco anos no Beagle foram fundamentais no desenvolvimento
de sua teoria da seleção natural. Seu livro, A Origem das Espécies
(1859), estabeleceu a evolução pela descendência comum como a
explicação científica central para o desenvolvimento e a diversificação
dos organismos biológicos. Em A descendência do Homem (1871),
ele aplicou sua teoria diretamente aos seres humanos. Para uma
leitura excelente da biografia de Darwin, veja a obra de Desmond
e Moore (2007) e assista aos documentários Charles Darwin – a
origem das espécies (disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=0uH57hCY9t0>) e Charles Darwin: documentário (disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=3S-HQ206WYE>).

O Argumento do Ajuste Fino


Alguns estudiosos que acreditam que as estruturas meios-para-fins,
aparentemente propositais no reino da biologia, podem ser totalmente explicadas
por processos evolutivos naturais, também sustentam que certos aspectos não
biológicos ou inorgânicos do universo são mais bem explicados por meio de
um designer inteligente. Alguns argumentaram que as leis fundamentais e os
parâmetros da física e as condições iniciais do universo são extraordinariamente
equilibradas – ou "ajustadas finamente" – com as condições precisas e ideais
para a vida ocorrer e florescer. Robin Collins (2013), por exemplo, um dos

172
Capítulo 5 Argumentos Teleológicos da Existência Divina

defensores mais importantes do argumento teleológico do ajuste fino, afirma que


"as condições iniciais do universo são equilibradas no ‘fio de uma navalha’” para
a existência da vida. Dezenas de tais parâmetros e condições foram propostos,
incluindo os seguintes, descritos por Collins (1999):

1) Se a explosão inicial do big bang diferisse em força por tão pouco quanto
uma parte em 1060, o universo teria rapidamente entrado em colapso sobre si
mesmo ou expandido rápido demais para que as estrelas pudessem se formar.
Em ambos os casos, a vida seria impossível. (Como John Jefferson Davis
aponta, uma precisão de uma parte em 1060 pode ser comparada ao disparar
uma bala em um alvo de uma polegada no outro lado do universo observável,
vinte bilhões de anos luz de distância, e acertar o alvo.)

2) Os cálculos indicam que se a força nuclear forte, a força que une os prótons
e nêutrons juntos em um átomo, tivesse sido mais forte ou mais fraca por tão
pouco quanto cinco por cento, a vida seria impossível.

3) Cálculos feitos por Brandon Carter mostram que se a gravidade fosse mais forte
ou mais fraca por uma parte em 1040, então, as estrelas que sustentam a vida,
como o Sol, não poderiam existir. Isto tornaria provavelmente a vida impossível.

4) Se o nêutron não fosse cerca de 1.001 vezes a massa do próton, todos os


prótons se deteriorariam em nêutrons ou todos os nêutrons se deteriorariam
em prótons e, assim, a vida não seria possível.

5) Se a força eletromagnética for ligeiramente mais forte ou mais fraca, a vida


seria impossível, por uma variedade de diferentes razões.

Muitos dos parâmetros e condições são aparentemente não relacionados e,


se assim for, isto reduz mais ainda a probabilidade de sua ocorrência por acaso. As
opções explicativas são basicamente limitadas a três: o ajuste fino dos parâmetros
e condições ocorreram por acaso, por necessidade, ou por design inteligente.

Assim, podemos esboçar um argumento teleológico do ajuste fino da maneira


mostrada no Quadro 7 abaixo.

Quadro 7 – Um argumento teleológico do ajuste fino


1) O ajuste fino do universo aconteceu por acaso, ou por necessidade, ou por um
design inteligente.
2) O ajuste fino do universo não aconteceu por acaso ou por necessidade.
3) Portanto, o ajuste fino do universo aconteceu por um design inteligente.

Fonte: O autor.

173
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

As Respostas ao Argumento do
Ajuste Fino
Vários estudiosos Não é surpresa que vários estudiosos discordam que o design
discordam inteligente deve ser reivindicado, a fim de explicar a existência dos
que o design
parâmetros "ajustados finamente" e das condições iniciais do universo.
inteligente deve
ser reivindicado, A premissa do argumento de que é principalmente desafiada é a
a fim de explicar segunda: o ajuste fino do universo não aconteceu por acaso ou por
a existência necessidade. Vamos considerar três respostas proeminentes.
dos parâmetros
“ajustados a) A hipótese dos muitos universos
finamente” e das
condições iniciais do
universo. Uma maneira de explicar o nosso universo finamente ajustado
sem postular um designer inteligente é sugerir que há um número
muito grande de universos – talvez um número infinito deles. Dado este elevado
número, não é surpreendente que, pelo menos, um deles (o nosso, neste caso)
inclui condições e parâmetros iniciais que permitem a vida. Embora seja mais
provável que um universo decorrente do acaso inclua parâmetros avessos à vida,
se o número de universos é grande o suficiente, certamente alguns deles teriam
exatamente os parâmetros certos para a vida. Felizmente para nós, o nosso
universo é um destes. Enquanto escritores de ficção científica têm desfrutado de
muito sucesso na criação de tais cenários, os recentes avanços na teoria das
cordas e na cosmologia inflacionária também conduziram os estudiosos a levar a
sério a noção de universos múltiplos.

Os críticos, no entanto, observam que não há atualmente nenhuma evidência


experimental em apoio das hipóteses dos muitos universos. Embora haja algum
apoio na física para a teoria das cordas e para a cosmologia inflacionária, elas são
atualmente provisórias e altamente especulativas (GREENE, 2001). Além disso, como
filósofo Robin Collins alegou, mesmo que haja um número infinito de universos, parece
que eles devem ser produzidos por algum tipo de "gerador de muitos universos". Tal
dispositivo, no entanto, necessitaria ser em si mesmo finamente ajustado, e, portanto,
na necessidade de uma explicação que conduziria a um designer inteligente. Este
argumento também é levantado por Craig (2007). Collins (2013) argumenta que até
mesmo um mecanismo simples, como uma máquina de fazer pão, precisa ser bem
projetado para produzir pães. Quanto mais um fabricante de universos, que produz
universos finamente ajustados como o nosso próprio.

174
Capítulo 5 Argumentos Teleológicos da Existência Divina

Assista ao vídeo de Brian Greene, O Multiverso e a Teoria de


Cordas, publicado pela TED, disponível em: <https://www.youtube.
com/watch?v=pDPIg6HNRME>.

b) O princípio antrópico

Existem diferentes versões do princípio antrópico ("antrópico", que significa


relacionado aos seres humanos). Um excelente artigo introdutório a estas versões é
o de Comitti (2011). A versão mais difundida destas é o que os físicos John Barrow
e Frank Tipler chamam de o Princípio Antrópico Fraco (ou suave), WAP (da sigla em
inglês, Weak Anthropic Principle). Aqui está a definição que eles oferecem:

O Princípio Antrópico Fraco (WAP): os valores observados de


todas as quantidades físicas e cosmológicas não são igual-
mente prováveis, mas eles carregam valores limitados pela
exigência de que existem locais onde a vida baseada em car-
bono pode evoluir e pela exigência de que o Universo seja
velho o suficiente para que ele já tenha feito isso (BARROW;
TIPLER, 1988, p. 15, tradução nossa).

Eles também observam uma característica central que emerge deste princípio:

As características básicas do Universo, incluindo propriedades


tais como a sua forma, tamanho, idade e as leis da mudança,
devem ser observadas como sendo de um tipo que permite a
evolução de observadores, pois, se a vida inteligente não evo-
luísse em um outro universo possível, seria óbvio que ninguém
estaria perguntando sobre a razão do tamanho, da forma, da
idade observada do Universo, e assim por diante (BARROW;
TIPLER, 1988, p. 1-2).

Em outras palavras, se as leis físicas e as constantes do universo Se as leis físicas


não fossem exatamente como elas são – justamente afinadas e as constantes
para a vida –, não estaríamos aqui para perceber esse fato. Não do universo não
fossem exatamente
haveria observadores em um universo que não tivesse as condições
como elas são –
necessárias para a vida. Assim, uma vez que estamos aqui para justamente afinadas
observá-los, não devemos nos surpreender que as condições são para a vida –, não
exatamente certas para a vida, mesmo que vivamos em um universo estaríamos aqui para
puramente naturalista. Portanto, não há necessidade de se conjecturar perceber esse fato.
um designer inteligente do universo.

175
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Em resposta, pode-se argumentar que o nosso estar aqui para reconhecer o


ajuste fino nem nega o assombro das condições, tampouco elimina a necessidade
de uma explicação pelo design inteligente. Richard Swinburne utiliza a seguinte
analogia para demonstrar este ponto:

Suponha que um louco sequestra uma vítima e fecha-a em


um quarto com uma máquina de embaralhar cartas. A máquina
embaralha dez maços de cartas ao mesmo tempo e, em segui-
da, tira uma carta de cada maço e exibe simultaneamente as
dez cartas. O sequestrador diz à vítima que ele logo irá por a
máquina a trabalhar e ela apresentará a primeira tirada, mas
que a menos que o sorteio consista em um ás de copas de
cada maço, a máquina simultaneamente desencadeará uma
explosão que vai matar a vítima, em consequência da qual não
poderemos ver quais foram as cartas que a máquina sacou. A
máquina é então posta a trabalhar, e para assombro e alívio
da vítima, a máquina apresenta um ás de copas tirado de cada
maço. A vítima pensa que este fato extraordinário precisa de
uma explicação em termos de a máquina ter sido manipulada
de alguma forma. Mas o sequestrador, que agora aparece, lan-
ça dúvidas sobre esta sugestão. "Não é de surpreender", diz
ele, "que a máquina sacou apenas ases de copas. Você não
poderia possivelmente ver qualquer outra coisa. Por que você
não estaria aqui para ver qualquer coisa, se qualquer outra car-
ta tivesse sido sacada”. Mas é claro que a vítima está certa e
o sequestrador está errado. Há algo extraordinariamente na
necessidade de uma explicação no fato dos dez ases serem
sacados. O fato de que esta ordem em particular é uma condi-
ção necessária do sorteio a ser percebido, em absoluto torna o
que é percebido menos extraordinário ou sem a necessidade
de explicação (SWINBURNE, 1979, p. 138, tradução nossa).

O debate volta-se então sobre a questão de se essas "coincidências antrópicas"


são mais razoavelmente assumidas como sendo acidentais ou intencionais
(POLKINGHORNE, 2007; HORVATH, 2007; MACGRATH, 2005).

Apresentar c) Quem projetou o projetista?


um designer
inteligente como
uma explicação Uma terceira resposta ao argumento do ajuste fino é que apresentar
para o universo um designer inteligente como uma explicação para o universo
finamente ajustado finamente ajustado simplesmente move o debate um passo atrás, pois
simplesmente então podemos fazer a pergunta: "Quem projetou o projetista?" Em seu
move o debate um já familiar diálogo sobre a religião, David Hume levanta essa objeção:
passo atrás, pois
então podemos Como, então, poderíamos nos dar por satisfeitos com relação à
fazer a pergunta: causa daquele Ser que você toma como o Autor da Natureza,
“Quem projetou o ou, de acordo com seu sistema antropomórfico, daquele Mun-
projetista?” do Ideal no qual você encontra a origem do mundo material?

176
Capítulo 5 Argumentos Teleológicos da Existência Divina

Não teríamos iguais razões para buscar a origem desse mun-


do ideal em outro mundo ideal, ou princípio intelectivo? Mas,
se nos detemos em algum ponto e não avançamos mais, de
que serve ter avançado até aí? Como poderíamos nos dar por
satisfeitos sem avançar in infinitum? E que satisfação, afinal,
encontraríamos nessa progressão infinita? Recordemo-nos da
história do indiano e seu elefante [o filósofo indiano disse que
o mundo estava descansando na parte traseira de um elefan-
te, e o elefante estava descansando na parte traseira de uma
grande tartaruga, e a tartaruga na parte traseira de algo que
não sabia o quê]: ela nunca foi tão adequada como ao presente
assunto. Se o mundo material repousa sobre um mundo ide-
al semelhante, este mundo ideal deve repousar sobre algum
outro, e assim indefinidamente. Seria melhor, portanto, jamais
lançar os olhos para além do mundo material presente. Ao su-
por que ele contém em si mesmo o princípio de sua própria
ordem, estamos, na realidade, afirmando que ele é Deus; e
quanto antes chegarmos àquele Ser Divino, tanto melhor para
nós. Quando você dá um passo além do sistema mundano,
apenas excita uma disposição inquisitiva que jamais poderá
ser satisfeita (HUME, 1992, IV, p. 64).

Em outras palavras, mesmo se pudermos explicar o ajuste fino aparente do


mundo como sendo o produto de um projetista (designer) inteligente, este designer
deve ter uma mente que é tão "finamente ajustada" quanto o mundo natural.
Assim, o designer também está na necessidade de uma explicação, do mesmo
modo o designer do designer, e assim por diante. Se entrarmos na disputa da
necessidade de uma explicação para o design aparente, este processo continua
indefinidamente. Todavia, por que adicionar hipóteses desnecessariamente?
Por que não simplesmente parar com o mundo físico? Essa argumentação, por
exemplo, é levantada por Dawkins (2005).

Para entender as críticas de Dawkins em sua obra O Relojoeiro


Cego (2005), veja também o documentário homônimo disponível em:
<http://www.dailymotion.com/video/x4c16yq>.

177
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

O Argumento do Design Inteligente


Outra forma recente do argumento teleológico é muitas vezes referida como
o argumento do design inteligente. Este argumento está enraizado no trabalho
que está sendo feito por um grupo de filósofos, cientistas e outros que fazem
parte do Movimento do Design Inteligente. O que os membros deste grupo têm em
comum é a crença de que certos métodos de probabilidade podem ser utilizados
para determinar se um dado sistema biológico foi projetado. William Dembski, um
líder no movimento, argumenta que "demonstrando o design transcendente do
universo é uma inferência científica, e não um sonho filosófico fantástico" (2005,
p. 223, tradução nossa). Ele desenvolveu o que chama de um Filtro Explicativo
(Explanatory Filter) para a detecção de design. Em forma simplificada, o filtro faz
três perguntas na seguinte ordem:

1) Será que uma lei explica isso?


2) Será que o acaso explica isso?
3) Será que o design explica isso?

Movimento do Design Inteligente: o movimento do design


inteligente começou na década de 1980, e inclui filósofos, cientistas
e outros estudiosos que consideram a visão darwiniana de que
causas naturais não dirigidas poderiam produzir toda a diversidade
e complexidade da vida como inadequada, e que propõem um
programa de investigação em que causas inteligentes se tornam
a chave para o entendimento dessa diversidade e complexidade.
Personagens principais do movimento incluem Phillip Johnson,
Michael Behe, William Dembski, Paul Nelson e Stephen Meyer.

Primeiro, deve-se tentar determinar se a lei (ou seja, a regularidade/


necessidade) explica melhor um evento, objeto ou estrutura. Se um evento
(vamos usar "evento" aqui para significar um evento, objeto ou estrutura) tem uma
alta probabilidade de ocorrer, então é explicável por lei. Por exemplo, a subida da
maré do Atlântico duas vezes por dia é um evento regular – é mais bem explicável
pelas leis da natureza. No entanto, se a lei não explica um evento, então, nos
voltamos ao acaso. Por exemplo, se eu rodar uma roleta, eu uso o acaso para
explicar por que a roda parou onde parou (é claro, onde a roleta para não é na
verdade uma questão de sorte/acaso, pois há leis da natureza bem específicas

178
Capítulo 5 Argumentos Teleológicos da Existência Divina

que determinam onde ela irá parar. Nós nos referimos a isso como sorte/acaso
porque nós não sabemos onde, precisamente, as leis da natureza farão a roleta
parar. Poderia argumentar-se que somente em um nível quântico há o verdadeiro
acaso, ou talvez que não há acasos em absoluto). Em seguida, a fim de eliminar o
acaso e concluir com o design como a melhor explicação de um evento, Dembski
aplica o que ele chama de complexidade especificada (specified complexity), para
a qual ele oferece a seguinte descrição:

Uma única letra do alfabeto é especificada sem ser complexa


(ou seja, está de acordo com um padrão dado independente-
mente, mas é simples). Uma longa sequência de letras alea-
tórias é complexa sem ser especificada (ou seja, requer um
conjunto de instruções complicado para caracterizar, mas não
está em conformidade com nenhum padrão dado independen-
temente). Um soneto de Shakespeare é tanto complexo quanto
especificado (DEMBSKI, 1999, s.p., tradução nossa).

O algoritmo do filtro explicativo está diagramado na Figura 5.

Figura 5 – O algoritmo do filtro explicativo

Fonte: O autor.

179
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Um exemplo que Assim, se houver eventos, objetos ou estruturas no mundo natural


os defensores do que sejam ao mesmo tempo complexos e especificados, Dembski
design inteligente conclui que são melhor explicados pelo design.
usam muitas vezes
como um caso
de complexidade Um exemplo que os defensores do design inteligente usam muitas
especificada na vezes como um caso de complexidade especificada na natureza são
natureza são os sistemas “irredutivelmente complexos". A pessoa que cunhou o
os sistemas termo (complexidade irredutível) é o bioquímico Michael Behe. Ele o
“irredutivelmente define desta forma:
complexos”.
Por irredutivelmente complexo quero dizer um sistema único
composto por várias partes que interagem bem combinadas
que contribuem para a função básica, onde a remoção de qual-
quer uma das partes faz com que o sistema efetivamente deixe
de funcionar. Um sistema irredutivelmente complexo não pode
ser produzido diretamente (isto é, melhorar continuamente
a função inicial, continuando a funcionar pelo mesmo meca-
nismo) por modificações suaves e sucessivas de um sistema
precursor, porque qualquer precursor de um sistema irreduti-
velmente complexo, no qual está faltando uma parte, é, por
definição, não funcional. Um sistema biológico complexo, se
há uma coisa dessas, seria um poderoso desafio à evolução
darwiniana (BEHE, 1997, p. 39).

Behe usa a analogia simples de uma ratoeira para demonstrar seu ponto
(veja a Figura 6.

Figura 6 – Ratoeira Padrão

Fonte: O autor.

180
Capítulo 5 Argumentos Teleológicos da Existência Divina

Uma ratoeira típica consiste de um martelo, uma mola, uma barra de proteção
e uma plataforma ou base à qual todas as outras partes estão conectadas. Cada
uma dessas partes é um componente necessário para a captura do rato, e em
conjunto as partes constituem uma condição suficiente para a captura de um rato.
Se qualquer uma das partes que compõem a armadilha estivesse ausente, ela não
iria funcionar como um dispositivo de captura do rato. É, portanto, um mecanismo
complexo irredutível na medida em que não pode ser reduzido em
termos de componentes e ainda assim funcionar como uma ratoeira. O mundo bioquímico
tem uma série
O argumento de Behe, então, é que o mundo bioquímico tem de sistemas que
uma série de sistemas que consistem de partes interdependentes consistem de partes
interdependentes
calibradas finamente que não funcionariam sem que cada um dos
calibradas
seus componentes operasse em conjunto. Estes sistemas, sendo finamente que não
irredutivelmente complexos, não podem, portanto, ser explicados pelo funcionariam sem
gradualismo e pela seleção natural da teoria da evolução. Postular um que cada um dos
designer para eles é uma hipótese muito melhor. seus componentes
operasse em
conjunto.
Um exemplo primário que Behe usa ​​ de um sistema bioquímico
irredutivelmente complexo é o flagelo bacteriano ("flagelo" é derivado
do latim flagellum e significa um chicote ou chibata). No início de 1970, certas
bactérias foram vistas a deslocar-se ao girar seus flagelos, ou cauda tipo-chicote,
que giram em altas taxas de velocidade – alguns deles centenas de rotações
por segundo. A estrutura destas bactérias inclui o que é comparado a um motor
de popa. Como indica a Figura 7, existe um número de componentes diferentes
(cerca de 40 no total) que trabalham em conjunto no movimento das bactérias,
incluindo um gancho, um filamento, um estator e um rotor (TORTORA; FUNKE;
CASE, 2012).

181
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Figura 7 – O motor do flagelo bacteriano, um exemplo de um mecanismo "irredu-


tivelmente complexo"

Fonte: Disponível em: <http://creationwiki.org/pool/images/f/fb/627px-Flagellum_base_dia-


gram_pt.svg.png>. Acesso em: 1 jul. 2015.

Os defensores
do argumento do O que interessa aqui é que as 40 partes das quais este motor
design inteligente flagelar consiste aparentemente devem ser organizadas exatamente
afirmam que é
assim. Se qualquer uma delas estiver mal colocada ou ausente, o
mais razoável
acreditar que um "motor" não vai funcionar. É, portanto, um mecanismo complexo
designer inteligente irredutível. Os defensores do argumento do design inteligente afirmam
esteve envolvido que é mais razoável acreditar que um designer inteligente esteve
na criação de um envolvido na criação de um sistema deste tipo do que o sistema ter
sistema deste tipo se desenvolvido gradualmente através de processos darwinianos
do que o sistema
naturalistas. A menos que o mecanismo seja totalmente funcional, a
ter se desenvolvido
gradualmente seleção natural não teria nenhum motivo para preservá-lo.
através de
processos Behe (2007) levantou novas argumentações a favor da complexidade
darwinianos irredutível no decorrer dos anos. Todavia, todas elas sofreram respostas
naturalistas. contra-argumentativas, por exemplo, as argumentações de Kenneth R.
Miller (2002, 2004) e Jonh H. McDonald (2011), o que gerou respostas
de Behe (2000) e um vívido debate que ainda continua.

182
Capítulo 5 Argumentos Teleológicos da Existência Divina

Um argumento do design inteligente pode, assim, ser apresentado sob a forma


indicada no Quadro 8, "Um exemplo do argumento Design Inteligente”, abaixo.

Quadro 8 – Um exemplo do Argumento do Design Inteligente

Se houver eventos, objetos ou estruturas no mundo natural, que são complexas e


1
especificadas, então é razoável concluir que elas são o resultado de design.
Existem eventos, objetos ou estruturas no mundo natural, como sistemas molecu-
2 lares irredutivelmente complexos, que são ao mesmo tempo complexos e especifi-
cados.
3 Portanto, é razoável concluir que eles são o resultado de um design.

Fonte: O autor.

Objeções ao Argumento do Design


Inteligente
Existem inúmeras objeções ao argumento do design inteligente. Abaixo
estão duas significativas – a primeira focada na premissa 1 e a segunda focada
na premissa 2.

Objeção 1: O argumento do design inteligente assenta-se sobre


pressupostos filosóficos contenciosos, em vez de inferência científica

Uma objeção a filtro explicativo de Dembski é que ele pressupõe que


se não houver um processo científico conhecido pelo qual se possa explicar o
fenômeno em questão, então isso é motivo suficiente para concluir
que não existe tal processo. No entanto, é uma afirmação contenciosa Identificar
de que, simplesmente porque um evento é inexplicável perante as decisivamente
uma instância de
leis e os processos naturais atualmente conhecidos, então, seria
[complexidade
melhor explicável pelo design inteligente. Isto levanta uma série de especificada] requer
preocupações epistemológicas, não sendo a menor das quais que ele compromisso
parece violar a própria natureza do método científico da descoberta; de pressupostos
ou seja, a busca de explicações do fenômeno natural contingente em filosóficos que não
termos de princípios, leis e processos físicos. Como um estudioso são eles próprios
concomitantes com a
diz, "acontece que identificar decisivamente uma instância de
prática da ciência
[complexidade especificada] requer compromisso de pressupostos
filosóficos que não são eles próprios concomitantes com a prática da ciência"
(O’CONNOR, 2003, p. 69, tradução nossa).

Em resposta, pode-se argumentar que o filtro do design está proporcionando


o melhor processo de descoberta perante a evidência científica disponível e o

183
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

método mais razoável para explicar os eventos. Se uma nova evidência conduzir
a uma explicação naturalística não intencional e não proposital do evento, então
a explicação do design pode ser revogada. Claro, pode-se sustentar que todas
as explicações biológicas devem incluir explicações naturalistas não intencionais,
e não propositais. Mas fazer disso uma suposição metafísica a priori antes de
examinar a evidência pode muito bem ser viés injustificado contra a própria
possibilidade do design inteligente.

Objeção 2: Desafios para os alegados exemplos de complexidade


irredutível

Um segundo tipo de objeção enfoca os exemplos oferecidos como sendo


irredutivelmente complexos. Um desafiante central dos exemplos de complexidade
irredutível de Behe ​​é o professor de biologia Kenneth Miller. Miller oferece a
seguinte crítica ao flagelo bacteriano como prova da complexidade irredutível:

A evolução produz máquinas bioquímicas complexas ao co-


piar, modificar e combinar proteínas previamente usadas para
outras funções. À procura de exemplos? O sistema no ensaio
de Behe ​​já dá conta do recado. Ele escreve que, na ausên-
cia de "praticamente qualquer uma" de suas partes, o flagelo
bacteriano "não funciona". Mas adivinhem? Um pequeno grupo
de proteínas do flagelo funciona, sim, sem o resto da máqui-
na – é usado por muitas bactérias como um dispositivo para
injetar venenos em outras células. Embora a função realizada
por esta pequena parte quando funciona sozinha é diferente,
do mesmo modo pode ser influenciada pela seleção natural
(MILLER, 2002, p. 75, tradução nossa).
O flagelo é um caso
de complexidade
redutível, não de A objeção é simples. O flagelo é um caso de complexidade
complexidade redutível, não de complexidade irredutível, uma vez que, pelo menos,
irredutível, uma vez alguns dos seus componentes têm uma função sem o flagelo tomado
que, pelo menos, como um todo. A seleção natural poderia, então, ter favorecido esses
alguns dos seus componentes individuais no desenvolvimento evolutivo do flagelo;
componentes têm
nenhuma hipótese do design inteligente é necessária e, portanto, a
uma função sem o
flagelo tomado como analogia da ratoeira é falha. Ele continua:
um todo.

Ironicamente, o próprio exemplo de Behe, a ratoeira, mostra o


que há de errado com a ideia. Tirando duas partes (o gancho
e a barra de metal), você pode não ter uma ratoeira, mas você
terá uma máquina de três partes que serve como um clipe de
gravata ou clipe de papel totalmente funcional. Se tirar a mola,
você tem um chaveiro de duas partes. O gancho de algumas
ratoeiras pode ser usado como um anzol e a base de madeira
como um peso de papel [...]. O ponto, que a ciência compre-

184
Capítulo 5 Argumentos Teleológicos da Existência Divina

endeu há muito tempo, é que pedaços e peças de máquinas


supostamente irredutivelmente complexas podem ter diferen-
tes – mas ainda úteis – funções (MILLER, 2002, p. 75, tradução
nossa).

Uma refutação à objeção de Miller é que, enquanto há funções específicas


de proteínas individuais antes que elas formem juntas e se tornem um flagelo
bacteriano – assim como pode haver funções individuais de algumas das partes
de uma ratoeira –, há ainda a dificuldade de explicar como todas as partes
individuais formaram-se em conjunto na máquina complexa tipo flagelo. Clipes,
anzóis e chaveiros não se coadunam em ratoeiras sem um plano projetado e,
ainda, alega-se que as inter-relações das proteínas elementares que compõem o
motor flagelar têm superfícies que são muito menos adequadamente combinadas,
se integrada de forma aleatória, do que as partes da ratoeira. Além disso,
nesse momento somente dez por cento das 40 partes de motor do flagelo são
encontradas em outras estruturas da célula, e assim as outras partes do sistema
carecem de uma explicação darwiniana (BEHE, 2007).

Evidente que se pode responder que a observação de que não existe


nenhuma explicação naturalista atual para as inter-relações das proteínas, ou
para as outras partes do sistema, ou para a sua união, não implica que não há
nenhuma tal explicação. E isso nos leva de volta à objeção 1, que o argumento
do design inteligente se baseia em certos pressupostos filosóficos em vez de
inferência científica.

Para uma crítica mais avançada do argumento do Design veja


John Leslie Mackie (1994), El Milagre del Teísmo, nas páginas
83-102. Um excelente vídeo que retrata uma batalha jurídica que
ocorreu em Dover, nos Estados Unidos, sobre o ensino da evolução
e do design inteligente é o documentário “Dia do julgamento: Design
Inteligente no banco dos réus”, disponível em: <https://www.youtube.
com/watch?v=ngyqGn1Ldd0>. Veja também o debate “Criacionismo
x Evolucionismo” da SESC TV, mediado por Mario Cortella, disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=53JrgU1-W78>.

185
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Atividades de Estudos:

1) Vários argumentos teleológicos foram formulados ao longo


dos anos para evidenciar a existência divina. Normalmente os
argumentos podem ser expostos em uma série de premissas
seguidas de uma conclusão. Veja o seguinte argumento: 1 -
Artefatos (como um relógio), com suas configurações de meios
para fins, são os produtos de desígnios (humanos); 2 - As
obras da natureza, tais como a mão humana, se assemelham a
artefatos; 3 - Assim, as obras da natureza são, provavelmente, os
produtos de desígnio; 4 - Além disso, as obras da natureza são
muito maiores em número e maiores em complexidade; 5 - Por
isso, as obras da natureza foram, provavelmente, os produtos de
um grande designer – muito mais poderoso e inteligente do que
um designer humano. Assinale abaixo a alternativa correta sobre
qual foi o argumento descrito acima.

a) Argumento Teleológico do Ajuste Fino.


b) Argumento do Desígnio de Paley.
c) Argumento da Razão Suficiente.
d) Argumento do Design Inteligente.

Algumas Considerações
Como vimos neste capítulo, alguns fenômenos dentro da natureza exibem
tal singularidade e complexidade de estrutura, função ou interconexão que muitas
pessoas acharam natural - se não inescapável - ver uma mente deliberativa e
diretiva por trás desses fenômenos. A mente em questão, antes da própria natureza,
geralmente é considerada como sobrenatural. Pensadores filosoficamente
inclinados têm historicamente e no presente trabalhado para moldar a intuição
relevante em uma inferência mais formal, logicamente rigorosa. Os argumentos
teístas resultantes, em suas diversas formas lógicas, compartilham um foco no
plano, propósito, intenção e design e por isso são classificados como argumentos
teleológicos ou, frequentemente, como argumentos de ou para o design.

186
Capítulo 5 Argumentos Teleológicos da Existência Divina

Apesar de ter desfrutado alguns defensores proeminentes ao longo dos


séculos, tais argumentos, como demonstrado aqui, também atraíram sérias
críticas de vários grandes pensadores históricos e contemporâneos. Tanto os
críticos como os defensores são encontrados não só entre os filósofos, mas
também provêm de disciplinas científicas e de outras disciplinas.

A questão é por que os argumentos do design permanecem tão duradouros


se a evidência empírica é inferencialmente ambígua, os argumentos logicamente
controversos e as conclusões disputadas? Uma possibilidade é que eles são
realmente melhores argumentos do que a maioria dos críticos filosóficos admitem.
Outra possibilidade é que as intuições de design não dependem de inferências.
A situação pode ser paralela à da existência de um mundo externo, a existência
de outras mentes e uma série de outros assuntos familiares. Uma série de figuras
proeminentes historicamente de fato considerou que poderíamos determinar de
forma mais ou menos perceptiva que várias coisas na natureza eram candidatas
a atribuições de design. Poderíamos até mesmo dizer que as intuições do design
estão incorporadas em nosso pensamento quase que naturalmente. De fato, as
estruturas de design parecem, para muitos, fazer parte do próprio tecido da própria
ciência, o que poderia conduzir muitos a argumentar que a ciência começou como
uma consequência da teologia, e todos os cientistas, ateus ou teístas aceitam
uma visão de mundo essencialmente teológica. Tudo isso sugere a alguns
que estamos lidando com uma categoria diferente de formação e aquisição de
crenças. E também sugere que o pensamento do design pode ser natural para
nossos tipos de intelecto.

De qualquer modo, a percepção e a apreciação da complexidade incrível e


a beleza das coisas na natureza - seja biológica ou cósmica - tem certamente
inclinado muitos para pensamentos de propósito e design na natureza e constituiu
importantes momentos de afirmação para aqueles que já aceitam posições de
design. O status dos argumentos correspondentes, é claro, não é apenas uma
questão de disputa atual, mas o status da disputa parece estar em ascensão. E,
independentemente do que se pensa dos argumentos neste ponto, desde que a
natureza tenha o poder de nos mover, as convicções e os argumentos do design
provavelmente não desaparecerão silenciosamente.

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191
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

192
C APÍTULO 6
Argumentos Ontológicos da
Existência Divina

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

� Compreender os argumentos teístas ontológicos da existência divina,


clássicos e contemporâneos;

� Identificar as objeções antiteístas aos argumentos ontológicos da


existência divina;

� Comparar os argumentos teístas ontológicos de Anselmo e


de Alvin Plantinga;

� Analisar as objeções antiteístas aos argumentos de Anselmo e de


Alvin Plantinga.
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

194
Capítulo 6 Argumentos Ontológicos da Existência Divina

Contextualização
Nos dois últimos capítulos examinamos os argumentos cosmológicos e
teleológicos. Ambos focados em alguma característica do universo, concluíram
que Deus deve ser postulado como a explicação para estas características
(argumento cosmológico) ou que estas apontam para um designer do universo
(argumento teleológico). Estes argumentos são a posteriori, pois são baseados
em premissas que podem ser conhecidas somente pela experiência do mundo.
Outro tipo de argumento tenta demonstrar que a não existência de Deus é
impossível – este é o argumento ontológico. É bem singular entre os argumentos
tradicionais para a existência de Deus, na medida em que é um argumento a
priori, pois está baseado em premissas que supostamente podem ser conhecidas
independentemente da experiência do mundo.

O argumento ontológico tem atormentado os filósofos – ateus e não teístas


igualmente – por séculos. Existem diferentes versões do argumento, e estaremos
incluindo aqui o que são, talvez, duas de suas mais fortes formulações: o
argumento clássico de Anselmo e o argumento contemporâneo de Plantinga.

Argumento ontológico: deriva dos termos gregos ontos (ser) e logos


(narrativa racional). O argumento ontológico, desenvolvido pela primeira
vez por Santo Anselmo de Cantuária, assume uma variedade de formas.
O tema comum entre eles é que eles começam a priori – procedendo a
partir do mero conceito de Deus – e concluem que Deus deve existir.

O Argumento Ontológico de Anselmo


Um dos pensadores mais criativos da Idade Média foi Santo Anselmo de
Cantuária (1033-1109). Ele era tanto um monge devoto quanto um apologista da
ortodoxia cristã, e todos os seus escritos são centrados sobre a teologia cristã
– para explicá-la ou defendê-la. Dois de seus livros, o Monologion (1988) e o
Proslogion (2008), incluem argumentos para a existência de Deus. No primeiro
trabalho, os argumentos de Anselmo são complexos e provavelmente não muito
eficazes em convencer os outros de suas conclusões. No Proslogion ele procura:

um único argumento que não necessitasse de nenhum outro


para se demonstrar, e que bastasse por si mesmo para garantir
que Deus existe verdadeiramente, que ele é o Sumo Bem, sem
nada de outra coisa precisar, do qual todas as coisas têm ne-
cessidade para existir, e bem existir [...] (ANSELMO, 2008, p. 7).

195
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Anselmo desejava um argumento que não fosse falhar em convencer os


outros de sua verdade, e ele acreditava que ele tinha feito isso com o argumento
ontológico. Este argumento foi desenvolvido pela primeira vez por Anselmo no
Livro II de sua Proslogion, e alguns têm argumentado que ele apresenta diferentes
versões dele nos Livros II e III. Para os nossos propósitos, vamos concentrar-nos
no argumento, tal como apresentado no Livro II, um comentário reflexivo sobre
uma passagem do livro de Salmos do Antigo Testamento em que se lê "Disse o
néscio no seu coração: Não há Deus" (SALMOS 14.1, ACF – BÍBLIA, 1994).

Assim, pois, Senhor, tu que dás a inteligência da fé, dá-me,


tanto quanto aches bem, que eu compreenda que tu existes
como nós <o> acreditamos e que tu és o que nós acreditamos.
Nós acreditamos, com efeito, que tu és “alguma coisa maior do
que a qual nada pode ser pensado”. Será que não existe uma
tal natureza, uma vez que o “insensato disse no seu coração:
‘Deus não existe’”? Mas certamente este mesmo insensato,
quando ouve isto que eu digo – ‘alguma coisa maior do que a
qual nada pode ser pensado’ –, compreende o que ouve, e o
que ele compreende existe na sua inteligência, mesmo se ele
não compreende que isso existe <na realidade>. Porque uma
coisa é que certa realidade esteja no intelecto, outra é compre-
ender que tal realidade existe. De facto, quando um pintor pen-
sa antes o que vai fazer, tem na inteligência o que ainda não
fez, mas de modo nenhum compreende que exista o que ainda
não fez. Pelo contrário, quando já o pintou, tem na inteligên-
cia o que já fez e compreende que isso existe <na realidade>.
Mesmo o insensato está, pois, convicto de que “alguma coisa
maior do que a qual nada pode ser pensado” existe pelo menos
no intelecto: porque ele compreende-o quando o ouve, e tudo o
que é compreendido existe no intelecto.

Mas, sem dúvida, “aquilo maior do que o qual nada pode ser
pensado” não pode existir unicamente no intelecto. Se, na ver-
dade, existe pelo menos no intelecto, pode pensar-se que exis-
ta também na realidade, o que é ser maior. Se, pois, “aquilo
maior do que o qual nada pode ser pensado” existe apenas
no intelecto, então “aquilo mesmo maior do que o qual nada
pode ser pensado” é “algo maior do que o qual algo pode ser
pensado”. Mas isto, <como é evidente>, é claramente impossí-
vel. Existe, pois, sem a menor dúvida, “alguma coisa maior do
que a qual nada pode ser pensado” tanto no intelecto como na
realidade (ANSELMO, 2008, p. 12).

Santo Anselmo de Cantuária (1033-1109) foi um dos principais


pensadores cristãos do século XI. Ele era o arcebispo de Cantuária
e se opôs às Cruzadas, enquanto mantinha seu posto. Ele é mais
conhecido hoje por seu argumento ontológico, mas seu trabalho
na teologia natural e na teologia filosófica vai bem além disso. Ele

196
Capítulo 6 Argumentos Ontológicos da Existência Divina

também desenvolveu outros argumentos para a existência de


Deus e escreveu sobre assuntos tais como a natureza de Deus, a
encarnação, o livre-arbítrio, o pecado e a redenção. Seus trabalhos
incluem o Monologion, o Proslogion e o Cur Deus homo (Por que
Deus se fez homem?).

A escrita aqui é um pouco evasiva e, assim, presta-se a diferentes


interpretações (OPPY, 2007; UCKELMAN, 2013). Aqui está uma forma de explicar
o argumento:

1) Todo mundo (até mesmo o ateu) é capaz de entender pelo termo "Deus" um
ser do qual nenhum maior pudesse ser concebido.
2) Assim, um ser, do qual nenhum maior pode ser concebido, existe na mente
(ou seja, no entendimento) quando se ouve falar de tal ser.
3) Podemos conceber um ser do qual nenhum maior pode ser concebido que
existe tanto na mente e na realidade.
4) Existir na realidade é maior do que a existir somente na mente.
5) Se, portanto, um ser, do qual nenhum maior pode ser concebido, existe
somente na mente e não na realidade, não é um ser do qual nenhum maior
pode ser concebido.
6) Portanto, um ser do qual nenhum maior pode ser concebido existe na realidade.

Vamos descompactar o argumento. Primeiro, a premissa 1 é


bastante simples. Não está fazendo quaisquer afirmações sobre se Qualquer pessoa
Deus existe ou não. Está simplesmente alegando que qualquer pessoa racional deve ser
racional deve ser capaz de entender o que se quer dizer quando se capaz de entender
define Deus como um ser do qual nenhum maior pode ser concebido o que se quer dizer
quando se define
(ou seja, o maior ser que se possa imaginar). Negar que Deus existe
Deus como um ser
é negar que existe um ser do qual nenhum maior pode ser concebido. do qual nenhum
Parece que até mesmo um ateu poderia, ao menos, conceder a maior pode ser
Anselmo esta definição. concebido

A segunda premissa está levantando o ponto de que em certo sentido um ser


do qual nenhum maior pode ser concebido existe na mente daquele que entende
o conceito. A fim de afirmar ou negar a existência de um ser do qual nenhum maior
pode ser concebido, é necessário entender o que é que está sendo afirmado ou
negado. Então, um ser superior do qual nenhum maior pode ser concebido existe,
pelo menos, como uma entidade mental ou um conceito, se este é afirmado ou
negado. É importante notar aqui que existem várias maneiras que as coisas
podem existir (ou, vários modos de existência):

197
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

a) na mente, mas não na realidade (exemplos incluem unicórnios, centauros,


Papai Noel);
b) na realidade, mas não na mente (tal como uma estrela não descoberta);
c) tanto na mente como na realidade (como o autor deste LIVRO, Kevin D. S.
Leyser);
d) nem na mente, tampouco na realidade (como a internet em 500 AEC).

A reivindicação na premissa 2 é simplesmente que um ser do qual nenhum maior


pode ser concebido existe na mente (e, portanto, existe tanto como a ou como c).

Podemos entender a Na premissa 3 a alegação é que podemos entender a noção de


noção de um ser do um ser do qual nenhum maior pode ser concebido como existindo
qual nenhum maior tanto mentalmente e quanto na realidade (como em c). O autor deste
pode ser concebido livro existe atualmente tanto na realidade quanto em um conceito ou
como existindo
uma ideia na mente. Assim, também, podemos pelo menos conceber
tanto mentalmente e
quanto na realidade Deus como existente na mente e na realidade (mas se Deus realmente
existe, na realidade, é uma questão diferente neste ponto). A premissa
4 levanta a questão de que é maior/melhor existir na realidade do que apenas na
mente. Esta é claramente uma premissa questionável, e para muitos a solidez
do argumento depende disso. Vamos explorar este ponto mais adiante, quando
examinarmos a objeção de Kant.

A quinta premissa simplesmente segue a partir da anterior. Se é verdade
que é maior/melhor existir na realidade do que na mente, então um ser que
existe apenas na mente não seria o maior ser concebível; afirmar o contrário é
contradizer a si mesmo, pois você estaria afirmando que o maior ser possível (um
que existe na realidade) não é o maior ser possível. Portanto, somos levados a
concluir logicamente que Deus (um ser superior do qual nenhum maior pode ser
concebido) existe na realidade.

O próprio Bertrand Russell, quando jovem, foi momentaneamente


convencido pelo argumento ontológico. Considere esta declaração:
“Lembro o momento preciso, um dia em 1894, quando eu caminhava
pela Trinity Lane e vi num clarão (ou achei ter visto) que o argumento
ontológico é válido. Tinha saído para comprar uma lata de fumo;
no caminho de volta, de repente a joguei para o alto e exclamei, ao
pegá-la: ‘Uau, o argumento ontológico é real” (2009, p. 14). Todavia,
depois Russell considerou todos os argumentos ontológicos como
casos de erros de gramática.

198
Capítulo 6 Argumentos Ontológicos da Existência Divina

As Críticas do Argumento de Anselmo


As críticas foram levantadas contra o argumento ontológico de Anselmo
desde o seu início, mesmo entre os devotos crentes religiosos. Vamos nos
concentrar aqui em duas das críticas mais influentes.

a) A maior ilha possível

Uma das primeiras objeções ao argumento ontológico foi oferecida por


um dos monges companheiros de Anselmo, Gaunilo de Marmoutiers (c. século
XI). Gaunilo de Marmoutiers (1988) ofereceu várias objeções ao argumento,
mas talvez a mais conhecida é uma objeção baseada na analogia da maior ilha
possível. Considere a ideia de uma ilha perfeita – uma ilha que existe, mas foi
perdida pela humanidade. Seguindo a mesma estrutura que o argumento de
Anselmo descrito acima, podemos construir o seguinte:

1) Todo mundo é capaz de entender pelo termo "ilha perfeita" uma ilha da qual
nenhuma maior/melhor pode ser concebida.
2) Então, uma ilha da qual nenhuma maior/melhor pode ser concebida existe na
mente (ou seja, no entendimento), quando se ouve falar de uma tal ilha.
3) Podemos conceber uma ilha da qual nenhuma maior/melhor pode ser
concebida que existe tanto na mente e na realidade.
4) Existir na realidade é maior do que a existir somente na mente.
5) Se, portanto, uma ilha da qual nenhuma maior/melhor pode ser concebida
existe somente na mente e não na realidade, não é uma ilha da qual nenhuma
maior/melhor pode ser concebida.
6) Por isso, uma ilha da qual nenhuma maior/melhor pode ser concebida existe
na realidade.

Esta estratégia da ilha perdida de Gaunilo é chamada de um Esta estratégia


argumento reductio ad absurdum. É uma forma de argumento em que da ilha perdida de
você (1) assume uma posição para o bem do argumento, (2) segue a Gaunilo é chamada
estrutura do argumento e deriva um resultado absurdo ou ridículo, e de um argumento
(3), em seguida, conclui que a estrutura do argumento original deve ter reductio ad
absurdum.
sido errada, pois ela conduziu a uma conclusão absurda. Gaunilo de
Marmoutiers (1988, p. 116) conclui sua refutação desta forma:

Se, digo, essa pessoa presumisse, com semelhante raciocínio,


que eu devesse admitir a existência real daquela ilha, acredita-
ria que estivesse brincando, ou não saberia distinguir qual de
nós dois eu deveria julgar mais estulto: se a mim, que prestei
fé nas suas palavras, ou se a ela, caso estivesse convencida
de ter colocado sobre bases sólidas a existência da ilha sem
primeiro constatar se essa superioridade é, verdadeiramente
e sem sombra de dúvida, real, de modo que não suscite na
minha inteligência um conceito falso e incerto.

199
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Seu ponto, obviamente, é que o argumento da ilha perfeita não prova na


verdade que tal ilha existe – seria absurdo acreditar que há uma ilha perfeita –,
portanto, este argumento deve ser falho. E, uma vez que o argumento ontológico
de Anselmo segue a mesma estrutura básica, este também deve ser falho.
Anselmo oferece a sua própria resposta a Gaunilo:

Em toda confiança respondo-te que se alguém consegue


encontrar-me um ser — excetuando "aquele do qual não se
pode pensar [conceber] nada maior" — existente na realida-
de ou apenas no pensamento, ao qual seja possível aplicar
congruentemente a minha argumentação, eu encontrarei com
certeza a Ilha Perdida e a entregarei a essa pessoa, de modo
que nunca mais há de perdê-la. Contudo, parece estar já́ cla-
ro que não é possível pensar [conceber] como não existente
“o ser do qual não é dado pensar nada maior", porque a sua
existência alicerça-se numa razão segura e verdadeira. Se as-
sim não fosse, não existiria de maneira nenhuma (ANSELMO,
1988, p. 120).

O argumento de Anselmo é que, ao contrário de um ser do qual nada maior


pode ser concebido, a maior ilha possível não é algo que se pode "descobrir"
ao seguir sua linha de raciocínio. Anselmo parece implicar aqui que ele pode
conceber uma tal ilha não existindo. Com Deus – aquilo além do qual nada maior
pode ser concebido – é impossível conceber tal ser como não existente. Mas não
é assim com a ilha perfeita.

Avaliar a resposta de Anselmo é difícil. Por um lado, não está claro exatamente
o que ele quer dizer, nesta resposta concisa, talvez simplista. Além disso, se ele
quer dizer que é possível conceber uma ilha perfeita como não existente, não está
claro o que ele quer dizer com "concebível" neste contexto. Em qualquer caso,
na avaliação da solidez da refutação de Gaunilo, muito depende do significado
da expressão concebível, e continua havendo um debate animado em curso
sobre isso. Stephen T. Davis (2003), por exemplo, argumenta que a refutação de
Gaunilo, nessa passagem, não é sólida.
A existência não
é um predicado b) A existência não é um predicado
de tal forma que é
uma propriedade
Talvez a objeção mais séria ao argumento ontológico de Anselmo
que pode ser
afirmada de uma (pelo menos a versão apresentada no Proslogion, livro II) foi levantada
coisa. Existência por Immanuel Kant (1724-1804). Ele alegou que a existência não
não acrescenta ao é um predicado verdadeiro/real. Veja, por exemplo, em sua Crítica
conceito de uma da Razão Pura (2001) a Quarta Seção (Da impossibilidade de uma
coisa; todavia, prova ontológica da existência de Deus). A objeção é levantada
a existência é a
contra a premissa 4 (com a premissa 3) no argumento acima e pode
instanciação de uma
coisa. ser enunciada da seguinte forma (esta é uma interpretação comum

200
Capítulo 6 Argumentos Ontológicos da Existência Divina

da objeção de Kant): a existência não é um predicado de tal forma que é uma


propriedade que pode ser afirmada de uma coisa. Existência não acrescenta ao
conceito de uma coisa; todavia, a existência é a instanciação de uma coisa.

Considere este exemplo. Suponha que você vê um gato andar na sua frente,
e que o gato porventura é preto. Quando você faz a alegação de que o gato é
preto, você está adicionando uma propriedade (pretidão) ao conceito de um gato.
Há outros gatos que não são pretos; não é essencial para o conceito de um gato
que este seja preto. Quando você alega que o gato existe, no entanto, você não
está adicionando qualquer coisa ao conceito de um gato; você só está dizendo que
o conceito de um gato é exemplificado ou instanciado. No argumento de Anselmo,
ele está insinuando que a existência é um predicado que acrescenta ao conceito
de um ser do qual nada maior pode ser concebido (é maior ter a propriedade
de existente do que não tê-la). Mas, argumenta Kant, ao afirmar que algo existe
não acrescenta nada ao conceito de um tal ser (ou a qualquer outro conceito);
está apenas afirmando que o conceito é instanciado. Portanto, o argumento de
Anselmo é falho. Um excelente artigo que explora os limites desta crítica kantiana
pode ser encontrado em Xavier (2007).

Em resposta, o seguinte ponto poderia ser feito. Eu posso conceber um gato


em particular em minha mente – considere, mais uma vez, o gato Cheshire do
meu amigo – e eu posso pensar sobre este gato. Eu posso ter a expectativa de
cuidar dele, de acariciá-lo, de alimentá-lo, e assim por diante. Mas eu também
posso pensar em outro gato, um gato idêntico ao Cheshire em todos os aspectos,
exceto um: este gato só existe na minha mente, não na realidade; ele é um gato
imaginário. Eu nunca posso realmente cuidar, acariciar ou alimentar este gato,
pois ele só existe em minha mente. De fato, parece que há algo maior sobre o
primeiro gato – ele realmente existe!

Immanuel Kant (1724-1804) foi um filósofo alemão que é


amplamente considerado como um dos pensadores mais importantes
na história da filosofia ocidental. Seu trabalho na epistemologia,
metafísica, ética e estética influenciou muitos trabalhos na filosofia
depois dele. Seus livros principais incluem Crítica da Razão Pura
(2001), Religião nos limites da simples razão (1992) e Crítica da
Razão Prática (2003).

201
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Uma refutação é que a existência de Cheshire não acrescentou nada de novo


ao conceito de Cheshire; não há diferença de propriedades entre os conceitos do
Cheshire existente e do Cheshire não existente, apenas as diferentes maneiras
que eles estão relacionados com as nossas experiências. Eu posso realmente
alimentar e acariciar o Cheshire existente, mas não ao Cheshire imaginário.
Todavia, isso não implica uma nova propriedade. E se a existência não é uma
propriedade, ela não pode ser uma propriedade maior. Assim, a quarta premissa
do argumento de Anselmo é falsa, e, portanto, o argumento falha.

Para uma visão panorâmica dos argumentos de Anselmo, assim


como das objeções que foram levantadas contra ele, veja o artigo de
Peter Millican (2004), o capítulo “O argumento Ontológico” de Rowe
(2011) e a dissertação de Pereira (2012), verifique nas referências
bibliográficas.

O Argumento Ontológico Modal


Alvin Plantinga
Ao interpretar Recentemente, Alvin Plantinga (1932-) desenvolveu uma versão
o argumento do argumento ontológico que utiliza a semântica da lógica modal:
modalmente, possibilidade, necessidade e mundos possíveis. Um mundo possível é
Plantinga espera
um mundo que é logicamente possível (ao contrário de, digamos, um
evitar as objeções
de Kant de que a mundo que contenha contradições, como um em que João e Maria são
existência não é mais baixos do que o outro, simultaneamente, ou que há quadrados
uma propriedade redondos, ou que 2 + 2 = 5). Assim, ao interpretar o argumento
real. modalmente, Plantinga espera evitar as objeções de Kant de que a
existência não é uma propriedade real. Ele formula sua argumentação
tendo em mente que um ser maximamente excelente é aquele que é onisciente,
onipotente e moralmente perfeito em todos os mundos possíveis, seu argumento
pode ser simplificado e declarado desta forma:

1) É possível que exista um ser que seja maximamente grandioso (um ser que
podemos chamar de Deus).
2) Portanto, há um mundo possível em que um ser maximamente grandioso existe.
3) Um ser maximamente grandioso é necessariamente maximamente excelente
em todos mundos possíveis (por definição).

202
Capítulo 6 Argumentos Ontológicos da Existência Divina

4) Uma vez que um ser maximamente grandioso é necessariamente


maximamente excelente em todos os mundos possíveis, este ser é
necessariamente maximamente excelente no mundo real.
5) Portanto, um ser maximamente grandioso (ou seja, Deus) existe no mundo real.

Graham Oppy (2007) o simplifica ainda mais. Resumidamente ele diria:


Digamos que uma entidade é maximamente excelente se ela for onipotente,
onisciente e moralmente perfeita. Digamos, ainda mais, que uma entidade é
maximamente grandiosa se e somente se ela for maximamente excelente em
todos os mundos possíveis. Então o argumento de Plantinga seguiria a seguinte
forma: 1. É possível que exista uma entidade maximamente grandiosa; 2.
(Portanto) existe uma entidade maximamente excelente (derivado da premissa 1).

Este argumento é formalmente válido (novamente, isso significa que, se as


suas premissas são verdadeiras, a sua conclusão deve também ser verdadeira).
Mas é um argumento sólido? Ou seja, são as suas premissas verdadeiras
também? O próprio Plantinga não acredita que o argumento fornece prova
conclusiva de que Deus existe, pois alguns podem negar a primeira premissa. No
entanto, ele afirma que não há nada contrário à razão ou irracional em aceitá-lo
(PLANTINGA, 2012). Em um texto posterior, Self-Profile (1985), ele declarou que
tinha posto o critério para o sucesso do argumento elevado demais. E escreveu
o seguinte: “o argumento ontológico oferece fundamentos para a existência de
Deus tão bons quanto qualquer outro argumento filosófico sério oferece para
qualquer conclusão filosófica importante” (1985, p. 71, tradução nossa). Então,
enquanto não estabelece a verdade de que Deus exista, ele acredita que, pelo
menos, estabelece a sua "aceitabilidade racional".

Para uma introdução à Lógica Modal veja Mortari (2001),


especificamente no capítulo 18, e a dissertação de Coscarelli
(2008). Gomes (2011) é um excelente artigo que introduz o
argumento ontológico modal de Plantinga. Verifique nas referências
bibliográficas deste capítulo para acessar às leituras sugeridas. Para
uma exposição em vídeo sobre o argumento ontológico de Plantinga
e respostas às objeções, veja O Argumento Ontológico para a
Existência de Deus de Alvin Plantinga (Uma Introdução), disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=pqY7gYCnBiM>; e veja
Respondendo objeções ao argumento ontológico, disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=ldU_acK3clE>.

203
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Vamos tomar as premissas, uma por vez. A primeira premissa afirma que é
possível que Deus – um ser maximamente grandioso – existe. O caso de que é
possível que tal ser existe é crucial para o argumento, e nós vamos examinar isso
mais de perto a seguir, na primeira objeção.

A premissa 2 traz para o argumento a noção de mundos possíveis. Isto,


também, é uma premissa crucial, e uma para a qual há um desacordo
Um mundo possível, generalizado. Em uma descrição de mundos possíveis, deve-se
então, não é um
observar a semântica (semântica tem a ver com os significados dos
outro universo,
tão real quanto o termos e símbolos), tais mundos não são realidades que na verdade ou
universo do qual literalmente existem independente do nosso pensamento sobre eles;
fazemos parte. eles são constructos que nos ajudam a pensar e compreender uma série
de conceitos difíceis, como contrafatuais, proposições e propriedades.
Poderíamos pensar em mundos possíveis como uma grande conjunção: a & b &
c & d ... (cada conjunção individual representa uma proposição ou alegação). Um
mundo possível, então, não é um outro universo, tão real quanto o universo do
qual fazemos parte. Pelo contrário, é uma descrição completa da realidade – um
conjunto completo de proposições – e existem inúmeras descrições da realidade.
Por exemplo, há um mundo possível “a & b & c & d ...” como indicado acima.
Mas há também um mundo possível “-a & b & c & d ...” ("-a" significa "não a"),
e outro “a & -b & c & d ...”, e ainda um outro “-a & -b & c & -d ...”, e assim por
diante. Uma e apenas uma das descrições de mundos possíveis incluirá apenas
conjunções verdadeiras e, portanto, retratará o mundo como ele realmente é; ou
seja, o mundo real (CRAIG, 2006).

Lógica Modal é um sistema de lógica que utiliza tais expressões


modais como “possivelmente” e “necessariamente”. As proposições
são verdadeiras ou falsas. Às vezes, porém, uma proposição não
é apenas verdadeira, mas necessariamente verdadeira. Outras
proposições são falsas, mas possivelmente verdadeiras, e outras,
ainda, são falsas e necessariamente falsas. Utilizando estas noções
de necessidade e possibilidade, os princípios básicos da lógica
modal incluem tais alegações como “se algo é impossível, então é
necessariamente falso” e “o que é necessário é ao mesmo tempo
verdadeiramente real e possível”. A lógica modal tornou-se uma
ferramenta utilizada com frequência na análise formal dos argumentos
filosóficos, especialmente na metafísica, na epistemologia e na
filosofia da religião.

204
Capítulo 6 Argumentos Ontológicos da Existência Divina

Não há mundo possível que contenha contradições ou que é Não há mundo


metafisicamente inconcebível. Por exemplo, não existe um mundo possível que
possível, onde tudo nesse mundo é tanto circular quanto retangular contenha
contradições ou que
ao mesmo tempo, pois ser assim seria uma contradição. Nem há
é metafisicamente
um mundo possível em que o Papa Francisco seja uma cor, pois os inconcebível.
seres humanos individuais não podem concebivelmente ser idênticos
às cores (claro, o Papa Francisco tem uma cor particular, e o nome "Papa
Francisco" poderia ser atribuído a qualquer cor em particular, mas esses fatos
fogem do ponto). Alegar, então, que há um mundo possível em que existe um
ser maximamente grandioso não é uma alegação de que há algum universo de
"carne e sangue" onde Deus está, mas que a proposição “um ser maximamente
grandioso existe” consiste em alguma descrição máxima da realidade.

Com a terceira premissa há simplesmente o ponto de que a definição de


um ser maximamente grandioso indica que este é necessariamente onisciente,
onipotente e moralmente perfeito em todos os mundos possíveis. Descrever um
ser maximamente grandioso como sendo algo menos de onisciente, onipotente
e moralmente perfeito é interpretar mal o significado de um ser como definido no
presente caso.

A premissa 4 também está enraizada na semântica de mundos possíveis.


Um dos mundos possíveis (ou seja, uma das descrições completas da realidade)
é o mundo real. Assim, se um ser maximamente grandioso é necessariamente
maximamente excelente em todos os mundos possíveis, este ser é
necessariamente maximamente excelente no mundo real.

Finalmente, a conclusão decorre logicamente das anteriores: um ser


maximamente grandioso existe no mundo real.

Objetivo ao Argumento Modal de


Plantinga
Uma série de objeções foram levantadas contra as versões modais do
argumento ontológico. Vamos examinar brevemente três destas.

Objeção 1: A existência de deus é uma impossibilidade lógica ou metafísica

Em relação à premissa 1, é possível que um ser maximamente grandioso


exista? Alguns acreditam que não o é – que é impossível que exista um ser
maximamente grandioso ou excelente. Por exemplo, como veremos no capítulo
7 deste livro, pode-se argumentar que a presença do mal e do sofrimento no

205
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

mundo refuta, ou pelo menos conta fortemente contra, a existência de um ser


que é onisciente, onipotente e moralmente perfeito. Tem sido argumentado que
as duas proposições, “Deus existe” e “o mal existe”, são contradições lógicas.
Se isso é verdadeiro, e se o mal existe, então não há nenhum mundo possível
em que Deus exista.

Em sua forma mais simples, o problema é este: Deus é oni-


potente; Deus é totalmente bom; e, todavia, o mal existe. Pa-
rece haver alguma contradição entre essas três proposições,
de sorte que, se quaisquer duas delas fossem verdadeiras, a
terceira seria falsa. Porém, ao mesmo tempo, todas as três são
partes essenciais da maior parte das posições teológicas: o te-
ólogo, assim parece, a uma só vez deve aderir e não pode con-
sistentemente aderir a todas as três (MACKIE, 2010, p. 684).

Outras razões também foram oferecidas para demonstrar que


Tem-se simplesmente não é possível que um ser maximamente grandioso
argumentado que possua as propriedades tradicionalmente atribuídas a Deus, inclusive
a onisciência divina que tais propriedades são internamente contraditórias (RUNDLE,
contradiz a perfeição 2013). Por exemplo, tem-se argumentado que a onisciência divina
divina
contradiz a perfeição divina (a onisciência e a perfeição são dois
atributos comumente atribuídos a Deus). O argumento pode ser posto desta forma
(MICHELETTI, 2007; KENNY, 2003; GRIM, 2010):

1) Um ser perfeito não está sujeito a alterações.


2) Um ser perfeito sabe/conhece tudo.
3) Um ser que sabe/conhece tudo sempre sabe que horas são.
4) Um ser que sabe/conhece sempre qual é a hora está sujeito a alterações.
5) Um ser perfeito é, portanto, sujeito a mudanças.
6) Um ser perfeito não é, portanto, um ser perfeito.
7) Portanto, não há ser perfeito.

As respostas podem ser oferecidas, tais como que a premissa 1 é falsa. Mas
essa objeção à coerência divina, assim como outras, está disponível na literatura
na tentativa de demonstrar a impossibilidade de existência de Deus.

Veja o texto de Craig (2014) para algumas respostas às


objeções. E o livro de Michael Martin (2010) para outras objeções.

206
Capítulo 6 Argumentos Ontológicos da Existência Divina

Objeção 2: Um problema com a semântica dos mundos possíveis

Uma questão importante no que diz respeito aos argumentos modais como
este é se a lógica modal utilizada é o tipo apropriado de lógica para possibilidades
metafísicas. Alguns argumentam que não o é (MURCHO, 2002;
CID, 2010). Outro ponto a considerar é que, enquanto nós podemos Enquanto nós
podemos concordar
concordar que o mundo real existe, não existe um acordo universal
que o mundo
sobre o papel ontológico ou funcional que os mundos possíveis real existe, não
devem desempenhar nas discussões metafísicas. Considere este existe um acordo
exemplo. Jane Austen poderia ter escrito um livro sobre a escravidão universal sobre o
na Inglaterra no século XVIII. Ou ela poderia ter escrito um livro papel ontológico ou
sobre a Guerra de Troia. Mas será que o fato de que ela poderia ter funcional que os
mundos possíveis
escrito esses livros implica que eles realmente existem em um mundo
devem desempenhar
possível? O que significaria dizer que eles assim o fazem? Você não nas discussões
pode tocar esses livros; você não pode ler esses livros; você não pode metafísicas.
até mesmo ver esses livros. Não há nada que você possa fazer com
estes livros porque eles não são reais; eles não existem. Assim, parece
estranho dizer que eles existem em um mundo possível.

Se uma das razões para que os romances de Jane Austen sobre a escravidão
e a Guerra de Troia não existem é porque nada existe em um mundo possível,
então seria falsa a afirmação de que Deus (ou seja, um ser maximamente
grandioso) existe em um mundo possível. E se Deus não existe em um mundo
possível, então a premissa 2 do argumento de Plantinga é falsa, e o argumento é
infundado (GOMES, 2011).

Objeção 3: O problema das fadas, fantasmas, gremlins e unicórnios

Por fim, Michael Martin (1932-2015) argumentou que o argumento modal de


Plantinga pode ser parodiado de tal forma que se você o afirmar acaba também
afirmando a existência de criaturas míticas. Ele começa definindo a propriedade
de ser de uma fada especial como sendo uma pequena criatura da floresta com
poderes mágicos em todos os mundos possíveis. Modificando o seu argumento
para corresponder ao argumento ontológico de Plantinga como descrito acima,
ele é executado da seguinte forma (MARTIN, 1990):

1 ) É possível que uma fada especial exista.


2 ) Portanto, há um mundo possível em que existe uma fada especial.
3 ) Uma fada especial é necessariamente uma pequena criatura da floresta com
poderes mágicos em todo mundo possível (por definição).

207
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

4 ) Desde que uma fada especial é necessariamente uma pequena criatura da


floresta com poderes mágicos em todos os mundos possíveis, esta fada é
necessariamente uma pequena criatura da floresta com poderes mágicos no
mundo real.
5 ) Por isso, uma fada especial existe no mundo real.

O argumento de Martin é que a premissa 1 ‘ não é mais contrária à razão do


que a premissa 1, então se nós afirmamos 1 e concluímos que 5 é racionalmente
aceitável, devemos também afirmar 1 ‘ e concluir que 5 ‘ é racionalmente
aceitável. Seguindo a mesma linha de argumentação, também temos de concluir
que fantasmas, gremlins e unicórnios especiais, assim como inúmeras outras
criaturas míticas, também existem.

Em resposta, pode-se argumentar que a premissa 1 ‘ é claramente contrária à


razão ao passo que a premissa 1 não o é, pois não é possível que uma fada especial
exista desde que fadas são objetos presumivelmente físicos (ou essencialmente
conectadas aos objetos físicos). Mas nenhum objeto físico pode ser um ser
necessário, uma vez que é possível que não existam objetos físicos em absoluto.
Desde que o ser maximamente excelente de Plantinga não é necessariamente um
objeto físico, a objeção de Martin não se aplica ao argumento de Plantinga (DAVIS,
2003). É interessante notar que esta refutação é similar, em aspectos importantes, à
refutação de Anselmo a Gaunilo. A história de fato se repete.

Michael Martin (1932-2015) foi um filósofo analítico, ateu e


Professor Emérito da Universidade de Boston. Seu trabalho focou
principalmente na filosofia da religião e publicou numerosos artigos e
livros que defendem o ateísmo e respondem aos argumentos a favor
da existência de Deus. Ele escreveu Um mundo sem Deus: ensaios
sobre o Ateísmo (2010) e Atheism: a philosophical justification (1990).

Atividades de Estudos:

1) Vários argumentos ontológicos foram formulados ao longo


dos anos para evidenciar a existência divina. Normalmente, os
argumentos podem ser expostos em uma série de premissas
seguidas de uma conclusão. Veja o seguinte argumento: 1 - É

208
Capítulo 6 Argumentos Ontológicos da Existência Divina

possível que uma fada especial exista; 2 - Portanto, há um


mundo possível em que existe uma fada especial; 3 - Uma fada
especial é necessariamente uma pequena criatura da floresta
com poderes mágicos em todo mundo possível (por definição); 4
- Desde que uma fada especial é necessariamente uma pequena
criatura da floresta com poderes mágicos em todos os mundos
possíveis, esta fada é necessariamente uma pequena criatura da
floresta com poderes mágicos no mundo real; 5 - Por isso, uma
fada especial existe no mundo real. Assinale abaixo a alternativa
correta sobre qual foi o argumento descrito acima.

a) Argumento da Contradição entre Onisciência divina e Perfeição


divina.
b) Argumento Ontológico Modal de Alvin Plantinga.
c) Argumento Ontológico de Anselmo.
d) Argumento de Michel Martin.

Algumas Considerações
Existe um argumento para a existência de Deus que equivale à prova
conclusiva?

Como vimos neste capítulo, Anselmo pensou que ele havia descoberto tal
prova e propôs-a no que veio a ser conhecido como o Argumento Ontológico. Não
surpreendentemente, seu argumento suscitou interesse e controvérsia na época. O
fato de que continuou a fazê-lo durante os séculos até o presente momento é evidência
da importância do assunto e do fascínio das questões intelectuais envolvidas.

O Argumento Ontológico de São Anselmo é certamente um dos argumentos


mais audaciosos da história da filosofia ocidental, pode até ser o mais audacioso,
e também um dos mais desconcertantes. Alguns filósofos, como vimos, chegam a
desprezar tal argumento, tal como Santo Tomás de Aquino o fez. Outros pensaram
que o tinham refutado, Immanuel Kant pensou que tinha feito isso. Muitos filósofos
tentaram ignorá-lo, mas é difícil para um filósofo sério ignorar as reivindicações de
um motivo de raciocínio tão ousado e elegante.

209
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Vimo neste capítulo que outros filósofos desenvolveram sua própria versão
do argumento de Anselmo. Algumas dessas versões são bastante rudimentares,
outras são muito sofisticadas. No século XVII, todos os filósofos racionalistas
de renome, incluindo Descartes, Malebranche, Leibniz e Spinoza, promoveram
alguma versão ou outra do argumento. Nos três séculos seguintes, o argumento
sofreu períodos de negligência quase completa. Mas, após cada período de
negligência, o argumento sempre foi reconduzido, redefinido e re-criticado.

O argumento ontológico certamente não é negligenciado hoje. Provavelmente


nenhum outro argumento para a existência de Deus - na verdade, para a
existência de qualquer coisa - recebeu tanta atenção no último meio século, como
o argumento ontológico. Com certeza, os detratores do argumento são mais
numerosos hoje do que os defensores. Mas os detratores não são obviamente
mais agudos, engenhosos ou sábios do que os defensores, essas características
podemos perceber em ambo os lados da disputa argumentativa. E, às vezes, um
detrator até chega a se transforma em um defensor, ou vice-versa.

É importante finalizar esclarecendo que o objetivo aqui, ao apresentar


algumas posições teístas e antiteístas com críticas e objeções aos argumentos
ontológicos, tal como fizemos nos capítulos anteriores sobre os argumentos
para a existência divina, é oferecer um esboço da profunda e vasta literatura da
conversação filosófica e epistemológica sobre questões do conhecimento teológico
e religioso. Este esboço tem o intuito de ser umponto de partida em direção a
mais leituras e reflexões sobre a racionalidade, razoabilidade, justificabilidade, e
outros possíveis avais epistêmicos para a crença e para o conhecimento religioso.

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213
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

214
C APÍTULO 7
Problemas do Mal

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

� Compreender os argumentos antiteístas do problema do mal, os


clássicose os contemporâneos.

� Identificar as objeções teístas aos argumentos do problema do mal.

� Comparar os argumentos do problema lógico do mal, o probabilístico, o


evidencial e o existencial.

� Analisar as teodiceias de Agostinho, a Irinena, a da formação da alma


e a do processo e suas respectivas objeções.
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

216
Capítulo 7 Problemas do Mal

Contextualização
Onde quer que olhemos no mundo, as pessoas estão sofrendo. Nas favelas,
em Calcutá; em bares, na Irlanda do Norte; nas cidades costeiras, do Equador;
nas igrejas, em Nova York; nos campos de arroz, na China; no sertão nordestino,
no Brasil; em Serra Leoa, na África; nas ruínas de Alepo, na Síria; e a lista
continua. Não há lugar onde a dor esteja ausente, nenhum lugar onde não exista
sofrimento humano e animal.

De certa forma, parece que nosso mundo ficou melhor ao longo das eras
desde o surgimento do primeiro Homo sapiens no planeta Terra. De fato, tem
havido progressos sólidos, especialmente no aproveitamento da natureza. E
grande parte da barbárie dos tempos antigos parece ter diminuído em geral. Veja,
por exemplo, a pesquisa de Steven Pinker (2013), publicada em sua excelente
obra Os anjos bons da nossa natureza: porque a violência diminuiu. O mundo
certamente não é uma utopia, ainda não o é, de qualquer maneira. O século XX
experimentou terríveis atrocidades humanas. Nesse século, por exemplo, perto
de meio bilhão de pessoas morreram de varíola; mais de 200 milhões de vidas
foram desperdiçadas na guerra e no democídio (RUMMEL, 1998), o assassinato
de pessoas por um governo; e cerca de 12 milhões morreram de AIDS – a maioria
deles nos últimos 15 anos do século XX. As palavras do filósofo Hegel sintetizam o
último século: “A história aparece então como o ‘patíbulo onde foram sacrificadas
a felicidade dos povos, a sabedoria dos Estados, a virtude dos indivíduos’”
(MARCUSE, 2004, p. 202).

Há sempre a esperança de que um novo século trará paz, prosperidade e


erradicação de males que persistem. A realidade é que esta pode muito bem ser
uma esperança inalcançável. A maioria de nós tem o desejo, mas se tivéssemos
a capacidade de remover a perturbação do mundo, faríamos isso num piscar de
olhos. Se tivéssemos o poder, o mal e a miséria seriam eliminados de imediato.

Espera! Muitos acreditam que há alguém que tem não só o desejo, mas o
conhecimento e o poder para remover para sempre o mal e o sofrimento que
existe no mundo. Para a maioria dos teístas, há um Deus que existe como um
ser todo-poderoso, todo conhecedor e totalmente bom. Certamente, se este tipo
de ser existe, ele/ela destruiria o mal e o sofrimento. Então, por que persistem? O
filósofo cético David Hume reconheceu este problema e expressou isso de forma
concisa: “A Divindade quer evitar o mal, mas não é capaz disso? Então ela é
impotente. Ela é capaz, mas não quer evitá-lo? Então ela é malévola. Ela é capaz
de evitá-lo e quer evitá-lo? De onde, então, provém o mal?” (HUME, 1992, p. 136).

217
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Esta é uma versão importante do problema do mal. As raízes deste argumento


vão tão longe no passado como no antigo filósofo grego Epicuro (341-270 a.C.), e
o problema tem assumido muitas formas ao longo dos séculos.

Neste capítulo vamos examinar o problema do mal em algumas de suas


manifestações mais importantes – tanto problema em si mesmo e as várias
respostas e soluções que têm sido oferecidas historicamente e em tempos
recentes. Antes de passar aos próprios argumentos, no entanto, vamos primeiro
esboçar algumas das questões centrais relevantes para o debate.

Classificando o Mal
Alguns termos familiares são bastante fáceis de entender, mas quase
impossíveis de definir. Tomemos a palavra "jogo", por exemplo. Como Ludwig
Wittgenstein (1999) assinalou, é virtualmente impossível definir esta palavra,
embora normalmente temos nenhum problema de escolher um jogo dentre
alguma outra atividade ou evento (Se você duvida da dificuldade de definir "jogo",
apenas tente oferecer uma definição que inclui apenas jogos e exclui
todo o resto). Muitas outras palavras são como esta, incluindo o termo
Enquanto que uma
"mal". Enquanto que uma série de definições de "mal" foi oferecida
série de definições
de “mal” foi ao longo dos séculos, os debates sobre como deve ser definido são
oferecida ao longo intermináveis. Então, ao invés de tentar oferecer uma definição formal,
dos séculos, os vamos usar exemplos familiares, do que é comumente considerado
debates sobre como como sendo males, como o nosso padrão e guia. Aqui, então,
deve ser definido são alguns exemplos comuns de mal: catástrofes naturais, como
são intermináveis.
terremotos, furacões e incêndios florestais em que ocorre a morte
de vida inocente; intenso sofrimento e dor, como uma criança sendo
espancada até a morte por um inimigo tribal bárbaro, ou uma mulher grávida
morrendo de câncer, ou uma zebra sendo comida viva por um leão; deficiências
físicas, mentais ou emocionais, tais como nascer com uma fenda palatina, ou
ter transtorno de personalidade borderline, ou experienciar fraqueza da vontade
em um momento crucial, e assim por diante. O mal vem em toda a variedade de
formas e tamanhos. Dado este fato, os filósofos têm classificado o mal de várias
maneiras, e uma das classificações mais comuns é a distinção entre o mal natural
e o mal moral.

218
Capítulo 7 Problemas do Mal

O Mal Natural e o Mal Moral


John Hick (2010, p. 12, tradução nossa) oferece uma descrição O mal moral é o
muito concisa desta distinção quando escreve: "O mal moral é o que tipo de mal pelo
qual um agente
nós, seres humanos, originamos: pensamentos e atos cruéis, injustos
moral é moralmente
e perversos. O mal natural é o mal que se origina independentemente responsável,
das ações humanas: na doença [...] terremotos, tempestades, secas,
tornados etc.". O mal moral é o tipo de mal pelo qual um agente moral é O mal natural inclui
moralmente responsável, incluindo tanto ações (como mentir, estuprar, os eventos pelos
assassinar etc.) quanto traços de caráter (como a malícia, ganância, quais os agentes
morais não são
inveja, e assim por diante). O mal natural inclui os eventos pelos quais
responsáveis.
os agentes morais não são responsáveis.

Mal natural: o mal que resulta de fenômenos naturais e não é


provocado pelo livre-arbítrio de um agente moral. Ele inclui desastres
naturais e determinadas doenças humanas.

Mal moral: o mal que resulta de um agente moral ao abusar de


seu livre-arbítrio de tal forma que o agente é condenável por ele. Ele
inclui ações humanas, bem como traços de caráter.

Para uma excelente exploração dos problemas do mal,


recomendamos a leitura da obra editada por Sergio Miranda (2013),
O problema do mal.

O Mal Horrendo e Gratuito


Enquanto estamos escrevendo este capítulo, é possível que uma querida
amiga sua tenha sido diagnosticada com câncer de mama de estágio três.
Imaginemos que ela tem um marido e dois filhos pequenos e, dadas as
probabilidades, ela não tem uma grande chance de viver mais de cinco anos. Por
que isso aconteceu? Por que ela? Por que agora? O que pode ser ganho por ela
passar por vários anos de quimioterapia e dor, e o terrível pensamento de deixar
seu marido e filhos, sem uma esposa e mãe?

219
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Imagine outra situação. Você está lendo no jornal local que uma mãe de
várias crianças foi sair de sua garagem, sem saber que a sua filha de três anos
de idade saiu de casa e caminhou atrás do veículo dela. A mãe, inadvertidamente,
atropelou a menina, matando-a no processo. Será que esses eventos não soam
sem sentido, totalmente inúteis? E se Deus – um ser onipotente (todo-poderoso),
onisciente (todo conhecedor) e onibenevolente (plenamente bom) – existe, por
que ele deixaria isso acontecer? Qual é o sentido disso? Estes são exemplos de
mal gratuito, injustificado, e eles são inumeráveis.

Há também exemplos de um mal de um tipo diferente – o que é referido como


o mal horrendo. Estes são males terríveis que, quando experienciados por uma
pessoa, dão-lhe a razão para duvidar de que sua vida, como um todo, poderá ser
percebida como sendo uma grande dádiva para ela. A filósofa da religião Marilyn
McCord Adams (2000) oferece exemplos de males horrendos, como o estupro
de uma mulher seguido do decepamento de seus braços com um machado, a
morte lenta pela fome e o ter que escolher qual de suas próprias crianças deve
viver e qual será morta por terroristas. Dois exemplos ilustres são comumente
usados ​​para exemplificar o mal gratuito e horrendo – exemplos referidos como os
casos do Corço e de Sue. O caso do Corço foi oferecido por William Rowe (2011)
e o caso Sue por Bruce Russell (1996) – veja a nota abaixo. O caso do Corço
parece ser gratuito, injustificado (parece não haver qualquer sentido para a sua
ocorrência), e o caso Sue parece ser horrendo (você teria que se esforçar muito
para encontrar um exemplo mais terrível de violência horrenda em que a vítima
poderia legitimamente questionar-se, dado este mal, se sua breve vida poderia
ser percebida integralmente como sendo uma grande dádiva para ela).

O Caso do Corço (mal gratuito): suponha que em alguma


floresta distante um raio atinge uma árvore, resultando em um
incêndio florestal. Uma corça está presa no fogo, terrivelmente
queimada, e encontra-se em horrível agonia durante vários dias
antes da morte aliviar seu sofrimento. Até onde podemos ver, o
intenso sofrimento da jovem corça é sem sentido. Ao contrário dos
seres humanos, não se atribui livre-arbítrio aos corços, pelo que não
podemos imputar o terrível sofrimento do corço a um mau uso do
livre-arbítrio. Por que permitiria então Deus que isto acontecesse
quando, se existe, podia tê-lo impedido com tanta facilidade? Admite-
se em geral que somos simplesmente incapazes de imaginar um
bem superior cuja realização dependa, sob qualquer perspectiva
razoável, de Deus permitir que aquele corço sofra terrivelmente.
Tampouco parece razoável supor que há um mal imenso que Deus

220
Capítulo 7 Problemas do Mal

seria incapaz de impedir se não permitisse que o corço sofresse


durante cinco dias. Suponha-se que por «mal sem sentido»
entendemos um mal que Deus (se existe) poderia ter impedido
sem com isso perder um bem superior ou sem ter de permitir um
mal igualmente mau ou pior. Será́ que o sofrimento do corço é um
mal sem sentido? Seguramente que o terrível sofrimento do animal
durante esses cinco dias não parece do nosso ponto de vista fazer
qualquer sentido. Quanto a isto, o consenso é, ao que parece, quase
universal, pois dada a onisciência e o poder absoluto de Deus, ser-
lhe-ia extremamente fácil ter impedido o incêndio ou ter impedido
que o corço fosse apanhado pelas chamas. Além disso, como
vimos, é extraordinariamente difícil imaginar um bem superior cuja
realização dependa, sob qualquer perspectiva razoável, de Deus
permitir que aquele corço sofra terrivelmente. E é igualmente difícil
imaginar um mal equivalente, ou até pior, que Deus se visse forçado
a permitir caso impedisse o sofrimento do corço. Parece, portanto,
perfeitamente razoável pensar que o sofrimento do corço é um mal
sem sentido, um mal que Deus (se existe) podia impedir sem com
isso perder um bem superior ou ter de permitir um mal equivalente ou
pior (ROWE, 2011, p. 123-124). Desde que o sofrimento intenso da
jovem corça era evitável e, até onde podemos ver, injustificado, não
parece que de fato existem casos de intenso sofrimento que um ser
onipotente e onisciente poderia ter evitado sem perder, assim, algum
bem maior ou permitir algum mal igualmente ruim ou pior?

O Caso Sue (mal horrendo): nas primeiras horas do dia de Ano


Novo de 1986, uma menina foi brutalmente espancada, estuprada
e depois estrangulada em Flint, Michigan. A mãe da menina
estava morando com o namorado e um outro homem que estava
desempregado, além de seus três filhos, incluindo um bebê de
nove meses de idade, filho de seu namorado. Na véspera de Ano
Novo, todos os três adultos foram beber em um bar perto da casa da
mulher. O namorado, que estava usando drogas e bebendo muito, foi
convidado a se retirar do bar às 20h. Depois de várias reaparições, ele
finalmente deixou de fato o bar cerca de 21h30. A mulher e o homem
desempregado permaneceram no bar até as 2h da madrugada, ponto
em que a mulher foi para casa e o homem foi a uma festa na casa de
um vizinho. Talvez por inveja, o namorado atacou a mulher quando
ela entrou na casa. Seu irmão interveio, atingindo o namorado e
deixando-o desmaiado e caído sobre uma mesa. O irmão foi embora.
Mais tarde, o namorado atacou a mulher novamente e, desta vez,
ela o deixou inconsciente. Após ver os filhos, ela foi para a cama.
Mais tarde, a filha de cinco anos de idade desceu as escadas para

221
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

ir ao banheiro. O homem desempregado testemunhou que, quando


ele voltou da festa, às 3h45, ele encontrou a menina de cinco anos
de idade morta. No seu julgamento, o namorado foi absolvido do
crime porque seu advogado lançou dúvidas sobre a inocência do
homem desempregado. Mas a menina fora estuprada, espancada
gravemente sobre a maior parte de seu corpo, e estrangulada por um
desses homens naquela noite.

Existem diferentes formas de expressar os problemas existentes, perante


males como estes e a alegada existência de um Deus onipotente, onisciente e
onibenevolente. A seguir vamos explorar dois diferentes tipos de problemas –
teóricos e existenciais – acompanhados por várias objeções e respostas a eles.

Atividades de Estudos:

1) É possível, e por vezes necessário, classificar os sentidos do


termo “mal”, para evitar problemas conceituais e para delimitar
o campo de discussão e investigação. De acordo com o texto,
pudemos ver pelo menos quatro tipos de “mal”. Acerca destes
quatro tipos de classificações do “mal”, associe os itens, utilizando
o código a seguir:

I- Mal Horrendo.
II- Mal Gratuito.
III- Mal Natural.
IV- Mal Moral.

( ) O mal que resulta de fenômenos da natureza e não é provocado


pelo livre-arbítrio de um agente moral.
( ) O mal que resulta de um agente moral ao abusar de seu livre-
arbítrio de tal forma que o agente é condenável por ele.
( ) O mal terrível que ao ser experienciado dá a razão ao indivíduo
de duvidar de que a sua vida tenha qualquer sentido.
( ) O mal injustificado que para a sua ocorrência não se encontra
qualquer razão e carece de total sentido.

222
Capítulo 7 Problemas do Mal

Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência


CORRETA:

a) I, II, III, IV.


b) III, IV, I, II.
c) II, IV, III, I.
d) IV, I, III, II.

Problemas Teóricos do Mal


O problema do mal pode ser descrito como o problema de conciliar a crença
em Deus com a existência do mal. Mas o problema do mal, como o próprio mal, tem
muitas faces. Pode, por exemplo, ser expressado como um problema experiencial
ou como um problema teórico. No primeiro caso, o problema é a dificuldade de
adotar ou manter uma atitude de amor e confiança em relação a Deus quando
confrontado com o mal que é profundamente perplexo e perturbador.

Em contrapartida, o problema teórico do mal é a questão puramente


"intelectual" de determinar o impacto, se houver, da existência do mal sobre o
valor da verdade ou o status epistêmico da crença teísta. Com certeza, esses
dois problemas estão interligados - considerações teóricas, por exemplo, podem
oferecer perspectivas à própria experiência do mal, como acontece quando o
sofrimento melhor compreendido torna-se mais fácil de suportar. Nesta seção
o foco será sobre a dimensão teórica do mal, posteriormente vamos falar sobre
o problema existencial. O aspecto teórico do problema do mal vem em duas
variedades: o problema lógico e o problema evidencial, como veremos a seguir.

O Problema Lógico do Mal


Como o título do capítulo indica, não há simplesmente um único Não há
simplesmente um
problema do mal, os problemas são muitos e variados. A maioria dos
único problema do
problemas decorre das seguintes duas crenças: (1) Deus – um ser mal, os problemas
onipotente, onisciente e onibenevolente – existe e (2) O mal – em suas são muitos e
múltiplas manifestações – existe. variados.

223
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Quadro 9 – O problema lógico do mal


Se Deus existe, então Deus é onipotente (todo-poderoso), onisciente (todo conhe-
1)
cedor) e onibenevolente (plenamente bom).
2) Um ser onipotente teria o poder para eliminar o mal.
3) Um ser onisciente teria o conhecimento para eliminar o mal.
4) Um ser onibenevolente teria o desejo para eliminar o mal.
5) Um ser onipotente, onisciente e onibenevolente eliminaria o mal.
6) O mal existe.
7) Então, Deus (um ser onipotente, onisciente e onibenevolente) não existe.

Fonte: O autor.

De uma forma ou de outra, parece haver uma incoerência ao afirmarmos


essas duas crenças. Uma forma do problema alega que as proposições 1 e 2
do quadro acima, "O problema lógico do mal", são logicamente inconsistentes.
Essa reivindicação por si só assumiu uma variedade de formas, mas a estrutura
geral do argumento pode ser exposta da seguinte forma: os teístas geralmente
tentaram demonstrar que tanto as premissas 2, 4 ou 5 não são necessariamente
verdadeiras. Para a conclusão 7 decorrer logicamente a partir de premissas 1-6,
cada uma delas teria de ser verdadeira. Se uma ou mais delas é falsa, no entanto,
ou se há uma boa razão para duvidar da veracidade de uma ou mais delas, isso
faz com que todo o argumento se torne suspeito.

Para uma visão geral destes problemas, verifique a obra


de Sweetman (2013), especialmente as páginas 91-93. Para
compreender melhor as críticas e refutações ao problema lógico
do mal, veja o artigo O desafio do Deus Malévolo, de Stephen Law
(2010), disponível em: <https://rebeldiametafisica.wordpress.com/
tag/problema-logico-do-mal/>, e o artigo O problema lógico do mal, de
James R. Beebe (2011), disponível em: <https://rebeldiametafisica.
wordpress.com/2011/06/24/o-problema-logico-do-mal/>.

Resposta 1 – O argumento "impossível de provar o contrário"

Uma resposta é que o problema lógico do mal não funciona porque, para que
ele tenha sucesso, deve-se demonstrar que Deus não tem nenhuma boa razão
moral para permitir que qualquer mal em particular exista. Todavia, estabelecer

224
Capítulo 7 Problemas do Mal

que a existência de um mal particular e a existência de Deus são incompatíveis


não pode ser realizado. Considere estas palavras de Paul Draper (um proponente
do problema do mal e não aderente ao teísmo):

Para entender por que isso é assim, é crucial entender que a


incapacidade de produzir coisas como círculos quadrados que
são logicamente impossíveis de produzir ou saber declarações
como 2 + 3 = 10 que são logicamente impossíveis de saber não
conta como uma falta de poder ou uma falta de conhecimento.
Em outras palavras, nem mesmo um ser todo-poderoso e to-
do-conhecedor pode ter mais poder ou mais conhecimento do
que é logicamente possível para um ser ter. Suponha, então,
que algo de bom, G, que vale a pena o meu sofrimento [...]
logicamente implica que eu sofra (ou que Deus me permita so-
frer). Isso certamente parece possível (epistemologicamente)
[...] Tais bens seriam conhecidos por um ser todo-conhecedor
mesmo que estejam além do nosso alcance. Além disso, se
existem tais bens, então, nem mesmo um ser todo-poderoso e
todo-conhecedor poderia produzi-los sem permitir-me sofrer e,
portanto, até mesmo um ser todo-poderoso e todo-conhecedor
poderia ter uma boa razão moral para permitir o meu sofrimen-
to (DRAPER, 2008, p. 143-144).

Podemos até imaginar casos em que algum mal possa ser necessário para
que o bem possa resultar. Por exemplo, mostrar o perdão a alguém que tenha o
prejudicado maldosamente e que esteja arrependido, ou mostrar coragem perante
a tortura, ambos exigem logicamente que eu estivesse ferido e torturado. Se estes
são bons exemplos não vem ao caso, pois é logicamente possível que certos
bens justificam certos males, e é impossível provar o contrário.

Resposta 2: A Defesa Do Livre-Arbítrio

Na literatura sobre Deus e o mal, uma distinção é feita frequentemente entre


uma defesa e uma teodiceia. A defesa é uma resposta aos argumentos
antiteístas do mal, e seu objetivo é demonstrar que esses argumentos Na literatura sobre
falham. A teodiceia é uma tentativa de explicar por que Deus é Deus e o mal, uma
distinção é feita
justificado em permitir o sofrimento e o mal. Defesas são oferecidas
frequentemente
em resposta a uma variedade de argumentos do mal, mas elas são entre uma defesa e
tipicamente acopladas com argumentos lógicos. Vamos primeiro uma teodiceia.
examinar uma defesa proeminente e depois explorar várias teodiceias.

225
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

O termo Teodiceia deriva dos Ensaios de Teodiceia, de Leibniz


(2013), refere-se ao conjunto de argumentos que procuram defender
e justificar a crença em Deus (um ser onipotente, onibenevolente e
onisciente), perante a presença do mal no mundo.

É possível que Uma versão importante da defesa do livre-arbítrio é oferecida


Deus, mesmo sendo por Alvin Plantinga (1990, 2012), e em forma truncada segue mais ou
onibenevolente, menos assim: É possível que Deus, mesmo sendo onipotente, não
desejasse criar
pudesse criar um mundo com seres livres que nunca escolhessem o
um mundo que
contenha o mal se mal. Além disso, é possível que Deus, mesmo sendo onibenevolente,
a bondade moral desejasse criar um mundo que contenha o mal se a bondade moral
requeresse criaturas requeresse criaturas morais livres. Aqui está como Plantinga expressa
morais livres. a resposta em forma preliminar:

Um mundo com criaturas que são significativamente livres (e


livres em realizar mais boas ações do que más ações, como
deveria ser) é mais valioso do que um mundo que não con-
tenha criaturas livres. Deus pode criar criaturas livres, mas
Ele não pode causar ou determinar que elas façam apenas
o que é certo. Pois, se Ele assim o faz, então elas não são
significativamente livres, afinal, elas não fazem o que é certo li-
vremente. Para criar criaturas capazes de boa moral, portanto,
Ele deve criar criaturas capazes de fazer o mal, e Ele não pode
dar a essas criaturas a liberdade para fazer o mal e, ao mesmo
tempo, impedi-las de fazê-lo. Como se viu, infelizmente, algu-
mas das criaturas livres que Deus criou escolheram errado no
exercício da sua liberdade; esta é a fonte do mal moral. O fato
de que criaturas livres às vezes escolhem errado, no entanto,
não conta nem contra a onipotência de Deus, tampouco contra
sua bondade; pois Ele poderia ter antecipado e evitado a ocor-
rência do mal moral somente se removesse a possibilidade do
bem moral (PLANTINGA, 2012, p. 30).

Então, o argumento lógico do mal falha porque é pelo menos logicamente


possível que Deus (um ser onipotente e onibenevolente) pudesse ter criado um
mundo de criaturas livres e ainda ser incapaz de garantir que este mundo não
tivesse nenhum mal nisso. Portanto, as premissas 2 e 5 podem ser falsas, e por
isso a conclusão não segue necessariamente; o argumento é falho. Devemos
também observar que Plantinga inclui em seu argumento a possibilidade de
depravação transmundo (transworld depravity, a afirmação de que há pelo menos
um mundo possível em que uma pessoa tem a liberdade moralmente significativa
e ainda comete pelo menos uma ação moralmente errada) como mais uma

226
Capítulo 7 Problemas do Mal

suposição, a fim de assegurar que é logicamente impossível que haja um possível


mundo em que não há mal. Assim, independentemente de qual Deus criou o
mundo, uma ou mais pessoas individuais podem ser responsáveis por realizar
o mal, porque elas estão sofrendo a depravação transmundo. Este argumento é
consistente com a doutrina cristã da Queda.

Os críticos do argumento de Plantinga, como o filósofo ateu J. L. Mackie


(2010), responderam afirmando que ele pressupõe uma visão incompatibilista do
livre-arbítrio (em que o livre-arbítrio é incompatível com o determinismo – humano
ou divino), e que uma visão compatibilista é muito mais plausível. Dada uma noção
compatibilista do livre-arbítrio, Deus poderia criar criaturas "livres" que façam
nenhum mal, porque ele poderia determinar cada uma de suas ações. Atualmente,
a maioria dos filósofos, no entanto, concorda que a defesa do livre-arbítrio derrotou
o problema lógico do mal, pois, mesmo que admitamos que o compatibilismo seja
verdadeiro, Plantinga oferece o argumento como apenas uma possibilidade lógica.
Enquanto que é logicamente possível que o incompatibilismo seja verdadeiro, então
a conclusão necessária do problema lógico do mal é rebaixada.

Outro ponto a favor do problema lógico do mal é que, enquanto o argumento
de Plantinga pode ter sucesso em cortar pela raiz o ponto de que o mal moral é
incompatível com a existência de Deus, ele não aborda o problema do mal natural,
pois os males da natureza não ocorrem por escolhas de criaturas livres. A resposta
de Plantinga é sugerir que é pelo menos logicamente possível (embora
A alegação de que a
ele não está afirmando ou negando a verdade da questão) que talvez
existência de Deus
pessoas não humanas livres sejam responsáveis ​​pelos males naturais e os males naturais
(por exemplo, espíritos rebeldes ou anjos caídos). Enquanto isto for são inconsistentes é
uma possibilidade lógica, a alegação de que a existência de Deus e os refutada.
males naturais são inconsistentes é refutada.

Para uma compreensão mais aprofundada da defesa do livre-


arbítrio e sua refutação, veja o artigo A defesa do livre-arbítrio
refutada e a inexistência de Deus demonstrada, de Raymond D.
Bradley (2007), disponível em: <https://rebeldiametafisica.wordpress.
com/2011/07/08/a-defesa-do-livre-arbitrio-refutada-e-a-inexistencia-
de-deus-demonstrada/>.

227
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

O Problema Probabilístico ou
Evidencial do Mal
Enquanto o problema lógico do mal tem sido (tal como muitos acreditam
agora) para todos os efeitos refutado, isto não deixou o ateu de mãos vazias em
termos de um argumento contra a crença em Deus perante os fatos do mal. Um
outro tipo de argumento tenta demonstrar que a existência do mal evidencia contra
a crença racional em Deus, embora a existência de ambos não seja logicamente
inconsistente. Este argumento, também referido como o "problema probabilístico
do mal", é apresentado em muitas formas, mas a sua essência é que, se o Deus
do teísmo existe, ele provavelmente não criaria um mundo como o nosso – um
mundo cheio de todo o mal horrendo e gratuito que nele encontramos. Desde que
o nosso mundo existe, tal Deus provavelmente não existe. Este tipo de argumento
também tem sido referido como "indutivo", "a posteriori" e argumento “evidencial".
Vamos examinar um outro tipo de argumento evidencial na próxima seção.

a) O problema probabilístico

A estrutura geral do argumento pode ser apresentada como exposto no


Quadro 10 a seguir. Ao contrário da conclusão do problema lógico do mal, este
argumento conclui afirmando que é improvável que Deus existe, em vez de que
é necessariamente verdade que Deus não existe. Este argumento assume força
especial quando reflete sobre as profundezas do mal que existem, como os males
aparentemente gratuitos e horrendos mencionados no início deste capítulo. Não
é mais provável que Deus não existe, dada a existência desses tipos de males?

Quadro 10 – O problema probabilístico


1) Se Deus existe, então Deus é onipotente, onisciente e onibenevolente.
Um ser onipotente, onisciente e onibenevolente pode criar qualquer mundo possível
2)
logicamente.
Se um ser onipotente, onisciente e onibenevolente fosse criar um mundo, tal ser
3)
criaria o melhor de todos os mundos possíveis.
Um ser onipotente, onisciente e onibenevolente teria o poder, o conhecimento e o
4)
desejo de evitar o mal e o sofrimento no melhor de todos os mundos possíveis.
É improvável que o mundo que existe (por exemplo, nosso mundo), que está cheio
5) de uma grande quantidade de mal horrendo e gratuito, seja o melhor de todos os
mundos possíveis.
Portanto, é improvável que Deus, um ser onipotente, onisciente e onibenevolente,
6)
exista.

Fonte: O autor. A estrutura deste argumento segue basicamente o delineamento oferecido


por Plantinga (2012).

228
Capítulo 7 Problemas do Mal

Resposta 1: O lapso de leibniz

Plantinga respondeu a este argumento afirmando que ele não


é sólido, pois incorpora o que ele chama de "O Lapso de Leibniz" Se as pessoas
(PLANTINGA, 2012). A objeção aqui é que a premissa 2 é possivelmente têm livre-arbítrio
falsa. Ao contrário da noção de Gottfried Leibniz de que o nosso mundo libertário, como
descrito acima,
é o melhor de todos os mundos possíveis (logicamente), pode ser
então há certos
que Deus, embora onipotente, não seja capaz de criar simplesmente mundos que até
qualquer mundo logicamente possível. Se as pessoas têm livre-arbítrio mesmo um ser
libertário, como descrito acima, então há certos mundos que até todo-poderoso não
mesmo um ser todo-poderoso não poderia criar (PLANTINGA, 1978). poderia criar

Considere o seguinte exemplo. Suponha que o diretor executivo de uma


grande empresa de utilidades, vamos chamá-lo de "Pedro", é apresentado por
seus contabilistas com o fato de que a empresa está em sérias dificuldades
financeiras. Suponha ainda que em discussões com João, seu contador-chefe,
Pedro percebe que ao triturar alguns documentos, e cometer algumas pequenas
mentiras, ele pode blefar sua saída da situação e convencer seus acionistas de
que a empresa está excepcionalmente bem. Depois de alguns anos disto, ele
supõe que tudo ficará bem.

Agora, considere estes dois cenários: (1) se o contador tivesse apresentado


a Pedro a oportunidade de destruir os documentos e encobrir a dívida, ele teria
aceitado a oferta, e (2) se o contador tivesse apresentado a Pedro a oportunidade
de destruir os documentos e encobrir a dívida, ele teria rejeitado a oferta.

Agora, considere dois mundos possíveis, M e M*, que têm o Pedro neles e
são idênticos até o ponto em que é oferecida a Pedro a oportunidade de destruir
os documentos e encobrir a dívida. Suponha que em M ele aceita a oferta e em
M* ele não a aceita. O argumento de Plantinga, então, é que se M ou M* tornar-se
real é em parte devido a Deus e em parte a Pedro. Dado o livre-arbítrio de Pedro,
se Pedro aceita a oferta de fazer errado, então Deus não poderia fazer ocorrer o
cenário em que Pedro rejeita a oferta – Deus não poderia fazer ocorrer o M*.

Claro, aqui depende muito se aceitamos ou rejeitamos a visão libertária de


livre-arbítrio. Mas se o libertarianismo é mesmo possível, então a premissa 2
perde a sua força, e assim também a conclusão (PLANTINGA, 2012).

Resposta 2: Não há o melhor de todos os mundos possíveis

A segunda resposta para o problema probabilístico do mal é que ele


pressupõe que há, de fato, um melhor de todos os mundos possíveis. No entanto,
de acordo com uma série de filósofos, não pode haver um melhor de todos os

229
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

mundos possíveis. Considere isto: para qualquer melhor de todos os mundos


possíveis imagináveis, pode-se sempre imaginar apenas mais uma coisa boa
nesse mundo. Mais uma boa maçã, por exemplo, ou mais "criaturas sencientes
delirantemente felizes" (PLANTINGA, 2012). Se este for o caso, então poderia
haver um mundo melhor do que o melhor de todos os mundos possíveis, o que
seria uma alegação impossível.

Uma resposta a essa objeção é que, embora possa ser o caso que se
poderia conceber um cenário como esse, não se segue que o mesmo poderia
(metafisicamente) acontecer. Poderia haver razões pelas quais a adição de mais
uma coisa boa não faria um mundo particular melhor do que é.

O Argumento Evidencial de Rowe


Outro tipo de argumento evidencial que tenta evitar as críticas ao argumento
probabilístico apresentado acima foi oferecido pelo filósofo William Rowe (2011,
2013). Vemos a seguir o seu argumento, oferecido em forma ligeiramente
modificada, exposto no Quadro 11.

Quadro 11 – O argumento evidencial do Mal, de William Rowe


Existem grandes quantidades de mal horrendo e gratuito que um ser onipotente,
1) onisciente e onibenevolente poderia ter evitado sem perder um bem maior ou
permitir algum mal igualmente ruim ou pior.
Um ser onipotente, onisciente e onibenevolente teria impedido os males horren-
2) dos e gratuitos que existem, a menos que o ser não pudesse fazê-lo sem perder
um bem maior ou permitir algum mal igualmente ruim ou pior.
3) Portanto, um ser onipotente, onisciente e onibenevolente não existe.
Fonte: O autor.

À primeira vista parece que o teísta concordaria com as duas premissas. No


entanto, uma vez que este argumento está em uma forma válida, se concordarmos
com as duas premissas, a conclusão decorre necessariamente – um ser onipotente,
onisciente e onibenevolente não existe. O que é o teísta pode fazer?

Dadas as nossas
Objeção 1: Limitações epistêmicas cognitivas
óbvias limitações
temporais e
espaciais, nós Uma objeção ao argumento de Rowe é que, uma vez que somos
simplesmente seres humanos finitos, limitados, simplesmente não estamos em uma
não podemos posição epistêmica apropriada para fazer uma avaliação legítima sobre
justificadamente o que um ser onisciente, onipotente e onibenevolente poderia ou iria
fazer julgamentos
morais sobre Deus

230
Capítulo 7 Problemas do Mal

fazer em qualquer situação, inclusive situações em que o mal existe. Dadas as


nossas óbvias limitações temporais e espaciais, nós simplesmente não podemos
justificadamente fazer julgamentos morais sobre Deus (WYKSTRA, 2013).

Objeção 2: Deus pode usar o sofrimento e o mal para nosso bem maior

A segunda objeção é que pode muito bem não haver nenhum mal gratuito
nem horrendo como definido acima. Por exemplo, depois de descrever sua jornada
pessoal através do que lhe parecia à primeira vista como um mal gratuito em sua
vida e a de sua família, o filósofo John Feinberg oferece dez "usos do sofrimento",
em que um teísta cristão pode ter conforto. Não podemos delineá-los aqui, mas
eles incluem Deus, permitindo a dor, a fim de proporcionar uma oportunidade
para demonstrar a fé verdadeira ou genuína e promover a maturidade na vida
(FEINBERG, 2004). Pode-se objetar a isso citando os exemplos dos tipos de
Ivan Karamazov (como as crianças que são jogadas aos cães), nos quais parece
evidente que nem todos os casos de sofrimento/mal estão conectados a um bem
maior. No entanto, a resposta poderia ser dada de que, mesmo se isto for assim,
de um modo geral todo o mal/sofrimento, no final, será redimido por Deus. Marilyn
McCord Adams (2000) elabora tal ponto, utilizando uma estrutura teológica
cristocêntrica que leva a sério o Filho de Deus sofredor. Ela argumenta que há
uma boa razão para que os cristãos acreditem que Deus irá, no final, engolfar e
derrotar todos os horrores pessoais através da participação integradora nos males
na relação de uma pessoa com Deus.

Objeção 3: O mal gratuito é consistente com o teísmo

Uma terceira objeção foi proposta recentemente por adeptos do teísmo aberto.
Deste ponto de vista, a existência de um mal gratuito (e talvez horrendo) não é
incompatível com o teísmo. Os teístas abertos sustentam (como o fazem
uma série de teístas tradicionais) que o livre-arbítrio deve ser de um tipo Nem a onipotência,
tampouco a
incompatibilista, a fim de ser moralmente significativo, e por isso é bom
onisciência de Deus,
que Deus tenha criado seres humanos com livre-arbítrio. Esta liberdade, poderiam excluir a
no entanto, implica a possibilidade de agentes livres escolherem o bem existência do mal
e o mal. Nem a onipotência, tampouco a onisciência de Deus, poderiam – até mesmo o mal
excluir a existência do mal – até mesmo o mal gratuito –, desde que a gratuito –, desde
contingência real acaba por ser uma parte do universo. Para o teísta que a contingência
real acaba por
aberto, a onisciência de Deus não inclui o conhecimento de alguns
ser uma parte do
eventos futuros, como as ações humanas livres. Assim, na criação do universo.
universo Deus não tinha conhecimento de grande parte do mal que iria
ocorrer no futuro.

231
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Teísmo aberto: a visão de que Deus é onisciente, mas não


tem conhecimento de determinados eventos futuros (como as
ações humanas livres futuras), porque ainda não existem e não
são predeterminados, portanto eles não podem possivelmente ser
conhecidos, mesmo por um ser onisciente.

O Problema Existencial do Mal


O problema existencial do mal (que é chamado por diferentes nomes,
A sensação incluindo o "problema religioso", o "problema moral”, o "problema pastoral",
existencial de certos o "problema psicológico" e o "problema emocional") não é fácil de definir
tipos de mal leva
ou delinear. Simplificando, é a noção de que a sensação existencial de
à descrença em
Deus ou na crença certos tipos de mal leva à descrença em Deus ou na crença religiosa em
religiosa em geral. geral. Um exemplo pode esclarecer o significado e o poder do problema.

Algum tempo atrás estávamos com um grupo de amigos esperando na fila


em um restaurante. Estávamos envolvidos em uma discussão teológica bastante
sofisticada (concedido, tenho amigos incomuns!) Quando uma jovem de pé
diante de nós perguntou se nós estávamos falando sobre Deus. "Sim, estamos",
dissemos. "Na verdade, estamos discutindo a natureza e os atributos de Deus."
"Bem," ela disse, "Eu parei de acreditar em Deus há dois anos. Enquanto meu pai
estava sofrendo e morrendo de câncer, eu decidi que eu não podia mais acreditar
em Deus”. Enquanto ela disse essas palavras, ela se tornou emocional. Quase
podíamos sentir a sua dor enquanto as lágrimas começaram a escorrer de seu
rosto em sua agonia sobre o seu pai perdido e a dor que ele deve ter passado.
Isto, sem dúvida, é um caso claro do problema existencial do mal.

Além disso, quando se considera os males terríveis e gratuitos observados no


início deste capítulo (especialmente se alguém passou pessoalmente por essas
experiências), não é nenhuma surpresa que as pessoas afirmam ser incapazes
de ver o mundo teisticamente – ser incapaz de acreditar em um Deus pessoal, e
muito menos venerá-lo e adorá-lo.

Resposta

Uma resposta comum para o problema existencial do mal, de cunho


experiencial, é que o "problema" aqui não é realmente um argumento em absoluto,
e, portanto, não tem a necessidade de uma resposta lógica, racional.

232
Capítulo 7 Problemas do Mal

Quando um indivíduo é pessoalmente confrontado com o mal e Quando um


o sofrimento significativo, a principal coisa que ela precisa não é uma indivíduo é
resposta lógica ou teórica, mas, sim, o cuidado, a simpatia e a amizade. pessoalmente
confrontado com o
Como Plantinga diz, nesses momentos de dor uma pessoa não precisa
mal e o sofrimento
de "iluminação filosófica", mas de “cuidado pastoral" (PLANTINGA, significativo, a
2012). O filósofo e teólogo John Feinberg esclarece: principal coisa que
ela precisa não é
Pense em uma criança que sai para brincar em um uma resposta lógica
playground. Em algum momento durante a brinca- ou teórica, mas,
deira, ela cai e machuca o joelho. Ela corre para sim, o cuidado,
sua mãe para conforto. Agora, sua mãe pode fazer a simpatia e a
várias coisas. Ela pode dizer à filha que isso acon-
amizade.
teceu porque ela estava correndo muito rápido e
não estava olhando para onde estava indo. Que ela
deve ter mais cuidado da próxima vez. A mãe, se souber, pode
até explicar as leis da física e da causalidade que estavam ope-
rando para fazer com que o machucado de sua filha seja exa-
tamente do tamanho e da forma que é. A mãe pode até explicar
por alguns momentos sobre as lições que Deus está tentando
ensinar sua filha a partir desta experiência (FEINBERG, 2004, p.
454, tradução nossa).

Se ela, em seguida, faz uma pausa e pede à sua filha, "Você entende,
querida?", não se surpreenda se a menina respondesse: "Sim, mamãe, mas ainda
dói!". Toda a explicação, naquele momento, não impede a sua dor. A criança não
precisa de um discurso; ela precisa de abraços e beijos de sua mãe. Haverá um
tempo para o discurso mais tarde; agora ela precisa de conforto.

As Três Teodiceias
Enquanto o cuidado pastoral pode muito bem ser um elemento importante
na resposta àqueles que experimentam dor e sofrimento, ele não faz nada para
resolver os problemas teóricos remanescentes observados acima. Existem
maneiras de realmente explicar por que Deus permitiria o mal no mundo? Há, de
fato. Houve uma série de tentativas de justificar a Deus e os caminhos de Deus
dada a realidade do mal. Tais respostas são chamadas teodiceias, e a seguir
vamos examinar as três mais importantes.

a) A teodiceia do livre-arbítrio de agostinho

Como observado anteriormente, a teodiceia é diferente de uma defesa,


em que o objetivo de uma teodiceia é justificar Deus e os caminhos de Deus
dada a existência do mal em um mundo criado por Deus, enquanto que uma
defesa é uma tentativa de demonstrar que os argumentos antiteístas do mal

233
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

são malsucedidos. Existem diferentes tipos de teodiceias, e uma das mais


significativas historicamente é aquela oferecida pelo grande teólogo e padre da
Igreja, Santo Agostinho. É referida como a teodiceia do livre-arbítrio, e expomos
uma forma de delineá-la no Quadro 12, a seguir.

Quadro 12 – A Teodiceia do Livre-arbítrio de Agostinho


1) Deus criou o universo, e tudo nele era bom.
Algumas das criações de Deus – nomeadamente, as pessoas – foram presentea-
das com a boa dádiva da liberdade da vontade (tendo a liberdade da vontade no
2)
universo é melhor do que não a ter, uma vez que um universo moral exige isso, e
um universo moral é melhor do que um universo não moral ou amoral).
Algumas dessas pessoas criadas – primeiros anjos, e então seres humanos – es-
3) colheram livremente se afastarem da bondade de Deus; ou seja, eles "pecaram" e
caíram de seu estado de perfeição (por exemplo, a "Queda" da humanidade).

4) Esta conversão da vontade, ou pecar, trouxe o mal moral e natural para o universo.

O mal, ainda que provocado por pessoas criadas, não é uma coisa ou entidade; é
5)
uma deprivação metafísica, ou falta ou privação, do bem (uma privatio boni).
Deus finalmente retificará o mal quando ele julgar o mundo, inaugurando o seu
6) reino eterno com aquelas pessoas que foram salvas por meio de Cristo e enviando
para o inferno eterno aquelas pessoas que são perversas e desobedientes.

Fonte: O autor, baseado na obra O livre-arbítrio, de Santo Agostinho (1995).

Esta tem sido a teodiceia mais utilizada no Ocidente desde o século V da era
comum, e ela ainda é amplamente utilizada hoje, por exemplo, na excelente obra
de Richard Swinburne (1998). Ela também tem sido amplamente criticada. Duas
objeções são as seguintes.

Objeções

Para Agostinho, Deus é totalmente soberano e não está sujeito às


escolhas e aos caprichos de pessoas falíveis e finitas. Se Deus, então,
Deus é totalmente
é soberano, como é que o mal emergiu em seu universo? Parece haver
soberano e não está
sujeito às escolhas um conflito entre a defesa do livre-arbítrio de Agostinho, de um lado, e sua
e aos caprichos de visão de Deus, de outro, pois parece que Deus, entendido desta maneira,
pessoas falíveis e poderia ter criado pessoas que seriam santos espirituais e, portanto,
finitas. sempre escolheriam o bem. Então, por que elas escolheram pecar?

Além disso, como poderia um ser onibenevolente criar um inferno onde


inúmeras pessoas passarão a eternidade no sofrimento e em agonia? Parece
haver um conflito aqui entre a soberania de Deus e a bondade de Deus.

234
Capítulo 7 Problemas do Mal

Santo Agostinho (354-430 EC) foi um filósofo, teólogo e


padre cristão da Igreja entre os mais influentes na história. Sua
peregrinação espiritual o levou do ceticismo como um jovem adulto
até tornar-se Bispo de Hipona em seus últimos anos. Seu trabalho
sobre a liberdade humana difundiu sua carreira, e praticamente todos
os filósofos medievais de renome no Ocidente cristão interagiam com
a obra de Agostinho sobre o livre-arbítrio e questões relacionadas,
tais como a presciência, predestinação e a graça divina. Suas obras
filosóficas mais importantes incluem A Cidade de Deus (1990), O
Livre-Arbítrio (1995) e sua autobiografia, o Confissões (1996).

Teodiceia: a palavra “teodiceia” vem de duas palavras gregas


– theos (Deus), e dikei (justiça). A teodiceia é uma tentativa de
reivindicar a bondade e a justiça de Deus perante a realidade do mal.

b) A teodiceia irineana ou da “formação da alma”, de Hick

Com base no trabalho de Irineu (130-202 EC), um bispo cristão primitivo,


John Hick, desenvolveu uma teodiceia que está em contraste gritante com o tipo
agostiniano (SWEETMAN, 2013). Em vez de Deus criar um paraíso com seres
humanos perfeitos que então caíram em pecado, a teodiceia de Irineu narra isso
ao contrário. Deus criou pessoas boas, mas não desenvolvidas, pois
Deus criou pessoas
a maturidade moral requer enfrentamento de provações e dificuldades
boas, mas não
na vida. A existência do mal, então, não é o resultado de pessoas desenvolvidas,
perfeitas que escolhem pecar, mas é um elemento necessário do pois a maturidade
processo de desenvolvimento de pessoas humanas (e talvez outras) moral requer
imaturas em seres maduros espiritual e moralmente, e o mal é uma enfrentamento
parte da estratégia de Deus na formação das almas. A teodiceia pode de provações e
dificuldades na vida.
ser expressa como exposta no Quadro 13, a seguir.

235
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Quadro 13 – Uma teodiceia irineana da formação das almas


Deus criou o mundo como um lugar bom (mas não um paraíso) para o desenvolvi-
1)
mento de pessoas humanas tanto espiritual quanto moralmente.
Através de meios evolutivos, Deus fez emergir pessoas humanas com a liberdade
2)
de vontade e a capacidade para amadurecer no amor e na bondade.
O mal é o resultado tanto da criação de um mundo bom de formação de almas e
3)
da escolha humana de pecar.
Ao colocar as pessoas humanas neste ambiente desafiador, através de suas pró-
prias respostas livres, elas têm a oportunidade de escolher o que é certo e bom e,
4)
portanto, crescer gradualmente em pessoas maduras (que exibem as virtudes da
paciência, coragem e generosidade, por exemplo) que Deus deseja que elas sejam.
Deus continuará a trabalhar com as pessoas humanas, mesmo na vida após a
morte, se necessário, permitindo-lhes a oportunidade para amar e escolher o bem,
5)
de tal forma que no escaton (último, fim das coisas) todos serão levados a um
relacionamento correto com Deus.

Fonte: O autor.

Objeções

Uma série de objeções têm sido oferecidas para a teodiceia da formação


de almas de Hick. Uma delas centra-se na aparente evidência contrária. Muitas
pessoas não melhoram através das dificuldades que elas enfrentam; muitas
vezes, as dificuldades na vida de alguém causam o fim de sua vida em tragédia
absoluta. Uma rápida olhada no noticiário da noite em praticamente qualquer
dia fornecerá uma ampla demonstração deste ponto. Um defensor da teodiceia
poderia responder que a vida presente não é tudo que existe, e Deus terá muito
tempo para trabalhar em um indivíduo que responde mal agora. É claro que isso
depende de uma crença maior na vida após a morte – algo que não temos suporte
probatório empírico.

Outra objeção à teodiceia da formação de almas é que ela parece ser uma
forma bastante brutal de Deus para amadurecer as almas. Sugerir que todo o
sofrimento e a dor – todos os males horrendos – já experimentados ao longo da
história foram o resultado da grande intenção cósmica de Deus, faz Deus parecer
um pouco menos do que o ser onipotente, onisciente e onibenevolente
que a maioria dos teístas pensa que Deus é.
Enquanto que Deus
não é o mundo (isso
seria panteísmo), c) Uma teodiceia do processo
Deus participa
do mundo (isso é A teologia do processo (e a filosofia) foi desenvolvida pela primeira
panenteísmo) – vez por Alfred North Whitehead (1861-1947). Ela continuou a ser
Deus e o mundo desenvolvida por Charles Hartshorne (1897-2000) e mais recentemente
estão em processo
por John Cobb Jr. (1925-). Baseia-se na premissa fundamental de que
juntos.

236
Capítulo 7 Problemas do Mal

Deus e o mundo estão em fluxo. Enquanto que Deus não é o mundo (isso seria
panteísmo), Deus participa do mundo (isso é panenteísmo) – Deus e o mundo
estão em processo juntos. Deus não só age sobre o mundo, mas este também age
sobre aquele. Todas as coisas, incluindo Deus, estão no processo de se tornar,
em vez de ser estáticos. Neste processo de tornar-se, as entidades respondem
a cada momento, fazendo escolhas, e estas escolhas são reais e significativas;
elas nunca são perdidas, mas são continuamente adicionadas à experiência
global de Deus. Deus aprende a partir de tais experiências, e, portanto, está
sempre crescendo em conhecimento e entendimento. Este ponto de vista do
conhecimento de Deus está claramente em contraste com a teologia tradicional,
em que a onisciência de Deus é eternamente completa e exaustiva.

Além disso, na visão do processo, a onipotência de Deus é rejeitada. O


poder de Deus não é compreendido como sendo infinito, mas limitado na medida
em que outras entidades livres, como as pessoas humanas, também
O poder de Deus
têm o poder de fazer suas próprias escolhas. Além disso, o poder de
não é compreendido
Deus é persuasivo ao invés de coercivo; Deus não força as criaturas como sendo infinito,
a fazer o bem, mas tenta atraí-las na direção certa. Infelizmente, elas mas limitado na
não podem ser sempre atraídas, e às vezes elas fazem as escolhas medida em que
erradas; às vezes elas fazem coisas más. Todas as entidades, incluindo outras entidades
Deus, continuam a evoluir, e a esperança é que, eventualmente, todo livres, como as
pessoas humanas,
o mal será erradicado na medida em que as criaturas livres aprendam
também têm o
com as experiências anteriores (suas próprias e aquelas da história) o poder de fazer suas
que é, em última análise, bom e certo. Podemos delinear a teodiceia do próprias escolhas.
processo como exposta no Quadro 14, a seguir.

Quadro 14 – Uma Teodiceia do Processo


Deus não é o criador transcendente que criou o mundo ex nihilo (do nada), mas é
1) Deus-no-mundo; isto é, o panenteísmo no qual tudo está em Deus, mas nem tudo é
Deus.
Deus não é nem onisciente nem onipotente no sentido tradicional; o poder de Deus
2) é compartilhado com outras entidades, e o conhecimento de Deus aumenta na me-
dida em que suas experiências aumentam.
O universo é caracterizado pela evolução, processo e mudança, alguns dos quais
3) têm sido provocados pelas escolhas livres autodeterminadas de entidades, incluindo
Deus e as pessoas finitas.
Algumas das escolhas feitas por pessoas humanas são boas e algumas são más.
4) Há a esperança de que o mal continuará a ser engolfado na medida em que todas
as experiências sejam sintetizadas na própria vida consciente de Deus.

Fonte: O autor.

237
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

Para ler uma versão recente e inspiradora da teodiceia do processo baseada na


criação a partir do caos, é interessante observar o texto de David R. Griffin (2001).

Objeções

Várias objeções e críticas têm sido oferecidas ao pensamento do processo


e sua respectiva teodiceia. Observaremos brevemente três delas. Em primeiro
lugar, a crítica típica do processo ao entendimento tradicional do poder divino tem
sido posta em questão. Enquanto que uma ramificação da teologia calvinista inclui
o poder de Deus como sendo exclusivo e implicando determinação soberana
absoluta de todos os eventos, certamente esta não é a única, nem mesmo a mais
comum compreensão do poder divino. Então, essa crítica do processo está mal
colocada contra a maioria das noções tradicionais da onipotência. Por outro lado,
a crítica do processo referente à teologia tradicional que afirma o livre-arbítrio
humano e, portanto, uma limitação de alguma espécie no poder de Deus, é sem
dúvida fraca. Por exemplo, em resposta a uma teodiceia do livre-arbítrio, os
filósofos do processo alegaram que tal visão permitiria que Deus pudesse eliminar
qualquer mal particular que ocorresse orientado pela vontade livre, mas ele não
o faz. Portanto, Deus poderia parar um estuprador antes de estuprar, fazer uma
bomba terrorista não explodir, ou fazer com que um ladrão seja pego, antes
de fugir. Uma vez que Deus poderia fazer tais coisas sem interromper o livre-
arbítrio, mas não o faz, argumentam eles, Deus não é realmente bom sob esta
perspectiva. No entanto, os defensores da teodiceia do livre-arbítrio respondem
argumentando que um tipo de livre-arbítrio em que não se permite as ações de
uma pessoa serem eficazes não é verdadeiramente livre-arbítrio em absoluto.
Assim, tal objeção não se justifica.

Na perspectiva do A segunda objeção tem a ver com a negação do processo com


processo, o mundo relação à criação ex nihilo. Na perspectiva do processo, o mundo não
não foi criado por foi criado por Deus a partir do nada. Existem várias explicações para
Deus a partir do
a existência do mundo levantadas pelos pensadores do processo.
nada.
Todavia, uma explicação muito comum é que ele é eterno; ele nunca
começou a existir. No entanto, essa visão contradiz o modelo Big Bang padrão do
universo, que é amplamente difundido entre os cosmólogos e os astrônomos. É
claro que o veredicto sobre esta questão ainda está em aberto.

A objeção final é que a teodiceia do processo realmente não se parece muito


com uma teodiceia. Deus é muito impotente para eliminar os males do mundo, na
medida em que Deus não tem nem o conhecimento nem o poder de, em última
análise, resolver o problema. Além disso, muitos veem o mal e o sofrimento no
mundo como cada vez pior, não melhor (Esta visão pode ser confrontada com as
pesquisas de Steven Pinker [2013] em sua obra Os anjos bons da nossa natureza,
na qual ele defende a tese de que, pelo menos, certos tipos de mal – como a

238
Capítulo 7 Problemas do Mal

violência física – estão, sim, diminuindo com o desenrolar da história humana).


Enquanto que Deus sempre faz o melhor que pode na visão do processo, mesmo
assim não parece que ele está fazendo muito, pois o mal ainda abunda. Nem
parece que Deus está melhorando em sua capacidade de evoluir um mundo
melhor. Diante disso, sem a esperança escatológica de uma eliminação definitiva
do mal, a palavra "teodiceia" aqui pode ser um termo impróprio.

Veja o vídeo de Steven Pinker sobre a diminuição da violência,


disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=wtPHieLCWrs>.

Veja também o vídeo de William Craig sobre o problema


do sofrimento, disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=8o2BtYlH4Sc>.

Algumas Considerações
Vimos que o problema do mal vem em uma variedade de formas, com as
formas mais difíceis que parecem surgir dentro dos ensinamentos do próprio
teísmo ortodoxo. No entanto, não é claro que qualquer uma dessas versões do
problema do mal seja insuperável. Tanto as formas lógicas como as evidenciais
do problema do mal podem ser, ao menos em certos aspectos, refutadas, e os
problemas gerados pelo ocultamento divino e a doutrina tradicional do inferno não
chamam necessariamente ao abandono do teísmo, mas, ao máximo, para uma
reavaliação de certos pressupostos teológicos. O problema do mal é certamente
sério, especialmente em termos de suas ramificações práticas - as crises de fé
frequentemente enfrentadas por aqueles em meio a tribulações e sofrimentos
severos demandam sábias orientações e conselhos espirituais - mas qualquer
evidência racional que o problema do mal ofereça contra o teísmo é passível de
boas contra argumentações ao nível das disputas argumentativas.

Nos capítulos anteriores, vimos que, mesmo que haja argumentos


aparentemente bons para a existência de Deus, esses argumentos podem ser
solapados se possuirmos argumentos fortes contra a existência de Deus. Se uma
testemunha ocular alegou ter visto você roubar uma loja de conveniência ontem
no centra da sua cidade, isso constitui uma boa evidência de que você cometeu

239
EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA

o crime. Mas se 500 pessoas, incluindo inúmeros repórteres de televisão e jornal,


assistiram você ganhar a medalha de ouro de salto em altura nos jogos na China
no mesmo dia, a força dessa "boa evidência" anterior desapareceria rapidamente.

Os argumentos contra a existência de Deus são tão poderosos? Alguns


pensam assim. No entanto, como vimos, esses argumentos dependem de
pressupostos que estão abertos a alguns sérios desafios. Quão sérios são esses
desafios é uma questão para cada um de nós decidir.

É comum que os acadêmicos, ao finalizar uma leitura de um par de


capítulos como estes deste livro, erguerem as suas mãos em desespero. "Se os
especialistas não podem concordar sobre o que a evidência mostra, como vou
decidir?" Essa é uma boa pergunta. Aqui está uma boa resposta: use as mesmas
habilidades de raciocínio críticas que você usa quando você faz julgamentos sobre
qual candidato votar em uma eleição ou quando decidir qual carro é o melhor
para comprar. Em ambos os casos, você estará exposto a argumentos a favor
e contra cada alternativa. Mas isso não precisa, e, na maioria dos casos, não o
leva à paralisia. Em vez disso, você decide quais fatores são os mais atraentes
em coerência com o seu processo de raciocínio e de tomada de decisão, e
você procede em conformidade. Recomendamos que você faça o mesmo aqui.
Deixando de lado suas preferências e preconceitos, dê uma olhada nos vários
argumentos e avalie-os por si mesmos. O que parece mais plausível? Quando
você responde a essa pergunta, você formou um julgamento fundamentado e
reflexivo sobre uma questão de grande importância.

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