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Da Crítica Da Lógica Do Direito Penal
Da Crítica Da Lógica Do Direito Penal
Blaise Benoit
Pesquisador Associado da Universidade de Nantes/França
Abstract: This talk deals with Nietzsche's philosophy in general, and criminal law in
particular. Indeed it so happens that, in the period when Nietzsche (1844-1900) writes the two
volumes of Human, All Too Human (1876-1879), he destroys the foundations of criminal law
after exposing them one by one. Does the destruction give way to reconstruction? Or at least
does it allow him to consider the possibility of a new criminal law?
Keywords: Versuch, justice, criminal law, punishment, freedom, responsibility.
escolheu infringir a lei; ou, dizendo em termos morais: porque este indivíduo
escolheu concretizar o mal em detrimento do bem, de modo que este
indivíduo deve responder por seus atos, isto é, literalmente, assumir sua
responsabilidade, na medida em que ele era livre para não cometer o ato
repreensível condenado pela lei. Dito de outro modo, a liberdade implica a
responsabilidade, tanto que, no plano do Direito Penal, quando a
culpabilidade é estabelecida e pronunciada, o julgamento desemboca em um
castigo¸ castigo concebido como reparação institucionalmente exigida a fim
de restaurar um equilíbrio prejudicado na sociedade por aquele que
transgrediu a lei.
Como filósofo que faz uso de seu espírito crítico, Nietzsche examina
sucessivamente cada uma das etapas do raciocínio que acabamos de
reconstituir e duvida radicalmente do valor dessas evidências presumidas,
com a ajuda de um método: o Versuch.
O Versuch designa, em alemão, o registro semântico do ensaio, da
tentativa, da experimentação, e Nietzsche utiliza esse termo para designar um
método que consiste na problematização das convicções mais ancoradas no
fundo de nós mesmos. O Versuch é o método disso que Nietzsche chama de
espírito livre, ou antes: o espírito que se liberta progressivamente, isto é: que
aprende a não confundir nossos hábitos intelectuais com a própria verdade,
sempre mais complexa que nossas ideias esquemáticas.
Uma fórmula recapitula perfeitamente o método do Versuch
nietzschiano. Esta fórmula se encontra em Humano, demasiado humano,
volume II, “O andarilho e sua sombra”, §10: “Mas e se o contrário fosse
verdadeiro (...)?”.
Nós nos colocamos muito raramente esta séria questão, pois a vida
prática nos pressiona a decidirmo-nos rapidamente, e mesmo, muito
frequentemente, com urgência. O filósofo, ao contrário, faz a escolha de
tomar o tempo de ponderar a hipótese oposta a tal ou tal de nossas certezas
imediatas. Com este exame, a verdade encontra de alguma maneira seus “dois
pés”, para falar metaforicamente à maneira de Nietzsche. De fato,
encontramos este importante aforismo em Humano, demasiado humano:
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1 NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano, II, “O andarilho e sua sombra”, § 13, in Œuvres
philosophiques complètes, tomo III 2, Paris, Gallimard, 1988, trad. fr. Robert Rovini reeditada par Marc
de Launay, p. 182. Tradução bras.: Paulo César de Souza.
2 NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano, I, § 325, in Œuvres philosophiques complètes, tome III
1, Paris, Gallimard, 1988, trad. fr. Robert Rovini revue par Marc de Launay, p. 226. Tradução bras.:
Paulo César de Souza.
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3NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano, II, “O andarilho e sua sombra”, § 67. Tradução Rubens
Torres Filho.
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prático é um “eu” que se pergunta “o que devo fazer?”, para retomar uma
outra questão decisiva de Kant.
No contexto do contrato social que permite aos homens viver juntos,
o sujeito prático tem direitos e deveres. Ele é considerado como livre, ele é,
portanto, supostamente responsável por seus atos. Entretanto, de maneira
geral, Nietzsche coloca essa questão já mencionada: “Mas e se o contrário
fosse verdadeiro (...)?” (Humano, demasiado humano, volume II, “O
andarilho e sua sombra”, §10). Por consequência, o sujeito existe? O “eu” não
seria a projeção imaginária de um desejo de estabilidade, dado que tudo é
mutável, ou, dito de outro modo, que a realidade se caracteriza pelo vir-a-ser?
Pode-se então verdadeiramente falar de “identidade de si” se tudo vem a ser,
se tudo se modifica, portanto, perpetuamente? Desde então, crer em um
substrato, base da identidade pessoal, não é uma ingenuidade ou uma
simplificação abusiva?
Um substrato significa etimologicamente o que se mantém (“stare”,
em latim) sob (“sub”, em latim) nossos estados de consciência, nossas
impressões diversas, a título de centro unificador.
Nietzsche problematiza este lugar obscuro da personalidade humana:
e se, definitivamente, ele não existisse? Na lógica própria ao Versuh, o
filósofo experimenta desenvolver a hipótese oposta a um “eu” unitário e
fundador da identidade individual. Alguns fragmentos póstumos consolidam
esta orientação da pesquisa. Tomo como exemplo estas passagens:
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15 NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano, II, “O andarilho e sua sombra”, § 10. Tradução bras.:
Paulo César de Souza.
16 NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humnano, I, § 106; KSA 2, p. 103. Tradução bras.: Paulo César
de Souza.
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17 SPINOZA, B. Ética, 3ª parte, proposição II, scolie, in Œuvres, tome trois, Paris, Garnier, 1965,
traduction Charles Appuhn, p. 139. Tradução: Joaquim Ferreira Gomes. In: ESPINOSA, B. Ética. 2ed.
São Paulo: Abril Cultural, 1979, “Coleção Os Pensadores”, p. 181.
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18NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano, II, “O andarilho e sua sombra”, §61; KSA 2, p. 580.
Tradução bras.: Paulo César de Souza.
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não pode senão ser ela mesma, tal como ele se coloca diante
das plantas, deve se colocar diante dos atos humanos e de seus
próprios atos. (…) Tudo é necessidade (Nothwendigkeit) –
assim diz o novo conhecimento: e ele próprio é necessidade
(Nothwendigkeit). Tudo é inocência (Unschuld): e o
conhecimento é a via para compreender essa inocência
(Unschuld)19.
19NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano, I, § 107. Tradução bras.: Paulo César de Souza.
20NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano, II, “o andarilho e sua sombra”, § 24, KSA 2, p. 559.
Tradução bras.: Paulo César de Souza.
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Resumamos: considera-se que tal homem pode ser punido porque ele
teria feito cientemente um mau uso de sua liberdade; ele teria, portanto, a
responsabilidade por suas decisões. Seus atos lhe seriam imputáveis. Ora,
Nietzsche, contra a evidência presumida do fundamento da imputação,
considera a hipótese da inocência do vir-a-ser em geral e, portanto, a hipótese
da impossibilidade de julgar tal ou tal indivíduo em particular.
Lembremos: o Versuch não consiste apenas em uma oposição de
contrários. Nietzsche não apenas opõe, portanto, a necessidade à liberdade,
ele propõe, por exemplo, questionar o conceito de indivíduo:
21 NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos, “Os quatro grandes erros”, § 7, trad. fr. Patrick Wotling; KSA 6,
p. 95. Tradução bras.: Paulo César de Souza.
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22 NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos, “Incursões de um extemporâneo”, § 33. Tradução bras.: Paulo
César de Souza.
23 NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano, II, “O andarilho e sua sombra”, § 28, KSA 2, p. 561-
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Ora, o julgamento pode se voltar para a punição, que não pode ser a
justa sanção proporcionada aos desvios da liberdade individual, se esta
liberdade individual é considerara como sendo ilusória.
Examinemos então, agora, a punição, a título de consequência
possível do julgamento no contexto do quadro do exercício do Direito Penal.
Hegel escrevia nos Princípios da filosofia do direito (1821), §100, o
seguinte: “De fato, mesmo que a pena seja considerada como o direito
próprio ao criminoso, ao punir, se honra o criminoso como ser razoável”.
26 NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano, I, § 39. Tradução bras.: Paulo César de Souza.
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27 NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano, II, “O andarilho e sua sombra”, § 183. Tradução bras.:
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29 NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano, I, § 70. Tradução bras.: Paulo César de Souza.
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30 NIETZSCHE, F. A genealogia da moral (1887), II, § 10, trad. fr. P. Wotling, p. 146. Tradução bras.:
Paulo César de Souza.
31 NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano, II, “O andarilho e sua sombra”, § 186. Tradução bras.:
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32 NIETZSCHE, F. Para além do bem e do mal (1886), § 201, trad. fr. P. Wotling (trad. à peine modifiée:
“castigar” foi substituído por “punir”), p. 158-159; KSA 5, p. 123. Tradução bras.: Paulo César de Souza.
33 NIETZSCHE, F. Para além do bem e do mal (1886), p. 159; KSA 5, p. 123.
34 NIETZSCHE, F. Para além do bem e do mal (1886), p. 160; KSA 5, p. 125.
35 NIETZSCHE, F. Para além do bem e do mal (1886), p. 161; KSA 5, p. 125.
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38 NIETZSCHE, F. Para além do bem e do mal, § 159, trad. fr. P. Wotling. Tradução bras.: Paulo César
de Souza.
39 NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano, II, “O andarilho e sua sombra”, § 323. Tradução bras.:
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Referências
NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA).
Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari.
München/Berlin/New York: dtv/Walter de Gruyter & Co., 1988. (15
Einzelbänden).
_________. Humano, demasiado humano. Um livro para espíritos livres.
Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
letras, 2000.
_________. Humano, demasiado humano. Um livro para espíritos livres.
Volume II. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das letras, 2008.
_________. Aurora: Reflexões sobre preceitos morais. Tradução, notas e
posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2004.
_________. A gaia ciência. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza.
São Paulo: Companhia das letras, 2001.
_________. Além do Bem e do Mal. Prelúdio a uma filosofia do futuro.
Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
letras, 2002.
_________. Genealogia da Moral. Uma polêmica. Tradução, notas e posfácio
Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2008.
_________. Crepúsculos dos Ídolos. Ou de como filosofar com o martelo.
Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
letras, 2006.
_________. Nietzsche contra Wagner. Dossiê de um psicólogo. Tradução,
notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das letras,
2009.
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Email: bc.benoit@wanadoo.fr
RECEBIDO: Julho/2013
APROVADO: Agosto/2013
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