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As armas e a empresa do rei D. João II.

Subsídios metodológicos para o estudo da heráldica


e da emblemática nas artes decorativas portuguesas
Miguel Metelo de Seixas
Centro Lusíada de Estudos Genealógicos e Heráldicos da Universidade Lusíada | Escola Superior de Artes Decorativas da Fundação Ricardo
do Espírito Santo Silva | Bolseiro de Doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia

A s relações entre a heráldica e os estudos


sobre património têm sido regidas, até ao
presente e com raras excepções, sob o signo do mútuo
integradas em cursos superiores1.
Ora, no actual panorama académico português,
esta realidade só se verifica na Escola Superior
alheamento. Ora a heráldica, longe de constituir de Artes Decorativas (disciplina de Introdução
apenas um conjunto de normas e de conhecimentos à Heráldica do curso de licenciatura em Artes
abstractos, manifesta-se essencialmente por via de Decorativas Portuguesas). A investigação heráldica
representações plásticas; por isso, o heraldista deve encontra-se, contudo, representada a nível
estar atento não somente ao teor das armas que estuda, universitário por duas outras instituições (o Centro
mas também aos seus usos práticos, concretos, Lusíada de Estudos Heráldicos e Genealógicos2, da
patrimoniais e artísticos. Só deste modo poderá o Universidade Lusíada de Lisboa, criado em 1998; e o
estudioso entender o seu objecto de estudo não de Instituto de Genealogia e Heráldica da Universidade
forma abstracta, mas como documento histórico. Lusófona do Porto3, de 2006) e tem sido objecto
Por outro lado, a tão usual presença da heráldica nos de teses ou dissertações de licenciatura, mestrado
objectos artísticos ou de uso quotidiano raramente
despertou nos respectivos historiadores uma atenção
sistemática e categórica, que se pode revelar
essencial não só para problemas de identificação e
datação, como mesmo para o pleno entendimento das
manifestações patrimoniais. De forma geral, para o
estudioso de outras matérias, a heráldica apresenta
dois níveis distintos: o primeiro diz respeito à
compreensão e correcto uso do aspecto técnico da 1
GADO, Francesca Fumi Cambi, “Araldica ed emblematica
linguagem heráldica (o que se chama, tecnicamente, nelle arti figurative e decorative: lineamenti di metodologia
interdisciplinare”, in L’identità genealogica e araldica. Fonti,
o brasão), e é possível dominá-lo mediante simples metodologie, interdisciplinarità, prospettive. Atti del XXIII
recurso à bibliografia geral; o segundo corresponde Congresso internazionale di scienze genealogica e araldica. Torino,
Archivio di Statto, 21-26 settembre 1998, Roma: Ministero per i
ao conhecimento da base metodológica apropriada, ao Beni e le Attività Culturali / Ufficio Centrale per i Beni Archivistici,
domínio dos instrumentos bibliográficos específicos, 2000, vol. I, pp. 181-202, p. 182.
2
Para cujos projectos de investigação, actividades e produção
à definição das problemáticas, e este segundo nível editorial se poderá consultar a respectiva página electrónica, inserida
depende da existência de cadeiras de heráldica na da Universidade Lusíada de Lisboa, bem como os sucessivos
textos da rubrica “Actividades do CLEGH” publicados na revista
Tabardo, órgão deste Centro, editado desde 2002 (números 1 a 4).
3
Entidade editora da Revista Lusófona de Genealogia e Heráldica,
em actividade desde 2006 (números 1 a 3). O IGHULP veio
substituir o Centro de Estudos de Genealogia, Heráldica e História
da Família da Universidade Moderna do Porto, criado em 1998 e
extinto em 2003, cujas actividades e publicações estão patentes na
revista Genealogia & Heráldica, activa entre 1999 e 2003 (números
1 a 10).
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As armas e a empresa do rei D. João II. As armas e a empresa do rei D. João II.
Subsídios metodológicos para o estudo da heráldica Subsídios metodológicos para o estudo da heráldica
e da emblemática nas artes decorativas portuguesas e da emblemática nas artes decorativas portuguesas
Miguel Metelo de Seixas Miguel Metelo de Seixas
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e doutoramento4. Fora do âmbito universitário, a em artigos publicados de forma avulsa6. Quanto e inquestionavelmente projectada como responsável Coutinho, de 1484. Em ambos estes exemplares,
heráldica tem sido cultivada, em Portugal, no seio de à preocupação de enquadramento metodológico crucial na aventura dos Descobrimentos. Em segundo verifica-se que os escudetes laterais se encontram
diversas associações culturais5. A preocupação com o da heráldica aplicada aos estudos de arte ou de lugar, porque quer as armas, quer a empresa deste apontados ao centro e que a bordadura está carregada
estabelecimento de uma metodologia da investigação património, pode afirmar-se que, em Portugal, o tema rei foram já largamente estudadas. A ambição desta com as quatro pontas de uma cruz florenciada de
heráldica tem-se restringido, contudo, aos meios foi lançado de forma genérica por António Machado comunicação reside em pretender mostrar que, verde (a cor é visível na iluminura). Por trás destas
universitários, estando presente, naturalmente, nos de Faria7 e depois retomado, ampliado e aplicado ao partindo de uma metodologia diferente, se pode dissemelhanças, aparentemente menores, oculta-se
instrumentos para obtenção de graus, mas também estudo de casos concretos por José Custódio Vieira lançar nova luz sobre uma temática aparentemente uma realidade complexa e profunda, pois não será
da Silva8 e Miguel Metelo de Seixas9. tão batida. arriscado afirmar que a questão heráldica, enquanto
Com o fito de contribuir para a suplantação desta Tome-se como ponto de partida o medalhão simbólica da dinastia real e do poder régio, constituiu
lacuna, a presente comunicação revê-se no desafio Della Robbia com as armas reais10, com a seguinte uma das preocupações de D. João II, patente logo no
de tentar definir uma metodologia heráldica aplicada leitura heráldica: de prata, cinco escudetes de azul início do seu reinado e então tornada objecto de lata
4
No panorama universitário português, a primeira dissertação
de licenciatura consagrada à heráldica, apresentada por António às artes decorativas, tendo como ponto de partida em cruz, cada escudete carregado de cinco besantes discussão.
Miguel da Silva Vasconcelos Porto em 1937, tinha como tema “A
Heráldica e a Etimologia (Subsídios para o estudo das influências a análise de um caso concreto. Escolheram-se para do campo, bordadura de vermelho carregada de Com efeito, data do reinado deste soberano um
entre a etimologia popular dos nomes das cidades e vilas de
Portugal, e a origem dos seus brasões)”. A heráldica só voltou a esse efeito as armas e a empresa do rei D. João II. Tal sete castelos de ouro (Fig. 1). Ora, o ordenamento momento crucial para a definição da semiótica das
ser tema de provas académicas nas seguintes circunstâncias:
com a dissertação de licenciatura O Livro do Armeiro-Mor. Uma opção foi ditada por duas razões. Em primeiro lugar, das armas aí representadas não corresponde aos armas reais. Tanto a crónica de Rui de Pina como a
Interpretação Histórico-Cultural de Francisco de Simas Alves de a escolha recaiu sobre uma personagem tradicional primeiros usos heráldicos do rei D. João II. Com de Garcia de Resende relatam que D. João II reuniu
Azevedo, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa, em 1966; com as dissertações de mestrado O Vestuário efeito, existem vestígios de outras armas, tal como um conselho em 1485 na cidade de Beja, com o fito
e a Heráldica de Paulo José Morais‑Alexandre, e Fidalgos de
Cota de Armas do Algarve, de Miguel Maria Telles Moniz Côrte- figuram na iluminura do Livro das cortes primeiras de discutir a nova moeda que iria cunhar e a reforma
-Real, ambas defendidas na Universidade Lusíada de Lisboa,
respectivamente em 1999 e em 2001; e, por fim, com a tese de 6
Assinalem-se três casos: CIGNONI, Mario, “Elementos de feitas per ho muy alto e muy poderoso Senhor El das armas reais, do que resultou a exclusão da cruz
doutoramento A Heráldica em Portugal. Raízes, Simbologias e metodologia heráldica”, Tabardo, n.º 3, 2006, pp. 11-28; LIMA,
Expressões Histórico-Culturais de Manuel Artur Norton aprovada rey Dom Joham segundo per graça de Deus Rey da Ordem de Avis e o endireitamento das quinas
João Paulo de Abreu e, “Ensaio de um método para o estudo da
pela Universidade do Minho em 2003. Com excepção do primeiro, heráldica medieval portuguesa. Dois túmulos armoriados da cidade de Portugal e dos Algarves d’aquem e d’alem mar laterais. Ambos os cronistas dedicam ao assunto um
todos estes trabalhos foram, pelo menos em parte, publicados. Cfr. de Beja e outro da sé patriarcal de Lisboa dos séculos XIII e XIV”,
AZEVEDO, Francisco de Simas Alves de, Uma interpretação Tabardo, n.º 3, 2006, pp. 199-222; e, por fim, SEIXAS, Miguel em Africa […] datável de cerca de 1482 (Fig. 2)11; capítulo inteiro (na crónica do primeiro, é o capítulo
histórico-cultural do Livro do Armeiro-Mor. Fastos significativos Metelo de; GALVÃO-TELLES, João Bernardo, “Em redor das
da História da Europa reflectidos num armorial português do armas dos Ataídes: a problemática da família heráldica das bandas”, ou no selo12 apenso à sentença contra D. Guterre XIX, intitulado “Mudança que ElRey fez no Escudo
século XVI, Lisboa: Edição de Francisco Alberto d’Almeida Alves Lisboa: separata de Armas e Troféus, 2008, texto decorrente do
de Azevedo; MORAIS-ALEXANDRE, Paulo J., O Vestuário na inventário heráldico do concelho de Óbidos, actualmente em curso real, e fazimento de novas moedas”; na do segundo,
Heráldica, Lisboa: Edições Universidade Lusíada, 2000; CÔRTE- sob a responsabilidade do Centro Lusíada de Estudos Genealógicos
-REAL, Miguel Maria Telles Moniz, Fidalgos de Cota de Armas é o capítulo LVII, “Da mudança que el Rey fez no
e Heráldicos. 10
Sobre as diversas obras encomendadas ao atelier Della Robbia
do Algarve, Lisboa: Edição do Autor, 2003; NORTON, Manuel escudo real de suas armas, e das nouas moedas que
Artur, A Heráldica em Portugal. Raízes, Simbologias e Expressões
7
FARIA, António Machado de, “A Heráldica na Decoração”, para a igreja da Madre de Deus, das quais sobressaem três peças
in BARREIRA, João (direcção), Arte Portuguesa. As Artes com motivos heráldicos ou emblemáticos relacionados com D.
Histórico-Culturais, Lisboa: Dislivro Histórica, 2004, 2 vols.
Decorativas, Lisboa: Edições Excelsior, s.d., pp. 5-18. João II (o medalhão em apreço, outro com a empresa do pelicano, mandou fazer”), começando ambos por indicar as
(obra a que foi acrescentado um terceiro volume em 2006, como
complemento do texto apresentado como tese). 8
SILVA, José Custódio Vieira da, “A importância da Genealogia e e o frontal de sacrário), hoje guardadas no Museu Nacional de Arte circunstâncias da exclusão da cruz da Ordem de Avis:
da Heráldica na representação artística manuelina”, in O Fascínio Antiga, veja-se DIAS, Pedro, A Importação de Esculturas de Itália
5
Das quais a mais antiga é o Instituto Português de Heráldica, nos Séculos XV e XVI, Coimbra: Livraria Minerva, 1987, pp. 53-67.
editor da revista Armas e Troféus. Assinale-se ainda a existência do Fim. Viagens pelo final da Idade Média, [Lisboa]: Livros
da Secção de Heráldica e Genealogia da Sociedade de Geografia Horizonte, [1997], pp. 131-151. 11
DGA/TT, Cortes, mç. 3, n.º 5. Cfr. Luzes e Sombras em D. João
de Lisboa, a Secção de Heráldica da Associação dos Arqueólogos 9
SEIXAS, Miguel Metelo de, Heráldica e Património, Lisboa: II, Lisboa: Arquivos Nacionais / Torre do Tombo, 1995, p. 21 (n.º
Portugueses, e a Academia Lusitana de Heráldica, nenhuma das separata de Armas e Troféus, 2000-2001; IDEM, Alguns achados 8) e reprodução fotográfica entre as pp. 18-19.
quais tem publicação periódica própria. Cfr. GAMA, Luís Filipe de interesse heráldico recolhidos nas escavações arqueológicas 12
DGA/TT, Gavetas, 2, mç. 2, doc. 44. Cfr. Luzes e Sombras…, p.
Marques da, “A Genealogia em Portugal. Da Idade Média ao Século de Torres Vedras, Lisboa: separata de Armas e Troféus, 2002- 22 (n.º 13) e reproduções fotográficas entre as pp. 22-23 e a seguir à
XX”, in HENRIQUES, Maria de Lurdes, Olhares Cruzados entre -2003; IDEM, Contributo para o estudo do sistema de diferenças p. 54. Trata-se da “sentença régia de cárcere perpétuo e confisco de
Arquivistas e Historiadores: Mesas-Redondas na Torre do Tombo, da Casa Real portuguesa: os botões esmaltados armoriados da bens contra D. Guterre Coutinho, comendador da vila de Sesimbra,
s.l.: Instituto dos Arquivos Nacionais / Torre do Tombo, 2004, pp. cruz processional de Santo André de Mafra, Lisboa: separata de por aleivosia e traição contra o rei e o príncipe D. Afonso, e a paz
113-118. Tabardo, 2006. dos Reinos, na conjura liderada por D. Diogo, duque de Viseu”.
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As armas e a empresa do rei D. João II. As armas e a empresa do rei D. João II.
Subsídios metodológicos para o estudo da heráldica Subsídios metodológicos para o estudo da heráldica
e da emblemática nas artes decorativas portuguesas e da emblemática nas artes decorativas portuguesas
Miguel Metelo de Seixas Miguel Metelo de Seixas
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Rui de Pina As explicações de Rui de Pina e de Garcia de Rui de Pina Lopes de Chaves18. Nestas, mercê da condição do seu
“A primeira mudança que fez foy, que tirou do dicto Escudo Resende revestem-se do maior interesse, pois “Outro sy porque dos cinquo Escudos, do meo do escudo, autor como secretário particular dos reis D. Afonso V
a Cruz verde da Ordem d’Avis, que n’elle por grande erro, que fazem cruz, os dous das ilhargas jaziam derribados, com
demonstram a profunda preocupação de ordem e D. João II e outrossim como notário público geral
como parte d’armas sustanciaaes, andava já encorporada; as pontas atravees pera a cruz, o que era contra regra dereita
porque ElRey Dom Joham o primeiro seu Bizavoo, ante que
semiótica subjacente à questão da retirada da cruz da d’armas, e parecia significar alguma grande quebra, ou rota
do reino, transparece um conhecimento íntimo dos
devidamente, e per autoridade Apostólica se intitolasse Rey dos Ordem de Avis, que D. João I havia juntado à figuração recebida contra si em batalha campal; o que nõ era: ElRey outro assuntos da governação, fornecendo um ponto de
Regnos de Portugal, e do Algarve, era Mestre d’Avis: e despois das armas reais. Em primeiro lugar, os cronistas si por tirar esta sospeita, e achaque, mandou assentar todolos vista inusitadamente próximo dos mecanismos de
de ser Rey tomou por devaçam da Ordem, asentar o dicto advertem que o fundador da dinastia adoptou a dita escudos direitos, e com as pontas pera fundo, como devida, e tomada de decisões políticas. Álvaro Lopes relaciona
Escudo de Portugal sobre a Cruz verde, com as pontas della naturalmente devem andar, e asy andam agora.”15
cruz fora do escudo, como era hábito nos membros a resolução definitiva de reforma das armas reais
fora do Escudo por nõ parecer da essencia delle, como ainda em
suas Reaaes, e muy excellente sepultura oge em dia pareça. E
deste género de congregações religioso-militares, e com a assunção do título de senhor da Guiné, que D.
por especial gosto pela insígnia duma ordem de que Garcia de Resende João II passou a ostentar por decisão tomada em Beja
despois por negrigencia, e pouco aviso dos pintores, e oficiaaes,
“E assi mandou mudar os cinco escudos de dentro, porque os
foy por longo tempo, e por erro metida dentro do Escudo; e por era mestre. A inclusão da cruz no interior do escudo a 25 de Março de 1485, depois de se ter “sobresto
dous das ilhargas andauão atrauessados com as pontas debaixo
tirar este inconveniente que parecia labeeo, e magoa d’armas, terá ocorrido posteriormente (repare-se que os autores altercado se se chamaria Rej de Guine e emfim foj
pera o do meio, que parecia cousa de quebra, e os pos dereytos
ElRey a mandou tirar de todo.”13 chamam a atenção para uma prova material dos usos acordado que se chamasse senhor.”19 O relato do
com as pontas pera baixo, da maneira que agora andão.”16
de D. João I, cuja sepultura ostenta a cruz por baixo secretário do rei, embora breve, revela abundância
Garcia de Resende e fora do escudo), por erro, devido ao descuido ou de informações do maior interesse:
A atenção dos autores desta segunda parte da
“Em Beja teue el Rey Conselho sobre as moedas que auia de
à ignorância dos artistas. Ora, Pina e Resende não reforma das armas reais, na óptica dos cronistas,
fazer, e ainda não tinha feitas, pêra as quaes anouuou, e ordenou
algumas cousas no Real escudo de suas armas. E a primeira
centram as suas reflexões nas questões técnicas do centrou-se no significado que o observador poderia “Na mesma era detreminou elRej de
mudança foy, que tirou do dito escudo a CRVZ verde da ordem brasão, no seio das quais poderiam apontar o facto de atribuir à posição dos escudetes, considerada anormal correger o escudo das armas do Rejno
Dauis, que nelle por grande erro, como parte darmas substanciaes, a sobreposição da cruz de verde sobre a bordadura de à luz dos princípios heráldicos então vastamente sobre a qual cousa hauia tres annos que
andaua ja encorporada, porque el Rey dom Ioão o primeiro seu vermelho constituir uma infracção à lei dos esmaltes; por uezes se tiuerão grandes conselhos
difundidos pelos oficiais de armas. Mais uma vez,
visauo, antes que deuidamente, e por autoridade Apostolica
antes indicam um erro de essência, já que as armas a preocupação essencial parece ser a de vincar o sendo eu nelles prezente e o que mais nisto
se intitulasse Rey dos Reynos de Portugal, e do Algarue, era
Mestre Dauis. E depois de ser Rey tomou por deuação da ordem
assim ordenadas misturavam a heráldica dinástica carácter das armas plenas, isto é, desprovidas de apontej por algum conhecimento que do
assentar o escudo das armas de Portugal sobre ha CRVS verde, com as insígnias de uma instituição religiosa, que qualquer elemento heterogéneo, que permitam officio d armarja tinha e com conselho e
com as pontas della fora do escudo na bordadura, como ainda era distinta da Coroa. Mais ainda, a inclusão da identificar de imediato o rei de Portugal como chefe pareçer de Rej darmas e ajuda nas artes20
em suas obras, e muy excellente sepultura no Mosteyro da cruz poderia parecer ao observador uma diferença primejras que fez depois do falecimento
incontestável da sua Casa e da sua linhagem.
Batalha oje em dia se ve. E depois por descuydo, ou pouco auiso
heráldica, acrescentada como forma de assinalar que Mas, como apontou o conde de Tovar17, existe uma delRej seu Padre per alguns procuradores
dos Reys darmas, andou assy muyto tempo em vida del Rey
dom Duarte, del Rey dom Affonso, e por tirar isto que parecia
o utente daquele escudo, não ostentando as armas outra fonte explicativa da reforma das armas reais
mal el Rey a mandou então tirar de todo fora.”14
plenas, não era chefe de linhagem. empreendida por D. João II: as memórias de Álvaro
Em relação ao segundo aspecto da reforma das 18
Sobre o códice e o seu autor, vejam-se as considerações de
Anastácia Mestrinho Salgado e Abílio José Salgado patentes
armas reais, o endireitamento dos escudetes laterais, na “Introdução” à edição integral destas memórias. CHAVES,
Álvaro Lopes de, Livro de Apontamentos (1438-1489). Códice
Rui de Pina e Garcia de Resende tecem considerações 443 da Colecção Pombalina da B. N. L. (introdução e transcrição
15
PINA, Rui de, Op. Cit., p. 933. de Anastácia Mestrinho Salgado e Abílio José Salgado), Lisboa:
13
PINA, Rui de, Crónicas, Porto: Lello & Irmãos Editores, 1977, análogas: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1983, pp. 13-34.
16
RESENDE, Garcia de, Op. Cit., p. 89.
p. 933. 19
CHAVES, Álvaro Lopes de, Op. Cit., p. 257.
17
TOVAR, Conde de, “As memórias de Álvaro Lopes, secretário
14
RESENDE, Garcia de, Crónica de D. João II e Miscelânea, de el-rei D. João II”, in Estudos Históricos, Lisboa: Academia 20
Sic. Pelo teor do texto a seguir, faria sentido que esta palavra
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, [1991], pp. 88-89. Portuguesa da História, 1961, tomo I, pp. 153-171. fosse cortes e não artes.
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As armas e a empresa do rei D. João II. As armas e a empresa do rei D. João II.
Subsídios metodológicos para o estudo da heráldica Subsídios metodológicos para o estudo da heráldica
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Miguel Metelo de Seixas Miguel Metelo de Seixas
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do Rejno foj acerqua dello apontado que quatrocentista. da não criação e da não incorporação das armas insígnias dum conjunto de territórios governados
ho deuia de fazer e sobristo ouue asaz d Mais adiante, Álvaro Lopes de Chaves revela dos domínios ultramarinos. Talvez a valorização da pela mesma dinastia, mas antes o símbolo de uma
apontamentos de pro e de contra e em outro tópico discutido nos referidos conselhos: origem milagrosa das armas reais, semelhante à que entidade abstracta, dotada de continuidade histórica
comcrusão foj detreminado que tirasse a se verificava no caso francês24, levasse à preferência e encarnada na dinastia reinante e na pessoa do
Cruz uerde d Auis que elRej Dom João “E alem disto erão de parecer que se por não as misturar com heráldica por assim dizer monarca. Na verdade, parece certo encontrarmo-nos
seu visauo posera nas armas e mais que os deuião de tomar armas d alem maar por profana. Por outro lado, atente-se que Álvaro Lopes diante dos primórdios duma heráldica da Coroa.
dous escudos das jlharguas que andauão rezam do titulo de Guinea e elRej acordou declara que o rei, apesar da decisão que acabou A decisão de D. João II teve uma segunda
lançados de ilhargua se endirejtassem e de somente tomar o titulo de senhor de por tomar, não rejeitou liminarmente a ideia das consequência, decorrente da primeira, que veio a
todos cinquo andassem direjtos, e assj se Guine sem armas della nem dalem maar e armas ultramarinas, protelando-a apenas para outro constituir uma característica própria da simbólica
fez.”21 que fiquasse pera se alguma uez passasse momento mais propício e “honesto”. Não é claro o do Estado português. Com efeito, se as armas reais
alem e tomasse algum outro luguar que sentido que se deve dar à palavra “honesto”, que o passaram a representar não só a dinastia reinante, mas
Antes de mais, o autor declara-se testemunha entam pareçeria mais honesto tomar armas secretário aplica ao pensamento de D. João II. Mas também um conceito mais abstracto de monarquia
presencial de todo o processo, o que se justifica, atenta della com o titolo que tinha.”22 pode aventurar-se uma conjectura: talvez repudiasse dotada de continuidade histórica, então o símbolo
a sua condição de secretário régio, pelo que está em a ideia de criar armas novas para depois as incorporar, deste conceito devia, ele também, perpetuar-se sem
condições de fornecer uma visão precisa de como Ora, a hipótese de incorporação de armas pois tal procedimento ia contra os princípios da alterações. Desta forma, assegurou-se às armas
tudo decorreu. Assim, atente-se no facto de o assunto correspondentes ao senhorio ultramarino da Guiné conquista e da ostentação de insígnias tomadas ao reais uma permanência espantosa: na sua essência,
ter sido proposto, originariamente, por procuradores revela uma tentativa para dotar a heráldica régia inimigo25. Neste contexto, o rei, como sugere Álvaro elas mantiveram-se em vigor até 1816. Mais ainda,
nomeados para as primeiras cortes reunidas por de um simbolismo territorial inédito. A operação Lopes, entenderia ser mais prudente ficar à espera excluindo o interregno do Reino Unido (1816-
D. João II em 1482, tendo-se tornado objecto de reveste-se de um carácter inusitado, uma vez que de tomar um território ultramarino prestigioso e que -1826), as armas reais portuguesas permaneceram
discussão em sucessivos e numerosos conselhos que não existia heráldica dos ditos territórios africanos23. já tivesse armas atribuídas. Qual? Há duas respostas como símbolo do Estado até aos nossos dias, não
se prolongaram até ao ano de 1485. A alteração das Seria portanto necessário proceder primeiro à possíveis: a onírica Índia, cujas armas imaginárias obstante ter havido, entretanto, a proclamação dum
armas reais era portanto entendida como assunto de criação das armas destas conquistas ultramarinas, há muito povoavam os armoriais europeus26, ou regime republicano que atacou de frente a heráldica,
soberania, não como mera questão dinástica. Por isso para depois incorporar essa heráldica no escudo Jerusalém, anseio central do espírito de cruzada. entendida como abominável reminiscência feudal.
o processo de reforma acabou por se revelar moroso, do rei de Portugal. Contudo, por decisão tomada Seja como for, a opção de D. João II revelou-se O que significa que o escudo das armas reais se
obrigando à realização de “grandes conselhos” e em 1485, o rei optou por não criar tal heráldica capital para o futuro da heráldica estatal portuguesa. manteve inalterado, na sua essência, ao longo de meio
despertando acesa polémica. Outros dados patentes ultramarina nem, consequentemente, incorporá-la Ao enveredar pela exclusão duma heráldica de milénio. O contraste com a restante simbólica estatal
neste texto apontam para a intervenção de um rei nas armas reais. Não se conhecem os motivos que teor territorial, D. João II reforçou o carácter e dinástica europeia é flagrante: na maior parte das
de armas, ou seja, um profissional do brasão, bem levaram à decisão tomada por D. João II no sentido institucional das armas reais. Não eram meras monarquias, as armas régias foram mudando ao sabor
como para o domínio da matéria heráldica por parte das alterações dinásticas, das conquistas ou perdas de
do próprio Álvaro Lopes, íntimo colaborador de territórios, das alianças e das pretensões. O escudo
dois monarcas; ambos estes factos indiciam o peso
22
IDEM, Ibidem, p. 258 real português manteve-se incólume.
24
Cfr. PINOTEAU, Hervé, La Symbolique Royale Française.
23
As primeiras armas de potentados da África equatorial foram Ve – XVIIIe siècles, La Roche-Rigault: PSR Éditions, 2003.
que a cultura heráldica tinha na corte portuguesa criadas por D. João II e por D. Manuel I, destacando-se o caso A reforma das armas reais foi difundida por
do reino do Congo. Cfr. SEIXAS, Miguel Metelo de, “As
25
Cfr. SEIXAS, Miguel Metelo de, As armas municipais de
armas do rei do Congo”, in Os Descobrimentos e a Expansão Pinhel, Lisboa: separata de Armas e Troféus, 2004. diversos tipos de manifestações que propalavam a
Portuguesa no Mundo. Curso de Verão 1994. Actas. Lisboa: 26
AZEVEDO, Francisco de Simas Alves de, Uma interpretação soberania régia. Desde logo, como relatam Rui de
21
IDEM, Ibidem, pp. 257-258. Universidade Lusíada, 1996, pp. 317-346. histórico-cultural…, pp. 103-104.
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Pina e Garcia de Resende27, pela produção de novas mais nem menos dos que ora sam acompanhem a Afonso, e diz-lhe que tal diga que venha do rei D. João II não constitui mera
espécies monetárias: o justo, o espadim (também dita bordadura.”30 Desta transcrição se pode deduzir logo com sua gente combater a cidade de exibição decorativa. Na realidade,
chamado meio justo pelo seu valor relativo) e o o cuidado posto pelo monarca na cunhagem da nova Coimbra, sobre que há tanto tempo está. funciona como complemento perfeito do
cruzado. Em todos estes numismas, as armas reais moeda, e que os cunhos abertos para esse efeito E de [assentar] o combate por tal porta. milagre do apóstolo. Ambos actuam como
aparecem conforme o modelo determinado em 1485, deviam seguir um desenho anexo à missiva régia. E eu, a essas horas, serei ali com ele, da indicadores explícitos dos propósitos que
com o escudo direito e tendo como único ornamento No rol das representações heráldicas como parte de dentro, e lhe abrirei as portas, e presidiram à sua preparação.”33
exterior a coroa real aberta (Fig. 3)28. A escolha deste manifestação do poder régio, destaca-se pelo nos mouros faremos tais estragos, que a
instrumento de afirmação e difusão da reforma das seu simbolismo a iluminura que abre o códice cidade ficará por sua.» […] E foi certo Pode acrescentar-se que o retrato do rei com
armas reais prende-se com a reserva do jvs monetae vulgarmente conhecido como Livro dos Copos que assim aconteceu. E, dali em diante, as insígnias de seu poder (coroa, manto, espada)
(ou seja, a capacidade de cunhar moeda) como direito (Fig. 4)31. Este cartulário da Ordem de Santiago, nas pelejas sempre chamaram por ele.”32 é completado pela figuração das armas reais na
que, no reino de Portugal, desde sempre pertencera organizado por Álvaro Dias de Frielas, começa com modalidade reformada, ou seja, livres de qualquer
exclusivamente ao rei29. Mas além de manifestação um trecho alusivo a D. Afonso IV: estava o rei a Como explica Luís Adão da Fonseca, a inclusão suspeita que pudesse pesar sobre a legitimidade e
de um direito que, como exclusivo régio, indicava cercar Coimbra, e o bispo desta cidade escarneceu de deste relato lendário, originalmente referente à alcance absoluto do poder. A figuração do rei a segurar
uma soberania não partilhada, a moeda apresentava umas mulheres que estavam a entoar uma cantiga em conquista de Coimbra pelo rei Fernando I de Castela o escudo das suas armas, não sendo absolutamente
também a vantagem de uma ampla circulação dentro louvor de Santiago guerreiro: e Leão e agora transposto para o cenário das guerras inédita pois já aparecera na numária de D. Fernando
do reino e mesmo, por vezes, fora dele. Nesse sentido, civis de D. Afonso IV, não é gratuita: depois dos graves I, reveste-se aqui de nova intensidade e dimensão,
as espécies monetárias emitidas por D. João II, objecto “Diz a história que este [bispo] eleito se incidentes internos de 1484, D. João II pretendia uma vez que o monarca está literalmente apoiado
de apreço pelo seu intrínseco valor e qualidade do foi assim rindo para a sua pousada. E que reunir à sua volta todas as forças que sustentavam no escudo, sobre o qual assenta a mão direita com
metal, serviam de instrumentos privilegiados para foi certa coisa que naquela noite, jazendo a monarquia, a começar pela ordem de que ele fora a espada ao alto, embainhada, símbolo de um poder
propaganda da instituição régia e da pessoa do rei. na sua cama, acordando do primeiro sono, governador ainda enquanto príncipe. imanente, que existe mesmo quando não é exercido.
Álvaro Lopes de Chaves transcreve a carta enviada lhe apareceu o dito apóstolo Santiago, A mão esquerda ampara o escudo e o amplo manto
pelo monarca a Vasco Gonçalves, ordenando-lhe armado em cima de um cavalo branco, e “Nesta ordem de ideias, o relato acerca parece envolver em simultâneo o corpo do rei e as
a feitura das novas moedas com a recomendação com a sua lança na mão, com a bandeira do milagre de Santiago, que é descrito na suas armas, como se ambos se fundissem. A presença
expressa de que “os crunhos ha de ser desta manejra de Cristo. E disse ao eleito: «Diz, por introdução do códice, significa, na sua duma imagem tão marcante no cartulário da Ordem de
que por esta mostra uereis – a saber – a cruz fora, e que escarnecias das mulheres que me versão peculiar, a exaltação do poder régio Santiago marca uma inegável afirmação da soberania
que fiquem as quinas com a bordadura sem cruz, e cantavam a cantiga? Como tirar-me conferente de sentido a toda a recolha régia sobre esta instituição, com evidente escopo e
que sejam compassados os castellos que sem serem queres, tu, o nome que Jesus Cristo me documental que se segue. É por isso que, repercussões de ordem política. Assim se deverão
deu, de seu cavaleiro contra os mouros? sendo materialmente recolha mnemónica, considerar, caso a caso, as demais manifestações das
E, tanto que for manhã, vai logo a el-rei D. é formalmente sinal projectivo. Assim, a armas reais joaninas, tais como as que figuram em
27
PINA, Rui de, Op. Cit., p. 934; RESENDE, Garcia de, Op. Cit.,
pp. 89-90. circunstância da portada deste cartulário iluminuras nas crónicas e nos forais, ou em pedras de
28
VIEIRA, Rejane Maria Lobo (coordenação), Moedas Portuguesas incluir uma representação iconográfica armas dispersas, algumas ainda existentes nos nossos
da Época dos Descobrimentos da Coleção do Museu Histórico 30
CHAVES, Álvaro Lopes de, Op. Cit., p. 87.
Nacional (1383-1583), Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 31
DGA/TT, Ordem de Santiago, Casa Forte, n.º 272. Cfr. O
2000, pp. 102-123. Testamento de Adão. Arquivos Nacionais. Torre do Tombo. Lisboa.
29
Com a ressalva do chamado morabitino de Braga, cuja Setembro/Novembro, 1994, Lisboa: Sociedad V Centenario del
autenticidade suscitou tanta polémica entre numismatas e Tratado de Tordesillas / Comissão Nacional para as Comemorações 32
Apud FONSECA, Luís Adão da, D. João II, s.l.: Círculo de
medievalistas. dos Descobrimentos Portugueses, 1994, pp. 120-121. Leitores, [2005], pp. 214-215. 33
IDEM, Ibidem, p. 215.
8 9
As armas e a empresa do rei D. João II. As armas e a empresa do rei D. João II.
Subsídios metodológicos para o estudo da heráldica Subsídios metodológicos para o estudo da heráldica
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dias, como a da igreja de São Francisco de Évora34 força contra cinco reis potentíssimos; nesta é dirigida. Articulando os versículos de Isaías (que monarcas europeus, por conservar a integridade das
ou a da antiga cadeia desta mesma cidade , local 35
batalha, em que se houve com mais denodo se recordou do “Senhor que suscitou da terra o armas plenas, sem qualquer mistura, mensagem
emblemático quando se tem em mente a execução do que se podia exigir a um homem forte, [único] pastor das ovelhas”) com o salmo LXXI (“E aliás confirmada e reforçada pela presença dos dois
da justiça régia exemplar sobre o conspirador duque as lanças dos Bárbaros despedaçaram-lhe dominará de mar a mar, e desde o rio até aos confins tenentes tradicionais do escudo real português, tal
de Bragança; outras perdidas, como aquela que por cinco vezes os escudos que manejava da redondeza da terra…”), proclama a fidelidade do como figuram no medalhão Della Robbia: dois anjos,
ornamentava a fachada principal do hospital de com o braço esquerdo. Em consequência rei de Portugal.”37 mensageiros celestiais. Talvez apenas Jerusalém ou
Todos os Santos, em Lisboa, obra de maior vulto e desta singular e ínclita vitória, distinguiu O discurso de Vasco Fernandes de Lucena não a Índia pudessem vir a mover o rei noutro sentido,
empreendimento pessoal de D. João II. as insígnias e armas dos reis de Portugal inova em absoluto no que se prende com a associação caso a chegada dos portugueses a essas paragens se
Contudo, a propaganda política veiculada pelas com cinco escudos, cada um deles semeado da origem das armas reais com o milagre de revelasse como a concretização dum sonho primordial,
armas reais reformadas não se limitou ao próprio de cinco dinheiros, quando, como assaz se Ourique, já presente em alguma cronística anterior38. que poderia dar realidade ao escopo de cristianização
reino, mas está presente numa declaração formal sabe, até então havia um só escudo todo Mas, em contrapartida, constitui a primeira visão universal. Talvez então as armas reais viessem a
propalada na sede da Cristandade logo após a ele salpicado de moedas. Ora, os cinco articulada de um devir messiânico que, partindo receber um complemento digno da sacralidade que
definitiva decisão heráldica de 1485. Com efeito, escudos colocados na santíssima cruz da experiência fundadora de Ourique, se prolonga era inerente à sua origem, porque a incorporação das
tendo chegado a notícia do falecimento do Papa e os cinco dinheiros postos em cada um sem cessar pela história portuguesa, dotando-a insígnias hierolimitanas ou indianas exprimiria o
Sixto IV e da eleição de Inocêncio VIII, o rei enviou deles também a modo de cruz, que outra de um sentido transcendente e culminando com objectivo alcançado. Ou talvez a excepção reservada
ao novo pontífice uma embaixada constituída por D. coisa significam senão as trinta moedas a expansão ultramarina. É neste enquadramento por D. João II para potencial complemento das armas
Pedro de Noronha, Rui de Pina e Vasco Fernandes de prata, preço do sangue de Jesus Cristo, ideológico que se deve procurar a compreensão da reais portuguesas apontasse mais para a Península
de Lucena. O discurso proferido por este último na por que o hediondo Judas o entregou aos decisão tomada no mesmo ano de 1485 quanto à Ibérica do que para o Ultramar: caso se viesse a
presença do Papa e do colégio cardinalício refere de Judeus?»36 não inclusão de insígnias de outros territórios nas efectivar uma união das monarquias peninsulares na
forma resumida uma história do reino de Portugal, armas reais portuguesas, referida por Álvaro Lopes pessoa do seu filho herdeiro, o príncipe D. Afonso, ou
entendida sob a perspectiva da sua razão teleológica. Na sequência desta alusão a Ourique, Lucena de Chaves. As armas reais não só representam a dos descendentes que este houvesse de sua mulher, a
Referindo-se à batalha de Ourique e ao fundador da cita outras personagens, batalhas e feitos que se insígnia do pacto sagrado entre Cristo e a monarquia infanta D. Isabel (filha dos Reis Católicos), o escudo
dinastia e do reino, exclama: inscrevem na mesma sequência: D. Afonso IV e a no momento da fundação desta, em Ourique, mas régio não poderia deixar de assinalar a conjugação
batalha do Salado; D. João I e a conquista de Ceuta; espelham também, pela sua permanência histórica, dos principais reinos, como aliás já se verificara
“Nos campos de Ourique […] combateu o desastre de Tânger; o esforço marroquino de D. a ideia de continuidade do reino e da dinastia que nas armas de João I de Castela-Leão, pretendente ao
vitoriosamente com uma pequena e exígua Afonso V; as viagens atlânticas promovidas pelo o governa. E a dedicação dessa continuidade ao trono português, e de D. Afonso V, intitulado rei de
infante D. Henrique; a continuidade representada objectivo inicial: a defesa e dilatação da fé cristã. Castela e Leão39.
por D. João II, “E termina com uma evocação de Assim, compreende-se que D. João II tenha acabado
34
Sobre este edifício, cfr. SILVA, José Custódio da, “A Arquitectura claro teor messiânico, associando a monarquia lusa por optar, ao contrário da quase totalidade dos demais
Tardo-Gótica”, in CORREIA, João Rosado (coordenação), Vasco
da Gama e os Humanistas no Alentejo. De D. João II (1481-1495) ao pontificado de Inocêncio VIII, a quem a oração 39
Em ambos os casos, a tentativa de união dinástica foi assinalada
pela junção das armas reais portuguesas com as castelhano-leonesas.
a D. João III (1521-1557). O Pensamento e a Técnica. Do Tardo- Caso estas uniões tivessem resultado, a heráldica régia portuguesa
-Gótico ao Maneirismo, Monsaraz: Centro de Estudos Patrimoniais 37
FONSECA, Luís Adão da, Op. Cit., p. 82 teria passado a conformar-se com o modelo comum às restantes
Lusófonos da Fundação Convento da Orada, 2001, pp. 97-143, pp. 38
Como por exemplo a Crónica Geral de Espanha de 1344, o monarquias europeias, em que as armas assinalavam o domínio
105-107; IDEM, O Tardo-Gótico em Portugal. A Arquitectura no 36
Oração de Obediência ao Sumo Pontífice Inocêncio VIII dita por códice De Ministerio Armorum de 1416, a Crónica dos Sete de um determinada dinastia sobre um conjunto de territórios. Cfr.
Alentejo, [Lisboa]: Livros Horizonte, [1989], pp. 67-106. Vasco Fernandes de Lucena em 1485 (edição fac-similada, com Primeiros Reis de Portugal de 1419 ou a Crónica Breve de AZEVEDO, Francisco de Simas Alves de, “Meditações Heráldicas.
35
LIMA, João Paulo de Abreu e, Armas de Portugal. Origem. nota bibliográfica de Martim de Albuquerque e tradução portuguesa Santa Cruz de Coimbra de 1451. III. Ainda o esquartelado Castela-Leão-e-Portugal”, Armas e
Evolução. Significado, Lisboa: Inapa, 1998, pp. 91-152. de Miguel Pinto de Meneses), Lisboa: Edições Inapa, 1988, p. 20. Troféus, II série, tomo IV, 1963, pp. 176-178.
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As armas e a empresa do rei D. João II. As armas e a empresa do rei D. João II.
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Mas as armas representam o reino e só quando retomar a definição do marquês de Abrantes, beaucoup plus souple que les armoiries, mas não se estendeu se não a alguns membros da
associadas ao retrato, como no Livro dos Copos, mais dont la fonction n’était pas, comme alta nobreza, em contacto com a Corte. Conhecendo
poderiam designar o detentor específico e não o “é um emblema pessoal, normalmente celle des supports ou des cimiers, ainda grande voga no século seguinte, as empresas
cargo. Ora, no contexto renascentista de afirmação escolhido pelo próprio utente e que seja purement ornementale.”42 tenderam a decair no século XVII, e tornaram-se
progressiva do valor do indivíduo em detrimento a representação de um ideal de vida, muito raras, em Portugal, a partir de então.
da comunidade, e bem assim de personalização do moral ou religioso, motivo pelo qual mais As empresas afirmaram-se, pois, como uma Por via das empresas, começou a ser possível
poder nos monarcas que encarnavam o princípio razão possuem os que lhe atribuem por maneira de ultrapassar o sistema heráldico com o distinguir a pessoa individual do rei do cargo que
abstracto da soberania, chegariam as armas do reino designação o termo Tenção.”41 seu “caractère desséché, ses règles trop rigoureuses, ele desempenhava. Ao assumir o seu pilriteiro45, D.
para exprimir a totalidade da mensagem do poder son dessin froid et académique, son esprit sclérosé”43. João I passou a dispor de dois sinais de natureza
almejado, detido e exercido por D. João II? A resposta A empresa é composta, na sua forma completa, O Renascimento incutiu extraordinário vigor a esta distinta: por um lado, as armas reais, representativas
só pode ser negativa: a heráldica abandonara o carácter por três elementos: o corpo, figuração de ser(es) e/ moda, naturalmente porque as empresas permitiam da dinastia e da instituição régia; por outro, a sua
espontâneo dos seus primórdios, transformara-se num ou objecto(s); a alma, sentença composta por uma uma muito melhor expressão das ideias e dos ideais empresa, símbolo pessoal, denotativo de uma tenção
sistema rigidamente codificado, em que as mudanças palavra ou frase; e a erva, como o nome indica, um novos, e outrossim funcionavam como veículo de de vida, de um projecto de índole moral e política.
tinham passado a assumir um aspecto oficial, exemplar da flora. Existem, no entanto, empresas propaganda dos príncipes e como mostruários de As primeiras estavam destinadas a ser transmitidas
entregue à autoridade de profissionais especializados, compostas por apenas um ou dois destes elementos, erudição. a toda a dinastia, cabendo as armas plenas, símbolo
os oficiais de armas (passavantes, arautos e reis de ou por que só esses nos chegaram, ou por que essa Em Portugal, as empresas surgiram no reinado de da chefia da Casa, aos sucessivos detentores do título
armas). Para ultrapassar as limitações da heráldica era mesmo a sua constituição original. Com efeito, ao D. João I, tendo origem na própria família real, por régio. Salvo necessidade excepcional, as armas não
e para completar a mensagem impessoal das armas, contrário do que acontece na heráldica stricto sensu, influência inglesa. João de Gante, duque de Lancastre eram sujeitas a alterações substanciais: apenas se
surgiu um novo tipo de emblemática: as empresas. a composição das empresas é inteiramente livre, e pai de D. Filipa, foi com efeito um dos mais toleravam variações de estilo ou complementos que
Com efeito, data do início da dinastia de Avis não sendo sujeita a qualquer regra de estilização, de entusiastas adeptos das empresas, criando várias para não viessem alterar o ordenamento heráldico do
a separação nítida entre a heráldica dinástica e a proporções, de limitação de cores ou de figuras. si próprio e para a sua Casa, e divulgando este hábito escudo. As armas representavam pois a continuidade
emblemática pessoal dos membros da Casa Real. Aí residirá, porventura, a explicação para o sucesso pelas diversas cortes por onde passou. Não espanta dinástica e a permanência da instituição régia. Nesse
Esta emblemática pessoal exprimia-se por via das das empresas a partir do século XIV: pois que D. João I e toda a sua família imediata sentido, poder-se-á aventar a hipótese de as armas
empresas, moda que começou a vingar nas Casas tivessem aderido a esta moda, dando origem ao reais terem começado a funcionar, a partir de então,
reais e principescas europeias na segunda metade “le déclin du rôle militaire des armoiries primeiro conjunto de empresas portuguesas, notáveis não só como insígnias puramente dinásticas, mas
do século XIV. A partir de meados do século XIV, a et l’influence grandissante et desséchante pelo seu espírito criativo e pela inédita execução nos também como símbolo do conjunto das instituições
realidade heráldica europeia viu-se abalada por um des hérauts d’armes sur le développement túmulos do mosteiro de Santa Maria da Vitória44. No dirigidas pela Coroa. Com as devidas precauções,
fenómeno que a marcou até ao século XVIII e que de l’héraldique favorisèrent, vers le milieu século XV, o uso das empresas foi sendo divulgado, pode-se afirmar que as armas reais principiavam a
por vezes se prolonga até aos nossos dias: a moda du XIVe siècle, l’apparition d’éléments representar a monarquia.
para-heráldica das empresas40. Uma empresa, para emblématiques nouveaux, d’un emploi Reza a doutrina tradicional que as empresas, por
42
PASTOUREAU, Michel, Traité d'Héraldique, Paris: Picard, sua vez, como símbolos meramente pessoais, não
1994, p. 218.
43
IDEM, Ibidem, p. 219.
40
Cfr. SEIXAS, Miguel Metelo de, Aleo! Aleo! A empresa de 41
ABRANTES, D. Luís Gonzaga de Lancastre e Távora, Marquês 44
AVELAR, Henrique de; FERROS, Luís, As Empresas dos
D. Pedro de Meneses, primeiro conde de Vila Real, primeiro de, Introdução ao Estudo da Heráldica, Lisboa: Instituto da Cultura Príncipes da Casa de Avis, Lisboa: separata do Catálogo da XVII 45
PAÇO D’ARCOS, Isabel, O pilriteiro, empresa de D. João I,
governador de Ceuta, Lisboa: separata de Armas e Troféus, 2005. e da Língua Portuguesa, 1992, p. 73. Exposição de Arte, Ciência e Cultura, 1984. Lisboa: separata de Tabardo, 2006.
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As armas e a empresa do rei D. João II. As armas e a empresa do rei D. João II.
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eram transmitidas aos descendentes. Entendia-se que, mudou despois que foy Rey; e com ella Porém, atentando bem na frase de Resende, mister tua grey”, como vimos, na versão de Rui de Pina) veio
por via da empresa que escolhia (ao contrário das trouxe por letra correspondente aa piedosa será verificar que o cronista não diz que o rei tomou facilitar a interpretação política, aliás acicatada pela
armas, que lhe advinham por herança), o soberano morte do Pelicano que dizia: Por tua ley, e a empresa com tal significado; apenas alude ao facto extraordinária difusão de emblemas de simbolismo
lograva exprimir a sua individualidade. Parecia pois por tua grey.”47 de o amor demonstrado pelo rei com relação ao seu político no século XVII50. Sem pretender realizar o
natural que não só o rei como todos os membros povo se conformar com o simbolismo do pelicano. O levantamento das menções à empresa de D. João II,
da Casa Real assumissem empresas, as quais lhes Dos diversos elementos explicativos fornecidos trecho não pretende, portanto, assinalar uma relação atentemos porém na monumental obra de D. António
permitiam distinguir as suas pessoas individuais dos pelo cronista, retenham-se em primeiro lugar os causal: não é dito que D. João tenha assumido a Caetano de Sousa, que encerra o capítulo dedicado
títulos ou cargos que desempenhavam. Desta forma, dados de a empresa ter sido adoptada antes da empresa como sinal de qualquer desígnio político. a este rei com um parágrafo explicativo do seu
as empresas não funcionavam como substitutas das ascensão ao trono e “polla Princesa sua molher”, D. Há, isso sim, uma concordância: o amor do rei pelo emblema pessoal:
armas, mas antes como seu complemento. Assim foi Leonor, explicação à partida pouco nítida. Quanto ao seu povo, e os sacrifícios que fez por este, coincidiram
com o pilriteiro de D. João I, a hera de D. Duarte, o seu simbolismo, apenas se refere que a ave dilacera com o simbolismo do pelicano. “Teve ElRey por empreza hum Pelicano
rodízio de D. Afonso V46. o peito para sustento dos filhotes, que figuram no Os autores que se encarregaram de escrever sobre ferindo o peito com o bico, com esta letra:
Qual foi, então, o emblema que D. João II adoptou ninho, e que a essa imagem, de natureza piedosa, D. João II nas centúrias subsequentes trataram de Pela ley, e pela grey: Pro lege, & pro
como empresa? Diversos autores, tanto antigos como isto é, relacionada com a fé, se liga o mote “por tua ampliar a relação que Garcia de Resende timidamente Grege: dizendo, que pela Religiaõ, e por
modernos, escreveram sobre o assunto. Rui de Pina ley e por tua grey”. Note-se que Rui de Pina salienta esboçara. Foram impelidos, neste sentido, pela amor do seu Povo elle exporia a propria
consagra-lhe um curto trecho da sua crónica: a afeição que D. João tinha pela sua empresa, na construção da imagem historiográfica do monarca vida, pelos interesses de hum, e pela
qual, supostamente, se revia de algum modo. Mais como fundador da monarquia moderna, enaltecedor defensa de outro.”51
“ElRey em sendo Princepe tomou por lacónico se revela Garcia de Resende, que apenas se do papel da Coroa na sociedade, responsável pela
devisa, polla Princesa sua molher hum refere ao pelicano no final do retrato do rei que serve edificação dos alicerces do Estado e criador de uma A gravura com que o teatino acompanha este
Pelicano, Ave rompente sangue no peito, de prólogo à sua crónica: grandeza ultramarina que se viria a perpetuar pelos trecho inspira-se claramente no modelo fornecido
pera sostentamento, e criaçam de seus séculos. Estes autores foram também ajudados pela pelas obras de emblemática política, de assinalável
filhos, que no ninho tem consigo. E tanto “E assi fez, e ordenou outras muytas cousas alteração da alma da empresa tal como foi inscrita difusão na época.
foy de seu contentamento, que a nom de muyto proveito, e boa governança de no túmulo do rei no mosteiro de Santa Maria da Na historiografia mais recente, o simbolismo do
seus Reynos, em que mostrava o grande Vitória, em duas modalidades: pola ley e pola grey; e emblema pessoal de D. João II foi abordado quer por
amor que a seus pouos tinha, e bem pro lege et grege. Não é fácil datar estas inscrições; autores que traçaram a biografia deste rei, quer por
46
Sobre as empresas da dinastia de Avis até à época de D. João II, conforme ao Pelicano, que por deuisa atente-se porém que a legenda em latim corresponde heraldistas que se debruçaram sobre as empresas da
além da bibliografia citada nas notas anteriores, veja-se OLIVEIRA,
Humberto Mendes de, “O rodízio: empresa de D. Afonso V trazia.”48 às imagens latamente difundidas pelos tratados de
representada no convento de Santo António do Varatojo”, Torres emblemática a partir da segunda metade do século
Cultural, n.º 8, 1998, pp. 100-107; PAÇO D’ARCOS, Isabel, “O
rodízio de D. Afonso V” in SEIXAS, Miguel Metelo de; GALVÃO-
50
Cfr. ABREU, Ilda Soares de, Simbolismo e Ideário Político. A
Este trecho serviu de base para todas as posteriores XVI49. A omissão dos possessivos (“por tua ley e por educação ideal para o príncipe seiscentista em O Principe dos
-TELLES, João Bernardo (coordenação), Peregrinações heráldicas
Patriarcas S. Bento, pelo M.R. Padre Pregador Gera da Corte e
olisiponenses. A freguesia de Santa Maria de Belém, Lisboa: interpretações de cariz político: o pelicano, imagem Cronista Mor da Congregação, Frei João dos Prazeres, [Lisboa]:
Universidade Lusíada de Lisboa / Junta de Freguesia de Santa
Maria de Belém, 2005, pp. 235-236; PINTO, Augusto Cardoso, do sacrifício do monarca em prol do povo e da lei. Estar, [2000].
Subsídios para o Estudo das Signas Portuguesas. II. O Guião 49
Embora o primeiro destes tratados, da autoria de Andreas Alciati, 51
SOUSA, D. António Caetano de, Historia Genealogica da Casa
da Divisa de D. Afonso V, Lisboa: separata de Armas e Troféus, tenha sido publicado em 1531, foi na segunda metade deste mesmo Real Portugueza, desde a sua origem o presente, com as Familias
1933-1934; e SEIXAS, Miguel Metelo de, De Vermelho, um Leão século que tal género de obras começou a proliferar. Cfr. PRETO, illustres, que procedem dos Reys, e dos Serenissimos Duques de
de Ouro… Relações entre a heráldica de família e a heráldica do Jorge, Op. Cit., p. 78. O pelicano com a legenda latina figura, Bragança, justificada com instrumentos, e Escritores de inviolavel
Exército Português, Lisboa: Dislivro Histórica, 2007, pp. 118-152
47
PINA, Rui de, Op. Cit., p. 933. por exemplo, na Emblemata de Hadrianus Junius, publicada em fé, e offerecida a elRey D. Joaõ V. Nosso Senhor, Lisboa: Na
(capítulo “Empresas”). 48
RESENDE, Garcia de, Op. Cit., p. XXIII. Antuérpia em 1565, reproduzida em IDEM, Ibidem, p. 99. Officina de Joseph Antonio da Sylva, 1737, tomo III, p. 146.
14 15
As armas e a empresa do rei D. João II. As armas e a empresa do rei D. João II.
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Casa de Avis, existindo mesmo um estudo, da autoria dita ou homologa; por outras palavras, ao interesse como mais tarde hão-de escrever Diogo viu, escassas, radicando essencialmente nos textos
de Jorge Preto, especificamente dedicado à empresa do Estado que personifica.”54 Outro estudo, dedicado Lopes Rebelo, Gil Vicente, António de Rui de Pina e Garcia de Resende. Este último,
do Príncipe Perfeito. Este autor, após fornecer por Henrique de Avelar e Luís Ferros às empresas da Ferreira, Pedro de Andrade Caminha além do trecho em que relaciona o pelicano com
um enquadramento sobre o uso e significado das Casa de Avis, vem confirmar esta leitura: ou Diogo de Teive. […] Mas a tradição a atitude do rei para com o seu povo, descreve um
empresas na época em apreço e registar a explicação portuguesa no que se refere ao pelicano uso circunstancial do emblema nas festividades que
de Pina, analisa o possível simbolismo do pelicano “Ao tomar por corpo da sua divisa o junta as dimensões paternal e jurídica. decorreram em Lisboa por ocasião do casamento do
sob diversos pontos de vista. Em primeiro lugar, pelicano que é não só o símbolo da bondade […] O emblema do pelicano é contrário príncipe D. Afonso com a infanta D. Isabel:
como sinal de devoção amorosa, o pelicano “é um e do amor paternal, como também o da à impiedade e dureza dos tiranos que
símbolo de doação e auto-sacrifício, ou seja, de amor Sagrada Eucaristia e de Cristo crucificado, forneceram os modelos de Maquiavel, “E a segunda feyra primeiro dia das
no sentido mais lato e exaltante do termo, pelo que demonstra este Rei a sua atenção [sic] de pois, embora exprima a ambiguidade outauas se pos a tea na praça, que era por
se ajustaria bem, no caso de D. João, ao voto que se sacrificar até às últimas consequências entre a protecção [e] o mando, encerra a cima toldada de finos panos, sobre grandes
o cronista fez presidir à adopção da empresa”52, ou pelo cumprimento da Lei – aqui com a relação visceral – relação afectiva – entre mastos, e com infinitas bandeyras reaes. E
seja, o seu amor por D. Leonor. Na sua dimensão dupla acepção de divina e humana – e rei, lei e povo.”57 a tea era cuberta de panos finos verdes e
religiosa, o pelicano foi interpretado pelos bestiários pelo bem das gentes.”55 roxos, que erão as cores del Rey, toda de
medievais como símbolo “do amor divino, de No caso extremo, a empresa do rei serviu mesmo huma parte e da outra cheya de Pelicanos
caridade, de piedade, da Paixão do Salvador, do Este entendimento da empresa de D. João II, de cabeçalho e de leitmotiv a um estudo intitulado “O dourados, e bordados na tea, que parecia
mistério da Eucaristia, da Virgem Maria […], assim difundido pelas sucessivas histórias gerais de Senhor do Pelicano, da Lei e da Grei”58. Sem negar muyto bem.”59
como é associado, enquanto metáfora da solidão, ao Portugal, biografias e obras de cariz genealógico e o valor da associação entre a empresa do rei e a sua
modesto recato do nascimento de Jesus.”53 Por fim, heráldico, veio colar-se à imagem historiográfica actuação política, procuremos alargar o conhecimento Fornece-nos assim o cronista mais uma
o pelicano apresenta conotações políticas. Assim, o do rei56, dando origem a trabalhos de inserção do das menções existentes, averiguar as modalidades de informação, que completa a descrição da empresa:
mote, que o autor transcreve como “Pola minha ley emblema na doutrina política vigente na época. representação conhecidas, indagar acerca das fontes o pelicano é de ouro, acompanhado pelas cores
e pola minha grey” ou “Pola ley, pola grey”, tem Escreve a este respeito Margarida Garcez Ventura: coevas. Parece sobretudo importante vincar que a verde e roxo. Registe-se também o uso da empresa
“óbvia conotação política”, e por isso talvez “lhe análise simbológica não deve actuar em abstracto ou em ocasiões solenes e festivas, a par com as armas
tenha sido acrescentado em momento posterior, “É sabido que a imagem do pelicano é de forma retroprojectiva, mas antes ter sempre em reais, neste caso sob a forma de tecido bordado em
quando começou a partilhar as responsabilidades habitual no renascimento como símbolo consideração a cultura e a mentalidade da época. que as cores e a figura se deveriam repetir vezes sem
da governação com o pai, ou após a morte deste”, dos monarcas. Essa ave, que rasga o peito As referências documentais coevas são, como se conta. Existe, contudo, pelo menos outra referência
devendo-se, pois, entender neste sentido: “o rei auto- para alimentar os filhos, foi vista como documental que, embora indirecta, se reveste do
-sacrifica-se pelo seu povo e pelo bem comum, em a imagem da abnegação e do sacrifício maior interesse para a datação da empresa. Com
estrita e equânime obediência à lei que ele próprio régios. O rei seria pai e pastor dos povos, 57
VENTURA, Margarida Garcez, “Sistema de Representações do efeito, conforme aponta João Paulo de Abreu e Lima,
Príncipe Perfeito”, in MENDONÇA, Manuela (coordenação), O
Tempo Histórico de D. João II nos 550 Anos do seu Nascimento. Damião de Góis assinalou na sua crónica a existência
Actas. 2, 3 e 4 de Maio de 2005, Lisboa: Academia Portuguesa da de um rei de armas denominado Pelicano, ao serviço
História, pp. 101-115, pp. 113-115.
52
PRETO, Jorge, “A Empresa do Príncipe Perfeito”, in 54
IDEM, Ibidem, pp. 81 e 84. 58
COELHO, Maria Helena da Cruz, “O Senhor do Pelicano, da do príncipe D. João e “com denominação do corpo da
MENDONÇA, Manuela (coordenação), O Tempo Histórico de D. Lei e da Grei”, in MENDONÇA, Manuela (coordenação), O Tempo
João II nos 550 Anos do seu Nascimento. Actas. 2, 3 e 4 de Maio de 55
AVELAR, Henrique de; FERROS, Luís, Op. Cit., p. 230. Histórico de D. João II nos 550 Anos do seu Nascimento. Actas. 2,
2005, Lisboa: Academia Portuguesa da História, pp. 71-100, p. 81. 56
Para uma visão crítica actualizada desta bibliografia, cfr. 3 e 4 de Maio de 2005, Lisboa: Academia Portuguesa da História,
53
IDEM, Ibidem, pp. 82-83. FONSECA, Luís Adão da, Op. Cit., pp. 7-18. pp. 157-180. 59
RESENDE, Garcia de, Op. Cit., p. 177 (cap. CXXVI).
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As armas e a empresa do rei D. João II. As armas e a empresa do rei D. João II.
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sua empresa”, enviado por D. Afonso V em missão à dextra, posição mais honrosa), acompanhando as da Madre de Deus, e que completava o das armas das espécies monetárias que o rei emitiu na sequência
diplomática junto do duque Francisco II da Bretanha armas da rainha (por serem casas de sua fundação). reais já aqui mencionado. Não existe certeza acerca da reforma das armas reais, e a cujos cunhos tão
no ano de 147660. Este trecho revela, portanto, que Retenhamos esta questão para futura meditação. da data de realização deste tondo, embora seja minuciosa atenção dedicou, o verso exibe a figura do
neste ano já o príncipe havia assumido a sua empresa, Outras fontes patrimoniais da empresa de D. João incontestável que se trate de uma encomenda da soberano representado em majestade, sentado no seu
o que não colide com a informação dada por Rui de II residem nas iluminuras. Já tivemos ocasião de rainha D. Leonor, já depois de viúva. O pelicano, trono, coroado, vestido com o manto, segurando na
Pina de que a tomara em honra de sua mulher, pois assinalar as armas do rei que abrem o Livro das cortes todo de prata, é representado de frente, a bicar o peito dextra a espada e na sinistra o ceptro; na cercadura,
o casamento com D. Leonor havia-se efectuado em primeiras…, datável de cerca de 1482. A capitular D, de que escorrem cinco fios de sangue de vermelho inscreve-se a legenda «+ ivstvs : vt : palma :
1471, cinco anos antes. de dimensões muito amplas e que forma como que para alimentar outros tantos filhotes; o ninho assenta florebit». Esta figuração valeu à moeda o seu
Em complemento das referências documentais, um sol dourado, está preenchida com um pelicano numa copa de palmeira de verde, florida de prata e nome de justo. Por fim, o anel de sinete do rei
quais são as representações conhecidas da empresa figurado em sua piedade, isto é, no seu ninho, bicando frutada de ouro, por baixo da qual se desenrola um (Fig. 8) apresenta uma figura masculina a meio corpo,
de D. João II? Existem pedras de armas, entre as o peito para alimentar três crias com o seu sangue. listel de prata com a legenda «ivstvs . vt. palma envolto numa túnica de mangas esvoaçantes, com
quais as do portal meridional da igreja da Madre de O pelicano é desenhado a sépia, mas o iluminador . florebit . et». O conjunto assenta sobre um coroa real e que segura na mão esquerda (atendendo
Deus e do claustro do respectivo cenóbio (Fig. 5), quis vincar a presença do sangue, colorindo-o de fundo azul, sendo cercado por uma corda de ouro. a que a gravação está em negativo) um ramo de palma
em Lisboa, fundação dilecta da rainha D. Leonor; as vermelho. Na parte inferior da cercadura dum fólio A cercadura do medalhão é composta por vegetação e na direita um sol.
da igreja de Nossa Senhora do Pópulo, nas Caldas iluminado da crónica de Rui de Pina, vê-se uma tarja e frutos variados, de sua cor, correspondendo ao A presença tão assídua da palmeira e do mote
da Rainha, obra da mesma senhora; as da igreja de partida de vermelho e de prata, com o pelicano de modelo usualmente usado nos tondi de produção que lhe está associado obrigam a que se reflicta na
São Francisco, em Évora. Note-se que a empresa ouro brocante; a tarja é enquadrada por uma filactera Della Robbia. Ora, está patente neste exemplar uma composição da empresa do rei. Na verdade, a ideia
é figurada preferencialmente em tarjas, como era de branco carregada da alma «por : tva : lei : conjugação que até ao presente não atraiu a atenção de que as empresas tinham carácter imutável vai
hábito na época, e resume-se ao corpo, sem qualquer eportva : grei» (Fig. 6). Trata-se, contudo, de um dos estudiosos: o corpo da empresa não é completado contra a sua própria essência ou, se quisermos, contra
mote. Mais interessante se afigura a conjugação exemplar que não é exactamente coevo, uma vez que pela alma tradicionalmente atribuída por Rui de Pina, as razões da sua existência e do seu sucesso. Com
tão constante com a empresa da rainha: com efeito, a crónica só foi terminada no reinado seguinte; daí, mas pelo referido salmo bíblico (Salmos 91, 13) e efeito, é à heráldica que se associa uma natureza fixa,
tanto na Madre de Deus como em Nossa Senhora do talvez, a troca dos esmaltes, já assinalada por Jorge pela figuração da copa florida da palmeira, que serve símbolo da continuidade dinástica, e uma composição
Pópulo, as empresas figuram lado a lado (a do rei Preto61, e que talvez se deva a uma contaminação quer de ninho. Tal figuração não pode ser gratuita, pois rígida, fruto das regras codificadas e aplicadas
do paquife que ornamenta as armas reais patentes foi encomendada pela rainha em memória e honra de por especialistas; as empresas, pelo contrário,
no mesmo fólio, quer da influência dos esmaltes da seu marido. representam a liberdade de escolha e, por assim
60
LIMA, João Paulo de Abreu e, “Oficiais de Armas em Portugal empresa de D. Manuel I, esta sim de vermelho e de Na verdade, ao confrontarmos a iconografia do dizer, de expressão. Precisamente por causa da sua
nos Séculos XIV e XV”, in Genealogica & Heraldica. Lisboa 1986.
Actas do 17.º Congresso Internacional das Ciências Genealógica prata. poder no reinado de D. João II, verificamos que os dimensão personalizada, os símbolos que compõem
e Heráldica, Lisboa: Instituto Português de Heráldica, 1989, Mas o exemplar mais inusitado e monumental da elementos representados no medalhão, aparentemente uma empresa devem ser entendidos à luz da época que
vol. Heráldica, pp. 309-344, p. 338. Como assinala este autor,
conhecem-se mais dois casos coevos de denominação de oficiais empresa de D. João II consiste no medalhão Della estranhos à sua emblemática costumeira, se encontram os concebeu, enquadrados com a sociedade à qual se
de armas inspirada na empresa do respectivo senhor: o arauto
Balança, ao serviço do infante D. Pedro, duque de Coimbra, avô de Robbia (Fig. 7) que outrora ornamentava a igreja presentes nas mais significativas manifestações. No destinavam, relacionados com o quadro mental dos
D. João II; e o passavante Jamais, de D. Afonso V, pai do mesmo
monarca. Deste modo, o baptismo dum oficial de armas com um citado Livro dos Copos, cuja importância simbólica seus utentes e dos seus destinatários.
nome retirado do corpo ou da alma da empresa verificou-se em três
gerações sucessivas. E constitui, tanto quanto se sabe, no panorama já foi realçada, a figura do rei é encimada por uma Tentemos então compreender o que terá ditado
português, um caso exclusivo. Cfr. LA FLORESTA, Alfonso de ampla copa de palmeira, também ela carregada de a escolha e a conjugação dos símbolos da empresa
Ceballos-Escalera, Marquês de, “Oficiais d’Armas ao Serviço da 61
PRETO, Jorge, Op. Cit., p. 95. A tarja é partida de vermelho e de
Coroa de Portugal”, in Símbolos, Gerações e História, Cascais: prata em vez de verde e roxo, cores do rei, segundo nos informa frutos, os quais pendem ao lado do monarca. Numa de D. João II, procurando as respostas em fontes
Academia de Letras e Artes, s.d., pp. 13-120, pp. 50-59. Garcia de Resende.
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coevas, de preferência naquelas que se possam frio do Inverno, nem o demasiado calor cruz. Sobe à palmeira, isto é, espera a Em sentido moral, podemos entender por
relacionar com o monarca ou, pelo menos, com a sua do Verão a impedem de estar sempre vitória da cruz. […] A palmeira orna a pelicano não apenas o justo, mas o que se
corte. Nesse sentido, não basta entender o pelicano verde. O justo viceja sempre de modo mão do vencedor, e o justo, procedendo afasta do prazer carnal. Por Egipto, a nossa
como símbolo de sacrifício ou de Cristo, como de semelhante e por nada é impedido de bem, traz na mão a palma da vitória.”65 vida envolta nas trevas da ignorância.
facto apontam os bestiários medievais, mas devem prosseguir no propósito da boa acção. […] Egipto entende-se, pois, como trevas.
procurar-se as cópias de tais bestiários existentes Quem, pois, reúne tudo isto dentro de si, Quanto ao pelicano, o Livro das Aves dedica-lhe Fazemos um ermo no Egipto, enquanto
em Portugal no período em apreço. Ora, desde o multiplicando os dias, cresce para o alto, apenas um capítulo, porém extenso e significativo, estamos longe dos cuidados e prazeres do
século XII que circulavam no reino diferentes cópias como a palmeira, vencendo o mundo.”63 que valerá a pena transcrever na íntegra: século. O justo também faz um ermo na
da obra De auibus, conhecidas por Livro das Aves, cidade, enquanto se conserva imune ao
cujo primeiro exemplar conhecido, pertencente ao 2. “A tua estatura assemelha-se a uma “Tornei-me como o pelicano no ermo pecado, tanto quanto a natureza humana
mosteiro de Lorvão, data de 1184; subsistem outras palmeira (Cântico dos Cânticos, 7, 7). (Salmos 101, 7). O pelicano é uma ave do o permite.”66
duas cópias, oriundas dos mosteiros de Santa Cruz A estatura da Igreja ou de uma alma Egipto que habita nos ermos do rio Nilo.
de Coimbra e de Alcobaça. Como aponta Maria fiel assemelha-se a uma palmeira. […] Diz-se que esta ave mata as crias com o Cruzando as informações fornecidas pelo Livro das
Isabel Rebelo Gonçalves, “A importância cultural do O justo tem a estatura de uma palmeira, bico e chora três dias sobre elas. Passados Aves em relação ao pelicano e à palmeira, verifica-se
Livro das Aves foi, por certo, assinalável, pois dele se é pequeno em si e grande diante de três dias, fere-se a si própria com o bico e que ambos são apresentados como símbolos do justo
chegou a ser feita, no século XIV, uma adaptação Deus, se humilde em si e sublime perante salpica as crias com o sangue. Cura e dá- e de Cristo, funcionando portanto como emblemas
em vernáculo”62. Na ausência de outras referências Deus. Esta palmeira a que se assemelha o -lhes vida, aspergindo com sangue todos complementares. Crescendo como a palmeira,
congéneres, pode presumir-se que esta obra tenha justo é Cristo.” “O justo florescerá como os que antes matara. Em sentido místico, mantendo-se como ela sempre no caminho recto, o
constituído fonte primordial para a simbologia das a palmeira (Salmos 91, 13). O justo é o pelicano representa Cristo; Egipto, justo eleva-se acima do mundo e floresce em Cristo;
aves em circulação no Portugal quatrocentista. Três plantado, cresce, dá fruto: planta-se na o mundo. O pelicano habita no ermo, a árvore é pois imagem da cruz, e o ninho no seu topo
capítulos do Livro das Aves são dedicados à palmeira, casa do Senhor, nos átrios da casa do nosso porque apenas Cristo se dignou nascer representa a bem-aventurança. Do mesmo modo, o
sempre como glosa de uma citação bíblica: Deus. […] Radica-se pela fé, cresce pela de uma virgem, sem união viril. O ermo pelicano representa a capacidade de alheamento do
esperança, robustece-se pela caridade.”64 é do pelicano, porque a vida de Cristo é mundo e de sacrifício extremo em prol da salvação,
1. “Multiplicarei os meus dias, como imune ao pecado. Esta ave mata as suas tornando-se assim numa alegoria de Cristo e do
a palmeira (Job 29, 18). A palmeira 3. “Subirei à palmeira e colherei os seus crias com o bico, porque Cristo converte caminho para a salvação. Retomando os elementos da
multiplica os seus dias, porque cresce frutos (Cântico dos Cânticos 7, 8). Junto à os incrédulos com a palavra da pregação. empresa de D. João II, vemos que eles se conjugam
lentamente, antes de subir para o alto. De terra, a palmeira é delgada e rugosa; perto Não pára de chorar sobre as suas crias, na perfeição não só uns com os outros, mas também,
igual modo, o justo cresce lentamente, do céu, é mais grossa e bela. É difícil a porque Cristo chorou misericordiosamente de forma directa, com o texto do Livro das Aves.
antes de alcançar aquilo a que aspira. É subida, mas doce o fruto. […] A palmeira ao ressuscitar Lázaro. E, passados três Neste sentido, a alma Por tua lei e por tua grei deve
desejo do justo alcançar o reino dos Céus. é Cristo, o fruto da salvação. […] A dias, dá vida às crias lavando-as com entender-se, na sua essência, como uma invocação à
A palmeira multiplica os dias e nem o esperança da salvação está no lenho da seu próprio sangue, porque Cristo salva lei de Cristo e ao seu povo (isto é, à Cristandade). A
os redimidos com o seu próprio sangue. figuração mais completa é sem dúvida a do medalhão

62
Livro das Aves (Edição, tradução e introdução por Maria Isabel
63
Ibidem, p. 85 (cap. XXIII).
Rebelo Gonçalves), [Lisboa]: Edições Colibri, [1999], p. 32. 64
Ibidem, pp. 85-87 (cap. XXIV). 65
Ibidem, p. 87 (cap. XXV). 66
Ibidem, p. 101 (cap. XXXIV).
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Della Robbia, uma vez que o ninho do pelicano é ascensum purpureum, em sentido místico; após a sua morte), convergem para indicar um escopo A empresa da rainha D. Leonor é sobejamente
formado pela copa florida da palmeira, tornando “E especialmente o Filho de Deus, que é Rei de vida consagrado ao modelo cristão, a ideia da sabida: trata-se de um instrumento de pesca
explícita a ligação entre os elementos que até então dos Reis e Senhor dos Senhores, quis ser constância dos princípios religiosos e morais que vulgarmente conhecido como camaroeiro. Figura
haviam sido figurados de forma dispersa. vestido desta cor. Pois lê-se na sua vida que constituem o único caminho para a salvação. Assim, nas pedras de armas apostas em edifícios da sua
Resta tentar compreender a escolha das cores. Para a gloriosa Virgem sua mãe fez-lhe uma veste o pelicano, a palmeira, as cores verde e roxo, as devoção, como a igreja de Nossa Senhora do Pópulo,
esse efeito, poder-se-á recorrer ao tratado coevo de de cor púrpura, que era inconsútil, isto é, sem frases “Por tua lei e por tua grei” e “Iustus ut palma nas Caldas da Rainha, ou o mosteiro da Madre de
maior difusão: o Brasão das Cores, do arauto Sicília, costuras, para mostrar que ela o concebera sem florebit” respondem uns aos outros, completam-se, Deus, em Lisboa; nos paramentos, no relicário e
ao serviço de Afonso V (1394-1458), rei de Aragão e o pecado da corrupção virginal. […] O Rei dos reforçam-se. na pia baptismal com que dotou tais fundações;
da Sicília, monarca que estava unido por estreitos e Reis quis portanto nobilitar a púrpura, para Mas, chegados a este ponto de entendimento, vale nos pelourinhos das vilas sob sua jurisdição, como
intensos laços de parentesco à Casa Real portuguesa. mostrar que ele era o grande Rei do céu e da a pena retomar a tão esquecida e mal compreendida em Óbidos; na iluminura do seu livro de horas. De
A circulação deste tratado verificou-se, ao longo da terra.”68 explicação de Rui de Pina… Como vimos, o Brasão todas estas representações, consta sempre o corpo
segunda metade do século XV, pela mão de oficiais de das Cores alude directamente às librés verdes e da empresa, o dito instrumento de pesca por arrasto;
armas, sempre em contacto com os seus congéneres Deste modo, a conjugação das cores de D. João violetas, remetendo o seu significado para a ideia no relicário vêem-se também as cores, um partido de
estrangeiros quer na fase de aprendizagem do II pode ser entendida, à luz das fontes coevas, como de alegria de amor. Recordemos as palavras do vermelho e de azul; e numa pia baptismal da Madre
ofício, quer no desempenho de missões cerimoniais uma dupla alusão: o verde à palmeira; o roxo ao cronista: “ElRey em sendo Princepe tomou por de Deus constaria a alma “preciosior: est: cumctis:
e diplomáticas. A edição impressa deste tratado no pelicano (isto é, a Cristo). Mais adiante, o Brasão devisa, polla Princesa sua molher hum Pelicano”. Os opibus: sanctus”, correspondente à citação bíblica “É
ano de 1495 constitui prova do seu sucesso e da das Cores apresenta outra explicação simbológica, diversos autores que se debruçaram sobre o assunto a mais preciosa das riquezas” (Provérbios, 3, 15)71.
sua difusão extraordinária. Sobre o simbolismo dos que vai ao encontro da primeira: entenderam esta declaração no sentido de o pelicano Uma tradição tardia atribui a esta empresa um sabor
esmaltes da empresa de D. João II, diz este tratado: representar uma homenagem do príncipe à sua trágico, pois relaciona-a com a morte do príncipe
“A cor verde ensina-nos como devemos mulher e, como tal não faz muito sentido, passaram D. Afonso, cujo corpo foi recolhido numa humilde
• “A cor verde é agradável à vista e dá-lhe honrar Nosso Senhor e agradecer-lhe à frente, desprezando a explicação como fruto duma cabana de pescadores à beira do Tejo: a rainha teria
grande prazer. Esta cor é sempre alegre e todo o bem que nos fez, pois para nosso mera convenção. Se atentarmos melhor, porém, adoptado como emblema a rede de camaroeiro que
pertence à juventude. Representa as árvores, alimento e sustentação faz crescer árvores, vemos que Pina não declara que o pelicano é um servira de mortalha ao seu filho adorado. Contudo,
os prados, as folhas e os frutos. Entre as pedras prados, ervas, folhas, flores e frutos. A símbolo do amor que liga os cônjuges, mas apenas nenhuma fonte coeva refere tal interpretação, e a
preciosas, é comparado à esmeralda […] Nas cor púrpura demonstra-nos que devemos que D. João assumiu este emblema pela princesa. cronologia das representações conhecidas aponta para
librés, acompanhado pelo […] violeta significa honrar os nossos pais espirituais, reis, Ora, embora de cariz pessoal, as empresas dos casais datas anteriores. Além de que não se percebe como
alegria de amor”67; príncipes, governadores, e homens de da dinastia de Avis devem ser lidas, em muitos casos, poderia o instrumento de pesca figurado na empresa
justiça.”69 como complementares. Assim se podem entender as servir de mortalha a qualquer corpo… Trata-se pois
• Púrpura (roxo): cor imperial e régia; cor das empresas de D. João I e D. Filipa de Lancastre; do
escadarias do templo de Salomão, e por isso Parece incontestável que todos os elementos infante D. Pedro e de D. Isabel de Urgel; do infante
usados por D. João II, ao longo da sua vida (e mesmo D. João e de D. Isabel de Bragança; da infanta D. 71
Cfr. SEIXAS, Miguel Metelo de; GALVÃO-TELLES, João
Isabel e de Filipe o Bom, duque da Borgonha70. Bernardo, “As insígnias do pelourinho de Óbidos. Subsídios para a
compreensão da emblemática da rainha D. Leonor”, in CURVELO,
67
SICILLE, Il Blasone dei colori. Il simbolismo del colore nella
cavalleria medievale (a cura di Massimo D. Papi, presentazione di Alexandre (coord. de), Casa Perfeitíssima. 500 Anos da fundação
Franco Cardini), [Rimini]: Il Cerchio Iniziative Editoriali, [2000],
68
IDEM, Ibidem, pp. 37-38. do mosteiro da Madre de Deus, Lisboa: Museu Nacional do Azulejo,
p. 36, tradução minha. 69
IDEM, Ibidem, p. 70. 70
AVELAR, Henrique de; FERROS, Luís, Op. Cit, pp. 228-230. 2009, pp. 23-37.
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de uma lenda, cujo sucesso, já na época romântica, a fusão das cores da empresa de D. Leonor leva à entre D. João e D. Leonor. Tradicionalmente, o rei da Penha Longa, de frades jerónimos, onde os reis
se terá ficado a dever à aura trágica que envolve a cor de Cristo, que é a salvação. E essa mesma cor é apresentado como actor político e público, ao permanecem onze dias em Outubro de 1493. Esta
rainha devota, ferida no seu amor materno. está outrossim presente no emblema do seu marido, passo que a rainha se conserva num registo privado última romaria foi a quarta duma série que o rei quis
Na verdade, a compreensão da empresa de D. conjugada com o verde que simbolizará a alegria e devoto. Assim, “a mulher nada tem a ver com o fazer em acção de graças pelo restabelecimento da
Leonor é bem mais complexa. Como já assinalaram do amor divino. Parece, pois, que Rui de Pina, marido. De um lado, estaria a obsessão imperial, a sua saúde, sequência que havia começado por Santo
Henrique de Avelar e Luís Ferros, o dito instrumento conhecedor íntimo do monarca, tinha razão ao afirmar afirmação de um poder projectado em longínquas António da Castanheira, Santa Catarina da Carnota
de pesca, que Francisco Rodrigues Lobo identifica que o príncipe escolhera o pelicano pela princesa paragens, de outro lado, os valores da interioridade e e São Francisco de Alenquer. O rei preocupou-se em
com um rastro, sua mulher: efectivamente, as empresas dos dois da espiritualidade.”75 Luís Adão da Fonseca interroga: mudar a localização do convento das comendadeiras
cônjuges completam-se. Assim se explica, também, da Ordem de Santiago da Espada, originalmente em
“é o símbolo do Reino do Céu [que] é a constância da representação conjunta do pelicano “Será possível pensar o seu reinado como Santos-o-Velho, para o lugar denominado de Santa
semelhante a uma rede lançada ao mar, e do rastro, tal como figuram nas igrejas da Madre uma governança em que a rainha, sua Maria do Paraíso, entre os mosteiros de Santa Clara
que colhe toda a casta de peixes…, de Deus e de Nossa Senhora do Pópulo. Acresce mulher, se interessa e protagoniza um e da Madre de Deus, em Lisboa, «significativamente
S. Mateus, c. XIII, v. 47 a 50, – o que que ambas as empresas constituem complexas projecto alternativo? Será admissível dois lugares de referência na biografia espiritual de
conjuga perfeitamente com o moto e lhe e complementares representações simbólicas da pensar que D. João e D. Leonor, em D. Leonor… Poder-se-á adivinhar um clima [de]
dá o sentido. Assim, o Reino dos Céus, salvação, ou seja, da Jerusalém mítica: o rastro termos políticos, apenas se encontram na espiritualidade comum ao casal? E, na mesma linha
que corresponde à salvação da alma, é representa o reino dos Céus, o pelicano simboliza oposição desta ao desejo do marido de que de pensamento, sendo conhecida a importância que
mais precioso do que todas as riquezas do Cristo, a palma era insígnia da peregrinação à cidade lhe suceda D. Jorge, o filho ilegítimo?”76 a Paixão tem no afã ascético que inspira a rainha,
mundo.”72 santa, conforme assinala Argote de Molina: terá algum significado o quadro da Crucificação que
Dentro dos limites da prudência, a resposta parece o marido manda colocar no quarto nos últimos dias
Esta interpretação está fundamentada na cultura “Las Veneras son insignia del Apostol, ser negativa: a rainha não é um ser doméstico e de vida […]? É ainda conhecida a devoção do rei ao
bíblica vigente na época e, além de permitir conciliar que vsan los Peregrinos en los sombreros apagado, mas antes companheira de um projecto santuário florentino de Nossa Senhora da Anunciada,
o corpo com a alma, corresponde aos parâmetros de en el sancto viage, quando llegando a su político que partilha com o marido, mau grado o a cuja devoção vai ser, mais tarde, também sensível D.
religiosidade unanimemente atribuídos a D. Leonor. sancto sepulchro las cogen en las orillas distanciamento que ocorre entre os dois após a morte Leonor. Há, finalmente, em ambos, uma vinculação
Mas, dentro da lógica de complementaridade das deel mar en testimonio de su Romeria. do filho, D. Afonso. mendicante que merece ser sublinhada (nela, mais
empresas de cônjuges, poder-se-á ir mais longe: o Assi quando yvan a Hierusalen, trayan Na realidade, o casal régio realizou peregrinações explícita; nele, apenas aflorada).”77
recto caminho (a palmeira) seguido pelo justo (o Palmas, de onde se vinieron a llamar conjuntas e evidenciou devoções semelhantes: a São A comunhão testemunhada pelas empresas do
pelicano) em obediência à lei e ao povo de Cristo, Palmeros los Peregrinos.”74 Domingos da Queimada, em Lamego, em Outubro régio casal parece apontar para uma efectiva partilha
conduz à salvação (o rastro), mais precioso dos bens. de 1483; a Nossa Senhora da Nazaré; aos conventos de devoções. Registe-se uma imagem que se revela
A mesma fonte que permitiu a explicação das cores Esta similitude, ou antes complementaridade, do Espinheiro e do Varatojo; ao mosteiro de Nossa marcante a este respeito: em 1495, os soberanos
escolhidas por D. João informa que o roxo “está a vem também fornecer uma nova imagem da relação Senhora das Virtudes, junto a Alenquer; ao mosteiro patrocinaram em conjunto a edição de uma Vita
meio caminho entre o vermelho e o azul”73. Assim, Christi por Ludolfo da Saxónia, em cuja portada
aparecem em atitude de adoração a Cristo crucificado
75
SOUSA, Ivo Carneiro de, A rainha D. Leonor (1458-1525).
74
ARGOTE DE MOLINA, Gonzalo, Nobleza del Andalucía Poder, misericórdia, religiosidade e espiritualidade no Portugal do
72
IDEM, Ibidem, p. 230. (coordinación Jesús Paniagua Pérez; introducción Margarita Torres Renascimento, 2002, pp. 4-5.
73
Il Blasone…, p. 57. Sevilla-Quiñones de León), León: Universidad de león, 2004, fl. 23. 76
FONSECA, Luís Adão da, Op. Cit., p. 169. 77
FONSECA, Luís Adão da, Op. Cit., p. 171.
24 25
As armas e a empresa do rei D. João II. As armas e a empresa do rei D. João II.
Subsídios metodológicos para o estudo da heráldica Subsídios metodológicos para o estudo da heráldica
e da emblemática nas artes decorativas portuguesas e da emblemática nas artes decorativas portuguesas
Miguel Metelo de Seixas Miguel Metelo de Seixas
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(Fig. 9). Na véspera da sua morte, segundo relata decisão de reformar o escudo do reino.”79 construção da imagem de uma unidade dinástica: aragoneses se encontra bastante fragilizada.” 84 Daí as
Garcia de Resende, D. João II, sentindo que o seu fim “esta unidade familiar confere à morte santa de D. mortes “exemplares” do infante santo D. Fernando;
se aproximava inexoravelmente, “mandou desarmar Na verdade, o ideal de cruzada encontra-se João I um carácter fundacional: se atrás de D. João I de D. Afonso V; de D. João II. Por encomenda do
a casa, e armar nella altar com a Cruz, e hum retabolo fortemente presente na propaganda régia de D. João se encontra a sua família, se a sua memória é também condestável D. Pedro, Afonso de Córdova redige
de nosso Senhor Iesu Christo Crucificado, e nossa II, o que explica a escolha da cruz de braços iguais memória da dinastia, o rei santo santifica a dinastia, o libelo Comemoración breve de los muy insignes
Senhora, e São Ioam”78. para cunhagem da moeda de ouro a que se chamou, e o rei exemplar exemplariza a dinastia, isto é, a varones que fueron desde el magnifico rey don Juan
Além de se articularem entre si, as empresas do precisamente, cruzado, bem como a perpetuação morte do rei transforma-se em ponto de referência I hasta el muy esclarecido rey don Alfonso quinto:
casal régio devem ser entendidas em coordenação com de outra moeda, o espadim, cuja tipologia vinha do da morte de todos os membros da família real.” O
a reforma das armas reais, a que acima se aludiu. Com reinado anterior, estando simbolicamente ligada ao mesmo rei D. Duarte nomeia Fernão Lopes cronista “Trata-se de um retrato estereotipado da
efeito, a dimensão providencialista da heráldica régia projecto de domínio do Norte de África80. do reino, com o explícito propósito de construir uma família real portuguesa, onde se expressa
condiz com a mensagem da emblemática. A primeira Na verdade, as escolhas simbológicas de D. João memória dos sucessivos soberanos até culminar com o propósito de apresentar uma elegia, não
difunde a imagem de Portugal como “reino querido e II e de D. Leonor, sendo pessoais e articuladas entre o fundador da dinastia de Avis, como refere na carta de personagens isolados, mas do conjunto
protegido pela Providência”, correspondendo a uma si, não deixam de se inserir num desígnio mais vasto, de nomeação de Março de 1434: “É a primeira vez da família. […] Em termos de modelo,
de natureza dinástica. Como assinala Luís Adão que a monarquia assume, de forma tão explícita, a este texto representa a conformação de um
“ideia de poder régio que o monarca da Fonseca, a Casa de Avis, desde a sua fundação, elaboração de uma história geral do reino como arquétipo, segundo o qual há uma geração
introduz. Mais do que uma ideia, […] um empreendeu uma sistemática auto-exaltação81. Tudo programa oficial, objectivo que, por sua vez, deve ser de descendentes de D. João I que forma
corpo ideológico global que assenta em principiou com a necessidade de legitimar a dinastia relacionado com o paralelo programa de idealização uma exemplaridade moral pelos valores
três coordenadas: em primeiro lugar, na nos seus primórdios, ultrapassando a mácula da da dinastia”83. que incarna, que virá, com os tempos a
visão providencialista do reino e do rei bastardia e da origem contestável da chegada ao Por volta de meados do século, a imagem revestir-se de grande importância na
[…]; em segundo lugar, na actualização poder de D. João I. Assim, tendo morrido este rei dinástica tendeu a mudar, na sequência de dois memória colectiva portuguesa. É a Ínclita
permanente da ideologia cruzadística a 13 de Agosto, o seu sucessor determina que se factores decisivos: o conflito de Alfarrobeira e o Geração.”85
legitimada pela Santa Sé através das considere a data oficial como o dia seguinte, com o enfraquecimento dos demais reinos cristãos ibéricos
bulas de cruzada (é o caso da Carissimus “propósito de associar a Batalha de Aljubarrota ao (Castela e Leão com Henrique IV; Aragão com João Define-se assim “o modelo ideológico em que
in Christo de 18 de Fevereiro de 1485 ou falecimento do rei, apontando ambos os eventos para II). O que ditou uma forte política intervencionista da assenta o que se pode chamar a imagem da monarquia
da Orthodoxe fidei do mesmo dia e mês as vésperas da festa da Assunção da Virgem. Ou seja, parte da Coroa portuguesa, patente na aproximação portuguesa tal como ela é elaborada pelo poder
do ano seguinte); finalmente, na própria procura-se indicar que o rei foi um predestinado”82 diplomática a Castela, “acompanhada por um não régio lusitano no decorrer da segunda metade do
titulação régia. […] Com efeito, em 1485, o seu sucessor foi o primeiro responsável pela menor investimento propagandístico, orientado século XV: função legitimadora, carácter exemplar,
o monarca amplia a titulação régia para sobretudo no sentido de exaltar a exemplaridade intencionalidade ibérica”86.
“rei de Portugal e dos Algarves, d’Aquém da família real portuguesa, argumento ideológico Mais tarde, o Cancioneiro de Garcia de Resende
e d’Além Mar em África e Senhor da
79
FONSECA, Luís Adão da, Op. Cit., p. 82. compreensível (e eficaz) naquelas circunstâncias faz eco de tais intenções, tanto pela sua própria pena,
80
Cfr. SEIXAS, Miguel Metelo de, “Um enigma arturiano-
Guiné”, ao mesmo tempo que toma a -ouriquense: o espadim de D. Afonso V”, in IDEM; GALVÃO- em que a imagem dos Trastâmaras castelhanos e
-TELLES, João Bernardo (coordenação), Dispersos (1999-2000),
Lisboa: Universidade Lusíada Editora, 2002, pp. 49-54.
81
FONSECA, Luís Adão da, Op. Cit., pp. 234-244 (capítulo “Da
84
IDEM, Ibidem, p. 236.
estratégia da monarquia à estratégia da família”). 85
IDEM, Ibidem, p. 237.
78
RESENDE, Garcia de, Op. Cit., p. 281. 82
IDEM, Ibidem, p. 235. 83
IDEM, Ibidem, p. 236. 86
IDEM, Ibidem, p. 237.
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como pela de Diogo Brandão, Luís Anriquez, D. João Avis é muito mais do que o resultado de Portugal D. Afonso V praticar o costume ideia do rei ungido, mas na convicção de que há um
Manuel e Álvaro de Brito. Este último escreve, sobre uma conjuntura política e diplomática anglo-francês da cura das escrófulas. reino ungido desde e através do milagre de Ourique,
a morte de D. João II: favorável. A concretização material Conhecida e praticada desde o século XII, renovado permanentemente na própria história de
desse objectivo manifesta-se no esforço esta capacidade que conferia aos monarcas Portugal.» Sem questionar esta ideia, bem patente
“Este foi aquele bom rei D. João o mais real por nacionalizar a dinastia pela via um poder de taumaturgo constitui, como na reforma das armas reais e no discurso dirigido
excelente que houve no mundo, rei destes da sua exemplaridade, esforço esse que facilmente se apercebe, expressão do por Vasco Fernandes de Lucena ao Papa Inocêncio
reinos, deste nome o segundo, humano, se desenvolve à volta de três grandes carácter religioso do poder régio. Dentro VIII, deve salientar-se que, com D. João II, a ideia de
católico, sujeito à razão, do qual mui slogans atrás enunciados: a família desta linha, o monarca tem capacidade unção pessoal ganha uma força até então insuspeita.
bem creio sem contradição julgando as real portuguesa é uma família unida, é milagreira, na medida em que a sua A teoria medieval dos dois corpos do rei90 poderá
suas obras e como morreu que deve bem uma família santa, é uma família culta. pessoa, suporte corpóreo de uma figura constituir o remoto fundamento desta atitude. No
certo ter salvação pois justamente tanto Obedecendo inicialmente a propósitos institucional, é expressão da santidade do monarca fundem-se o corpo natural e o corpo político:
viveu.”87 de consumo interno, a partir de meados próprio poder que incarna. Preocupados
do século XV, e ao longo de quase toda pela legitimação da dinastia [...], a Geração “Ao primeiro, atribuem-se características
Este tema da morte santa culmina verdadeiramente a segunda metade da centúria, detectam- de Avis tem, paralelamente, a ânsia de um de vulnerabilidade, mutabilidade e
com os relatos acerca do falecimento e posterior -se indícios de uma preocupação orientada ritual que, embora importado, reforce, por mortalidade, nada o diferenciando do corpo
trasladação de D. João II, patentes sobretudo na sobretudo para a área castelhana.”88 um lado, a referida legitimidade, e, por dos restantes indivíduos. Ao segundo,
prosa de Resende: as provas de arrependimento, outro, a diferencie positivamente em face fazia-se corresponder a dignidade real e o
de fé e de humildade prestadas pelo monarca nos Neste sentido, embora constituam emblemas da monarquia castelhana. Aqui, em pleno governo do reino, surgindo os respectivos
seus derradeiros dias serão completadas com os pessoais, as empresas dos membros da dinastia de Quatrocentos, a ausência de práticas de membros como representação do conjunto
posteriores indícios de santidade. Quando o rei Avis devem ser analisadas dentro de uma lógica unção ritualizada não tinha impedido da comunidade de súbditos. Contudo,
é solenemente trasladado da sé de Silves para o comum, fundamentada num modelo de propaganda que, em conjunturas de fragilidade (como como o corpo natural e o corpo político se
mosteiro da Batalha, o seu corpo acha-se incorrupto, destinado a transmitir uma determinada imagem de acontece no final do reinado de João II de fundiam na pessoa do rei, eles acabavam
não obstante ter estado envolvido em cal viva, e família exemplar. Castela e no de Henrique IV), se tivesse por definir no seu conjunto um corpo
desprende um suave odor. Logo advêm os milagres Será significativo analisar, outrossim, a questão da desenvolvido a ideia de que há algo assim único, imutável e indivisível.”91
realizados pelos despojos do rei morto. unção régia, cerimónia totalmente estranha aos hábitos como uma unção espiritual que, fruto de
Importa reter que todas estas construções portugueses, solicitada por D. Duarte e concedida uma relação directa entre Deus e o rei, Servindo como intermediário entre a esfera do
obedecem a uma lógica familiar: pelo Papa, mas que nunca foi posta em prática. Há, substitui a unção pública.”89 profano e a do sagrado, o rei beneficiava de um
contudo, notícia de um caso extraordinário, relatado estatuto único, cabendo-lhe, pelo seu comportamento
“Estamos, como se pode comprovar, pelo médico castelhano Diogo Álvarez Chanca: Estendendo o conceito, «D. João II, herdeiro deste
perante um programa muito coerente: processo, vai aproveitá-lo na promoção, já não da
tendo como objectivo desenvolver a “que, no seu tratado intitulado Tractatus 90
Veja-se a este respeito o estudo clássico de KANTOROWICZ,
convicção de que a dinastia reinante de de fascinatione, escreve ter visto o rei de Ernst, Les deux corps du roi. Essai sur la théologie politique au
89
IDEM, Ibidem, p. 243. O testemunho de Chanca, ocorrido por Moyen Âge, Paris: Gallimard, 1989.
volta de 1480, narra: “ut patet de rege Alfonso portugalense qui 91
SILVÉRIO, Carla Serapicos, Representações da Realeza na
abuit virtutem sanandi scrofulas solu tacto manuum, ul multi Cronística Medieval Portuguesa. A Dinastia de Borgonha, [Lisboa]:
87
Apud IDEM, Ibidem, p. 238. 88
IDEM, Ibidem, p. 243. viderunt et ego ipse”. Edições Colibri, 2004, pp. 28-29.
28 29
As armas e a empresa do rei D. João II. As armas e a empresa do rei D. João II.
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exemplar, moldar a sociedade sobre a qual reinava. todas do infante D. Pedro, e a do livro Segredos de programa pedagógico.”96 todas las insignias del Vniverso ao rei D. João II,
“Com efeito, é o rei quem estende a sua potestade Aristóteles, atribuída ao seu irmão D. Henrique94. atribui três timbres às suas armas99: a tradicional serpe
a toda a sociedade e é ele quem garante a paz e a Este género de literatura especular foi, aliás, comum De todo este vasto programa ideológico, resultaria alada; o pelicano; e o agnus Dei, cordeiro místico
ordem”92, nomeadamente pelo exercício da justiça. aos demais reinos ibéricos95, sofrendo uma ampla a noção de que, do ponto de vista moral, o ofício de (Fig. 10). Três timbres, três símbolos de Cristo. Na
Na imagética medieval, o rei é amiúde apresentado difusão sob a égide dos Reis Católicos, Fernando de rei é uma “imitação de Cristo”, conforme a expressão última das representações mencionadas, a coroa real
como coração do seu reino: Aragão e Isabel de Castela, coevos de D. João II. Em usada por frei António de Beja numa obra mais tardia, portuguesa entrelaça-se com a coroa de espinhos…
Portugal, o esforço normativo não se limitou à figura dedicada a D. João III97. Como empresa, o pelicano não teve continuidade
“a fisiologia do corpo atribuía ao sangue, do rei ou dos membros varonis da linhagem régia, Assim, a empresa do pelicano pode ser considerada para além do seu uso por D. João II ou pela rainha
devido ao seu papel de transmissor da acção antes estendeu-se também ao comportamento das como um modelo doutrinário: D. João II é aquele sua viúva, neste caso, naturalmente, como forma de
vital originada no coração, a propriedade princesas, como se infere da tradução da obra Livre que encarna o princípio da realeza, mas é também, lembrar e enaltecer o casal régio. Mas sobreviveu, de
de permitir ligar este último a todos os des Trois Vertus de Christine de Pisan, encomendada no quadro da imagem que a dinastia constrói de certo modo, em dois sentidos distintos. Do ponto de
órgãos e de, assim, os tornar solidários e pela rainha D. Isabel, mãe de D. João II: si própria, um monarca exemplar, transposição vista formal, o pelicano transitou como timbre para
organicamente funcionais […]. Ora, tendo de Cristo na Terra. Os emblemas que D. João e as armas do filho ilegítimo do monarca, o senhor D.
em conta a imagem corporal da sociedade, “Pela homogeneidade da intenção que D. Leonor escolheram inserem-se, portanto, no Jorge, duque de Coimbra, e de seus herdeiros, que
se o rei simbolizava o coração do reino, lhes subjaz, este conjunto de obras indicia domínio da sacralidade. Só assim se explica que tais adoptaram o apelido de Lancastre ou Lencastre. Trata-
também representava o seu sangue, uma uma evidente consciência da necessidade empresas tenham sido as primeiras a ter “a ousadia -se de uma escolha a todos os títulos compreensível,
vez que devia assegurar o necessário da formação virtuosa do príncipe e do de penetrar” dentro dos templos, como acontece na na medida em que era uma forma de proclamar que
princípio da solidariedade social”.93 estabelecimento de um modelo «ideal», igreja de Nossa Senhora do Pópulo, a qual “marca, ele, senhor D. Jorge, era o único fio de transmissão
num quadro de afirmação ideológica da desta maneira, o momento exacto em que a Heráldica do sangue de D. João II: uma dimensão biológica,
Durante a dinastia de Avis, reforçou-se a doutrina realeza e, até, o esboço de um verdadeiro irrompe com determinação no interior dos edifícios portanto, de carácter linhagístico. Mas o emblema
do corpo místico do rei e das suas obrigações morais. religiosos”98. As armas reais reformadas, completadas deste rei também acabou por se transmitir, não
Tal esforço ficou logo patente no Speculum Regum, pelas empresas dos soberanos nas suas diversas quanto à forma mas quanto à essência ou mensagem
obra escrita entre 1341 e 1344 por D. Álvaro Pais, 94
BUESCU, Ana Isabel, Imagens do Príncipe. Discurso normativo componentes e modalidades, apontam para um subjacente, por via da invenção duma outra empresa:
e representação (1525-49), Lisboa: Edições Cosmos, 1996, pp. 46-
bispo de Silves, bem como nos escritos de alguns -49 e 50-51. conceito de monarquia mística, em cujo seio o casal a esfera armilar, criada por D. João II na sequência
membros da própria dinastia: o Livro de Montaria de 95
Com efeito, a literatura especular, dirigida ao comportamento régio desempenha um papel político inseparável da da morte do duque de Viseu, e concedida ao irmão
ideal do príncipe, esteve presente nos reinos ibéricos desde
D. João I; o Leal Conselheiro e o livro da Ensinamça o século XIII e atingiu o seu apogeu, em Castela, no século sua dimensão espiritual. Por isso o tratadista Pedro
XV, estando fortemente representada na biblioteca dos Reis
de Bem Cavalgar toda Sela, de D. Duarte; o Livro da Católicos. Os soberanos são confrontados com o modelo ideal de Gracia Dei, que dedicou o seu Blasón General de
Virtuosa Benfeitoria, do infante D. Pedro; assinalem- de príncipes virtuosos e sábios, sendo veiculada a imagem do 99
Este tratado foi editado em 1489, constituindo o primeiro livro
soberano como regedor, justiceiro e legislador. Em última saído do prelo na Estremadura espanhola. Principia com a seguinte
-se também as traduções de obras teóricas clássicas instância, o rei constitui o supremo intermediário entre Deus e invocação a D. João II: “Serenissimo prinçipe alto muy poderoso
o conjunto dos seus súbditos: “Las disposiciones presentes en çesareo rey justo: por la gracia de dios don Iuan el segundo.
sobre o poder político, nomeadamente as de Séneca, los espejos parten de un presupuesto fundamental: la existencia 96
BUESCU, Ana Isabel, Op. Cit., p. 49. Uençedor nunca uençido: heredero en el oçidente de los reynos de
en el ser humano de una inclinación natural al mal, ante la portogal y algarbes. y allen de las mares señor de gujnea en las
Cícero, Pier Paolo Vergerio e Egídio Romano, cual es necesaria e imprescindible la actuación regia. […] En
97
IDEM, Ibidem, pp. 146-153. partes de libia. Gouernador del tridente de neutuno: obedeçido del
definitiva, la función última del poder real sería la corrección 98
SILVA, José Custódio Vieira da, “A importância…”, p. 138. Este grande oçeano: descubridor de muchas yslas y tierras perdidas”,
y vigilancia de una comunidad a el encomendada por Diós.” autor ressalva, contudo, a presença de armas reais no interior da igreja e continua em termos ditirâmbicos: “alferez de las insignias de
NOGALES RINCÓN, David, “Los espejos de príncipes en de Nossa Senhora da Vitória, vulgo Batalha. Deve compreender-se nuestra sacra religion […] en cruz cinco llagas preçio uida y dados
Castilla (siglos XIII-XV): un modelo literario de la realeza que as armas reais, tal como as empresas do pelicano e do rastro, en uestifura çelestial significan uos muro y antemural rey de las
92
IDEM, Ibidem, p. 46. bajomedieval”, Medievalismo. Boletín de la Sociedad Española estão ligadas a uma mensagem crística, o que explica a naturalidade siete coronas”. GRACIA DEI, Pedro de, Blasón General y Nobleza
93
IDEM, Ibidem, p. 62. de Estudios Medievales, n.º 16, 2006, pp. 9-39. com que é assumida a sua irrupção no espaço sagrado. del Universo, Badajoz: Unión de Bibliófilos Extremeños, 1993.
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As armas e a empresa do rei D. João II. As armas e a empresa do rei D. João II.
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deste, o senhor D. Manuel, duque de Beja e futuro rei. documentos oficiais, tratados de armaria ou políticos,
O que constitui o único caso conhecido de empresa textos literários em prosa ou poesia. Em retorno, o
criada e concedida por um monarca em Portugal, entendimento da mensagem heráldica veio permitir
podendo inserir-se, eventualmente, no entendimento uma compreensão muito mais plena de cada uma das
de monarquia mística já patente no bifacetado manifestações arroladas, o pleno entendimento do
emblema do pelicano e do rastro. Esta dupla herança seu significado. Assim possa este texto servir para
poderá fornecer pistas para um futuro entendimento lançar as bases de uma profícua colaboração entre
cabal quer da heráldica da Casa de Aveiro, quer da a heráldica e todas as demais formas de estudar
empresa do Venturoso e de seus descendentes. história.

Em conclusão, espera-se ter mostrado que a leitura,


identificação e datação das armas constituem apenas
o primeiro passo do trabalho do heraldista. Para
proceder à fase seguinte, ou seja, ao entendimento
do significado das armas e das empresas, impõe-se a
necessidade de recorrer às fontes, quer iconográficas,
Fig. 1 – Medalhão Della Robbia com as armas
quer documentais, quer patrimoniais. Revela-se
reais portuguesas posteriores à reforma de 1485,
fulcral manter o cuidado de inserção dos símbolos proveniente da igreja da Madre de Deus, em Lisboa
no seu contexto, tendo sempre em conta o conjunto (MNAA).
de factores que podem ter determinado a escolha ou
a exclusão de representações, o que corresponde à
ideia fundamental de que as armas e as empresas
constituem um documento como qualquer outro,
que é preciso enquadrar e compreender. O exemplo
escolhido para a presente dissertação pretendeu
provar a relevância da heráldica para o estudo do
património, em particular das artes decorativas. Com
efeito, para compreender as insígnias de D. João II,
foi necessário recorrer à arquitectura, à escultura, à
pintura, à iluminura, à sigilografia, à numismática,
à ourivesaria, à cerâmica, à gravura, à glíptica. E Fig. 2 – Armas e empresa de D. João II no Livro das
completar depois o conjunto de informações assim cortes primeiras feitas per ho muy alto e muy poderoso
obtidas com as referências e explicações fornecidas Senhor El rey Dom Joham segundo per graça de Deus
Rey de Portugal e dos Algarves d’aquem e d’alem mar
pelas fontes documentais coevas: crónicas, memórias, em Africa […], ca. 1482 (DGA/TT).
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As armas e a empresa do rei D. João II. As armas e a empresa do rei D. João II.
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Fig. 3A – Espécies monetárias cunhadas a partir de


1485: justo.

Fig. 5B

Fig. 5A – Portal da igreja da Madre de Deus, em


Fig. 3B – Espécies monetárias cunhadas a partir de
Lisboa, com as empresas de D. João II e de D. Leonor;
1485: justo.
pedra de armas no claustro do mesmo convento com
a empresa do rei.

Fig. 3C – Espécies monetárias cunhadas a partir de Fig. 4 – Retrato, armas e empresa de D. João II no
1485: justo. Livro dos Copos da Ordem de Santiago (DGA/TT). Fig. 5C

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Miguel Metelo de Seixas Miguel Metelo de Seixas
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Fig. 7 – Medalhão Della Robbia com a empresa de D.


João II, proveniente da igreja da Madre de Deus, em
Lisboa (MNAA).

Fig. 10 – Armas reais portuguesas com timbre do


cordeiro místico no Blasón General de todas las
Fig. 6 – Armas e empresa de D. João II na Crónica de
insignias del Vniverso dedicado a D. João II pelo rei de
D. João II, de Rui de Pina (DGA/TT).
armas Pedro de Gracia Dei.

Fig. 9 – Gravura da obra Vita Christi, de Ludolfo da


Saxónia, 1495.

Fig. 8 – Anel de sinete do rei D. João II (MNAA).

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