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ENTRE AS RUÍNAS DA FERROVIA BAHIA-MINAS E OS VESTÍGIOS DO RIO

GRAVATÁ: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE TERRITORIAL ATRAVÉS DO


MAPA DA MEMÓRIA COM CAMPONESES DA COMUNIDADE ALFREDO GRAÇA
– ARAÇUAÍ-MG

FABIANO ROSA DE MAGALHÃES


Mestrado - IFNMG - Campus Araçuaí - 2008
Aneuzimira Caldeira Souza - IFNMG - Campus Araçuaí
Hérica da Silva de Oliveira - IFNMG - Campus Araçuaí
Sara Jane Gomes Cardoso - IFNMG - Campus Araçuaí

Resumo
Pretende-se neste artigo apresentar a perspectiva de identificação de uma
comunidade rural com os aspectos que constituem, na visão deles, a sua
comunidade. Buscou-se identificar a narrativa dos moradores de uma comunidade
rural tradicional do município de Araçuaí-MG, situada no Vale do Jequitinhonha. O
recurso para captarmos essa narrativa coletiva foi a elaboração de um mapa da
comunidade a partir da memória coletiva de um grupo de agricultores na
comunidade Alfredo Graça. A metodologia é definida como mapa da memória,
aplicada aos agricultores participantes de um curso de agricultor orgânico, ofertado
pelo Instituto Federal do Norte de Minas Gerais – Campus Araçuaí, no ano de 2016.
A produção do mapa afetivo serviu para constituir as narrativas dos moradores
quanto aos aspectos que constituem a sua realidade coletiva. Detectou-se que a
água é um elemento de vital importância para a comunidade, fator que permite a
construção narrativa do território. Este artigo busca apresentar reflexões acerca da
metodologia utilizada, qual seja, a construção de mapas mentais como recurso da
construção do sentido de territorialidade, conceito essencial nas análises sobre
comunidades tradicionais.

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Palavras-chave: Comunidade Rural, Alfredo Graça; Memória da água; Mapa da
memória; Territorialidade.

1 INTRODUÇÃO:

No ano de 2017, a equipe de pesquisadores do Instituto Federal do Norte de


Minas Gerais – Campus Araçuaí obteve aprovação de um projeto de pesquisa no
âmbito da Chamada MCTIC/MAPA/MEC/SEAD. O projeto piloto tinha como objetivo
geral a manutenção e revitalização do Núcleo de Estudos em Agroecologia e
Produção Orgânica (NEA). O NEA do IFNMG - Campus Araçuaí teve início no ano
de 2010, através de aporte de recursos obtidos através da aprovação de um projeto
semelhante ao que ora nos propusemos a desenvolver (NASCIMENTO et al., 2019).
Os NEAs têm por objetivo promover o debate e a socialização de conceitos sobre
agroecologia e produção orgânica. Uma das ações previstas no projeto mais recente
seria a identificação de unidades produtivas e movimentos sociais que atuam com
agricultura sustentável e agricultura de base agroecológica no município de Araçuaí
e região e a oferta de Curso de Formação Continuada voltado para a promoção da
agricultura orgânica e vinculada aos princípios da agroecologia.
É importante saber que o Campus Araçuaí se insere numa região de transição
ao semiárido, situado no Médio Vale do Jequitinhonha. Essa consideração inicial já é
indicadora da necessidade de estudos e pesquisas no sentido de identificar seu
potencial produtivo, na tentativa de vencer os determinantes ambientais e
sociopolíticos que atuam como fatores geradores dos baixos indicadores de
desenvolvimento sociais, os quais se refletem nas limitações do capital social
regional. A região é marcada por êxodo rural-urbano acentuado, através do qual as
microrregiões baseadas em atividades econômicas tradicionais apresentam perda
populacional para outras regiões consideradas mais dinâmicas. Em suas atividades
agrícolas predominam culturas de cereais, leguminosas, oleaginosas, com produção

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ainda tímida e precária tendo em vista a ausência de técnicas agrícolas específicas,
bem como, de mão de obra qualificada para a assistência às atividades. Um dos
aspectos importantes também a ser considerado quanto à região é a importância da
agricultura camponesa ainda presente (GRAZIANO e GRAZIANO NETO, 1983), um
dos diferenciais com relação ao restante das regiões mineiras, fazendo com que
estudos sobre as condições de vida dos sujeitos do campo sejam muito relevantes.
A concepção do projeto apresentado buscou não dissociar a produção
orgânica da agroecologia ou ainda, dissociar a agroecologia da compreensão
socioeconômica das comunidades envolvidas no projeto.
Conforme Caporal e Costabeber (2004), tem sido muito comum tomar a
produção orgânica como se ela fosse sinônimo de agroecologia. Para o autor,
apesar dos termos apresentarem uma relação muito próxima, é preciso
compreender e diferenciar os conceitos. Enquanto a produção orgânica pode ser
inclusive uma das formas da produção agrícola de base capitalista, com a atuação
de empresas transnacionais que encontram a oportunidade de explorarem os nichos
de mercados voltados ao consumo de pessoas com melhor poder aquisitivo para
pagar pelo diferencial do produto orgânico; a agroecologia remete uma
contraposição à forma de produção e reprodução da agricultura sob as bases da
economia capitalista, questionando inclusive as relações desiguais relacionadas ao
acesso à terra no Brasil. Portanto a agroecologia vai além da produção orgânica.
Para os autores:
“Na realidade, uma agricultura que trata apenas de substituir insumos
químicos convencionais por insumos “alternativos”, “ecológicos” ou “orgânicos” não
necessariamente será uma agricultura ecológica em sentido mais amplo”
(CAPORAL e COSTABEBER, 2004, p. 10)
Desta forma, entende-se que a discussão essencial da agroecologia, no
sentido apresentado pelos autores, é que existe a necessidade de compreender os
aspectos sociais dos sujeitos da agricultura de base camponesa.

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Dentro desta perspectiva, uma das dimensões essenciais do projeto seria
compreender os aspectos socioculturais das comunidades no âmbito do projeto. Foi
com esse propósito que o Núcleo de Estudos e Pesquisas Rurais – NEPRU - do
referido campus, submeteu um subprojeto de pesquisa orientado no sentido de
captar as dimensões sociais constitutivas da comunidade de Alfredo Graça, situada
no município de Araçuaí. O NEPRU articula-se ao NEA, voltando-se para a
compreensão sociológico-antropológica dos sujeitos do campo, com olhar
direcionado para as relações de produção e reprodução no Vale do Jequitinhonha.
Os dois núcleos vêm desenvolvendo diversas ações articuladas e
complementares. A partir da proposta do projeto piloto, vários parceiros e
colaboradores foram estabelecendo formas de atuação. As parcerias propiciaram
também novos olhares e novas ações foram incorporadas ao trabalho dos Núcleos.
As ações contempladas no projeto beneficiam discentes e professores dos cursos
técnicos integrados ao ensino médio em Meio Ambiente e Agroecologia, do curso
superior em Engenharia Agrícola e Ambiental e Tecnologia em Gestão Ambiental do
IFNMG – Campus Araçuaí, assim como estudantes da Escola Família Agroecológica
de Araçuaí (EFA), povos e comunidades tradicionais do município e região de
Araçuaí, agricultores familiares e/ou em transição agroecológica ou envolvidos com
a produção orgânica e demais colaboradores.
Dentre as ações do projeto, destaca-se a capacitação dos sujeitos envolvidos
com a realização de seminários, palestras, participação em eventos, cursos, visitas
técnicas, e curso de Formação Inicial e Continuada - FIC- Agricultor Orgânico. Um
curso de 160 horas, distribuídas ao longo do ano de 2019, destinado aos pequenos
agricultores locais e jovens residentes no meio rural, e públicos prioritários dos
programas do Governo Federal que se associam ao Programa de Aquisição de
Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Para a
realização da atividade escolheu-se a Comunidade Rural Alfredo Graça.

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1.1 O curso de agricultor orgânico

Antes de tratarmos das narrativas dos agricultores/as da comunidade


escolhida, convém apresentar os aspectos relacionados à elaboração e
desenvolvimento do Curso de Agricultor Orgânico, sobretudo porque foi a partir
desse curso que abriu a perspectiva de compreensão da dimensão comunitária que
permeava a trajetória dos integrantes do curso. De fato, o próprio curso, no seu
desenvolvimento, já apresentava elementos que nos permitiram, posteriormente,
discutir aspectos da comunidade, a partir das narrativas dos agricultores/as.
Toda organização do curso foi previamente discutida com os agricultores,
dentro da metodologia da observação participante, cuja ênfase está no respeito e
aproximação com os sujeitos da pesquisa (MINAYO, 1993).
O curso foi ministrado em 7 módulos (por temáticas) no decorrer do ano de
2019. Os encontros ocorreram de quinze em quinze dias quase sempre nas terças
ou quintas-feiras, alguns finais de semanas também foram usados, o local utilizado
foi o centro comunitário da comunidade, mas também nas propriedades de alguns
cursistas quando havia prática de campo, no Campus do IFNMG, na escola para uso
do laboratório de Informática e em visita técnica no Sítio Maravilha, que é um sítio de
práticas de permacultura. Os temas trabalhados foram: Comunicação e Expressão
Oral, Associativismo e Cooperativismo, Economia Solidária, Conteúdos sobre
compras públicas da agricultura familiar - PNAE e/ou PAA - coordenados,
respectivamente, pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação - FNDE,
do Ministério da Educação e pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à
Fome - MDS – Introdução a Agricultura Orgânica Manejo de Propriedade Orgânica:
certificação e comercialização, Manejo Agroecológico na produção de Ovinos,
Educação Ambiental, participação do Seminário Mel Orgânico, Instalação de uma
unidade de Sistema Agroflorestal no IFNMG/Campus Araçuaí.

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Não é propósito de nosso trabalho nos debruçarmos sobre os aspectos
específicos de cada eixo desenvolvido durante o curso. Para efeito de nossa análise,
o curso coloca-se como um meio através do qual pudemos chegar ao núcleo de
nossa análise. Em alguns momentos foi possível destacar elementos para a
constituição do pertencimento à comunidade.

2 A COMUNIDADE ALFREDO GRAÇA

A comunidade do Graça - Distrito de Araçuaí-MG está situada acerca de 30


quilômetros da sede do município de Araçuaí, à margem do Rio Gravatá. Conta com
cerca de 160 famílias. Historicamente a comunidade foi constituída em torno da
antiga Rede Ferroviária Bahia-Minas, inclusive o nome da comunidade originou-se
do Engenheiro responsável pela construção daquele trecho da ferrovia. A Estação
Alfredo Graça foi inaugurada em 31/05/1940 e desativada em 03/05/1966 (GIFFONI,
2006, p. 297). No centro da comunidade ainda persiste a antiga estação com a caixa
d’água que abastecia a locomotiva. A história da comunidade é perpassada pela
antiga ferrovia que é um marco importante para o Vale do Jequitinhonha.
Outro elemento que merece destaque é o assentamento de Reforma Agrária
através de um projeto Paraterra , em 2001 (PÊSSOA, 2012). Cavalieri (2010) em
estudos sobre migração no Vale do Jequitinhonha caracterizou esse assentamento,
afirmando que se candidataram 55 famílias, e, destas, 25 famílias foram
selecionadas. Fruto do Projeto de Reforma Agrária de Mercado, comprada por um
grupo de agricultores em 2000, por intermédio do Programa Banco da Terra, em
2001, 750 hectares de terras foram distribuídas por 21 famílias. Quatro famílias
haviam saído do programa antes da divisão. Cada família recebeu 32 hectares no
processo de divisão da terra. Muitos dos assentados foram colonos da antiga
fazenda que deu lugar ao assentamento. No momento, os agricultores finalizaram ou

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estão finalizando o pagamento de um montante de cerca de 284 mil Reais, pagos ao
Banco do Nordeste ( CAVALIERI, 2010).
O curso foi constituído por agricultores(as) vinculados a esse assentamento e
contou com 26 estudantes, com idades entre 15 a 66 anos, sendo a maioria
mulheres (21).

3 ASPECTOS METODOLÓGICOS: OS MAPAS DA MEMÓRIA COMO


RECURSO DA CONSTRUÇÃO DE TERRITORIALIDADE

Dentre as atividades promovidas no módulo: comunicação e Expressão Oral,


uma dinâmica foi utilizada para trabalhar a dimensão da memória da comunidade.
Na oportunidade propôs-se que os estudantes elaborassem o Mapa da Memória –
ou mapa afetivo, como tem sido também denominado. De antemão, a partir do
levantamento dos problemas da comunidade, apresentados por ocasião do
planejamento participativo do curso, um dos temas mais destacados foi a água.
Desta forma, a proposta do mapa da memória poderia – mas não obrigatoriamente –
passar pela temática da água.
Esta proposta partiu do pressuposto de que, para aquela comunidade, era
significativo o resgate da “memória da água’, dado que atualmente os(as)
agricultores(as) familiares vêm enfrentando sérios problemas em relação ao acesso,
utilização e preservação da água, pois muitos mananciais estão praticamente secos
e/ou sobrevivem apenas em épocas de ‘cheia’ (RIBEIRO e GALIZONI, 2003).
À medida que iam construindo os mapas e localizando os antigos mananciais,
os ‘mais velhos’ do grupo de agricultores, participantes do curso, iam ‘contando’
sobre o Rio Gravatá, principal fonte de abastecimento da Comunidade. Observou-se
que durante a construção dos mapas houve a identificação de mananciais extintos e
sobre as atividades desenvolvidas ao longo das áreas agricultáveis. De outro lado,
outras narrativas ultrapassam a temática da água, evidenciando outros temas,

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relembrando hábitos, brincadeiras, comportamentos dessas populações,
possibilitando a reconstituição de uma memória individual/coletiva. É a partir dessas
narrativas que se busca entender a constituição de um pertencimento
individual/coletivo. Dessa maneira, pôde-se esboçar uma caracterização inicial da
Comunidade do Graça- Distrito de Araçuaí-MG, por meio da memória dos próprios
agricultores envolvidos.
Gostaríamos de discutir os aspectos e possibilidades associadas à
metodologia do mapa da memória. A sala foi dividida em 3 grupos, para os quais
passou-se a atividade a ser produzida. Cada grupo deveria elaborar, livremente, a
memória sobre o Rio Gravatá antes e depois, buscando evidenciar as alterações
ambientais percebidas e suas relações com os afluentes e com o rio.
Como eram narrativas descritivas de lugares, a reconciliação evidenciada
permitiu observar as relações dos sujeitos-narradores, mas também possibilitou o
entendimento das relações da comunidade com o próprio rio e a simbologia da
antiga Estação, permitindo desvelar histórias da comunidade que permitiram as
alterações ambientais verificadas hoje. Evidenciou-se, pois, nas narrativas o papel
que a comunidade desempenhou para o atual estado do Rio Gravatá, principal fonte
de abastecimento da localidade e de outras próximas.

4 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Antes de avançarmos para a apresentação dos resultados da nossa proposta


investigativa, gostaríamos de colocar em evidência o horizonte que pretendemos
descortinar a partir das análises. Pretendemos compreender o que é uma
comunidade rural tradicional. De fato, tem sido importante tema de investigações no
campo da antropologia e sociologia, sobretudo porque o resgate da dimensão do
pertencimento a um território tradicional, tem sido um dos elementos centrais na

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defesa dos territórios das comunidades tradicionais frente à exploração capitalista da
terra.
O propósito nos faz propor duas questões norteadoras: 1) o é uma
comunidade? 2) Qual a relação do indivíduo com a comunidade?
O esclarecimento da primeira questão é essencial para o nosso trabalho, pois
implica em estabelecer as particularidades territoriais de espaço sociocultural
chamado comunidade. Para caracterização de comunidade, Bottomore (1973)
apresenta a seguinte definição extraída de Tönnies:

A comunidade é definida pelo fato de ‘viver junto, de modo íntimo, privado e


exclusivo, e Tönnies dá, como exemplos de grupos baseados nesse tipo de relações
, a família ou grupo de parentesco, a vizinhança (aldeia rural) e o grupo de amigos.
(BOTTOMORE, 1973, p. 106).
E, continuando fazendo uma diferenciação com o conceito de associação,
informa que:
(...) nas comunidades os indivíduos estão envolvidos como pessoas
completas que podem satisfazer todos os seus objetivos no grupo, ao passo que,
nas associações, os indivíduos não estão totalmente envolvidos, mas buscam a
realização de fins específicos e parciais. (...) uma comunidade é unida por um
acordo, de sentimento ou emoção entre pessoas, ao passo que uma associação é
unida por um acordo racional de interesses. (BOTTOMORE, 1973, p. 106.
Guardemos também a definição de Cândido (1975) para o bairro, termo que
ele utiliza para se referir à comunidade rural caipira. Para ele o bairro
é a estrutura fundamental da sociabilidade caipira, consistindo no
agrupamento de algumas ou muitas famílias, mais ou menos vinculadas pelo
sentimento de localidade, pela convivência, pelas práticas de auxílio mútuo e pelas
atividades lúdico-religiosas. (CANDIDO, 1975, p. 62).

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Esse primeiro aspecto revela a importância da dimensão espacial - o território
- sem a qual não haveríamos como situar a comunidade. O território é termo tomado
da geografia, indica mais do que um simples espaço. No caso do grupo em questão,
eles se identificam a partir da convivência e necessidade de cooperação. Um
elemento intrinsecamente associado à noção de território é “...o sentimento de
localidade existente nos seus moradores. (...). Entenda-se: [o bairro é] a porção de
terra a que os moradores têm consciência de pertencer, formando uma certa
unidade diferente das outras. (CÂNDIDO, 1975 p. 65).
Revela também a dimensão da cultura, no sentido que os antropólogos dão a
esse conceito, ou seja, não somente os costumes, mas também os mecanismos de
sobrevivência, as práticas cotidianas, os elementos simbólicos que integram cada
um dos componentes daquele grupo (GEERTZ, 1989). Desta forma, compreende-se
que cada comunidade realiza uma das possíveis formas da humanidade. Cada
festividade, os lugares que são estabelecidos para a religiosidade, os cemitérios, os
trabalhos coletivos, as práticas medicinais, dentre outros aspectos, são elementos
que podem ser combinados e vivenciados de diferentes maneiras, por cada
comunidade. De fato, os homens são as são as únicas criaturas que precisam
estabelecer e interpretar os diferentes sentidos para cada ação que realiza.
O outro aspecto diz respeito à relação do indivíduo com a comunidade. Como
e quando posso dizer que um indivíduo pertence a uma comunidade? De fato, se
uma comunidade se caracteriza pelos atributos culturais e espaciais que apresenta,
pertencer a uma comunidade, por parte dos indivíduos, quer dizer assumir,
autonomamente, esses atributos enquanto parte de sua vida.
A proposta metodológica evidencia uma noção territorial importante para a
definição do sentimento de pertencimento à comunidade. Os sujeitos envolvidos
com a atividade proposta ressaltaram os problemas atuais do rio e da água, sem se
esquecerem de como era o rio antes. Outro elemento importante que marcou as
exposições foi a presença da ferrovia, que marcou o surgimento de Alfredo Graça. A

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memória da antiga ferrovia está presente e outros estudos constataram essa
importância.
Destaca-se também a riqueza de detalhes com relação aos lugares que têm
água ou que não têm mais, além de um registro sobre o lugar onde nasce o Rio
Gravatá. A fala de um dos participantes do curso merece ser apresentada, já que
reforça a narrativa coletiva produzida pela comunidade:
Na verdade, o que acontece, nesta época a gente não tinha muitos
moradores, nois tinha recursos naturais que eram bem mais valioso do que a gente
tem hoje. O que que acontece, naquela época minha vó contava o seguinte: tudo
que eles comiam eles mesmos produziam. Então eu acredito que tinha muita
plantação de milho, arroz, feijão, café, urucum, … e hoje a gente acha tudo pronto
neh... naquela época não. Naquela época você comia o que você produzia. Então,
tinha a linha de trem também que era movida a água... principalmente a carvão...
que era a Maria Fumaça... e minha vó contava o seguinte: quando saia a Maria
Fumaça saia da estação .... a gente mora a mais ou menos a um quilômetro daqui
do Graça... Então, quando essa saia daqui do Graça e apitava... Dizendo ela que
quando chegava na metade da estrada que passava por ela, ela já começava a
tremer, porque como os trilhos são estreitos... apesar do trem ser muito grande, os
trilhos eram muito estreitos. Então assim, era uma linha que passava bem próxima
do rio. Então como não tem muita população eu acredito que não tinha muita
queimada. Não tinha o desmatamento que a gente tem hoje. Nesta época era muito
bonito. Eu vi umas fotos bem antiga em preto e branco. Que naquele [livro] mesmo
que (... ) me mostrou tem algumas fotos que dá pra gente vê. Não sei se nesse tem,
mas eu vi um bem parecido. E assim naquela época se for comparado a hoje a
gente tinha uma riqueza que hoje infelizmente a gente não tem. Eu lembro que eu
peguei muito piau com a minha mãe e hoje em dia a gente nem vê falando nesse
peixe mais. Curimatã tinha e hoje em dia não tem mais. Então, assim, nisso eu tô
com quase quarenta, eu acredito que o que aconteceu ai há cinquenta sessenta

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anos atrás não chega nem na metade do que eu vim à conhecer. Então assim, os
recursos naturais eram mais abundantes que hoje. (Informação Verbal)
Tal exposição foi feita por uma jovem agricultora. Note-se o recurso à
narrativa oral passada de geração em geração, desde a avó. De fato, isso constitui
um elemento essencial para o estabelecimento de laços de solidariedade social
intergeracional.
No processo de elaboração do mapa da memória esses sujeitos coletivos
constituem elos com a história que continua a ser vivida. Na oportunidade da
atividade desenvolvida, destacamos também a presença de agricultores mais velhos
que foram fundamentais para buscar elementos importantes da trama da
comunidade. Esses sujeitos remetem a dois conceitos equivalentes, embora
utilizados, por vezes, em contextos diferentes. Trata-se do conceito de “guardiões da
memória” e o conceito de “Griôs”. O primeiro termo tem sido utilizado de forma livre
por diversos autores, alguns dos quais sem o esclarecimento do seu sentido, já que
o entendem como explicativo por si. Uma autora que traz uma definição a partir da
Psicologia Cultural é Caixeta (2006, p. 12), referindo-se às pessoas que se colocam
como narradores “... privilegiados das histórias da família, onde a prática de narrar é
acompanhada, transformada e reforçada pela coleção de objetos múltiplos (...)”. O
outro conceito – Griôs ou Griot – é utilizado para identificar os sujeitos que são
reconhecidos pela capacidade de contarem história da própria comunidade. Por
diversas vezes encontramos esse termo associado às comunidades quilombolas,
destacando que suas narrativas orais remetem à ancestralidade. Por esses motivos,
os griôs são elementos importantes na permanência de práticas da comunidade.
(DUTRA, 2015).
Juntamente com essas definições que remetem aos sujeitos da memória que
portam parte da narrativa, há também a dimensão espacial que se associa também
a esta dimensão da memória trazida pelos sujeitos. Não há como falar em
comunidade sem ter em conta a dimensão territorial. Daí a importância de se

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trabalhar com os mapas da memória, remetendo à junção entre os indivíduos e o
espaço.
A propósito dessa questão espacial Seemann (2003, p. 43) sugere que:
(...) a memória precisa de espaço para ser ativada e estimulada. Neste
sentido, lugares concretos, onde se realizam eventos, acontecimentos históricos ou
práticas cotidianas, e representações visuais (mapas ou fotos) e não visuais
(literatura, música) podem servir como possíveis referenciais espaciais para a
memória.
Adiante, no mesmo texto, o autor justifica o uso da metodologia dos mapas da
memória, destacando o seu caráter dinâmico.
O mapa nunca é o ponto final, mas um estímulo muito poderoso para a
memória e a construção da identidade. Desta maneira, uma carta topográfica ou
uma planta urbana podem tornar parte da vida de uma pessoa que, na leitura de um
mapa, não apenas “localiza” lugares ou “se orienta”, mas também chega a
reconhecer localidades, percursos, casas de amigos, lembranças etc. [...] Desta
maneira, o lugar se torna um referencial para a memória. As casas e paisagens têm
histórias para contar e podem ser associadas a pessoas e acontecimentos.
(SEEMAN, 2003, p. 48 e 50
Na oportunidade, o Sr. Beu se destacou como um dos Guardiões da Memória.
Por ter nascido e ter vivido os diversos momentos da história da comunidade, sua
participação foi muito importante para fazer a conexão com os diversos sujeitos
integrantes do mapa da memória. Por ele ter vivenciado diversos momentos da
comunidade, lembra-se de cor dos diversos afluentes do Rio Gravatá, muitos dos
quais já nem existem mais. A ferrovia também ganhou um espaço significativo
dentro do mapa da memória. Muitos que participaram da atividade não chegaram a
vivenciar diretamente a época em que a ferrovia existia, todavia, como parte de uma
história contada de geração em geração, muitos deram suas contribuições,
sentindo-se também parte daquela dimensão histórica.

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Verifica-se a importância dos “guardiões da memória” para fazer a
interconexão sobre os momentos vividos pela comunidade. De fato, ao ser
desenvolvida em grupo, a atividade permitiu um diálogo entre os membros da
comunidade, dos mais novos com os mais velhos. A construção dos mapas fez
emergir parte da trama tecida pela própria comunidade que não havia sido revelada
ou então, que não havia sido elaborada ou compreendida pelo conjunto dos
agricultores envolvidos na mesma tessitura da memória. Neste ponto da atividade
percebeu-se que não conta só a narrativa dos mais experientes, ou seja, aqueles
sujeitos tidos como “guardiões da memória” ou griôs. De fato, é a interlocução é que
merece ser percebida. Desta forma, não se trata de uma narrativa que envolve, de
um lado, o narrador e, de outro, o ouvinte passivo. A elaboração gráfica do mapa
permite que os sujeitos envolvidos discutam coletivamente os aspectos da memória
a serem lembrados ou aqueles que não merecem ser.
Paradoxalmente, o que define a identidade territorial para os camponeses da
Comunidade de Alfredo Graça, são os vestígios, ou seja, os elementos simbólicos e
materiais que já não existem mais ou estão seriamente ameaçados. Os vestígios
são algumas coisas que já não estão lá, mas sabe-se que outrora marcava o auge
da comunidade. Assim são, então, os vestígios da antiga Estrada de Ferro
Bahia-Minas. Alguns trechos da ferrovia ainda estão lá, quase totalmente tomados
pelas estradas de acesso local. A Antiga estação também está lá, como marco maior
da comunidade. Praticamente todo morador tem algo a contar sobre os tempos em
que a locomotiva transitava por aquela estação. Existe uma satisfação em contar as
estórias que foram passando de geração para geração. Há uma sensação de
dramaticidade envolvendo as narrativas: os informantes consideram que a ferrovia
trazia desenvolvimento para a comunidade.
Outros vestígios são ligados à relação da comunidade com o meio-ambiente,
particularmente os vestígios do que outrora constituiu a rede hidrográfica do principal
reio que abastece a comunidade – o Rio Gravatá. Através do mapa da água pode-se

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reconstituir as antigas minas d’água e os antigos córregos que hoje não existem
mais.
As transformações ambientais, associadas à tecnologia e poluição dos
mananciais, são o resíduo com os quais a comunidade precisa lidar para sobreviver.
A problemática da água chega a ser dramática, pois impede a prática de atividades,
como a agricultura orgânica, como muitos agricultores gostariam de praticar.
Conforme fala recorrente, não é possível praticar uma agricultura com bases
agroecológicas utilizando-se da irrigação do Rio Gravatá. Os agricultores/as
informaram que o rio já chega poluído à comunidade, em função de esgoto, além do
uso de agrotóxico que é utilizado à montante do rio.

5 CONCLUSÃO

O estudo que apresentamos não pretendeu, nem pode ser tomado como uma
descrição exaustiva da comunidade. Não falamos da comunidade como se fosse um
bloco monolítico. Há contradições internas, e nem todos os integrantes do curso
partilham as mesmas visões sobre a comunidade. O próprio assentamento da
Reforma Agrária já é um recorte dentro da comunidade, fato que inclusive refletiu na
composição da turma.
Todas essas questões evidenciam uma das problemática motrizes das
ciências sociais: a relação entre o indivíduo e a sociedade. Ao explorarmos as
representações sociais dos agricultores/as percebemos que as histórias individuais
são constituídas de parte da narrativa coletiva da comunidade. Por outro lado,
também é possível conceber que a história da comunidade se faz desde a trama
silenciosa tecida por cada indivíduo. Tal constatação é relevante, sobretudo porque o
próprio exercício do mapa da memória pode ser visto como uma espécie de
tessitura. As relações familiares e de trabalho se mesclam. Trata-se de uma relação

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dialética. Por isso não há como definir a primazia de um dos elementos, mas sim
uma relação recíproca.
Enfatizamos a relevância de se construir esses espaços da memória coletiva.
A metodologia propiciou uma experiência intergeracional, com a troca de
informações. Remete ainda à recuperação da propriedade de se falar de algo
vivenciado pelo grupo, o que também seria uma forma de se apropriar da própria
história construída pela comunidade.
De fato, encontramos uma ausência documental sobre as dinâmicas
territoriais das comunidades do Vale do Jequitinhonha. Praticamente não existem
estudos sobre esses territórios tradicionais. O recurso à construção da memória da
comunidade talvez seja um dos elementos mais intrinsecamente associado à luta
pelos direitos territoriais. Decerto, reconhecer-se como parte de uma comunidade,
além de reconhecer a própria noção de território, com suas paisagens e atributos
socioculturais é ponto de partida para que tais comunidades possam lutar pelos
direitos de povos e comunidades tradicionais.
O exercício de construção dos mapas da memória - ou mapas afetivos – pelas
comunidades tradicionais é uma metodologia promissora para o trabalho com as
referidas comunidades. Através desta análise sobre uma das comunidades
tradicionais do Vale do Jequitinhonha, o Núcleo de Estudos e Pesquisas Rurais do
IFNMG – Campus Araçuaí dá mais um passo no sentido de cumprir um dos
propósitos da sua constituição: compreender as dinâmicas socioculturais associadas
ao mundo rural do Vale do Jequitinhonha.

6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOTTOMORE, Thomas Burton. Introdução à sociologia. Rio de Janeiro: Zahar;


Brasília, INL, 1973

17
CAIXETA, Juliana Eugênia. Guardiãs da memória: tecendo significados de si, suas
fotografias e seus objetos .UNB, Tese de Doutorado em Psicologia, 2006. Disponível
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CÂNDIDO, Antônio. Os parceiros do Rio Bonito. São Paulo: Livraria Duas Cidades,
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