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Kolinski, AB. Guilen, I.
Kolinski, AB. Guilen, I.
O presente artigo tem por objetivo propor uma reflexão sobre edu-
cação patrimonial a partir da experiência desenvolvida no Inven-
tário Sonoro dos Maracatus-Nação de Pernambuco, que contou
com a participação de jovens maracatuzeiros como assistentes de
pesquisa e auxiliares na produção cultural do projeto. Ao seguir
as indicações do IPHAN quanto à realização de inventários e pro-
postas de planos de salvaguarda, acreditamos ter contribuído para
que os grupos de maracatu-nação conhecessem as políticas públi-
cas voltadas para o patrimônio imaterial e definissem as principais
linhas que deverão nortear seu plano de salvaguarda. O processo
vivido é aqui discutido tendo como parâmetros análises desenvol-
vidas sobre as políticas de memória e de patrimônio em vigência
no Brasil, e no mundo, e que sinalizam para o presentismo que
determina essas políticas públicas.
Educação Patrimonial; Patrimônio Imaterial; Inventário Cultural;
Maracatu-Nação.
A música no maracatu-nação
Como já exposto, foi na contramão dessa reificação da cultura po-
pular que o supracitado inventário se propôs a registrar a sonoridade
de cada maracatu-nação, visando quebrar com a visão homogênea do
gênero, buscando ressaltar a diversidade e polissemia desta importan-
te forma de expressão musical pernambucana. Apesar do contexto ex-
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Koslinski & Guillen: Patrimônio Cultural e Ações Educativas
método que ocorre de forma mais escolar (Sandroni & Barbosa 2008).
Salienta-se que os baques de sonoridade recente são os mais aprecia-
dos pelos jovens dos grupos percussivos e pelo mercado cultural.4
Ivaldo Marciano de França Lima (2013), historiador que também
foi mestre do Maracatu-Nação Cambinda Estrela, divide os baques
dos maracatus em seis grandes grupos, que teriam como principais
criadores e representantes os maracatus Estrela Brilhante do Recife,
Porto Rico, Leão Coroado (esses três se encaixariam na categoria de
sonoridade recente pelos critérios de Carvalho), Cambinda Estrela,
Estrela Brilhante de Igarassu e Encanto da Alegria (esses últimos esta-
riam na categoria de sonoridade antiga, ressaltando-se que no caso do
Encanto da Alegria a situação ocorre quando este é regido pelo mestre
Toinho (Antonio Pereira de Souza).
O restante das nações sofreria influência em maior ou menor grau,
desses grupos, principalmente do Estrela Brilhante do Recife e Porto
Rico, dois dos grupos de maior destaque no mercado cultural, sendo
também os que mantêm relações mais intensas com a classe média e os
grupos percussivos. Nota-se que as influências de um maracatu sobre
o outro podem ser sentidas ou percebidas de diferentes maneiras, e as
razões para entendermos os motivos que levam um grupo a adotar o
modo de tocar do outro se deve a esse jogo de interesses e fascínios que
permeiam a sociedade em que vivem os maracatuzeiros. Para nós, não
é estranha ou errada a existência dessas influências (também não as en-
tendemos como descaracterizações que ameaçam uma suposta pureza
dos batuques, aliás, nem sequer concordamos com a possibilidade de
existência da mesma). Entretanto, interessava-nos buscar as razões que
nos permitiriam entender como alguns maracatus constroem seus to-
ques e os mantém em meio a uma pesada disputa de influências. Deste
modo, precisamos deixar claro que compreendemos os maracatus e os
seus agentes não como simples mantenedores de uma romântica tra-
dição que existiu no passado (e que deve ser preservada a todo custo).
Como disse Canclini “o popular não é vivido pelos sujeitos populares
como complacência melancólica para com as tradições” (1998:207).
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Koslinski & Guillen: Patrimônio Cultural e Ações Educativas
com todas as questões que ele suscita e discutidas por James Clifford
(2002). O projeto também foi integrado por auxiliares de pesquisa
que eram estagiários no laboratório de História Oral e a da Imagem
da UFPE, e que ficaram responsáveis pela transcrição das entrevistas
e pesquisa bibliográfica em bibliotecas, jornais, banco de teses e ar-
quivos públicos. Integraram ainda o projeto Tiago Guillen, também
estudante universitário, mas distante dos maracatus-nação, como fo-
tógrafo e Adriano Lima, jovem morador da comunidade de Chão de
Estrelas, como operador de câmera, responsáveis pelos registros em
vídeo e fotográfico de todas as ações realizadas no projeto.
Após a seleção dos jovens, ainda no mês de agosto, realizamos
uma reunião com os técnicos do IPHAN sobre as políticas contempo-
râneas sobre o patrimônio cultural do Brasil, visando discutir com os
pesquisadores do projeto nossos objetivos bem como a aplicação do
Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) e sua importân-
cia para os projetos em questão. Nessa mesma reunião, mas já sem a
companhia dos técnicos, aproveitamos para afinar o planejamento da
pesquisa de campo, definir as tarefas e procedimentos que aplicaría-
mos nos meses iniciais.
Os dois primeiros meses, agosto e setembro, seriam reservados
para a gravação das toadas8 dos maracatus selecionados. O plano era
realizar o registro sonoro de 19 nações de maracatu por meio de um
estúdio móvel, com o objetivo de registrar sua música na comunidade
em que cada grupo estava sediado. O estúdio móvel tinha condições
de captar e registrar a sonoridade dos maracatus feita em seu local
apropriado, ou seja, nas ruas, conforme orientações da etnomusico-
logia, que recomenda gravar as manifestações culturais de cunho ‘tra-
dicional – comunitário’ no seu locus. A gravação das apresentações
dos maracatus ficou a cargo de Alfredo Bello (DJ Tudo), experiente
músico que há muitos anos vinha gravando diversas manifestações
culturais de negros e negras ao longo do Brasil. Em Pernambuco, foi
responsável pela gravação de diversos CDs de Maracatus, dentre os
quais constam os do Maracatu-Nação Encanto da Alegria.9
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Koslinski & Guillen: Patrimônio Cultural e Ações Educativas
Bello, o trabalho foi intenso; por vezes saíamos a campo pela manhã
e terminávamos apenas no fim da noite, gravando de três a quatro
nações ao dia. Toda a equipe de pesquisa contribuiu para a produção
de registros diversos (fotográfico e vídeo), bem como atuou na pro-
dução cultural das gravações. Uma característica recorrente em todas
as nações foi a mobilização da comunidade para assistir, ajudar ou
participar de alguma maneira das atividades, tocando, cantando ou
dançando. Os maracatus-nação se tratam indiscutivelmente de refe-
rências culturais para as comunidades que os sediam. Em campo, os
pesquisadores anotaram o nome das lideranças e dos maracatuzeiros
participantes da gravação, para compor a ficha técnica da coletânea, e
também tiveram a oportunidade de conversar com eles e demais resi-
dentes da comunidade sobre os mais diversos assuntos.
Os dois meses de trabalho de campo foram muito importantes
para gerar familiaridade, confiança e conhecimento dos jovens pesqui-
sadores acerca do universo e contexto dos diferentes maracatus-nação,
percebendo não só o que eles possuíam em comum, como também
a diversidade existente entre eles, diversidade essa que não deslegiti-
mava um grupo perante o outro. Um olhar apurado como o que eles
haviam adquirido facilitaria a discussão a respeito da metodologia e
aplicação da história oral, que deveria guiar o roteiro das entrevistas a
serem realizadas com os representantes dos maracatus inventariados.
Como se sabe, para produzir o banco de dados a respeito do uni-
verso musical dos maracatus, optamos pela utilização das fichas per-
tencentes à metodologia do INRC do IPHAN. Como nosso foco já es-
tava direcionado haviam fichas que não seriam utilizadas, porém, para
decidir quais deveriam ser levadas em consideração e como se daria o
seu preenchimento, foram necessárias muitas discussões e exercícios
coletivos de preenchimento, já que em princípio o método se tratava
de uma novidade para todos da equipe. Nesse momento houve um
confronto de saberes uma vez que a interpretação e compreensão do
tipo de informação que poderia constar em cada campo mudavam
de acordo com o perfil do pesquisador. O mesmo ocorreu quando
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Conclusões
Apesar das dificuldades, o projeto conseguiu concretizar a maio-
ria de suas propostas e apresentar os produtos. Até o final de 2010,
os CDs individuais de cada nação, com o material bruto dos dias das
gravações, já estavam prontos e entregues, enquanto o CD coletivo (e
sua ficha técnica) já estava finalizado, mas aguardava evento de lança-
mento que ocorreu no dia 10 de julho de 2011. No primeiro semestre
de 2011 também terminamos de preencher as fichas selecionadas do
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Notas
1
O número de maracatus-nação pode variar de ano a ano, uma vez que nações
novas surgem ou outras encerram suas atividades pelos mais diversos motivos. Os
grupos existentes atualmente são: Almirante do Forte, Aurora Africana, Axé da Lua,
Baque Forte, Cambinda Estrela, Cambinda Africano, Centro Grande Leão Coroa-
do, Encanto da Alegria, Encanto do Pina, Encanto do Dendê, Estrela Brilhante do
Recife, Estrela Brilhante de Igarassu, Estrela Dalva, Estrela de Olinda, Gato Preto,
Leão da Campina, Leão Coroado, Linda Flor, Lira do Morro da Conceição, Nação
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de Luanda, Oxum Mirim, Porto Rico, Raízes de Pai Adão, Rosa Vermelha, Sol Na-
scente, Tigre e Tupinambá. Dentre os que encerraram suas atividades recentemente
estão o histórico Elefante e o Leão de Judá.
2
Sobre os grupos percussivos de maracatu veja-se o site http://maracatu.org.br/,
portal que tem por objetivo reunir grupo e nações de maracatu de baque virado.
Acessado em 28/09/2015.
3
Pensamos que foi esse desejo de africanizar ainda mais o maracatu de baque
virado que levou algumas nações a inserir no conjunto musical o abê (agbê), instru-
mento que não é tradicional dos maracatus-nação e sim das religiões consideradas
de matriz africana.
4
Para preencher este nicho do mercado, alguns ‘manuais’ que poderiam ajudar a
ensinar a tocar maracatu forma publicados. Veja-se Santos & Resende 2005.
5
http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/685/; acessada em 28/09/2015.
6
Inventário Nacional de Referências Culturais, metodologia desenvolvida pelo
IPHAN com o objetivo de sistematizar o conhecimento a ser produzido sobre um
bem com o objetivo de acompanhar o pedido de registro do mesmo como patrimô-
nio cultural do Brasil.
7
A coletânea produzida pelo Inventário Sonoro pode ser ouvida no canal do
LAHOI (Laboratório de História Oral e da Imagem da UFPE no youtube: https://
www.youtube.com/user/LAHOIUFPE/videos.
8
Toada é a maneira como os maracatuzeiros denominam suas ‘canções’. Tam-
bém utilizam o termo loa. A etnomusicologia possui definição distinta para os dois
termos, no entanto, dentro do contexto dos maracatus nação tais termos se tratam
de sinônimos.
9
Sobre o trabalho de Alfredo Bello ver o site sobre o selo Mundo Melhor: (http://
www.selomundomelhor.org/; acessado em 28/09/2015).
10
Uma cópia de todas as gravações encontra-se preservada no LAHOI-UFPE.
11
Inventário Sonoro dos Maracatus Nação de Pernambuco: http://inventarioma-
racatus.blogspot.com.br/.
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