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Ditaduras Es Parte 03
Ditaduras Es Parte 03
O significado da Anistia
T E RC E I R A P A RT E
O significado da Anistia
cidadãos que conseguiram exilar-se em outros países. Quanto mais a linha-dura avançava
na militarização do regime, mais se isolava e, ainda que imperceptivelmente, perdia
bases de apoio entre liberais que se aliaram ao golpe e logo tiveram suas lideranças
castigadas pela ditadura. Esses segmentos incorporaram-se, progressivamente, às
resistências da sociedade civil, que também ampliou suas bases de apoio no exterior,
influenciando o governo do general Ernesto Geisel. Ao assumir o governo, em março de
l974, Geisel prometeu iniciar um longo processo de “lenta, segura e gradual” distensão,
apesar de continuar aplicando os instrumentos jurídicos do arbítrio na cassação de
parlamentares, na condenação de cidadãos com base na Lei de Segurança Nacional, ou
publicando leis casuísticas, como o famigerado “pacote de abril”, em l977 que criou o
exótico cargo de senador biônico, único recurso capaz de fugir do julgamento da sociedade
civil, através dos processos eleitorais e, desta forma excusa, assegurar a vergonhosa e
artificial maioria dos subservientes governistas no Senado da República dos generais.
No governo do general Geisel ocorreram, nos porões da ditadura, duas mortes, em
1976, em conseqüência de torturas, e que tiveram enorme repercussão: a do jornalista
Vlamidir Herzog e a do operário Manoel Fiel Filho.
Em dezembro de l976 (dia 16), ocorre “o último ataque de vulto da repressão
contra as organizações de esquerda”: o assassinato de dirigentes do Partido Comunista
do Brasil, no episódio que ficou conhecido como “chacina da Lapa”.
A partir das eleições de l974, torna-se visível que o regime militar inicia uma trajetória
de rejeição por parte da sociedade civil. As insatisfações populares proporcionam o
crescimento do partido da oposição no Congresso.
Por outro lado, surgem novas organizações populares, como associações de moradores,
comunidades eclesiais de base, movimentos sociais que se dedicam a questões de etnia e
de gênero, como os movimentos negros, o movimento feminista pela anistia, entre
outras formas de organização social. Ao lado dessas novas formas de associacionismo, ao
lado do movimento sindical e do movimento estudantil, outras organizações
historicamente relevantes, como a Ordem dos Advogados do Brasil, a Associação Brasileira
de Imprensa, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em uníssono, denunciam o
prolongado e exorbitante arbítrio da ditadura, que extrapolou os limites dos poderes até
para o âmbito da vida humana. Foi no contexto da corajosa resistência da sociedade
civil que surgiram os Comitês Brasileiros de Anistia.
Estes Comitês logo iniciaram investigações sobre os efeitos das punições
discricionárias praticadas pela ditadura militar e constataram que havia, no Brasil, cerca
de 200 presos políticos, 128 banidos, 4.877 punidos por Atos de Exceção, 263 estudantes
atingidos pela o artigo 477 e cerca de dez mil exilados.
O governo também realizou seus estudos e constatou que, entre 1969 e maio de
1979, foram condenadas no Supremo Tribunal Militar (STM) 98 pessoas por atos
terroristas, 466 por assaltos a banco (incluídos os assaltantes comuns, pois a lei não fazia
distinção). Constatou-se que existiam ainda 217 pessoas condenadas por organizarem
partidos políticos considerados ilegais, e 280 por filiação a partidos ilegais ou grupos
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considerados subversivos. Os estudos permitiram ainda estimar que 90% dos cinco mil
punidos por atos revolucionários não tiveram processos instaurados nem culpa formada.
Estimativas mais abrangentes estimaram em cerca de doze mil pessoas, as que foram
punidas e perseguidas pelo regime militar, entre os anos 1964 e 1979.
Apesar da edição de nova Lei de Segurança Nacional (17/12/1978), os Comitês
Brasileiros de Anistia organizaram diversas manifestações públicas, debates, divulgaram
panfletos, publicaram cartazes, promoveram abaixo-assinados, lançamentos de livros e
fizeram visitas aos presos políticos, mesmo sob forte ameaça do aparato policial e dos
próceres da linha-dura. No final de 1978, foi realizado em São Paulo o 1º Congresso
Nacional da Anistia, que foi um marco político para o movimento. Foi neste evento
que se lançou a palavra de ordem “Anistia ampla, geral e irrestrita”.
Ampla, porque deveria alcançar todos os punidos com base nos Atos Institucionais,
geral e irrestrita porque não deveriam impor qualquer condição aos seus beneficiários e
nem o exame de mérito dos atos praticados.
É concedida anistia aos que, no período de l8 de setembro de l946 até a data da promulgação da
Constituição, foram atingidos em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos
de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo
nº 18 de 15/12/1961, e aos atingidos pelo Decreto-Lei nº 864 de 12/09/1969, asseguradas as
promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se
estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividades previstas nas
leis, regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades das carreiras dos servidores
públicos civis e militares e observados os respectivos regimes jurídicos.
Complementações estaduais
A lei da Anistia não se esgotou em 1979, porque não era ampla, geral e irrestrita. As
lacunas deixadas pelo regime militar foram progressivamente complementadas.
Considerando ainda, que o aparato policial e militar das unidades da federação
foram também assumidos pelo regime militar, considerando-os forças auxiliares, essas
forças estaduais também exorbitaram em suas competências repressivas, causando danos
materiais, físicos e psicológicos aos cidadãos, no âmbito dos estados, sem que se
configurasse a responsabilidade do governo federal.
Existem aí lacunas jurídicas que obrigam, moralmente, as unidades da federação a
se comprometerem com as reparações complementares, até porque os governadores dos
estados, salvo raríssimas exceções, foram todos governadores da Arena e, assim, de plena
conivência política, inclusive por terem sido eleitos indiretamente, e ao agrado do regime
militar. Os governadores arenistas cumpriram à risca as exigências da ditadura e
contribuíram para que a repressão fluísse plenamente.
Essas considerações, entre outras, propiciaram encaminhamentos de projetos de
indenizações, no âmbito das responsabilidades estaduais, em diversas unidades da
federação, através de projetos de lei, visando a reparar, por intermédio de indenizações,
prejuízos materiais ou morais àqueles que sofreram qualquer tipo de constrangimento,
tortura ou perseguição por órgãos ou agentes públicos dos governos estaduais.
Essas iniciativas e providências ocorreram nos estados de Pernambuco, Paraná, Rio
Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo, por meio de aprovação de leis estaduais que
garantem indenização para as pessoas perseguidas, mesmo que elas já tenham recebido
algum tipo de reparação em nível federal.
Em 1998, o governador paranaense Jaime Lerner convidou o deputado estadual do
Espírito Santo, Claudio Vereza, para participar da solenidade que marcou o início do
pagamento das indenizações aos ex-presos políticos. A solenidade ocorreu no dia 31 de
agosto de 1998, e os pagamentos de indenizações às vítimas começaram a ser
providenciados, com base em instrumento legal aprovado pela Assembléia Legislativa
daquele estado, através de crédito suplementar previsto no orçamento estadual. No
caso, 243 pessoas apresentaram o pedido de ressarcimento, em valores entre R$ 5.000,00
e R$ 30.000,00.
Em Santa Catarina, o secretário-adjunto da Justiça e Cidadania, Léo Rosa de Andrade,
solicitou à Casa Civil a inclusão de crédito suplementar ao orçamento do ano do ano
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2000, no valor de R$ 5,6 milhões, com a finalidade de fazer jus às indenizações de ex-
presos políticos daquele estado (A Gazeta, 22.08.99, pág.2]
Essas iniciativas também ocorreram em Pernambuco, Rio Grande do Sul e em São
Paulo, neste caso por iniciativa do governador Mário Covas.
Indenizar as vitimas da repressão patrocinada pelo regime militar, mas que foram
atingidas em seus legítimos direitos individuais por agentes estaduais, inclusive em
estabelecimentos policiais militares de propriedade do poder público estadual, é um
procedimento político-jurídico e ético, decorrente da extensão da ação repressiva às
autoridades estaduais.
Pode-se proceder ao debate político acerca do federalismo característico da República
brasileira. Neste caso, as unidades da federação sequer esboçaram reações, por meio de
suas autoridades competentes. Em outras palavras, os poderes Executivo, Legislativo e
Judiciário estaduais atuaram como colaboradores do processo repressivo, mesmo porque
essas autoridades constituídas tinham identidades de classe coincidentes, e assumiram
como inimigos regionais aqueles caracterizados pelo regime militar no plano federal.
Os polícias militares e civis do Espírito Santo foram mobilizados, às vezes, para
fazer as primeiras incursões e reprimir manifestações estudantis e sindicais que pudessem
ser articuladas, bem como perseguir os cidadãos que, em solo espírito-santense,
professavam suas identidades políticas e ideológicas.
A premissa do pleito indenizatório é que, em diversas circunstâncias, agentes públicos
estaduais também cometeram arbitrariedades contra vítimas da repressão, no interior
de estabelecimentos públicos estaduais, a exemplo do Departamento de Ordem Pública
e Social, bem como da Polícia Civil e da Polícia Militar, considerada tropa auxiliar do
Exército, bem como em unidades prisionais estaduais. Nestes casos, estão incluídas
prisões ilegais, que começaram a ser feitas já no governo de Francisco Lacerda de Aguiar,
entre 1963 e 1966.
A repressão da ditadura militar intensificou-se durante os mandatos dos governadores
da Arena, ambos indicados e ungidos por eleições indiretas, que foram Cristiano Dias
Lopes Filho (1967-1971) e Arthur Carlos Gerhardt Santos (1971-1975), em mandatos
que transcorreram no período de intensa repressão policial-militar e de intensa prática
do terrorismo de Estado.
O advogado e jornalista de O Diário, de Vitória, Ewerton Montenegro Guimarães,
defensor dos direitos humanos e da democracia face ao regime militar, em 1969, ano da
edição do Ato Institucional n° 5, denunciou a existência da organização do grupo de
extermínio “Esquadrão da Morte”, no Espírito Santo e, em seu livro A chancela do crime
– a história do Esquadrão da Morte do Espírito Santo, além dos detalhes sobre a ação dessa
organização paramilitar, afirma que o comando do grupo de extermínio, do qual
participavam policiais civis e militares, tinha seu braço forte dentro do Palácio Anchieta,
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mais precisamente na Secretaria de Segurança Pública, então dirigida por José Dias Lopes,
irmão do governador Christiano Dias Lopes (Revista de Informação Jurídica, Infojur).
O “Esquadrão de Morte” é a péssima herança do regime militar. A ele foram atribuídos
assassinatos de pessoas consideradas criminosas ou suspeitas, enterradas em cova rasa,
na Barra do Jucu, em Vila Velha. A organização teve seu início no Rio de Janeiro e, na
década de 1980, tornou-se sucessora da Escuderia Le Coq, cuja estrutura original foi
transferida do Rio de Janeiro para o Espírito Santo, sobrevivendo como braço armado
do crime organizado.
Os direitos humanos, no Espírito Santo, estiveram à mercê dessas relações promíscuas
consolidadas durante o regime militar, inclusive em outras unidades da federação. Este
era também o ambiente que interagia com os algozes da ditadura militar, em nome da
qual eram praticados atos de violência e torturas que deixaram seqüelas psicológicas
além de danos físicos, morais e profissionais, e à qual imputam-se também as demissões
de servidores públicos, até mesmo por não serem confiáveis ou coniventes com a
corrupção.
O deputado estadual Claudio Vereza seguiu a tendência verificada em outros estados
e, então, acolheu reivindicações feitas por alguns ex-militantes do Partido Comunista,
como Carlito Osório e Dines Brozeghini Braga, dentre outros. Em seguida, apresentou
à Assembléia Legislativa do Estado do Espírito Santo um projeto de lei que reconheceria
os direitos daquelas pessoas que sofreram danos em conseqüência das agressões dos
algozes da ditadura.
O projeto de lei fixou os parâmetros das indenizações entre R$ 5.000,00 e R$
30.000,00, às vitimas, em conformidade com os danos físicos, morais ou psicológicos,
bem como em decorrência de detenção indevida ou imotivada, haja vista que a maioria
das pessoas nem sequer foi condenada, quando ocorreram julgamentos. O projeto de lei
também incluiu a hipótese de pagamento de pensões especiais àquelas pessoas que
perderam o emprego e não conseguiram recuperá-lo (A Gazeta, agosto, 1999).
Enquanto tramitava o projeto, foi instalada uma Comissão Especial, composta por
representantes da Assembléia Legislativa do Espírito Santo, da Secretaria de Estadual da
Justiça, da Ordem dos Advogados do Brasil, do Conselho Regional de Medicina, do
Ministério Público, da Comissão dos Direitos Humanos, além de representantes dos
ex-presos políticos e outras entidades, com a finalidade de avaliar os requerimentos,
tipificar os casos apresentados e decidir sobre as indenizações e pensões a serem pagas.
Foi também constituída pelo Poder Legislativo Estadual uma Comissão Especial
composta pelos deputados estaduais Claudio Vereza (PT), seu presidente; Magno Malta
(PTB), vice-presidente; e Lelo Coimbra (PPS), que atuou como relator.
Essa Comissão Especial atuou entre 13/05/98 e 03/11/98, quando oitenta pessoas
prestaram depoimentos, relatando sobre perseguições ou torturas sofridas por elas no
Estado do Espírito Santo. Dentre os depoentes incluem-se José Rodrigues Rocha, Antônio
Caldas Britto, Perly Cipriano, Atílio Juffo, Carlito Osório, Dines Brozeghini Braga,
Dalva Pinheiro dos Santos, Gildo Loyola, Francisco Feitosa Norberto, Iran Caetano,
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Clementino Dalmácio Santiago, João César Leite, Antônio Granja, Juçara Albernaz,
entre outras pessoas com identidades política e ideológica definidas, razão por que
foram criminalizadas como inimigas da ditadura militar.
Foram depoimentos considerados importantes para resgatar e complementar o
conhecimento e a interpretação da história política do Espírito Santo durante o regime
militar.
Apesar da legitimidade e do caráter de justiça das reparações, apesar das repercussões
em torno da iniciativa, cuja tramitação foi amplamente veiculada pelos principais jornais
do Espírito Santo, apesar da riqueza de informações contidas nos depoimentos das
vítimas de torturas, surpreendeu a sociedade a decisão do governador do Estado, Vitor
Buaiz. Surpreendeu extraordinariamente o veto do governador à Lei aprovada pela
Assembléia Legislativa, porque impediu o cumprimento deste ato de justiça e reparação
de dívida social do Estado perante a sociedade.
Surpreendeu a decisão do veto, não pelo valor intrínseco das indenizações, mas pelo
simbolismo de que se investia; não porque o governador também fora vítima de
perseguições, mas porque a decisão caracterizava falsidade ideológica ou negação de
princípios, em relação à sua própria militância política.
Finalmente, o veto foi derrubado e a lei, promulgada pela Assembléia Legislativa do
Espírito Santo e publicada no Diário Oficial, em 5 de novembro de 1998.