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considerações
sobre judeus,
judaísmo e
antissemitismo
Enrique Mandelbaum
que a realidade nunca chega a absorver plenamente. Como o pensar, que nunca chega a ab-
sorver plenamente o irracional, isto é, o pulsional e o instintivo. O outro é tanto um objeto 1 Ver, por exemplo, os
ameaçador quanto necessário de ser integrado. A diferença é sempre transtornante. Faz parte autores da escola
dela o não conhecido que queremos desdobrar em conhecido, o vizinho com quem temos que crítica de Frankfurt,
Hannah Arendt, Em-
aprender a conviver minimamente de forma colaborativa, e o outro é também toda a nossa manuel Levinas e Zyg-
dimensão instintual, desejante, de que devemos dar conta para sermos socialmente úteis. Ao mund Bauman, cujas
reflexões considera-
estudar o fenômeno do antissemitismo e, principalmente, a escandalosa situação criada nos remos mais adiante
anos 40 do século XX – um assassinato cujo cheiro de carniça e fedor de matadouro são tão no texto.
difíceis de esconder que, passados setenta não a mais importante, é verdade, isto é, não
anos, alguns vapores dessa crueldade ainda a moldura englobante principal, uma vez que
incomodam, verdade que cada vez infeliz- o Shoá2 – a tentativa de extermínio dos ju-
mente menos –, é possível fazer do núcleo deus via assassinatos em massa – constituiu-
antissemita um ponto de observação para dar -se bem mais como um fenômeno laico do
conta dos mal-estares da civilização. Dar que inserido numa tradição religiosa. Mas o
conta tem aqui sempre um duplo viés, isto é, nacional-socialismo tentou, sim, erguer a
o viés crítico e o viés técnico-operacional. condição de Estado-nação ao lugar de exal-
Porque é sempre com essas duas modalida- tação religiosa, isto é, de dar à ideologia na-
des que nós nos relacionamos com o tecido zista o status de território redentor necessá-
social. Nós agarramos o tecido social como rio para a superação dos males que limitavam
um alicate prende um objeto, mas um alicate a civilização ocidental. Mas não foi só a re-
e um objeto estranhos, obviamente, uma vez ligião a fonte de energia consumida na cons-
que a empunhadeira nem está plenamente à trução da razão que operacionalizou o mata-
nossa disposição, nem as garras que apertam douro. Cada especialidade dos componentes
o objeto são plenamente nossas e nem o ob- civilizatórios, isto é, dos componentes da
jeto é totalmente distante de nós. Diante da cultura, contribuiu. A filosofia, principal-
realidade social, nós somos o alicate e nós mente em sua vertente histórica, talvez mais
sentimos o alicate. Nós atuamos e pensamos que todas. Sem dúvida, é o nacionalismo a
nele e a partir dele. Nós nos identificamos moldura mais abrangente do fenômeno na-
com a realidade social, a ponto de ela nos zista, e o modo de concebê-lo no interior da
constituir e determinar na mesma medida em cultura germânica é que deu a essa moldura
2 Shoá é uma palavra
hebraica, advinda da que nós tentamos constituir e determinar a sua peculiar característica. Mas, no interior
Bíblia (Isaías 47:11). Na nossas operações no interior dela, tanto ao dessa aura filosófico-político-cultural e téc-
versão em português
das Edições Paulinas, nível micro quanto ao macro, isto é, tanto ao nica, todos os componentes culturais, como
A Bíblia de Jerusalém, nível da sobrevivência pessoal quanto ao de dizíamos anteriormente, foram comprometi-
Shoá é t r a du z i d o
como “calamidade”.
operacionalizar técnica e esteticamente a ar- dos. Os matadores no caso eram, antes de
A palavra em hebraico quitetação da tessitura social. E é nesse ter- mais nada, membros de um partido, isto é,
foi escolhida pelos es- ritório que esses autores alocam o antissemi- suas alianças de convivência e de trabalho
tudiosos para retirar
das vítimas a resso- tismo, para que os homens, nas suas múltiplas deviam fidelidade a uma visão de mundo e
nância de qualquer manifestações enquanto indivíduos, povos, de homem específica, erguida à condição de
conotação de sacri-
fício. O próprio versí- cidadãos, religiosos, artistas, intelectuais, construção histórica da nação alemã. E era
culo em que a palavra técnicos, políticos, etc., levem em considera- como membros do partido que esses homens
aparece traz o sentido
da emergência de um
ção, como um alarme crítico, as profundas atuavam como especialistas, isto é, alguns
desastre imprevisto. dificuldades que estão implicadas no traba- faziam cálculos, outros escreviam matérias
Diz o versículo: “Uma lho de absorção do outro e as sérias conse- de jornal, uns outros cuidavam dos procedi-
desgraça te sobrevirá,
tu não saberás como quências destrutivas que podem aflorar a mentos mais eficazes para consumar o exter-
conjurá-la; uma ruí- partir de uma lógica que, quando menos es- mínio, outros trabalhavam no sentido de que
na se desencadeará
sobre ti e tu não po- peramos, isto é, de forma inconsciente, salta, todo esse esguichar de morte perturbasse o
derás afastá-la”. Raul da lógica da razão para a lógica do reprimi- menos possível a necessária rotina, para qua-
Hilberg, o historiador
mais conceituado no do. O que esses autores visam mobilizar é a lificar como natural a ocorrência do dia a dia
campo de estudos poderosa emergência do irracional, que pode dos homens. Outros ainda educavam os ho-
do antissemitismo no
atuar latentemente no uso da razão instru- mens para absorverem esse fato e se sentirem
período nazista, en-
globa no termo Shoá mental. Toda essa carniça humana produzida também purificados e gratos, isto é, melho-
todas as etapas da nos anos 40, toda a estruturação desse gigan- rados graças ao dispêndio de tanta energia e
política de extermínio
nazista: a definição, a tesco matadouro, são realizações de muita trabalho no empenho para a construção e
concentração, a ex- técnica, e colaboraram para a sua aplicação atividade desse matadouro. Com certeza,
propriação, a depor-
tação e o extermínio os melhores componentes da razão humana: imagino que deveria haver – e isso pode ser
dos judeus. livros religiosos produziram a aura religiosa, constatado numa pesquisa bibliográfica – até
atividade racional. Bauman lembra que não daicizaram após o Shoá. Freud, Marcuse,
há esse hiato entre mito – o campo do irra- Adorno, Benjamin, Marx, Lévi-Strauss,
cional – e razão que a teoria crítica funda Hobsbawm e Derrida, só para citar algumas
antropologicamente a partir de uma leitura referências nucleares no pensamento crítico
psicanalítica. Talvez Bauman não seja menos contemporâneo, são judeus. E esse é um ele-
psicanalista do que os autores da escola crí- mento absolutamente irrelevante ou não, de-
tica. Mas, para ele, nas formas sociais, na pendendo do andar da carruagem social,
tessitura organizacional promovida pela téc- como bem mostram os estudiosos do antis-
nica, ou seja, nessa tessitura que não é mais semitismo. Em períodos menos perturbados
um fenômeno divino, nem tampouco plena- e de razoável estabilidade social, é até de má
mente humano, mas racional e organizacio- educação levar em consideração a origem
nal, proveniente de modelos de urbanidade, judaica do sujeito que está pensando ou en-
a operacionalidade dessa razão sente-se de- volvido em qualquer atividade social parti-
mandada e fortalecida para construir os ma- cular. E muito mais ainda se é uma atividade
tadouros que forem necessários e, para ele, acadêmica, econômica ou política. Mas pode
um matadouro humano é sempre um mata- se dar o caso de que esse elemento salte para
douro humano, independente do tamanho e a superfície e promova uma releitura com
da quantidade de produto morto que pode suspeitas – uma postura aliás íntima de qual-
alcançar. É Bauman que fala dos modelos da quer leitura crítica. O judaísmo da maioria
jardinagem e da medicina para referenciar as desses pensadores era essencialmente redu-
tecnologias sociais contemporâneas. Todo zido a algo assim como uma sensibilidade
que deve ser supera- jardineiro sabe que cuidar do bom cresci- ainda não plenamente assimilada por um
da para que a luta pela
justiça e o aperfeiço- mento e harmonia de um jardim significa modo de ser do Ocidente. Eles não se consi-
amento dos homens podar certas plantas, arrancar outras, cultivar deravam propriamente judeus, mas homens
possam se realizar.
Seu discurso, marca- algumas, saber administrar a água e outros construtores do Ocidente. Não se sentiam
do sempre por dizer materiais orgânicos na proporção certa, en- apartados, e todos os seus esforços críticos
algo bem enfático
e depois relativizar,
fim, tudo menos deixar crescer naturalmente, – os elementos sublimados, diria Freud, das
mas deixando no ar para além de não esquecer a ideia tão freu- suas atividades profissionais – iam na dire-
vapores da ênfase pri- diana de que o jardineiro não passa de ao ção de uma melhor elaboração e aperfeiçoa-
meira, é um exemplo
cristalino de como o mesmo tempo ser um jardim e até uma plan- mento do organismo social. E me parece que
antissemitismo pode ta de outro jardim que o inclui. Lembremos não é um exagero dizer que o trauma do ma-
ainda ser posto em
circulação no interior o poema de Borges sobre o jogador de xadrez tadouro nazista proporcionou uma maior
de uma aura progres- que é também uma peça de um jogo de xa- afinidade de homens críticos do Ocidente
sista e contemporâ-
nea, aparentemente
drez maior. E, na medicina, também cuidar para com as ideias desses pensadores, e até
sem ranços religiosos, de um organismo humano significa detectar para com o campo desses pensadores: a pro-
econômicos, nacio- os elementos que o podem adoecer, como um blemática do outro e as patologias que estão
nalistas ou racistas.
Trata-se talvez de vírus ou bactéria ou uma célula cancerígena implicadas nas formas de reconhecimento ou
um antissemitismo podem adoecer um corpo. Para além de to- desconhecimento do outro. As identidades
político-cultural, o
que é algo deveras in- das as prescrições de dietas e exercícios físi- nacionais passaram a ser vistas com descon-
teressante de estudar, cos necessários para a saúde do corpo e da fiança. Borges discute sempre os limites que
uma vez que ele opera
com autores princi-
atividade humana. Eu não quero, nesta mi- a cor local oferece para o trabalho do inte-
palmente advindos nha contribuição, tratar em profundidade o lectual. Este, por assim dizer, não deve mais
do campo judaico rico material que advém dessas linhas de se deixar entusiasmar plenamente com o rio
– Freud e todos os
intelectuais da teoria estudo do antissemitismo e que sem dúvida da sua aldeia. Levar em consideração outros
crítica. Comporta-se são essenciais para a compreensão da vida rios é necessário, não tanto para a apreciação
como um europeu
querendo liberar o social dos homens, o que quer dizer, nesse do próprio rio – deleite estético este que vale
campo das ciências caso, uma elaboração traumática da experi- a pena sacrificar talvez –, mas para aperfei-
humanas das interfe-
rências judaicizantes.
ência com o matadouro no campo das ciên- çoar a aldeia. Na expressão “o rio da minha
Freud deve explicar. cias humanas. Estas, por assim dizer, se ju- aldeia”, sem dúvida que o sujeito principal é
a aldeia. Claro que o rio é uma metáfora de ou inglês, tem um sotaque espanhol ou por-
melhor suporte para o encontro da história tuguês, alguns ousadamente arriscam o co-
do que a própria aldeia. É no rio que reper- reano ou o chinês, nosso Haroldo de Campos
cute o que há de movimento na história, ten- teimava em insistir sobre a necessidade de o
dendo a deixar a aldeia, o hábitat humano, estudioso habitar em Babel, apesar das mal-
como território para a metáfora da imobili- dições que pairam sobre ela. Isso quer dizer
dade ou do quietismo. Depois da Segunda judaicizar as ciências humanas: legitimar um
Guerra Mundial, não há mais aldeias, e nem estranhamento pessoal que o crítico saiba
mais rios. Ao menos não nessa condição de tanto presente em si quanto no seu objeto de
territórios estritamente demarcados. Rios e crítica, até no local em que exerce a crítica e
aldeias se misturaram, a ponto de qualquer na própria visão de mundo, de homem e de
estudioso ou técnico das ciências humanas si a partir da qual realiza a sua crítica. Digo
saber que as aldeias se agitam como rios e os judaicizar porque, para esses autores, o juda-
rios estancam como aldeias. O fenômeno da ísmo é exatamente isso. Como Hannah
modernidade e da industrialização, da técni- Arendt, que tratou disso mais especificamen-
ca e da leitura crítica, amalgamou em globa- te em Origens do Totalitarismo, mostra, o
lização, o que também quer dizer que retirou judaísmo serve como uma metáfora de todos
todos os críticos sociais das suas aldeias e aqueles elementos que não se deixam assimi-
rios particulares. Todo estudioso é um via- lar totalmente na construção de uma realida-
jante, de algum modo arranha o seu francês de totalitária – e o imperialismo, para ela,
não é mais do que uma expansão do totalita- semitismo vivo em ambas as ocasiões, como
rismo até os últimos limites do humano. Mas o comer, o copular, o negociar, o se entender
podemos pensar essa questão a partir de um ou se desentender, etc., estão vivos em ambas
outro lugar, trazendo à cena um judeu con- as situações, a ponto de corrermos o risco de
creto, não somente um conceito ou um ter- novamente alocar o antissemitismo na me-
ritório metafórico abstrato – capaz de abrigar tafísica dos homens. Por isso é importante
familiaridades do outro e do estranhamento, sempre lembrar, como o professor Yehuda
como o rio abriga a transformação e a aldeia, Bauer4 gosta de fazer, que o antissemitismo
a permanência –, mas a presença de homens pressupõe um judeu específico de carne e
e mulheres judeus concretos, atuantes na ci- osso, que está implicado. Hannah Arendt,
vilização. de um modo diferente de Bauer, também faz
O antissemitismo é um conceito relati- isso em sua importante leitura Antissemitis-
vamente moderno, surgido em 1879, criado mo, Instrumento de Poder, primeira parte
por Wilhem Mahrr, um teórico alemão que da trilogia Origens do Totalitarismo. Sartre
pretendia diferenciar as formas negativas de toma mais essa via pela qual o antissemi-
relacionamento do corpo social maior, laico tismo não precisa de judeus especificamente
4 O professor Yehuda
Bauer foi diretor do e nacional, com os judeus, das modalidades para manifestar-se. É dele essa estranha con-
Centro de Estudos de ódio aos judeus próprias das organizações clusão, para um humanista, de que, se não
do Holocausto do Ins-
tituto Yad Vashem, sociais religiosas que anteriormente eram houvesse judeus, eles seriam criados. Talvez
museu e centro de chamadas de judenhass – “ódio aos judeus”. o problema da civilização ocidental é que,
documentação e pes-
quisa do Shoa, em
O problema desse conceito é que ele mitiga para além de existir o judeu metafísico, exis-
Jerusalém, e atual- o fenômeno do qual quer dar conta, e esse te o judeu concreto. E é dele que eu quero
mente é professor da ofuscamento é um problema. Porque ele em tratar um pouco agora. O que é judaísmo?
Universidade Hebrai-
ca de Jerusalém. si já é uma tentativa de assimilação. Refiro- O que é um judeu? Qual é a materialidade
5 Disse ele a respeito -me ao ofuscamento do elemento judeu. Nin- dessas abstrações, se é que existe alguma,
de seu judaísmo, em guém é propriamente antissemita. Isso não e que com certeza não é em nada posta em
sua comunicação de
6 de maio de 1926
faz sentido. Ninguém é propriamente contra cena na palavra “semita”? Claro que falar
aos membros da Bnei as línguas semitas, porque é isso que a pa- disso é tão difícil quanto falar de antissemi-
Brith, entidade ju- lavra quer dizer. E tratar o judeu como um tismo. Vou me valer de um texto de Emanuel
daica beneficiente à
qual pertencia: “Eu semita implica entendê-lo como Mahrr o en- Levinas, outro autor que fez da experiência
próprio sou judeu, e tendia – isto é, a partir de um critério nacio- do Shoá um traço fundacional para a sua
sempre me parecerá
não somente indigno nal-racial. Poucos judeus são propriamente elaboração teórica. Levinas via a sua con-
como positivamente semitas. Muitos judeus são – para usar essas dição judaica de forma muito diferente da
insensato negar esse
fato. O que me ligava
referências – de origem caucasiana, e neles de Freud ou Adorno, por exemplo. E esses
ao povo judeu não era é difícil achar atributos dos povos semitas traços biográficos, se de fato levamos em
(envergonho-me de propriamente ditos. Quer dizer, o conceito de consideração as concepções de Freud, são
admitir) nem a fé, nem
o orgulho nacional, antissemitismo já em si opera uma repressão. determinantes do modo de ver o mundo e
pois sempre fui um Deixa na sombra o sujeito sobre o qual se é construir uma teoria sublimada. Lembremos
descrente e fui edu-
cado sem nenhuma contra. Porque o anti, sim, é bastante claro. que, para Freud, toda visão de mundo pessoal
religião... Mas resta- E além disso, abre o conceito para acolher suporta-se no terreno de uma biografia tão
vam muitas outras
coisas que tornavam
em seu interior uma história tão complexa íntima quanto uma história familiar. Nossas
a atração do mundo de relacionamentos que simplesmente abarca melhores abstrações, que não são tanto as
judeu e dos judeus
mais de 3.000 anos. Isso quer dizer múltiplas que queremos, mas as que podemos ter, ou
irresistível – muitas
forças emocionais metamorfoses em situações históricas que melhor, não tanto as mais objetivamente ade-
obscuras que eram são inconciliáveis entre si, e tão diferentes quadas para responder ao momento histórico,
mais poderosas quan-
to menos pudessem quanto podem ser os anos 40 do século XX mas as que surgem de nosso envolvimento
ser expressas em pala- e os anos 40 do século XVI, por exemplo. com o mundo, são sempre determinadas pela
vras, bem como uma
nítida consciência É outra história, são outros homens. E, no materialidade ideacional de nossa vida em
de identidade inter- entanto, não nos é difícil vislumbrar o antis- família. Para Levinas, seu judaísmo não é
superado, mas como um elemento da reali- da judaico, uma sensibilidade cultural dife-
dade. Diz ele: rente e viva. Levinas, assim, não responde à
pergunta “o que é ser judeu?”. Ele respeita
“As principais formas desta religião muda- a existência de um mistério, que é o melhor
ram pouco em 2.000 anos e testemunham lugar onde se pode alocar principalmente a
um espírito que é plenamente consciente de sensibilidade cultural viva no judeu assimila-
si próprio e que é refletido na literatura re- do, que pulsa nele como a cicatriz em Ulisses.
ligiosa e moral e, no entanto, por envolver E é esse mesmo mistério talvez também o
essa difícil liberdade, está aberto a novos melhor lugar onde se pode alocar o judaís-
desenvolvimentos”. mo para entendermos a atribulada história
do judeu e seu relacionamento com o mundo
Por isso, para Levinas, judaísmo tem e em torno. É essa condição de mistério que
significa uma cultura que é tanto o resulta- talvez possibilite a emergência das violências
do quanto a fundação de uma religião, e que e horrores familiares ao matadouro ao longo
se posiciona diante de todos os eventos hu- da história. É bom que se lembre: a história
manos munida de uma consciência histórica dos judeus e do Ocidente não se reduz aos
singular. Como entender, nessa definição, matadouros e suas variantes. Ao contrário,
aqueles que se identificam com o judaísmo, as relações podem ser extremamente produ-
mas não acreditam em D’us e não são judeus tivas durante longos períodos, para progres-
praticantes? Levinas diz que, para muitos dos sivamente serem reorganizadas em suspeita
judeus assimilados à civilização em torno e derivativos de violência e agressão. E se
deles, o judaísmo não pode nem mesmo ser quisermos pegar esses complexos processos
compreendido como uma cultura: “Trata-se por outro fundamento, o que quer dizer um
de uma vaga sensibilidade, feita de várias outro momento desse ciclo, a suspeita e os
ideias, memórias, costumes e emoções, reuni- derivativos de violência são transformados
dos com um sentimento de solidariedade para em novos momentos de integração mais
com os judeus que são perseguidos por se- criativos. Para Levinas, o mistério é inerente
rem judeus”. É interessante que, nesse texto, ao judeu. Diz ele: “Este mistério reflete um
Levinas relaciona essa sensibilidade com o senso de presença diante da história singu-
sentimento de solidariedade para com outros lar”, ou seja, essa sensibilidade judaica é o
estranhos-semelhantes. Nas visões antissemi- mistério de Israel, que cada judeu carrega
tas mais torpes, o que não quer dizer menos consigo, e que não se reduz a uma naciona-
poderosas, é exatamente esse sentimento de lidade, ou uma religião, ou uma civilização
solidariedade que é explorado perversamente. fossilizada na qual vivem alguns, ou um apai-
Assim, no panfletário e forjado Protocolos xonado desejo por um mundo melhor. Mas,
dos Sábios de Sião, essa solidariedade é apre- para Levinas, o judaísmo enquanto mistério
sentada como a realização de uma paranóica abarca também o para além do judeu, por-
organização judaica que urde em segredo, que o judaísmo é também a fonte das grandes
desde os primórdios do mundo até os dias de religiões monoteístas, das quais, diz ele, “o
hoje, o domínio da humanidade. A solidarie- mundo moderno é dependente, tanto como
dade existe, assim como existe a sua leitura a antiga Grécia e Roma eram dependentes
perversa. E para um terceiro, um não judeu, das antigas religiões”. E se, ao nível pessoal
lidar com o conhecimento dessa solidarieda- do judeu, o judaísmo é uma cultura ou um
de, sem que, na sua visão de terceiro, isso embrião cultural a latejar, isto é, uma tradi-
implique transformá-la em perversão, é um ção e uma abertura, ao nível da cultura geral
desafio permanente. Esse é um dos desafios ocidental o judaísmo pertence ao momento
que o judeu lança ao Ocidente. Ele é parte presente não apenas através de conceitos e
da civilização ocidental, mas é uma cultura livros produzidos no interior dessa cultura,
diferente. Ou, no caso assimilável, mas ain- mas igualmente, diz ele, “através de homens
outros países europeus também participaram xam claro que se trata de um antissionismo,
da realização do matadouro, facilitando ora o que quer dizer contra a existência de um
a identificação e reunião das vítimas, ora o Estado judeu. Em todo caso, é delicado ar-
transporte, inclusive até no próprio interior do gumentar que foram exclusivamente as polí-
açougue, na concretização da morte. Como ticas de construção do Estado de Israel que
puderam todos esses homens participar de despertaram esse ódio árabe, uma vez que
tamanha barbárie? Esse é um outro mistério. esse antissemitismo, na sua forma idealiza-
O que Wistrich mostra é que o antissemitis- da, faz circular entre o povo árabe a ideia de
mo, além de persistente, intenso e ambiva- extermínio do Estado de Israel. Mas, na sua
lente, é adaptável ao espírito da época. Isto forma pragmática, atém-se ao uso necessário
é, tratar-se-ia de um magma interno correndo para o jogo político, na manutenção de deter-
história adentro – a cicatriz de Ulisses talvez minados interesses de grupos oligárquicos do
seja uma referência à presença desse mag- poder árabe. Não foi de outra maneira que a
ma –, capaz de manifestar-se com explosão Jordânia e o Egito fizeram a paz com Israel, e
quando menos esperado, e de uma forma ple- essa atitude ganha maior transparência quan-
namente naturalizada ao espírito da época, do levamos em consideração o modo como
ou seja, o antissemita fruiria dessa sua ação a liderança palestina posiciona-se diante de
não como algo irracional. Não se trata de Israel: querendo negociar com um Estado
uma metamorfose em besta, mas, utilizando que ela não reconhece. Verdade que, logo
a expressão de Hannah Arendt, manifestan- após a guerra de 1967, Israel também temia
do a banalidade do mal. Para Wistrich, dado reconhecer a existência da nação palestina,
o fluxo da história, o núcleo da problemática porque desde os primórdios do sionismo, o
judaica transferiu-se para o Oriente Médio reconhecimento da legitimidade do retorno
e, então, o bastão antissemita passou para o dos judeus a Israel por parte dos árabes era
mundo muçulmano. Claro que não se trata negado. Esse foi o motivo da guerra de 1948,
de afirmar que o mundo árabe é antissemita. quando da declaração do Estado de Israel.
Mas de salientar que lá, em alguns setores, Talvez se possa argumentar que, após 63
organiza-se sim um discurso que é portador anos da sua independência, Israel se sente
de ódio aos judeus, no caso aqui de um ódio mais seguro para lidar com as pendências
ao Estado de Israel, infinito, a ponto de negar- do povo palestino. Mas o mesmo não se dá
-lhe o direito de existir, pregando a sua extin- de forma mais transparente no interior da
ção completa. Hannah Arendt, no volume das liderança palestina, fragmentada entre uma
Origens do Totalitarismo que trata da ques- linha mais conflitiva e outra de abertura ao
tão anti-semita, mostra o quanto o judaísmo diálogo, ambas totalmente dependentes do
está implicado no fenômeno antissemita: a interjogo político árabe maior, em cujo in-
repercussão político-econômico-cultural terior a postura contra Israel assume uma
dos modos como os judeus se assimilaram dimensão importante, nos mecanismos de
aos emergentes estados nacionais europeus legitimação das autoridades árabes e no ma-
não é para ela um fator externo à manifes- nejo de seu poder diante de suas realidades
tação dos fenômenos antissemitas por ela sociais. É esse uso político que interessa a
estudados. Transferindo essa leitura para a Hannah Arendt. E, por isso, se ela leva em
análise que Wistrich faz, a história do sio- consideração, em seus estudos, as qualidades
nismo também estaria obviamente implicada da resposta assimilatória judaica ao processo
na emergência desse antissemitismo muçul- de modernização que implica uma relação
mano. Aqui o termo “antissemita” mostra-se entre a expansão da igualdade e a extensão
até mais frágil ainda, porque como pode um da cidadania, de um lado, e a concepção de
muçulmano ser antissemita, isto é, contra a uma máquina estatal independente, superior
sua própria origem linguística? Os discursos às classes e representativa da nação como um
que têm sua origem no Irã, por exemplo, dei- todo, de outro – no caso contemporâneo, a
B I B LI O G R AFIA