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Algumas

considerações
sobre judeus,
judaísmo e
antissemitismo
Enrique Mandelbaum

Q uem se preocupa com o fenômeno social, isto é, quem se


preocupa com a qualidade da tessitura social e com os
modos como os equipamentos técnicos, tanto público-
-estatais quanto privados e seus mais contemporâneos
sucedâneos de interação mista, tentam intervir nas formas
de organização e apresentação dessa tessitura social, deve
estudar o fenômeno do antissemitismo e o modo como ele
se manifestou ao longo da história por mais de vinte sé-
culos. Diversos autores1 inclusive chegam a transformar
o antissemitismo num elemento essencial a ser levado em consideração tanto na compreensão
quanto na elaboração do funcionamento da tessitura social, principalmente no que diz respei-
to aos modos de lidar com a sombra do outro, que sempre acompanha toda organização social.
O outro não é apenas o vizinho. Todos os fenômenos humanos têm seu outro, uma sombra
ENRIQUE
MANDELBAUM
é psicanalista e autor
de Franz Kafka:
um Judaísmo na
Ponte do Impossível
(Perspectiva).

que a realidade nunca chega a absorver plenamente. Como o pensar, que nunca chega a ab-
sorver plenamente o irracional, isto é, o pulsional e o instintivo. O outro é tanto um objeto 1 Ver, por exemplo, os
ameaçador quanto necessário de ser integrado. A diferença é sempre transtornante. Faz parte autores da escola
dela o não conhecido que queremos desdobrar em conhecido, o vizinho com quem temos que crítica de Frankfurt,
Hannah Arendt, Em-
aprender a conviver minimamente de forma colaborativa, e o outro é também toda a nossa manuel Levinas e Zyg-
dimensão instintual, desejante, de que devemos dar conta para sermos socialmente úteis. Ao mund Bauman, cujas
reflexões considera-
estudar o fenômeno do antissemitismo e, principalmente, a escandalosa situação criada nos remos mais adiante
anos 40 do século XX – um assassinato cujo cheiro de carniça e fedor de matadouro são tão no texto.

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difíceis de esconder que, passados setenta não a mais importante, é verdade, isto é, não
anos, alguns vapores dessa crueldade ainda a moldura englobante principal, uma vez que
incomodam, verdade que cada vez infeliz- o Shoá2 – a tentativa de extermínio dos ju-
mente menos –, é possível fazer do núcleo deus via assassinatos em massa – constituiu-
antissemita um ponto de observação para dar -se bem mais como um fenômeno laico do
conta dos mal-estares da civilização. Dar que inserido numa tradição religiosa. Mas o
conta tem aqui sempre um duplo viés, isto é, nacional-socialismo tentou, sim, erguer a
o viés crítico e o viés técnico-operacional. condição de Estado-nação ao lugar de exal-
Porque é sempre com essas duas modalida- tação religiosa, isto é, de dar à ideologia na-
des que nós nos relacionamos com o tecido zista o status de território redentor necessá-
social. Nós agarramos o tecido social como rio para a superação dos males que limitavam
um alicate prende um objeto, mas um alicate a civilização ocidental. Mas não foi só a re-
e um objeto estranhos, obviamente, uma vez ligião a fonte de energia consumida na cons-
que a empunhadeira nem está plenamente à trução da razão que operacionalizou o mata-
nossa disposição, nem as garras que apertam douro. Cada especialidade dos componentes
o objeto são plenamente nossas e nem o ob- civilizatórios, isto é, dos componentes da
jeto é totalmente distante de nós. Diante da cultura, contribuiu. A filosofia, principal-
realidade social, nós somos o alicate e nós mente em sua vertente histórica, talvez mais
sentimos o alicate. Nós atuamos e pensamos que todas. Sem dúvida, é o nacionalismo a
nele e a partir dele. Nós nos identificamos moldura mais abrangente do fenômeno na-
com a realidade social, a ponto de ela nos zista, e o modo de concebê-lo no interior da
constituir e determinar na mesma medida em cultura germânica é que deu a essa moldura
2 Shoá é uma palavra
hebraica, advinda da que nós tentamos constituir e determinar a sua peculiar característica. Mas, no interior
Bíblia (Isaías 47:11). Na nossas operações no interior dela, tanto ao dessa aura filosófico-político-cultural e téc-
versão em português
das Edições Paulinas, nível micro quanto ao macro, isto é, tanto ao nica, todos os componentes culturais, como
A Bíblia de Jerusalém, nível da sobrevivência pessoal quanto ao de dizíamos anteriormente, foram comprometi-
Shoá é t r a du z i d o
como “calamidade”.
operacionalizar técnica e esteticamente a ar- dos. Os matadores no caso eram, antes de
A palavra em hebraico quitetação da tessitura social. E é nesse ter- mais nada, membros de um partido, isto é,
foi escolhida pelos es- ritório que esses autores alocam o antissemi- suas alianças de convivência e de trabalho
tudiosos para retirar
das vítimas a resso- tismo, para que os homens, nas suas múltiplas deviam fidelidade a uma visão de mundo e
nância de qualquer manifestações enquanto indiví­duos, povos, de homem específica, erguida à condição de
conotação de sacri-
fício. O próprio versí- cidadãos, religiosos, artistas, intelectuais, construção histórica da nação alemã. E era
culo em que a palavra técnicos, políticos, etc., levem em considera- como membros do partido que esses homens
aparece traz o sentido
da emergência de um
ção, como um alarme crítico, as profundas atuavam como especialistas, isto é, alguns
desastre imprevisto. dificuldades que estão implicadas no traba- faziam cálculos, outros escreviam matérias
Diz o versículo: “Uma lho de absorção do outro e as sérias conse- de jornal, uns outros cuidavam dos procedi-
desgraça te sobrevirá,
tu não saberás como quências destrutivas que podem aflorar a mentos mais eficazes para consumar o exter-
conjurá-la; uma ruí- partir de uma lógica que, quando menos es- mínio, outros trabalhavam no sentido de que
na se desencadeará
sobre ti e tu não po- peramos, isto é, de forma inconsciente, salta, todo esse esguichar de morte perturbasse o
derás afastá-la”. Raul da lógica da razão para a lógica do reprimi- menos possível a necessária rotina, para qua-
Hilberg, o historiador
mais conceituado no do. O que esses autores visam mobilizar é a lificar como natural a ocorrência do dia a dia
campo de estudos poderosa emergência do irracional, que pode dos homens. Outros ainda educavam os ho-
do antissemitismo no
atuar latentemente no uso da razão instru- mens para absorverem esse fato e se sentirem
período nazista, en-
globa no termo Shoá mental. Toda essa carniça humana produzida também purificados e gratos, isto é, melho-
todas as etapas da nos anos 40, toda a estruturação desse gigan- rados graças ao dispêndio de tanta energia e
política de extermínio
nazista: a definição, a tesco matadouro, são realizações de muita trabalho no empenho para a construção e
concentração, a ex- técnica, e colaboraram para a sua aplicação atividade desse matadouro. Com certeza,
propriação, a depor-
tação e o extermínio os melhores componentes da razão humana: imagino que deveria haver – e isso pode ser
dos judeus. livros religiosos produziram a aura religiosa, constatado numa pesquisa bibliográfica – até

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técnicos para cuidar dos eventuais efeitos te de homem e de sociedade a que almejam
traumáticos que, sem dúvida, eles sabiam que chegar? Na religião, dizia Nietzsche. Mas
açougues como esses trazem consigo. E se acreditava que a política e a estética podiam
alguém sentisse pena ou, digamos, nojo? A sucedê-la com mais eficácia, para superar os
máquina deveria superar essas inibições que horizontes de idealização em que as formas
a fraqueza dos homens tantas vezes eviden- religiosas, absorvidas por um Estado laico,
cia na forma de sintomas culturais. Matar ainda punham à disposição de si, na manu-
não é fácil para quem já se domesticou. E tenção de um organismo social em cujo inte-
essa inibição era uma das coisas a serem su- rior os interesses econômicos, políticos, cul-
peradas no âmago da construção do mata- turais, de classe e necessidades humanas
douro. O matadouro implicava a morte de pudessem ser realizados. Para o intelectual
todos os milhões de homens, mulheres e Adorno, talvez o mais conhecido da escola
crianças judias, velhos, adultos, adolescentes crítica, o escândalo do matadouro o faz sus-
e bebês, de judeus saudáveis ou doentes, re- pender seu engajamento mais espontâneo –
ligiosos ou não, nobres, intelectuais, liberais, por afinidade eletiva, por assim dizer – com
socialistas ou mercadores, trabalhadores ou as ideias revolucionárias do campo marxista,
desocupados. De bêbados ou sóbrios, enfim, porque é exatamente essa afinidade eletiva
não havia tempo para uma filtragem mais que deve ser cuidadosamente observada, e o
fina. Talvez se cometessem alguns excessos, entusiasmo que dela advém – um entusiasmo
o que quer dizer a morte de alguém que não poético de encantamento e mo­bilização –
merecesse seu lugar de vítima nesse mata- deve se tornar não mais exclusivamente uma
douro. Mas aqui a pureza, a totalidade, dada mola propulsora para a atividade intelectual,
3 Grande parte do dis-
a lógica da operação, somente dignificava mas um dos campos de elaboração crítica curso de Slavoj Zizek,
ainda mais a realização ideológica: não se para a emergência de uma razão mais cons- filósofo, psicanalista e
ativista em evidência
tratava de nada pessoal, a realização dessa trutiva, que saiba limitar-se na ação destru- no campo intelectu-
nova civilização significava pagar o preço do tiva que lhe é inerente, para não sacrificar os al, visa exatamente
superar o estado de
matadouro. É conhecido de muitas aventuras outros. Antes de mais nada, para Horkheimer coisas emergente a
humanas o momento em que um grupo de e Adorno, devemos sacrificar nossa afinidade partir da teoria crítica.
realizadores se pergunta: “E aí, quem vai eletiva totalizante. É como se a razão, se qui- Zizek posiciona-se
como um intelectual
fazer o trabalho sujo?”. E, de algum modo, sesse trabalhar bem, abrisse mão de um ho- que conclama para
nesse período, quase a totalidade da chama- rizonte ideacional, mas cuidando de que essa um engajamento que
supere as amarras
da civilização europeia e ocidental arregi- operação não significasse em si um novo da crítica. Reiterada-
mentou-se nessa atividade tão complexa e horizonte ideacional e ideológico: não deve- mente utiliza o fe-
nômeno nazista e o
polêmica. Adorno, por exemplo, um dos mui- mos ser crentes da técnica que utilizamos. Shoá, mas dessa vez
tos que tomaram para si, a partir do Shoá, a Mais ainda: não devemos ser crentes de for- entendendo-os como
responsabilidade de transferir o engenho ma alguma. Isso quer dizer não apenas não um trauma histórico
que deve ser supe-
intelectual do campo do engajamento para o sermos religiosos, mas também não sermos rado, uma vez que,
campo da atividade crítica, alertou: chega de idealistas, e nem fruir um poema com total ao seu ver, as resso-
nâncias desse trauma
poesia. Nietzsche matava D’us para que sur- enlevo e fascínio. O encantamento nos trans- inibem o engajamen-
gisse um homem mais sujeito de si e aberto figura, mostra a incrível musicalidade de to dos homens na
tentativa de superar
a transformar o organismo social num para Schoenberg, mas o que emerge dessa trans- e romper a violência
além das amarras morais e políticas da limi- figuração, o que pode romper as estranhezas que estrutura a or-
dem estabelecida.
tada condição social europeia do século XIX. que somos capazes de manifestar, nem sem-
Ele também enfati-
Adorno vê a insuficiência desse procedimen- pre tão idílicas, pode dar lugar a saltos de camente utiliza, para
to. O irracional encontra outros caminhos, barbárie3. A organização e o funcionamento falar dessa violên-
cia, o conflito Israel-
para além do fenômeno religioso, nas ideali- do matadouro não são o resultado de uma -Palestina, sugerindo
zações ideológicas, lugar por excelência da atividade descontrolada, isto é o que o soci- assim fortemente que
Israel seria quase que
poesia, em suas versões clássicas e idealiza- ólogo Zygmunt Bauman mais quer ressaltar. um sinônimo da atual
doras. Onde os homens constroem o horizon- Não se trata do irracional tomando conta da ordem estabelecida,

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atividade racional. Bauman lembra que não daicizaram após o Shoá. Freud, Marcuse,
há esse hiato entre mito – o campo do irra- Adorno, Benjamin, Marx, Lévi-Strauss,
cional – e razão que a teoria crítica funda Hobs­bawm e Derrida, só para citar algumas
antropologicamente a partir de uma leitura referências nucleares no pensamento crítico
psicanalítica. Talvez Bauman não seja menos contemporâneo, são judeus. E esse é um ele-
psicanalista do que os autores da escola crí- mento absolutamente irrelevante ou não, de-
tica. Mas, para ele, nas formas sociais, na pendendo do andar da carruagem social,
tessitura organizacional promovida pela téc- como bem mostram os estudiosos do antis-
nica, ou seja, nessa tessitura que não é mais semitismo. Em períodos menos perturbados
um fenômeno divino, nem tampouco plena- e de razoável estabilidade social, é até de má
mente humano, mas racional e organizacio- educação levar em consideração a origem
nal, proveniente de modelos de urbanidade, judaica do sujeito que está pensando ou en-
a operacionalidade dessa razão sente-se de- volvido em qualquer atividade social parti-
mandada e fortalecida para construir os ma- cular. E muito mais ainda se é uma atividade
tadouros que forem necessários e, para ele, acadêmica, econômica ou política. Mas pode
um matadouro humano é sempre um mata- se dar o caso de que esse elemento salte para
douro humano, independente do tamanho e a superfície e promova uma releitura com
da quantidade de produto morto que pode suspeitas – uma postura aliás íntima de qual-
alcançar. É Bauman que fala dos modelos da quer leitura crítica. O judaísmo da maioria
jardinagem e da medicina para referenciar as desses pensadores era essencialmente redu-
tecnologias sociais contemporâneas. Todo zido a algo assim como uma sensibilidade
que deve ser supera- jardineiro sabe que cuidar do bom cresci- ainda não plenamente assimilada por um
da para que a luta pela
justiça e o aperfeiço- mento e harmonia de um jardim significa modo de ser do Ocidente. Eles não se consi-
amento dos homens podar certas plantas, arrancar outras, cultivar deravam propriamente judeus, mas homens
possam se realizar.
Seu discurso, marca- algumas, saber administrar a água e outros construtores do Ocidente. Não se sentiam
do sempre por dizer materiais orgânicos na proporção certa, en- apartados, e todos os seus esforços críticos
algo bem enfático
e depois relativizar,
fim, tudo menos deixar crescer naturalmente, – os elementos sublimados, diria Freud, das
mas deixando no ar para além de não esquecer a ideia tão freu- suas atividades profissionais – iam na dire-
vapores da ênfase pri- diana de que o jardineiro não passa de ao ção de uma melhor elaboração e aperfeiçoa-
meira, é um exemplo
cristalino de como o mesmo tempo ser um jardim e até uma plan- mento do organismo social. E me parece que
antissemitismo pode ta de outro jardim que o inclui. Lembremos não é um exagero dizer que o trauma do ma-
ainda ser posto em
circulação no interior o poema de Borges sobre o jogador de xadrez tadouro nazista proporcionou uma maior
de uma aura progres- que é também uma peça de um jogo de xa- afinidade de homens críticos do Ocidente
sista e contemporâ-
nea, aparentemente
drez maior. E, na medicina, também cuidar para com as ideias desses pensadores, e até
sem ranços religiosos, de um organismo humano significa detectar para com o campo desses pensadores: a pro-
econômicos, nacio- os elementos que o podem adoecer, como um blemática do outro e as patologias que estão
nalistas ou racistas.
Trata-se talvez de vírus ou bactéria ou uma célula cancerígena implicadas nas formas de reconhecimento ou
um antissemitismo podem adoecer um corpo. Para além de to- desconhecimento do outro. As identidades
político-cultural, o
que é algo deveras in- das as prescrições de dietas e exercícios físi- nacionais passaram a ser vistas com descon-
teressante de estudar, cos necessários para a saúde do corpo e da fiança. Borges discute sempre os limites que
uma vez que ele opera
com autores princi-
atividade humana. Eu não quero, nesta mi- a cor local oferece para o trabalho do inte-
palmente advindos nha contribuição, tratar em profundidade o lectual. Este, por assim dizer, não deve mais
do campo judaico rico material que advém dessas linhas de se deixar entusiasmar plenamente com o rio
– Freud e todos os
intelectuais da teoria estudo do antissemitismo e que sem dúvida da sua aldeia. Levar em consideração outros
crítica. Comporta-se são essenciais para a compreensão da vida rios é necessário, não tanto para a apreciação
como um europeu
querendo liberar o social dos homens, o que quer dizer, nesse do próprio rio – deleite estético este que vale
campo das ciências caso, uma elaboração traumática da experi- a pena sacrificar talvez –, mas para aperfei-
humanas das interfe-
rências judaicizantes.
ência com o matadouro no campo das ciên- çoar a aldeia. Na expressão “o rio da minha
Freud deve explicar. cias humanas. Estas, por assim dizer, se ju- aldeia”, sem dúvida que o sujeito principal é

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Reprodução

Monumento em homenagem a vítimas judias do Holocausto,


projetado por Peter Eisenman e engenheiros do Buro Happold

a aldeia. Claro que o rio é uma metáfora de ou inglês, tem um sotaque espanhol ou por-
melhor suporte para o encontro da história tuguês, alguns ousadamente arriscam o co-
do que a própria aldeia. É no rio que reper- reano ou o chinês, nosso Haroldo de Campos
cute o que há de movimento na história, ten- teimava em insistir sobre a necessidade de o
dendo a deixar a aldeia, o hábitat humano, estudioso habitar em Babel, apesar das mal-
como território para a metáfora da imobili- dições que pairam sobre ela. Isso quer dizer
dade ou do quietismo. Depois da Segunda judaicizar as ciências humanas: legitimar um
Guerra Mundial, não há mais aldeias, e nem estranhamento pessoal que o crítico saiba
mais rios. Ao menos não nessa condição de tanto presente em si quanto no seu objeto de
territórios estritamente demarcados. Rios e crítica, até no local em que exerce a crítica e
aldeias se misturaram, a ponto de qualquer na própria visão de mundo, de homem e de
estudioso ou técnico das ciências humanas si a partir da qual realiza a sua crítica. Digo
saber que as aldeias se agitam como rios e os judaicizar porque, para esses autores, o juda-
rios estancam como aldeias. O fenômeno da ísmo é exatamente isso. Como Hannah
modernidade e da industrialização, da técni- Arendt, que tratou disso mais especificamen-
ca e da leitura crítica, amalgamou em globa- te em Origens do Totalitarismo, mostra, o
lização, o que também quer dizer que retirou judaísmo serve como uma metáfora de todos
todos os críticos sociais das suas aldeias e aqueles elementos que não se deixam assimi-
rios particulares. Todo estudioso é um via- lar totalmente na construção de uma realida-
jante, de algum modo arranha o seu francês de totalitária – e o imperialismo, para ela,

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não é mais do que uma expansão do totalita- semitismo vivo em ambas as ocasiões, como
rismo até os últimos limites do humano. Mas o comer, o copular, o negociar, o se entender
podemos pensar essa questão a partir de um ou se desentender, etc., estão vivos em ambas
outro lugar, trazendo à cena um judeu con- as situações, a ponto de corrermos o risco de
creto, não somente um conceito ou um ter- novamente alocar o antissemitismo na me-
ritório metafórico abstrato – capaz de abrigar tafísica dos homens. Por isso é importante
familiaridades do outro e do estranhamento, sempre lembrar, como o professor Yehuda
como o rio abriga a transformação e a aldeia, Bauer4 gosta de fazer, que o antissemitismo
a permanência –, mas a presença de homens pressupõe um judeu específico de carne e
e mulheres judeus concretos, atuantes na ci- osso, que está implicado. Hannah Arendt,
vilização. de um modo diferente de Bauer, também faz
O antissemitismo é um conceito relati- isso em sua importante leitura Antissemitis-
vamente moderno, surgido em 1879, criado mo, Instrumento de Poder, primeira parte
por Wilhem Mahrr, um teórico alemão que da trilogia Origens do Totalitarismo. Sartre
pretendia diferenciar as formas negativas de toma mais essa via pela qual o antissemi-
relacionamento do corpo social maior, laico tismo não precisa de judeus especificamente
4 O professor Yehuda
Bauer foi diretor do e nacional, com os judeus, das modalidades para manifestar-se. É dele essa estranha con-
Centro de Estudos de ódio aos judeus próprias das organizações clusão, para um humanista, de que, se não
do Holocausto do Ins-
tituto Yad Vashem, sociais religiosas que anteriormente eram houvesse judeus, eles seriam criados. Talvez
museu e centro de chamadas de judenhass – “ódio aos judeus”. o problema da civilização ocidental é que,
documentação e pes-
quisa do Shoa, em
O problema desse conceito é que ele mitiga para além de existir o judeu metafísico, exis-
Jerusalém, e atual- o fenômeno do qual quer dar conta, e esse te o judeu concreto. E é dele que eu quero
mente é professor da ofuscamento é um problema. Porque ele em tratar um pouco agora. O que é judaísmo?
Universidade Hebrai-
ca de Jerusalém. si já é uma tentativa de assimilação. Refiro- O que é um judeu? Qual é a materialidade
5 Disse ele a respeito -me ao ofuscamento do elemento judeu. Nin- dessas abstrações, se é que existe alguma,
de seu judaísmo, em guém é propriamente antissemita. Isso não e que com certeza não é em nada posta em
sua comunicação de
6 de maio de 1926
faz sentido. Ninguém é propriamente contra cena na palavra “semita”? Claro que falar
aos membros da Bnei as línguas semitas, porque é isso que a pa- disso é tão difícil quanto falar de antissemi-
Brith, entidade ju- lavra quer dizer. E tratar o judeu como um tismo. Vou me valer de um texto de Emanuel
daica beneficiente à
qual pertencia: “Eu semita implica entendê-lo como Mahrr o en- Levinas, outro autor que fez da experiência
próprio sou judeu, e tendia – isto é, a partir de um critério nacio- do Shoá um traço fundacional para a sua
sempre me parecerá
não somente indigno nal-racial. Poucos judeus são propriamente elaboração teórica. Levinas via a sua con-
como positivamente semitas. Muitos judeus são – para usar essas dição judaica de forma muito diferente da
insensato negar esse
fato. O que me ligava
referências – de origem caucasiana, e neles de Freud ou Adorno, por exemplo. E esses
ao povo judeu não era é difícil achar atributos dos povos semitas traços biográficos, se de fato levamos em
(envergonho-me de propriamente ditos. Quer dizer, o conceito de consideração as concepções de Freud, são
admitir) nem a fé, nem
o orgulho nacional, antissemitismo já em si opera uma repressão. determinantes do modo de ver o mundo e
pois sempre fui um Deixa na sombra o sujeito sobre o qual se é construir uma teoria sublimada. Lembremos
descrente e fui edu-
cado sem nenhuma contra. Porque o anti, sim, é bastante claro. que, para Freud, toda visão de mundo pessoal
religião... Mas resta- E além disso, abre o conceito para acolher suporta-se no terreno de uma biografia tão
vam muitas outras
coisas que tornavam
em seu interior uma história tão complexa íntima quanto uma história familiar. Nossas
a atração do mundo de relacionamentos que simplesmente abarca melhores abstrações, que não são tanto as
judeu e dos judeus
mais de 3.000 anos. Isso quer dizer múltiplas que queremos, mas as que podemos ter, ou
irresistível – muitas
forças emocionais metamorfoses em situações históricas que melhor, não tanto as mais objetivamente ade-
obscuras que eram são inconciliáveis entre si, e tão diferentes quadas para responder ao momento histórico,
mais poderosas quan-
to menos pudessem quanto podem ser os anos 40 do século XX mas as que surgem de nosso envolvimento
ser expressas em pala- e os anos 40 do século XVI, por exemplo. com o mundo, são sempre determinadas pela
vras, bem como uma
nítida consciência É outra história, são outros homens. E, no materialidade ideacional de nossa vida em
de identidade inter- entanto, não nos é difícil vislumbrar o antis- família. Para Levinas, seu judaísmo não é

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algo a ser superado ou, no melhor dos casos, bach (1971) que abre seu importante estudo
guardado como uma instigante e inquietante das formas literárias do Ocidente, Mimesis. na, a reserva segura
sensibilidade pessoal. Freud bastava-se com Esse capítulo tem o nome de “A Cicatriz de de uma construção
mental comum”. A
essa sensibilidade5 e achou que o fato de a Ulisses” e apresenta os dois viajantes mode- mesma ideia é desta-
ideologia nazista reduzi-lo a essa sensibi- lares a partir dos quais se constrói a viagem cada em seu prefácio
à tradução hebraica
lidade era a manifestação de um despertar literária do Ocidente. Auerbach traz à cena de sua obra Totem e
de primitivos aspectos assassinos de revolta uma passagem do Abraham bíblico e outra Tabu: “Nenhum leitor
[da versão hebraica]
contra as exigências que os processos civi- do Ulisses homérico. Do primeiro resgata, deste livro achará fácil
lizatórios demandavam do homem6. O ma- ao nosso ver não por acaso, a passagem do colocar-se na posição
emocional de um au-
tadouro seria uma espécie de happy hour sacrifício de Isaac. Do segundo, o momen-
tor que é ignorante
compensatório em relação às demandas de to efêmero em que Ulisses regressa à casa da linguagem da sa-
repressão da civilização. E mais ainda: se se e Euricleia, sua antiga ama, apesar de cega, grada escritura, com-
pletamente alheio à
compreender a história humana a partir de reconhece sua cicatriz. O texto é um admi- religião de seus pais –
uma encenação em família, tal como Freud rável estudo sobre as formas literárias bíbli- bem como a qualquer
outra religião – e não
o faz em Totem e Tabu, o judaísmo estaria ca e homérica. Mas o que me interessa aqui pode partilhar de ide-
do lado da repressão, abarcando grande parte é o título. Aparentemente Auerbach, outro ais nacionalistas, mas
que, no entanto, nun-
dos elementos do esforço de simbolização, a autor judeu, só nomeou Ulisses. Onde está
ca repudiou seu povo,
partir do mandamento, do imperativo divi- Abraham? Penso que ele é a cicatriz. Ele é que sente ser, em sua
no de não representar a imagem de D’us. O o elemento traumático que acompanha as natureza essencial,
um judeu e não tem
cristianismo, nesse modelo, seria uma tenta- viagens dos desdobramentos miméticos de nenhum desejo de
tiva híbrida de transposição de um mundo Ulisses. Estamos muito acostumados a dizer alterar essa natureza.
Se lhe fosse formula-
greco-romano pagão mais mítico em dire- que a nossa civilização é judaico-cristã. Mas da a pergunta: ‘Desde
ção a um processo mais simbólico-racional, o judaico é cicatriz, essa estranha e inquie- que abandonou todas
essas características
alocado na metáfora judaica. E assim como, tante sensibilidade que não habita apenas as comuns a seus com-
em Moisés e o Monoteísmo, Freud viu, no as- entranhas de Freud, mas as próprias entra- patriotas, o que resta
sassinato de Moisés, a fundação do judaísmo, nhas da civilização ocidental – pelo menos em você de judeu?’,
responderia: ‘Uma
esse livro sugere também que o assassinato é assim que muitos a entenderam a partir do parte muito grande
dos judeus que se preparava em seu entor- açougue nazista. e, provavelmente, a
própria essência’. Não
no, isto é, o fascínio por eliminar e superar Mas voltemos a Levinas e sua definição poderia hoje expres-
essa sensibilidade tão particular de Freud e de judaísmo7. Para ele, judaísmo é uma difícil sar claramente essa
essência em palavras,
outros membros da sociedade, era um modo liberdade, procurada por alguns homens – mas algum dia, sem
peculiar de a civilização ocidental lidar com diz ele, gravada em tábuas de pedra, talvez dúvida, ela se tornará
essa herança judaica, tão arraigada na alma para pôr de manifesto o rigor de lei com que acessível ao espírito
científico”.
do Ocidente e que demanda tanto, como a essa liberdade atua sobre esses homens e
6 São essas considera-
razão ao instinto. Não quer dizer que o judeu mulheres e a força de sua presença. Acima ções que Freud põe
é razão e o Ocidente é instinto, obviamente. de tudo, designa uma religião, um sistema em cena em Moisés
e o Monoteísmo, sua
Mas, nas lógicas miméticas e, freudianamen- de crenças, rituais e prescrições fundamen- última obra, na qual,
te falando, na dinâmica das identificações, tados na Bíblia, no Talmude e na literatura fabulando sobre a
o elemento judaico é tanto origem quanto rabínica, frequentemente combinados com fundação do judaís-
mo, ele aloca elemen-
território a ser superado, e voltamos assim à o misticismo e a teosofia da cabala. Nessa tos da sua compreen-
leitura religiosa da qual as leituras do cam- definição tão ampla do elemento religioso são dos fenômenos
sociais, tais como
po científico pretendiam se afastar. A resso- judaico, Levinas não quer esquecer de nada, expostos em Totem
nância da história cristã aqui é imediata. Ela sacrificar nada. O desafio dele é promover e Tabu, O Mal-Estar
na Civilização e Além
tem sua origem indubitavelmente na tradi- uma teoria universal que dê conta também de do Princípio do Prazer.
ção judaica. Os primeiros cristãos eram uma um judeu completo ou, se se quer, de um ho-
7 O texto de Levinas
seita judaica. Mas a sua realização implica mem completo, incluindo os seus substratos que utilizamos aqui é
a negação do judaísmo, ou ao menos a sua espirituais – míticos, diria a escola crítica. o ensaio “Judaism” do
livro Difficult Freedom:
superação. Só à maneira de ilustração, vale E Levinas leva a sério a especificidade do Essays on Judaism (Le-
a pena lembrar o antológico ensaio de Auer- ser judeu, sem tratá-lo como um mito a ser vinas, 1990)

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superado, mas como um elemento da reali- da judaico, uma sensibilidade cultural dife-
dade. Diz ele: rente e viva. Levinas, assim, não responde à
pergunta “o que é ser judeu?”. Ele respeita
“As principais formas desta religião muda- a existência de um mistério, que é o melhor
ram pouco em 2.000 anos e testemunham lugar onde se pode alocar principalmente a
um espírito que é plenamente consciente de sensibilidade cultural viva no judeu assimila-
si próprio e que é refletido na literatura re- do, que pulsa nele como a cicatriz em Ulisses.
ligiosa e moral e, no entanto, por envolver E é esse mesmo mistério talvez também o
essa difícil liberdade, está aberto a novos melhor lugar onde se pode alocar o judaís-
desenvolvimentos”. mo para entendermos a atribulada história
do judeu e seu relacionamento com o mundo
Por isso, para Levinas, judaísmo tem e em torno. É essa condição de mistério que
significa uma cultura que é tanto o resulta- talvez possibilite a emergência das violências
do quanto a fundação de uma religião, e que e horrores familiares ao matadouro ao longo
se posiciona diante de todos os eventos hu- da história. É bom que se lembre: a história
manos munida de uma consciência histórica dos judeus e do Ocidente não se reduz aos
singular. Como entender, nessa definição, matadouros e suas variantes. Ao contrário,
aqueles que se identificam com o judaísmo, as relações podem ser extremamente produ-
mas não acreditam em D’us e não são judeus tivas durante longos períodos, para progres-
praticantes? Levinas diz que, para muitos dos sivamente serem reorganizadas em suspeita
judeus assimilados à civilização em torno e derivativos de violência e agressão. E se
deles, o judaísmo não pode nem mesmo ser quisermos pegar esses complexos processos
compreendido como uma cultura: “Trata-se por outro fundamento, o que quer dizer um
de uma vaga sensibilidade, feita de várias outro momento desse ciclo, a suspeita e os
ideias, memórias, costumes e emoções, reuni- derivativos de violência são transformados
dos com um sentimento de solidariedade para em novos momentos de integração mais
com os judeus que são perseguidos por se- criativos. Para Levinas, o mistério é inerente
rem judeus”. É interessante que, nesse texto, ao judeu. Diz ele: “Este mistério reflete um
Levinas relaciona essa sensibilidade com o senso de presença diante da história singu-
sentimento de solidariedade para com outros lar”, ou seja, essa sensibilidade judaica é o
estranhos-semelhantes. Nas visões antissemi- mistério de Israel, que cada judeu carrega
tas mais torpes, o que não quer dizer menos consigo, e que não se reduz a uma naciona-
poderosas, é exatamente esse sentimento de lidade, ou uma religião, ou uma civilização
solidariedade que é explorado perversamente. fossilizada na qual vivem alguns, ou um apai-
Assim, no panfletário e forjado Protocolos xonado desejo por um mundo melhor. Mas,
dos Sábios de Sião, essa solidariedade é apre- para Levinas, o judaísmo enquanto mistério
sentada como a realização de uma paranóica abarca também o para além do judeu, por-
organização judaica que urde em segredo, que o judaísmo é também a fonte das grandes
desde os primórdios do mundo até os dias de religiões monoteístas, das quais, diz ele, “o
hoje, o domínio da humanidade. A solidarie- mundo moderno é dependente, tanto como
dade existe, assim como existe a sua leitura a antiga Grécia e Roma eram dependentes
perversa. E para um terceiro, um não judeu, das antigas religiões”. E se, ao nível pessoal
lidar com o conhecimento dessa solidarieda- do judeu, o judaísmo é uma cultura ou um
de, sem que, na sua visão de terceiro, isso embrião cultural a latejar, isto é, uma tradi-
implique transformá-la em perversão, é um ção e uma abertura, ao nível da cultura geral
desafio permanente. Esse é um dos desafios ocidental o judaísmo pertence ao momento
que o judeu lança ao Ocidente. Ele é parte presente não apenas através de conceitos e
da civilização ocidental, mas é uma cultura livros produzidos no interior dessa cultura,
diferente. Ou, no caso assimilável, mas ain- mas igualmente, diz ele, “através de homens

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e mulheres concretos que, como pioneiros “A consciência judaica, apesar de suas dife-
das grandes aventuras ou como vítimas das rentes formas e níveis, ganha novamente sua
grandes convulsões históricas, formam par- unidade e unicidade em momentos de gran-
te de uma linha direta e ininterrupta de des- des crises, quando a estranha combinação de
cendentes do povo da História sagrada”. Isso textos e homens que frequentemente não po-
quer dizer que o judaísmo não é apenas um dem falar a língua desses textos é renovada
resíduo cultural a circular no interior da cul- em sacrifício e perseguição. A memória des-
tura ocidental, “conceitos e livros”, resíduos sas crises sustenta os intervalos de quietude”.
esses mais ou menos manifestos de judaísmo
– vale a pena lembrar que, na Alemanha na- As análises de Levinas guardam uma
zista, muito se discutiu se a psicanálise era ou complexidade enorme na forma simples
não uma ciência judaica, e os mais favoráveis com que ele as apresenta. Muitas coisas
a aceitá-la punham-se como tarefa destilá-la podemos concluir de tudo isso que nos é
dos elementos judaicizantes8 (havia outros, dito. Destaquemos que mesmo o elemento
guardiões zelosos da ideologia nazista, que de judaísmo mais reduzido, o da estranha
sem mais nem menos reconheciam a psica- sensibilidade, guarda uma história, tanto na
nálise por inteiro como uma ciência judaica experiência pessoal dos homens e mulheres
e, portanto, merecedora de ser queimada no quanto no interior da cultura ocidental como
fogo do açougue). Mas judaísmo é também a um todo. Essa história não se extinguiu no
manifestação e a realização dos judeus como Shoá. Ela se desdobrou em novas formas. O
homens e mulheres que participam da orga- esforço para criar o Estado de Israel é um
nização social dos homens e, no texto sobre dos desdobramentos dessa sensibilidade pós-
judaísmo de que estamos tratando, Levinas -matadouro nazista. Adorno e Horkheimer
implica esses homens e mulheres no “esforço observam que o antissemitismo origina-se
para criar o Estado de Israel” e recobrar a numa desadaptação, e essa desadaptação da
inspiração de antigamente, cujos pronuncia- cultura judaica no interior da cultura ociden-
mentos foram de significado universal e que tal, e dos judeus em torno dos homens, ainda
não podem ser compreendidos sem a Bíblia. continua. O sionismo visava à solução para
Ele ainda resgata um elemento essencial da essa desadaptação. Mas a difícil história do
judaicidade, de difícil elaboração em todos estabelecimento do Estado de Israel e seus
os campos do saber e da tradição ocidental: desdobramentos até os dias de hoje mostram
diz ele que “o judaísmo tem uma essência es- que essa desadaptação ainda está em ativida-
pecial, que se encontra depositada nas letras de e que, portanto, a história judaica ainda
do alfabeto hebraico, que parecem esculpidas está aberta a desdobramentos antissemitas.
em pedra, e é algo que ilumina os rostos hu- Robert Wistrich (2010) oferece uma leitura
manos”. Continua Levinas: extremamente inquietante sobre as manifes-
tações antissemitas nos dias de hoje. E eu a
“É tanto uma doutrina antiga como história trago para que possamos refletir sobre como
contemporânea. Por isto, corre-se o risco de essa questão é de difícil superação. Não nos
favorecer uma visão mítica ou uma espiri- é hoje em dia, se munidos de um mínimo de
tualidade difícil de ser analisada cientifi- bom senso, difícil argumentar contra toda a
camente. As ciências objetivas, tais como a barbárie nazista. Por isso talvez surjam mil
Sociologia, a História ou a Filologia, tentam e uma especulações sobre como foi possível
reduzir a exceção à regra”. a Europa embarcar nessa aventura tão nefas-
ta. Digo Europa porque os estudos mostram
Levinas suspeita se as categorias cientí- hoje que, na organização do matadouro, o
ficas de um movimento espiritual podem de esforço e a energia não foram exclusivamente
fato revelar sua real contribuição e significa- alemães. Burocracias, setores da população, 8 Ver sobre este tema:
do. E ele continua: partes do clero e serviços administrativos de Frosh, 2009.

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outros países europeus também participaram xam claro que se trata de um antissionismo,
da realização do matadouro, facilitando ora o que quer dizer contra a existência de um
a identificação e reunião das vítimas, ora o Estado judeu. Em todo caso, é delicado ar-
transporte, inclusive até no próprio interior do gumentar que foram exclusivamente as polí-
açougue, na concretização da morte. Como ticas de construção do Estado de Israel que
puderam todos esses homens participar de despertaram esse ódio árabe, uma vez que
tamanha barbárie? Esse é um outro mistério. esse antissemitismo, na sua forma idealiza-
O que Wistrich mostra é que o antissemitis- da, faz circular entre o povo árabe a ideia de
mo, além de persistente, intenso e ambiva- extermínio do Estado de Israel. Mas, na sua
lente, é adaptável ao espírito da época. Isto forma pragmática, atém-se ao uso necessário
é, tratar-se-ia de um magma interno correndo para o jogo político, na manutenção de deter-
história adentro – a cicatriz de Ulisses talvez minados interesses de grupos oligárquicos do
seja uma referência à presença desse mag- poder árabe. Não foi de outra maneira que a
ma –, capaz de manifestar-se com explosão Jordânia e o Egito fizeram a paz com Israel, e
quando menos esperado, e de uma forma ple- essa atitude ganha maior transparência quan-
namente naturalizada ao espírito da época, do levamos em consideração o modo como
ou seja, o antissemita fruiria dessa sua ação a liderança palestina posiciona-se diante de
não como algo irracional. Não se trata de Israel: querendo negociar com um Estado
uma metamorfose em besta, mas, utilizando que ela não reconhece. Verdade que, logo
a expressão de Hannah Arendt, manifestan- após a guerra de 1967, Israel também temia
do a banalidade do mal. Para Wistrich, dado reconhecer a existência da nação palestina,
o fluxo da história, o núcleo da problemática porque desde os primórdios do sionismo, o
judaica transferiu-se para o Oriente Médio reconhecimento da legitimidade do retorno
e, então, o bastão antissemita passou para o dos judeus a Israel por parte dos árabes era
mundo muçulmano. Claro que não se trata negado. Esse foi o motivo da guerra de 1948,
de afirmar que o mundo árabe é antissemita. quando da declaração do Estado de Israel.
Mas de salientar que lá, em alguns setores, Talvez se possa argumentar que, após 63
organiza-se sim um discurso que é portador anos da sua independência, Israel se sente
de ódio aos judeus, no caso aqui de um ódio mais seguro para lidar com as pendências
ao Estado de Israel, infinito, a ponto de negar- do povo palestino. Mas o mesmo não se dá
-lhe o direito de existir, pregando a sua extin- de forma mais transparente no interior da
ção completa. Hannah Arendt, no volume das liderança palestina, fragmentada entre uma
Origens do Totalitarismo que trata da ques- linha mais conflitiva e outra de abertura ao
tão anti-semita, mostra o quanto o judaísmo diálogo, ambas totalmente dependentes do
está implicado no fenômeno antissemita: a interjogo político árabe maior, em cujo in-
repercussão político-econômico-cultural terior a postura contra Israel assume uma
dos modos como os judeus se assimilaram dimensão importante, nos mecanismos de
aos emergentes estados nacionais europeus legitimação das autoridades árabes e no ma-
não é para ela um fator externo à manifes- nejo de seu poder diante de suas realidades
tação dos fenômenos antissemitas por ela sociais. É esse uso político que interessa a
estudados. Transferindo essa leitura para a Hannah Arendt. E, por isso, se ela leva em
análise que Wistrich faz, a história do sio- consideração, em seus estudos, as qualidades
nismo também estaria obviamente implicada da resposta assimilatória judaica ao processo
na emergência desse antissemitismo muçul- de modernização que implica uma relação
mano. Aqui o termo “antissemita” mostra-se entre a expansão da igualdade e a extensão
até mais frágil ainda, porque como pode um da cidadania, de um lado, e a concepção de
muçulmano ser antissemita, isto é, contra a uma máquina estatal independente, superior
sua própria origem linguística? Os discursos às classes e representativa da nação como um
que têm sua origem no Irã, por exemplo, dei- todo, de outro – no caso contemporâneo, a

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construção do Estado de Israel e o modo de contemporâneo, podemos estudar com mais
lidar politicamente com os palestinos em es- complexidade a naturalidade com que o antis-
pecífico e com o mundo árabe em torno em semitismo opera em sua adaptação ao estado
geral –, o que se sobressai na manifestação da época. É difícil entender por que os judeus
antissemita é o uso desse elemento antisse- foram expulsos da Espanha, em 1500. Mas
mita na implementação da ideologia de po- essa violência é natural se levarmos em con-
der, para a apropriação da máquina estatal. sideração a visão de mundo daquele momento.
O discurso antissemita árabe não pode ser É difícil entender a violência das Cruzadas,
plenamente creditado às mazelas da política mas as expectativas milenaristas da época,
do Estado de Israel. A atual crise no Oriente que implicavam a adesão dos judeus à verdade
Médio põe de manifesto a fragilidade da no- da fé cristã para a concretização das melho-
ção de Estado no mundo árabe e o divórcio res esperanças cristãs, explicam a ocorrência
existente entre os aparelhos do Estado e a não de uma barbárie, mas de um fenômeno
nação. Podemos, assim, diante da atual reali- legítimo. É difícil entender o fenômeno do
dade, entender melhor o lugar que o discurso antissemitismo e suas irrupções repentinas
anti-Israel ocupa nas oficialidades árabes. na realidade. Freud, diante do precipício que
Robert Wistrich mostra que, também o implicava pessoalmente na segunda meta-
adaptáveis ao espírito da época, as ressonân- de dos anos 30 do século XX, na busca de
cias desse novo antissemitismo em território compreender o estado de coisas em sua Viena
ocidental tendem a mudar de espectro políti- natal, chegou até Moisés e o Monoteísmo. O
co. Os núcleos antissemitas contemporâneos monoteísmo é parte do núcleo do Ocidente, ou
não são tão manifestos nem nas formas reli- seja, é uma concepção central daquilo que se
giosas, nem tampouco nas visões de mundo desdobra ao longo dos séculos e das maneiras
mais à direita, por assim dizer. Ao contrário, mais variadas, no todo que nós denominamos
a ressonância maior é na chamada esquerda. de civilização ocidental. E é no desdobramen-
Ele mostra a profunda força catalisadora que to da ideia monoteísta que o judaísmo é cica-
integra um discurso antiamericano com um triz. Moisés é o elemento humano elaborador
discurso antissionista. Claro que não se trata dessa concepção. Moisés é o representante da
de negar o direito à crítica às políticas do Es- responsabilidade humana, o líder assassina-
tado de Israel, mas de mostrar que essa difícil do. A sombra de um assassinato recai sobre
situação beligerante serve apenas de pano de a atitude de responsabilidade necessária aos
fundo para a redinamização de velhos para- homens. Na leitura de Freud, a concepção mo-
digmas antissemitas que, mais do que criticar noteísta demanda profundamente de todos os
o sionismo, isto é, o Estado de Israel, ou seja, a homens. As implicações de responsabilidade
representação mais plena do judeu na contem- e aperfeiçoamento moral se ancoram numa
poraneidade – o lugar de realização daquilo outra cena, na qual somos todos assassinos de
que Levinas chama de “estranha combinação um pai primevo. Todos temos que lidar com
de textos e homens” –,visam deslegitimá-lo, uma sentença interna de difícil elaboração.
difamá-lo e até demonizá-lo, num processo A noção de culpa não é bíblica, em Freud
de desmantelamento do Estado judeu. Assim, é edípica, e os mecanismos de projeção são
Israel não é apenas um país em conflito vio- parte dos recursos que utilizamos tanto ao
lento e complexo com uma parcela da popula- nível pessoal quanto ao nível institucional,
ção árabe. Mas um país nazista e racista, que para darmos conta desta sentença: o antis-
projeta o genocídio de sua população árabe semitismo é um mecanismo de defesa, e o
e dos palestinos, e que se suporta graças ao ódio que desperta nunca se atém a ficar con-
trabalho de um lobby judaico internacional, finado nas produções culturais. Ele salta na
que é controlador da mídia e do capital inter- realidade dos homens concretos que se reco-
nacional e que se fundamenta ideologicamen- nhecem judeus. Vivemos numa época em que
te na mentira do Holocausto. No fenômeno tudo indica o recrudescimento desses saltos.

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textos

B I B LI O G R AFIA

AUERBACH, E. Mimesis. São Paulo, Perspectiva, 1971.


FROSH, Stephen. Hate and the Jewish Science: Anti-Semitism, Nazism and Psychoanalysis.
Londres, Palgrave Macmillan, 2009.
LEVIAN, E. Difficult Freedom: Essays on Judaism. Baltimore, The John Hopkins University
Press, 1990.
WISTRICH, R. A Lethal Obsession: Anti-Semitism from Antiquity to the Global Jihad. Londres,
Random House, 2010.

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