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Caso Aimée – Exame clínico

Caso Aimée
Exame Clínico

História e quadro de psicose

Análise - Diagnóstico - Catamnésia

Paris – França - 1931

Compilação de
Felix J Lescinskiene
2014

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Caso Aimée – Exame clínico

O caso Aimée é a história de uma funcionária da fer-


rovia, Margueritte Anzieu, que é presa e logo interna-
da no hospital Saint-Anne após atacar uma importante
atriz da época, Huguette Duflos, em 1932. Margueritte
fracassa no ataque, ferindo apenas a mão da atriz.

Aos cuidados do jovem psiquiatra, Marguerite vai con-


tar sua história em sucessivas entrevistas e confiando
a Lacan suas cartas e escritos.

No estudo do caso Lacan cria um novo conceito diag-


nóstico, o de “paranóia de autopunição”, a partir do
fato de sua paciente ter se curado após cometer o ato
de agressão contra a atriz.

Na “paranóia de autopunição” Lacan mostra que ao


atacar a atriz, na verdade, Aimée estava atacando a si
mesma, ao seu Ideal de Eu.

A tese de Lacan marca uma passagem da Psiquiatria à


Psicanálise, pois nela vemos que Lacan vai buscar a
explicação para explicar o caso, não na Psiquiatria e
sim nos conceitos Freudianos.

“Minha paciente, chamei-a Aimée,


era realmente muito tocante”
Lacan, 1970

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Caso Aimée – Exame clínico

Caso Aimee - Exame Clinico

Historia e quadro de psicose - Análise - Diagnóstico -


Catamnésia

Época - 1932
Local Paris - França

Paciente:

Marguerite Anzieu
Codinome Aimee
38 anos.
Pais camponeses
Tem duas irmãs e
três irmãos.
Começou a trabalhar
com 18 anos
Funcionaria da Fer-
rovia.
Casada e separada
Tem um filho que
vive com o marido
Mora sozinha.
Marguerite Anzieu – 32 anos (1924)

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Caso Aimée – Exame clínico

Ocorrência:

A atriz Huguette Duflos


é atacada na entrada do
teatro Saint-Georges
por uma funcionaria da
ferrovia.

Alegações:

Falava coisas incoeren-


tes. Há muitos anos a
atriz vem zombando
dela, fazendo escânda-
Huguette Duflos
los e a ameaçando.

Ficou dois meses presa e foi internada no Asilo de Sa-


inte-Anne.

Antes de se mudar para Paris, Aimée havia sido inter-


nada na casa de saúde Épinay-sur-Seine, em 1924, a
pedido de seu marido René Anzieu, lá permanecendo
por seis meses.

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Caso Aimée – Exame clínico

Informações de laudos de internação anterior:

 Distúrbios mentais que evoluem a mais de um


ano;
 As pessoas na rua lhe dirigem insultos grossei-
ros;
 Acusam-na de vícios extraordinários
 As pessoas de seu meio falam mal dela;
 Toda cidade de Melun está a par de sua conduta
depravada;

O laudo ainda diz:


 Fundo de debilidade mental;
 Idéias delirantes de perseguição e ciúme;
 Alucinações mórbidas;
 Exaltação;
 Incoerência na fala.

Fatos anteriores:

Saiu da clinica anterior "não curada" a pedido da famí-


lia.

Em seu dossiê constam dois registros policiais de cinco


anos antes.

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Caso Aimée – Exame clínico

Consta que um ano antes da primeira internação a-


grediu um jornalista comunista ao qual assediou varias
vezes para publicar artigos seus de queixas delirantes
contra uma celebre escritora.

Cinco meses antes do atentado, agrediu uma funcio-


naria de uma editora a qual havia enviado um manus-
crito que foi recusado apos vários meses de espera.

Temas de seu delírio

 Reduzidos em sua explanação;


 Nunca apareceu perturbação do curso do pen-
samento;
 A lembrança dos temas delirantes provoca-lhe
vergonha;
 Sentimento de ridículo;
 Sentimentos de remorso;

Há ainda um terceiro plano analítico


 Evocação emocional das crenças antigas;
 "Eu fiz isto porque queriam matar meu filho";
 Emprega uma forma gramatical direta e conti-
da;
 Em publico, atitude corporal sóbria e reservada
com expressão patética;

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Caso Aimée – Exame clínico

Preocupação com o divorcio e conseqüentemente a


separação do filho que aparenta ser o único objeto de
sua preocupação.

Em anamneses anteriores foram observados maior


confiança e jovialidade e em outras vezes desamino
porem o humor sempre se mantém dentro dos pa-
drões.

Historia do delírio

Resumidamente, aos 28 anos fica grávida.

Reconhece em sua chegada a paris ter visto pelo me-


nos duas vezes a atriz, sua vitima em teatro e cinema,
porem não recorda com precisão os temas da peça e
filme assistidos.

Percepção de traços de amnésia em seus relatos

Nesta época observava seus colegas de trabalho fala-


rem mal dela.

Pesadelos atormentavam seu sono, sonhava com cai-


xões e mistura a perseguições diurnas.

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Caso Aimée – Exame clínico

Um dia rasgou a facadas os pneus da bicicleta de um


colega de trabalho e em outra vez jogou um ferro de
passar em seu marido.

Ficou grávida pela primeira vez e o bebe nasceu nati-


morto por asfixia do cordão umbilical. Atribuiu a des-
graça a seus inimigos.

Comentou que durante seu período de gravidez ficava


muito triste e melancólica.

Em uma segunda gravidez volta seu estado depressi-


vo, de ansiedade e interpretações análogas.

Uma criança nasceu em junho do ano seguinte (a pa-


ciente esta com 30 anos). Ela se dedica com extremo
fervor aos cuidados da criança, que amamenta até os
14 meses.

Neste período causa diversos escândalos com visinhos


e outros.

Decidiu mudar para os Estados Unidos e falsifica do-


cumentos de aprovação do marido, manda pedido de
demissão de ambos para a empresa que trabalhava e
seu marido é informado por amigos da trama.

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Caso Aimée – Exame clínico

A família intercede e interna a doente que escreve a


um jornalista desconhecido para interceder em sua
liberação da clinica, alegando que fizeram um complô
contra ela.

Seu delírio interpretativo continua incessantemente,


aludindo todos os principais movimentos da atriz a
fatalidades e desgraça, como a intenção da atriz de
matar seu filho entre outras atrocidades.

"Eu temia muito pela vida de meu filho"... "Poderia me


tornar uma mãe criminosa".

Outros personagens perseguidores surgem com a a-


triz, mulher célebre, adulada pelo publico, bem suce-
dida, vivendo no luxo, que é considerada por Aimee
como uma Puta.

Um escritor declarado também como seu perseguidor


em seu delírio (primeiro perseguidor masculino) surge
na historia depois de sua chegada a Paris. Chamado de
P.B. a doente afirma não ter certeza de quando este
começou a apoiar a atriz em persegui-la e difamar.
(novos traços de amnésia).

Contumaz leitora de romances contemporâneos asso-


ciava personagens a si própria chegando a obrigar

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Caso Aimée – Exame clínico

uma amiga a ler um livro que acreditava que contava


sua historia, a qual a amiga afirmou não ter nada a ver
com a doente.

Em seu juízo, todos esses personagens, atores, artis-


tas, poetas, escritores jornalista, são odiados coleti-
vamente como grande infortúnio para a sociedade.
"Trata-se de uma ralé, uma raça imprestável".

Manifestações de megalomanias

A doente se considerava capaz de contribuir para eli-


minar todos os males da sociedade.

Ela invectiva então a crueldade dos adultos, a falta de


cuidado das mães frívolas. Ela fica alarmada, como
dissemos, com a sorte futura dos povos. As idéias da
guerra, do bolchevismo a freqüentam, e se misturam
com suas responsabilidades para com o filho.

Ela se crê destinada a salvar o mundo. A importância


de seu papel em tudo isso é imensa, na medida mes-
ma de sua imprecisão. Seus sonhos, de resto, não são
puramente altruístas.

Uma carreira de "mulher de letras e de ciências" lhe


está reservada. As mais diversas vias lhe estão aber-

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Caso Aimée – Exame clínico

tas: romancista já, ela conta também em "se especiali-


zar em química".

A medida que nos aproximamos da data fatal, um te-


ma surge, o de uma Erotomania que tem por objeto o
príncipe de Gales.

Ela disse ao médico perito que, um pouco antes do


atentado, havia em Paris grandes cartazes que infor-
mavam ao Sr. P.B. que, se ele continuasse, seria puni-
do. Ela tem, portanto protetores poderosos, mas pa-
rece que os conhece mal. Com respeito ao príncipe de
Gales, a relação delirante É bem mais precisa.

Verificado em um caderno seu onde ela anota cada


dia, com data e hora, uma pequena alusão poética e
apaixonada dirigida ao príncipe de Gales.

O quarto de hotel em que morava estava recoberto de


retratos do príncipe;

Assim constituído, e apesar dos surtos ansiosos agu-


dos, o delírio, fato a destacar, não se traduziu em ne-
nhuma reação delituosa durante mais de cinco anos.

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Caso Aimée – Exame clínico

Novas situações

Nos últimos oito meses antes do atentado, a ansieda-


de está crescendo. Ela sente então cada vez mais a
necessidade de uma ação direta. Ela pede a seu se-
nhorio que lhe empreste um revólver e, diante de sua
recusa, pelo menos uma bengala "para amedrontar
essas pessoas", quer dizer, aos editores que zomba-
ram dela.

Ela depositava suas últimas esperanças nos romances


enviados à livraria G. Daí sua imensa decepção, sua
reação violenta quando eles lhe são devolvidos com
uma recusa. É lamentável que não a tenham internado
então. Ela se volta ainda para um derradeiro recurso,
o príncipe de Gales. Somente nesses últimos meses é
que ela lhe envia cartas assinadas.

Ao mesmo tempo, envia-lhe seus dois romances, es-


tenografados, e cobertos com uma encadernação de
couro de um luxo comovente. Eles lhe foram devolvi-
dos, acompanhados da seguinte fórmula protocolar.

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Caso Aimée – Exame clínico

Buckingham Palace
The Private Secretary is returning the typed manuscripts
which Madame A. has been good enough to send, as it is
contrary to Their Majesties' rule to accept presents trom those
with whom they are not personally acquainted.
April. 193...

Este documento data da véspera do atentado. A doen-


te estava presa, quando ele chegou.

As atitudes

Ela toma a resolução de se divorciar e de deixar a


França com a criança. No mês de janeiro que precede
ao atentado, ela manifesta suas intenções à irmã nu-
ma cena em que demonstra uma agitação interior e
uma violência de termos, dos quais sua irmã ainda
conserva uma recordação de assombro.

"É preciso, diz-lhe, que você esteja pronta para teste-


munhar que André (seu marido) me bate e bate na
criança. Eu quero me divorciar e ficar com a criança.
Estou pronta para tudo, senão eu o matarei".

Desde então, a doente está cada vez mais desvairada.

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Caso Aimée – Exame clínico

Um mês antes do atentado, ela vai "à fábrica de armas


de Saint-Étienne, praça Coquíllêre" e escolhe um "fa-
cão de caça que tinha visto na vitrina, com uma bai-
nha".

Uma noite, um sábado às sete horas, ela se prepara


para ir ter, como toda semana, com sua família:

"Uma hora ainda antes deste infeliz acontecimento,


eu não sabia ainda onde iria, e se não iria visitar, como
de hábito, o meu garotinho."

Uma hora depois, compelida por sua obsessão deliran-


te, ela está na porta do teatro e ataca sua vítima.

"No estado em que me encontrava então, disse mui-


tas vezes a doente, eu teria atacado qualquer um dos
meus perseguidores, se eu os pudesse atingir ou me
encontrasse com eles por acaso".

Com freqüência, estremecendo até, ela insistirá, dian-


te de nós, na idéia de que teria sido capaz de atentar
contra a vida de qualquer um desses inocentes.

Nenhum alívio se segue ao ato. Ela fica agressiva, es-


tênica, exprime seu ódio contra sua vítima.

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Caso Aimée – Exame clínico

Sustenta integralmente sem arrependimentos.

No presídio de Saint-Lazare

Escreve ela ainda num bilhete de tom extremamente


correto ao delegado no décimo quinto dia de sua re-
clusão:

"...gostaria de pedir-lhe para que fizesse retificar o juí-


zo dos jornalistas a meu respeito, chamaram-me de
neurastênica, o que pode vir a prejudicar minha futura
carreira de mulher de letras e de ciências".

"Oito dias após meu ingresso - escreveu-nos em se-


guida, na prisão de Saint-Lazare, escrevi ao gerente de
meu hotel para comunicar-lhe que estava muito infeliz
porque ninguém quis me escutar nem acreditar no
que eu dizia, escrevi também ao Príncipe de Gales pa-
ra dizer-lhe que as atrizes e escritores me causavam
graves danos."

Confia longamente a suas companheiras de cárcere, as


perseguições que havia sofrido. Suas companheiras
aquiescem, encorajam-na e aprovam-na.

"Vinte dias depois, escreve a doente, quando todos já


estavam deitados, por volta das sete horas da noite,

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Caso Aimée – Exame clínico

comecei a soluçar e a dizer que esta atriz não tinha


nada contra mim, que não deveria tê-Ia assustado; as
que estavam ao meu lado ficaram de tal modo surpre-
sas que não queriam acreditar no que eu dizia, e me
fizeram repetir: mas ainda ontem você falava mal de-
la! - e elas ficaram estupefatas com isso.”

Todo o delírio caiu ao mesmo tempo, "o bom como o


ruim", diz-nos ela. Toda a fragilidade de suas ilusões
megalomaníacas surge para ela ao mesmo tempo que
a insanidade de seus temores.

Aimée entra no asilo vinte e cinco dias depois.

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Caso Aimée – Exame clínico

Exames e antecedentes físicos

 A estatura da doente está acima da média.


 Esqueleto amplo e bem constituído.
 Ossatura torácica bem desenvolvida, acima da
média nas mulheres de sua classe.
 Nem gorda nem magra.
 Crânio regular. As proporções crânío-tacíaís são
harmoniosas e puras.
 Tipo étnico bastante bonito.
 Ligeira dissimetria facial, que fica dentro dos li-
mites habitualmente observados.
 Nenhum sinal de degenerescência.
 Nem sinais somáticos de insuficiência endócri-
na.
 Taquicardia branda quando de sua entrada,
número de pulsações: 100.
 A palpação revela um pequeno bócio, de natu-
reza endêmica, pelo qual a mãe e a irmã mais
velha são igualmente afetadas.
 No período que precede a primeira internação,
recebe tratamento para esse bócio (extrato ti-
reoidiano).
 Ela tomava essa medicação "sem seguir as pres-
crições e em quantidades maciças".
 Um mês depois de sua entrada, o pulso voltou a
80.

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Caso Aimée – Exame clínico

 A pressão dos glóbulos oculares, exercida du-


rante um minuto, dá, no segundo quarto de mi-
nuto, uma diminuição da freqüência a 64.
 Durante vários meses conserva um estado sub-
febril leve, criptogenético, de três ou quatro dé-
cimos acima da média matinal e vespertina.
 Contraiu, pouco antes de seu casamento, uma
congestão pulmonar (de origem gripal - 1917) e
suspeitou-se de bacilose.
 Exames radioscópicos e bacteriológicos repeti-
dos deram um resultado negativo.
 A radiografia nos mostrou uma opacidade hilar
à esquerda. Outros exames negativos.
 Perdeu quatro quilos durante os primeiros me-
ses de sua permanência, recuperou-os nova-
mente, depois voltou a perdê-los.
 Seu peso estabilizou-se há vários meses em 61
quilos.
 Diagnóstico de sífilis do marido negativa.
 Durante os primeiros seis meses de internação,
interrupção das regras que eram normais até
então.
 Metabolismo basal medido repetidas vezes:
normal.
 Dois partos cujas datas anotamos.
 Uma criança natimorto asfixiada por circular do
cordão.

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Caso Aimée – Exame clínico

 Não se constatou anomalia fetal nem placentá-


ria.
 Diversas cáries dentárias por ocasião dos esta-
dos de gravidez.
 A doente tem uma dentadura postiça no maxi-
lar superior.
 Segundo filho, menino bem desenvolvido, boa
saúde.
 Atualmente com oito anos. Normal na escola.

Assinalemos, quanto aos antecedentes somáticos, que


a vida levada pela doente desde a sua estada em Paris:

 Trabalhava no escritório das 7 às 13 horas.


 Depois do expediente, estudava, percorrendo
bibliotecas e lendo desmedidamente.
 Caracteriza-se por um surmenage intelectual e
físico evidente.
 Ela se alimentava de maneira muito precária,
escassa e insuficiente para não perder tempo, e
em horas irregulares.
 Durante anos, mas só depois de sua permanên-
cia em Paris, bebeu cotidianamente cinco ou
seis xícaras de café preparado por ela mesma e
muito forte.
 O pai e a mãe, camponeses, ainda vivem.

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Caso Aimée – Exame clínico

 A mãe é considerada na família como tomada


por "loucura de perseguição".
 Uma tia rompeu com todos e deixou uma repu-
tação de revolta e desordem em sua conduta.
 A mãe ficou grávida oito vezes: três filhas antes
de nossa doente, um aborto espontâneo depois
dela, e por fim três meninos, seus irmãos mais
novos.
 Destas oito gravidezes, seis filhos ainda estão
vivos.
 A família insiste muito quanto à emoção violen-
ta sofrida pela mãe durante a gestação de nossa
doente: a morte da filha mais velha se deveu,
com efeito, a um acidente trágico. Ela caiu na
frente de sua mãe, na boca de um forno aceso e
rapidamente morreu em decorrência de quei-
maduras graves.

Antecedentes de capacidade e fundo mental

 Inteligência normal, acima das provas de testes


utilizadas no serviço asilar.
 Estudos primários bons. Obtém seu certificado.
 Não é aprovada num exame destinado a enca-
minhá-la para o ensino superior.
 Não persevera.

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Caso Aimée – Exame clínico

 É admitida aos 18 anos, depois de um exame de


admissão, na administração onde permaneceu;
 Aos 21 anos alcança um ótimo lugar no exame
público, o que assegura sua titulação e seus di-
reitos.
 Durante sua permanência em Paris é reprovada
num exame de nível mais elevado;
 Ao mesmo tempo preparava (aos 35 anos) seu
exame de grau superior.
 É reprovada três vezes.
 Consideram-na em seu serviço como muito tra-
balhadora, "pau para toda obra", e atribuem a
isso seus distúrbios de humor e de caráter.
 Dão-lhe uma ocupação que a isola em parte.
 Uma sondagem junto a seus chefes não revela
nenhuma falha profissional até seus últimos di-
as em liberdade.
 Muito pelo contrário, na manhã seguinte ao a-
tentado, chega ao escritório sua nomeação para
um cargo acima do que ocupava.
 Descrevemos acima a redução atual de seu delí-
rio.
 Em suas respostas às entrevistas, ela se exprime
com oportunidade e precisão.
 A indeterminação e o maneirismo só se introdu-
zem em sua linguagem quando a fazemos evo-
car certas experiências delirantes, elas mesmas

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Caso Aimée – Exame clínico

constituídas por intuições imprecisas e indizíveis


logicamente.

Comportamento no asilo

 Nenhuma perturbação na boa ordem do serviço


hospitalar.
 Diminui o tempo que poderia dedicar a seus
trabalhos literários favoritos para executar inú-
meros trabalhos de costura com que presenteia
o pessoal do serviço.
 Estes trabalhos são de feitura delicada, de exe-
cução cuidadosa, porém de gosto pouco sensa-
to.
 Recentemente a designamos para o serviço da
biblioteca o qual executou a contento.
 Nas relações com as outras doentes, demons-
trou tato e discernimento.

 As anomalias do comportamento são raras.


 Risos solitários aparentemente imotivados
 Bruscas excursões pelos corredores. Estes fe-
nômenos não são freqüentes e só foram obser-
vados pelas enfermeiras.

Produções literárias

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Caso Aimée – Exame clínico

Já evocamos ou citamos alguns escritos da doente.

Vamos estudar agora as produções propriamente lite-


rárias que ela destinava à publicação.

Estes escritos nos informam sobre o estado mental da


doente na época de sua composição;

Permitem que possamos apreender ao vivo certos tra-


ços de sua personalidade, de seu caráter, dos comple-
xos afetivos e das imagens mentais que a habitam.

Os romances (dois) foram escritos pela doente nos


oito meses que antecederam o atentado, e sabemos
em qual relação com o sentimento de sua missão e
com o da ameaça iminente contra seu filho.

O primeiro data de agosto-setembro de 193.. e foi es-


crito, segundo a doente, de um só fôlego em onze se-
manas.

O segundo foi composto em dezembro do mesmo a-


no, em um mês aproximadamente, "numa atmosfera
febril".

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Caso Aimée – Exame clínico

Os rascunhos e manuscritos que temos em nosso po-


der se opõem à apresentação habitual dos escritos
dos paranóicos interpretantes:
 Maiúsculas iniciais nos substantivos comuns,
 Sublinhas,
 Palavras destacadas,
 Vários tipos de tinta,
 Todos os traços simbólicos das estereotipias
mentais.

Em análise grafológica, destacou-se:

 Cultura. Personalidade. Sentido artístico ins-


tintivo. Generosidade. Desdém pelas coisas
insignificantes e pelas intriguinhas. Nenhuma
vulgaridade.

 Fundo de candura, de virgindade de alma,


com traços de infantilismo. Reações, sonhos,
medos de criança.

 Ímpeto interior, capaz de exercer influência.


Agitação, com certo aspecto simpático. Am-
bos, no entanto, Com uma qualidade mais
Intelectual que afetiva.

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Caso Aimée – Exame clínico

 Grande sinceridade para consigo mesma. In-


decisão. Voluntária apesar de tudo

 Ternura. Muito pouca sensualidade. Acessos


de angústia, que suscitam nela um certo es-
pírito de maquinação, de possibilidades de
maldade.

 Fora dos acessos persiste na doente não uma


hostilidade, nem uma desconfiança verda-
deiras, e sim, antes, uma inquietude conti-
nua, fundamental, sobre si mesma e sua si-
tuação.

As duas obras têm valor desigual.

A segunda traduz, sem dúvida, uma baixa de nível,


tanto no encadeamento das imagens quanto na quali-
dade do pensamento. Entretanto, o traço comum é
que ambas apresentam uma grande unidade de tom e
que um ritmo interior constante lhes garante uma
composição.

Lacan faz uma exaustiva releitura das obras buscando


entender e obter fatos que possam esclarecer o com-
portamento da doente.

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Caso Aimée – Exame clínico

O Diagnostico

Que diagnóstico fazer sobre uma doente como esta,


no atual estado da nosografia?

O que domina com muita evidência o quadro é o delí-


rio sistematizado.

Afastamos, desde o primeiro momento, os diagnósti-


cos de demência orgânica, de confusão mental.

Tampouco levaremos em conta o de demência para-


nóide.

Não se trata, é claro, de delírio crônico alucinatório.

Devem-se deixar de lado igualmente as diversas varie-


dades de parafrenías kraepelinianas.

A paratrenia expansiva apresenta alucinações, um es-


tado de hipertonia afetiva, essencialmente eufórica,
uma luxúria do delírio, que são estranhos ao nosso
caso.

A parafrenia fantástica só apresenta mitos cósmicos,


místico-filosóficos, pseudocientíficos, metafísicos,
tramas de forças divinas ou demoníacas, que ultrapas-

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Caso Aimée – Exame clínico

sam de muito em riqueza, complexidade e estranheza


o que vemos em nosso delírio.

Não se trata tampouco, em nosso caso, de parairenia


confabulante, delírio de imaginação rico em inumerá-
veis e complexas aventuras, em histórias de raptos,
falsos matrimônios, trocas de crianças, enterros simu-
lados, de que conhecemos exemplos muito belos.

A psicose paranóide esquizofrênica, de Claude, deve


ser deixada de lado pelas mesmas razões.

Nossa paciente conservou nos limites normais a noção


de sua personalidade; seu contato com o real manteve
uma eficácia suficiente; a atividade profissional pros-
seguiu até a véspera do atentado. Estes sinais elimi-
nam tal diagnóstico.

A partir daí, somos levados ao amplo quadro definido


por Claude com o nome de psicoses paranóicas.

Nosso caso, por sua sistematização, seu egocentrismo,


seu desenvolvimento lógico a partir de premissas fal-
sas, pela elaboração tardia dos meios de defesa, se
enquadra perfeitamente dentro destes limites gerais.

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Caso Aimée – Exame clínico

Transcrevamos, para terminar este capítulo, o laudo


quinzenal que nós mesmos redigimos por ocasião da
entrada da doente:

 Psicose paranóica.
 Delírio recente tendo chegado a uma tentativa de
homicídio.
 Temas aparentemente resolvidos depois do ato.
 Estado oniróide.
 Interpretações significativas, extensivas e concên-
tricas, agrupadas em torno de uma idéia prevalen-
te: ameaças a seu filho.
 Sistema passional: dever a cumprir para com este.
 Impulsões polimorfas ditadas pela angústia: dili-
gências junto a um escritor, junto à sua futura víti-
ma.
 Execução urgente de escritos.
 Remessa destes à Corte da Inglaterra.
 Escritos panfletários e bucólicos.
 Cafeinismo.
 Desvios de regime.
 Duas exteriorizações interpretativas anteriores,
determinadas por incidentes genitais e comple-
mento tóxico (tireoidina).
 Atitude vital tardiamente centrada por um apego
materno exclusivo, mas onde dominam anterior-
mente valores interiorizados, permitindo uma a-

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Caso Aimée – Exame clínico

daptação prolongada a uma situação familiar a-


normal, a uma economia provisória.
 Bócio mediano.
 Taquicardia.
 Adaptação à sua situação legal e maternal presen-
te. Reticência.
 Esperança.

Esta síntese refere-se ao Capitulo II – Parte 1 do livro


“Da psicose paranóica em suas relações com a perso-
nalidade” de Jacques Lacan.

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Caso Aimée – Exame clínico

Lacan
O psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981) foi
um grande estudioso da mente humana. Interessado
nos sintomas apresentados por paranóicos, obsessi-
vos, castrados ou psi-
cóticos, no começo da
carreira entrou em
contato com pessoas
perturbadas e que co-
metiam crimes sem
consciência dos acon-
tecimentos.

Lacan graduou-se em medicina, especializou-se em


psiquiatria e logo depois trabalhou na enfermaria es-
pecial de alienados da Chefatura de Polícia, sob a dire-
ção de Clérambault, um dos mestres da psiquiatria
francesa da época, criador do conceito de "automa-
tismo mental", de muita importância para o pensa-
mento de Lacan.

Na enfermaria onde Lacan trabalhou eram levadas


pessoas que haviam cometido algum crime, mas que
não poderiam ser responsabilizadas caso apresentas-
sem um distúrbio mental. Foi nesse lugar que Lacan
elaborou sua tese de psiquiatria "Da psicose paranóica

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Caso Aimée – Exame clínico

e suas relações com a personalidade". Nela Lacan rela-


ta o fato de alguns pacientes se curarem após comete-
rem um crime. A partir dessa observação, Lacan pro-
pôs um novo diagnóstico, denominado "paranóia de
autopunição".

A característica principal da paranóia de autopunição


é o efeito de cura que um ato criminoso produz num
sujeito que o comete em decorrência de um delírio.
Apesar de ter recolhido muitos casos dessa manifesta-
ção, Lacan escreveu sua tese fundamentando-se no
Caso Aimeé, que se tornou o paradigma da paranóia
de autopunição.

Aimeé era uma mulher que pertencia à burguesia,


uma funcionária pública fascinada por uma atriz famo-
sa. Ela foi à saída do tetro onde a atriz trabalhava e
atacou-a com uma navalha. A atriz teve os tendões
das mãos cortados, e Aimeé foi então presa e levada
para a clínica de Clérambault.

A conclusão a que Lacan chegou foi que o que estava


em jogo naquele caso era uma idealização patológica,
a princípio pela irmã, depois pela atriz. Porém, as úni-
cas noções que poderiam explicar a razão da conduta
da paciente não estavam na psiquiatria: eram concei-

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Caso Aimée – Exame clínico

tos que só existiam na psicanálise. No caso, o concei-


to de Superego.

Logo em seguida, em 1933, Lacan publicou dois tex-


tos: "O problema do estilo e a concepção psiquiátrica
das formas paranóicas da experiência" e "Motivações
do crime paranóico: o crime das irmãs Papin", sendo
este o relato do caso de duas irmãs, empregadas do-
mésticas em Paris, que em certo dia, por um motivo
fútil - a falta de luz em casa - mataram e esquarteja-
ram suas patroas.

Ao publicar esse texto, propondo as razões do crime


paranóico, Lacan avançou em relação à sua tese ante-
rior: a concepção de que o outro é o que o criminoso
quer ser, então, ele tem de anular o outro para que
possa existir - caso contrário, se perde nesse outro.
Segundo Lacan, o que provocou o crime foi a realiza-
ção de fantasias de estripação, fantasias que Lacan
chamou de "corpo despedaçado".

Assim como Freud descobriu as fantasias neuróticas,


Lacan evidenciou as "fantasias paranóicas", porém di-
rá que todos têm essas fantasias, e o paranóico seria o
sujeito que as coloca em prática.

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Caso Aimée – Exame clínico

Quem foi de fato Marguerite Anzieu


Breve Biografia

A história do caso Aimée, narrada por Jacques Lacan


em sua tese de medicina de 1932, “Da psicose para-
nóica em suas relações com a personalidade”, ocupa
na gênese do lacanismo um lugar quase idêntico ao do
caso Anna O. (Bertha Pappenheim) na construção da
saga freudiana.

Foi Élisabeth Roudinesco quem revelou pela primeira


vez, em 1986, a verdadeira identidade dessa mulher, e
depois reconstruiu, em 1993, a quase totalidade de
sua biografia, a partir do testemunho de Didier Anzieu
e dos membros de sua família.

Sob esse aspecto, a história desse grande caso prin-


ceps ilustra esplendidamente o quanto os “doentes”,
do mesmo modo que os médicos que os tratam, são
atores de uma aventura sempre dramática, na qual se
tecem laços genealógicos de natureza inconsciente.

Marguerite Pantaine provinha de uma família católica


e interiorana do centro da França. Criada por uma
mãe que sofria de sintomas persecutórios, sonhou
desde muito cedo, à maneira de Emma Bovary, sair de
sua situação e se tornar uma intelectual.

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Caso Aimée – Exame clínico

Em 1910, ingressou na administração dos correios e,


sete anos depois, casou-se com René Anzieu, também
funcionário público.

Em 1921, quando grávida de seu filho Didier, começou


a ter um comportamento estranho: mania de perse-
guição, estados depressivos. Após o nascimento do
filho, instalou-se numa vida dupla: de um lado, o uni-
verso cotidiano das atividades de funcionária dos cor-
reios, de outro, uma vida imaginária, feita de delírios.

Em 1930, redigiu de uma só vez dois romances que


quis mandar publicar, e logo se convenceu de estar
sendo vítima de uma tentativa de perseguição por
parte de Hughette Duflos, uma célebre atriz do teatro
parisiense dos anos 30.

Em abril de 1931, tentou matá-la com uma facada,


mas a atriz se esquivou do golpe e Marguerite foi in-
ternada no Hospital Sainte-Anne, onde foi confiada a
Jacques Lacan, que fez dela um caso de erotomania e
de paranóia de autopunição.

Didier Anzieu filho de Marguerite Anzieu foi um céle-


bre psicanalista francês. Nasceu em Melun, França,
em 8 de Julho de 1923 (viveu ate 1999 sendo que des-

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Caso Aimée – Exame clínico

de 1990, sofria de Parkinson). Em função da irmã na-


timorta teve grande atenção dos.

Perturbações pela imago paterna e depressão da mãe


teve que ser criado pela tia materna. Chegou à psico-
logia depois de cursar filosofia, na Sorbonne. Defen-
deu tese de doutorado abordando a auto-análise de
Freud e seu papel na criação da psicanálise.

A continuação da história de Marguerite Anzieu é um


verdadeiro romance.

Em 1949, seu filho Didier, havendo concluído seus es-


tudos de filosofia, resolveu tornar-se analista. Fez sua
formação didática no divã de Lacan, enquanto prepa-
rava uma tese sobre a auto-análise de Freud sob a ori-
entação de Daniel Lagache, sem saber que sua mãe
tinha sido o famoso caso Aimée.

Lacan não reconheceu nesse homem o filho de sua ex-


paciente, e Anzieu soube da verdade pela boca da
mãe, quando esta, por um acaso extraordinário, em-
pregou-se como governanta na casa de Alfred Lacan
(1873-1960), pai de Jacques.

Os conflitos entre Didier Anzieu e seu analista foram


tão violentos quanto os que opuseram Marguerite a

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Caso Aimée – Exame clínico

seu psiquiatra. De fato, ela acusava Lacan de havê-la


tratado como um “caso”, e não como um ser humano,
mas censurava-o, sobretudo por nunca lhe ter devol-
vido os manuscritos que ela lhe confiara no passado,
quando de sua internação no Hospital Sainte-Anne.

Marguerite passou 12 anos consecutivos hospitalizada


sem nenhum outro ato de violência ou conduta que
pudessem ser considerados socialmente inaceitáveis.
Documentos recém-descobertos descrevem-na duran-
te o período de internação como “calma”, uma “boa
trabalhadora” que solicitava com freqüência sua alta.

Ela foi transferida do Sainte-Anne para o Ville-Évrard


em 1938 e liberada de lá em 1943, havendo assumido
uma série de empregos como doméstica e faxineira,
sem nunca mais chamar a atenção da psiquiatria ou da
lei. Morreu em 1981 com 89 anos.

Didier Anzieu deixou uma obra psicanalítica importan-


te, desenvolvendo o conceito de ego-pele e estudou
muito os grupos, apoiando-se especialmente nos tra-
balhos de Wilfred Ruprecht Bion.

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Caso Aimée – Exame clínico

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