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Flor do deserto, mutilação genital feminina e direitos

humanos

Rodrigo Cerveira Cittadino

O filme Flor do deserto, dirigido por Sherry Hormann, conta a história real de
Waris Dirie (interpretada pela etíope Liya Kebede), somali nascida numa tribo de
nômades que veio a tornar-se uma famosa supermodelo, após uma trajetória repleta de
percalços. Baseado no livro autobiográfico escrito por Dirie, o enredo desenvolve-se a
partir da perspectiva da protagonista. Marcada aos cinco anos de idade pela chaga física
e psicológica decorrente do corte genital, Waris foge de sua comunidade aos treze, ao
descobrir estar prometida em casamento a um homem bem mais velho. Depois da
penosa travessia pelo deserto, a jovem chega a Mogadíscio, capital da Somália, onde
passa a viver com a avó. Mais tarde parte para Londres, e aí perambula entre múltiplos
empregos, até que o fotógrafo Terry Donaldson (Timothy Spall) a repara, abrindo
caminho para que ela decidisse ingressar na carreira de modelo. A escolha não a isenta
de preocupações, pois não só a polícia migratória inglesa a persegue, mas tampouco a
abandona o trauma e as dores da operação/violência que sofrera quando criança. Direta
ou indiretamente, o filme aborda uma miríade de temas – tais como o debate sobre o
que significa ser mulher, entre outros –, porém o foco sem dúvida recai sobre a questão
da mutilação genital. Pelo prisma dos Direitos Humanos, a temática bem se enquadra no
clássico confronto entre universalismo e relativismo cultural.
A discussão acerca da própria nomenclatura da prática revela matizes ora
universalistas, ora relativistas, ora ecléticas. De início, empregou-se a expressão técnica
“circuncisão feminina”. Todavia, a patente similaridade entre essa terminologia e a da
“circuncisão masculina” suscitou críticas, pois ensejava que se traçassem paralelos entre
o que se considerava uma clara violação de direitos humanos, de um lado, e um
procedimento médico provedor de benefícios higiênicos e à saúde, de outro. Em
especial no meio acadêmico, é evidente que controvérsias remanescem1. Não obstante,
1
Guidicelli-Delage comenta que o interesse em se diferenciar a circuncisão feminina da masculina reside
eminentemente em razões culturais, referentes às nossas concepções sobre o que é normal e o que é
estranho: “If a family from Mali may in France have a son circumcised, but may not have a daughter
excised, it is because male circumcision belongs to a cultural order which is more or less ours, male
circumcision belongs to this Judeo-Christian ideology which is the melting pot of our culture and this
ideology does not know excision and never did” (apud Abu-Sahlieh, 1994). Por sua vez, Abu-Sahlieh
em 1970 cunhou-se a locução “mutilação genital” (female genital mutilation – FGM),
que em 1990 seria adotada pelo Comitê Interafricano sobre Práticas Tradicionais
Prejudiciais à Saúde de Mulheres e Crianças, de Adis Abeba. Subsequentemente, a
Organização das Nações Unidas (ONU) acolheria a expressão em vários de seus
documentos, por recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS). Tratar o ato
em tela como “mutilação” permite que se saliente sua gravidade, imputando-lhe uma
conotação negativa, de violência ou agressão, e legitimando sua condenação. Em 1999,
em contrapartida, a utilização do termo “corte” (female genital cutting – FGC), mais
neutro, veio a ser defendida pelo Relator Especial da ONU sobre Práticas Tradicionais,
que chamou a atenção para o risco de se demonizar culturas, religiões e comunidades ao
privilegiar-se a terminologia FGM (UNICEF, 2005, p. 1-2). Por mostrar-se concernido
com semelhante problemática, parece-nos que o relator das Nações Unidas enunciou,
em alguma medida, o espírito da doutrina do relativismo cultural.
A Recomendação Geral n. 14 do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação
contra a Mulher (CEDAW), que explicitamente se remete aos artigos 10 e 12 da
Convenção sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher
(1979), fala em “circuncisão feminina” (CEDAW, 2011). Ao longo deste trabalho,
usaremos como intercambiáveis as locuções “circuncisão feminina”, “corte genital” e
“mutilação genital”, e assim procederemos mais por motivos estilísticos – arranjar
sinônimos – do que por qualquer afinidade normativa.
Antes de prosseguirmos, convém estabelecermos certas definições. Conforme
apontamos acima, nosso enfoque primará pelo embate entre universalismo e relativismo
cultural. Contudo, posto que serão os insights de Jack Donnelly que nos fornecerão
embasamento teórico, talvez “embate” não consista na melhor palavra. Para além da
mera dicotomia envolvendo o pensamento universalista e o relativista, o autor encara-os
com extremos de um continuum, cujo centro apresenta uma área cinzenta que admite
uma miríade de meios-termos. Se o relativismo radical sustenta que a cultura é a única
fonte de normas, o universalismo radical postula a validade universal e incontestável de
regras morais e direitos. Embora conceba outras posturas, Donnelly advoga pelo
universalismo robusto (strong universalism), que reconhece a existência de um núcleo
duro de direitos humanos universais, sujeitos, no entanto, a variações de acordo com os

ressalta que não se pode medir o que é mais ou menos violento ao corpo, se a circuncisão feminina ou a
masculina: “Juridical logic cannot acknowledge the distinction between male and female circumcision,
both being the mutilation of healthy organs and consequently damaging the physical integrity of the
child…” (1994).
contextos locais, no que tange a sua interpretação e às formas de implementação
(Donnelly, 2003, p. 89-90).
Em outra obra, International Human Rights (2006), o autor enumera três
fundamentos para seu universalismo, ao passo que rejeita explicações de teor histórico-
antropológico ou ontológico (p. 39-48). O primeiro argumento é o da universalidade
funcional: os direitos humanos representam, por enquanto, a resposta mais efetiva às
ameaças que mercados capitalistas e Estados soberanos – modelos que se difundiram
mundo afora – impõem à dignidade humana (Donnelly, 2006, p. 43). Ora, no caso
estudado, as pressões à integridade de Waris não advêm de fenômenos modernos, mas,
ao contrário, de costumes (tidos como) tradicionais. O segundo fundamento refere-se à
universalidade legal atribuída à Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH).
Ainda que verdadeira, a alegação complica-se quando aplicada à situação da mutilação
genital na Somália. O compromisso do governo e instituições sólidas constituem fatores
essenciais à efetividade dos direitos humanos, entretanto o Estado somali vem
experimentando desde 1991 uma guerra civil intermitente. Além disso, Mogadíscio não
participa da Convenção sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a
Mulher de 1979 (UNTC, 2011). Como terceiro baluarte ao universalismo, Donnelly cita
um profundo consenso internacional quanto ao conteúdo da Declaração Universal, que
“largely reflects its cross-cultural substantive attractions. People, when given a chance,
usually (in the contemporary world) choose human rights, irrespective of region,
religion or culture.” (Donnelly, 2006, p. 47) Veremos a seguir que nem sempre,
particularmente em comunidades demasiado fechadas em si mesmas, tal qual a tribo de
Waris, a opção pelos direitos humanos – isto é, a opção em prol da extinção da prática
da circuncisão feminina – é assim tão cabal quanto o autor propõe.
A despeito de tomarmos essas precauções, concordamos com Donnelly em
muitos pontos. Todavia, não cremos que pura e simplesmente abraçar o universalismo
robusto resolva o dilema que o filme Flor do deserto ostenta. Isso porque não
conseguimos entrever nenhuma interpretação que, buscando ajustar os direitos humanos
às demandas culturais locais – de sorte a, por exemplo, justificar o corte genital –, não
chegue a desnaturá-los por completo. “[N]ot all ‘interpretations’ are equally plausible or
defensible.” (Donnelly, 2003, p. 96) Ademais, nem sequer cabe aqui sugerir que há um
choque entre dois ou mais direitos humanos, entre, digamos, a equidade de gênero e a
liberdade religiosa – e note-se que a prevalência desta consagra, por vezes, um
argumento a favor da circuncisão masculina –, pois nenhuma religião prescreve (nem
como recomendável, nem como obrigatória) a circuncisão feminina, embora não
raramente os praticantes a compreendea nesses termos (Althaus, 1997; WHO, 2010).
Estamos cientes dos vícios inerentes à assunção de uma posição categórica. Ao
agirmos assim, talvez acabemos por julgar o Outro com base em nossos pré-conceitos e
preconceitos, e talvez involuntária e implicitamente ergamos uma hierarquia “civilizado
x não-civilizado”. Por outro lado, pautar-nos por um distanciamento crítico exacerbado,
apesar de consignar uma exigência importante ao intelectual, pode desembocar, no
limite, em irresponsabilidade, em renúncia a nossos valores morais. Por conseguinte,
defendemos: a mutilação genital não é justificável, pois viola direitos humanos – o
direito à igualdade de gênero (arts. 2º e 3º da DUDH) e direitos da criança 2, já que a
grande maioria das circuncisões se dá em meninas e jovens com menos de 18 anos.
Conforme Donnelly (2003, p. 84) esclarece:

“Our problems arise, it seems to me, because we face competing institutions.


We want to recognize the importance of traditional values and institutions as
well as the rights of modern nations, states, communities, and individuals to
choose their own destiny”

De fato, tradição consiste numa das principais razões 3 por trás da prática do corte
genital. E se no caso em tela temos de defrontar uma escolha entre direitos humanos e
tradição, ficamos com os direitos humanos. Reconhecemos que diferentes culturas
devem ser respeitadas. Afinal, dado que os símbolos, hábitos e regras que compõem
uma cultura provêm de apropriações seletivas de um passado e um presente em que não
vigoram consensos (Donnelly, 2003, p. 102), ela é, em última instância, expressão da
autonomia de seus membros. Qualquer cultura deve ser pensada menos como um todo
2
Consoante o disposto no art. 19 da Convenção sobre os Direitos da Criança (1989): “... para proteger a
criança contra todas as formas de violência física ou mental, abuso ou tratamento negligente (...) enquanto
estiver sob a guarda dos pais...” (Piovesan, 2008, p. 338). Invocamos ainda o Comentário Geral n. 2,
parágrafo 5, do Comitê sobre os Direitos da Criança: “... o estágio de desenvolvimento da criança a torna
particularmente vulnerável às violações de direitos humanos; suas opiniões são raramente levadas em
conta...” (Piovesan, 2008, p. 314). Quanto à Convenção sobre Eliminação de todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher de 1979, decidimos não recorrer a ela expressamente porque a Somália
(caso em questão) dela não faz parte; valem ser mencionados, não obstante, seus arts. 12 (correlato à
Recomendação Geral n. 14 do CEDAW) e 5º: “Os Estados-partes tomarão todas as medidas apropriadas
para: a) modificar os padrões socioculturais de conduta de homens e mulheres, com vistas a alcançar a
eliminação de preconceitos e práticas consuetudinárias e de qualquer outra índole que estejam baseados
na ideia de inferioridade ou superioridade de qualquer dos sexos ou em funções estereotipadas de homens
e mulheres.” (Piovesan, 2008, p. 229).
3
Outros motivos podem ser arrolados: preservação da virgindade antes do casamento, garantia da
fidelidade após o casamento, culto a um ideal de feminilidade associado à “docilidade” e “submissão”,
crenças sobre higiene e noções de estética (uma mulher não circuncidada é tida como “impura”), ideia de
que aumenta o prazer sexual do homem e previne a mortalidade de recém-nascidos, etc. (Amnesty
International, 1997; Althaus, 1997).
homogêneo e estático, e mais como um processo sempre inacabado. Se uma tradição
reflete a autonomia daqueles que a selecionaram, determinadas tradições podem oprimir
as parcelas da comunidade que não tiveram voz no momento da seleção, e não têm voz
para mudar o status quo desigual em que vivem. “[T]he existence of a given custom
does not mean that the custom is either adaptive, optimal or consented to by a majority
of its adherents.” (Zechenter, 1997, apud Donnelly, 2003, p. 102) Por si só, a tradição
não se autolegitima.
Isso em teoria. Na prática a força da tradição não deve ser ignorada, pois
promove pressões bastante tangíveis sobre os indivíduos de uma sociedade 4. Se uma
criança não é capaz (nem lhe é dada a chance) de escolher se quer ou não passar pela
experiência do corte genital, sua mãe tampouco é plenamente autônoma quando a
submete à mutilação. Salvo exceções muito específicas, uma mãe jamais permitiria que
sua filha fosse sujeita a uma operação tão nefastamente cruel e dolorosa; se o faz, é
porque ou não percebe como violento o procedimento, ou o encara como necessário e,
destarte, o tolera. “Because of their lack of choice and the powerful influence of
tradition, many girls accept circumcision as a necessary, and even natural, part of life...”
(Althaus, 1997) É por isso que a afirmação de Donnelly – de que, se tivessem a
oportunidade de optar entre direitos humanos ou mutilação, as pessoas definitivamente
optariam pelos direitos humanos – deve ser lida com cautela. Bem assim a estratégia
mencionada por Rhoda Howard (apud Donnelly, 2003, p. 105), de modificar a
legislação nacional de modo a admitir que as mulheres rejeitem (“opt out”) práticas
tradicionais.
Donnelly (2003, p. 13) registra que uma das possíveis fontes de direitos
humanos corresponde às necessidades (“human needs”). Costas Douzinas (2000)
aparenta trilhar caminho semelhante (entre seus vários caminhos e assuntos), quando, ao
analisar Hobbes, traça para os direitos humanos um fundamento na “legalização do
desejo”. Tendo em consideração essas leituras, pode-se especular que, se uma mulher
imersa numa comunidade que tradicionalmente realiza o corte genital não quer extirpá-
lo, talvez ela assim pense porque não se sente violada, porque não dispõe do desejo de
não sofrer a circuncisão. Ou talvez ela apenas não saiba que não precisa ser mutilada,
como Waris quando descobre que sua colega londrina não fora operada – e logo em

4
Acrescentem-se ainda como fatores limitadores do livre-arbítrio: a rejeição social às “impuras” não
circuncidadas e o fato de que, em alguns grupos, a circuncisão é pré-requisito para uma mulher se casar –
o que, por sua vez, é pré-requisito para a própria sobrevivência em sociedades patriarcais (Amnesty
International, 1997).
seguida lamenta ter sido forçada ao corte. A personagem Waris (e provavelmente a
Waris real) teria escolhido os direitos humanos, se a chance tivesse-lhe sido oferecida
em tempo.
Outras mulheres, entretanto, talvez respondam igualmente à egípcia citada em
artigo da Anistia Internacional, ao falar a respeito de suas filhas: “Of course I shall have
them circumcised exactly as their parents, grandparents and sisters were circumcised.
This is our custom” (Amnesty International, 1997). Diante desses casos, não há muito a
fazer senão educar, instruir, esclarecer, mudar a mentalidade. Sim, isso soa bastante
como “missão civilizadora”, parece odioso, e sem dúvida críticas pós-colonialistas
razoáveis bem teriam cabimento. Não obstante, deve-se levar a cabo tal empreitada?
Nós acreditamos que sim, e por duas razões. A primeira: a maneira como tem ocorrido a
implementação de ações em prol da transformação não é impositiva, conforme se
depreende do que está prescrito, por exemplo, no relatório da UNICEF a respeito da
circuncisão feminina, no item Changing the social convention (2005, p. 23 e seguintes).
A segunda: a mutilação contribui para reproduzir uma hierarquia artificial e perniciosa
entre o homem e a mulher e, além disso, de acordo com a OMS, ela traz “no health
benefits, only harm” (WHO, 2010).

Referências bibliográficas
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