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São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 1997

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A vida dupla de Pedro Nava


JOAQUIM A. DE AGUIAR

Pedro Nava é um escritor que se oferece como poucos aos trabalhos


de crítica. Suas "Memórias" constituem um leque considerável de
assuntos para o estudioso da literatura. Em 1968, quando se debruçou
para escrever a obra de sua vida, beirava os 65 anos. Era, portanto,
um homem bastante maduro e experiente. Seu repertório de leituras
era extraordinário, e intenso o seu convívio com as artes plásticas.
Além disso, gozava de grande prestígio como médico.
Tem sentido biografar um escritor que edificou sua obra se
autobiografando? No caso, sim, pois Nava não escrevia como um
memorialista qualquer, mas como uma espécie de romancista, o que
sempre almejou ser, exercitando seu estilo em região híbrida, entre o
fato e a ficção: fazer literatura com a vida pregressa, sua e dos outros,
foi a sua grande marca. Interpretar seu ponto de vista sobre a sua
história, a de seus parentes, a de sua geração, a do país que
testemunhou na infância, adolescência e mocidade é tarefa que
desafia o leitor crítico. A professsora francesa Monique Le Moing
aceitou o desafio. Sob este aspecto, e outros também, seu livro
encontra-se plenamente justificado.
O fio condutor do trabalho, originalmente tese de doutorado
defendida na França, é a solidão de Nava, que ele procurou povoar
com atividades intelectuais. Monique Le Moing toma o escritor como
homem dividido: de um lado, o conversador animado que frequentava
os "Sabadoyles" (1), que deu dezenas de entrevistas enquanto
publicava suas "Memórias", que amava seus amigos fiéis etc. De
outro, o homem solitário e ressentido que utilizou a escrita como
arma para ajustar as contas com os seus desafetos. Em Nava, a
velhice só fez aumentar suas desilusões e amarguras, de modo que o
negativismo acabou dominando o homem exuberante, chegando a
afetar os derradeiros volumes da sua obra, que perdem em qualidade
para os primeiros. Este é o eixo da interpretação de Monique.
Que o rendimento estético seja menor no fim das "Memórias" é
consenso na crítica, mas que as causas disso se limitem ao rancor do
homem solitário, de mal com a vida, é bastante discutível. Indo por
partes: se combater a solidão com o que quer que seja é próprio de
todos nós, como o dado especificaria o memorialista que foi Nava?
Sua solidão teria sido maior que a de outros escritores? Será que a
queda de qualidade nos seus últimos livros não estaria também
relacionada com o fato de ter-se evaporado a "épica da vida", após os
anos 40, época em que se interrompem as histórias no relato das
"Memórias"? "Campo de Santana", derradeiro capítulo de "O Círio
Perfeito", com suas mais de 300 páginas, tamanho suficiente para um
bom livro de ficção, mais parece um tedioso "romance burocrático",
mostrando que Nava, talvez já sem tanto o que narrar, foi espichando
suas "Memórias" à exaustão.
A dualidade do ser é, portanto, a linha de força da leitura que
Monique nos apresenta. Nava teria tido dupla personalidade, o que
explicaria, inclusive, a criação do seu já famoso "alter ego", o primo
Egon, figura que protagoniza a narrativa a partir de "Galo-das-
Trevas". No limite, a divisão acaba por remeter à controvertida
sexualidade do escritor, que tanta conversa provocou depois de sua
morte repentina e misteriosa, de modo que o esquema todo pode
funcionar na base da relação causa (sexualidade)-efeito (dualidade).
Um esquema, como se vê, bastante duvidoso: segurança na vida
sexual garante personalidade unificada? Sexo assumido evita solidão
desmedida? Heterossexuais são mais felizes que homo ou bissexuais?
Essas e outras questões são suscitadas pelo rumo da interpretação de
Monique Le Moing.
"A Solidão Povoada" é organizado em quatro partes: "Itinerário de
um Homem Solitário", que pretende ser uma biografia intelectual de
Nava, mas que, no fundo, vai pouco além de resumir os
acontecimentos autobiográficos da obra; "Gênese das Memórias", que
apresenta um interessante estudo sobre o processo de escrita das
"Memórias"; "As Opções Necessárias", em que são abordados os
instrumentos utilizados por Nava para povoar sua solidão e,
finalmente, "Caminhando com Pedro Nava", que reúne textos mais ou
menos raros do escritor: as páginas de "Cera das Almas", sétimo
volume das "Memórias", que Nava deixou inacabado, poemas,
crônicas etc. Esta derradeira parte foi incorporada como se fosse
capítulo do livro, mas deveria ter sido posta em anexo, para não dar a
impressão de que os textos são da autora, um defeito de organização
que poderia ter sido evitado.
Para o leitor atento das "Memórias", não escapam ainda os numerosos
erros de informação cometidos por Monique, salvo engano, por
pressa ou desatenção. Exemplos: dona Diva, mãe de Nava, não
deixou Belo Horizonte para instalar-se no Rio de Janeiro, quando seu
filho foi estudar no colégio Pedro 2º, mas permaneceu na capital
mineira, despachando o menino, que passou a viver sob os cuidados
de parentes do seu falecido marido que viviam no Rio; Nava não se
matriculou na Faculdade de Medicina em 1927, mas em 1921, sendo
aquele o ano em que se formou; a crônica "Evocação da Rua da
Bahia" não foi assinada pelo escritor em 1965, mas em 1952; Alice,
mulher do poeta e jornalista Antonio Salles, não era irmã de dona
Diva, mas sua cunhada; Nava não retornaria à antiga capital
brasileira, para nela se fixar de vez, em 1928, mas em 1933, depois de
exercer sua profissão em Juiz de Fora, em Belo Horizonte e no
interior de São Paulo; Nava não deu início às suas "Memórias" em
1969, mas no ano anterior, e não tinha na época 76 anos, mas se
aproximava dos 65; o pai de Nava não morreu depois de sua sogra,
mas dois anos antes dela, em 1911.
E chegamos ao estilo. De modo geral o livro é bom de ler, embora a
sobrecarga de tópicos deixe a sensação das coisas incompletas. A
escrita é amena, talvez um pouco demais, dada a oscilação constante
entre a conversa solta, parecida com depoimento, e a dicção
acadêmica (problemas de versão da língua francesa para a
portuguesa?). Certos detalhes chamam a atenção, tais como o uso
repetido da palavra "crisol", que dá ao texto um ar antiquado; e a
utilização insistente das reticências, que contribuem para acentuar a
impressão de que a autora poderia ter ido adiante com determinados
assuntos, mas que, provavelmente, se autocensurou (teria lhe faltado
coragem? Houve pressão externa?), deixando ao leitor a incômoda
tarefa de tentar preencher as observações interrompidas.
Por fim, cabe notar que o livro não escapa de certo caráter "oficial":
Monique teve acesso aos "Sabadoyles", ganhou o título do livro de
Afonso Arinos (um dos amigos do peito de Nava), contatou a família
do escritor e mais Alphonsus de Guimaraens Filho, Joaquim Inojosa,
Carlos Drummond de Andrade, entre outros. Suas notas de
agradecimento dão a entender que Le Moing se beneficiou bastante
do nosso conhecido localismo que, deslumbrado, abre todas as portas
aos pesquisadores estrangeiros que, em princípio, "cuidam" de nós
melhor do que nós mesmos.
Nada disso, porém, teria importância se o livro tivesse saído à altura
das fontes consultadas. Sente-se nele a indecisão entre o impulso de ir
fundo nas questões que aborda e o de não macular a imagem, por
assim dizer, oficial do artista. Seja como for, o trabalho de Monique
Le Moing merece ser lido por todos os que se interessam por Nava.
Não se pode dizer, entretanto, que tenha feito um gol de placa, o que é
uma pena -porque Monique devia ter instrumentos para isto-, embora
não seja pecado.

Nota:
1. Tertúlias organizadas por Plínio Doyle, aos sábados, em sua casa,
no Rio.

Joaquim Alves de Aguiar é professor do departamento de teoria


literária da USP.

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