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Livro Que Afrontou Ditadura em Portugal Segue Uma 'Arma Feminista' Ainda Hoje - 02 - 10 - 2021 - Ilustrada - Folha
Livro Que Afrontou Ditadura em Portugal Segue Uma 'Arma Feminista' Ainda Hoje - 02 - 10 - 2021 - Ilustrada - Folha
(HTTPS://WWW1.FOLHA.UOL.COM.BR/ONDE-SE-FALA-PORTUGUES)
PÚBLICO
(HTTPS://WWW1.FOLHA.UOL.COM.BR/PUBLICO)
2.out.2021 às 4h00
Andreia Friaças
O livro está “cheio de impressões”, mas as notas são recentes: foi em 2020 que
Ana conheceu esta obra, “por mero acaso”, numa sessão de leitura, no Porto.
“Fiquei em delírio me esforçando para memorizar algum bocadinho para
depois pesquisar na internet”, graceja. Não tardou até descobrir de que livro se
tratava e de compreender “o monumento escondido” que tinha diante de si.
Acabou por pedi-lo como presente para o seu aniversário de 22 anos.
Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno, autoras do livro, no Tribunal de
Boa-Hora
- Museu do Aljube
Para a atriz Teresa Coutinho, o livro já é uma companhia antiga: chegou por
sugestão de uma amiga da sua mãe quando tinha 16 anos. “Simone de Beauvoir
(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/03/simone-de-beauvoir-leva-suas-teorias-para-a-ficcao-em-as-
é ler 'Novas Cartas Portuguesas'”, disse a amiga. Desde então, a obra atravessou
todas as fases da sua vida e nunca perdeu o lugar central na sua mesa de
cabeceira (mesmo que os livros que lá se amontoam sejam frequentemente
revezados). “É o livro da minha vida porque não é só um livro. É um gesto de
resistência que espelha a maneira como penso e ajo”, diz Teresa, 32.
lá fora
Na newsletter de Mundo, semanalmente, as análises sobre os principais fatos do globo,
explicados de forma leve e interessante.
O livro foi destruído pela censura três dias depois de estar em circulação
(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/07/poeta-e-aplaudida-de-pe-ao-contar-que-sofreu-censura-com-luta-feminista-
Para Ana Cunha, esta obra é capaz de provocar vários ecos e as suas leitoras
podem ser de origens muito diversificadas —só não o aconselha a quem esteja à
procura de um livro leve de praia. Avisa, desde logo, que é uma obra que nos faz
olhar para trás. “Lembra-me do que herdei, mostra que a luta feminista de hoje
não é órfã, nem dissidente, nem marginal”, explica, referindo-se às várias
cartas que dão conta do papel, das expectativas ou das relações familiares que
as mulheres construíam.
No caso de Patrícia Brásia, 32, o livro também é uma ponte com o passado.
Como viveu a sua infância e juventude no Brasil, "Novas Cartas Portuguesas" é
uma forma de cimentar raízes com Portugal e, especialmente, com a sua avó.
“Ela me persegue sempre nestas leituras; quando estou lendo, estou pensando
no que a minha avó terá vivido nesta altura”, explica Patrícia, que desenha
corações nas páginas do livro, assinalando poemas ou excertos das cartas.
Além de servir de fio condutor nas inúmeras conversas com a avó sobre a
condição das mulheres, este livro é ainda um rastilho para novos desafios. “A
minha avó lê muito e, depois de ler este livro, pedi-lhe para ver quantas autoras
tinha nas suas estantes. E tinha muito poucas. É muito interessante ver uma
mulher de 80 anos a confrontar-se com isso pela primeira vez”, recorda.
As "três Marias" foram julgadas e tiveram o livro destruído; 50 anos depois, a obra ainda agita a
vida das jovens
- Museu do Aljube
Patrícia olha para esta obra como “um abraço, um afago, um alento” que
responde aos problemas do presente. “Se, por um lado, pode ser o reflexo do
que foi a experiência da minha avó, também encontro um espelho no livro para
o meu desejo e para a minha dor”, explica esta leitora, que nos desafia a ouvir
os relatos de assédio sexual, crime que todos os dias leva à abertura de dois
inquéritos em Portugal.
tudo a ler
Uma seleção semanal para conhecer novos livros, recordar clássicos, descobrir tendências e
revirar curiosidades literárias.
Agora, com 32 anos, abrir este livro é muitas vezes um momento de reencontro
com a sua adolescência. “Olho para as notas que tirava ao lado dos poemas e já
não fazem sentido nenhum”, diz Teresa. Ainda assim, esta continua a ser uma
das obras que mais influenciam a poesia que escreve (e que guarda
principalmente para si) e uma das protagonistas das várias leituras encenadas
que a atriz faz em ciclos de poesia, como o Clube dos Poetas Vivos, do Teatro
Nacional D. Maria II, do qual é coordenadora há seis anos.
“É preciso levar esta agitação ao público”, defende. “Esta obra representa uma
forma de agir que continua a ser necessária, ainda nos deparamos com
desigualdades de gênero, e este livro representa um gesto de resistência a um
sistema esmagador, opressivo, totalitário e que nos desafia a nos vingarmoos
disso”, justifica Teresa, que foi convidada para fazer parte de uma peça de
teatro sobre as "Novas Cartas Portuguesas" que estrea no próximo ano.
A leitura da sentença acabou por ser adiada para maio e as autoras foram
absolvidas. E se na altura isto foi “um grande burburinho”, a poetisa acredita
que ainda hoje a obra é “um incômodo” para algumas pessoas. “Causa-me
estranheza a falta de mudança de mentalidades, achava que nesta altura
Portugal estaria diferente, mas ainda há uma ridicularização, um risinho,
quando se fala de feminismo”, critica.
“É muito difícil para mim avaliar o impacto que este livro tem nos dias de hoje”,
acrescenta a autora. Ainda assim, considera “muito curiosa” a atenção que o
livro tem despertado entre os jovens. “Nunca pensei que, depois de tantos
anos, houvesse este interesse”, diz Maria Teresa Horta, referindo-se, por
exemplo, à exposição "Mulheres e Resistência – Novas Cartas Portuguesa"s e
Outras Lutas" do Museu do Aljube, que tem sido visitada principalmente por
jovens e mulheres.
Nos últimos meses, a escritora de 84 anos também tem sido contatada por
investigadoras com interesse em analisar a obra, e jovens com curiosidade em
saber mais sobre a história das autoras —no entanto, também há alguns relatos
“preocupantes”. “Há jovens que me dizem que continuam a se identificar com o
livro, a sentir que o livro as defende, que o livro ainda é uma arma. Isso quer
dizer que os problemas continuam a existir, seja trabalho doméstico, a
violência, as expectativas sobre o casamento”, alerta.
Apesar de ser considerado um marco do feminismo português e um dos livros
mais inovadores do século 20, a obra não recebeu especial atenção no rescaldo
do 25 de abril (dia da Revolução dos Cravos, que encerrou a ditadura do Estado
Novo no país (https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/04/portugueses-celebram-das-janelas-o-dia-da-revolucao-
dos-cravos.shtml)) —o que, como explica a escritora Ana Luísa Amaral, se justifica
Agora, identifica um novo interesse: “Acho que é esta nova geração que está
retomando as 'Novas Cartas Portuguesas'”, defende a escritora, vencedora do
Prêmio Rainha Sofia, a maior distinção para a poesia no espaço literário ibero-
americano. “É uma nova geração muito interveniente, muito combativa. Eu a
chamaria de a quarta vaga do feminismo, que junta as 'Novas Cartas
Portuguesas' com a luta ‘trans’ ou com os estudos queer”, defende.
Ao longo dos anos, "Novas Cartas Portuguesas" tem sido estudada pela teoria
feminista ou em estudos de gênero e, num momento em que a
interseccionalidade é uma bandeira do feminismo, esta obra ganha mais
amplitude. “É um livro que nos ensina a nos aceitarmos e nos defendermos, e
isso também inclui mulheres lésbicas, transgênero, assexuais ou negras”,
exemplifica Ana Cunha. “Há uma identificação muito fácil com qualquer pessoa
que tenha se sentido objeto de opressão ou sujeito que deseja”, corrobora
Patrícia.
Mais recentemente, a obra tem sido analisada à luz de outras teorias, como a
teoria queer, uma vez que, além de as autoras denunciarem situações de
discriminação, questionam também as categorias estanques de identidades e
dos papeis sexuais. Como explica Ana Luísa Amaral, há várias propostas queer
que podem ser aplicadas na obra, como a recusa de dicotomias de gênero ou o
próprio questionamento daquilo que seria uma identidade feminina e
masculina.
É precisamente nesta direção que João Miguel Ferreira, 32, olha para a obra.
“Mostra-nos que há mais cores e mais possibilidades de existência, que não
temos de seguir um perfil, e isso diz respeito não só às mulheres, mas a várias
minorias que ainda hoje são oprimidas e ameaçadas, como a comunidade
LGBTQIA+”, defende o professor.
Todos os anos, João leva esta obra aos seus alunos dos 11º e 12º anos, nas
explicações que dá de português e literatura, em Santarém. Costumam ler,
analisar e discutir vários excertos e poemas —e se, por um lado, há passagens
que suscitam “risinhos” entre os rapazes, também há alunos que surpreendem
com o seu interesse. “Tenho alunos que gostam do livro, e que desconstroem a
ideia que têm sobre a forma como as mulheres escrevem.”
A escritora portuguesa Maria Teresa Horta, única das autoras ainda viva
- Reprodução
Tanto Ana Cunha como Patrícia Brásia, Teresa Coutinho ou João Miguel
Ferreira consideram que não deixar o livro morrer passa por a recomendar a
quem está próximo —seja a amigos, família, namorados ou mesmo a
desconhecidos nas redes sociais, como aconteceu com João, que emprestou o
livro a uma auxiliar da escola de Santarém, depois de esta ter comentado o seu
post no Facebook sobre a obra.
Por seu lado, se Ana Cunha tivesse de escolher uma frase do livro que o torne
perpétuo e capaz de abraçar qualquer mulher, não lhe restam dúvidas de que
seria a última frase da penúltima carta: “Continuamos sós, mas menos
desamparadas.”
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