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05/07/2021 Nascido há 150 anos, Proust marcou cultura brasileira e fez sucesso até na TV - 03/07/2021 - Ilustríssima - Folha

OPINIÃO

FILLIPE MAURO

Nascido há 150 anos, Proust marcou cultura


brasileira e fez sucesso até na TV
Novos títulos iluminam a presença do autor francês no país e reacendem o debate
acerca da relação entre autor e narrador

3.jul.2021 às 23h15


EDIÇÃO IMPRESSA
(https://www1.folha.uol.com.br/fsp/fac-simile/2021/07/04/)

Fillipe Mauro
Doutorando em literatura francesa e comparada na USP e na Universidade de Paris III –
Sorbonne Nouvelle. Estuda o romance de Marcel Proust e sua presença na moderna literatura
brasileira

[resumo]  Celebrações dos 150 anos de nascimento do escritor francês


reforçaram a costumeira avalanche de lançamentos a respeito de sua obra.
Novos títulos iluminam a presença de Proust na cultura brasileira moderna e
reacendem o debate acerca da relação entre autor e narrador e da autonomia
da ficção frente a biografia de seu criador.

Os escritos a respeito de Marcel Proust são como as vassouras do poema de


Goethe. Novos achados e especulações sobre a elaboração de “Em Busca do
Tempo Perdido” (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/mariosergioconti/2021/06/antes-restrito-a-milionarios-
proust-teve-pico-de-popularidade-no-brasil-nos-anos-1950.shtml) se multiplicam com frequência

impressionante. Na França, inundam as estantes das livrarias, conquistam


rapidamente os cadernos de cultura e costumam desfrutar de boa audiência.

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O fenômeno foi reforçado recentemente por uma irresistível sequência de


efemérides. (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/mariosergioconti/2021/04/a-industria-de-produtos-proust-
lanca-discos-com-as-musicas-que-ele-amava.shtml) Celebrou-se
em 2013 o centenário de
publicação de “No Caminho de Swann”, o primeiro dos sete volumes de “Em
Busca do Tempo Perdido”. Seis anos depois, foi a vez de festejar os cem anos
de “À Sombra das Moças em Flor”, o segundo volume. Em 10 de julho, são
comemorados os 150 anos de nascimento do autor, e já se preparam
encontros e publicações para o ano que vem, em homenagem aos cem anos
de sua morte.

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Pintura 'Marcel Proust Drinking Pernod', de Javier Mayoral


- Javier Mayoral/Divulgação

As celebrações trouxeram uma grata surpresa aos brasileiros interessados


por Proust. Em toda a longa “Em Busca do Tempo Perdido”, há apenas uma
única menção ao Brasil. Está no “Caminho de Guermantes”, terceiro volume
do romance.

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A expressão do personagem de um historiador da Fronda, série de guerras


civis ocorridas na França entre 1648 e 1653, remete o herói asmático ao olhar
charlatão “de um médico brasileiro que pretendia curar as crises do tipo que
eu tinha com absurdas inalações de essências de plantas”. Nossa epidemia de
cloroquina não o surpreenderia.

A representação pouco lisonjeira de Proust não impediu, contudo, que o


Brasil lesse seu romance em grandes doses e com raro fervor. “Proust sous
les Tropiques”, do historiador suíço-brasileiro Étienne Sauthier,
(https://www.septentrion.com/fr/livre/?GCOI=27574100624020) é o primeiro livro sobre essa ampla

circulação da obra de Proust pela cultura brasileira. Foi publicado no início


deste ano na França pela editora Septentrion.

Mais que uma leitura da imagem do escritor na imprensa brasileira, busca


uma interpretação global para a presença da “Busca do Tempo Perdido” na
construção de nossa identidade moderna.

Como diz Sauthier, o objetivo do livro não foi apenas verificar “em que
medida a obra de Proust se comunica com o público brasileiro”, mas
também avaliar “como ela mesma pode se ler e se definir nessa leitura”.
Entre poemas, romances, traduções, estudos críticos e clubes de leitura, não
é exagero dizer que o Brasil criou um Proust que lhe é próprio.

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O escritor francês Marcel Proust em foto de Otto-Pirou


- Otto-Pirou/Reprodução

Ouviu-se falar de Proust no Brasil pela primeira vez ao final de 1919, quando
“À Sombra das Moças em Flor” venceu o consagrado prêmio Goncourt. O
contexto histórico foi bastante propício. Por um lado, o desfecho da Primeira
Guerra Mundial (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/12/como-a-primeira-guerra-mundial-subsiste-
nos-combates-do-seculo-21.shtml) levava a França a tentar restabelecer o trânsito da

cultura europeia; por outro, a elite intelectual brasileira se empenhava em


desbravar a cultura nacional sem abrir mão de um atento olhar cosmopolita
sobre as vanguardas do Norte.

A partir de então, como disse há alguns anos Walnice Nogueira Galvão,


“crítico brasileiro que se prezasse frequentava Proust”.

O primeiro artigo crítico sobre ele no país veio da pena de Graça Aranha, em
1925. Trata-se de um comentário apressado e vulgar em que dizia que
“Proust não nos rejuvenesce” e que seu livro, carente de “senso filosófico”,
promovia uma “decomposição do universo” sem “recomposição estética”.

Dois anos depois, Alceu Amoroso Lima, (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/01/1727634-


documento-revela-indicacao-de-alceu-amoroso-lima-ao-nobel-de-1965.shtml)nome forte do conservador

círculo dos escritores católicos, partiu em defesa do autor e o descreveu

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como um “explorador da alma humana” à altura de Montaigne.

Na literatura brasileira, as alusões a Proust são numerosas. O exemplo mais


corriqueiro são os sete volumes das memórias de Pedro Nava, mas há ainda
vários outros casos intrigantes.

Uma importante passagem do romance “A Mulher Obscura”, publicado em


1939 por Jorge de Lima, se inicia com a seguinte frase
(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/11/em-oracoes-misticas-jorge-de-lima-revelava-mundo-da-terra-diz-caca-

diegues.shtml):
“Há muito tempo me deitei para dormir”, cópia canhestra do
início do romance de Proust.

Em “No Tempo da Flor”, de 1966, Augusto Meyer apresenta ao leitor um


moribundo personagem que “ia ler todas as manhãs um estranho e delicioso
livro intitulado ‘À L’ombre des Jeunes Filles en Fleurs’”, título original de “À
Sombra das Moças em Flor”.

O narrador de Jorge Andrade, em “Labirinto”, de 1978, vive uma experiência


de memória involuntária que é uma “xícara mais encantada do que a de
Marcel Proust”.

E o protagonista de “A Menina do Sobrado”, publicado por Cyro dos Anjos


(https://m.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/06/1473599-critica-autor-mostra-virtuosismo-em-ficcao-sobre-brasil-dos-anos-

em 1979, viaja a Haia na esperança de contemplar a “Vista de Delft”, de


50.shtml)

Vermeer, e “captar o mesmo sentimento que o petit pan de mur jaune


despertou em Bergotte”, referência à morte do personagem do escritor em
“A Prisioneira” (1923), quinto volume de “Em Busca do Tempo Perdido”.

Nos anos 1950, a editora Globo lançou a primeira tradução de Proust em


língua portuguesa, levada a cabo pelo crème de la crème de nossa moderna
literatura: Mário Quintana, Manuel Bandeira (com Lourdes Sousa de
Alencar), Carlos Drummond de Andrade e Lúcia Miguel Pereira.

A capa do livro de Sauthier recupera uma rara imagem da fachada da Livraria


da Globo no contexto desse lançamento. Há volumes de “No Caminho de
Swann” espalhados por cada centímetro da pequena vitrine. Ao centro, paira
uma grande cópia da famosa fotografia de Proust por Otto Wegener. O
anúncio grandiloquente que a acompanha dá o tom da importância do

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evento: “A editora Globo tem o orgulho de apresentar ao público brasileiro o


nome mais importante da literatura francesa moderna”.

Apesar de o francês ter sido por muitos anos o segundo idioma do ensino
básico brasileiro, essa primeira tradução foi, segundo Sauthier, um marco do
processo de democratização do nome de Proust.

Uma outra tradução —mais sisuda, menos colorida, porém mais precisa— foi
publicada nos anos 1980 pelo poeta Fernando Py. Há ainda uma aguardada
terceira versão, capitaneada por Mario Sergio Conti e Rosa Freire d’Aguiar,
que deve vir a público muito em breve pela Companhia das Letras.
(https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0204201110.htm)

Proustianos franceses ainda se espantam quando descobrem que, em junho


de 1947, menos de 15 dias após a fundação da Associação dos Amigos de
Marcel Proust de Illiers-Combray, seus colegas brasileiros inauguravam um
Proust-Clube na ensolarada praia de Copacabana, com sede no apartamento
do banqueiro Walther Moreira Salles.
(https://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi2802200114.htm)

Em 1956, a socialite Christiane Mendes Caldeira participou de uma edição do


primeiro programa de perguntas e respostas da televisão brasileira, O Céu É
o Limite, na TV Tupi. Teve de responder a questões sobre “Em Busca do
Tempo Perdido” e, por isso, se tornou conhecida em toda São Paulo. Andava
pelas ruas e os pedestres gritavam: “Olha lá! Lá vai a dona Christiane. Sabe
tudo sobre Proust. É fera em Proust”.

Todos esses casos ganham detalhada interpretação no livro de Sauthier. Ele


recupera ainda a hipótese mais anedótica que se conhece para a chegada do
romance de Proust ao Brasil. Ela foi narrada pela primeira vez nos anos 1960
pelo crítico Tadeu Rocha, cujo depoimento acaba de ser traduzido em
francês pelo próprio Sauthier para a edição de 2021 da revista literária
Cahiers de l’Herne.

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O ator Marcelo Mazzarella que interpreta Marcel Proust, em cena do filme "O Tempo
Redescoberto"
- Divulgação

Henri Rochat, jovem garçom do Ritz —para uns, referência de Proust ao criar
Albertine; para outros, modelo do diabólico personagem Charles Morel—,
teria trazido ao Brasil os primeiros volumes de “Em Busca do Tempo
Perdido”.

De mudança para Buenos Aires, onde Proust lhe garimpara um cargo no


Banco de Paris e dos Países Baixos, Rochat fez uma escala em Recife.
Gastador, teve de entregar suas malas para pagar dívidas com a hospedagem
em uma pensão. Lá abandonou os livros, que um piloto da antiga Latécoère
levou em seguida para Maceió e ofereceu a seu médico, o poeta Jorge de
Lima, autor da “Invenção de Orfeu”.

A série de conferências Le cercle de Marcel Proust, que ganha neste ano seu
terceiro volume graças à editora Honoré Champion, traz um artigo da
pesquisadora Pyra Wise a respeito dessa conturbada relação de Proust com
Henri Rochat.

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Suas investigações também atingiram, por outros caminhos, a trilha


brasileira de Sauthier. Elas revelaram o fato de que Rochat, ao ser indagado
no Brasil sobre a origem de seu dinheiro, dizia sempre receber mesadas de
uma “tia rica” de Paris.

Por muito tempo, proustianos brasileiros tiveram a certeza de que tal figura
fosse Céleste Albaret, governanta de Proust. Wise, todavia, considera mais
provável que “a tia” correspondesse à gíria pejorativa contra homossexuais
—portanto, uma perversa alusão a Proust e à raça de invertidos de seu
romance.

AUTOR VS. NARRADOR

As implicações biográficas na construção da monumental obra proustiana, e


as diversas interpretações que se fazem dessa relação, são tema de um outro
importante, e controverso, lançamento.

Saul Friedländer, historiador premiado em 2008 com um Pulitzer por seus


estudos sobre o Holocausto, viu-se instigado diante desse frenesi
contemporâneo da leitura de Proust (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/07/o-que-
une-classico-de-proust-e-enciclopedia-da-revolucao-culinaria-do-seculo-21.shtml). Seu ensaio “Proustian

Uncertainties” foi escolhido um dos principais títulos de 2020 pelos editores


do “Times Literary Supplement” e acaba de ser traduzido para o francês pela
editora Seuil.

À moda dos estudos culturais em voga na Universidade da Califórnia,


onde
(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/10/harold-bloom-unia-memoria-humor-e-doses-de-afronta.shtml)

é professor emérito, Friedländer tenta discernir no “Em Busca do Tempo


Perdido” uma “camada profunda de autenticidade” e de “identidade”. Infla
as zonas de contato entre o narrador e o autor, transforma a ficção em
autobiografia para que o romance não seja mais que o prolongamento de um
discurso, a confirmação de uma ideologia mascarada.

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Trecho de "Em Busca do Tempo Perdido", adaptação para os quadrinhos da obra de Marcel
Proust. A versão para os quadrinhos, feita pelo ilustrador Stéphane Heuet, é publicada no
Brasil pela editora Jorge Zahar.
- Divulgação

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Seu objetivo “não é descobrir apenas o que o narrador quer dizer”, mas,
sobretudo, as “pistas astuciosas ou tentativas de camuflagem do autor ao se
valer das declarações do narrador”.

Surgem dessa reversibilidade entre narrador e autor as conclusões mais


estapafúrdias (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jorge-coli/2019/07/euclides-seguiu-fiel-a-suas-concepcoes-
mas-seu-livro-se-rebelou.shtml).
O narrador promoveria um “discurso de ódio” contra o
barão de Charlus porque o autor talvez desejasse evitar um “romance
abertamente homossexual” que “repelisse vários de seus leitores”.

Ainda assim, contudo, o autor deixaria entrever sua homossexualidade em


um “subtexto”, ao descrever com enorme interesse o encontro entre Charlus
e Jupien nos fundos da alfaiataria e representar de modo “totalmente
artificial, como se fora copiado de uma enciclopédia” o corpo de Albertine.

O narrador se permitiria ainda “insultar” Bloch, “ironizar” Swann e


representar “negativamente” os judeus porque ele próprio, o autor, seria
“indeciso” quanto a seu judaísmo.

Friedländer nada diz sobre a visão piedosa do narrador diante de um Charlus


humilhado por Morel. Também não lhe ocorre a bela cena de êxtase que
exprime o narrador ao surpreender o “pescoço nu” de Albertine no Grande
Hotel de Balbec. Ele se esquece da reação ácida de Oriane de Guermantes
contra o antissemitismo de madame de Gallardon, em defesa do amigo
Charles Swann.

É difícil enquadrar os personagens de Proust em identidades. Eles são o


produto complexo de um lento processo de transformação e negação das
identidades em favor de essências comuns. A saga “Em Busca do Tempo
Perdido” é sempre lembrada por sua profusão de pormenores, mas nunca é
demais ressalvar que esses pormenores se somam para culminar em uma
visão geral e profunda da existência.

Nada também mais avesso ao projeto estético de Proust


que a
(https://m.folha.uol.com.br/ilustrissima/2013/11/1365553-ha-cem-anos-nascia-a-catedral-de-proust.shtml)

confusão entre autor e narrador, entre o eu biográfico e o eu criativo. A


ilusão é denunciada desde os primórdios da redação da “Busca do Tempo

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Perdido”, em um adágio já bastante conhecido nos escritos de Proust


editados postumamente em “Contra Sainte-Beuve”: “Um livro é o produto de
um outro eu, diferente daquele que manifestamos em nossos hábitos, na
sociedade, em nossos vícios”.

Há outras diversas temeridades no livro de Friedländer: o romance


“raramente possui algum enredo”, não se vê em lugar algum “sequer um
indício da aparência” dos pais e não se vê uma “tentativa nele de
experimentar novas formas de narração ou de estilo”.

Contra esse tipo de imprecisão é que se insurge a crítica genética,


interessada em uma interpretação do processo de criação de uma obra a
partir do deciframento de seus textos preliminares. Se “subtexto” há, ele não
se encontra em entrelinhas hermeticamente “sentidas” ou “reconhecidas”,
como diz Friedländer, mas, sim, em manuscritos, datilografias e provas
corrigidas.

Os rascunhos tortuosos da “Busca do Tempo Perdido” são publicados desde


meados dos anos 1950, quando começaram a deixar o espólio familiar e
coleções particulares para integrar um fundo público da Biblioteca Nacional
da França.

Desde então, os arquivos apenas cresceram. Mais importante ainda, também


ingressaram no acervo de manuscritos da biblioteca os lendários soixante-
quinze feuillets (75 folhas) de Proust, de 1907. É com esse “graal”, agora
editado em livro pela Gallimard, que Proust inaugurou a redação de seu
clássico.

Repletas de rasgos, adesivos e manchas, as 75 folhas habitavam há décadas


uma pasta cor bordô, guardada nas gavetas de Bernard de Fallois, primeiro
editor dos manuscritos de “Jean Santeuil”, romance inacabado de Proust, e
de “Contra Sainte-Beuve”.

As diferenças entre “Em Busca do Tempo Perdido”


(https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq3003200207.htm)e os manuscritos iluminam muitos

aspectos da criação proustiana. No romance, por exemplo, ao longo da cena


encantada do passeio pela região de Hudimesnil, o herói avista três árvores
que simbolizam o esquecimento e que “recobriam alguma coisa que não

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podia alcançar”. Nos manuscritos, o leitor também se depara com “uma


espécie de avenida com grandes árvores que parecia saber aonde nos levava”.

No entanto, nos manuscritos, essa aleia constitui um simples déjà-vu e ainda


não exprime o fenômeno de memória involuntária que se tornaria uma das
marcas proustianas.

Essa é a razão pela qual Proust teria renunciado ao romance das 75 folhas e
se dedicado logo em seguida ao ensaio em que contesta as ideias do crítico
Sainte-Beuve, para quem a obra de um escritor seria sobretudo um reflexo de
sua vida e poderia ser explicada por ela. Proust ainda carecia, a essa altura,
da reflexão sobre a memória involuntária capaz de cimentar o conteúdo das
folhas esparsas.

É como se as 75 páginas do manuscrito fossem a matéria bruta —pequenas


narrativas de afetos, emoções e impressões— que as elaborações sobre o
método de Sainte-Beuve articularão, proporcionando ao futuro romance um
princípio organizador.

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