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Comunicação e Saúde desde 1982 • www.ensp.fiocruz.

br/radis
N o 137 ­– fev 2014

Saúde mais Congresso de


Ciências Sociais

Humana
defende ênfase
nas pessoas, não
nas estatísticas

Trabalhador da saúde Dívida pública


Público e privado em Auditoria cidadã busca
debate no 3º Fórum desvendar natureza do
Global de RH endividamento do país
EXPRESSÕES E Experiências

Ritmo brasileiro no
combate ao Chagas
Campanha da OMS que busca dar visibilidade
à doença tem samba como música-tema
Elisa Batalha barbeiro infectado com Trypanosoma cruzi, ainda

“T
continua vitimando milhões de pessoas (Radis 81 e
er o Chagas não é o fim de tudo”. Assim 85). Estima-se que apenas 10% dos infectados foram
começa o samba A vida pode ser diagnosticados. Por isso, educar as pessoas que vivem
melhor, que está sendo difundido mun- em áreas com risco de infecção é muito importante,
dialmente pela Organização Mundial da assim como alertar para a necessidade de tratamento
Saúde (OMS) como parte do Projeto de sensibilização integral (biomédico e psicossocial).
e visibilização das pessoas afetadas pela doença de A doença de Chagas apresenta-se comumente
Chagas (Prosevicha). A ideia é utilizar a música como de forma assintomática. Em 30% dos casos pode
ferramenta de sensibilização nas áreas do mundo onde afetar o sistema cardiovascular com diferentes graus
a doença está presente. de gravidade e provocar morte súbita. De acordo
Integram o projeto o Departamento de Controle com estudos recentes, muitas pessoas com suspeita
de Doenças Tropicais Negligenciadas, da OMS, e de estar infectadas evitam confirmar o diagnóstico
outras organizações como a Federação Internacional por medo da doença, tida como letal. “É importante
de Associações de Pessoas Afetadas pela Doença de combater o estigma e a exclusão que acompanham
Chagas, o Instituto Catalão de Saúde, o Conselho a doença e desmistificar ativamente a visão fatalista
Nacional de Pesquisa Técnica e Científica da Argentina do Chagas para promover o acesso a tratamento e
e o Ambulatório de Doença de Chagas da Universidade qualidade de vida ao paciente”, diz o texto oficial do
Federal de Pernambuco. projeto.
O samba foi composto e gravado pela can- Para ajudar a combater a desinformação e o
tora mineira Luna Cohen, que vive há 14 anos em medo que envolvem a doença, Luna conta que, ao
Barcelona. Ao receber o convite para participar do compor a música, não fugiu dos ritmos com os quais
projeto com uma música, Luna considerou o tema trabalha normalmente. “É mais samba do que qual-
delicado e pediu conselho à família. “Conversei com quer outra coisa”, explica ela, que não desconhecida
minha mãe, que é pediatra, e com uma prima estudan- o Chagas. No bairro onde a cantora mora, fica um
te de Medicina. Venho de uma família de médicos”, centro especializado em Medicina Tropical, e a cantora
conta. A principal recomendação foi ser otimista, já havia participado de atividades artísticas comunitá-
e assim Luna escreveu e gravou A vida pode ser rias ali com o seu grupo de bossa nova e partido alto.
melhor, que na sua definição é “uma mensagem de “Em Barcelona vivem muitos imigrantes brasi-
esperança, que trata do tema a partir da alegria”. Para leiros, bolivianos e de outros países onde a doença é
ela, o projeto foi a oportunidade de realizar um antigo endêmica, e os casos de Chagas são comuns”, conta foto: Rodrigo M. Siqueira
desejo: “Sempre pensei em associar arte e saúde”. Luna, informando que está prevista a composição de
Faz parte da campanha também um vídeo que outra música em castelhano. A cantora, que buscou
conta a história real de um paciente de 85 anos infec- divulgar seu trabalho no Brasil, está feliz com a re-
tado pelo parasita da doença. Apesar de esforços no percussão do samba. “Uma rádio de Belo Horizonte
seu combate, a doença de Chagas, transmitida pelo já tocou”, relata.

A vida pode ser melhor


Ter o Chagas não é o fim de tudo Muito chão pra caminhar
Pois saiba que a vida da gente O medo não, não pode não
Pode ser melhor O medo não vai te dar a vida
foto: antonio narváez

A esperança é o motor Seu coração batendo são


Que move o mundo Que você merece ser feliz
Saúde é o mais importante O medo não
Pode acreditar Não pode não
E existe um lugar O medo não vai te dar a vida
Ouça Luna Cohen cantando A vida pode ser Que alguém pode te ajudar Seu coração batendo são
melhor em http://goo.gl/w3QWqO Vamos juntos sem medo que tem Que você merece ser feliz

[ 2 ] Radis 137 • FEV/ 2014


Nº 137
editorial FEV. 2014

Imagem desfocada Expressões e Experiências


•Ritmo brasileiro no combate ao Chagas 2

É necessário resgatar o aspecto humano representantes de 93 países, ajudou a lem- Editorial


da saúde. A pertinência da mensagem brar que quem cuida e quem é cuidado pre- • Imagem desfocada 3
geral do 6º Congresso de Ciências Sociais e cisa de atenção integral. “Não tem mínimo
Cartum 3
Humanas em Saúde, tema de nossa matéria e não tem teto”, defendeu do alto de seus
de capa, evidencia-se tanto nos debates das 91 anos a ministra da Saúde de El Salvador, Voz do leitor 4
diversas mesas do evento, quanto nos demais uma das vozes a realçar a importância e as
conteúdos desta edição. “Participamos de responsabilidades do Estado, em um evento
simpósios, congressos, mas outros atores, pouco crítico ao aumento do protagonismo
com outros interesses, é que têm o poder do setor privado na estrutura dos sistemas
de definir a agenda da saúde”, resumiu a de saúde dos diversos países, na busca da
presidente do Conselho Nacional de Saúde, cobertura universal. Súmula 5
Maria do Socorro de Souza, no congresso. Já na 5ª Conferência Nacional das Radis Adverte 8
Nuances, que às vezes escapam à Cidades, a ênfase nas pessoas e no bem
primeira vista, precisam ser levadas em comum expressou-se no brado dos partici- Toques da Redação 9
conta, quando se trata de preservar direitos pantes por “reforma urbana já!” e na defesa
humanos e garantir o direito à saúde. Como do Sistema Nacional de Desenvolvimento Capa
decidir, por exemplo, que grupos popula- Urbano (SDU), há muito criado, mas até hoje • Foco nos sujeitos 10
cionais serão testados em uma pesquisa sem operar. Por meio do sistema, a cidade
• Transtornos e sintomas: o que é ser
sobre HIV/Aids sem se criar um dilema ético?, pode ser pensada de forma integral, com a normal 14
indagou em uma das mesas a pesquisadora garantia de participação e controle social.
• Fundamentalismo: uma ameaça à
Jeannie Shoveller, do Canadá. Da mesma Moradia digna, mobilidade, saneamento, cidadania 16
forma um inesperado debate sobre fun- planejamento urbano são itens indispensá-
• Registro, justiça, reparação 17
damentalismo — à primeira vista estranho veis na definição das políticas públicas, em
• A voz rouca das ruas 18
em um congresso de saúde, como apontou prol da qualidade de vida dos cidadãos.
o presidente do evento Kenneth Camargo Deixa, ainda, os sujeitos desfocados • Democratização da comunicação, uma
pauta da Saúde 19
(IMS/Uerj) — mostrou quão danosos são a enigmática dívida pública brasileira, que
os dogmatismos religiosos e o pensamento representou 40% do gasto público federal
Conferência Nacional das Cidades
conservador crescente. de 2013, como mostra o gráfico que ilustra
• Reforma urbana já! 20
O alerta para que se tragam as pessoas a reportagem sobre o tema. Os mais de R$
para o foco esteve presente também no lan- 7 bilhões consumidos pela dívida seriam
3º Fórum Global de Recursos Humanos
çamento, durante o congresso, da Comissão recursos para a construção de unidades
em Saúde
da Verdade da Reforma Sanitária, que básicas de saúde, salas de aula, casas e
• A força de trabalho na garantia de
pretende registrar e esclarecer a repressão hospitais. A formação da Auditoria Cidadã saúde para todos 24
política aos trabalhadores da saúde durante da Dívida Pública para investigar a natureza
a ditadura militar. do endividamento mostra que a sociedade Dívida pública
Dois outros eventos trazidos às pági- civil mantém-se mobilizada. Afinal, é preciso
• A caixa preta da dívida 31
nas desta Radis também ecoam o clamor ajustar o foco. Boa leitura!
para que não se perca de vista a dimen- Serviço 34
são humana. O 3º Fórum Global sobre Eliane Bardanachvili
Recursos Humanos em Saúde, que reuniu Editora da revista Radis Pós-Tudo
• A tortura como método de investigação 35
cartum

Foto da capa Radilson Gomes


Gráficos Felipe Plauska
Ilustrações Marina Cotrim (M.C.)

RADIS . Jornalismo premiado


pela Opas e pela A s foc-SN

Radis 137 • FEV / 2014 [ 3 ]


VOZ DO LEITOR

Odontologia. Acho que este é um assunto constitui na atualidade da saúde pública bra-
Desastres naturais muito interessante, pois a boca manifesta sileira. Mais uma vez agradeço e parabenizo

G ostaria de parabenizar a repórter


Liseane Morosini pela excelente ma-
téria sobre desastres naturais na revista
transtornos sistêmicos e influencia a saúde
de uma maneira geral.
• Wanu z a M as c arenhas , F e ira d e
a revista pela qualidade e comprometimento
para consolidação da saúde pública gratuita
e de qualidade. Obrigada.
135 (dezembro de 2013). Realmente ficou Santana, BA • Christina Kênia Paulo Marques, estudante
bem abrangente, tratando diversos lados e de Serviço Social, Juarez Távora, PB
fontes. O texto mostrou que a gestão do
risco de desastres deve ser levada a sério em
nosso país. Ressalto a importância da mídia
G ostaria de parabenizar a revista Radis
pela qualidade do conteúdo. Sou estu-
dante de Odontologia e soube da revista O lá, quero agradecer a toda equipe da
Radis pelo magnífico trabalho. Obrigado
na divulgação das ações positivas (que a através do meu professor de educação em por me enviarem mensalmente as edições.
reportagem mostrou muito bem, inclusive saúde bucal. Gostaria de sugerir como tema Gostaria de saber se existe matéria sobre a
indicando os desafios e dificuldades) e na o índice de abordagem de saúde bucal, esquistossomose em comunidades quilom-
formação de uma cultura de prevenção em especialmente o índice do CPOD, referente bolas, ou então sugerir o tema. Abraços!
que todos devem entender seus papéis. a dentes cariados, perdidos e obturados/ • Jadielson da Silva, Taquarana, AL
Grande abraço. restaurados. Esse índice é muito importante
• Marcelo Abelheira, Defesa Civil, Rio de para todos e principalmente para alunos e Prezados Danielli, Christina e Jadielson,
Janeiro, RJ professores dessa área. agradecemos pelas palavras. As sugestões
• Fr an ci s co V il an e l, e s t u dante d e estão anotadas. Abraços!

L i toda a edição 135


e adorei. Parabéns
a todos que contribuí-
Odontologia, São Paulo, SP

Caros Francisco e Wanuza, agradece- No Facebook


ram com esse núme-
ro. Gostei muito de
ver que, na matéria de
mos suas mensagens. Esclarecemos que
na edição nº 114 publicamos matéria
sobre saúde bucal. A coleção completa da
P arabéns a toda a equipe Radis. Recebi
minha revista e confesso que adorei
todos os temas abordados. Revista de alta
capa, sobre desastres Radis, em pdf, no site do Programa Radis qualidade, priorizando sempre a informação
naturais, a equipe sou- (www.ensp.fiocruz/radis), tem outras edi- a todos públicos. Obrigada pela atenção!
be transitar por uma ções que abordam este tema. Abraços! Sucesso, sempre.
questão que é bastante • Hágara Menezes, Maranguape, CE
complexa e envolve tantos atores diferen-
Na pauta
tes. O texto procurou dar rosto e voz ao
tema, informando ao mesmo tempo (tarefa
difícil). Já postei no Facebook do Centro S ou estudante de Biomedicina e assinante
da Radis há quase um ano. Adorei todas
C onheci Radis quando fui ao Rio fazer a
especialização em Entomologia Médica
na Fiocruz e me tornei assinante! Muitos
de Estudos e Pesquisas em Emergências as edições e gostaria de sugerir matéria sobre dos meus artigos no meu blog Vetores
e Desastres em Saúde (Cepedes) e vou anemia em gestantes, tema da minha mono- Patogênicos transcrevem partes ou integral-
divulgar bastante, bem como usar em grafia. Acredito que esse seja um assunto que mente os mais variados assuntos que envol-
cursos e tantas outras atividades. Gostei mereça atenção, pois muitas gestantes não vem a saúde pública! Costumo compartilhar
também do editorial assinado por Rogério conhecem as consequências dessa doença. com muitos amigos médicos, enfermeiros e
Lannes, direto e bastante equilibrado. Um Um abraço! professores... E viro uma onça quando meu
grande abraço. • Danielli Luahra Novak, Canoinhas, SC exemplar não chega.
• Carlos Machado de Freitas, coordenador • Beatriz Lopes, Rondonópolis, MT
do Cepedes/Fiocruz, Rio de Janeiro, RJ
G ostaria de agradecer a equipe Radis
por receber todos os meses na minha
casa esse importante instrumento de co- NORMAS PARA CORRESPONDÊNCIA
Saúde bucal nhecimento e de análise da realidade. Sou A Radis solicita que a correspondência

S ou assinante da Radis há mais de cin-


co anos e, como leitora, parabenizo
a revista pela qualidade de conteúdo e
estudante de Serviço Social e a revista me
ajuda bastante nessa trajetória de estudos.
Atualmente estou estagiando na ESF, e gos-
dos leitores para publicação (carta,
e-mail ou fax) contenha nome, endereço
e telefone. Por questão de espaço, o
gráfica. Leio a revista assim que ela chega, taria de pedir uma matéria sobre o Projeto texto pode ser resumido.
mas sinto falta de temas específicos sobre original do ESF e como esse projeto se

EXPEDIENTE

® é uma publicação impressa e online da Documentação Jorge Ricardo Pereira e Sandra www.ensp.fiocruz.br/radis
Fundação Oswaldo Cruz, editada pelo Programa Benigno
Radis de Comunicação e Saúde, da Escola Administração Fábio Lucas, Natalia Calzavara e /RadisComunicacaoeSaude
Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp). Osvaldo José Filho (Informática)
Estágio supervisionado Marina Cotrim (Arte),
Presidente da Fiocruz Paulo Gadelha
Maycon Soares Pereira (Administração) e Uso da informação • O conteúdo da
Diretor da Ensp Hermano Castro revista Radis pode ser livremente reproduzido,
Raquel Ribeiro (Reportagem)
acompanhado dos créditos, em consonância com
Editor-chefe e coordenador do Radis Assinatura grátis (sujeita a ampliação de a política de acesso livre à informação da Ensp/
Rogério Lannes Rocha Fiocruz. Solicitamos aos veículos que reproduzirem
cadastro)Periodicidade mensal | Tiragem 82.600 ou citarem nossas publicações que enviem
Subcoordenadora Justa Helena Franco exemplares | Impressão Minister exemplar, referências ou URL.
Ouvidoria Fiocruz • Telefax (21) 3885-1762
Edição Eliane Bardanachvili
• www.fiocruz.br/ouvidoria
Reportagem Adriano De Lavor (subedição), Fale conosco (para assinatura, sugestões e
Bruno Dominguez (subedição interina), Elisa críticas) • Tel. (21) 3882-9118 | (21) 3882-9119
Batalha, Liseane Morosini e Ana Cláudia Peres • E-mail radis@ensp.fiocruz.br
Arte Carolina Niemeyer (subedição) e Felipe • Av. Brasil, 4.036, sala 510 — Manguinhos,
Plauska Rio de Janeiro / RJ • CEP 21040-361

[ 4 ] Radis 137 • FEV/ 2014


SÚMULA

Saúde terá R$ 106 bi em 2014


O Diário Oficial da União publicou, no
final de dezembro, a Lei de Diretrizes
Orçamentárias (LDO), que estabelece
Esse orçamento poderia ser maior,
já que o governo brasileiro vai deixar de
arrecadar R$ 323,17 bilhões este ano
com os economistas Érica Diniz e José
Roberto Afonso, do Instituto Brasileiro de
Economia da Fundação Getúlio Vargas
os parâmetros para o Orçamento da com desonerações tributárias e subsídios, (Ibre/FGV), o valor é maior do que a verba
União de 2014. O valor total destinado informou o Estadão (30/12). De acordo destinada aos ministérios da Educação e
aos gastos do Governo Federal no ano é da Saúde juntos, de R$ 192,74 bilhões.
de R$ 2,488 trilhões. Desse montante, Esses benefícios fiscais são consi-
R$ 654,7 bilhões serão destinados ao derados gastos públicos (Radis 131), que
refinanciamento da dívida pública. O o Estado injeta na economia de forma
restante, R$ 1,834 trilhão, está reservado indireta. Isso ocorre, por exemplo, quan-
para o orçamento fiscal, da seguridade do o governo abre mão de arrecadar
social e para investimento das empresas tributos, como fez com montadoras ou
estatais (R$ 105,6 bilhões). com a desoneração da folha salarial. Ou
A previsão para o Ministério da quando deixa de cobrar integralmente os
Saúde é de R$ 106 bilhões. A Saúde foi a juros pelos empréstimos que concede, e
pasta com maior aumento orçamentário, cobre ele mesmo a diferença entre o que
devido ao maior número de emendas recebe pelo financiamento e o que paga
dos parlamentares, seguindo as regras para captar os recursos, criando assim
do orçamento impositivo propostas no um subsídio.
projeto da LDO para 2014. Em relação a Entre 2011 e 2014, a desoneração
2013, a verba do ministério cresceu em cresceu 38,68% acima da inflação. Um dos
R$ 5,16 bilhões, sendo R$ 4,48 bi vindos problemas, apontaram os pesquisadores,
das emendas individuais. Para a educação, é o fato de essa conta não aparecer no
serão destinados R$ 82,3 bilhões, R$ 25,4 Orçamento federal, ao contrário do que
bilhões a mais que o valor previsto na ocorre com gastos com obras, pagamento
Constituição para a área. de funcionários e de benefícios previden-
A LDO recebeu 13 vetos da presiden- ciários, entre outros. Para os economistas,
ta Dilma Rousseff. A maior expectativa era a decisão desses “gastos atípicos” ocorre
sobre a decisão da presidenta em relação com pouca discussão com a sociedade.
ao orçamento impositivo, que acabou “Os problemas são inúmeros. O
mantido após acordo com o Congresso. primeiro é a opacidade. Essa despesa não
Esse mecanismo obriga o governo a exe- aparece no Orçamento, então escapa ao
cutar as emendas parlamentares. Entre os processo normal de controle”, avaliou
vetos, estão o que destina recursos para Afonso. Outras questões apontadas por
a reconstrução da Estação Comandante ele são a ineficiência (“não impulsionam a
Ferraz, no Polo Sul, além de dotações que economia”) e a iniquidade (os benefícios
colocariam em risco as metas fiscais. atendem a poucos) da desoneração.

Sobrepeso aumenta
Brasil teve 30 mil casos de hanseníase em 2013 no mundo
O Brasil registrou entre 30 mil e 33 mil
casos de hanseníase em 2013, segun-
do estimativa do Ministério da Saúde.
pelo espirro, tosse ou fala. O tempo entre
o contágio e o aparecimento de sintomas
é de dois a cinco anos. Se não tratada
O número de adultos acima do peso
ideal ou obesos nos países em de-
senvolvimento quase quadruplicou desde
Em 2012, houve 33.303 casos; em 2011, precocemente, a doença pode causar 1980, indicou pesquisa do Overseas
30.298; e, em 2010, 34.894. Mato Grosso, deformidades no corpo e incapacidades. Development Institute, um dos principais
Tocantins e Maranhão foram os três esta- Segundo o secretário nacional de centros de estudo sobre desenvolvimento
dos com maior incidência da doença no Vigilância em Saúde do Ministério da internacional da Grã-Bretanha. Quase um
país, informou o G1 (14/1). Rio Grande do Saúde, Jarbas Barbosa, a incidência da bilhão de pessoas vivendo em nações
Sul, Santa Catarina e São Paulo tiveram os hanseníase tem “reduzido bastante” no país como China, Índia, Indonésia, Egito e
menores índices. A média nacional é de 1,5 nos últimos anos. “O combate [à doença] Brasil estão acima do peso (Folha de S.
caso para cada 10 mil habitantes; a meta é precisa ser aprimorado, sem nenhuma Paulo, 3/1).
reduzir esse número a um caso para cada dúvida. O que a gente vem obtendo em Globalmente, o percentual de adul-
10 mil habitantes. resultado de redução, eu acho que de- tos que apresentavam obesidade ou
A hanseníase é causada por um bacilo monstra que a gente tem que fazer com sobrepeso (com Índice de Massa Corporal
denominado Mycobacterium leprae. Além muito mais velocidade”, afirmou. superior a 25) cresceu de 23% para 34%
do aparecimento de manchas brancas ou As ações de prevenção estão con- entre 1980 e 2008. Em números absolu-
avermelhadas na pele, outros sintomas centradas nas áreas metropolitanas e nas tos, isso representa um aumento de 250
devem ser observados, como o surgimento cidades com mais de 100 mil habitantes das milhões de pessoas em 1980 para 904
de caroços, placas, perda de sensibilidade regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, milhões em 2008. Na América Latina,
ao calor, frio, dor e tato. Doença infecto- além da Baixada Fluminense, regiões me- o percentual de pessoas acima do peso
contagiosa, é transmitida por secreções das tropolitanas de São Paulo e Belo Horizonte recomendado era de 30% em 1980 e de
vias respiratórias como gotículas eliminadas e da região norte de Minas Gerais. quase 60% em 2008.

Radis 137 • FEV / 2014 [ 5 ]


Novo teste de HIV disponível no SUS e em farmácias
O SUS começa a oferecer, a partir de
março, um teste rápido de diagnós-
tico do vírus HIV por meio de fluidos
A bula dos testes vendidos em far-
mácias será detalhada para que não haja
dúvidas na hora do uso e conterá orienta-
Para a realização do teste, a pessoa deve
ficar 30 minutos sem comer, beber, fumar
e escovar os dentes, além de ter que retirar
orais (retirados da gengiva e da mucosa ção para que o usuário procure o serviço a maquiagem. O fluido a ser examinado
da bochecha). A nova tecnologia é um de saúde, em caso positivo para o vírus. “As deve ser extraído da gengiva e do começo
autoexame, semelhante a um teste rápido pessoas que, eventualmente, não se sintam da mucosa da bochecha com o auxílio de
de gravidez, e funciona como uma forma à vontade para ir a um centro de saúde uma haste coletora. Depois de 30 minutos,
de triagem, precisando de confirmação ou laboratório poderão fazer o teste com se uma linha vermelha aparecer, significa
posterior. O teste, oferecido na rede pú- privacidade, em sua casa, no horário e da que não é reagente. Caso apareçam duas
blica, depende de um furo no dedo, da forma que quiserem”, ressaltou o ministro. linhas vermelhas, é sinal de que há anti-
presença de um profissional de saúde e O kit para o exame é produzido pelo corpos HIV naquela amostra, sendo assim,
de estrutura laboratorial. laboratório Bio-Manguinhos, da Fiocruz. o resultado é positivo.
Inicialmente, apenas as ONGs par-
ceiras do departamento de DST, Aids e
Hepatites Virais do Ministério da Saúde
realizarão o teste, e as populações que
apresentam maior vulnerabilidade ao
HIV terão prioridade, informou o jornal O
Globo (19/12). Nesse grupo estão: homens
que fazem sexo com homens, gays, pro-
fissionais do sexo, travestis, transexuais,
pessoas que usam drogas, pessoas em
presídios e moradores de rua.
No segundo semestre, o teste estará
disponível para a maior parte da popula-
ção nos serviços do SUS que atendem a
populações vulneráveis, nas farmácias da
rede pública e também em farmácias da
rede privada. “O diagnóstico estará dispo-
nível para todas as pessoas que quiserem
realizá-lo, inclusive como autoexame.
A grande vantagem é a segurança e a
confiabilidade, além de não necessitar de
infraestrutura laboratorial”, explicou o
ministro da Saúde, Alexandre Padilha.

Transexualidade fora da lista Vacina contra HPV para


de doenças mentais da OMS pré-adolescentes
S e ainda hoje a transexualidade é con-
siderada uma espécie de distúrbio
mental pela Organização Mundial da
de saúde mental da OMS, Geoffrey Reed,
disse que se trata de “despatologizar”
o sexo e que “comportamentos sexuais
A vacina contra o papiloma vírus hu-
mano (HPV), principal causador do
câncer de colo de útero, será distribuída
Saúde (OMS), essa realidade está prestes inteiramente privados ou consensuais e pela primeira vez pelo SUS, durante cam-
a ser alterada. Como informou a Folha que não resultem em danos às outras panha de vacinação. A partir de março,
de S. Paulo (1º/12), a próxima edição pessoas não devem ser considerados uma meninas de 11 a 13 anos serão imunizadas,
da CID-11 (Classificação Internacional condição de saúde”. informou o Estadão (10/1). Estima-se que
de Doenças) – lista de doenças que A notícia, bem recebida por alguns, cinco milhões de pré-adolescentes sejam
orienta a saúde em todo o mundo – promete causar polêmica. Isso porque, protegidas contra a doença, o que equiva-
vai deixar de tachar como transtornos ao deixarem de ser classificados como le a 80% da população nessa faixa etária.
vários comportamentos relacionados à doença, esses comportamentos podem Serão distribuídas 15 milhões de doses,
identidade de gênero. ficar fora da cobertura dos sistemas de em um investimento de R$ 465 milhões.
Pela nova proposta do manual, saúde. Hoje, no Brasil, por exemplo, o Na rede privada, cada uma das três
prevista para entrar em vigor em 2015, Sistema Único de Saúde garante cirurgias doses da vacina custa entre R$ 300 e
os transexuais podem ganhar um capítulo de mudança de sexo e outras terapias aos R$ 400. O ministro da Saúde, Alexandre
próprio que irá reunir outras “condições transgêneros. A psiquiatra Denise Vieira, Padilha, informou que a vacinação deverá
relativas à sexualidade” e nada tem a ver uma das coordenadoras brasileiras da ser feita prioritariamente em escolas e
com as demais doenças. Nessa categoria, revisão da CID na área de saúde sexual, dependerá da autorização dos pais ou
devem entrar outras condições sexuais garantiu à Folha que o impacto da mu- responsáveis. A produção de anticorpos
ainda não definidas pela OMS. Já o sa- dança de diagnóstico nas leis está sendo contra o vírus é maior quando o organis-
domasoquismo e o travestismo fetichista, criteriosamente analisado “para evitar mo ainda é jovem. Em 2015, a oferta se
devem ser eliminados da CID-11. qualquer eventual prejuízo ao acesso a amplia e atende também as meninas de
À reportagem da Folha, o diretor serviços de saúde”. 9 e 10 anos.

[ 6 ] Radis 137 • FEV/ 2014


Pesquisadores pedem rigor na 35% das farmácias
sem farmacêutico em
liberação de transgênicos tempo integral
N o Brasil, 4.852 farmácias e droga-
rias, ou 6% do total, não contam
com a presença de farmacêutico. Já
35% não têm esse profissional em
período integral, o que significa que,
em determinados períodos do dia ou
da semana, o atendimento ao público
é feito sem presença do profissional
responsável. Os dados são do Censo
Demográfico Farmacêutico, realizado
p elo Ins titu to de Pe s quis a e Pó s-
Graduação do Mercado Farmacêutico
(ICTQ), coletados junto aos conselhos
regionais de farmácia do país entre
agosto e dezembro de 2013 (G1, 20/1).
De acordo com o levantamento, o país
tem 76.483 farmácias e drogarias.

O pedido para a liberação de sementes


transgênicas de soja e milho resis-
tentes ao herbicida 2,4-D esquentou
O 2,4-D é um dos componentes do agente
laranja, usado como desfolhante pelos
Estados Unidos na Guerra do Vietnã.
Os estados de Alagoas e de
Sergipe são os mais deficientes quanto
à presença dos farmacêuticos: 97% dos
o debate sobre a regulamentação de Por isso, o MPF pediu à Agência estabelecimentos não têm farmacêutico
plantas geneticamente modificadas e Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em período integral. No Pará e no Piauí,
agrotóxicos na agricultura brasileira. Em que acelere seus estudos de reavaliação essa deficiência é de 95%. Por lei, o
dezembro, a Comissão Técnica Nacional da licença comercial do 2,4-D. O órgão técnico farmacêutico responsável deve
de Biossegurança (CTNBio), responsável quer que o resultado da reavaliação da estar presente nas farmácias e droga-
por examinar pedidos de vendas de trans- Anvisa, iniciada em 2006, embase a de- rias durante todo horário de funciona-
gênicos, recebeu solicitação do Ministério cisão da CTNBio. A Dow AgroSciences, mento. É sua função conferir a receita
Público Federal (MPF) e de pesquisadores que fabrica o agrotóxico, afirma que o do médico, orientar o consumidor e
para que suspendesse os trâmites para a produto é seguro e foi aprovado em mais prescrever remédios que não exijam
autorização das sementes tolerantes ao de 70 países. receita médica.
2,4-D, um herbicida contra ervas dani- O MPF e os pesquisadores acredi- “A fiscalização é deficiente e faltam
nhas que é nocivo à saúde, informou o tam que a liberação desses transgênicos muitos farmacêuticos. Tem estado que
Portal G1 (10/1). poderá ampliar de maneira preocupante o não tem nem metade dos profissionais
Utilizado para limpar terrenos an- uso do 2,4-D no Brasil. Eles pediram maior que deveria ter”, disse Marcus Vinicius
tes do cultivo, o 2,4-D é hoje vendido rigor dos órgãos reguladores na liberação Andrade, diretor de pesquisa do ICTQ,
livremente no Brasil, apesar de estudos de agrotóxicos e transgênicos. O Brasil é o ao G1. O Conselho Federal de Farmácia
terem-no associado a mutações genéti- maior consumidor global de agrotóxicos, (CFF), porém, questiona os dados do
cas, distúrbios hormonais e câncer, entre tendo um dos maiores mercados de trans- levantamento. Para o presidente do CFF,
outros problemas ambientais e de saúde. gênicos do mundo. Walter da Silva Jorge João, o resultado
da pesquisa não é compatível com os
números coletados pelo conselho, que
Álcool mata 80 mil por ano nas Américas registra a existência de 91 mil farmácias
e drogarias em todo o país, em vez de

O Brasil é o quinto país na relação


de óbitos ligados ao consumo de
bebidas alcoólicas nas Américas, indi-
como Colômbia, Argentina, Venezuela,
Equador, Costa Rica e Canadá, as taxas
variam de 1,8 a 5,9.
76.483. Segundo ele, a análise também
erra ao não levar em consideração o
fato de que, principalmente no interior
cou estudo realizado pela Organização No Brasil, no Equador e na Venezuela, dos estados, são feitos acordos com o
Pan-Americana da Saúde (Opas) e pela as maiores taxas de mortalidade foram en- Ministério Público estabelecendo prazos
Organização Mundial da Saúde (OMS). tre pessoas com idade entre 40 e 49 anos. para cumprir a exigência da presença do
A pesquisa, publicada na revista científica Já Argentina, Canadá, Costa Rica, Cuba, farmacêutico em período integral.
Addiction (14/1), investigou todos os óbitos Paraguai e Estados Unidos registraram Nesses casos, o acordo estabelece,
ligados ao álcool em 16 países da América do mais mortes no grupo de pessoas entre por exemplo, que se contrate um far-
Norte e da América Latina entre 2007 e 2009 50 e 69 anos. A pesquisa revelou que 84% macêutico por quatro horas diárias no
e mostrou que, sem o consumo de álcool, dos mortos eram homens. primeiro ano, por oito horas no segundo
aproximadamente 79.456 mortes poderiam Para os autores do estudo, as mortes ano e em período integral no terceiro
ter sido evitadas anualmente. ligadas ao consumo de álcool podem ser ano. A parcela de estabelecimentos sem
As taxas de mortalidade mais altas prevenidas com políticas e intervenções nenhum farmacêutico corresponde às
são as de El Salvador (média de 27,4 em que diminuem a ingestão de bebida, como farmácias irregulares e clandestinas,
100 mil mortes por ano), seguidas pelas por exemplo o controle no mercado e na apontou. “O conselho atua sobre elas
de Guatemala (22,3), Nicarágua (21,3), publicidade e o aumento de preço do autuando e encaminhando para as vigi-
México (17,8) e Brasil (12,2). Em países produto (Radis 132). lâncias municipais.”

Radis 137 • FEV / 2014 [ 7 ]


Violência em presídios no Maranhão
V ídeo produzido por presos
do Centro de Detenção
Provisória de Pedrinhas, em
provimento de condições dig-
nas aos detentos.
“Pe dimos que as au-
São Luís, no Maranhão, es- toridades brasileiras condu-
palhou imagens da barbárie zam investigações imediatas,
vivida no sistema prisional imparciais e efetivas sobre
do estado. A gravação, en- esses eventos, processem os
caminhada à imprensa pelo responsáveis e tomem as me-
Sindicato dos Servidores do didas apropriadas para colocar
Sistema Penitenciário do Estado em vigor o Sistema Nacional
do Maranhão e divulgada pela de Prevenção e Combate à
Folha de S. Paulo (7/1), mostra Tortura promulgado no ano
presos amotinados se divertin- passado”, declarou o Alto
do com os corpos de três rivais Comissariado.
decapitados. Os cadáveres de No dia 7 de janeiro, a
Diego Michael Mendes Coelho, Essa rivalidade é citada em relatório Secretaria de Direitos Humanos
21, Manoel Laércio Santos Ribeiro, 46, e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que da Presidência da República (SDH/PR)
Irismar Pereira, 34, apresentavam ainda conclui que o governo tem sido incapaz de divulgou nota repudiando a violência
sinais de tortura. O vídeo, com duração de coibir a violência. Foi de dentro do comple- no Maranhão. Na mesma semana, o
dois minutos e 32 segundos, foi gravado xo que saíram as ordens para os atentados Ministério Público do Maranhão defen-
em 17 de dezembro de 2013. ocorridos no fim de semana anterior (3 e deu que o governo do estado solicitasse
No mesmo presídio, 62 presos foram 4 de janeiro), que resultaram na morte de reforço de forças federais para controlar a
mortos desde o ano passado. A onda de uma menina de 6 anos e em quatro feri- situação, enquanto o procurador-geral da
violência não foi contida. Em 21 de janeiro, dos durante incêndio de quatro ônibus na República, Rodrigo Janot, avaliava a neces-
mais um preso se somou a esse cálculo: Jó região metropolitana de São Luís. sidade de pedir intervenção do Governo
de Sousa Nojosa foi encontrado morto por O relatório do Sindicato indica que Federal nos presídios. Após o agravamento
enforcamento, conforme noticiou o portal há superlotação em Pedrinhas (que tem da crise, a organização não governamental
Uol (21/1). E, em 22/1, novo assassinato, 1,7 mil vagas mas abriga 2,2 mil presos) e Anistia Internacional também manifestou
de Cledilson de Jesus Cunha, 37 anos, relata casos de estupros de mulheres que preocupação.
desta vez, na penitenciária de Santa Inês, entram no presídio para visitas íntimas. Conforme noticiou o jornal O Estado
a 300 km de São Luís, informou O Globo A divulgação do vídeo repercutiu de São Paulo (10/1), o Governo Federal e
(23/1). Segundo o governo do Maranhão, internacionalmente. Conforme publi- o governo do Maranhão estariam elabo-
que não quis comentar o vídeo, as três cou o jornal Brasil de Fato (8/1), o Alto rando “pacote anticrise” para reduzir a
mortes foram resultado de uma briga en- Comissariado da Organização das Nações possibilidade de uma intervenção federal.
tre membros da mesma facção criminosa. Unidas para os Direitos Humanos pediu A ministra dos Direitos Humanos, Maria
A maior rivalidade no complexo, porém, em nota ação imediata para reestabele- do Rosário, foi a única a responsabilizar
se dá entre presos da capital e presos do cer a ordem no estado, e recomendou o governo do Maranhão pela “barbárie”
interior do Estado, ainda de acordo com a a redução da superlotação dos presídios e a dizer que cabe ao Estado a retomada
reportagem. Eles formariam duas facções. brasileiros — não só no Maranhão — e o do controle da situação.

Saúde tem nova política de atenção a presos


P ortaria publicada no Diário Oficial
da União no dia 15 de janeiro pôs
em vigor a Política Nacional de Atenção
Interministerial nº 1, de 2 de janeiro de
2014, também trata do atendimento pelo
SUS a pacientes que estejam sob liberdade
as equipes da PNAISP e programas e
serviços sociais e de direitos de cidada-
nia. O objetivo é garantir a oferta de um
Integral à Saúde das Pessoas Privadas de condicional. acompanhamento integral, resolutivo e
Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP). Esses novos serviços serão elabo- contínuo a essa população.
Segundo o Portal Brasil (15/1), a PNAISP rados e coordenados por uma equipe
consiste em uma nova estratégia para o de avaliação e acompanhamento das
Sistema Único de Saúde prestar serviço de Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa
SÚMULA é produzida a partir do acompanha-
avaliação e acompanhamento de medidas com Transtorno Mental em Conflito com
mento crítico do que é divulgado na mídia
terapêuticas a pessoas com transtorno a Lei (EAP). Pelo novo texto, a EAP coor-
impressa e eletrônica.
mental e privadas de liberdade. A Portaria denará a ação entre os órgãos de justiça,

Radis Adverte

[ 8 ] Radis 137 • FEV/ 2014


TOQUES DA
REDAÇÃO

Rolezinho e o ‘apartheid brasileiro’ Canal aberto

A entrada de jovens da periferia, em sua


maioria negros, em espaços frequen-
tados por pessoas de alta renda, chamada
policiais militares, bombas de efeito moral.
Alguns, como o Shopping Leblon, no Rio de
Janeiro, preferiram fechar as portas (19/1).
A o participar da entrevista da Radis
com Arlindo Gómez de Sousa (Radis
136), a superintendente do Canal Saúde
de rolezinhos, pautou as discussões de O ex-secretário nacional de Justiça e (Fiocruz) Marcia Correa e Castro fez um
janeiro no país. A intransigência autoritária coordenador do site Avaaz, que organiza alerta: “A sustentabilidade do Canal
de proprietários de shoppings, a violência petições online, Pedro Abramovay, classi- Saúde hoje depende do convencimento
policial e o incômodo dos clientes habituais ficou como “apartheid brasileiro” a seleção do setor Saúde sobre a importância
trouxeram à tona a discriminação racial e de quem poderia entrar e quem deveria da comunicação. Só vamos virar uma
socioeconômica a que esse grupo está ficar fora do shopping JK Iguatemi (SP), emissora dentro do sistema digital
historicamente submetido. com aval da Justiça — os excluídos eram brasileiro se houver no setor Saúde um
Desde que 6 mil pessoas, com idade aqueles cuja aparência parecia remeter aos entendimento de que esse investimento
entre 14 e 17 anos, se encontraram no provenientes da periferia, ou seja, pardos é relevante. Por que a gente não está no
Shopping Metrô Itaquera (SP), em 7 de ou negros. A Lei 7.716, de 1989, não deixa canal aberto? Por que um canal público,
dezembro, para se divertir e ouvir funk dúvidas: é crime “recusar ou impedir acesso mantido com recursos públicos, não
ostentação, shoppings pelo país recorreram a estabelecimento comercial, negando-se tem espaço no espectro radioelétrico
a um aparato para impedir que a juventude a servir, atender ou receber cliente ou que vem sendo ocupado por empresas
da periferia frequentasse esses espaços: comprador “por motivo de discriminação privadas? São parte de nossos desafios
liminares, triagem de clientes, presença de de raça ou de cor”. e lutas”, observou.

Banco Mundial, SUS Mapa de ação afirmativa Portal lembra mortos e


e mídia: a arte da desaparecidos políticos
manipulação O site do Grupo de Estudos Multi-
disciplinares da Ação Afirmativa do
Instituto de Estudos Sociais e Políticos

A manchete da primeira página da Folha


de S. Paulo de 9 de dezembro de
2013 alardeava: “Ineficiência marca gestão
(Iesp/Uerj) atualizou o mapa interativo
contendo a distribuição das universidades
federais e estaduais com ações afirmati-
do SUS, diz Banco Mundial”. O texto da vas, a partir das mudanças introduzidas
matéria falava em desorganização crônica, pela Lei 12.711, que tornou obrigatória a
financiamento insuficiente, deficiências adoção de cotas pelas universidades fede-

reprodução
estruturais, falta de racionalidade do rais. No guia para acadêmicos, estudantes
gasto, baixa eficiência da rede hospitalar, e candidatos ao ensino superior, o usuário
subutilização de leitos e salas cirúrgicas, pode consultar políticas afirmativas por
taxa média de ocupação reduzida, su- região, unidade federativa, tipo de uni-
perlotação de hospitais de referência,
internações que poderiam ser feitas em
ambulatórios, falta de investimentos em
versidade, tipo de ação e beneficiários.
Acesse em http://gemaa.iesp.uerj.br/
dados/mapa-das-acoes-afirmativas.html.
E stá online desde novembro mais um
instrumento para que a sociedade
conheça a história de brasileiros que lu-
capacitação, criação de protocolos e re- taram contra a ditadura militar, o portal
gulação de demanda, entre outras. da Comissão Especial sobre Mortos e
Omitiu, no entanto, a conclusão a Desaparecidos Políticos, em cemdp.sdh.
que chegara o relatório do Banco, como gov.br. O conteúdo inicial foi construído a
bem notou o professor do Instituto de partir de informações atualizadas do livro
Economia da Unicamp e coordenador da Direito à Memória e à Verdade, editado
rede Plataforma Política Social, Eduardo em 2007 pela Comissão Especial sobre
Fagnani. “Nos últimos 20 anos, o Brasil Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP),
tem obtido melhorias impressionantes
reprodução

da Secretaria de Direitos Humanos da


nas condições de saúde, com reduções Presidência da República (SDH/PR), res-
dramáticas da mortalidade infantil e o au- ponsável pelo reconhecimento e repa-
mento na expectativa de vida”, informava ração desses casos. Uma das grandes
o texto. “Existem boas razões para se novidades do portal é a identificação
acreditar que o SUS teve importante papel virtual dos “Lugares de Memória”, termo
nessas mudanças. A rápida expansão da Agrado natalino que remete aos locais, espaços ou es-
atenção básica contribuiu para a mudança truturas nos quais se cometeram graves
nos padrões de utilização dos serviços de
saúde com uma participação crescente de
atendimentos que ocorrem nos centros de
E m 19 de dezembro, último dia antes
do recesso judicial, a Corte Especial
do Tribunal Regional Federal da 1ª Região
violações contra os direitos humanos ou
onde se resistiram ou se enfrentaram essas
violações. Também está disponível a lista
saúde e em outras instalações de cuidados autorizou o retorno das atividades nos oficial completa dos mortos e desapare-
primários”, dizia ainda. As críticas publi- canteiros de obras da usina hidrelétrica cidos políticos reconhecidos pela Lei nº
cadas pelo jornal eram, no texto original, de Belo Monte, menos de 72 horas após 9.140/95 (136 casos) e pela CEMDP (226
“desafios a serem enfrentados no futuro”, decisão da 5ª Turma que determinou a casos), com a biografia de cada um dos
visando ao aperfeiçoamento do SUS. paralisação do empreendimento por irre- militantes, além da situação dos procedi-
Leia o comentário de Eduardo Fagnani gularidades no licenciamento. No apagar mentos administrativos que envolvem o
no site do Radis (www.ensp.fiocruz.br/radis). das luzes do ano jurídico. referido nome.

Radis 137 • FEV / 2014 [ 9 ]


CAPA | 6º congresso brasileiro de ciências sociais e humanas em saúde

Foco nos
sujeitos
Evento instiga Saúde a considerar
pessoas no lugar de números

Ana Cláudia Peres, Bruno Dominguez e Elisa Batalha

O
6º Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde
pretendia, já no tema, promover Circulação e diálogo entre saberes
e práticas no campo da Saúde Coletiva. Da circulação e dos diálo-
gos travados em palestras, mesas redondas e grandes debates na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), entre 13 e 17 de novembro, o
que emergiu foi a necessidade de recolocar os sujeitos no centro de políticas,
pesquisas e ações de saúde.
Para além de metodologias, estatísticas, ferramentas teóricas, planos
de governo e metas do milênio, os 1,6 mil participantes do congresso bus-
caram resgatar o aspecto humano da ciência e da saúde. Esse entendimento
já começaria a se difundir na abertura do evento, quando a vice-presidente
do congresso, Roseni Pinheiro, propôs pensar compartilhadamente a ciência
como empreendimento humano e a saúde como um direito dos homens.
No mesmo tom, a presidenta do Conselho Nacional de Saúde (CNS),
Maria do Socorro de Souza, falou da urgência de os sanitaristas se mobili-
zarem para alcançar a saúde que os brasileiros querem e precisam. “Somos
militantes, mas cada um no seu lugar, e nem sempre vencedores da grande
luta que é afirmar o SUS nos preceitos da Reforma Sanitária, como direito
humano. Participamos de simpósios, congressos, mas outros atores, com
outros interesses, é que têm o poder de definir a agenda da saúde”, observou.
O presidente da Fundação Oswaldo Cruz, Paulo Gadelha, indicou que as
ciências sociais e humanas são, justamente, o espaço privilegiado para articular
visões tão diversas da saúde: “São capazes de alargar campos e objetos de
estudo, de modo a conseguir responder às demandas de cada conjuntura”.

(Des)encontros
O foco nos sujeitos seria reforçado na conferência de Madel Therezinha
Luz, professora da Uerj e pesquisadora colaboradora da Universidade Federal
Fluminense (UFF) e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
em que lembrou que “a saúde, como a felicidade das pessoas, é socialmente
forjada no encontro ou no desencontro”, superando a visão epidemiológica e
partindo da abordagem das ciências sociais e humanas. Em sua fala, intitulada
Pequenas destruições, danos irreparáveis: comentários aos modos sociais de
vida no capitalismo contemporâneo — implicações na saúde coletiva, ela
discorreu sobre os efeitos na saúde da tendência individual e individualizadora
do modo de vida atual.
Madel tratou especialmente da pletora de sons e imagens que nos invadem
por olhos e ouvidos a partir do que denominou de “tecnoveículos” — celulares,
foto: radilson gomes

leitores de mp3, rádios de automóveis, TVs. “Os tecnoveículos criam obstáculos


à comunicação, atrapalham o interesse pelo que está a nossa volta, esgarçando

[10] Radis 137 • FEV/ 2014


republicano: liberdade, igualdade e fraternidade.
“Sem justiça não há esperança de vida saudável. Não
creio que haja dano maior a uma sociedade do que
a perda de esperança na justiça. Cidadãos perdem
a condição de cidadãos, tornado-se uma multidão
de indivíduos soltos”, comentou.
Essa multidão tende a se aglutinar para con-
seguir o que precisa, torcer, comemorar, protestar,
manifestar sua raiva destruindo, ressaltou Madel —
que trata a multidão como sujeito, como novo ator
social e político. “O sistema maltrata a multidão sem
entender que sua revolta é fruto de necessidades
profundas sem resposta. Estigmatiza. Precisamos
nós, das ciências sociais, pensando a vida e a saú-
de atuais, nos ocupar desses fatos preocupantes.
Necessitamos tentar vê-los como questão urgente
da saúde coletiva, da nossa saúde como cidadãos
também e construir uma sociedade mais justa e
mais sadia”, conclamou.
O esgarçamento do tecido social traz riscos ao
desenvolvimento do SUS. A professora do Instituto
de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ) Ligia Bahia alertou que “vivemos
um embaralhamento moral preocupante”, em que
Logomarca do congresso
foi inspirada nas mandalas predomina a visão de que é preciso haver ilhas de
do artista plástico Fernando o tecido social e gerando uma insatisfação coletiva excelência em saúde em vez de acesso igualitário.
Diniz: o técnico, o científico e marcada por estresse, impaciência e agressividade”. “A perspectiva igualitária está fora de moda e é
o cultural reunidos na Saúde Dessa dessocialização, disse, resulta uma multidão vista como nivelar por baixo. A perspectiva do SUS
triste, de fisionomia fechada, desfilando pelas ruas. não é a perspectiva da excelência, mas da mudança
Na avaliação dela, esses artefatos intervêm no social, da saúde como direito”, declarou a sanitaris-
nosso existir sem nos darmos conta, atingem nossas ta, na mesa redonda “Produção do conhecimento
atitudes, nosso modo de agir como sujeitos e atuam e interesses conflitantes na relação entre público e
na sociedade como um todo provocando danos à privado na Saúde Coletiva”.
sociabilidade. “Os tecnoveículos não são neutros,
criam sentidos e geram mensagens, em geral, para
Alteridade versus estigmatização
o consumo. Estão longe de construir sujeitos: refor-
çam os indivíduos como consumidores”. A dimensão humana também foi olhada mais
A destruição do tecido social pode ser consta- de perto na mesa-redonda Direitos humanos, estig-
tada, mesmo que ainda não haja instrumentos para ma e enfrentamento de vulnerabilidades no contex-
medir os prejuízos gerados pelas pequenas destrui- to da saúde pública brasileira: dilemas atuais, que
ções diárias do vínculo primário entre as pessoas, destacou o conceito de alteridade — concepção que
disse Madel. “Os humanos somos animais sociais, parte do pressuposto de que todo homem interage
tendemos a nos reunir em bandos, é a percepção e depende do outro.
de pertencimento a um todo que nos aglutina. O A psicóloga Vera Paiva, da Universidade de São
que pode acontecer a uma civilização quando esta Paulo (USP), trouxe para o debate a noção de estig-
se isola em átomos que se distinguem entre si por matização, ou seja, a carga simbólica que determinada
preço e exclusividade do objeto consumido, pela condição traz para o sujeito e o leva a ser discriminado.
mercadoria transformada em fetiche?”, questionou. “Estigmatização é um processo social que sustenta a
Segundo Madel, a sobrevivência foi garantida desigualdade”, definiu. Por conta do estigma que os
até aqui porque a sociedade estabeleceu como envolvem, pessoas com o vírus HIV, usuários de drogas
princípio a solidariedade, o apoio mútuo, o socorro ilícitas, prostitutas, indígenas e mulheres grávidas, no
aos mais vulneráveis, a partir da percepção de que momento do parto, sofrem risco de receber tratamen-
todos, em algum momento, poderiam precisar de tos degradantes. “Violar direitos é aumentar a chance
ajuda, afirmou ela. “O fato de nos distanciarmos, de as pessoas adoecerem”, resumiu.
de incentivarmos a desconfiança, o medo do outro, Para ela, o fundamentalismo tem provocado
causa dano irreparável no tecido social”, reforçou, retrocessos nas políticas; por exemplo, nas ligadas
admitindo que organizações, instituições, firmas e às experiências de sexualidade. “Existe uma atuação
agentes que controlam o capital ganham com isso. intencional contra as políticas de direitos humanos
“Estamos sendo levados à competição no por parte das bancadas fundamentalistas. O Sistema
trabalho e pelo trabalho, muitas vezes destituída Único de Assistência Social (Suas) e o SUS são regidos
de compromissos éticos. O jogo do ‘cada um por pelo Estado laico, mas 70% das câmaras municipais
si’ a qualquer preço é causador de muitos prejuí- são ocupadas por fundamentalistas. A própria no-
zos”. Para Madel, toda essa mutação não seria tão ção de direitos humanos também foi estigmatizada
preocupante se instituições pilares não tivessem como direitos para bandido. O fundamentalismo
se corrompido, como a justiça — em referência transforma pecador em bandido sem direito”.
não ao poder judiciário, mas à dimensão social Esses grupos se opõem à abordagem de
presente nos três princípios que originaram o Estado direitos humanos na saúde, que apresenta sinais

[12] Radis 137 • FEV/ 2014


de eficácia, como no combate à epidemia de HIV/
aids no país. “Na perspectiva de direitos humanos,
começamos por considerar cada pessoa como sujei-
to de direitos. Levamos em conta a vulnerabilidade
social implicada no processo saúde/doença”, expli-
cou Marcos Roberto Vieira Garcia, da Universidade
Federal de São Carlos (UFSCar).
O pesquisador tratou de um caso específico de
estigmatização, o dos usuários de crack. Segundo
ele, o estigma é a causa pela qual a política de
redução de danos (Radis 136) não tem conseguido
ser bem assimilada. “Redução de danos é um tema
no qual existe um fosso entre a política e a opinião
pública. O senso comum é a política baseada na
internação”, declarou, apresentando dados que
mostram que a maioria dos brasileiros aprova a
fotos: carolina niemeyer
internação compulsória de usuários da droga. “É
preciso alertar para os cuidados com a alteridade”. Madel: tendência
individualizadora do modo
de vida contemporâneo
Criminalização de sujeitos
esgarça tecido social
Na palestra As boas intenções da saúde e afeta saúde
pública: examinando a ética de direcionamento
a subgrupos populacionais socialmente definidos
para a promoção da saúde, os dilemas éticos e
os direitos humanos também foram abordados,
desta vez por Jeannie Shoveller, da Universidade
de British Columbia, no Canadá. Jeannie indicou
que cidadãos com HIV são criminalizados em seu
país por transmitirem o vírus para outros: “Há
pessoas na cadeia [por terem transmitido HIV] e
isso é quebra de direitos humanos. É uma grande
vergonha para o meu país”.
Ela também provocou a reflexão sobre os
sujeitos que são alvo de ações de promoção da
saúde: como decidir, por exemplo, que grupos
populacionais serão testados em uma pesquisa
sobre HIV sem se criar um dilema ético? “Quantas
e quais pessoas precisam ser testadas para termos
informações epidemiológicas suficientes para po-
Vera: estigmatização
líticas de saúde eficazes? A quem se deve oferecer sustenta a desigualdade,
a testagem e como se deve abordar a pessoa?”, aumentando o risco de
são algumas das questões que surgem. Mais uma tratamento degradante
vez, o congresso estava pensando nas pessoas por a grupos vulneráveis
trás dos números.
Em pesquisas que buscam testar caminhonei-
ros, gays ou jovens, por exemplo, é comum que
os sujeitos da pesquisa (se) perguntem: “Por que
querem me testar?”, observou Jeannie. O convite
para participar, por si, pode passar mensagem
estigmatizante para o indivíduo que pesquisadores
e profissionais de saúde encaixam em um grupo,
mesmo quando há a opção de negar o exame — o
opt out, considerou. “É preciso entender os subgru-
pos vulneráveis como altamente heterogênos e não
como homogêneos”, frisou Jeannie.
Kenneth Rochel Camargo Jr., pesquisador do
Instituto de Medicina Social da Uerj e presidente do
congresso, criticou iniciativas brasileiras de testa-
gem para HIV em grandes eventos, como no Rock
in Rio. “A testagem indiscriminada não se justifica”.
Na avaliação de Jeannie, o modo com que a saúde e
a ciência vêm lidando com as pessoas não é o mais Jeannie: saúde e ciência
adequado, mesmo em centros de excelência, como não vêm lidando com
a universidade canadense a qual está vinculada. as pessoas de maneira
“Não necessariamente todas as questões éticas e adequada, mesmo em
de viabilidade são observadas”, admitiu. centros de excelência

Radis 137 • FEV / 2014 [13]


Transtornos e sintomas:
o que é ser normal?
C omo a saúde deve encarar a heterogeneidade
humana? Como separar interações pessoais e
processos subjetivos de transtornos e sintomas pas-
Desde então, as revisões são sempre acompa-
nhadas de muita expectativa. Jane ponderou que,
apesar de todas as críticas pertinentes ao DSM-V,
síveis de serem tratados com medicamentos? Essas a revisão do manual tem o mérito de lançar luzes
preocupações sobre a condição humana também sobre o tema com uma preocupação de desafiar o
foram tema de debates no congresso. reducionismo biológico. A plateia atenta envolveu-
A controvertida quinta edição do Manual -se no debate, tentando relacionar o relatório às
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais discussões atuais sobre direitos humanos.
(DSM-V) esteve na pauta de grupos de trabalho,
comunicações orais e mesas redondas. Atualizado
A palavra é ‘farmacologização’
em maio de 2013, o documento — que lista dife-
rentes categorias de transtornos mentais e critérios Já há uma palavra para representar o fenôme-
para diagnosticá-los de acordo com a Associação no contemporâneo que transforma uma condição
Americana de Psiquiatria (APA) — tem recebido ou capacidade humana em oportunidade para
críticas da comunidade científica. intervenção da indústria farmacêutica: farmaco-
logização — do inglês pharmaceuticalization.
O termo, tema de palestra de Jonathan Gabe, da
Manual ‘normatizador’ e
Universidade Royal Holloway, de Londres, inclui
‘limitado’
o uso de fármacos com objetivos não medicinais,
Para muitos estudiosos, o manual continua como um “estilo de vida” entre pessoas saudáveis.
reproduzindo um modelo de atenção psiquiátrico E estende-se, segundo o pesquisador, além do
de viés biológico e normatizador que traz como alcance estritamente médico: “Pode haver farma-
consequência a medicalização excessiva. Segundo cologização sem medicalização”.
o pesquisador canadense Laurence Kirmayer, da “A obesidade, por exemplo, é tratada cada
Universidade de McGill, no Canadá, havia a promessa vez mais com medicamentos, e muitas vezes por
de que, em sua nova versão, o manual levasse em meio de compras diretas pela internet”, explicou
conta as interações pessoais e os processos subjeti- Gabe, para quem a relação direta da indústria com
vos — e não apenas síndromes e sintomas clínicos. os consumidores é um dos principais aspectos da
“Mas essa promessa não foi cumprida”, lamentou. farmacologização. “Remédios são vistos no imagi-
Ele avaliou que o novo documento é limitado nário como pílulas mágicas”, resumiu.
e conservador e que não provocou quase nenhum Gabe propôs lançar um “olhar antropológico”
impacto na prática psiquiátrica. “Apenas na retóri- sobre o fenômeno. Sem deixar de ressaltar que me-
ca”, fez questão de acrescentar. “É preciso valorizar dicamentos podem de fato salvar vidas de pessoas
os contextos e os processos sociais e escutar a que têm problemas de saúde, o pesquisador esmiu-
linguagem do paciente. É isso que pode introduzir çou novos hábitos de consumidores e estratégias da
ferramentas mais sofisticadas para os clínicos”. indústria. Uma delas é “vender a ideia de doença”,
Intitulada O DSM-V e suas implicações, a ou seja, redefinir o que são problemas de saúde
mesa trouxe inúmeras provocações ao debate. a partir do que tem uma solução farmacêutica.
A pesquisadora Sandra Caponi, da Universidade O que inclui renomear problemas pessoais ou as
Federal de Santa Catarina (UFSC), reforçou as crí- possibilidades e riscos de falhas: ansiedade social,
ticas de Laurence e disse que o manual está longe síndrome das pernas inquietas e disfunção erétil
de poder ser considerado a “bíblia da psiquiatria” foram alguns exemplos listados pelo estudioso.
ou de representar a natureza das patologias com “Vender a doença envolve também mudar
uma linguagem comum e universal. “Por se tratar as formas de governança, com a aprovação cada
de uma lista de sintomas sem sustentação científica vez mais rápida de novas drogas para o mercado.
sólida, o DSM-V não poderá ser usado como marco As agências reguladoras passam a ser agentes da
de referência das pesquisas científicas”, argumen- inovação, e não guardiãs da saúde pública”, disse
tou, temendo o uso meramente administrativo e ele, que considera aspecto essencial para a indústria
burocrático do manual. farmacêutica alcançar a retirada dos obstáculos à
Publicado originalmente em 1952, o DSM livre oferta de seus produtos ao consumidor.
apontava 106 categorias de desordens mentais. O palestrante apontou também o uso cres-
A cada nova edição, categorias são excluídas cente de remédios para fins não médicos. Segundo
enquanto outras são renomeadas, reorganizadas, ele, esse tipo de utilização tem três objetivos:
adicionadas. O DSM-III, de 1980, com 494 páginas a normalização, ou seja, tornar-se “normal” ou
e uma lista de 265 categorias, foi considerado uma ajustado a um padrão; o reparo, como no caso
revolução na prática psiquiátrica. Para Jane Russo, de tratamento da calvície; ou ainda o aumento da
do Instituto de Medicina Social da Uerj, o DSM-III performance em determinada atividade, quando
transformou-se em um marco por romper com a o medicamento é utilizado por pessoas saudáveis.
objetificação e a lógica classificatória. “Isso já vem sendo feito na ausência de qualquer

[14] Radis 137 • FEV/ 2014


envolvimento médico, como no caso de estudantes
e executivos que tomam o estimulante metilfenida-
to, a chamada ritalina (estimulante indicado para
pessoas com transtorno do déficit de atenção e
hiperatividade)”, observou. O uso crescente de
antidepressivos, ansiolíticos e indutores do sono
também foi mencionado por ele.
Para Gabe, a mídia desempenha importante
papel na mediação da relação entre indústria e
consumidores de medicamentos. Mas a sua atua-
ção não é, na opinião do pesquisador, tão direta e
maniqueísta como o da propaganda propriamente
dita: a mídia pode atuar como uma “ferramenta de
marketing mascarada de educação”. Sobre o lança-
mento de novos medicamentos, por exemplo, Gabe
afirmou que “a imprensa oscila entre a idealização
fotos: felipe plauska
e a condenação”.
Gabe: farmacologização
Ele chamou a atenção para os anúncios e as redefine problemas de
oportunidades de compra direta de medicamentos saúde e transforma o uso
por meio das novas mídias: “Há um fenômeno de de medicamentos em
banalização, domesticação, no sentido de tornar-se ‘estilo de vida’
uma ação doméstica, corriqueira, cotidiana”. Gabe
disse ver a procura de novos canais e suportes para
a farmacologização.
O pesquisador lembrou ainda que as associa-
ções de pacientes de doenças raras ou crônicas têm
um potencial de ativismo para regular a entrada de
novas drogas no mercado, e essa característica é
explorada pela indústria: “Os pacientes e familiares
são grupos de consumidores informados, tratados
pela indústria como parceiros”. Na análise dele,
essa relação pode ser tanto boa quanto ruim para
a saúde coletiva. “O poder do ativismo pode levar
à resistência ou, ao contrário, ajudar a indústria
farmacêutica. Vai depender se os grupos estão
cooptados ou mesmo formando uma barreira para
defender-se dela”, ponderou.
Greene: ‘comoditização’ da
Governança global e saúde e dos corpos, com
medicamentos essenciais excesso de consumo de
medicamentos no Norte e
Em outra mesa, “Medicamentos e saúde glo- subconsumo no Sul
bal”, o historiador Jeremy Greene, do Johns Hopkins
Institute, nos Estados Unidos, reforçou a importância A pergunta que a lista tenta responder é, segundo
de se compreender a força e as ações da indústria ele: “As pessoas têm direito aos fármacos?”.
farmacêutica. O autor dos livros Will to live, sobre a “As listas de medicamentos essenciais nos
epidemia de aids, e The Republic of Therapy, afirmou países da África até poucos anos atrás eram uma
que a saúde vem sendo reconceitualizada em termos total farsa porque não incluíam medicamentos
farmacêuticos. contra a aids”, comentou Greene. Ao mostrar um
Greene, que se declarou “um estudioso do mapa com dados sobre a gravidade da epidemia
que significa ser normal ou anormal, saudável ou da doença no continente, ele afirmou que o estado
doente”, defendeu que o conceito de saúde é cons- de coisas apresentado evidencia a “falta de viabi-
truído culturalmente e historicamente. “Precisamos lidade moral” das políticas globais de saúde. “As
ter uma sensibilidade histórica para o conceito listas se compõem de medicamentos que não são
de saúde global. O desenvolvimento tecnológico mais o de primeira escolha. A indústria se utiliza do
não é suficiente para explicar o redirecionamento argumento ‘drogas velhas para um mundo pobre’,
conceitual na direção das drogas, dos fármacos”, e as empresas se articulam de maneira a não ver a
disse. Para ele, está em curso uma comoditização ameaçada a propriedade intelectual”.
da saúde e dos corpos: “Em termos globais, há um Sobraram críticas também para a Organização
excesso de consumo de medicamentos no Norte e Mundial da Saúde (OMS) e outras instituições
um subconsumo no Sul”, explicou. internacionais, que, segundo o palestrante, não
O pesquisador discutiu o contexto político conseguem ter eficácia normativa para defender
e histórico da criação da Lista de Medicamentos que as listas de medicamentos essenciais sejam
Essenciais e de suas alterações posteriores. O do- atualizadas e adequadas aos Estados. “A OMS está
cumento, publicado em 1977 e atualmente na sua desabando. Não é o conceito de drogas essenciais,
17ª versão, é utilizado como modelo para a maioria mas a OMS que está desabando. A ideia da lista é
das relações de medicamentos essenciais nacionais. muito válida e a OMS deve ser a guardiã”.

Radis 137 • FEV / 2014 [15]


Fundamentalismo:
uma ameaça à cidadania
O Brasil é um país de Estado laico, ou seja, não
possui uma religião oficial definida, não apóia
nem discrimina nenhum credo. No entanto, na
extremadas têm conseguido emplacar dogmas com
tamanha facilidade”.
O deputado federal Jean Wyllys (Psol-RJ)
prática, não é bem assim. Apesar de a liberdade de avaliou a conjuntura nacional a partir dos conflitos
crença e cultos divergentes ser garantida no artigo legislativos que colocam, de um lado, os parlamen-
5º da Constituição Federal, a intolerância religiosa tares que defendem projetos de viés conservador
tem sido responsável por casos de perseguição e e, de outro, aqueles que reconhecem a diversidade
violência em todo o território nacional. de práticas religiosas. “Mas não é um debate sim-
“Quem acha estranho um assunto como ples. A nossa cultura e nossas subjetividades estão
esse num congresso de saúde, tem que saber que impregnadas de uma moral cristã. A própria noção
a saúde é a principal área a sofrer com a força de direitos humanos que a gente evoca tem o seu
dos dogmatismos religiosos e o crescimento de fundamento no cristianismo”, disse, acrescentando
um pensamento conservador”, alertou Kenneth que a intenção não é banir da esfera pública o
Rochel Camargo Jr., do IMS/Uerj, na abertura da ponto de vista religioso. “Mas é essencial que ele
mesa intitulada Teocracia e fundamentalismos seja plural”.
na contemporaneidade: ameaças à cidadania Entre os projetos em tramitação no Congresso
e ao Estado laico. Kenneth fez questão de listar que ferem a laicidade do Estado brasileiro, Jean
algumas polêmicas que demonstram o tamanho Wyllys fez questão de citar a PEC da Teocracia —
do problema, como o projeto legislativo conheci- como o deputado vem chamando a Proposta de
do como “cura gay” (que permite aos psicólogos Emenda Constitucional nº 99, que possibilita que
promover tratamentos com o objetivo de curar entidades religiosas questionem a constitucionalida-
a homossexualidade), o Estatuto do Nascituro e de de leis no Supremo Tribunal Federal. Segundo o
censuras a campanhas de HIV/aids e de visibilidade deputado, a proposta é mais um instrumento para
às prostitutas. “Direitos humanos e civis são parte abortar leis ou atos normativos que estendam a
integral do direito à saúde”, provocou. cidadania a homossexuais ou procurem preservar
Para Sonia Correa, co-coordenadora no Brasil a dignidade humana. Jean Wyllys citou ainda como
do Observatório de Sexualidade e Política ligado à exemplo de desrespeito às crenças religiosas o pro-
Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (SPW/ jeto de lei que proíbe o uso e o sacrifício de animais
Abia), o dogmatismo é um problema global con- em práticas de rituais religiosos. Para ele, essa é
temporâneo que reflete o embate entre a plena mais uma ofensiva às religiões de matriz africana.
realização dos direitos sexuais e reprodutivos e o Por outro lado, de acordo com o deputado,
campo religioso. A pesquisadora chamou a aten- da forma como o debate vem acontecendo hoje
ção para o abismo que existe entre aquilo que as no Congresso Nacional, fica cada vez mais difícil
comunidades religiosas dizem e os discursos de aprovar projetos que reconheçam a diversidade
seus representantes. “O problema não é a religião, de práticas religiosas, como os projetos de lei de
Jean Wyllys (E):
mas os discursos. A voz religiosa não é só a voz identidade de gênero, legalização do casamento
fundamentalismo barra
projetos que reconhecem
dos dogmáticos. É preciso ouvir as comunidades”, civil entre pessoas do mesmo sexo ou criminalização
a diversidade; Kenneth pontuou. “E mais do que isso é preciso investigar da homofobia. “Atualmente, como está configu-
Camargo: saúde é a sistematicamente como e por que essas vozes mais rado o Congresso Nacional, vamos avançar muito
área mais ameaçada pouco para garantir os direitos das mulheres ou
da população LGBT”, lamentou. “O máximo que
vamos conseguir é lançar mão de artifícios para im-
pedir que os projetos de natureza fundamentalista
avancem. Mas aprovar os nossos, eu não acredito
que aconteça”.
Participando do debate estava ainda o juiz
do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Roger
Raupp, que alertou para os perigos de se eleva-
rem valores da fé a pressupostos políticos. “Se o
debate público é preenchido por argumentos de
fé, alguém vai sair perdendo porque terá que ser
submetido à fé alheia”, disse. “Isso pode trazer
graves conseqüências, inclusive para as pesquisas
científicas”. O magistrado citou como exemplo
argumentos religiosos colocados de forma direta
foto: carolina niemeyer

contra pesquisas com células tronco ou cirurgias


de mudança de sexo. “A distorção do conceito de
laicidade e a apropriação indevida desse conceito
podem deixar a porta aberta para que projetos
políticos reacionários ganhem espaço”.

[16] Radis 137 • FEV/ 2014


Registro, justiça, reparação
“P ara que tenhamos entendido a nossa história;
a história das viúvas e dos órfãos do talvez,
quem sabe”. A frase, dita pelo advogado e ex-
saúde tenham sido não as vítimas, mas os algozes”,
declarou Luis Eugenio. Ele acredita que os esclare-
cimentos e a discussão sobre violação de direitos
-deputado federal Antonio Modesto da Silveira, de durante o período da ditadura militar podem
86 anos, emocionou os presentes ao lançamento da contribuir para o aprofundamento do projeto do
Comissão da Verdade da Reforma Sanitária (CVRS). SUS e sua consolidação. “Não devemos esquecer
Modesto se referia aos desaparecidos — na reali- que a Reforma Sanitária tinha como orientador da
dade, aqueles que foram perseguidos, torturados e sua luta, nos anos 70 e 80, o lema Democracia e
assassinados pela ditadura militar — e a seus fami- Saúde. A restauração da verdade e a reparação das
liares. Ele foi responsável por defender centenas de violações são essenciais para a garantia da paz, da
presos e perseguidos políticos e, como parlamentar, justiça e da democracia”, afirmou. 
encaminhou a votação da Lei da Anistia. Para o presidente da Fiocruz, Paulo Gadelha,
A CVRS é o braço, no campo da Saúde, uma das diversas dimensões da comissão é a de
da Comissão da Verdade, instaurada em âmbito “refletir sobre a violência de Estado, uma marca
nacional pela Lei 12598, de 2011, com o objetivo muito forte da ditadura brasileira, que deixou como
de examinar e esclarecer as violações de direitos consequência, ainda nos dias atuais, uma cultura
humanos praticadas pelos agentes do Estado entre de violência e uma rede de impunidade”. Segundo
1964 e 1985. A proposta da criação da comissão da ele, a comissão poderá aclarar situações que têm
Saúde foi formulada por Anamaria Tambelinni, pro- efeito direto na vida das pessoas, em suas trajetórias
fessora aposentada da Ensp e da UFRJ. A sugestão pessoais e profissionais. Gadelha reafirmou que a
foi aprovada por unanimidade no 10º Congresso Fiocruz está associada à comissão e dá apoio logís-
Brasileiro de Saúde Coletiva, em novembro de 2012, tico e documental, além de incentivar a pesquisa a
em Porto Alegre. respeito daquele momento do país. “O campo da
A intenção é registrar e esclarecer a repres- saúde esteve à frente do processo de redemocra-
são política aos trabalhadores da saúde durante a tização, e não poderia deixar de estar presente na
ditadura militar no país, por meio de um sistema Comissão da Verdade”, considerou.
de informações online. As pessoas que sofreram Além das narrativas individuais, acrescentou
violações de direitos humanos ou que conhecem Gadelha, a comissão tem o potencial de reacender o
histórias de violação poderão se expressar ali, con- debate sobre rumos e projetos de futuro em relação a
forme explicou à Radis o presidente da Abrasco, muitas experiências significativas em saúde, que não
Luis Eugenio Portela. Uma vez feita a denúncia, os seguiram adiante devido à repressão da época. “A
membros da comissão irão apurá-la e propor as Reforma Sanitária trouxe uma visão de Estado. Espero
medidas cabíveis, tanto em termos de registro e que o espírito da Comissão contamine a pesquisa e
publicização das informações, quanto em termos também o campo da Comunicação e da ação política,
de busca da reparação. Esse processo envolverá para que o tema seja permanentemente pautado”.
pesquisa documental e testemunhos. A Comissão é composta por Ana Maria Costa,
Uma dos tristes episódios protagonizados presidente do Cebes; Danilo Costa, da USP; Fermin
pela ditadura militar que afetaram a Saúde foi o Roland Schramm, da Ensp; Heleno Correa, da UnB;
Massacre de Manguinhos, em 1970, que calou e Hermano Castro, diretor da Ensp; José Rubem de
suspendeu os direitos políticos de pesquisadores Alcantara Bonfim, da Secretaria Municipal de Saúde
da Fiocruz (Radis 120). de São Paulo; Larissa Mendes, do Cebes/Pará; Letícia
O resgate daqueles que tiveram seus destinos Rodrigues da Silva, da UFPR e da Anvisa; Lia Giraldo
Cassados de Manguinhos
interrompidos requer mobilização da comunidade da Silva Augusto, da UFPE; Luis Eugenio Portela, em seu retorno à Fiocruz,
da Saúde Coletiva. “Vale dizer que a comissão presidente da Abrasco; Umberto Trigueiros, diretor em 1979: desmobilização
também apurará casos em que profissionais da do Icict; e Waldir Bertulio, da UFMT e da Andes. de equipes de pesquisa que
atuavam desde os anos 1930
foto: cid sayão / fiocruz

Radis 137 • FEV / 2014 [17]


A voz rouca das ruas
M anifestações. Gás lacrimogêneo. Spray de pi-
menta. Prisões. Transporte público. Black Blocs.
Vandalismo. O debate A reemergência da mobiliza-
ção social no Brasil e o lugar da saúde na agenda de
reivindicações buscou fazer uma síntese dos protestos
que tomaram as ruas em 2013, e de suas relações com
as políticas de saúde.
Participou da mesa o pesquisador da Fiocruz
Paulo Roberto de Abreu Bruno, que chegou a ficar
preso por três dias ao acompanhar os eventos no
Rio de Janeiro como parte do seu trabalho no Fórum
de Articulação da Escola Nacional de Saúde Pública
Sergio Arouca (Ensp) com Movimentos Sociais. Para
ele, o descontentamento da população vinha sendo
demonstrado desde muito antes do mês de junho,
quando culminaram as manifestações.
A partir de antecedentes históricos, como a

foto: felipe plauska


desocupação da Aldeia Maracanã, no Rio de Janeiro,
em março de 2013, e do bairro Pinheirinho, em São
José dos Campos, São Paulo, em janeiro de 2012, hou-
ve, segundo ele, uma exacerbação tanto da revolta
popular quanto da repressão policial.
Luis Eugenio: manifestações puseram a saúde na pauta
Traçando uma linha do tempo, Paulo listou das centrais sindicais e na agenda do governo
ainda diferentes mobilizações por serviços públi-
cos de qualidade e contra os aumentos de tarifas
de água e transporte coletivo em muitas capitais cidadãos tiveram que se organizar em uma rede de
brasileiras, desde o início da década de 2000, até o solidariedade. “No início vi estudantes de Enfermagem
Dia Mundial dos Impactados Ambientais, em 6 de e Medicina socorrendo manifestantes, depois, vo-
junho de 2013, quando pipocaram manifestações luntários que estavam ali especificamente para isso,
em diversas cidades brasileiras. e mais tarde, profissionais se organizaram para dar
Daquele momento em diante, conforme reme- atendimento durante os protestos”, contou Paulo.
morou, uma onda mais forte sacudiu o país, com mul- “A ação de socorristas e a articulação para criação
tidões carregando um profusão de faixas e cartazes. de um coletivo de psicólogos para quem passou
“Até o início de junho de 2013, era um movimento sem pela experiência de ser levado para o presídio foram
liderança”, disse ele, contando que fez um trabalho novidades no front”, indicou.
etnográfico e “quase de infiltrado” nesses protestos. O cientista político Paulo Fábio Dantas Neto, da
“Participei para conhecer”, declarou. Entre as palavras Universidade Federal da Bahia (UFBA), e o presidente da
de ordem, a saúde aparecia na forma de demandas e Abrasco, Luis Eugenio Portela, apresentaram também
slogans como “Hospitais/saúde padrão Fifa”, “Saúde suas análises de conjuntura. “Reemergência da mobi-
não é mercadoria” e “Da Copa eu abro mão, quero lização social é um termo feliz”, disse Paulo Fábio, para
dinheiro para saúde e educação”. quem a revolta popular é justa e legítima. “O mundo
A falta de mobilidade urbana e as remoções de público precisa cada vez mais de política”, afirmou.
dezenas de milhares de pessoas por conta de grandes Paulo Fábio comparou as manifestações de
eventos e em nome do desenvolvimento urbano, em junho com o movimento de transição democrática da
pauta nos protestos, têm como consequências um década de 1980. Para ele, há “elos, não abismos” entre
desenraizamento que afeta profundamente a saúde, os dois momentos históricos, uma vez que ambos
alertou. “Tudo isso faz parte de uma estratégia de seriam legados vitoriosos da redemocratização. Mas,
desmobilização. A terceirização do trabalho na saúde segundo ele, há um perigo iminente quando se obser-
também faz parte desse processo de dominação”. vam autoridades buscando negociar diretamente com
A intensa polêmica gerada pelo uso massivo de manifestantes quando estes estão “sem organização
bombas de gás e armas de efeito “moral” por parte da nem liderança”. “É uma estratégia fascista”.
polícia, pelos cercos e perseguição a manifestantes, “A saúde teve um saldo positivo, porque en-
e também as depredações de carros, lojas e agên- trou na pauta de luta, inclusive das centrais sindicais
cias bancárias, e as prisões em larga escala foram e na agenda do núcleo duro do governo”, comentou
também relembradas. Após jornalistas e fotógrafos Luis Eugenio. Daqui para frente, segundo ele, a
saírem feridos e o tema ganhar repercussão interna- mobilização deveria se dar para “gerar saldo orga-
cional, houve uma virada na cobertura jornalística da nizativo”. Isso, em sua visão, inclui a busca de uma
imprensa comercial. O momento histórico ganhou reforma política para repetir os êxitos da década de
alguns nomes, como “A revolta do gás lacrimogêneo”, 1980. “O movimento da Reforma Sanitária foi bem
conforme publicou o jornal o Estado de São Paulo sucedido em sintonizar a bandeira política com a
em série especial sobre o tema. da saúde, respondendo aos anseios da população.
Se a repressão aos atos foi violenta nas ruas, Hoje, a Reforma Sanitária deve se incluir na pauta
por outro lado, advogados, profissionais de saúde e da republicanização do Estado”.

[18] Radis 137 • FEV/ 2014


Democratização da comunicação,
uma pauta da Saúde
“D emocratização da comunicação: o que a
saúde tem a ver com isso?” Mais do que
responder objetivamente a essa pergunta, os par-
comunicação no Brasil, com o fim dos monopó-
lios, a democratização dos setores de rádio e TV
e o Marco Civil da Internet, entre outras diretrizes
SAIBA MAIS
Projeto de Lei de
Iniciativa Popular para uma
ticipantes do debate promovido pelo Laboratório que garantem o direito à comunicação expresso Mídia Democrática
de Comunicação e Saúde (Laces) do Instituto de na Constituição Federal Brasileira. “Nosso marco www.paraexpressaraliberda-
Comunicação e Informação Científica e Tecnológica regulatório atual é arcaico e a legislação, frag- de.org.br
em Saúde (Icict/Fiocruz) queriam provocar a plateia mentada e incoerente”, apontou Orlando Guilhon, Vídeo L e v a n t e s u a v o z
sobre um tema antes considerado marginal e que superintendente de Rádio da Empresa Brasil http://goo.gl/DiSx4R
agora ocupa cada vez mais espaço na agenda política de Comunicação (EBC) e integrante do Fórum Comissão da Verdade da
do país: o direito à comunicação — que, ficou claro Nacional pela Democratização da Comunicação Reforma Sanitária
para quem assistiu à discussão naquela manhã, está (FNDC). http://cvrs.icict.fiocruz.br/
irremediavelmente ligado ao direito à saúde. Guilhon fez uma retrospectiva da luta pela
Comissão Nacional da
“Não é possível haver saúde sem democracia, democratização da comunicação no Brasil e dos Verdade
nem democracia sem comunicação”, disse Rogério últimos passos da campanha “Para Expressar a www.cnv.gov.br/
Lannes, coordenador do Programa Radis durante Liberdade”, que vem desenvolvendo ações e co-
o debate. Para ele, o direito à comunicação é es- leta de assinaturas para o projeto. Para que possa
sencial para que se alcance o direito à saúde. “No tramitar na Câmara como vontade popular, é
entanto, o tipo de cobertura praticado hoje tem necessário um número de 1,3 milhão de adesões.
colocado a mídia como um adversário do direito “Todos os países civilizados têm órgãos que res-
à saúde”, ponderou Rogério. tringem à manipulação da mídia”, disse, reforçando
Nas palavras da pesquisadora do Icict/Fiocruz que é necessário pôr um fim à lenga-lenga de que
Áurea Maria da Rocha Pitta, há uma matriz discur- o projeto pretende impor censura aos meios de
siva hegemônica em países latino-americanos que comunicação. “É exatamente o oposto. O que
coloca os modelos de saúde deslocados da reali- queremos é diversificar as fontes de informação”.
dade e define o que é saúde e o que é doença de A conversa, em tom informal, teve início com
forma muito limitada. “Para dar visibilidade a outras a exibição do vídeo Levante sua voz, produzido
questões e quebrar essa matriz, a democratização pelo Coletivo Intervozes, que faz um retrato da
da comunicação é fundamental”, defendeu. concentração dos meios de comunicação no Brasil. Nas manifestações de
junho, a regulamentação
O pano de fundo do debate foi o Projeto “Esse filme deveria ser exibido na Rede Globo”,
da mídia apareceu como
de Lei de Iniciativa Popular da Mídia Democrática brincou o mediador do debate, Umberto Trigueiros, bandeira de luta: não
(Radis 131), que propõe a regulamentação da diretor do Icict. há democracia sem
comunicação

foto: felipe cabral


5ª Conferência Nacional das Cidades

Reforma u
Conferência discute sistema para coordenar

Liseane Morosini das grandes, nas quais vivem 84% da população

“Q
brasileira, mas também dos pequenos municípios.
uem muda a cidade somos nós. Os participantes partiram da constatação de
Reforma urbana já!” foi o grito dos que as cidades brasileiras vêm sendo construídas
3 mil participantes da 5ª Conferência sem um ordenamento capaz de assegurar qualidade
Nacional das Cidades, realizada em de vida para os cidadãos e sustentabilidade para seu
Brasília, entre 21 e 24 de novembro. Delegados, crescimento. A reversão desse quadro, apontaram,
convidados e ouvintes indicaram que a reforma exige a coordenação das ações governamentais de
urbana é urgente para todos os que vivem nas forma a assumir a política urbana como estratégica
cidades, a fim de transformar o cenário real em ce- para o país, a universalização do acesso às políticas
nário desejável — com moradia digna, mobilidade, urbanas e a superação da cultura de fragmentação
saneamento e planejamento urbano. Divididos em da gestão — que separa habitação de saneamento
oito grupos de trabalho, eles debateram em ses- ambiental, por exemplo, gerando desperdício de re-
sões plenárias as políticas públicas que impactam cursos, ineficiência e reprodução das desigualdades.
o presente e o futuro das cidades. Não apenas A solução para pensar as cidades de forma

[20] Radis 137 • FEV/ 2014


rbana já!
ações de desenvolvimento nas cidades

ilustração: felipe plauska

integral, concordaram, é o Sistema Nacional de


Desenvolvimento Urbano (SNDU), ao qual deveria Construindo cidades
caber a coordenação das ações de diferentes esfe- Os debates da conferência giraram em torno de
ras de governo e o envolvimento dos cidadãos na estratégias para institucionalizar o SNDU. O sistema foi
sua fiscalização. A criação do SNDU foi aprovada tratado fundamentalmente sob os eixos da participa-
na 2ª Conferência das Cidades, em 2005, mas o ção e controle social; dos instrumentos e políticas de
sistema não foi instituído no âmbito federal. O integração intersetorial e territorial; do Fundo Nacional
Conselho Nacional das Cidades chegou a elaborar de Desenvolvimento Urbano (FNDU); e das políticas de
uma proposta de projeto de lei para a criação e o incentivo à concepção de instrumentos de promoção
funcionamento do SNDU, ainda não encaminhada da função social da propriedade. Para Miguel Lobato
ao Congresso Nacional. Alguns estados implemen- da Silva, coordenador do Movimento Nacional de Luta
taram conselhos das cidades, mas a maioria não pela Moradia (MNLM), o SNDU tem capacidade de
está funcionando efetivamente ou apresenta baixa abandonar o “discurso” e a “falácia”, partindo para
capacidade deliberativa. Nos municípios, o número a efetividade. “Mais do que construir habitação, é
de conselhos das cidades é pequeno. preciso construir cidades”, comentou.

Radis 137 • FEV / 2014 [21]


fotos: felipe plauska
Expedito Solaney: “A cidade deve ser para todos e não um Orlando Júnior: sistema de desenvolvimento urbano deve
grande terreno para a especulação imobiliária” considerar diversidade do país e especificidades dos municípios

Na avaliação de Miguel, os planos diretores


das cidades são muito bons, mas falta dinheiro Criticas à ‘oficialidade’
carimbado para pô-los em prática: “O cano do Na abertura da conferência, a presidenta Dilma
esgoto não brota da terra. Alguém tem que ir lá Rouseff anunciou a contratação de dois milhões
cavar. E para cavar custa dinheiro”. Daí a impor- de moradias e a construção de 1,4 milhão pelo
tância do Fundo Nacional de Desenvolvimento programa Minha Casa, Minha Vida. Até o fim deste
Urbano, que deve ser criado para oferecer suporte ano, ainda serão contratadas outras 750 mil casas
financeiro às ações da União, de estados e de e apartamentos. Dilma afirmou que a continuidade
municípios para atender aos objetivos da Política do programa está sendo planejada, deixando para
Nacional de Desenvolvimento Urbano, com anunciar futuramente o tamanho do desafio da ter-
rubricas específicas para as áreas de habitação, ceira fase do Minha Casa, Minha Vida. A presidenta
saneamento ambiental, mobilidade e programas ainda falou sobre o aumento do investimento do
urbanos estratégicos. Governo Federal em saneamento básico. Entre 2005
De acordo com o secretário nacional e 2006, o país investiu R$ 500 milhões no setor,
de Políticas Sociais da Central Única dos montante equivalente a 0,5% do que é aplicado
Trabalhadores, Expedito Solaney, o fundo não hoje. Dilma prometeu se empenhar para buscar
vai financiar a ação do governo, mas sustentar soluções para os conflitos fundiários urbanos. “Junto
o sistema: “Vai garantir que o município acesse com essa conferência vamos construir um formato
esses recursos para financiar projetos amplos de de lei para prevenção de conflitos fundiários, em
desenvolvimento urbano que estejam no contexto especial em áreas de patrimônio da União”.
de toda a cidade. Não é um financiamento pon- Apesar dos anúncios, o governo não foi
tual”. Ele reforçou que “a cidade deve ser para poupado de críticas. Mércia Alves, ativista da re-
todos e não um grande terreno para a especula- forma urbana e ligada à organização SOS Corpo,
ção imobiliária”. viu pouco comprometimento do poder público na
Já o coordenador da Frente Nacional condução do evento; para ela, até a presença da
dos Vereadores pela Reforma Urbana, Carlos presidenta fez parte do critério da “oficialidade”.
Comasseto, disse acreditar que os municípios Seu principal alvo foi o fato de o Ministério das
não vão conseguir resolver todas as demandas. Cidades não gerir recursos relacionados à política
Por isso, para ele, é preciso construir pactos em urbana: “Quem tem dinheiro é quem manda, quem
torno do desenvolvimento urbano. “Até porque decide. Hoje, a maior parte de recursos destinados
o passivo da urbanidade é grande”, opinou. à habitação vem do Minha casa, Minha Vida, que
Carlos defendeu total controle na aplicação dos é um programa da Casa Civil”.
recursos e ressaltou a importância da integração Secretário-executivo da conferência, Carlos
das políticas. “Não dá para ter uma política de Dias, por outro lado, viu na ampla mobilização o
transporte ou de saneamento na capital e outra sucesso do evento. “Essa foi a maior conferência
nas cidades do entorno”. já realizada”, ressaltou. Em entrevista à Radis, ele
O professor do Instituto de Pesquisa e afirmou que 240 mil pessoas estiveram envolvidas
Planejamento Regional (IPPUR) da Universidade anteriormente em conferências municipais realiza-
Federal do Rio de Janeiro, Orlando Júnior, pes- das em 2,8 mil municípios e que, pela primeira vez,
quisador do Observatório das Metrópoles, espera houve maior participação de municípios pequenos
que a partir do SNDU as políticas de intervenção (abaixo de 20 mil habitantes). “A conferência dese-
considerem a diversidade do país, entendendo as ja que as políticas públicas voltadas para a cidade
especificidades de cada município. “Os municípios convirjam para um eixo comum e que haja sinergia
terão muito a ganhar”, disse. entre elas”, disse. Outro ganho apontado por ele

[22] Radis 137 • FEV/ 2014


Mércia Alves: Ministério das Cidades deveria gerir recursos Carlos Dias: políticas públicas voltadas às cidades devem
relacionados à política urbana, hoje concentrados na Casa Civil convergir para eixo comum

foi a instalação do grupo de trabalho interminis- e os serviços urbanos: moradia, água, saneamento
terial que tratará da elaboração da proposta de ambiental e mobilidade não podem ser mercadorias”.
lei para a criação do SNDU, sob coordenação do Assim, na avaliação de Orlando, a conferência
Ministério das Cidades. expressou mais as posições dos movimentos popu-
Mesmo considerando que a conferência repre- lares do que uma negociação da qual participaram
sentou um avanço na discussão do SNDU, o professor diversos atores sociais. E isso leva a um ciclo vicioso
Orlando Júnior observou a “falta de conflitos no no qual os delegados “cumprem tabela”, já que as
evento, onde o antagônico não se expôs”. Ele se decisões do evento são recomendações — ou seja,
referia à ausência de setores mais conservadores, de podem ou não ser implementadas. “Conselhos e
líderes empresariais e dos governos — do Governo conferências foram uma briga dos movimentos
Federal, em especial. “Sem contradições, não há sociais, para exercitarmos a co-gestão participativa,
Alagados, na periferia
avanços”, opinou. Para ele, esse cenário diminui a só que nesses espaços a gente vive um momento
de Salvador, exemplo de
capacidade decisória da conferência, principalmente de estrangulamento pela não obrigatoriedade legal área degradada à espera
em questões cruciais, como a propriedade da terra. de se cumprir o que decidimos. Mas ainda prefiro de moradia digna,
“É um nó. Temos que desmercantilizar a propriedade assim a voltar ao que era antes”. mobilidade, saneamento
e planejamento urbano
foto: liseane morosini

Radis 137 • FEV / 2014 [23]


3° Fórum Global de Recursos Humanos em Saúde

Agentes comunitários
de Ananindeua (PA) em
ação: centralidade dos
trabalhadores na efetivação
do direito à saúde
foto: radilson gomes
A força Evento reafirma papel central
dos profissionais de saúde
para alcançar a cobertura

de trabalho
universal e traz à tona
o peso dos setores
público e privado

na garantia de
nesse processo

saúde para todos


Eliane Bardanachvili cobertura universal, torna-se crítica a questão dos
trabalhadores da saúde”, disse Marie-Paule Kieny,

F
diretora assistente de sistemas e Inovação em Saúde
altam no mundo, hoje, 7,2 milhões de da OMS. “Há quem ache cobertura universal um
profissionais de saúde, e esse número pode objetivo ambicioso”.
chegar a 12 milhões, em 2035. Os dados são De acordo com a OMS, são necessários, no
da Organização Mundial da Saúde (OMS) mínimo, 22,8 profissionais de saúde para cada 10
e foram apresentados no 3° Fórum Global de mil habitantes e 34,5 para cada 10 mil para univer-
Recursos Humanos em Saúde, realizado de 10 a 13 salizar a cobertura. O relatório aponta 83 países com
de novembro no Recife. Mais de 2 mil participantes índice inferior ao mínimo, a maioria concentrada na
de 93 estados-membros da OMS (o maior evento já África Subsaariana (a Etiópia, por exemplo, tem 0,3
realizado na área de recursos humanos em saúde, médicos por 10 mil habitantes). No Brasil a relação
de acordo com os organizadores) reuniram-se em é de 31,4 profissionais de saúde para cada 10 mil
torno do tema geral, Recursos Humanos para a habitantes, mais do que o mínimo recomendado
Saúde: base para a cobertura universal e agenda pela OMS, mas menos do que o necessário para
de desenvolvimento pós-2015, que, ao mesmo atingir a cobertura universal. Cuba conta com
tempo, apontou para a centralidade da força de 134,6 profissionais para cada 10 mil habitantes e
trabalho na garantia de saúde de qualidade para to- Venezuela, com 67,4.
dos, e indicou a cobertura universal como o grande
objetivo a ser alcançado pelos países. O conceito
Público e privado
de cobertura universal, defendido pela OMS, é, no
entanto, alvo de críticas (Radis 134 e 136), uma A discussão sobre a força de trabalho em
vez que, na busca de cobertura para todos, e não saúde com vistas à cobertura universal trouxe à
de sistemas universais, abre-se espaço para planos tona os pesos dos setores público e privado nos
de saúde privados e para uma fragmentação dos diferentes sistemas de saúde em todo o mundo. “A
sistemas de saúde. noção de cobertura universal varia muito entre os
Os debates do fórum foram norteados pelo países, assim como a noção de direito à saúde como
relatório Uma verdade universal: não há saúde responsabilidade do Estado é estranha para alguns
sem força de trabalho (A universal truth: no health deles”, observou Mariângela Simão, diretora para
without a workforce), assinado pelos organizadores questões de gênero, direitos e mobilização comu-
do evento, a OMS e a Aliança Global para a Força nitária do Programa Conjunto das Nações Unidas
de Trabalho em Saúde (GHWA, da sigla em inglês), sobre HIV/aids (Unaids), referindo-se, em especial,
que reúne governos, representantes da sociedade aos países africanos, onde 40% do atendimento
civil, agências internacionais, instituições finan- voltado ao HIV/aids se dá por organizações católicas
ceiras, pesquisadores e associações profissionais. ligadas à Igreja. “A responsabilização do governo
O relatório apresentou o cenário da saúde de 36 pela saúde de seus habitantes é algo novo no con-
países de todos os pontos do planeta, para nortear tinente africano. Na América Latina e Europa, essa
um debate sobre como manter, sustentar e acelerar noção é mais clara”, disse. “De qualquer maneira, o
os progressos rumo à cobertura universal, conforme fato de os governos trazerem para a agenda a ideia
está indicado na apresentação. “Este fórum é um de que todos têm de ter acesso a uma saúde de
dos eventos mais significativos do ponto de vista qualidade é muito inovador e positivo”, considerou.
político. Agora que os líderes do mundo abraçam a “Quando o assunto é saúde, os governos de

Radis 137 • FEV / 2014 [25]


fotos: carolina niemeyer
Marie-Paule (E): cobertura
universal ainda é objetivo
ambicioso; Mariângela: países países de baixa renda, bem como as pessoas que vão se engajar nas mudanças pelo bem de todos”,
estranham direito à saúde neles vivem estão dispostos a pagar o que for pre- considerou.
como responsabilidade do ciso. E o setor privado quer capturar isso”, apontou Crise financeira global, acelerada transição
Estado; Odile: organismos Odile Frank, da Public Services International, fede- demográfica e epidemiológica (incluindo-se aí o
internacionais abrem ração de sindicatos que representa 20 milhões de envelhecimento da população, a migração e o
porta ao setor privado
trabalhadores e leva serviços públicos a 150 países. crescimento das doenças crônicas não transmissí-
“Organismos internacionais como Banco Mundial veis), bem como os avanços tecnológicos e ainda
e Fundo Monetário Internacional buscam abrir a o crescimento do papel do setor privado na saúde
porta para a penetração do setor privado na saúde”. são, segundo o relatório da OMS/GHWA, algumas
Para o representante da Organização Pan- características do cenário no qual o trabalhador
Americana da Saúde (Opas/OMS) no Brasil, Joaquín de saúde torna-se imprescindível. “O investimento
Molina, a ideia de sistemas universais em contrapo- em recursos humanos em saúde continua baixo;
sição à de cobertura universal não está em debate. existem discrepâncias entre a oferta e a demanda
“Não há antagonismo. O desafio é como financiar de trabalhadores; o planejamento em recursos hu-
a saúde em sistemas fragmentados”, observou. manos em saúde é frequentemente enfraquecido
“O Brasil deu passo de gigante com uma estrutura por intervenções não coordenadas em questões
única de prestação de serviço. Mas ainda não isoladas, focando numa situação ou doenças espe-
conseguiu ser totalmente único. Há essa dicotomia cíficas e não na prevenção”, disse Carissa.
nos sistemas únicos: o que se tem e o que se aspira
ter”, considerou.
Experiência brasileira
Para Molina, a proposta de cobertura univer-
sal quer mexer com uma “realidade que choca”, na Também na mesa de abertura, o ministro da
qual países não têm sistemas públicos, nem saúde Saúde, Alexandre Padilha, apresentou a experiência
gratuita. “Como fazer com esses países para não brasileira com o Sistema Único de Saúde e ações do
aprofundar diferenças? Isso é o que a cobertura governo, com ênfase no programa Mais Médicos
universal quer trabalhar”, afirmou. (Radis 134). “Nunca ninguém me perguntou se eu
“A participação do setor privado pode se dar achava estranho um país exportar bombas, armas,
por tempo limitado, sem fazer os países ficarem produtos que afetam o meio ambiente. Mas muitos
vulneráveis a eles”, analisou o pesquisador Ronald fazem isso em relação ao fato de Cuba exportar
Labonté, do Instituto de Saúde da População, médicos que ajudam o Brasil a construir seu siste-
no Canadá, e professor do Departamento de ma de saúde”, observou. O ministro lembrou que
Epidemiologia e Medicina Comunitária da cinco estados brasileiros têm menos de um médico
Universidade de Ottawa. “Sou cético em relação a por mil habitantes e que, nos últimos dez anos, o
contratos de longo prazo com companhias priva- governo gerou 147 mil postos de primeiro emprego
das”, disse, em entrevista à Radis, defendendo que para médicos no país, mas formaram-se apenas
não é preciso abrir espaço na estrutura dos países 93 mil profissionais. De acordo com o ministro, o
para que o privado se instale. “Investidores querem Brasil precisa de mais 13 mil médicos e 3,6 mil já
fazer investimentos, sem correr riscos”. estão em atividade para suprir essa lacuna, via Mais
Médicos. “A meta deverá ser atingida em março
deste ano”, disse.
Vanguarda
O ministro ressaltou também a importância da
Se as edições anteriores do fórum (em abordagem multiprofissional na saúde e as conquis-
Kampala, Uganda, em 2008, e Bangkok, Tailândia, tas alcançadas pelo país, como a redução dos índices
em 2011) tiveram como foco a prestação do cui- de mortalidade infantil (“mais do que os países de
dado, esta terceira buscou tratar das condições renda média elevada”) e melhoria da saúde materna,
profissionais e de vida daqueles que prestam esse redução de 50% dos índices de malária e o alcance,
cuidado — o trabalhador de saúde, considerado em 2013, dois anos antes do prazo, do Objetivo do
como “vanguarda da cobertura universal”, como Milênio referente aos índices de tuberculose. “Para
definiu Carissa Etienne, diretora da Opas, na isso, foi decisiva a abordagem multiprofissional.
mesa de abertura. “Estamos aqui hoje para ver Sabíamos que só com médicos não mudaríamos o
os profissionais de saúde para além do aspecto cenário. Lideranças comunitárias, caciques, padres
utilitário de sua função, como seres humanos que fizeram diagnóstico e tratamento inicial”.

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Molina (E): desafio é
financiar a Saúde em
vai envolver também o Ministério das Finanças sistemas fragmentados;
Embates
do país”, disse, acrescentando que a Tanzânia Padilha: conquistas do país
O evento foi estruturado em quatro mesas estabeleceu parcerias setoriais com países como têm relação com abordagem
redondas de alto nível que abriam os trabalhos de Tailândia, Cuba e Brasil. “Estamos ouvindo todas multiprofissional; Carissa:
investimento em recursos
manhã e à tarde, nas quais gestores de governos e as experiências para melhorar nosso plano de tra-
humanos continua baixo
de organizações debateram os desafios da saúde e balho. Estamos prontos para absorver experiências
de sua força de trabalho, e 20 sessões de debates e customizá-las”.
— quatro organizadas pelo Banco Mundial, três O ministro de Finanças, Planejamento e
pelo governo brasileiro, sete pela OMS (sozinha ou Desenvolvimento Econômico de Uganda, Fred
em parcerias) e, as demais, por outros organismos Jachan Omach, relatou que, no país, estão reserva-
e instituições —, em que foi possível conhecer dos hoje 10% do orçamento para garantir seguros
características dos sistemas de saúde dos diversos de saúde à população, buscando-se atingir os
países, bem como a forma com que lidam com os 15%. “Temos plano de cinco anos para garantir
setores público e privado. que a população de Uganda seja saudável”, disse,
“Os problemas de mão de obra em saúde explicando que levantamento realizado no país em
não se aplicam a Cuba, que tem a maior reserva de 2010 apontou que somente 56% dos trabalhadores
trabalhadores de saúde do mundo”, disse o ministro de saúde estavam em suas funções. “Fizemos atua-
da Saúde cubano, Roberto Morales, apresentando lização do sistema, localizando esses trabalhadores
dados sobre o país: não há instalações particulares e buscando trazê-los de volta”, contou.
em Cuba, a principal causa de morte são as doenças
crônicas não transmissíveis, mortes por doenças
‘Commodity’
transmissíveis atingem 1% da população, o índice
de mortalidade infantil é de 0,4%, há um médico “Os países que tiveram sucesso foram os
para cada 137 habitantes. Ele se referiu também que se deram conta de que os trabalhadores em
às Brigadas Médicas Cubanas, que atuam em um mercado global são uma commodity rara”,
países com carência de profissionais, como Haiti e avaliou a diretora de Desenvolvimento Humano
Venezuela. “A formação de recursos humanos e o do Banco de Desenvolvimento Africano, Agnes
setor de saúde pública são prioridade no país, há Soucat, para quem a lógica do mercado, a lei
54 anos”, ressaltou Morales. “Mas não formamos da oferta e da procura, deve orientar as ações
para Cuba apenas, formamos para o mundo. É de saúde nos países. “Há um mercado global”,
nosso compromisso compartilhar o que temos”. considerou. “Temos que desenvolver orientação
O ministro explicou, ainda, que em Cuba os para produzir pessoal de saúde na área rural. Se
cursos superiores de formação médica, as univer- Cuba exporta, é porque produz para o mercado
sidades médicas, estão vinculados ao ministério mundial, quando os outros países não o fizeram”,
da Saúde, não ao da Educação — e são todos apontou. “As universidades privadas do Congo
públicos. “Assim, temos oportunidade de planejar formam mão de obra para exportar”.
os recursos humanos, prepará-los de acordo com Para Agnes, um sistema de saúde eficiente
a necessidade do país”. “não é contraditório com a indústria capitalista” e
Hussein Mwinyi, ministro da Saúde e Bem pode ser desenvolvido com arranjo público-privado.
Estar Social da Tanzânia, explicou como vem levan- “Há sistemas financiados pelo setor privado e histó-
do à frente as ações de saúde em seu país. Em 2007, rias de sucesso pelo mundo”, disse, à Radis.
o ministério, em parceria com entidades privadas, “A comunidade mundial precisa mudar sua
fez a revisão de políticas de saúde e introduziu um abordagem tradicional em relação aos profissionais
programa de cuidados primários, prevendo um de saúde. É fundamental levar em conta de forma
dispensário em cada vilarejo para assistência médica global o mercado de trabalho para compreender as
e fornecimento de medicamentos, e atendimento forças de mercado que influenciam tanto a oferta
distrital em hospitais, e, ainda, intensificando quanto a demanda de força de trabalho em saúde.
compromissos internacionais, como os Objetivos Isso é particularmente importante para a África,
de Desenvolvimento do Milênio. “Isso exigiu plano com alta carga da doenças e baixa densidade de
estratégico de recursos humanos. São necessários profissionais de saúde”, defendeu Agnes.
dez anos para se chegar às metas estabelecidas”, “A saúde é bem público e o Estado tem que
calculou. “Aumentar o número de trabalhadores garantir”, afirmou o secretário de Regulação e

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fotos: carolina niemeyer
Roberto (E): “Formamos
médicos não só para Cuba,
mas para o mundo”; Agnes: Políticas de Saúde da Argentina, Gabriel Yedlin, na saúde. Para isso, atua em parceria com empresas.
“trabalhadores em mercado terceira mesa de alto nível, Necessidades sociais e o “Vamos poder fornecer ao mercado mais 15 mil pro-
global são ‘commodity’ rara”; papel regulatório do Estado, que deixou expostos fissionais de saúde”, anunciou. “Atingir a meta dos
Kadiri: não se trata de escolha os vários olhares sobre o Estado, ora como facili- 7,2 milhões de profissionais de saúde necessários
entre público e privado, mas
tador, como mostraram França e Itália, ora como vai requerer forte parceria entre governo, terceiro
de garantir acesso
garantidor de direitos, como considerou, além da setor e setor privado”, considerou.
Argentina, o Brasil. Afirmando que em seu país há Timothy Evans, diretor de Saúde, Nutrição
oferta de excelência de serviços de saúde, como e População do Banco Mundial, considerou um
de educação, Gabriel defendeu acesso universal desafio chegar “à melhor forma de se obter essa
à saúde, na perspectiva da “saúde como direito e sinergia” e lembrou que o Banco Mundial vem en-
não como caridade”. Para ele, ainda, o Estado é gajando os setores privado e público para eliminar a
também o principal ator na formação em saúde. miséria e incentivar a prosperidade até 2030. “Sem
“O Estado tem que regular os setores e garantir valores como base, nada cresce. Há formas de gerir
escolas públicas e gratuitas e com acessibilidade, essas interfaces”, disse.
para viabilizar a formação em recursos humanos, e O diretor de Recursos Humanos do Ministério
trabalhando nos determinantes sociais da saúde”. da Saúde da Nigéria, Shakuri Ayinla Kadiri, conside-
Para Jean-Marc Braichet, chefe de gabinete rou que não se trata de escolha admitir ou não o
do Ministério de Questões Sociais e Saúde da caminho das parcerias público-privadas, mas de se
França, o Estado é o principal ator da regulação, garantir acesso em um país que sofre com deman-
esta entendida, no entanto, como “uma busca de das de saúde. “Podemos trazer o setor privado para
harmonia diante de uma multidão de atores”. Para o setor público”, disse ele, relatando que a Nigéria
Jean-Marc, o Estado seria “o chefe da orquestra”, vem recebendo apoio privado para organizar um
em um cenário no qual público e privado devem sistema de informações sobre a força de trabalho
conversar, trabalhar em equipe. em saúde. “Precisamos conhecer o perfil de nossa
“Prefere-se o público porque o Estado, força de trabalho, onde estão, quem são os traba-
além de regulador, também é provedor de saú- lhadores, para saber o que precisamos fazer. Se não
de”, analisou Giovanni Leonardi, diretor geral de temos informação, não temos força de trabalho”.
Recursos Humanos do Serviço Nacional de Saúde
do Ministério da Saúde da Itália. “Temos que ficar
Estado encoberto
atentos para não endurecer demais com o setor
privado. Às vezes, há muita regulação”, opinou. Acompanhando os debates, a presidenta do
Apresentando dados sobre o Brasil, o secretá- CNS, Maria do Socorro, observou que já esperava do
rio de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde do evento “intervenções e abordagens na perspectiva
Ministério da Saúde, Mozart Sales, alertou que “as neoliberal, do direito individual”. Para ela, “o Estado
parcerias são necessárias, mas não se podem des- fica encoberto, omisso em sua responsabilidade de
conhecer os enfrentamentos que se tem que fazer”. ordenar o sistema de saúde”, como analisou, em
Mozart citou a Constituição brasileira, que ressalta entrevista à Radis. “Não existe sistema, não existe
o papel regulador do Estado para assegurar direitos. Estado. Existe demanda e arranjo intencional para
“A compreensão de como vamos atuar para assegu- superar essas dificuldades”.
rar acesso à saúde está na construção de políticas Para Maria do Socorro, o fórum não levou em
afirmativas que observem processos dinâmicos de conta a participação do controle social, embora te-
trabalho. O que não é admissível é o Estado refém nha ficado explícito que, entre os participantes nas
de interesses corporativos”, afirmou, lembrando plateias, predominavam os trabalhadores de saúde.
os mecanismos de controle social do Brasil, que “Do CNS, viemos em 20 pessoas, mas somos quase
conta com um Conselho Nacional de Saúde (CNS) 500 participantes, de Abrasco, Cebes, Rede Unida.
paritário entre usuários e trabalhadores. O formato, no entanto, não abre espaço para essas
participações”, observou, apontando, ainda, que
os grandes centros urbanos são o referencial para
Sinergia
se pensar em políticas públicas. “É a negação do
Petyer Ngatia, diretor da African Medical e potencial que o meio rural tem. O rural acaba sendo
Research Foundation, do Quênia, relatou que o país problema e não uma questão de ausência do Estado”.
vem lutando para ampliar sua força de trabalho em Para o diretor da OMS Ruediger Krech, a Saúde

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Rüdiger (E): o que importa
São boas políticas, dentro do
estará no caminho certo quando os países reduzirem evento fosse um fórum de recursos humanos em que podemos dispor; Gwen:
os pagamentos out of pocket, realizados diretamen- saúde não havia na mesa um representante do meio dia a dia do trabalhador
te pelo usuário aos prestadores de serviços de saúde. sindical. “Ouvi aqui que os recursos humanos não de saúde oferece perigos;
“É preciso garantir acessibilidade e equidade e que querem se envolver no debate. Mas os sindicatos Labonté: falta de referência
à tensão público-privado no
cada cidadão no mundo tenha acesso a serviços de querem trabalhar em estratégias para reduzir a ca-
documento final do evento
saúde independentemente de poder pagar. Falar rência de trabalhadores. Temos muito a oferecer”,
em cobertura universal não é uma ofensa”, disse à disse depois, em entrevista à Radis. “Tudo o que se
Radis. “Muitos países africanos têm serviços médi- falou aqui tem a ver com a atuação dos sindicatos:
cos privados. O que importa são boas políticas, de empoderar os trabalhadores de saúde era o título
acordo com o que podemos dispor”, disse, vendo de uma mesa e nós não estávamos lá!”.
“vantagens na flexibilidade”. Ele citou o Brasil e Para Odile, a efetividade do setor privado na
também seu país, a Alemanha, para lembrar que há saúde não está provada. “Não há tentativas nos
falta de médicos em determinadas localidades mais países de não permitir que o setor privado esteja
distantes. “Há urgência. Não podemos esperar”. na saúde. Se o sistema de saúde não está funcio-
nando bem, o caminho não é abrir espaço para
o privado, mas consertar o público, desenhar um
Nem mínimo, nem teto
sistema de saúde melhor e não buscar saúde fora
No painel de alto nível sobre responsabilidades do sistema”, observou. “Muitos governos estão aqui
e direitos da força de trabalho com vistas à cobertura para negociar parcerias público-privadas. O campo
universal, a ministra da Saúde de El Salvador, Maria dos recursos humanos em saúde é muito imaturo. É
Isabel Rodriguez, de 91 anos, empolgou a plateia, preciso recapturar o setor público”, disse.
ao defender enfaticamente a saúde como direito Ela relatou, ainda, que houve grande dificul-
e relatar os esforços feitos na última reunião do dade para inserir a palavra union (sindicato, em
conselho diretor da Opas e da OMS (realizada em inglês) na declaração final, o que acabou sendo
Washington, em setembro de 2013) para retirar da conseguido (o termo aparece já no primeiro item do
Declaração Política de Recife, documento final do texto, quando se indicam os perfis dos participantes
evento, as expressões mínimo, teto e básico, em do fórum). “Foram 18 meses de luta”.
referência ao perfil de saúde que se deseja alcançar.
“É preciso garantir o que deve ser garantido. Não tem
Maria Isabel e a defesa da
mínimo e não tem teto”, afirmou, alertando para uma saúde integral para todos:
má interpretação do conceito de atenção primária, “Não tem ‘mínimo’ e não
muitas vezes confundida com atenção de primeiro tem ‘teto’; é preciso garantir
nível. “Quando falamos em atenção para todos, o que tem que ser garantido”
vemos que o para todos se vulgarizou. É preciso
frisar que é saúde para todos e integral”, ressaltou.
Da plateia, a enfermeira Ivone Cabral per-
guntou como deve se dar o processo de formação
de novos profissionais com espírito de advocacy e
de trabalhadores ativistas. Maria Isabel respondeu
indagando sobre o papel da universidade na busca
de novos modelos de formação. “Às vezes, somos
injustos. Pedimos a um profissional  que se formou
dentro de um hospital, sem contato com a comu-
nidade, sem visão de contexto, que faça diferente.
É preciso fazer com que a educação superior seja
aliada política nesse trabalho e não uma mediadora
de conflitos com o empregador”.

Recapturar o público
Também na plateia, Odile Frank, da Public
Services International, lembrou que embora o

Radis 137 • FEV / 2014 [29]


em saúde como uma das questões deixadas de
Dia a dia perigoso
lado nas agendas de desenvolvimento interna-
Atuante na proteção dos trabalhadores de cionais e ressalta a necessidade de mais recursos
saúde, na sociedade científica The International em nível global voltados à força de trabalho em
Commission on Occupational Health (ICOH), socie- saúde, bem como melhor uso dos recursos exis-
dade científica reunindo 2 mil profissionais de cerca tentes, defendendo melhoria da governança e da
de 93 países, Gwen Orr Brachman observou que pro- distribuição dos profissionais. O texto afirma na
porcionar boa saúde para todos não é uma questão abertura que o gozo do mais “alto padrão possível”
de medicamentos, mas de treinamento e educação de saúde é um dos direitos fundamentais do ser
dos profissionais, ampliando-se o número e o nível humano, “sem distinção de raça, religião, convic-
dos trabalhadores — aí incluídos laboratoristas, ção política ou condição econômica ou social” e
profissionais de lavanderia, nutricionistas. “Quando propõe ação coordenada e solidariedade em nível
vamos a um hospital, pensamos nos pacientes, sem internacional, regional, nacional e local.
levar em conta os trabalhadores. Mas aquele é um “É um bom resumo do que já sabemos e da-
local de trabalho. O dia a dia do trabalhador de saúde quilo com que os países se comprometeram. Isso é
é perigoso, com sangue infectado, pacientes com importante, mas ainda sentimos falta do reconheci-
problemas respiratórios, radiação, violência. E eles mento de que fatores políticos e econômicos criam
não estão sendo cuidados e também não foram bem barreiras fiscais aos países, especialmente aqueles
tratados aqui no evento”, analisou. “Se as pessoas de baixa e média renda, para que façam frente às
têm medo de morrer, o que dizer dos profissionais demandas de profissionais de saúde”, analisou o
de saúde? Não se pode tomar conta das pessoas sem pesquisador Ronald Labonté. “Não há referência
tomar conta de si”, frisou. “Vê-se o trabalhador de à grande tensão entre público e privado, ao pa-
saúde como ferramenta. Os próprios trabalhadores pel da privatização da saúde na forma distorcida
não se reconhecem como pessoas que necessitam com que se distribuem os trabalhadores, ou no
de cuidados, pensam que nunca ficarão doentes”. fortalecimento do mercado global que retira os
trabalhadores dos países onde eles são mais ne-
cessários, levando-os a locais onde sua presença é
Declaração
menos urgente”, apontou. Para ele, “é bem-vindo
Ao final do evento, foi divulgada a Declaração o clamor da declaração por solidariedade no finan-
Política de Recife, que será discutida e referendada ciamento do desenvolvimento dos trabalhadores
Enfermeira em Bangladesh
pelos países na 67ª Assembleia Mundial da Saúde, de saúde, mas é tempo, certamente, de maiores
atende recém-nascido e sua
mãe, na foto vencedora do
em Genebra, Suíça, em maio. “É a declaração do compromissos para reduzir as desigualdades em
concurso ‘Um dia na vida de nosso engajamento”, definiu Marie-Paule Kieny, da renda, riqueza e recursos, que enfraquecem os sis-
um trabalhador de saúde’, OMS. O texto aponta a área de recursos humanos temas de saúde e sua capacidade de resposta”.
promovido pelo Fórum Global

foto: Mahfuzul Hasan Rana


dívida pública

A caixa preta da

dívida
Para investigar natureza do endividamento
público brasileiro, movimento da sociedade civil
cria auditoria cidadã

Ana Cláudia Peres mil Unidades de Pronto Atendimento (UPA) ou

E
802 mil escolas (com seis salas de aula cada) ou
ra uma vez o sétimo país mais rico do 4 mil hospitais públicos ou ainda 21 milhões de
mundo, que ocupava a nada honrosa casas populares.
85ª posição no ranking do Índice de Os números de 2013 não são muito diferen-
Desenvolvimento Humano (IDH), medido tes. No ano passado, a dívida pública consumiu
anualmente pela Organização das Nações Unidas cerca de R$ 718 bilhões, o que corresponde a R$
com base em indicadores de renda, saúde e edu- 2 bilhões por dia. “Não existe explicação técnica
cação. Ambos os dados referem-se ao Brasil. A plausível para o Brasil emitir continuamente
explicação para o paradoxo tem raízes na História. novas dívidas, apenas para pagar amortização
Mas, para a coordenadora nacional da Auditoria e juros de dívida, sem que ninguém saiba qual a
Cidadã da Dívida, a auditora fiscal Maria Lúcia contrapartida real para essas dívidas”, diz Maria
Fattorelli, a grande vilã das mazelas sociais do Lúcia, de forma categórica, ressaltando que é
país hoje responde pelo nome de dívida pública. preciso descobrir como os valores da dívida ex-
A dívida consome cerca de metade dos terna saltaram de US$ 5 bilhões, em 1970, para
gastos federais a cada ano. Em 2012, absor- mais de US$ 441 bilhões, em números atuais. “Já
veu 43,98% dos recursos federais enquanto a dívida interna, que era mínima naquela época,
a Saúde recebeu apenas 4,17%; a Educação, praticamente desprezível, hoje chega a R$ 2,8
3,34%; Transportes, 0,7%; Segurança, 0,39%; trilhões”, completa. “Ou seja, a dívida brasileira é
e Habitação, somente 0,01%. De acordo com uma dívida financeira, feita em função dela mes-
levantamento feito pela Auditoria Cidadã da ma, que se autorreproduz e se autoalimenta”.
Dívida, movimento que há 14 anos vem mobili- A fim de investigar a verdadeira natureza da
zando a sociedade para as questões relacionadas dívida pública brasileira, é que surgiu o movimento
ao endividamento público brasileiro, com os denominado Auditoria Cidadã da Dívida, que hoje
R$ 753 bilhões utilizados em 2012 para o pa- conta com nove núcleos espalhados pelo país. “A
gamento da dívida, seria possível construir 974 nossa Constituição [em seu artigo 26 do Ato das
mil Unidades Básicas de Saúde (UBSs) ou 188 Disposições Transitórias (ADCT)] prevê a realização

Radis 137 • FEV / 2014 [31]


de uma auditoria, mas o máximo que se fez a esse tudo. Só trabalhamos com dados e documentos
SAIBA MAIS
respeito foi criar uma comissão formada em 1989, oficiais, e procuramos escrever numa linguagem
• Auditoria Cidadã da Dívida que chegou a emitir dois relatórios, e depois sofreu acessível a todos”. Todo o material produzido, bem
http://www.auditoriacidada.
um boicote e nada mais avançou”, relata Maria Lúcia. como relatórios e outros estudos, são disponibiliza-
org.br/
dos na página oficial da Auditoria Cidadã da Dívida,
Publicações na internet (http://www.auditoriacidada.org.br/),
Plebiscito diz ‘não’
• Caderno de Estudos – A que apresenta ainda um “dividômetro” atualizado
Dívida Pública em Deba- No começo dos anos 2000, um plebiscito pôs frequentemente com todo o estoque das dívidas
te – Auditoria Cidadã da na berlinda a dívida pública brasileira ao lançar para externa e interna.
Dívida. 80 páginas. Editora a população a seguinte pergunta: “Você concorda “Essa dívida pública é ilegal, é imoral e só
Inove, 2012
em continuar pagando a dívida sem realizar a audi- engorda” e “Vamos passar a limpo essa conta” são
• Alternativas de enfrenta- toria prevista na Constituição?” Realizado em 3.444 alguns dos motes das campanhas. Vale também
mento à crise, de Maria cidades do país e com 6 milhões de votos com- marchinha de carnaval, que para 2014 vem com o
Lúcia Fattorelli. Editora Ino-
putados, a resposta foi um estrondoso “não”. De refrão: Audita, audita, audita essa dívida maldi-
ve, 2013
posse do resultado, seguiram-se um sem-número ta... Para Paulo Lindesay, o que importa é aproximar
• Confissões de um assas- o debate do cidadão comum, desmistificando todas
de manifestações, atos simbólicos e reuniões com
sino econômico, de John
Perkins. Editora Cultrix,
os representantes do Executivo. as questões mais áridas que rondam o assunto. “O
2004 Mas, sem um retorno efetivo do poder pú- problema não é a dívida. Uma dívida, muitas vezes,
blico, os cerca de 80 representantes de entidades é necessária. Mas toda dívida tem que ter uma
envolvidas no processo decidiram criar um movi- contrapartida. E essa que está aí só interessa ao
mento que propõe realizar, de maneira cidadã, uma sistema financeiro internacional”, aponta.
auditoria da dívida pública brasileira, com o objetivo
de investigar a natureza da dívida, os montantes
CPI da dívida
recebidos e pagos, a destinação dos recursos e
os beneficiários dos pagamentos de juros, amor- Uma das conquistas da Auditoria Cidadã da
tizações, comissões e demais gastos. Para tanto, Dívida, pelo menos do ponto de vista simbólico, foi
desde 2001 vêm democratizando informações e garantir a realização de uma Comissão Parlamentar
chamando a atenção da sociedade para a realização de Inquérito, entre 2009 e 2010, que ficou conhe-
da auditoria. “A demanda por uma auditoria existe cida como a CPI da Dívida Externa. Funcionando
exatamente porque a gente quer saber que dívida é de forma precária, com uma equipe de trabalho
essa”, resume Paulo Lindesay, servidor do Instituto de apenas cinco membros — Maria Lúcia era um
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e um deles, ao lado de um auditor da Caixa Econômica
dos fundadores do Núcleo da Auditoria Cidadã da Federal, dois agentes administrativos do Ministério
Dívida no Rio de Janeiro. Público e uma funcionária da Fundação Nacional
“A alma do nosso trabalho são os estudos”, de Saúde (Funasa) —, a equipe virou pelo avesso
Maria Lúcia: “A dívida é
afirmou Maria Lúcia, às vésperas de viajar para tudo o que lhe apareceu pela frente.
financeira, feita em
função dela mesma, a inauguração de mais um Núcleo da Auditoria Foi assim que conseguiu ter acesso a docu-
se autorreproduz Cidadã da Dívida, desta vez em Salvador, Bahia. mentos, contratos e acordos da época da ditadura
e se autoalimenta” “Antes de publicar alguma coisa, a gente checa militar e que apontam para dívidas do setor privado
assumidas como dívidas públicas e outros escân-
dalos das décadas seguintes. A leitura de mais de
foto: auditoria cidadã da dívida

40 mil páginas de documentos acabou resultando


em uma análise técnica elaborada pela equipe que
subsidiou os dois relatórios finais da CPI: o relatório
oficial, do deputado Pedro Novais (PMDB-MA), e
o relatório alternativo produzido pelo deputado
Ivan Valente (PSOL-SP), ambos encaminhados ao
Ministério Público, contendo denúncias. “Apesar
dos entraves e do boicote que sofremos, acho
que a CPI foi um avanço”, avalia Maria Lúcia. “O
resultado não pode ser medido só nos números da
dívida que a gente consegue anular. Esse resultado
de conscientização é difícil de medir mas está acon-
tecendo. E é o que eu acredito que vai possibilitar
uma efetiva mudança nesse sistema”.

R$ 1 trilhão para 2014


Maria Lúcia Fattorelli refere-se ao sistema da
dívida, como denomina a Auditoria Cidadã, um
esquema que sugere que a população paga a conta
da dívida pública por meio de impostos, mas cujo
grande beneficiado é o sistema financeiro. Para
explicá-lo, ela lança mão da previsão orçamentá-
ria para 2014, enviada pelo Governo Federal ao
Congresso Nacional, que estima R$ 1,002 trilhão
para o pagamento de juros e amortizações da

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dívida, sacrificando todas as demais rubricas, repe- sociais no pequeno país da América do Sul superam
tindo o que aconteceu nos últimos anos. em quase três vezes os gastos com a dívida pública.
“O sistema da dívida age de duas formas”, Maria Lúcia, que foi nomeada pelo Governo
demonstra Maria Lúcia. “Primeiro, o dinheiro gasto do Equador para integrar a Comissão daquele país,
em juros poderia ser usado para financiar os serviços está convencida de que, no caso de uma auditoria
públicos, mas em vez disso o governo retira os recur- no Brasil, o resultado seria semelhante. “Temos
sos dos investimentos sociais básicos como saúde, documentos suficientes para comprovar que
educação, transporte, segurança, assistência que existem fraudes e ilegalidades no caso da dívida
garantiriam a dignidade de vida e a nossa própria brasileira, como a emissão de dívida para pagar
emancipação”, diz. Por outro lado, segundo Maria juros”, reforça. Isso explicaria, segundo a Auditoria
Lúcia, a falta de recursos vem sendo usada como Cidadã, a diferença entre os números trabalhados
argumento para justificar a privatização de portos, ae- pelo movimento e os apresentados pelo governo.
roportos, estradas, ferrovias, energia, comunicações De acordo com ela, quando o governo calcula o
e até mesmo o petróleo. “Estamos vendendo nosso pagamento de juros como parte do Orçamento,
patrimônio público e entregando áreas estratégicas não considera os juros que estão “embutidos” no
que representam a estrutura do Estado, comprome- refinanciamento da dívida.
tendo a segurança e a soberania nacional”, aponta. A ex-auditora da Receita Federal reforça que
”Isso é transferência brutal de renda pública e riqueza menos dinheiro para pagar juros significa mais di-
para o setor financeiro. É disso que se trata”. nheiro disponível para investimentos sociais. E que
o primeiro passo para garantir isso é a realização
de uma auditoria com participação popular. “A ta-
A lição do Equador
refa do nosso movimento é formar cidadania para
Vem do Equador o melhor exemplo de como que isso ocorra”, diz, acrescentando que há uma
enfrentar a questão da dívida. Quando eleito, o presi- série de ações para popularizar o debate previstas
dente Rafael Correa montou a Comissão de Auditoria para 2014, entre elas a criação de um Núcleo de
Integral da Dívida Pública, que funcionou no país Formação e a elaboração de um questionário para
entre 2007 e 2008, e comprovou que boa parte da os presidenciáveis cuja principal pergunta será:
dívida equatoriana era ilegal, conseguindo o feito de como pretende enfrentar o sistema da dívida? O
reduzir em 70% o seu valor. Hoje, os investimentos eleitor brasileiro agradece uma boa resposta.
serviço

EVENTOS PERIÓDICos compreender os padrões de doença, as


formas de cuidado e os recursos de cura,
é necessário considerar, antes de tudo, o
11º Congresso Internacional da Divulgação científica
contexto no qual eles ocorrem.
Rede Unida História, Ciênc ias ,
Saúde – Manguinhos.
Vol. 20, Suplemento. Demanda por cuidado
O número temático Construção Social da
Ciência e seus públicos demanda por cuida-

O maior evento de educação permanen-


te e formação em saúde da América
Latina terá como tema central da sua 11ª
do periódico da Casa
de Oswaldo Cruz (COC/
Fiocruz) abrange estudos
do: revisitando o direi-
to à saúde, o trabalho
em equipe, os espaços
edição Girar vida, políticas e existências: sobre a relação entre ciência e sociedade, públicos e a partici-
a delicadeza da educação e do traba- com foco em meios de comunicação de pação (Editora Cepesc),
lho no cotidiano do SUS. O congresso massa — uma das principais fontes de é fruto de uma parceria
visa contribuir propositivamente com os informações científicas para os públicos do Instituto de Saúde da Comunidade da
processos de mudança na formação e não especializados. Os estudos analisam Universidade Federal Fluminense (ISCO/
desenvolvimento de profissionais da área como distintas publicações constroem a UFF), com o Laboratório de Pesquisas
da saúde, bem como na transformação do imagem social de aspectos da ciência, sobre Práticas de integralidade em Saúde,
modelo de atenção à saúde e na busca da da tecnologia e da saúde, incluindo da Universidade do Estado do Rio de
consolidação do Sistema Único de Saúde iniciativas da primeira metade do século Janeiro (Lappis/IMS/Uerj). Uma das contri-
em seus princípios e diretrizes. Na progra- XX. O suplemento também aborda as buições é dos professoras Lilian Koifman,
mação, há debates sobre gestão pública, controvérsias da ciência, como a chegada Verônica Fernandez e Sergio Saipa sobre
gestão do trabalho e gestão municipal em da peste ao Brasil e a pesquisa em células as políticas de saúde e a organização dos
diálogo com os processos de formação, embrionárias humanas. Acesse em http:// currículos dos cursos da área da saúde e
as relações interfederativas, os processos www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/ da educação permanente, para entender
de ruptura em curso e a estrutura de po- seus impactos na área do cuidado.
der com seus dispositivos meritocráticos.
Indústria farmacêutica
Data 10 a 13 de abril Cadernos de Saúde Direito à saúde
Local Centro de Convenções do Ceará, Pública. Vol. 29, n. 12. Direito e Saúde: enfo-
Fortaleza A revista publicada pela ques transdisciplina-
Informações www.redeunida.org.br/ Escola Nacional de Saúde res (Editora Juruá), orga-
congresso2014 Pública Sergio Arouca nizado por Felipe Assensi,
(Ensp/Fiocruz) traz sólida professor de Direito da
reflexão sobre a indústria Fundação Getúlio Vargas,
IV Mostra Nacional de farmacêutica, levantando Roseni Pinheiro, coor-
Experiências em Atenção os riscos da falta de transparência dos denadora do L ap p is ,
Básica/Saúde da Família resultados de pesquisas realizadas sob e Paula Lucia Mutiz, da Facultad de
seu patrocínio, justamente no momento Derecho, Ciencia Politica y Relaciones
em que jornais divulgam a omissão de Internacionales da Fundación Universitaria
informações em diversos ensaios clínicos. Los Libertadores, da Colômbia. A obra
Ainda há uma revisão sobre as o raciocínio é o resultado de reflexões de diversos

O evento propõe o compartilhamento


de experiências e vivências do trabalho
em saúde na atenção básica brasileira e
ético na saúde pública (sustentado em
noção de boa vida de caráter pluralista,
ampliação da liberdade como fundamen-
profissionais do Direito, da Saúde e das
Ciências Sociais sobre os desafios do
direito à saúde no Brasil e na América
pretende contribuir com a reflexão e cons- to ético das ações na saúde, concepção Latina, tanto nas instituições políticas
tante melhoria na produção do cuidado da pessoa como agente e reconhecimento quanto participativas para a efetivação
em saúde nos serviços que constituem o da visão interna da saúde), entre outros da saúde.
principal ponto de contato dos usuários temas. Acesse em http://www4.ensp.
com o SUS. Realizada pelo Departamento fiocruz.br/csp/
de Atenção Básica da Secretaria de Atenção
à Saúde do Ministério da Saúde (DAB/SAS/ C ontatos
LIVROS
MS), a mostra tem como lema “Valorizando
experiências, estimulando o protagonismo Editora Fiocruz
local”. Nesta edição, a novidade é a bus-
Cultura e saúde
www.fiocruz.br/editora
ca por outras narrativas, para além dos Epidemiologia e cul- (21) 3882-9039
textos científicos, abarcando linguagens tura, do antropólogo
mais livres e criativas, que tragam a vida James A. Trostle (Editora Editora Cepesc
das experiências para a cena. O público Fiocruz), revisa as cone- (21)2569-1143 / 2234-7457
está estimado em 10 mil participantes. xões históricas entre a www.cepesc.org.br/editora
epidemiologia e a an-
Data 12 a 15 de março tropologia, observando
Editora Juruá
Local Centro Internacional de Convenções que ambas as disciplinas
(41) 4009-3900
do Brasil, Brasília estudam as práticas culturais humanas e
www.jurua.com.br
Informações http://atencaobasica.org. como elas produzem saúde e/ou doença.
br/mostra O autor parte do pressuposto de que, para

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pós-tudo

A TORTURA como
método de investigação

Alcyr Cavalcanti* um anos de exceção, embora estivesse sempre presente


em nossa legislação desde o Código Penal de 1940. A
Tortura, violência física para arrancar uma verdade que, Convenção de Genebra de 1949 determina que devam ser
de qualquer maneira, para valer como prova, tem que ser garantidos até pela força das armas o sepultamento, a
em  seguida repetida diante dos juízes, a titulo de confissão identificação e a localização da sepultura. Segundo a ONG
espontânea. (Michel Foucault) Rio da Paz desde 2006 35 mil pessoas desapareceram na
“guerra suja” contra uma população indefesa. Aos poucos
fatos vão aparecendo, relatos vão sendo registrados em um

E stamos revivendo tempos sombrios que deveriam estar


definitivamente sepultados. A triste herança da tortu-
ra, com o nome sugestivo de “método de interrogatório
dossiê volumoso, cheio de denúncias. Apesar das sucessivas
denúncias, a PM continua atemorizando as populações. A
cultura bélica, do enfrentamento, permanece, a construção
intensivo” como a prática mais eficiente, para descobrir a de novas escolas não saíram do papel, creches e hospitais
“verdade dos fatos”. Empregada como rotina, está definiti- ficaram somente na promessa. O índice de desemprego na
vamente arraigada no aparato repressivo, fazendo lembrar faixa de 18 a 25 anos é muito grande, empurrando os jovens
um passado inquisitorial. Choques elétricos, afogamentos para o narcotráfico, que pode dar um triunfo efêmero. O
em privadas, pau de arara (dizem que é invenção nacio- número de mortos por “enfrentamento” durante as suces-
nal), cadeira do dragão, botar no saco (asfixia com saco sivas invasões atinge não somente esta faixa, mas também
plástico), o laboratório do suplício tem múltiplas formas de jovens “soldados do movimento” entre 15 e 18 anos.
extorquir a confissão a qualquer preço. Em pleno século Muitos casos têm sido apresentados, e o de maior
XXI em um regime democrático, estamos na prática usando repercussão foi o do pedreiro Amarildo de Souza, morador
métodos medievais. A polícia brasileira em época recente da favela da Rocinha “desaparecido” há vários meses. A
colocou presos em celas pequenas na companhia de jacarés Unidade Pacificadora (UPP) da Rocinha teve quase todo
e cobras para obter o relato que interessava. Um delegado seu efetivo envolvido. Setenta e cinco PMs  foram afasta-
“linha de frente” colocava o preso dependurado pelos pés dos e alguns presos. O soldado Douglas Roberto Vital foi
ameaçando soltá-lo para uma queda de quatro andares. acusado há alguns meses por um menor de 16 anos, primo
A cooperação com governos estrangeiros nos anos de Amarildo, de ameaças de morte contra moradores da
setenta também aconteceu. Havia treinamento de agen- localidade. Ele acusou Douglas de ter tentado matá-lo para
tes na Escola das Américas, no Panamá, um “centro de confessar seu envolvimento com o narcotráfico. O proce-
excelência” para formar torturadores. O AI-5 acelerou os dimento clássico usado do Oiapoque ao Chuí de “botar no
poderes discricionários do regime militar, amparado na saco” impedindo sua respiração foi usado. O menino tem
Lei de Segurança Nacional (LSN) que entre outras ações 16 anos e seu pulmão resistiu. Amarildo não suportou a
arbitrárias suprimiu o direito do habeas corpus, com a asfixia após espancamento, choque elétrico e faleceu. Para
alegação que estávamos sob a ameaça de uma “guerra os policias da UPP foi “um acidente de trabalho”, apenas
revolucionária”. As “casas da morte” proliferaram em todo um “desvio de percurso”.
o Brasil, com um extenso número de “funcionários” todos A violência extrema tem sido uma constante. Em
eles bem remunerados e com carta branca para qualquer recente pesquisa publicada em principais jornais veio
tipo de ação, afinal havia para os governantes um inimigo uma triste constatação, um em cada cinco brasileiros já
a ser liquidado. Cecilia Coimbra do Grupo Tortura Nunca foi vitima de algum tipo de violência. No Rio de Janeiro as
Mais declarou que havia mais de 27 mil pessoas trabalhando UPPs não conseguiram a tão almejada pacificação. Descaso
diretamente para a tortura, sem contar os colaboradores e absoluto com a vida humana tem sido uma constante nas
financiadores do regime. unidades pacificadas. Na favela de Manguinhos cinco
Por ter se estendido por 21 anos, a ditadura deixou policiais da UPP foram indiciados pela morte de Paulo
rastros profundos na vida nacional e interrompeu a criativi- Roberto de Menezes na madrugada do dia 17 de outubro.
dade de mais de uma geração. As organizações em defesa O laudo feito pela policia civil constatou que a morte foi
dos Direitos Humanos estimam em mais de 100 mil pessoas em decorrência de asfixia mecânica. O método de “inves-
perseguidas ou detidas pelo regime de exceção. Herança tigação intensiva” tem sido uma constante, uma violação
maldita, atualmente a nossa polícia, principalmente a PM, extrema aos mínimos direitos, um desafio à construção de
tem usado a tortura como prática quase diária tendo como um Estado Democrático de Direito.
alvo os despossuídos, e elegendo como inimigo interno
em uma “guerra santa” a venda de drogas, a varejo, e as * Jornalista e antropólogo, membro da Comissão de Direitos
favelas cariocas. Humanos da ABI. Publicado no jornal Algo a Dizer em dezembro
A negação em sepultar os mortos conforme os rituais de 2013. O texto teve trechos suprimidos para adequação ao
ancestrais é um dos legados mais dolorosos dos vinte e espaço desta página. Leia a íntegra em www.ensp.fiocruz.br/radis

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