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Texto, cotexto e contexto: processos de

apreensão da realidade
Lúcia Helena Martins Gouvêa
Maria Aparecida Lino Pauliukonis
Rosane Santos Mauro Monnerat

Introdução

Um dos objetivos do ensino de línguas é tornar o aluno participante dos


variados processos de interlocução e protagonista nos atos de ler e produzir textos
adequados a cada situação. Constitui talvez este o mais complexo trabalho do
professor: propiciar ao discentes condições de se apropriar do conhecimento, usá-
lo de forma crítica e se integrar ao mundo como leitor autônomo e/ou produtor
de textos, segundo escolhas capazes de gerar significados nos vários campos da
vida social e cultural.
Levando-se em conta os desafios que o ensino de texto representa para os
professores, em qualquer grau do ensino, vimos apresentar considerações sobre
o tratamento do "texto como discurso" e sugerir práticas de aplicação pedagógica,
que constituam alternativas para ampliar o campo do letramento e aprimorar a
produção textual.
Como fundamento teórico, primeiramente apresentamos alguns conceitos
de texto, cotexto e contexto consoante uma visão discursiva e algumas reflexões
sobre sentido de língua e de discurso, articulados aos conceitos de compreensão
e interpretação. Partimos de uma dinâmica operacional que permite analisar a
transformação de um mundo “real” a significar em um mundo significado
discursivamente, em função de uma série de operações linguístico-discursivas
levadas a efeito pelos sujeitos enunciadores. Finalmente, introduzimos uma
proposta de aplicação por meio da análise de um texto opinativo midiático-
crônica jornalística- intitulado “Lei mais que seca”, como paradigma para
apreensão dos sentidos de um texto.
Um novo conceito de texto
Muito se deve aos avanços das pesquisas em Linguística do Texto e em
GOUVEA, Lucia Helena; PAULIUKONIS, Aparecida Lino; MONNERAT, Rosane. Texto, Análise do Discurso, responsáveis pela mudança de enfoque no objeto de estudo
Cotexto e Contexto: processos de apreensão da realidade. In: MARQUESI, Sueli Cristina; “texto”. De certa forma, também as modificações nos parâmetros da sociedade
PAULIUKONIS, Aparecida Lino; ELIAS, Vanda Maria. Linguística textual e ensino. São têm influenciado na renovação de metodologias de ensino: a consciência de que
Paulo: Contexto, 2017, p. 49-68.
repetir ou apenas reconhecer não significa compreender, já que a formação do A seguir, vejamos a diferença entre sentidos de língua e sentidos de
educando envolve muito mais do que meramente memorizar fórmulas e discurso, aliados aos conceitos de compreensão e interpretação textual.
conceitos, prática bastante comum no ensino tradicional, ou de aprender técnicas
de manuseio de máquinas que se modificam constantemente, na vertigem do Sentido de língua e de discurso.
progresso.
A leitura é uma prática libertadora, ao permitir ao indivíduo o acesso ao
Todos esses fatores levaram a escola a redefinir os objetivos educacionais,
mundo das palavras e a outros universos de saber. Entretanto, para ter acesso a
pois, muito mais do que colecionar informações, o aluno precisa saber relacioná-
esses universos, não é suficiente ler e identificar as palavras, reconhecendo-lhes o
las pelo raciocínio lógico e tirar conclusões a partir delas e, para isso, o texto
significado, é imprescindível alcançar a intenção do texto, atribuindo-lhe sentido.
mostra-se imprescindível, pois é um lugar de correlações.
Em outras palavras, a finalidade do ato de linguagem não deve ser buscada apenas
Para um ensino mais produtivo de interpretação e produção de textos, em sua configuração verbal, mas no jogo que um determinado sujeito vai
talvez seja preciso abandonar certa noção tradicional do que se entendeu por estabelecer entre esta e seu sentido implícito. Tal jogo depende da relação dos
texto: a de que ele é o produto, resultado de uma sequenciação de frases, que sai protagonistas entre si e da relação dos mesmos com a situação comunicativa em
da cabeça de um Autor, a que deve aderir a sensibilidade do leitor. Em vez da que se encontram. Assim, na tentativa de construir o sentido de um texto, o leitor
prática comum de se captar primeiro o significado, o quê, finalidade maior de certas procederá a inferências, reconhecimentos, hipóteses, ancorados a seus saberes
correntes do ensino escolar, deve-se partir para o enfoque do modo como o texto sobre o mundo.
foi produzido; ou seja, deslocar-se do significado/conteúdo original para os
A distinção entre sentido de língua e sentido de discurso articula-se,
efeitos de sentido, a partir do exame das operações linguísticas que o produziram.
respectivamente, aos processos de compreensão e de interpretação, comumente
Desse modo, em vez de se buscar o que o texto diz, procurar analisar como o texto
considerados equivalentes. O sentido de língua refere-se ao mundo de maneira
diz e por que diz o que diz de um determinado modo, o que trará consequências
transparente, construindo uma imagem de um locutor-ouvinte ideal, ou seja, uma
importantes para o desvendamento do sentido como um todo.
visão simbolizada referencial do mundo. Dessa forma, o sentido das palavras
O processo de leitura referido - e que endossamos - deve ser visto como resulta de um processo semântico-cognitivo de ordem categorial que consiste,
uma importante prática social de reconstrução da trajetória do autor, passível de dentro de um movimento centrípeto de estruturação do sentido, em atribuir às
ser recuperada. Tal perspectiva vai de encontro à tentativa de impor significados palavras traços distintivos, caracterizando-as, a partir da rede de relações na qual esses
únicos ou hegemônicos para o texto. É possível ensinar o aluno a perceber que traços se acham inseridos, em suas relações sintagmáticas e/ou paradigmáticas.
há possibilidades de significação, que se pode escolher uma ou algumas delas e Assim, mobilizando o sentido das palavras, o sujeito comunicante constrói um
reconhecer as estratégias que geram essa possibilidade. Para isso, é preciso colocar sentido que poderemos denominar de literal ou explícito, um sentido de língua, que
a Gramática ou a Língua em prática, em vez de se ensinar apenas sobre ela, como se mede segundo critérios de coesão.
faz, prioritariamente, a Escola chamada tradicional, por meio da insistência na
O sentido de discurso, por sua vez, deve corresponder à intencionalidade do
transmissão de uma metalinguagem e uma ênfase na descrição do fenômeno
sujeito comunicante, permitindo-lhe passar do sentido das palavras ao sentido de
linguístico, muitas vezes como um fim em si mesmas.
seu discurso. Para isso, ele deve seguir um processo semântico-cognitivo que
Essa noção de texto considerado como discurso pressupõe, portanto, que consiste, dentro de um movimento centrífugo de estruturação do sentido, em
ele seja resultado de uma operação estratégica de comunicação, produzida por um relacionar as palavras e sequências portadoras de sentidos de língua com outras
enunciador e descodificada como tal por um leitor, em três níveis: o referencial, que palavras e sequências que se acham registradas na memória de experiência do
diz respeito ao conteúdo cotextual, o situacional, relacionado aos entornos sociais sujeito. Trata-se de um processo de ordem inferencial, que produz deslizamentos
– contexto – e o pragmático, referente ao processo sócio-interativo. Ler torna-se, de sentido de ordem metonímica e metafórica, por meio do qual o sujeito
desse modo, um trabalho de observação e análise de operações linguístico- comunicante constrói um sentido que poderemos chamar de indireto ou implícito,
discursivas utilizadas para produzir sentidos, na e pela estruturação textual. um sentido de discurso, que se mede segundo critérios de coerência.
O termo compreensão pode ser tomado num sentido amplo ou restrito. A noção de contrato pressupõe que os indivíduos pertencentes a um mesmo
No sentido amplo, refere-se ao conjunto do processo cognitivo realizado pelo corpo de práticas sociais sejam capazes de entrar em acordo a propósito das
sujeito diante de um texto; no sentido restrito, refere-se a apenas uma parte desse representações de linguagem dessas práticas. Consequentemente, o sujeito que se
processo, que consiste em reconhecer o sentido de língua encontrado num texto, comunica sempre poderá, com certa razão, atribuir ao outro (o não-EU) uma
a base cotextual, a partir da qual poderão ser construídos diversos outros sentidos competência de linguagem análoga à sua que o habilite ao reconhecimento. A noção
inferenciais – sentidos de discurso, que levam ao processo de interpretação. de contrato significa, ainda, que há um princípio básico que regeo ato
comunicativo: o direito à fala. Esse princípio compreende as condições do saber,
Por meio das palavras e dos textos, passa-se de um mundo real a um mundo
do poder, e do saber fazer.
representado, realizando-se um processo de reconstrução de sentido que o linguista
Patrick Charaudeau (2008) denomina de processo de semiotização do mundo. Para que o contrato efetivamente se realize, um dos interlocutores deve
entrever a capacidade de saber (legitimidade) do outro, isto é, deve esperar que o
A semiotização do mundo se dá graças a um duplo processo: o de
parceiro domine um universo de crenças, um saber que possa ser partilhado na
“transformação” e o de “transação”. No processo de transformação o sujeito falante parte
prática discursiva. Além disso, deve reconhecer a condição de poder (legitimidade)
de um “mundo a significar” a fim de transformá-lo em um “mundo significado”.
deste outro, condição que é dada pelo grau de adequação estabelecido entre a
Esse “mundo significado” ou “representado” converte-se em objeto de troca com
identidade psicossocial do sujeito e seu comportamento linguageiro. Por fim, deve
outro sujeito, que assume o papel de destinatário, caracterizando, desse modo, o
também reconhecer nele o saber fazer ou competência comunicativa (credibilidade)
segundo processo: o de transação, ou de expressão textual.
em diferentes circunstâncias.
Para realizar a transformação, o sujeito falante procede à identificação dos seres
O contrato de comunicação assim definido se compõe, então, de um espaço de
(por nomeá-los, conceituá-los), à qualificação (por caracterizá-los), à descrição da
“restrições”, que constitui as condições que não podem ser infringidas pelos
ação (que sofrem ou praticam) e à causação (por tais seres agirem segundo
parceiros sob pena de não haver a comunicação e um espaço de “estratégias”, que
determinados motivos).
compreende os diferentes tipos de configurações discursivas de que o sujeito
O processo de transação também é regulado por quatro princípios: o comunicante dispõe para satisfazer as condições do contrato e atingir seus
princípio de alteridade, que estabelece uma troca, uma interação, na qual um sujeito objetivos comunicativos.
reconhece o outro, com o qual guarda semelhanças e diferenças; o princípio de
A noção de “contrato comunicativo” é uma noção chave da Teoria
pertinência, que considera a necessidade de haver um universo de referência
Semiolinguística, que se torna fundamental para nossas considerações sobre os
comum, de modo que os saberes ali partilhados sejam apropriados ao contexto e
estudos do texto sob a égide do discurso. Essa teoria de base interacional
à finalidade da troca; o princípio de influência, que evidencia o fato de os parceiros
fundamenta-se no poder da linguagem em exercer influência sobre o Outro e,
admitirem que, na troca, são alvo de um sujeito que tenta modificar suas ações,
nesse aspecto, a linguagem torna-se um processo de ação intersubjetiva, regulado
ou pensamentos, e o princípio de regulação, que orienta os sujeitos a gerirem a
por diversas competências.
troca, de maneira a torná-la possível.
As operações do processo de transformação são reguladas pelas do processo
Competências comunicativas
de transação. Dessa forma, o quadro que representa a “semiotização do mundo” é
completado, servindo de base, segundo Charaudeau (idem, ibidem), para o
Observa-se, portanto, que todos os atos de linguagem podem ser
“contrato de comunicação”.
considerados “encenações” (no sentido teatral do termo), que resultam da
Contrato de comunicação combinação de uma determinada situação de comunicação com uma determinada
O contrato de comunicação pode definir-se como um conjunto de “regras” organização discursiva e com um determinado emprego de marcas linguísticas.
discursivas que determinam o que é e o que não é “permitido” no ato de produzir Isso mostra a exigência de uma competência de produção/interpretação que
e de interpretar textos (orais ou escritos). ultrapassa o simples conhecimento das palavras e suas regras de combinação e
que requer um saber bem mais global, que compreenda outros elementos de Charaudeau (2005), os modos de organização do discurso caracterizam os
interação social. procedimentos utilizados pelo sujeito para ordenar determinadas categorias de
língua a fim de atingir o objetivo do seu ato comunicativo. O autor os classifica
O termo competência parece evocar conceitos como o de “aptidão”,
em quatro tipos: o Enunciativo, o Descritivo, o Narrativo e o Argumentativo.
“capacidade” e “habilidade” tanto para quem a ele recorre, quanto para os dicionários
preocupados em defini-lo. Todos esses sinônimos parecem estar ligados à A competência semântica se realiza na base dos imaginários sócio-discursivos,
atividade humana, de modo a referir-se a alguém como sendo competente. Nota- lugar de estruturação das diversas representações sociais ou “sócio-discursivas” -
se, sob esse prisma, a competência como um “saber-fazer” e um “conhecimento” que construídas pelo dizer e reconhecidas, portanto, nos/pelos discursos que circulam
determinado sujeito tem em relação a algo. nos grupos sociais. Essas representações resultam de diferentes tipos de saberes,
que, muitas vezes, encontram-se “misturados”: saberes de crença, de experiência e de
É preciso observar, no entanto, que, para que se realize o ato de
erudição.
linguagem, há necessidade de se pensar em “competência” sob uma outra
perspectiva. O sentido construído durante um ato de linguagem provém de um Finalmente, a competência semiolinguística diz respeito à estruturação do texto,
“sujeito” que se dirige ao outro, mediante uma situação de intercâmbio à construção gramatical e ao emprego do léxico. Em nível textual refere-se, por um lado, à
responsável pela escolha dos “recursos de linguagem” a serem empregados. capacidade do sujeito comunicante de manejar ou elaborar e, por outro, do sujeito
Partindo dessa ideia, pode-se falar em níveis de competência – situacional, discursiva, interpretante de perceber os mecanismos de construção de sentido, como os modos
semântica e semiolinguística. de organização do discurso, os mecanismos de coesão, de decodificação de conteúdos implícitos
inferíveis dos explícitos, ou de elementos extratextuais. Em nível gramatical, diz respeito às
A competência situacional também chamada competência comunicacional
habilidades dos sujeitos com relação ao sistema da língua e, finalmente, em nível
determina que todo sujeito que se comunica seja apto para construir seu discurso
lexical, está ligada ao contrato de comunicação, uma vez que essa competência designa
em função de alguns fatores: a identidade dos parceiros na troca comunicativa, a
a capacidade de os sujeitos fazerem escolhas lexicais (sujeito comunicante) que
finalidade do ato, do seu propósito e as suas circunstâncias materiais.
atendam às suas intenções comunicativas ou de perceberem (sujeito interpretante)
A identidade dos parceiros está relacionada ao status, papel social e lugar que as intenções que determinaram as escolhas feitas (CHARAUDEAU:2001)
ocupam dentro das relações de poder. É a identidade do sujeito que determina o
A capacidade do leitor de perceber as escolhas do autor durante o
seu direito à palavra; a finalidade do ato de comunicação diz respeito ao objetivo que o
processamento textual e relacioná-las aos diversos níveis de construção de sentido
sujeito enunciador quer atingir, por exemplo, persuadir, instruir, solicitar etc. por
caracteriza sua competência leitora.
meio do ato de linguagem; o propósito do ato de linguagem é a relação entre tema e
estrutura, ou seja, situações comunicativas específicas determinam configurações Durante a leitura, os níveis de construção de sentido - situacional, discursivo,
específicas para seus atos de linguagem e, por fim, as circunstâncias materiais impõem semântico e semiolinguístico- devem ser ativados pelo leitor, a partir da observação de
sobre os atos comunicativos certas características formais. elementos e relações textuais, marcados explicitamente ou sugeridos
implicitamente. Tal abordagem do texto, tanto por meio da análise dos seus
A competência situacional se realiza no quadro sócio-comunicacional. Esse é o
aspectos linguísticos (ou internos) e extralinguísticos (ou externos), quanto de suas
lugar em que se estabilizam as trocas sociais, constituindo dispositivos de troca
relações de sentido, revela a convergência de princípios da Teoria Semiolinguística
que funcionam como contratos de comunicação e que fornecem instruções sobre
e da Linguística Textual (LT), o que constitui uma contribuição imprescindível ao
as maneiras de se comportar por meio da linguagem. Segundo Charaudeau (2001)
presente estudo.
esse é, também, o lugar da constituição dos gêneros, chamados de “gêneros
situacionais”, significando que é um lugar de “instrução do como dizer”. Observemos, a seguir, uma proposta de análise de um texto jornalístico
opinativo, partindo dessa visão de texto como discurso.
A competência discursiva diz respeito à capacidade dos sujeitos envolvidos
no ato comunicativo para manipular (sujeito comunicante) e reconhecer (sujeito
interpretante) as estratégias postas em jogo durante o ato de linguagem, por meio
da modalização, ou seja, dos modos de organização do discurso. Conforme
O estudo do texto a partir de uma perspectiva discursiva referencial do mundo;(b) buscar o sentido social dessas palavras – o que o
conduzirá a um sentido indireto ou implícito, à intencionalidade do SUc.
Acabamos de apresentar variadas questões e conceitos relacionados ao Iniciando o estudo da construção dos sentidos no texto pelo título da
estudo do texto sob o ponto de vista discursivo. É hora, portanto, de aplicar a
crônica – Lei mais que seca –, podemos entender que não é suficiente identificar o
teoria ao caso concreto, o que faremos por meio da análise da crônica jornalística sentido das palavras e sua combinação. “Lei” significa “regra”, “mais que”
seguinte: constitui uma locução que indica “intensidade”, “seca” significa “que não tem
Lei mais que seca
líquido”. Por outro lado, “lei” é um substantivo que se caracteriza por ter o traço
Luiz Garcia, 03/02/2013, O Globo. semântico [- concreto], e “seca” é um adjetivo que se aplica a substantivos com o
traço [+ concreto], como “roupa seca”. Dessa forma, o que nos permite dizer que
Um cidadão honesto e decente, que não mete a mão no dinheiro alheio, não bate na “a lei é seca” ou “que a lei é mais que seca”?
mulher nem cospe no chão, pode, de repente, transformar-se num perigo para a
comunidade e para si mesmo? Todo mundo sabe a resposta: pode sim, quando enche a Como é possível observar, o sentido literal – o sentido de língua –, embora
cara e se arrisca a voltar para casa pilotando um automóvel. compreensível, causa estranhamento, não traduzindo o título da crônica. O SUi
No Brasil, dirigir embriagado é crime, mas há um problema que reduz consideravelmente terá de ler o texto, inteirando-se do contexto linguístico, e de acionar seu
a eficácia da legislação: a prova do pileque é atestada pelo bafômetro. E ninguém pode conhecimento de mundo, o que o levará a interpretar a frase, num primeiro
ser obrigado a produzir prova contra si mesmo. O que é compreensível em muitos outros estágio, como “a lei que proíbe dirigir alcoolizado” e, num segundo, “lei mais
casos, mas complica um bocado a eficácia da legislação que visa a impedir acidentes nas
estradas. rigorosa” – sentido de discurso. É realizando os dois procedimentos, o de
O problema é sério, como mostram os números sobre a situação nas estradas do Estado identificação do sentido de língua e o de identificação do sentido de discurso, que
do Rio. Nos últimos três anos, mais de 600 mil motoristas foram abordados em blitzes passamos do mundo real para o mundo representado e entendemos o que
da polícia e 47 mil deles se recusaram a passar pelo bafômetro – e não há punição para significa “processo de semiotização do mundo”.
isso.
A situação pode melhorar com um projeto que está sendo discutido pelo governo e o A semiotização do mundo ocorre por um processo de transformação, que se
Congresso. A ideia é não limitar a prova do pileque ao teste do bafômetro: o estado do refere à possibilidade de a língua representar o “mundo real”. O SUc – Luiz
motorista seria atestado por filmagens, fotos ou depoimentos de testemunhas. Nada Garcia –, para passar de um mundo a significar para um mundo significado: (a)
demais: é o que acontece com muitos outros crimes. E o castigo será consideravelmente
mais pesado, com multa maior, mais tempo com a carteira suspensa e até três anos de
identifica os seres como cidadãos, homens, mulheres, motoristas, congressoetc.; (b)
cadeia. Em suma, é uma lei consideravelmente muito mais seca. caracteriza-os como honestos, decentes, que se transformam em perigo para a
São boas novidades. Soma-se a elas um episódio desta semana: um deputado federal do comunidade e para si mesmos, embriagadosetc.; (c) descreve as ações, dizendo que
PP do Acre foi flagrado por uma blitz em Brasília, dirigindo embriagado. Terá de pagar um cidadão enche a cara e se arrisca a voltar para casa pilotando um automóvel,
multa, teve a carteira de motorista apreendida e vai responder a processo criminal. É que motoristas se recusaram a passar pelo bafômetro etc.; e (d) procede à causação,
como deve ser, mas é sempre boa notícia para o pessoal da arquibancada quando um
membro do congresso não escapa de castigo merecido, recorrendo ao “sabe com quem afirmando que a eficácia da legislação é reduzida já que a prova do pileque é
está falando”. atestada pelo bafômetro, a polícia faz blitzes porque precisa impedir acidentes nas
estradas etc.
Vimos, anteriormente, quando tratamos da teoria, que, na produção do A semiotização do mundo também se dá por um processo de transação –ou de
seu texto, o sujeito comunicante (SUc) tem por objetivo traduzir o mundo para o expressão por meio de um texto –, na medida em que o mundo significado se
sujeito interpretante (SUi), passando de um mundo real a um mundo significado converte em um objeto de troca com o outro sujeito (leitor). Assim, para que
(representado). ocorra a transação, tem de atuar o princípio da alteridade, o que, na crônica, realiza-se
O SUi, por seu turno, para entender o mundo (res)significado, deve pelo fato de Garcia reconhecer o outro como “o leitor”, para quem ele escreve.
realizar dois procedimentos: (a) identificar o sentido das palavras e suas regras de O leitor, por seu turno, reconhece Garcia como o cronista do jornal O Globo, de
combinação – o que o levará a um sentido literal ou explícito, a uma visão quem receberá informações e terá despertada a sua capacidade de reflexão sobre
os problemas do mundo.
O segundo princípio atuante para que a transação aconteça é o da pertinência, O cronista, porém, silencia com relação a qualquer mensagem direta
princípio que leva o cronista a escrever sobre uma temática que diz respeito a todo (sentido explícito) que ele pudesse dirigir ao leitor que bebe e dirige alcoolizado.
cidadão e, portanto, a todo o público-alvo. Vivemos numa sociedade em que Ele poderia ter dito, por exemplo, que ninguém está livre de provocar ou sofrer
muitas pessoas bebem, conduta que poderá levá-las à leitura do texto, e os que um acidente, mas que o número de casos seria ínfimo se as pessoas não usassem
não bebem também podem interessar-se pela crônica, pois sabem que, a qualquer bebida alcoólica ou, se usassem, agissem com responsabilidade, não conduzindo
momento, podem se transformar numa vítima dos que bebem. Assim, os saberes carro ou outro meio de transporte; que, se cada indivíduo cumprisse sua
partilhados por Garcia, ao tratar da lei de trânsito que visa a diminuir o número obrigação, comportando-se como se espera de quem vive em sociedade, não
de acidentes, apresenta pertinência total no texto em apreço. haveria necessidade de discutir sobre a urgência de uma “lei mais que seca”.
O terceiro princípio do processo de transação é o da influência, que leva o Esse silêncio, por parte de Garcia, diz respeito ao princípio de regulação:
cronista a discutir a questão da lei que proíbe dirigir alcoolizado e defender a tese não é conveniente para ele nem para o jornal dirigir ao leitor “beberrão” uma
de que a prova de um pileque ser atestada pelo bafômetro é um problema. Para crítica tão direta que possa desagradá-lo a ponto de ele deixar de ler as crônicas
defender essa tese, ele diz que: (a) o teste do bafômetro diminui a eficácia da do autor e o próprio jornal. O princípio da regulação também atua para preservar a
legislação, já que ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra si mesmo; face do leitor/ouvinte, fazendo com que o princípio de influência se realize a
(b) nos últimos 3 anos, de 600 mil motoristas abordados em blitzes, 47 mil se contento.
recusaram a passar pelo teste; (c) não há punição para quem se nega passar pelo Observando, assim, as funções dos processos de transformação e transação,
bafômetro. chegamos ao conceito de contrato de comunicação: conjunto de regras linguísticas e
Diante desses argumentos, Garcia tenta fazer com que o leitor compactue sociais seguidas pelos parceiros da comunicação, para que haja entendimento
com ele quanto à opinião de que, enquanto a legislação não mudar o tipo de prova entre eles.
que atestará o pileque do motorista, os acidentes continuarão ocorrendo e os O contrato em análise constitui-se de regras que configuram o gênero textual
motoristas se embriagando e assumindo o volante do carro; afinal, eles não são crônica jornalística, texto que apresenta, em maior ou menor grau, semelhanças
obrigados a soprar o aparelho, e esse fato diminuirá qualquer castigo queeles com o texto exclusivamente informativo, pois, assim como o repórter, o cronista
possam sofrer. se inspira nos acontecimentos diários para escrever. Por outro lado, distingue-se
O quarto princípio, que governa o processo de transação, é o da regulação, da notícia, por exemplo, pelo fato de o cronista dar a esses acontecimentos um
princípio por intermédio do qual os sujeitos gerem o jogo de influência. No caso tratamento próprio, usando os fatos para discutir determinada temática, avaliar os
do texto escrito, o ato de regular o discurso, em princípio, restringe-se à instância fatos, característica que o texto informativo não apresenta.
de produção do texto, pois a instância de recepção se constitui de sujeitos leitores Na crônica em estudo, Garcia parte de variados acontecimentos que se
que não estão presentes no momento da locução. noticiam sobre acidentes provocados por indivíduos alcoolizados. A partir desses
Levando em conta o aspecto da regulação, vale levantar alguns pontos. fatos, ele discute, de um lado, o problema de a prova do pileque ser atestada pelo
Percebemos, por exemplo, que o cronista trata do problema do teste do bafômetro e, de outro, a possibilidade de esse problema ser resolvido, o que
bafômetro e da possível melhora que poderá ocorrer com relação à prova do confere uma orientação argumentativa otimista à crônica. Essa orientação positiva
pileque. Defende, aliás, uma segunda tese que é “o problema de identificação de é reforçada pela narrativa que segue a discussão, segundo a qual um deputado foi
motoristas bêbados pode ser resolvido”, argumentando desta forma: (a) o flagrado por uma blitz, dirigindo embriagado, e terá de sofrer todas as sanções
governo e o congresso estão discutindo um projeto que visa a não limitar a prova impostas aos indivíduos anônimos.
do pileque ao teste do bafômetro; (b) o estado do motorista passaria a ser
Vale destacar ainda, com relação ao conceito de contrato, que a crônica
confirmado por filmagens, fotos, depoimentos; (c) o castigo seria mais pesado, jornalística é dirigida por um espaço de restrições e um de estratégias. O espaço de restrições,
realizando-se por multa maior, carteira suspensa por mais tempo e até três anos neste caso, está relacionado à ocorrência de um fato do dia a dia que desencadeia
de cadeia. a discussão do cronista e à ocorrência de narrativas. Além disso, esse espaço
também está relacionado a características formais, como ser um texto curto e atestada pelo bafômetro, objetivando chamar a atenção do leitor que dirige depois
apresentar linguagem simples, espontânea e próxima da oralidade. de ingerir bebida alcoólica, é uma tarefa que requer, como estratégia de
No texto em apreço, podemos observar a seguinte narrativa que funciona aproximação, uma linguagem descontraída.
como argumento para a tese de que “a prova de um pileque ser atestada pelo A informalidade da crônica jornalística faz com que o ato de linguagem
bafômetro é um problema”: “Nos últimos três anos, mais de 600 mil motoristas seja produzido à maneira de um “bate papo” entre indivíduos iguais, o que cria
foram abordados em blitzes da polícia e 47 mil deles se recusaram a passar pelo um efeito de intimidade com o leitor e pode levá-lo a refletir sobre a conduta
bafômetro”. Verificamos também o caráter informal da linguagem: “Lei mais que “beber e dirigir”. O modo como Garcia introduz a crônica, por meio de uma
seca”; “(...) não mete a mão no dinheiro alheio (...)”; “(...) quando enche a cara pergunta e de uma linguagem bem espontânea – “Um cidadão honesto e decente,
(...)”etc. que não mete a mão no dinheiro alheio, não bate na mulher nem cospe no chão,
pode de repente, transformar-se num perigo para a comunidade e para si mesmo?”
Quanto ao espaço de estratégias, que todo contrato de comunicação permite seja
–, tem a finalidade de levar o leitor a se identificar com o cidadão descrito e a pensar
engendrado, destacamos, por exemplo, o modo como o autor inicia seu texto –
sobre o próprio comportamento.
por intermédio de uma pergunta –: “Um cidadão honesto e decente, que não mete
a mão no dinheiro alheio, não bate na mulher nem cospe no chão, pode (...) O último fator da competênciasituacional, as circunstâncias materiais do ato de
transformar-se num perigo para a comunidade e para si mesmo?”. Iniciar por uma linguagem – o texto –, caracteriza-se por ser um ato monolocutivo, qualidade que
pergunta não faz parte do espaço de restrições, mas, do de manobras. O ato de pergunta concede a Garcia a liberdade, por exemplo, de responder à pergunta com que abre
requer um ato de resposta e, através da pergunta, o cronista instiga o leitor a a crônica da seguinte maneira: “Pode sim, quando enche a cara e se arrisca a voltar
refletir desde o começo do discurso: qualquer um pode tornar-se um perigo, desde para casa pilotando um automóvel”. Neste momento, o SUc é bem severo com o
que beba e tome a direção de um veículo. o SUi, atitude que lhe é conferida pelo fato de o texto não ser uma construção em
Uma outra abordagem do texto como discurso é destacar que, em todo ato de que os sujeitos estão face a face, isto é, o texto escrito não dá direito de defesa.
linguagem, o sujeito tem de ter uma competência, que pode ser situacional, Analisando a crônica, agora, sob a perspectiva de que o sujeito, para
discursiva, semântica e semiolinguística. realizar um ato de linguagem, tem de ter uma competência discursiva – a segunda
competência –, vale observar como podemos construir o discurso, considerando
A primeira, a competência situacional, está no fato de que todo sujeito que se
comunica deve ser capaz de construir seu discurso em função da identidade dos os modos de organização enunciativo, descritivo, narrativo e argumentativo.
parceiros, da finalidade do ato, do seu propósito e de suas circunstâncias materiais; e essa O modo enunciativo de organização do discurso, modo que diz respeito às
competência é observada na crônica em apreço. estratégias utilizadas pelo SUc para marcar, em maior ou menor grau, a sua
subjetividade no texto e convencer/persuadir/manipular o SUi, pode ser descrito
Quanto à identidade dos parceiros, verificamos que Garcia escreve para um
por variadas indicações presentes na crônica. A escolha lexical chama a atenção no
público das classes A e B, que é leitor do O Globo. Esse fato o leva a discutir
discurso do cronista, por meio do uso do sintagma nominal “um cidadão honesto
determinado assunto e de certa maneira, para alcançar um leitor instruído. A
e decente, que não mete a mão no dinheiro alheio, que não bate na mulher nem
finalidade do ato é fazer com que o leitor concorde com sua opinião de que a prova
cospe no chão”.
de um pileque ser o bafômetro é um problema e que esse problema pode ter
solução com a reforma da lei. Simultaneamente à defesade suas teses, informa em A escolha do substantivo “cidadão” para fazer referência aos homens de
que se constituirá o castigo – multa maior, mais tempo de suspensão da carteira e bem, e dos adjetivos “honesto” e “decente” para caracterizar esse cidadão, tem
três anos de cadeia –, visando a persuadir o leitor que bebe a não fazê-lo se for efeito patêmico forte sobre o leitor. Garcia está se dirigindo a um indivíduo
dirigir. considerado socialmente e não a um qualquer, o que leva o leitor a se identificar:
Pensandono propósito do ato de linguagem, constatamos que o texto, – ele está falando comigo.
construído por meio de uma estrutura informal, típica do gênero crônica, ajusta- Esse cidadão ainda é caracterizado por meio de orações adjetivas – “que
se bem à temática que é discutida. Analisar o fato de a prova de um pileque ser não mete a mão no dinheiro alheio, não bate na mulher nem cospe no chão” –
construídas por expressões grosseiras, como “(não) meter a mão”, “(não) bater na mesmo, o que é compreensível em muitos outros casos, mas complica um bocado
mulher”, “(não) cuspir no chão”. Essa conduta, apesar da possibilidade de chocar a eficácia da legislação que visa a impedir acidentes nas estradas”.
o leitor, leva-o a se reconhecer mais uma vez: – este sou eu, pois eu não faço essas Neste fragmento, constatamos o fenômeno da polifonia de acordo com o
grosserias”.
qual o SUc concede razão àqueles que diriam, acerca do teste do bafômetro, que
A escolha, porém, da expressão “encher a cara”, presente na resposta à ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo. Diz, inclusive, que não
pergunta “Um cidadão honesto e decente, (...), pode transformar-se num perigo poder construir prova contra si mesmo é compreensível em alguns casos;
para a comunidade e para si mesmo?” – “(...) pode sim, quando enche a cara e se introduz, porém, o enunciado restritivo – “mas complica um bocado a eficácia da
arrisca a voltar para casa pilotando um automóvel” –, leva, agora, o leitor a se legislação (...)” –, por meio do qual defende sua tese: a prova de um pileque ser
identificar por meio de um traço negativo: – este sou eu, pois encho a cara e saio atestada pelo bafômetro é um problema.
dirigindo. Como percebemos, a competência discursiva é comprovada no texto em
Neste momento, o SUc está passando uma corrigenda no SUi, na medida estudo, já que os modos de organização do discurso foram empregados, objetivando
em que está mostrando a ele que quem provoca acidente nas estradas não são conduzir o leitor que dirige alcoolizado a refletir sobre os efeitos dessa atitude e
apenas os indivíduos ditos fora da lei ou aqueles “metem a mão no dinheiro alheio, convencer o leitor que não bebe se for dirigir, a concordar que o teste do
batem na mulher e cospem no chão”. Ele, um cidadão honesto e decente, pode bafômetro é ineficaz.
matar e morrer, se dirigir alcoolizado. Assim, a partir das escolhas lexicais, o SUc A terceira competência indispensável à produção de um ato de
visa a provocar determinadas emoções no SUi, para convencê-lo a mudar o comunicação, a competênciacontextual, está relacionada aos saberes de crença, de
comportamento. experiência e de erudição. Os três saberes, juntos ou separadamente, de acordo
O modo descritivo de organização do discurso pode ser observado no quarto com os atos produzidos, vão contribuir para a construção dos sentidos.
parágrafo da crônica: “(...) o estado do motorista seria atestado por filmagens, Retomando o título da crônica, para entendermos o verdadeiro sentido de
fotos ou depoimentos e testemunhas”; o castigo será consideravelmente mais “lei mais que seca”, precisamos acionar nossos saberes de experiência e/ou de
pesado, com multa maior, mais tempo com a carteira suspensa e até três anos de erudição. Quem ainda não presenciou a situação de ouvir alguém aconselhando
cadeia”. outrem que não dirija, pois está alcoolizado e pode ser flagrado pela blitz da lei
Neste trecho, constatamos que o cronista descreve o modo como a seca? Ao testemunharmos esse momento, estamos vivenciando a experiência de
embriaguez do motorista pode ser provada, bem como as características do presenciar uma cena real e de assistirà sua transformação de mundo a significar
castigo a que ele será submetido. Essa descrição está a serviço da persuasão, já em mundo significado. Ao lermos o título, acionamos nossos saberes linguístico
que o leitor que costuma dirigir alcoolizado está sendo informado de que a e de experiência e chegamos ao sentido de “lei mais que seca”: lei que proíbe
impunidade está na iminência de acabar e que as sanções serão bem mais dirigir alcoolizado e que é rigorosa.
rigorosas. Transmitindo essas informações, o objetivo do SUc é que o SUi passe Passando, finalmente, para a quarta competência, a competência
a refletir sobre suas atitudes e mude de conduta. semiolinguística, verificamos que ela se constitui na capacidade do SUc de gerir seu
O modo narrativo de organização do discurso é observado no terceiro parágrafo texto do ponto de vista da gramática, do léxico e da textualidade (coesão e
da crônica: “Nos últimos três anos, mais de 600 mil motoristas foram abordados coerência), e na capacidade do SUi de compreendê-lo dentro desses três níveis.
em blitzes e 47 mil deles se recusaram a passar pelo bafômetro (...)”. Neste trecho, A competência semiolinguística é observável no texto em apreço, pois as
o cronista relata fatos ocorridos nos últimos anos, tencionando levar o leitor a conexões morfossintáticas, lexicais, de coesão e de coerência se apresentam em
concordar com sua tese de que a prova de um pileque ser atestada pelo bafômetro
plena normalidade. O SUc, ao construir seu texto, demonstrou habilidade no que
é um problema. se refere ao sistema da língua, à escolha lexical pertinente ao contrato de
O modo argumentativo de organização do discurso pode ser destacado no comunicação e aos mecanismos de construção dos sentidos. Essa habilidade
seguinte fragmento: “(...) ninguém pode ser obrigado a construir prova contra si
também é identificável no SUi, desde que ele tenha compreendido e interpretado concepção de texto em vários níveis, atinentes à compreensão dos sentidos de
o texto de Luiz Garcia. língua e à interpretação dos sentidos de discurso.
Para não nos estendermos mais, vejamos este último segmento, em que é - Conscientes de que a Teoria Semiolinguística (Charaudeau, 2001, 2005 e
possível identificar, dentre outras, uma habilidade relativa à textualidade: 2008) oferece profícuas possibilidades para investigação do texto como discurso,
adotamos seus pressupostos na análise de uma crônica jornalística, intitulada “Lei
“A ideia é não limitar a prova do pileque ao teste do bafômetro: o estado do
motorista seria atestado por filmagens, fotos ou depoimentos de testemunhas. mais que seca”. Acreditamos que a análise do texto constitua uma proposta eficaz
Nada demais: é o que acontece com muitos outros crimes.” para o ato de desvendar os diversos níveis de construção dos sentidos, por meio
do reconhecimento de operações linguístico- discursivas que permitem a
Sabemos que a bebida é uma droga legalizada e, por sê-lo, muitas de suas passagem da língua ao discurso, consubstanciando-se o processo de semiotização
consequências são consideradas normais na nossa cultura. Garcia, porém, ao do mundo, fundamental para uma leitura mais consciente e um posicionamento
tratar do assunto “beber e dirigir veículo”, desfaz essa visão lúdica do uso da mais critico do leitor perante o texto.
bebida, ao demonstrar sua competência no nível da textualidade. No fragmento acima,
quando ele diz “Nada demais: é o que acontece com muitos outros crimes”,
observamos que ele lida bem com conteúdos implícitos. Ao declarar que o estado Referências bibliográficas:
do motorista ser atestado por filmagens, fotos e depoimentos não é nada demais,
CHARAUDEAU, Patrick. De la competência social de comunicación a las competencias
defende sua opinião por intermédio do conteúdo posto – “é o que acontece com discursivas. Revista latinoamericana de estúdios del discurso, vol (1), Editorial Latina, Venezuela,
muitos outros crimes” – e do conteúdo pressuposto – “dirigir embriagado 2001.
também é crime”.
_______________________Uma análise semiolinguística do texto e do discurso. IN:
A seguir, veja, resumidamente, os principais pontos aqui levantados no PAULIUKONIS, M.A.L & WERNECK, L.(orgs) Da língua ao discurso reflexões para o
que diz respeito ao estudo do texto como discurso ensino. Rio de Janeiro, Lucerna: 2005, p. 11-30
___________________. Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo:
Considerações finais Contexto, 2008

- Partimos do pressuposto de que ler é tentar compreender o “mundo”,


pela recriação das circunstâncias em que o texto foi produzido linguisticamente.
Optamos pelo enfoque do texto como discurso, por meio de um tratamento
processual e dinâmico, em que é possível o diálogo com teorias do discurso, que
também consideram o texto como o lugar de interação de atores sociais e de
coconstrução de sentidos.
- Por meio dessa visão discursiva do texto, destacamos o conceito de
contexto em uma visão mais ampla, que vai além da dimensão linguística ou
cotextual e remete às circunstâncias de realização do ato, ao papel dos atores
sociais e discursivos e às diferentes modalizações enunciativas, temas mais
pertinentes ao âmbito do discurso. Nesse sentido, a uma concepção de linguagem
mais referencial – cuja função básica é transmitir informações sobre o “mundo”
–, acrescente-se um papel pragmático com seu poder de influência sobre o outro,
com ênfase sobre o aspecto fenomênico e retórico responsável por uma

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