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Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Prostituição e Lenocínio

Cidália Maria Ferreira de Sousa Estevão Graça

Janeiro
2016
2

Índice

1. Resumo ...................................................................................... 4
2. Introdução .................................................................................. 5
3. Breve história da prostituição em Portugal ................................ 7
4. Atual Regime Jurídico em Portugal .......................................... 8
5. Regime Jurídico em alguns Países Europeus ............................. 9
6. O Bem Jurídico, o Direito e a Moral ........................................ 11
7. Lenocínio Simples .................................................................... 13
8. Doutrina e Jurisprudência ......................................................... 14
9. Conclusões ................................................................................ 20
10. Bibliografia .............................................................................. 25
3

“Deve-se estar atento às ideias novas dos outros.


Nunca julgar que aquilo em que acreditamos é efetivamente verdade. Fujo da verdade
como tudo, porque acho que quem tem a verdade num bolso tem sempre uma inquisição n
o outro lado para atacar alguém; então livro-me de toda a espécie de poder – isso sobre-
tudo”

Agostinho da Silva
4

1. Resumo

Direito, que se estende sem desvio de uma extremidade à outra; que se mantém ver-
tical; que julga de modo integro1, justo2, podia continuar..., mas, é o último vocábulo que
julgo preferível.

Esta pequena investigação teve como objetivo a reflexão sobre a prostituição e crime
de lenocínio, a ela associada.
É uma tentativa de encontrar aquilo que à luz dos princípios da igualdade, da liber-
dade e da proporcionalidade, será o mais justo, nunca perdendo de vista o conceito basilar do
direito penal, o bem jurídico.

Palavras Chave: prostituição, lenocínio3, bem jurídico, dignidade da pessoa humana,


igualdade, constitucionalidade, proporcionalidade, necessidade, liberdade, subsidiariedade

1
Enciclopédia Larousse, p. 2364
2
Lello, Dicionário de língua portuguesa, p. 474
3
Crime de lenocínio simples, previsto no art.º, n. º1, do Código Penal
5

2. Introdução

Num mundo ideal, não existiria prostituição, todo o sexo seria realizado no âmbito das
relações matrimoniais, ou de pessoas que vivem em união de facto, ou, na “pior das hipóte-
ses”, no seio de uma relação duradoura, estando assim assegurado o “sexo com moralidade”,
para os mais liberais, o sexo pode ser esporádico, sem parceiro certo, mas sempre com von-
tade reciproca. Mas... não vivemos num mundo ideal...
A prostituição, se não é a mais antiga “profissão” do mundo, é seguramente, das mais
antigas, documentos Sumérios datados de 2400 a.C. registam a profissão de prostituta ao lado
de profissões como médicos, escribas e cozinheiros, mais de vinte séculos volvidos, e esta
“antiga senhora” aí continua, cheia de força.
Vários estudos mostram-nos que em países onde a prostituição é fortemente repri-
mida, como é o caso do Irão, onde o sexo fora do casamento é punido com pena de morte, na
última década, os números da SIDA duplicaram, passaram de 15% para 30%.
Em vários países islâmicos, temos os casamentos temporários, denominados
“Sigheh”, podem durar apenas alguns minutos, acredita-se que este costume tem origem pré-
islâmica, o profeta Maomé recomendou-o aos seus companheiros e soldados4.
Depois, temos as dançarinas de Cabul5, uma tradição antiga, “bachabaze”, homens
ricos compram os filhos de homens pobres, para seu entretenimento e satisfação sexual, e,
pasme-se! Ainda por cima, são um símbolo de status, um símbolo de riqueza! Os mais ricos

4
Estadão, jornal brasileiro
5
http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2010/09/100908_afeganistao_danca_abuso_dg.shtm
6

e poderosos têm vários “bachas” (meninos), quanto às mulheres casadas com estes
homens, “concordam” ou, são obrigadas a concordar!

Estima-se que o lucro total, da prostituição, a nível mundial seja de 170 mil milhões
de euros.6
No topo da lista está a China, com 67 mil milhões de euros gastos com esta atividade,
em décimo lugar está a Turquia com 4 mil milhões de euros, a lista é extensa, podia continuar,
mas isto é só para dar alguns exemplos de que a prostituição, ainda que mascarada, disfar-
çada, ou transvestida, existe, em todas as épocas, em todas as latitudes e longitudes.
Então, pergunta-se o porquê de a esmagadora maioria dos Estados continuarem a
ignorar esta realidade social?
A outra questão levantada neste trabalho prende-se com a seguinte dúvida: qual o
bem jurídico tutelado no artigo 169.º nº1 do Código Penal?

6
http://www.havocscope.com/prostitution-revenue-by-country/
7

3. Breve História da prostituição em Portugal

A abordagem feita à prostituição tem sido, em Portugal, pautada por avanços e re-
cuos.
Remontam a D. Afonso III as primeiras notícias sobre esta problemática, este mo-
narca proibiu os nobres de se fazerem acompanhar de prostitutas aquando das deslocações à
Corte.
D. Dinis, considerou imoral cobrar impostos às prostitutas.
D. Afonso IV, em 1481, determinou que as prostitutas passassem a viver em bairros
separados e usassem uma divisa para se distinguirem das outras mulheres.
Nas ordenações Manuelinas, foram agravadas as perseguições às prostitutas e a quem
as explorava (alcoviteiras).
Todas estas disposições constavam em legislação avulsa.
No código administrativo de 1836, passou a constar a proibição de as prostitutas per-
manecerem em certos locais públicos.
A prostituição foi, finalmente, regulamentada no período compreendido entre 1853
e 1962, à qual foi atribuída, a natureza de “profissão à condição”, desde que praticada em
casas concebidas para o efeito e sujeitas a fiscalizações periódicas, no intuito de prevenir e
controlar doenças.
A titulo de exemplo, foram criados, em 1853, o Regulamento Sanitário das Meretri-
zes do Porto, em 1958, o Regulamento Policial das Meretrizes e Casas Toleradas da cidade
de Lisboa.
Constavam, destes diplomas, nomeadamente, proibição de novos arrendamentos ou
mudanças de habitação sem prévia autorização, era obrigatória dar a informação de gestação
e a coabitação com filhos com idade superior a três anos. Estas medidas visavam circunscre-
ver a prostituição a determinadas zonas geográfica previamente estabelecidas.
8

No entanto, esta regulamentação veio a mostrar-se ineficaz, na medida em que o nú-


mero de mulheres matriculadas era muito inferior às que praticavam esta atividade clandes-
tinamente.
Talvez não tenha funcionado pelo facto de os regulamentos não terem feito mais do
que segregar estas mulheres.

4. Atual regime jurídico da prostituição em Portugal

Em Portugal temos, por um lado, a subalternidade das prostitutas, por outro, a desrespon-
sabilização dos clientes, ou seja, a lei ignora as prostitutas, a sociedade aponta-lhes o dedo,
os clientes, são homens de respeito.
A Srª Professora MARIA FERNANDA PALMA, defende a criminalização do consumo
da prostituição.7

Em 2005, o Parlamento Europeu, quanto à prostituição, classificou Portugal como um


país abolicionista8, aboliu-se a pena, mas ignorou-se a realidade, Portugal tem hoje, em rela-
ção à prostituição uma posição de indiferença, irrelevância...

Assim, conclui-se que o atual regime jurídico da prostituição, em Portugal, é inexistente.

7
http://www.cmjornal.pt/opiniao/detalhe/consumo-de-prostituicao
8
https://pt.wikipedia.org/wiki/Prostitui%C3%A7%C3%A3o_em_Portugal
9
5. Regime Jurídico em alguns países europeus

Na maioria dos países dos países europeus a prostituição não está legalizada, dada a ele-
vada complexidade e divergência de entendimentos, deixa-se estar como está, governos su-
cessivos vão primando pela inércia.

Na Holanda, que já nos habituou à sua tolerância em determinadas matérias, a prostitui-


ção está legalizada, desde o ano 2000, as pessoas que se prostituem pagam impostos, segu-
rança social e usufruem das regras de direito laboral e subsidio de desemprego. A prostituição
é vista como uma profissão, ainda que sujeita a uma regulamentação muito própria.
Como é evidente, a prostituição forçada ou com menores, continua a merecer tutela penal.

Na Hungria, a prostituição também está legalizada, mais ou menos nos mesmos moldes,
que na Holanda, sendo esta uma competência das autarquias.
Contudo, a lei aqui é mais restritiva, nomeadamente, quanto à localização da atividade,
que não pode ser exercida perto de escolas ou igrejas.
No entanto, existem aqui algumas contradições, não é permitido dirigir bordéis nem ar-
rendar imóveis para a prática de prostituição, sendo esta matéria regulada pelo código penal,
no seu art. 205.º, parece ser de concluir que a prostituição é legal, mas só pode ser exercida
na rua?

Na Alemanha, a prostituição está legalizada desde janeiro de 2000, é uma profissão,


enquadrada na prestação de serviços.
A prostituição, na Alemanha está regulamentada, mas não a qualquer preço, continua
a merecer tutela penal sempre que esta prática não se realize de forma livre, está previsto a
punição de casos como a vigilância de pessoas com intuito lucrativo, o fomento da prostitução
10
em habitação ou estabelecimentos, desde que a relação vá além das obrigações daí resultan-
tes, nos casos em que a pessoa prostituída se encontre em dependência pessoal ou económica
ou nos casos em que a pessoa prostituída seja menor.
A lei alemã, sobre esta matéria é muito assertiva, a legislação portuguesa sempre tão
influenciada pela doutrina e legislação alemã, não se percebe porque, também aqui, não se
deixa tocar.
Gostaria ainda de referir que a França e a Itália têm regimes idênticos ao nosso, em
Espanha9, é uma coisa híbrida, não é ilegal, pode ser praticada em determinados estabeleci-
mentos, mas como também não é considerada profissão, as prostitutas não pagam impostos,
também não é crime ter um estabelecimento onde se pratica a prostituição, desde que não
haja lucro direto, nem seja o dono do estabelecimento a contratar os clientes, enfim, não é,
nem deixa de ser...

Por último, refiro apenas a Suécia, onde desde 1999 vigora a responsabilidade crimi-
nal do “comprador de sexo”10.

Em suma, A prostituição é, de facto, algo muito complexo sendo que esta complexi-
dade se traduz, nas mais diversas variantes de abordagem do problema, bem plasmado no
velho Continente.

9
https://pt.wikipedia.org/wiki/Prostitui%C3%A7%C3%A3o_na_Europa#Prostitui.C3.A7.C3.A3o_na_Espanh
10
ALBERTO, José Maria: “Dos crimes sexuais: Do Crime de Lenocínio em especial. O novo paradigma da cri-
minalidade sexual” UAL Departamento de Direito
11

6. O Bem Jurídico, o Direito e a Moral

A proteção do bem jurídico é a pedra de toque na legitimação do poder punitivo do


Estado.
O Direito penal visa a proteção e a tutela dos bens jurídicos que emergem de valores
fundamentais para a sociedade.
Uma norma que não tenha como razão de ser a proteção de um bem jurídico é in-
constitucional (art. 18.º nº2 CRP).
Mas o que é o bem jurídico? Como pode ser aferido? através de juízos morais? Re-
correndo aos “bons costumes? Ao bem coletivo?

LUIGI FERRAJOLI, destaca duas posições opostas, uma é a tese da “confusão”, em


qual o direito e a moral estão intrinsecamente ligados, o que for imoral deverá ser proibido
pelo Direito, é uma posição assumida por muitos católicos.
Em sentido oposto, destaca o Autor a tese da “separação”, assente na separação entre
questões jurídicas e morais, trata-se de uma tese iluminista, apoiada por Autores como
HOBBES, LOCKE, BECARIA ou HART que defendem que o Direito não deve ser instru-
mento de reforço da moral, materializando desta forma a separação axiológica entre direito e
moral, pois, vivemos numa sociedade liberal, baseada no princípio do utilitarismo jurídico.
Segundo este princípio o Estado apenas tem legitimidade para tutelar os cidadãos de forma a
garantir os seus direitos, não tendo por isso a faculdade de se intrometer na vida moral da-
queles.
12

A S.ª Professora MARIA FERNANDA PALMA, faz novas considerações acerca do


bem jurídico11, refere que este não se baseia exclusivamente em interesses substanciais con-
cretos, associados a condições existenciais individuais e coletivas, mas apela a uma relação
com o Estado de Direito democrático, numa lógica de preservação da subjetividade e do re-
conhecimento dos interesses essenciais dos outros.
Diria que dentro deste conceito de bem jurídico, cabe quase tudo!

RUI CARLOS PEREIRA tem uma teoria bastante interessante, faz um paralelismo
entre a Astronomia e o Direito, ou mais precisamente, uma metáfora, em que o Direito Penal
é um Astro e a moral é um buraco negro, sendo que estes se relacionam através de círculos
concêntricos.
Mas afirma o Autor que esta gravitação comporta alguns perigos: “se o astro for atra-
ído pelo buraco negro, o direito fundir-se-á na moral – seremos então confrontados por uma
sociedade fundamentalista; se o astro se afastar do buraco negro, divagando no espaço, o
direito desvincular-se-á completamente da moral – podemos então deparar-nos com um Es-
tado totalitário laico. Importa, portanto, manter a gravitação. A analogia entre os buracos
negros e as normas morais justifica-se também porque o exato conteúdo destas não é obser-
vável. Mas as normas jurídicas constituem, precisamente, um indício da existência das nor-
mas morais”.12

11PALMA, Maria Fernanda, Direito Penal: Conceito material de Crime, Associação académica 2016, pág. 78.
12
http://repositorio.ual.pt/bitstream/11144/290/1/DOS CRIMES SEXUAIS. DO CRIME DE LENOCÍNIO EM
ESPECIAL. O NOVO PARADIGMA DA CRIMINALIDADE SEXUAL..pdf
13
7. Lenocínio Simples

O crime de lenocínio já foi, por diversas vezes, objeto de alterações ao longo da sua
vigência no Direito Penal Português.
Contudo, atualmente, a discussão prende-se com a alteração operada em 1998, que
veio a alargar o âmbito de aplicação do então art. 170.º do Código Penal. Com esta reforma,
eliminou-se o elemento do tipo, a exigência de exploração de situação de abandono ou ne-
cessidade da vítima. Decorridos, apenas alguns anos, nova reforma, voltou a alargar ainda
mais, o âmbito de aplicação com a supressão da expressão “atos de relevo”, passando o crime
de lenocínio a estar tipificado no art. 169.º do Código Penal.
Tivemos aqui uma verdadeira neocriminalização.

Com este alargamento, foi eliminado o fator pessoal, assim sendo, poderemos perguntar,
então, qual é o bem jurídico que se visa proteger?

Assim, o problema fundamental relacionado com o preceito previsto no art. 169.º, nº1
do Código Penal, é o seguinte: estará este artigo de acordo com as normas constitucionais?
Têm sido variadas as abordagens ao problema, questiona-se a conformidade com os precei-
tos:
- Arts.º 1.º, 2.º, 18.º/2, 27.º/1 da Constituição da Republica Portuguesa
- Art.º 38.º do Código Penal
- A inserção sistemática no capítulo dos crimes contra pessoa
14
8. Doutrina e Jurisprudência

Entre os principais defensores da inconstitucionalidade está JOAQUIM MALAFAIA13,


sustenta este autor, o que se pune aqui é a imoralidade, não existe bem jurídico a tutelar, daí
estarmos perante uma inconstitucionalidade. Este autor levanta um problema bastante perti-
nente que é o facto de alguns jornais e revistas, terem anúncios explícitos de oferta de sexo.
A este propósito, um advogado de Coimbra, Manuel Fernandes14, que foi acusado ele
próprio de lenocínio simples, por ter alugado casas a prostitutas, apresentou queixa contra os
jornais e revistas que publicam anúncios do foro sexual, a evidência é inquestionável. Argu-
mentou o queixoso da seguinte forma: “Os jornais e sites que publicam anúncios de "acom-
panhantes" em secções habitualmente designadas como "relax" e "convívio" - e chegam
mesmo a anunciar procura de acompanhantes por parte de organizações que se dedicam à
exploração comercial do trabalho sexual - estão não só a facilitar, promover e favorecer a
prostituição como a lucrar, e, crê, muitos milhões de euros, com ela. Uma atuação que, de-
fende, preencher o tipo criminal de lenocínio tal como está descrito no n.º 1 do artigo 169.º
do Código Penal: "Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer
ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição é punido com pena de prisão de seis
meses a cinco anos.”
Mas, as queixas foram arquivadas, por isso, Manuel Fernandes fez uma participação
criminal de 332 páginas entregue, a 21 de junho, no Supremo Tribunal. O que o levou a
considerar que, ao arquivarem as queixas e ignorarem aquilo que apresenta como provas de
lenocínio, os magistrados incorreram no crime de denegação de justiça e prevaricação. Se-
gundo o artigo 369.º do Código Penal, o crime é cometido pelo funcionário que, "no âmbito
de inquérito processual, processo jurisdicional, por contraordenação ou disciplinar, consci-
entemente e contra direito, promover ou não promover, conduzir, decidir ou não decidir, ou

13
Malafaia, Joaquim – A inconstitucionalidade, Revista Portuguesa de ciência Criminal, Coimbra Editora, 2009
14
http://www.dn.pt/sociedade/interior/advogado-acusa-jornais-de-lenocinio-e-magistrados-de-nao-aplicarem-
lei-5343752.html
15

praticar ato no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce". A pena é de prisão até
dois anos, a não ser que "o facto for praticado com intenção de prejudicar ou beneficiar al-
guém", caso em que vai até cinco anos.15
Assim, para começar, estamos perante a violação do princípio da igualdade, um ci-
dadão comum não pode alugar casas a pessoas, porque são prostitutas, os jornais podem fa-
cilitar a prostituição não estando a cometer nenhum crime! Diria que estamos aqui perante
uma dupla violação do princípio da igualdade, por um lado, discriminação entre prostitutas e
não prostitutas, por outro, desigualdade entre um cidadão e um jornal.
Neste sentido, em Outubro de 2010, o partido político PCP, apresentou um projeto de
resolução que visava o reconhecimento da prostituição como forma de exploração e, entre
outras medidas, exigia a proibição da publicação de anúncios em jornais a promover a pros-
tituição. Pelos vistos não passou de projeto.

MOURAZ LOPES, também defende a inconstitucionalidade da norma constante no


nº 1 do art.º 169.º, do Código Penal, defende que está ferida de inconstitucionalidade material,
por violação do art.º18.º da Constituição, resultado da indefinição do bem jurídico, por ela
tutelado.

PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, defende que se deve fazer uma interpretação


restritiva do tipo penal, no sentido de exigir a prova adicional do elemento típico implícito
“exploração da necessidade económica e social” da vitima prostituída.
Esta solução parece muito forçada, então o legislador retirou deliberadamente esse
elemento tipo, alargando o âmbito de aplicação, e agora o juiz vai interpretar a norma restri-
tivamente?
Não pode considerar-se que a letra da lei é mais ampla que o seu espírito quando foi
o próprio legislador que quis eliminar do texto da lei aquela exigência.

15
http://expresso.sapo.pt/sociedade/2016-08-18-Contra-os-anuncios-de-prostituicao-nos-jornais
16

JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, critica a nova formula dada pela Lei 99/2001, de
25 de agosto, que eliminou a exigência de que o favorecimento da prostituição se ligasse
necessariamente à “exploração de situações de abandono ou necessidade económica”. Só por
aqui, com efeito, o facto poderia referir-se ao bem jurídico da liberdade ou da autodetermi-
nação sexual da prostituta. Agora uma tal ligação perdeu-se, ficando apenas esta norma a
tutelar puras situações, tidas pelo legislador como imorais. Deste modo, mostrou-se em de-
sacordo com o TC nos seus acórdãos 144/2004, de 19 de março, e 196/2004, de 23 de março.
A incriminação tornou-se, na opinião deste autor, materialmente inconstitucional.16

ANABELA MIRANDA RODRIGUES é uma das principais oponentes à criminali-


zação do lenocínio simples, defende que a atual incriminação não tutela a liberdade de ex-
pressão sexual da pessoa, deixando antes transparecer uma ideia de “defesa do sentimento
geral de pudor e da moralidade”, a qual não é encarada, no presente, como função do Direito
Penal. Por outro lado, considera legítima a criminalização de condutas quando estas atentem
contra um bem jurídico eminentemente pessoal, no caso da norma em apreço estamos perante
a proteção de “bens jurídicos transpersonalistas de étimo moralista por via do Direito Penal
aproximando-nos de um Direito Penal de fachada”.17

Têm sido muitos os acórdãos proferidos pelo Tribunal Constitucional, a propósito do


artigo 169.º/1 do Código Penal:
144/2004, 196/2004, 303/2004, 170/2007, 396/2007, 522/2007, 141/2010, 559/2011,
605/2011, 654/2011, 203/2012, 149/2014 e 641/2016.

16
DIAS, Jorge Figueiredo, Direito Penal: Questões Fundamentais, pág. 124.
17
RODRIGUES, Anabela Miranda, Comentário Conimbricense, pag. 518
17

O Ac. TC nº 144/2004, de 10 de Março, cuja Relatora Conselheira foi a Srª. Profes-


sora MARIA FERNANDA PALMA, foi um verdadeiro marco referencial nesta questão, pois
fixou uma orientação seguida em todos os arestos posteriores.
A decisão foi no sentido da não inconstitucionalidade da incriminação do lenocínio
simples, por considerar não existir a violação dos artigos 18.º/2, 41.º, 47.º/1 e 58/1, todos da
Constituição.18
O acórdão em questão motivou uma profunda análise de CARLOTA PIZARRO DE
ALMEIDA, critica a autora o facto de a incriminação se justificar pelo elevado risco de se
verificar uma relação de exploração, de carência e desproteção social, tendo assim, que se
prevenir desde logo, não sendo exigida pelo tipo incriminador a sua comprovação, estaríamos
aqui perante um crime de perigo abstrato.
Ora, defende a autora que o crime de lenocínio não representa um crime de perigo
abstrato, pois “é inerente aos crimes de perigo uma relação de imputação entre a ação e o
perigo para o bem jurídico”; critica os moldes que se encontra fundamentada esta questão no
acórdão em análise “a normal associação entre as condutas que são designadas como lenocí-
nio e a exploração da necessidade económica e social, das pessoas que se dedicam à prosti-
tuição, fazendo desta um modo de subsistência”, ou seja, a mera associação pode servir de
fundamento a uma presunção; trata-se de uma presunção legal que pretende legitimar a incri-
minação do lenocínio. 19

Destaco, o Ac. TC nº 396/2007, no qual a conselheira MARIA JOÃO ANTUNES


fez declaração de voto de vencida fundamentada na exigência de dignidade punitiva prévia
das condutas, enquanto expressão de uma elevada gravidade ética e merecimento de culpa
(artigo 1º da Constituição, do qual decorre a proteção da essencial dignidade da pessoa hu-
mana), que se exprime no princípio constitucional da necessidade das penas (e não só da
subsidiariedade do direito penal e da máxima restrição das penas que pressupõem apenas, em

18
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20040144.htm
19
ALMEIDA, Carlota Pizarro, Anotação ao acórdão do TC nº144/2004
18

sentido estrito, a ineficácia de outro meio jurídico” (cf., ainda, no sentido de o artigo 18º, nº
2, ser critério para aferir da legitimidade constitucional das incriminações.20,21.

Também não se pode deixar de referir o Ac. TC 654/2011, de 21 de Dezembro22, no


qual o Conselheiro JOAQUIM DE SOUSA RIBEIRO, fez uma extensíssima declaração de
voto, onde refere que o art. 169.º, nº1, do C.P. colide com o princípio da necessidade e pro-
porcionalidade, critica o enquadramento sistemático da norma, nomeia alguma doutrina que
tem sido muito critica a este propósito, como FIGUEIREDO DIAS, ANABELA RODRI-
GUES E MARIA JOÃO ANTUNES, critica ainda a ideia geral e abstrata de dignidade da
pessoa, desvinculada de qualquer dimensão garantística da autodeterminação de quem se
prostitui.
Faz ainda uma referência à constitucionalização dos bons costumes, alojados na
ideia, em abstrato, da dignidade da pessoa humana, que motivou a crítica generalizada da
doutrina alemã à sentença do Tribunal Federal Administrativo (Bundesverwaltungsgericht),
de 15 de Dezembro de 1981.
Estava em causa a negação de uma autorização administrativa, que aquele tribunal entendeu
justificada por exigência dos bons costumes, considerando-os um elemento integrante do
“valor objetivo” do princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1.º, n.º 1,
da Grundgesetz. A crítica, em tons variados, incidiu precisamente sobre esta “conversão” de
estatuto normativo daquele critério valorativo, tida por falha de apoio constitucional.

Por último, temos o Ac. TC 641/2016, com duas declarações de voto.23


No acórdão em apreço, são levantadas várias questões, a maior parte delas repetidas

20
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20070396.htm
21
http://julgar.pt/wp-content/uploads/2013/09/06-M-J-Antunes-jurisprudência-TC-penal.pdf
22
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20110654.html
23
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20160641.html
19

nos acórdãos já referidos anteriormente, princípio da legalidade, na sua vertente lei certa,
princípio da proporcionalidade, da necessidade, mas aqui é dado bastante enfâse à questão

do voluntarismo, do consentimento como causa de exclusão da ilicitude, (art. 38.º do C.P),


não deixa de ser uma questão pertinente, mas o Tribunal não se pôde pronunciar sobre esta
questão, já que não incumbe ao TC controlar a aplicação do Direito ordinário.
No entanto, não deixaria de ser interessante a apreciação do art. 38.º do C.P., pelo
Tribunal Constitucional, a expressão “ofender os bons costumes”, não deveria estar inserida
num Código Penal!
Quanto às declarações de voto, o conselheiro LINO RODRIGUES RIBEIRO votou
vencido por entender que a norma do n.º 1 do artigo 169.º do Código Penal, na redação dada
pela Lei nºs 65/98, de 2 de setembro, é inconstitucional, por violação do artigo 18.º, n.º 2 da
Constituição da República Portuguesa.
A Reforma de 1998 – Lei n.º 65/98 -, ao suprimir do elemento do tipo legal de
lenocínio a «exploração de situações de abandono ou de necessidade económica» tornou
indefinido o bem jurídico por ele tutelado: a liberdade sexual da pessoa que se prostitui?; a
moral sexual?; uma determinada conceção de vida?; a paz social?.
Portanto, admitindo que a conduta de quem, profissionalmente, ou com intenção
lucrativa, fomenta, favorece ou facilita o exercício de prostituição por pessoa que se encontra
numa situação de necessidade económica e social necessita de tutela penal, entendendo as-
sim, que só com a reintrodução deste último elemento no tipo legal colocará o preceito em
conformidade com a Constituição.

Quanto à declaração de voto do conselheiro MANUEL COSTA ANDRADE, votou


vencido porque defende que a norma de incriminação e punição do Lenocínio constante do
n.º 1 do artigo 169.º do Código Penal é contrária à Constituição, por violação do disposto no
n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República. Assim é porque, a incriminação da conduta
20

típica não está preordenada à salvaguarda – menos ainda é para tanto necessária – de quais-
quer “direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”. Ou dito em linguagem da dou-
trina penal, não é necessária à proteção de qualquer bem jurídico. Bem jurídico que não se
descortina na pertinente área de tutela típica. Noutra perspetiva, estamos perante uma mani-
festação concreta dos chamados “crimes sem vítima”, no sentido criminológico do termo, na
linha da E. SHUR (victimless crimes ou crimes without victims. Cf. EDWIN
SCHUR, Crimes Without Victims: Deviant Behavior and Public Policy, Prentice Hall
inc.1965).
Defende o Conselheiro que o Tribunal Constitucional tem tido, quanto a esta matéria uma
atitude paternalista.
Assim, não acompanha o entendimento de que a norma constante do artigo 169.º/1, do
Código Penal, na versão vigente, satisfaça as exigências de que a Constituição da República
quanto à legitimação material da criminalização.

9. Conclusões

Em Portugal temos, quanto à prostituição, um vazio legal, penso que a regulamenta-


ção é o caminho certo, bem sei que é difícil compatibilizar esta atividade com a dignidade da
pessoa humana, mas não será este o único caminho para proteger as eventuais vitimas?
O que acaba por acontecer é que o Estado não regulamenta porque a profissão de
prostituta colide com a dignidade de pessoa humana, mas depois também não protege as
pessoas que a esta “profissão” se dedicam, parece haver aqui um total desprezo. Não colidirá,
esta atitude, com a dignidade da pessoa humana?
21

Portugal foi pioneiro quanto à Abolição da Pena de Morte, em 1867, como Marca do
Património Europeu, contribuiu para a promoção dos valores da Cidadania Europeia, com
especial enfoque nos Direitos Humanos, e para a construção de uma identidade baseada nos
valores da tolerância e respeito pela vida Humana, que informam a Convenção Europeia dos
Direitos Humanos, enquanto resultado de um processo histórico para o qual concorreram
novas conceções do crime, do criminoso e da justiça penal.

Numa carta de Vítor Hugo, conhecido ativista da causa da abolição da pena de morte,
enviada a Brito Aranha, a 15 de Junho de 1867, é expressa a felicitação a Portugal pela apro-
vação da Lei: «Portugal acaba de abolir a pena de morte. Acompanhar este progresso é dar
o grande passo da civilização. Desde hoje, Portugal é a cabeça da Europa. Vós, Portugueses,
não deixastes de ser navegadores intrépidos. Outrora, íeis à frente no Oceano; hoje, ides à
frente na Verdade. Proclamar princípios é mais belo ainda que descobrir mundos.» 24

Então, sendo Portugal reconhecido pela sua tolerância, não deveria, também quanto
a esta matéria, ter a coragem política de reconhecer esta profissão e dar alguma dignidade às
pessoas que ela se dedicam?
A justificação que a prostituição colide com a dignidade da pessoa humana, não co-
lhe, a verdade é que se houvesse alguma preocupação para com as pessoas que a esta ativi-
dade se dedicam, regulamentava-se para, aí sim, de alguma forma, poder proteger as poten-
ciais vitimas.

24
http://antt.dglab.gov.pt/exposicoes-virtuais-2/carta-de-lei-da-abolicao-da-pena-de-morte-1867-marca-do-patri-
monio-europeu/
Na Constituição anotada, JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS defendem a liber-
dade de escolha e de exercício de qualquer género ou modo de trabalho é admissível, inde-
pendentemente de ser de carácter profissional, típico ou atípico, permanente, temporário ou
sazonal, independente ou subordinado, esteja ou não estatuariamente definido25

22

Para encerrar o capitulo da prostituição cito ALEXANDRA OLIVEIRA: “a prosti-


tuição e outros trabalhos eróticos, desempenhados de forma voluntária e independente de
acordo com uma relação contratual justa, só não podem ser encarados como outro trabalho
por existir um estigma associado e porque esse estigma pode ter consequências psicológicas
negativas a quem a pratica”.

Quanto ao artigo 169.º n.º1, do Código Penal, não vislumbro bem jurídico algum.
O Direito Penal tem que ser credível, o Direito Penal tem que tutelar questões que
tenham, efetivamente, merecimento penal, não se pode ocupar de bagatelas.
O Direito Penal é subsidiário, só deve ocupar-se de questões que outros ramos do
Direito não possam resolver.
Que sentido faz um cidadão ser condenado, por arrendar uma casa a uma pessoa que
se dedica à prostituição, quando essa atividade não é crime? Não será esta solução incongru-
ente?
Acho que das muitas frases que li a respeito desta matéria, a que melhor plasma este
problema é a de que estamos perante um “Direito Penal de fachada” usada por ANABELA
RODRIGUES, mas já usada anteriormente por JESCHECK.

Provavelmente, se a prostituição fosse uma atividade legalizada, não seriam “neces-


sários” tantos lenocinas, a questão é a seguinte:

25
Constituição da República Portuguesa Anotada. Tomo I, Coimbra Editora 2005.
Como a prostituição ocorre na ilegalidade, as prostitutas que, se por um lado, podem
ser vitimas de redes de tráfico, por outro, também elas se servem das mesmas, para atingir os
seus objetivos, nomeadamente, para praticarem a prostituição em país estrangeiro;

23

Quanto “profissão” de “proxeneta”, também já é referida no Direito Romano, signi-


ficava “dar hospitalidade, assistir, tratar”. Nas fontes, o “proxeneta” surge no tratado por
Ulpiano, em fragmentos inseridos nos Digesta.26
Longe de mim, recorrer à antiguidade para atribuir algum mérito estes homens, até
porque o que estava aqui em causa era um mediador comercial, que, tanto quanto pude apurar
nada tinha a ver com a prostituição, mas o facto deste vocábulo ser usado para descrever os
homens que passam o dia a vigiar estas mulheres, pode dar alguns indícios, nomeadamente,
de que muitos também o fazem, para segurança dessa mulher, e a pedido da mesma.
Isto dito assim, é chocante, mas na verdade, estando estas mulheres a praticar uma
atividade ilegal, não tem qualquer meio de proteção, seja do ponto de vista da integridade
física, seja do ponto de vista jurídico, pois, se um cliente não quiser pagar o serviço, a pros-
tituta não pode recorrer aos tribunais.
Em suma, o lenocina, pode protegê-la fisicamente e pode obrigar o “comprador de
sexo” a pagar o preço, caso este se recuse.
Estes serão alguns dos motivos pelos quais a prostituição, ainda que não seja ilegal,
está fortemente ligada a atividades ilegais. Se a prostituição fosse legalizada, a prostituta já
não teria necessidade de recorrer a esquemas à margem da lei.

Como afirma ROXIN, a conceção de bem jurídico não é estática, deve sempre con-
formar-se com os fins das normas constitucionais, as quais estão abertas a mutações sociais.

26
CORDEIRO, António Menezes, Manual de Direito Comercial, 2ºedição, pág. 586.
Sou uma otimista por natureza, certo é que nem toda a evolução é sinal de progresso,
mas, uma certeza eu tenho, se a nossa direção for a da verdade, da transparência, teremos
uma sociedade melhor.
Por tudo isto, defendo a revogação do artigo 169.ºnº1, do Código Penal e a regula-
mentação da prostituição.
E tenho esperança que daqui por uns anos “outro Victor Hugo nos diga que vamos à
frente na verdade”.
24

Termino este pequeno trabalho com uma citação da Srª Professora MARIA FER-
NANDA PALMA:
“Para apurar se a nova orientação de política criminal é legítima, resta saber qual é o
interesse ou o bem jurídico protegido pela nova incriminação. Não deverá ser a "moralidade
sexual", que hoje cede perante a liberdade e a autodeterminação sexual. As relações sexuais
mantidas livremente, entre adultos, não devem ser punidas em nome dos bons costumes.”27

27
http://www.cmjornal.pt/opiniao/detalhe/consumo-de-prostituicao
25

10. Bibliografia

PALMA, Maria Fernanda – Direito Penal: Parte Geral. Lições profe-


ridas ao 4ºano da licenciatura em Direito, Ano Letivo 1993/94: Associação
académica da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
PALMA, Maria Fernanda – Direito Penal: Conceito Material de Crime, Princípios e
fundamentos, Princípio da Legalidade e aplicação da Lei Penal no tempo: Associação aca-
démica da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa 2016
PALMA, Maria Fernanda – Direito Constitucional Penal: Almedina 2006
Casos e Materiais de Direito Penal – coordenação: Maria Fernanda Palma, Carlota
Pizarro de Almeida e José Manuel Vialonga. 3º edição, Almedina 2004
DIAS, Jorge Figueiredo – DIREITO PENAL: Parte Geral, tomo I, Questões Funda-
mentais, 2º edição, Coimbra Editora 2007
CARVALHO, Américo Taipa de – Parte Geral: Questões Fundamentais Teoria ge-
ral do Crime, 2º edição, Coimbra Editora 2008
CORDEIRO, António Menezes – Direito Comercial, 2º edição, Almedina
ROXIN, Claus – Problemas Fundamentais de Direito Penal, 2º Edição Coleção Vega
Universidade.

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