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Do que se trata o estudo, e o que é história — longe de definições maiores e mais rigorosas —

pode ser explicado simplesmente pela genérica tripla interação entre sujeito, tempo e
espaço. Essa tripla base, além de explicar o campo de estudo da história, pode fundamentar
uma série de outros campos, como a geografia e até mesmo a biologia, num exagero. A grande
questão é que, nessa hipótese, para história, o enfoque particular se encontra no sujeito, suas
interações internas, e mais secundariamente como estas se encontram temporalmente. Ou
seja, bem mais que definir a interação entre tempo e espaço; ou tempo e sujeito; ou até que
seja estas três unidade genéricas juntas; a história busca principalmente entender o sujeito em
relação a si próprio, a seu coletivo, e como isso se encaixa no tempo apenas a título de
organização. Portanto, falar sobre história é falar também sobre os sujeitos da atualidade, que
mesmo sem plena consciência, são sujeitos históricos e tem todo uma estória pregressa que
desemboca na organização presente da sociedade.

Mas apesar de assim posto, essa noção “sujeitista” por vezes não é tão intuitiva. O que
acontece muitas vezes é que a análise fria dos fatos levam a crer, erroneamente, que a história
se faz de marcos estáticos. O que evidentemente é falso, uma vez que tais “pontos críticos”
são completamente imotivados no sentido temporal (pelo menos em menor escala); a grande
importância sempre está na interação entre os sujeitos históricos. Tanto fazia se a abolição
fosse em 1888 ou em 1884; se fosse assinada pela Princesa Isabel ou por Dom Pedro II; estes
foram completamente acidentais. As coisas, na grande maioria das vezes, se constroem em
base, em âmbito menor; e escalonam até que se fazem um ponto visível no varal
historiográfico. E como já citado aqui, um ótimo exemplo desse processo, que erroneamente é
visto apenas pelo ponto resultante, é o fim da escravidão no Brasil.

Evidentemente, o fim da escravidão não se deu simplesmente pelo bel-prazer de dona


Princesa Isabel, ou por motivação de uma série de intelectuais de renome (e nome
tradicional) , como Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, entre outros. Assim, é mais que justo que a
data de maior importância para o movimento negro não se encontre nesse marco estático de
13 de maio, que fora a Lei Áurea. Claro , é impossível dimensionar em um dia o que fora, e é,
todo um movimento; mas se assim feito, que pelo menos se leve em conta a luta do sujeito
histórico afetado, o negro escravizado em solo brasileiro. Nesse sentido, apesar de não
imediata tal concepção, até mesmo do próprio movimento, felizmente no Brasil se fez bem-
sucedida uma revisão de tal simples ideia.

Na década de 70, muito inspirado na obra o “Quilombo dos palmares” de Edson Carneiro,
emerge um movimento ainda pequeno em Porto alegre e no Rio Grande do Sul para tal
mudança. A nova proposta de data de homenagem a causa negra se encontrava no dia 20 de
novembro, o dia em que morre Zumbi dos Palmares; um verdadeiro símbolo da luta negra real.
Rapidamente o movimento foi aderido , e em 78, o recém fundado Movimento negro
Unificado também começa a reclamar tal data como o verdadeiro dia representativo da
liberdade negra.

Na atualidade, o 20 de novembro é uma data nacionalizada: “o Dia da Consciência Negra”.


Apesar de isso ser um ato pequeno, pela mera significação, já representa um grande avanço
na noção histórica-sociocultural brasileira. Graças a esses pequenos ajustes que pouco a
pouco o fim da escravidão no Brasil vem deixando de ser visto como um movimento de pele
clara e olhos azuis. Se aproximando da essencial verdade histórica: nunca houve uma elite
preocupada em inserir o negro, de fato, na sociedade. O fim da escravidão, bem como todos
os outros ganhos do movimento negro, em essência, só falam sobre a luta do próprio.
A evolução ideológica dos movimentos negros

No início do século XX, apesar dos negros já serem oficialmente “des-sinonimizados “ a


escravidão, a “sociedade” (pelo menos a alta cúpula) ainda se mostrava extremamente hostil a
essa significativa parcela de população brasileira. É básico o entendimento de que os negros
não foram, de modo algum, “indenizados” no pós-escravidão. Na verdade, nem a inserção
mínima se fez: os negros foram literalmente abandonados à própria sorte pelo estado. De
modo a ser tão estrutural a diferenciação, que até mesmo as consequências desse abandono
eram vistas como um “defeito de cor”. Sequer as tentativas de sobrevivência, de
autoidentificação, de ascensão social, eram vistas com bons olhos pela aristocracia.
Basicamente, tudo que se referia a cultura negra e ao negro brasileiro no início do século XX,
fazia a elite virar o nariz e gritar vadio. Mas mesmo nesse cenário angustiante e massacrador ,
surge , inevitavelmente, os primeiros lampejos do ainda incipiente “movimento negro”.

Inicialmente, seria cobrar demais que negros recém afeitos a liberdade representassem ideais
e tivessem um modus operandi próximo ao que se considera justo nos dias de hoje. O
movimento negro nasce no popular, no básico, sem reinvindicações maiores; inicialmente na
forma de uma imprensa especializada (em São Paulo principalmente). Essa imprensa surge e se
insere o, basicamente, no “meio negro” , como o “militante” José Corrêa Leite, fundador do
jornal “Clarim D’alvorada”, define. Meio este que ,na verdade, não se tratava de nada mais
que o mesmo “mundo” que os brancos viviam, só que pintado de preto. Bailes; clubes; a
questão do emprego; da disputa de vagas com imigrantes; casos da cidade em geral. Mas tudo
isso a partir do ponto de vista do negro; e do mesmo modo: para anegro. Especialmente sobre
a questão do emprego: nasce daí uma verdade particular e identitária, que distinguia, mesmo
que ainda de uma forma um tanto inconsciente diametralmente a posição do negro.

A grande questão do negro, factualmente, no início do século XX, era fugir do estigma da
vadiagem, tão destrutivo ao passo que desconsiderava a presença do próprio. Como se fosse
“inerentemente vagabundo”, logo o seu status era apenas sua culpa, e logo sua opinião não
tinha validade nenhuma. Mas claro, a “sociedade superior”, baseada no próprio estigma e em
uma serie de teorias raciais sem fundamentos sérios, simplesmente preferia perdurar tal
segregação que hipocritamente criticava. Nesse contexto surge a imprensa negra, que muitas
vezes denunciava casos de segregação em vagas de emprego; acerto de contas; e termos
afins. Mas a imprensa por si só não tem uma moeda política, apesar da voz; e assim, quanto
mais se passava, mais cresciam os anseios por um movimento organizado, “de carteirinha”. É
nesse contexto, mais como uma associação atuante em causas operárias, que surge o primeiro
movimento negro brasileiro: a Frente Negra Brasileira.

A Frente Negra Brasileira, FNB, foi fundada em 1931 por Arlindo Veiga, Guaraná Santana ,
José Correia Leite, entre outros nomes já atuantes na imprensa negra. O principal traço e
inovação que esse movimento traz a “causa negra” , é sua essência militante e política. Como
grande parte da pregressa imprensa negra, a visão sobre o próprio negro difere um pouco as
conceituações mais atuais. Quase todos os “movimentos” negros pré e durante a década de
30 tinham assumido uma postura positivista. Acreditavam que o negro não precisava
necessariamente reconstruir sua identidade, assumir e reivindicar aceitação dos hábitos e da
cultura; mas sim se adaptar, progredir nas regras da sociedade. E assim a FNB progrediu; muito
atrelada aos movimentos populistas de seu tempo, a própria política de Vargas; e apesar de
todas as contradições postumamente engendradas sobre isso, fato é que foi importante tal
postura. A FNB mostrou que o negro , antes “inerentemente” vadio , podia muito bem se
adaptar aos “usos e costumes” da sociedade dominante; e não só isso, mas como ainda sim se
destacar politicamente. Em síntese, foi um movimento a seu tempo, e que por último não só
se marcou como tal, mas elevou nomes importantes que ainda marcariam a luta negra no
brasil.

Umas das figuras importantes que se engendrou na aurora do FNB , foi o gigantesco ativista e
dramaturgo Abdias do nascimento. Ele , viria a ser um dos principais fundadores do Teatro
experimental do Negro, o TEN; como também do respectivo jornal institucional , O Quilombo.
Se por um lado o Teatro estimulava o senso artístico , e de certa forma também instruía e
educava; o jornal politizava os assinantes, e se utilizava de uma nova abordagem que
permearia todo o ativismo negro. Diferentemente da imprensa negra inicial, do FNB, o TEN e
seu jornal O Quilombo, organizado de 48 a 51, abriam um espaço de debate racialmente
misto, com tanto autores negros, como brancos. Claro, falando em prol e positivamente sobre
a causa. Nessa celeuma , célebres autores como o grande Gilberto Freyre escreveram ao
jornal. A proposta, no fundo, era estabelecer nem uma identidade exclusivamente africana;
nem uma identidade exclusivamente brasileira, como fizera a FNB por exemplo; mas sim
estabelecer uma identidade afro-brasileira. Não mais desconhecendo a cara da negritude,
simplesmente se adaptando ao cenário; mas se introduzindo como uma mistura particular, e
que é tanto brasileira como qualquer outro costume. A questão então do movimento negro na
década de 40 e 50 não era mais a introversão e expurgação negativa de “maus hábitos”, mas
sim uma extroversão identificatória e plural, que buscava reclamar um espaço digno a
semente africano. Portanto, já na década de 50 vemos o movimento negro se delimitar nos
moldes atuais.

Infelizmente , com o golpe militar de 64, a pauta racial foi drasticamente apagada do debate. O
Tem acaba em 61, já com o florescer dos ânimos golpistas e durante o golpe, praticamente
não se existe uma movimentação nesse sentido. Mas já com o “afrouxar” das rédeas
militares , no final da década de 70 , começam a “reaparecer” no debate nacional estas
reinvindicações, que de fato nunca pararam de existir, só foram ensurdecidas pela ditadura. E
nesse cenário que surge e se delimita a forma mais moderna do movimento negro.
Em 78 surge no Brasil um movimento preponderante e essencial ao entendimento da questão
racial atualmente: nasce o Movimento Negro Unificado. Encabeçado por, entre outros, mas
distintamente, Lélia Gonzáles. A partir de uma grande liderança feminina, a questão racial
começa a ganhar transversalidade. Finalmente começa a ser levado em consideração o fator
triplo de classe, raça e gênero. E até hoje, pelo menos em essência, é assim que o movimento
negro se apresenta: indissociável a questão social; e ainda, mais timidamente, a questão de
gênero.

Vemos assim que a “causa negra” no Brasil teve seu processo histórico de evolução até chegar
no status atual. Inicialmente, um movimento até um tanto contraditório aos olhos atuais; mas
ainda sim indispensável. Tal como é até hoje; e provavelmente que ainda mudara de certa
forma. A história se progride assim, e tudo só terá fim quando se chegar a uma igualdade
minimamente razoável.

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