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ATENÇÃO AOS QUE RETORNAM

Gaudêncio dos Santos

Meu pai desceu primeiro do veículo. Minha mãe terminou pagamento com motorista, em

seguida pontou em frente de casa. Eram atenciosos quando eu e minha prima éramos crianças.

Davam comida na boca, brigavam para terminar o prato ao fim, e nos colocavam para dormir toda

tarde. Parecem autoritários, colocam horários para entrar e sair, castigos, estipulam prazos para todo

tipo de eventos e obrigações. Deveriam ser menos espectadores. Iam a casas vizinhas: ouviam,

observavam, traziam seus comentários para nós. Como são, não o saberia dizer. Meus pais e eu nos

distanciamos desde muito, quando os problemas deles começaram ficar grandes e passaram ser

condizentes apenas a eles. Fecharam minha prima e eu fora das viagens, dívidas, mentiras de

empregos diversos. Nisto, eram muito semelhantes a mim. De tudo, restava comprazer.

- Que saudades eu senti! – falei, abraçando ambos. Deixaram malas algumas na calçada ao

lado nosso, motorista seguiu dia de trabalho.

Pai meu era quem tinha semelhança maior comigo. Estatura mediana, quilos a mais, olhos

castanho-escuros, fios crespos moldando poucos cachos no topo de princípio calvo na cabeça.

Mantinha a barba por fazer. Sabia que trabalho não lhe deixava muito tempo. Minha mãe é dois

anos mais velha que ele, maior em altura, com cabelos longos avermelhados, maxilar repartido.

Suas mãos grandes alcançaram meu rosto, fez carinho, e me senti protegido com seu calor materno.

Agarrei-me a sensação de quando era mais novo e carregavam-me por toda casa no colo. Era como

se a vida por si só fosse capaz de tornar mais frágil o laço que nos mantinha unidos. Já não

questionava mais se este era escolha ou obrigação. Desejava-o irrefutavelmente. Quando nos

afastamos, prantos formavam vista de todos. Não precisei de perguntar como foi a viagem,

iniciaram relato antes.


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- Entrei no avião e sabia que ia ser um retiro espiritual renovador. - disse meu pai, enquanto

entrávamos em casa.

- Nunca trabalhamos tanto. – concordou minha mãe.

- Que bom que se divertiram nas férias. - disse eu.

Sentamos todos à mesa, enquanto os dois almoçavam famintos. Pratos ficavam vazios.

Salada de cenoura era minha preferida, comi pouco. Precisava ainda de fome, já que arroz de meu

pai estava pronto no forno. Levantou-se, apanhou travessa quente, serviu-nos também à mesa.

Cinco horas e onze minutos da tarde, segui caminho à Leste. Últimos raios de Sol do dia

lançavam-se em minhas costas. Céu esteve roxo e laranja, com reflexos azuis, depois cinza.

Faltavam atenções minhas em detalhes ao redor, pressa de destino. Caminhei pelas ruas e só reduzi

passos na volta, já com malas restantes em mãos, que chegaram em atraso.

Retorno para casa, som de patinhas tornou frequente. Olhei para trás duas vezes quando me

distanciava de aeroporto, distingui patas que me seguiram. Era Auxi, conhecido nas redondezas. O

gambá correu perto de mim após ser descoberto, e continuou ao meu lado pelas ruas. Moradores da

cidade que presenciaram, conseguiram entender não. Passei por senhora que mirou Auxi, sorriu.

Não compreendia motivação do animal em acompanhar duas esquinas longe do bairro. Parei no

semáforo e depois atravessei rua, e foi quando Auxi grunhiu e recuou a Leste, de onde veio. Dois

pedestres gritaram no início da faixa, encolhidos. Voltei cabeça para frente e segui com o pouco de

dignidade que restava, tomado pela vergonha da rua, e o que se sabe que outro sabia. Maldito

gambá! Considerava que lhe faltavam neurônios, decidido continuar volta, quando me deparei com

menino de idade minha. Assobiava, com sua altura mediana, cabelos longos e rosto familiar, que se

materializou em direção minha. Quase esbarramos, desviei corpo e resmunguei:

- Devia ficar assobiando caminho dos outros não.

Era semelhante Astolfo. Sorriu, cauteloso, e me acompanhou. Parecido com amigo,

concordei que fosse sentido mesmo de casa. Esquina juntos, em silêncio, entreguei-lhe uma das
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malas para dividir peso. Calçados estalavam leve pela rua, pés que assentavam como de amigo meu.

Admirei tamanha semelhança, e disse:

- Não podemos ir para casa, pais estão lá e são impossíveis visitas agora. - mudei passos em

sentido do centro comercial de Tatuí. Lá dentro, escolheria mesa na praça de alimentação, perto da

lanchonete. Passaria o resto de dia com igual de meu amigo, era lugar bom se estivesse com fome.

Continuei: - Nome qual é?

- Não sei, faltam lembranças.

Voz era mesma. Estava admirado, realização de amizades. Perplexidade tamanha, decidi

mantê-lo perto. Avistei o centro de compras, cruzamos rua, e adentramos portas. Seguimos para

praça de alimentação. Talvez realmente estivesse com fome.

- De tudo? - quis saber.

- Memória se foi. - concordou, olhou-me por instante, e fez reconhecimento: - Gau.

Chamamento que completou encheu-me de alegria. Somente Astolfo me chamava de Gau no

mundo. Só poderia ser Astolfo. Abracei-o ao lado da lanchonete, umidade nos olhos, e no chão, a

mala que antes segurei. Soltou bagagem em seguida, e fechou braços ao meu redor também.

Contentamento meu era maior que tive. Sorri, ocupamos assento. Pedi lanche de berinjela e ele de

carnes vermelhas malpassada. Suco não quis. Esperamos pela comida, e ao lado, fixava olhar no

restaurante de frutos do mar - eram pratos reconhecidos na cidade, diziam que vinha na culinária

peixes direto de Peruíbe. Estive prestes a questionar pensamentos, curiosidade tamanha no encarar

dele, quando perguntou:

- Tem medo de conchas?

- Não, são instalações. - respondi, observando inúmeros búzios pregados na fachada do

restaurante. Cascas maiores de caracóis formavam estrela ao lado do letreiro. O atendente

gesticulou para nós, receptivo com cardápio em mãos.


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- Ainda limpas e coladas na parede, me parecem terríveis. Viviam animais dentro, antes. -

ponderou, reflexivo, e lembrou-se: - E borboletas, tem receio?

- Menos, são bonitas.

- Insetos são iguais, se não gosto de um, de todos. Acho beleza pior, mascara sujeira.

Quando vejo, corro sozinho. É vergonhoso.

Lanche nosso chegou e Astolfo engoliu pão, hambúrguer, experimentou suco meu. Disse que

não gostou da bebida. Arrotou, pediu copo com água. Comia, e me acalentava coração.

- Desacredito ainda. – admirei, organizando papéis das bandejas. Empurrei copo de água

vazio em cima do meu, pratos juntos, e levei tudo ao balcão geral. Tornei sentar e o ouvi.

- Fantasma não sou.

Caiu noite, brilho de estrelas logo perdeu graça. Astolfo atravessou portas do condomínio e

saiu. Sussurros em ouvidos, aproximações de corpos, beijos ardentes. Percorreu mãos em minhas

costas sob tecido da camiseta, fui pele toda em arrepios, deslizou dedos que encontraram arranhões.

Encostamos um contra outro na fachada lateral do prédio, justificou aperto em braço meu. Mãos em

sua cintura, dela em músculos meus, e lateral do rosto virou-se para lábios antes compatíveis.

Orelhas pareceram menos sensíveis e cabelos em embaraços ao toque. Pausou ouvidos. Pediu que

repetisse retorno de seu duplo. Beijei-a, e correspondeu, distante em momentos de pergunta. Ali,

surgiu ausência entre nós, abriram pontes e túneis, e podíamos notar. Evitei percepção, mas ao

dentro o sabia, e na distância do tempo recorreria à cena essa. Jeito outro não encontrava agir.

Cabeça eram pensamentos de manter proximidade, mas se perdem os desejos do outro, resta nada.

Tem medo que afasta, e mais forte, se é que existe, recolhe lembranças ao fim.

- Voltou.

- Partiu. Ao menos, pensei.


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- Também eu. - lamentei, e desconsiderei afirmações mais. Estranhou ela, mas nada disse

quando afirmei passeio nosso pela refeição do centro de comércio. - E, não tem lembranças de dias

últimos. Nada, desde que se foi.

Astolfo mirou dentro de alma minha, calou-se de palavras muitas, e ainda próxima, suspirou.

Respiração não tinha, mas eu já ofegava por dois. Receio dela tocava em mim. Senti-me

contaminado, tamanho desejo de nunca deixá-la. Parecíamos já distantes, assustados. Complicações

muitas de toda vida. Quis choro vir, garganta secou completo, oscilei dizeres.

- Partida sua é em breve. - despediu, e também eu sentia afastamento nosso. Inevitáveis

ímãs, ora lados opostos.

- Nunca. Estarei em sua plateia, cena famosa de teatro. - sonhos de atuação coloriram

sorrisos da futura atriz. Beijei testa, bochechas e abraçamo-nos. Antes de tomar caminho para casa

junto de meus pais, permitiu ainda devaneios outros.

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