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Sumário

1. Vazio 3
2. Medo 20
3. Remorso 33
4. Fúria 48
5. Lembranças 58
6. Paz 65

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Vazio
Sem memórias ou sequer noção de onde estava, um
garoto coberto por um manto levanta da grama fria e
molhada olhando para todos os cantos daquela floresta
densa e escura, rodeado por uma densa neblina prateada,
iluminado pelos poucos raios de luz da lua que penetravam
as folhagens das árvores que se estendia para muito além
de onde seus olhos podiam enxergar.
Com frio e completamente desorientado, o garoto olha
ao seu redor e percebe duas adagas bastante desgastadas
que estavam jogadas no chão, no local que ele havia
acordado, e ao pôr as mãos em seu quimono percebe que
havia um único pedaço de papel que possuía apenas uma
frase: “Mate os demônios para recuperar o que é seu por
direito”.

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No momento em que terminou de ler essa mensagem,
quase que de imediato, o garoto ouviu um barulho como o
de uma pequena criatura vindo com velocidade em sua
direção e poucos segundos após se virar na direção do
barulho, surge uma criatura completamente deformada e
que remeteu ao garoto a mensagem que acabara de ler,
aquilo não poderia ser nada além de um demônio.
Ao olhar para suas mãos, o garoto se percebe segurando
as adagas que havia encontrado completamente cobertas
por um líquido viscoso que remetia levemente a sangue,
porém muito mais denso e escuro, e ao dar um passo para
frente, percebe que havia algo tocando seu calcanhar. A
criatura que avançara em sua direção havia sido cortada ao
meio e tentava de forma falha lhe alcançar usando a pouca
força que restava. Ao olhar para a criatura e novamente
para suas lâminas, o garoto percebe que havia de alguma
forma acabado com a criatura, e imediatamente após isso
lhe vem uma forte dor de cabeça, tão forte que ele não
podia aguentar, tão forte... tão... familiar?

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- Roppu!
Nesse exato momento aquele garoto tinha absoluta
certeza sobre uma coisa, a primeira coisa que ele
compreendia com plena certeza depois de acordar naquele
lugar frio, escuro e desconhecido.
- Sim.... Esse é meu nome.... Meu nome é Roppu! –
Exclama o garoto recém nomeado para si mesmo num tom
de certeza e excitação, por finalmente ter uma resposta
para uma pergunta.
Voltando a realidade que se encontrava e processando
racionalmente as informações que foram obtidas, Roppu
percebe que se quiser entender o que aconteceu, de onde
veio, e quem ele era, terá que continuar de alguma forma a
matar demônios, mesmo sem entender os motivos por trás.
E se quiser ter alguma esperança de algum dia descobrir
algo além do seu nome, essa é uma jornada inevitável em
sua vida.
E então, respirando profundamente aquele ar frio e
úmido da madrugada, Roppu olhou para suas adagas ainda

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sujas pelo sangue do demônio que acabara de matar, e
quase como um juramento repetiu em voz alta as palavras
que ecoavam incessantemente em sua cabeça:
- Eu vou matar os demônios e recuperar o que é meu.
Completamente desgastado mesmo sem entender o
motivo, Roppu se jogou sobre a cobertura de uma pequena
árvore isolada das demais se enrolando em seu longo
manto. Segurando suas armas e recolhendo o misterioso
papel de volta para dentro do quimono, ele dormiu
enquanto passava por sua mente todos os porquês
possíveis. Aos poucos caia cada vez mais no sono
profundo e gradualmente todas as dúvidas apenas
desapareciam mesmo sem uma resposta, e a medida que ia
se distanciando de todos esses pensamentos uma voz
começava a aparecer do fundo de suas poucas lembranças,
uma voz calma, suave e acolhedora, quase como uma
melodia profunda que produzia um calor intenso no fundo
da alma do garoto. Roppu não sabia quem era nem se
importava, apenas queria continuar a ouvir a suave

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melodia que abraçava com força cada parte de seu ser.
Essa voz ficava mais e mais perto, cada vez mais perto...
mais perto... mais quente... mais e mais....
- Roppu!
Ele abriu os olhos com a esperança de ver quem lhe
chamava, mas apenas se deparou com a mesma paisagem
que estava antes de pegar no sono, porém com algumas
diferenças, já que a neblina havia se dissipado e o sol
agora brilhava forte quase em seu auge, pássaros entoavam
seus cantos e pairavam no céu. As árvores que apenas
eram grandes sombras que preenchiam a vista agora
apresentavam a folhagem colorida de rosa e repleta de
flores e por mais que ainda estivesse perdido, o garoto
agora ao menos se sentia mais acolhido pela grande
floresta de cerejeiras, as majestosas Sakuras.
Ao levantar e se espreguiçar, Roppu começa a caminhar
em direção do nada, apenas procurando se situar no
ambiente enquanto observava as flores de cerejeiras
dançando no ar até chegar ao chão, e no momento que se

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abaixou para pegar uma delas, o garoto ouve algo que se
parecia muito com os barulhos que ele de alguma forma
produzia e entendia: o garoto finalmente podia ouvir
pessoas. Seguindo em direção aos barulhos, Roppu vê uma
estrutura com rodas sendo puxadas por animais que
comportava pessoas em seu interior oco e ao se aproximar
ouve de uma daquelas pessoas:
- O que você está fazendo aqui? - Grita um velho
homem barbado – Você sabe o quão perigoso é andar por
essas bandas? Vários viajantes desamparem neste trecho!
Roppu apenas encarou o homem sem saber o que falar
ou como agir.
- Entre na carroça garoto, nós vamos para um lugar
seguro! – fala gentilmente uma garota enquanto a carroça
para de se mover.
Sem entender o que ocorria, o garoto apenas seguiu as
ordens e embarcou na estrutura de madeira sem pensar
muito, ele apenas desejava sair daquele local e ir de
alguma forma em direção aos demônios. Ao embarcar,

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Roppu vê um espaço pequeno, porém vazio, apenas com
alguns barris e mudas de roupa, mas ainda assim se sente
estranhamente confortável.
– De onde você vem moleque? - Perguntava o homem
com uma feição descontraída olhando para o céu enquanto
conduzia os cavalos – É incomum ver jovens como você
por aqui, ultimamente nós mal temos visto gente. Dizem
que tem criaturas sondando a área, seres tenebrosos que
sugam as almas dos viajantes e tomam controle de sua
mente se você não tomar cuidado...
Roppu, que mantinha sua cabeça olhou para o homem
quase que instantaneamente, procurando ouvir melhor o
que o senhor tinha a dizer
– Para com isso pai! – retrucou a menina interrompendo
a fala do homem, que esboçava um sorriso malicioso no
rosto – Não se preocupe com isso, são apenas histórias de
viajantes sem nenhuma credibilidade, meu pai sempre faz
essas brincadeiras tolas. Bem, acho que esquecemos de nos

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apresentar, meu nome é Sora, e esse velho é meu pai,
Daigo.
- Se eu sou velho é apenas por ter acumulado
experiência e conhecimento, pirralha mimada, não esquece
quem te achou jogada naquele lixo.
- Não é como se isso tivesse melhorado muito a
situação...
Enquanto ouvia a conversa, Roppu estava
completamente perdido em seus pensamentos, e surdo pela
voz de sua própria consciência. Como iria cumprir seu
objetivo? Para onde está indo? Porque essas pessoas
resolveram lhe dar carona e como elas conseguem se
comunicar e se entender tão bem? Novamente, o garoto se
encontrava perdido em uma maré de porquês sem saber a
resposta de nenhum deles, até que...
- Oi? Você está bem? Consegue me ouvir? – A garota
chamava Roppu enquanto cutucava sua perna, pois o
mesmo estava imóvel há um tempo.

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Subitamente, todas as vozes foram caladas e Roppu
voltou a si, levantando a cabeça e vendo Sora
extremamente perto dele, o que por alguns segundos o fez
ficar confuso e desconfortável, porém ele percebeu algo na
garota: sua voz era extremamente parecida com a que
passava em sua cabeça, pois ao contrário das outras que
ouvira, essa era suave e delicada, e em um ato de
ingenuidade, Roppu pergunta:
- O que... O que é você?
Imediatamente após a pergunta, o garoto que
aguardava por uma reposta vê a menina ficar
completamente vermelha e paralisada, enquanto o velho
gargalhava ao fundo.
- Talvez, você nunca tenha visto uma como esta, mas
saiba que por incrível que pareça, ela é mulher. – dizia
Daigo em um tom de chacota enquanto Sora rapidamente
se apoiava em um dos barris escondendo seu rosto com as
mãos.

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- O que é ... “mulher”? – Perguntava novamente Roppu
sem entender a situação que se encontrava.
- Que tipo de pergunta é essa, garoto? Como você pode
não saber o que é uma mulher? – Dizia o velho em um tom
de indignação, enquanto Sora tirava as mãos do rosto que
agora apresentava uma feição curiosa.
- Eu não sei .... Eu não lembro .... Não lembro de nada!
- Hummmm, interessante, aparentemente você perdeu
suas memórias, mas você pode ao menos lembrar seu
nome? – perguntava Sora, que novamente se aproximava
do garoto como se quisesse estudá-lo.
- Meu nome ... é Roppu.
À medida que o tempo passava e a carroça continuava a
se mover, o garoto se sentia cada vez mais confortável, e
enquanto observava a forma fluida com que aqueles dois
conseguiam se comunicar e interagir, um calor em seu
peito ia tomando conta de todo seu corpo, algo que fazia
Roppu sentir vontade de permanecer naquele lugar e
esquecer de todo o resto.

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- O que você pretende fazer, garoto? Possui algum
objetivo ou sequer tem algum rumo para seguir? –
perguntava Daigo com uma voz sonolenta.
- Eu .... Eu devo matar demônios! – respondia Roppu
enquanto pegava o papel que guardava em seu quimono.
Ao dizer isso, um silêncio se espalhou pelo ambiente.
Sora, que apresentava uma face descontraída, começa a
encarar Roppu com seriedade e um estranho brilho nos
olhos e Daigo dá uma tragada em seu velho cachimbo.
- Sabe, garoto, algumas pessoas pensam em demônios
como histórias feitas para assustar crianças, outros os
temem e os repelem com ajuda dos deuses, enquanto
alguns os cultuam, nenhum deles está certo ou errado, mas
todos tratam isso como verdade. Se você deseja matar
demônios, siga sua trilha sem arrependimentos e sem
deixar que os outros te digam o contrário, viva por seus
princípios e leve-os para sua cova, seja ela qual for... Mas,
enfim, quem sabe nós não achamos algum demônio no

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caminho, não é mesmo? – dizia o velho que começa a rir,
novamente com sua postura largada e descontraída.
Enquanto Daigo discursava, Sora percebe um estranho
papel na mão de Roppu, o qual apresentava uma sequência
de símbolos nunca antes vistos pela garota, o qual faz seus
olhos brilharem e produzir uma expressão de fascínio.
- Roppu, o que é isso na sua mão? – perguntava a garota
tentando conter suas emoções.
-“ Mate demônios!”
Sora já não podia mais se conter ao perceber que o
garoto entendia aqueles símbolos estranhos, e antes que
pudesse perceber, o papel que estava nas mãos de Roppu
agora era brandido como um troféu por Sora.
- O que podem ser esses símbolos? Talvez uma
linguagem arcana? Ou talvez ....
- Sora, quantas vezes eu já te disse para parar de roubar,
agora não é mais a única forma que você tem de
sobreviver – dizia o velho com um tom mais grave e firme
que o normal, encarando a menina que se encolhia

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enquanto devolvia o papel para Roppu – Você não precisa
e nem vai roubar enquanto estiver comigo, achei que já
tinha deixado isso bem claro!
- Sim, pai, foi apenas .... errr.... você sabe.... instinto!
- Se você se deixa levar por seus instintos então não
passa de um animal! Educar crianças não é um trabalho
fácil, se ao menos eu tivesse encontrado uma que não fosse
uma delinquente... francamente...
O sol já deixara para trás seus últimos rastros de luz, a
visão para um viajante naquela escuridão que se
intensificava, gradativamente, diminua até ser
praticamente nula sem a ajuda de uma fonte de luz externa,
aquela colorida e ensolarada se mesclava em vários tons de
uma só cor, enquanto no céu nuvens se aglomeravam e
tornavam quase impossível uma observação da lua ou das
estrelas, justificando o breu que se formava e trazia junto
uma densa neblina.
- Acho que por hoje já é o suficiente, melhor prender os
cavalos e parar a carroça. – dizia Daigo enquanto conduzia

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a carroça para dentro das árvores – Sora, acenda a
lanterna!
Enquanto Sora pegava uma estranha gaiola metálica
com um miolo branco, Roppu observava sem entender o
que era aquele objeto, até o momento em que a garota com
uma pequena faca e um pedaço de metal, fizeram a
lanterna brilhar.
Sem entender o que era aquela coisa, com uma
expressão confusa e assustada, Roppu se jogou contra a
parede do veículo, e no momento que estava preste a sacar
suas facas, Sora e Daigo começam a rir, o que faz o garoto
desistir da ação e ficar mais confuso do que estava.
- Não se preocupe, garoto, esse não é um dos demônios
que você deve matar. – dizia o velho a que não conseguia
conter o riso.
- Isso é apenas uma das mais importantes e
revolucionárias invenções da humanidade, algo que mudou
o rumo da história e que nos faz estar aqui hoje, contemple
a encarnação do desejo: o fogo! – Sora apresentava em

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tom de fascínio, com um intenso brilho nos olhos enquanto
apreciava a chama.
- Quente.... Isso é quente! – dizia Roppu enquanto
observava o fogo e sentia o calor penetrando sua alma.
- Apenas tente não se queimar, garoto, as coisas mais
belas desse mundo são as mais perigosas.
Ao parar perto de um pequeno lago e amarrar os
cavalos em uma árvore, os três descem da carroça e Roppu
observa enquanto Sora junta alguns gravetos e folhas secas
no chão e ascende com o lampião. O garoto também
observa enquanto Daigo pega da carroça um recipiente de
barro e enche com o conteúdo de um dos barris e logo em
seguida adiciona um pouco de água do lago. O velho apoia
a panela em uma estrutura de gravetos construída em cima
da fogueira e senta no chão.
Roppu vê vários grãos brancos dançando na panela
enquanto água desaparece vagarosamente, e em seguida
percebe um perfume diferente de qualquer outro que se

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lembre, algo que despertava no garoto instintos primitivos,
algo que lhe dava fome.
Sora trazia em suas mãos alguns outros recipientes
menores e palitos, e serviu a Roppu uma porção da
refeição.
– Tome um pouco de arroz, Roppu, espero que goste da
comida do velho. – dizia a garota entregando um dos
pratos a Roppu.
– Cuidado com a língua menina. – retrucava Daigo –
Há quanto tempo você não come, garoto?
– Eu ... não sei! – respondia Roppu enquanto encarava o
prato como se fosse a primeira vez que visse algo como
aquilo.
Ao provar o arroz, o garoto podia sentir a textura e o
sabor dos grãos como uma melodia que tocava sua alma e
por mais simples que fosse, era um prazer ligado aos seus
mais primitivos instintos e que não podia ser explicado
com palavra, apenas podia ser compreendido.

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– Aparentemente, você tem parâmetros extremamente
baixos, Roppu, isso não é nada além do mais básico para
sobrevivência, mas aparentemente alguém agora aprecia
sua comida velho. – falava Sora em tom de desdenho.
– Calada, criança, apenas coma sua comida!
Enquanto se desfaziam da fogueira e se preparavam
para dormir na carroça, Roppu sente algo estranho, porém
familiar, como uma aura que se aproximava, acelerando
seu andar enquanto tentava se ocultar no breu. Aquela aura
remetia o garoto a algo, mas o que era afinal? Qual ser
repleto de ódio e com uma sede de sangue inextinguível
podia ser esse? Onde já havia sentido isso?... esse mal ...
esse sangue ... SANGUE?!
Não restava dúvidas, tudo dependia de seu próximo
movimento. Roppu tinha certeza do que lhe esperava se
virasse as costas, sacando suas adagas e tomando coragem,
o garoto encara a aura, e então, novamente se vê cara a
cara com aquilo que buscava:
- Demônio!

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Medo
Dessa vez, algo havia mudado, não era uma pequena
criatura de aparência moribunda e senil, era algo um pouco
maior, mais robusto, com presas e garras, olhos que
resplandeciam um vermelho carmesim intenso, e um
detalhe que chamava bastante atenção ao garoto: o fedor
de sangue impregnado em suas patas. Tal criatura de
formato felina definitivamente não pertencia a esse mundo
e conforme erguia suas patas, crescia cada vez mais e
mais, transformando-se em um monstro de formato
avassalador.

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Mesmo em frente ao perigo, alguma coisa não parecia
certo ao garoto, mesmo que quisesse, nenhum músculo de
seu corpo de mexia, quase como se seu corpo fosse
tomado por um profundo pavor, Roppu se afundava em um
infame sentimento que consumia cada parte de sua mente e
posteriormente seu corpo. Ao perceber todos os seus
sentidos desligando um a um, o garoto se via cada vez
mais afundado em um profundo breu que lhe acorrentava
cada parte do corpo.

Roppu apenas gritou com sua alma, o mais forte que


pode, como sua última esperança e tentando se livrar de
qualquer pensamento, agarrando-se firmemente a suas
adagas, com sua visão completamente turva e com todo
seu corpo dormente, e avançou em direção ao monstro,
colocando sua vida em cada passo. Mesmo indo em
direção a fera, o garoto se via afastando-se cada vez mais
do seu alvo, independentemente de sua vontade, seu corpo
não o permitia confrontar tal perigo.

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Mas, antes que pudesse ir muito longe, uma sombra
passa por cima do garoto, barrando seu caminho e
imobilizando-o. Com tal pressão em seu peito e sentindo
como se cada pedaço de seu corpo fosse esmagado, Roppu
não via mais nada que pudesse fazer além de aceitar...
Mas, afinal, aceitar o quê? Pelo que esteve lutando que o
fez entrar em tal posição? A que devia sua própria
existência? Sonhos, esperanças, o garoto nunca lembrava
de ter construído qualquer expectativa sobre sua vida, na
verdade, ele nem sequer lembrava sobre ele mesmo.

Diante de tais questionamentos, quase como uma


revelação, Roppu lembrou-se do motivo de sua existência,
a única coisa a qual deveria fazer era recuperar suas
memórias, e para isso ele faria o que fosse preciso. Mas
afinal, como poderia ele fazer algo mais em seu leito de
morte? Em meio ao seu último suspiro de vida, o garoto
sente a pressão em seu peito se aliviando, até abrir
novamente seus olhos e perceber o felino recuando,

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vagarosamente, como se tivesse encontrado um monstro
maior que ele.

Ao recuperar-se e levantar-se do chão, o garoto olha


para trás buscando encontrar o que a fera temia, e avista
apenas Daigo andando vagarosamente em direção a
enorme criatura, com um semblante que desprezava por
completo qualquer temor que pudesse vir a ter da situação.
À medida que, dirigia ao confronto, acuando a fera, o
velho homem revelava em suas mãos apenas uma espada,
que mal parecia ter fio, e exalava uma fragrância
extremamente familiar para o garoto.

- Não tema, jovem! Não lhe farei mal, apenas lembre-se


de não desviar o foco em nenhum momento, isso pode
acabar em instantes. Chegou a hora de libertá-lo.

Em poucos momentos, Daigo que aparentava ser apenas


mais um homem desgastado pelo tempo e de aparência
pacífica, se tornou em algo que para o garoto, não podia
ser nada além de um demônio, porém diferente de

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qualquer outro, seus olhos não tinham aquele brilho
vermelho de puro ódio, na verdade a única coisa que
brilhava era algo pendurado em seu pescoço, que emitia
para o garoto uma sensação estranha de conforto.

Quando estava prestes a avançar em direção ao


Monstro, ouviu um grito, desesperado e repleto de medo, o
que paralisou completamente o velho e o fez tirar
completamente o foco da criatura. Ao olhar para trás,
Daigo vê sua filha Sora, com uma feição irredutível de
pavor enquanto apontava para trás dele, jogada ao
completo escuro e sem movimento.

Antes que pudesse manifestar qualquer palavra de apoio


à filha, Daigo sente um calor intenso perfurando seu tórax
e se espalhando por todo seu corpo. Mesmo mutilado, a
vontade de permanecer vivo fez aquele homem se tornar
ainda maior e com apenas um movimento, fez se calar a
fera, dividindo-a ao meio.

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Ao presenciar o que pensava ser impossível mesmo
dentro de sua limitada compreensão de mundo, Roppu
novamente se situa dentro da realidade e ao olhar
novamente em busca do velho, percebe o choro de Sora
com a cabeça do pai apoiada em seu colo, enquanto este
mantinha por muito pouco sua consciência, mas ainda com
um calmo sorriso no rosto, como se todas as suas
preocupações se esvaíssem do mundo, assim como o peso
sobre seus ombros.

Caminhando vagarosamente em direção a Daigo,


pedia-o para aproximar-se enquanto consolava sua filha, o
garoto percebe a forte respiração do velho e o esforço que
este faz para continuar vivo. Tomado por um intenso
aperto em seu peito e uma forte contração em seu rosto, o
garoto sente vontade de gritar o mais alto possível em uma
tentativa de fazer seu corpo parar de tremer enquanto de
seus olhos escorrem lágrimas.

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- Neste momento, não estou triste, pois consegui o
que buscava, não sinto dor, pois não a temo assim
como a morte. Assim como eu, vocês não devem
temer a minha nem as suas mortes, apenas tenham
certeza de não deixarem para trás nenhum
arrependimento, e acima de tudo, lembrem-se de
viverem por suas ideias, pois um homem nunca
morre enquanto prevalecer suas ideias ... Cof Cof...
- Não era para acontecer assim, não era para
acontecer agora, o que farei sem você, pai? Como
viverei sem a sua proteção? Você só precisa esperar
mais um pouco... Eu darei um jeito nessas feridas.

Roppu se sentiu perdido e traído por si mesmo,


enquanto ouvia o discurso final do velho e apertava com
força sua mão, ele torna novamente a falar:

- Como já disse, não temo em nada a morte, por isso


quero apenas que vocês vivam por mim, pelo meu
sacrifício eu dou a vocês a sentença de liberdade, e peço

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apenas que façam com que cada segundo, por mais terrível
que pareça, valha apenas de ser vivido... Cof..Cof Cof...
Meu tempo neste mundo está prestes a se encerrar, por isso
deixo para ti, minha filha, o meu pingente – o qual pendia
no pescoço de Daigo - que contém meu sangue e todo
amor e afeição que cultivei algum dia, o qual irá te
proteger e carregar um escudo eterno nele, com ele jamais
se sentirá novamente solitária.

A garota mal conseguia falar à medida que soluçava,


mas acenava com um gesto de gratidão acariciando os
longos cabelos brancos de seu pai.

- Para você, garoto, deposito toda minha fé de que


conseguirá alcançar seu objetivo, apenas te advirto do
quão sinuoso e traiçoeiro é o caminho que segues, por isso,
peço apenas que proteja minha filha e cumpra o papel que
por muito tempo não pude desempenhar, faça dela
verdadeiramente feliz, sei o quão ambicioso e egoísta é
esse pedido, mas se puder realizá-lo, te ofereço como um

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presente minha espada, que tenho fé que manejará com
maestria, acima de tudo, lembre desta noite, pois pode ser
o fim da minha vida em carne, mas é a consolidação de
uma vida eterna....

E com essas últimas palavras, termina a lenda de Daigo,


o nobre guerreiro que lutou até o fim de sua vida em
defesa das ideias.

Ao amanhecer, Roppu contemplava o sol iluminando o


recém montado túmulo de Daigo, e percebia aquela dor em
seu peito, que diminuía mas era incapaz de desaparecer.
Ao olhar para traz, o garoto pode ver Sora, ainda trêmula e
um pouco pálida, se levantando e indo em direção a
carroça.

- Não acho que seria capaz de conduzir essa coisa até


alguma aldeia, e como não há nada de muito importante,
acho que é melhor deixar para trás. - Dizia a garota
enquanto enxugava seu rosto.

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- Para onde vamos agora? - Perguntava Roppu ainda
meio com a voz rouca e distante

-Snif... Acho que há uma pequena vila ao norte, mas


não sei o quão longe fica

E assim, os dois jovens seguiram em frente, sem saber o


destino que lhes aguardava, sem em nenhum momento
esquecer do que estavam deixando para trás. À medida que
andavam, o sol os acompanhava, às vezes, se mostrando,
às vezes, se escondendo entre as nuvens, até se pôr
completamente no horizonte e completar mais um ciclo.

Durante todo esse caminho, havia algo que Roppu não


conseguia tirar da cabeça: o que de fato ele deveria fazer?
Sua busca por suas memórias havia de fato cessado? Essas
e outras dúvidas que tornavam a ecoar na cabeça do garoto
cresciam a cada vez que surgiam, dominando toda sua
mente e com gritos cada vez mais ensurdecedores, e aos
poucos, faziam com que o garoto se tornasse mais e mais
imerso dentro daquele profundo mar de perguntas.

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-Ei, você está bem? Do nada você desmaiou, pode
continuar andando? - perguntava Sora aflita

-Sim, as vozes ... estão mais fortes...

-O que são essas vozes afinal? Seriam lembranças do


seu passado ou apenas a sua própria consciência?

-Eu não sei, mas elas sempre parecem tão... solitárias...

-Independentemente do que sejam, já faz um tempo que


você não come, acho melhor pararmos um pouco pra
comer e descansar.... O único problema é que não temos
comida, já que deixamos tudo pra trás...- Enquanto falava,
os olhos da garota se enchem de lágrimas novamente.

-Eu posso procurar um pouco por comida...

-Está bem, mas eu vou junto... Snif...

Após andarem um pouco, os dois começam a escutar


um barulho de água correndo, como um pequeno rio que
passava por perto, porém além do barulho, Roppu também
escutava uma melodia, algo como uma doce canção,

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diferente do que já ouvira antes, porém dessa vez não
conseguia entender o que era dito por aquela bela voz. O
garoto resolveu desviar-se do curso e seguir em direção a
voz, que parecia se aproximar conforme subia o rio.

-Para onde está indo? Pensei que estivéssemos atrás de


comida – gritava Sora.

-Em direção a essa voz...

-Que voz? Não há ninguém por aqui além de nós.

-Claro que há, não percebe essa linda melodia?

Sora, então, resolveu apenas seguir Roppu, que se


afastava cada vez mais, até entrar em uma densa floresta
repleta por bambus, perdendo-o de vista.

-Eu vou esperar você aqui fora, não estou interessada


em me perder, tente não demorar muito. - Gritava a garota,
enquanto se perguntava o “o que ele tem na cabeça para
correr assim do nada? E que voz é essa?”.

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Aquela floresta parecia interminável, e a voz cada vez
mais próxima até que fim, Roppu pode ver uma saída
daquele emaranhado de folhas e cipó, no meio daquele
denso bambuzal, havia uma clareira, iluminada pela luz da
lua, com um pequeno e cristalino lago.

Aquele lugar magnífico maravilhava Roppu, porém,


algo mais chamava sua atenção, ao se aproximar do lago,
podia ver que era dali que se originava a melodia, e ao
interagir com a água, cristalina como nunca vira, esta
começa a se moldar, como um chafariz, e toma a forma de
uma bela mulher, que Roppu tinha certeza de já ter visto,
enquanto sua beleza monumental era esculpida.

- Olá, Roppu!

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Remorso
De repente, por onde olhava, só havia fogo e
fumaça, de forma que podia sentir seu peito queimar a
cada vez que inalava aquele cheiro de destruição, por mais
que soubesse o que estava acontecendo, Roppu se sentia
impotente, não podia fazer nada além de chorar ou tentar
se rastejar com aquelas pequenas mãos, era como se ele
estivesse preso em uma memória. De repente, Roppu viu
surgindo entre as chamas uma mulher que despertava no
garoto de repente uma imensa nostalgia.

“ Não se preocupe, eu estou aqui por você, nada de


ruim vai te acontecer, meu doce Roppu …”

Essas foram as últimas palavras que o garoto pode


ouvir enquanto desmaiava no aconchegante colo daquela
mulher que parecia tão familiar, tão familiar quanto a que

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chamava seu nome no lago. Assim que percebeu isso ainda
com a consciência dormente, de um ímpeto levantou-se
olhando para todos os lados, mas tanto as chamas quanto o
lago desapareceram, assim como a mulher que Roppu
procurava, tudo que vira dentro da clareira que se
encontrava foi uma pequena poça de água a qual estava
jogado a beira, a qual era tão cristalina quanto a do
misteriosa lago que tinha certeza de ter visto.

Angustiado e confuso, e ainda com a cabeça


latejando, Roppu cambaleia entre as folhas e bambus em
busca de uma saída, até se encontrar livre daquele verde
denso e avistar um ponto de luz em meio ao relento
daquela noite fria e escura, já que a luz que antes
resplandecia no céu, agora se escondia entre as nuvens.

Ao se aproximar, Roppu vê Sora encolhida à beira


da fogueira dormindo profundamente enquanto balbuciava
quase como um suspiro o nome do pai, enquanto escorrem
lágrimas por seus olhos. Ele percebeu que nunca reparou

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tanto em como seu rosto, mesmo que magro, possuía
traços delicados e finos, assim como em seu longo cabelo
castanho, o que o trazia apenas uma coisa a mente; “ que
bonito”

O garoto então sentou-se perto do fogo, olhou para


a chama que ardia seus olhos, e foi completamente
engolido por aquele calor intenso, o qual ia crescendo em
sua mente e o prendia na memória que tentava desvendar.
Antes que percebesse, aquele calor não vinha mais da
brasa a qual agora era apenas carvão, e sim do sol, que
iluminava tudo à sua volta, o céu e o que há para além
dele.

Sora não estava mais deitada, mas antes que tivesse


a chance de procurar, a garota aparece no horizonte se
aproximando rapidamente escondendo algo entre grossas
vestes escuras.

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- Roppu, você não vai acreditar!- dizia Sora
com uma certa excitação estampada em seu
rosto ainda apático.
- Em que?- retrucava Roppu
- Eu resolvi sair para andar um pouco para
ver se eu achava algo pra comer, e achei
isso!

A garota tirou o manto que cobria suas vestes e


revelou uma cesta repleta de arroz.

- Onde você achou isso


- Não muito longe daqui tem um pequeno
vilarejo, eu na verdade nunca vi um que
parecesse tão próspero, eu fui recebida por
um velho que por algum motivo,
provavelmente por ser idiota, me deu essa
cesta de arroz e me pediu para ficar por la.
Eu disse que não estava sozinha, por isso
iria voltar com meu companheiro. Eles vão

36
dar uma festa hoje de noite para comemorar
a colheita ou algo assim, então acho que a
gente pode aproveitar isso pra encher
nossos bolsos e seguir em frente.
- Seu pai não ficaria bravo com você?
- Não é como se ele estivesse aqui pra ver!-
disse Sora virando a cara e empinando o
nariz, embora Roppu ainda pudesse
perceber seu rosto ficando vermelho - além
do mais, eles têm comida de sobra, não é
como se eles fossem sentir falta de alguns
punhados de arroz!
- Ainda é estranho o fato de darem comida de
graça para qualquer visitante, parece que
tem algo de errado nisso...
- Desde quando você fala com tanta
convicção?- Dizia sora se recompondo
- Pensei que eu sempre falasse assim.

37
- Mas de qualquer forma, confie em mim,
nada de mais vai acontecer, eles
provavelmente só querem se gabar por
serem tão ricos, em bora fosse realmente
um tanto quanto esquisito não ter quase
ninguem fora de casa.

No caminho para a vila, Roppu viu algo brilhar de


dentro de seu quimono e lembrou-se da espada dada a ele
por Daigo. Ele até pensou em pegá-la, mas logo que
estendia sua mão, viu a sua frente a entrada da vila, a qual
de fato parecia vazia, exceto por um velho homem que
acenava com uma mão, enquanto n’outra segurava uma
bengala.

- Esse é o bondoso senhor que nos deu o que comer


hoje, Roppu - dizia Sora puxando as vestes do
garoto e abrindo um sorriso de forma dissimulada.
- Não seja por isso jovem senhorita, nossa farta vila
apenas fez o favor de ser cortesã- comprimentava o

38
senhor, alizando sua longa barba - Em poucos
momentos começaremos nossas festividades,
sintam-se livres para vir.

Sora apenas riu e acenou em um gesto de


agradecimento, porém na cabeça de Roppu algo estava
errado com aquela cidade, não era coerente que em um
lugar “hospitaleiro” como o velho apresentava, fosse estar
tão vazio.

- Por que essa cidade está tão vazia, senhor? -


Perguntou o garoto intrigado.

Houve um momento de silêncio, então com pesar


na fala o velho respondeu:

- Outrora, em momentos muito mais difíceis, essa


vila já foi muito mais unida, as pessoas se
prestavam a trabalhar em conjunto para conseguir
ao menos um pouco de comida no dia a dia, assim
como se contentavam com o mais simples que lhes
fosse oferecido. Porém, com a estabilização e

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crescimento de nossa economia, os moradores
foram se isolando a medida que só precisavam
trabalhar o suficiente para garantir o que
precisavam de comida, o que foi se tornando uma
tarefa cada vez mais simples, e quando ninguém
mais necessitava de fato de algo, todos se isolaram
em suas vidas particulares com seus luxos
individuais.
- Puxa, mas olhando agora nem parece que algum
dia já houve escassez, eu nunca vi tantas casas tão
grandes e bonitas tão próximas, ou sequer pessoas
tão bem vestidas como o senhor! - retrucava Sora
tentando desfazer a situação.
- ho, ho, ho! Esses jovens de hoje são repletos de
vitalidade!
- Espere por nós no festival! Com certeza vamos
aparecer! - Dizia Sora acenando para o velho
- Assim espero…

40
Quando disse isso, Roppu pode ver de relance,
por alguns poucos momentos, que aquela longa barba que
o velho alisava, de repente encurtará, mas antes que
pudesse ter qualquer certeza, foi puxado pela garota que
corria para dentro da vila.

Ao se afastarem o suficiente, Sora olhou


fixamente para Roppu, e pisou em seu pé.

- Você tem noção de que podíamos ter nos


dado muito mal?! - Bradava ela antes que o
garoto pudesse ter chance de falar algo -
Existem certas coisas que apenas não
devemos perguntar diretamente às pessoas,
por um momento eu pensei que estivesse
acabado nossa chance de conseguir algo
daqui!
- Sora…
- O quê?

41
- Você parece cansada, quero dizer, mais que
o normal, o jeito que você respira como se
não tivesse ar suficiente e como as suas
pernas não param de tremer…
- Agora que você falou… além de que tem
essa dor no meu peito, mas não deve ser
nada de mais!
- Se você diz.

Ao cair da noite, Roppu via os primeiros


moradores saírem de suas casas e se reunirem em frente a
o templo o qual estava observando junto a Sora, mas
estranhamente, o velho não estava entre eles.

Todos eles usavam vestes finas e tecidos caros de


seda, as crianças que não empinavam o nariz assim como
os pais, pareciam reclusas e distantes, mas não havia
nenhuma correndo ou rindo, na verdade, não tinha
ninguém que parecesse realmente feliz, cada nova pessoa
que chegava, parecia uma cópia da anterior, sem possuir

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nenhum destaque a mais e com conversas extremamente
fúteis. Era como se todos estivessem fingindo não ter
problemas, não havia interesse algum em assuntos reais,
ninguém conhecia a fome, a guerra, a doença ou a morte,
eram todos alheios ao mundo, mesmo Roppu sabia disso.

Roppu e Sora apenas se entreolharam, e sem


precisar trocarem uma palavra, ambos compreenderam a
situação.

- Eu vivi por muito tempo em meio a essa gente, não


passam de porcos sujos a parte do mundo que só se
preocupam com seus próprios umbigos, a única
coisa que me intriga é que diferente dos grandes
feudos, esse vilarejo não tem sinal de pobreza,
todos vivem essa realidade distorcida, agora eu
compreendo que de fato existe algo aqui muito
esquisito! - comentava Sora - Mas se quisermos
tirar algo daqui, precisamos nos misturar com as

43
pessoas, então tente sorrir e no seu caso, fique
quieto, apenas me siga.
- Você tem certeza do que está fazendo? -
questionava Roppu.
- Essa é provavelmente a melhor chance de
conseguirmos comida até decidirmos para onde
vamos.

Assim fizeram, mas ao se aproximarem do templo,


Roppu percebeu olhos que nunca havia visto, olhos de
completo desprezo e nojo, ele podia ouvir murmurinhos
“de onde veio essa ralé?”, “quem permitiu que esses
porcos se misturassem conosco?”,”não olhem para eles
crianças.”. À medida que andavam entre a multidão, o
caminho ia se fechando, e todos aqueles comentários
foram afetando o garoto, que se perguntava: “de onde me é
familiar esse sentimento de opressão? E por que eles
machucam tanto?”.

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Quando pensou que era o suficiente, Roppu
começou a ser empurrado por alguns e chutado por outros,
até lhe derramarem sakê (álcool) e lhe jogarem no chão. O
mais humilhante para o garoto foi o fato de não ter
conseguido nem ao menos olhar para os rostos de quem
lhe destratava.

Aquela humilhação de ter seu ego completamente


destroçado e toda sua dignidade ser destruída, fez uma
chama de ódio se acender em seu peito, mas antes que
pudesse crescer, Roppu se deu conta de algo que só
perceberá agora: Para onde quer que olhasse, ele não
conseguia encontrar Sora.

45
Fúria
Não importava por onde olhasse naquele mar de
porcos, não importava mais como eles os destratava ou o
importunavam, não importava mais seus próprios
sentimentos ou quantas pessoas estivessem ao seu redor,
Roppu apenas queria achar Sora.

Mas entre toda aquela multidão, era impossível,


não importava o quanto gritasse por seu nome, ela não
aparecia, e Roppu tornava a se perguntava: ”por que esse
sentimento é tão familiar?”

Tomado por essa dor que crescia em seu peito, o


garoto apenas perdeu completamente a consciência de suas
ações, e voltou para aquele lugar quente, de onde era
arrastado por alguém que o segurava firmemente, enquanto
seus gritos por alguém eram igualmente inúteis, gritos

46
como de uma criança desesperada que clama por sua mãe,
completamente impotente e vulnerável.

Roppu abriu os olhos e percebeu que dessa vez ele


podia tomar alguma decisão, ele podia encarar o que lhe
machucava e ir atrás do que buscava, a chama de ódio que
queimava em vermelho no seu peito se expandiu, mas
dessa vez ela queimava não por ódio, mas sim por
determinação!

Como se dividisse Sekigahara e Aokigahara,


Roppu atravessou em meio a multidão, seus olhos
brilhavam como sua espada, os quais refletiam o brilho de
seu coração, e ao focar ao longe, o garoto percebeu um
brilho distinto de todos os outros, era o brilho carmesim de
um colar que foi forjado a sangue, essa luz atraiu toda
atenção do garoto que sem pensar apenas correu em
direção a sua luz, que cada vez mais se afastava, chegando
ao limite da aldeia, quando finalmente desapareceu no
breu de um vão escuro.

47
Inabalável, Roppu correu em direção a esse vão,
tendo em mão a espada a qual refletia sua alma, até que
finalmente conseguiu ver graças a uma fresta de luz da lua
o rosto de Sora que agora estava pálido e ressequido, como
se sua vitalidade houvesse sido sugada. O colar agora
voltará a brilhar, e brilhava como nunca, porém havia um
outro brilho, porém esse era vermelho mas não como o
nobre sangue de um guerreiro, mas sim como a força do
puro ódio e de uma profunda sede de sangue.

Não havia dúvidas no seu coração, mas seu cérebro


o impediu de agir, ao ver que aquele que segurava Sora por
seu magro pescoço era aquele bom senhor, agora com uma
aparência rejuvenescida, mas o que mais chamou atenção
de Roppu foi que sua longa barba agora diminuía cada vez
mais.

- É de fato fenomenal a vitalidade de uma jovem,


esse doce gosto de ter tempo de sobra para explorar
o mundo sem nenhum compromisso, sem saber

48
como é trabalhar arduamente cada dia da vida em
busca de manter o mínimo para sobrevivência. Ter
dado minha carne para livrar esta terra da fome foi
o menor preço que eu tive que pagar em minha
vida, ser consumido pelo meu próprio ódio foi
apenas o pagamento. É disso que um velho
amargurado como eu preciso, desse doce gosto de
quem ainda não foi consumido por si mesmo em
seu próprio ódio ou frustração, agora deixe-me
saborear cada centímetro de sua força vital, esse é o
preço que paga por ter sonhado tão alto, jovem.
- Roppu … ajuda…- Suplicava Sora com suas
últimas energias, antes de desmaiar por completo.
- Ho ho! Essa juventude sempre me surpreende! Seu
samurai errante veio te buscar, afinal senhorita, ao
menos vocês dois poderão ficar juntos quando eu
tiver suas almas! Se você acha que...

Roppu não consegui ouvir mais uma palavra que


fosse, pois todos os seus sentidos ardiam em brasa, pois a

49
chama de determinação que queimava em seu peito, agora
consumia todo seu corpo em FÚRIA

Roppu podia sentir sua energia sendo gradualmente


drenada, mas isso não o impediu de avançar como um raio
em direção ao demônio, o qual revidou o seu ataque como
um espelho, repetindo exatamente seu movimento.

- Posso sentir o calor que sua energia emana,


esse sabor picante de um coração repleto de
fúria! ho ho ho! Venha, me ataque com tudo
que tem! Rápid-

Antes que pudesse terminar a frase ou sequer


tivesse tempo de reagir e contra atacar, o velho demônio
apenas observou o mundo escurecer e o sangue jorrar de
sua boca, pois em apenas um golpe, Roppu apunhalou seu
coração. Conforme via o sangue escorrer, via todas as
almas que colecionou para si voando em direção a lua,
enquanto sua pele enrugava e todo seu corpo atrofiava,

50
podia sentir sua barba crescendo e seu cabelo caindo, até
voltar para sua forma original enquanto ainda era humano.

-Não, Não, NÃO! EU NÃO QUERO MORRER! Eu não


quero morrer! Eu … não quero … morrer! - o velho dava
assim seus últimos suspiros enquanto estendia a mão para
os céus em busca de uma salvação, o que se provou inútil.

- Por que? Por que minhas memórias não voltaram


agora? Eu acabei de matar um demônio! Eu quero o que é
meu por direito!

Mas antes que tivesse mais tempo para pensar, o


garoto ouviu um grito estridente que chamou sua atenção,
assim como de todos que estavam ao redor e foram
investigar a situação.

Era inegável o que ocorreu naquele escuro vão, que


agora tinha sua única passagem de luz bloqueada por
cidadão, horrorizados com o que viram, afinal, tiveram seu
bom e caridoso líder e ancião assassinado por um

51
andarilho qualquer, parte da ralé imunda que vaga pelo
mundo.

“MORRA DESGRAÇADO!”, Gritavam uns;


“Como pode cometer um ato tão atroz? Seu porco imundo
e fedido!”Bradavam outros; “Vagabundo desalmado, a
melhor sentença que podes receber é a morte!”,
Condenavam outros; mas todos concordavam com uma
coisa, o único destino que aquele ser tão vil e cruel poderia
receber, era a morte.

Aquelas emoções intensas de ódio, com um olhar


assassino, independente do quanto tentasse se justificar,
nada mudava, somado ainda a chama da ódio que ainda
consumia seu corpo, agora mais do que nunca, o garoto
levantou sua espada em direção aquela multidão de
demônios com os olhos que refletiam ódio puro.

“Eu tenho que matar demônios, e recuperar o que é


meu por direito! Nem que sejam todos eles, ninguém pode
me impedir!”. Era o que pensava o garoto, tomado por

52
uma fúria incontrolável, segurando a espada que agora
refletia um brilho vermelho assim como de seus olhos.

“Acabem com este demonio!”, bradavam todos em


uníssono, partindo em direção ao garoto com enxadas,
foices e pedaços de pau em mãos. Roppu também se
preparou para atacar, era um movimento que separava a
vida e a morte, e em meio aquele caos, o garoto sentiu sua
face arder, mas não era como ataque que uma espada ou a
chama de seu próprio ódio, era um tapa de Sora, suficiente
para fazê-lo cair e acalmar os ânimos de todos que ficaram
perplexos com a situação.

Com seus olhos repletos de lágrimas mas olhar


ainda assim penetrante, Sora olhou profundamente para
Roppu, quase como se estivesse fitando sua alma.

- Como você planeja derrotar demônios se


tornando um deles? Você pretende deixar
sua carne ser consumida pela fúria em
busca de um passado que nunca vai voltar?

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- Enquanto falava, um brilho familiar de
nobreza reluzia nos olhos da garota,
enquanto seu colar resplandecia da mesma
cor, com um brilho próprio. - Um homem
vive para sempre enquanto suas ideias
persistirem, seja firme ao que acredita e
será para sempre lembrado!

Durante o discurso de Sora, Roppu conseguiu ver


Daigo olhando os olhos da garota, enquanto sentia sua
sede de sangue se esvaindo, assim como a chama que
consumia sua carne se extinguindo. Todos ao redor
igualmente enfurecidos pareciam estar se acalmando, e até
mais que isso, todos pareciam estar encantados com o
brilho que emitia aquele colar.

- Roppu, você não precisa do seu passado para viver


o presente, como você pode dizer que não tem
memórias perante todo esse turbilhão de aventuras
que vivemos? Apenas olhe para frente, olhe para

54
mim, e tenha certeza de que mesmo que seu
passado tenha sido destruído, serviu apenas para
podermos construir um novo futuro!

Toda aquele turbilhão de emoções ardentes


e intensas na cabeça do garoto, agora haviam
passado, como a calmaria depois da tempestade. os
primeiros raios de sol vieram anunciar o
crepúsculo, assim como o fim da batalha, as
palavras de Sora, fizeram Roppu entender
finalmente a frase anotada no papel.

Porém toda aquela batalha tinha lhe rendido


um enorme desgaste físico, além de que o colar de
Sora parou de brilhar, e com isso as pessoas
voltaram a sua consciência. Roppu sabia quem em
pouco tempo, aquela multidão voltaria a ser tomada
pela fúria, e que nesse momento ele seria impotente
para agir sem conseguir mover um músculo.

55
- Corra Sora! Eu falhei em te proteger, eu mal tenho
forças para ficar de pé neste momento.

Porém a garota não tinha medo algum, ela se


abaixou e deu um abraço em Roppu enquanto lágrimas
escorriam de seus olhos. Ela se levantou enquanto
carregava o garoto coberto de sangue pelo braço,
atravessando todas aquelas pessoas que apenas
olharam-nos, Roppu mal podia manter-se consciente, mas
ainda assim fez o possível para chegar até o final.

Quando olhou para baixo, percebeu como o brilho


prateado de sua espada ainda coberta de sangue,
contrastava com a luz fraca luz carmezim que o colar de
Sora produzia em sua corrente de metal, era como se um
completasse o outro, promovendo o equilíbrio, assim como
tudo deveria ser.

Roppu percebeu naquele momento, que o propósito


de tudo é buscar o equilíbrio, assim como ele deveria

56
encontrar o seu. Ele se sentiu genuinamente feliz, pois
finalmente derrotou todos os seus demônios.

“Vai ficar tudo bem, meu doce Roppu!”

E naquele momento, Roppu lembrou-se de tudo

57
Lembranças
“Nessa época eu era tão pequeno que mal
conseguia andar sem cair, mas é impossível esquecer
daquela doce melodia que sempre me confortava quando
eu estava em perigo.”

“Eu nunca cheguei a conhecer ninguém da minha


família além da minha mãe, mas nunca me importei, para
mim ela já era o suficiente.”

“Eu também nunca cheguei a conhecer meu pai,


mas minha mãe sempre me contava que ele era um grande
samurai que logo voltaria de Sekigahara com muito
dinheiro e agente seria uma família muito feliz, então eu
sempre me imaginei lutando essas batalhas ao lado dele”

“Apareceu um monge chamado Takuan aqui e fez a


mamãe chorar muito, quando eu perguntei ela disse que o

58
papai demoraria mais um pouco pra chegar em casa, mas o
Takuan estava aqui pra ajudar agente enquanto isso”

“O Takuan com o tempo se tornou meu melhor


amigo, ele sabia lutar e me ensinou a usar uma espada, a
mamãe não gostava muito, mas ele disse que era só uma
forma de me proteger.”

“Um tempo depois, eu acordei com um cheiro de


fumaça e com muito calor, eu tentei me mexer, mas meu
não saia do lugar, alguma coisa estava em cima de mim, e
era pesado demais pra tirar, então eu comecei a chamar
pela minha mãe enquanto chorava, mas meu olhos
começaram a arder e meu peito doía muito. Até que ela
finalmente apareceu, entre todo aquele inferno, minha mãe
estava lá”

- Não se preocupe, eu estou aqui por você, nada de


ruim vai te acontecer, meu doce Roppu …

“Foi isso que ela me disse antes de me retirar dos


escombros e me levar em segurança até a porta, mas antes

59
que a gente pudesse sair, apareceram dois homens, os
quais tinham espadas e um deles segurava uma tocha.”

“ Ela me escondeu antes que ela me escondeu antes


que eles me vissem, e começou a conversar com eles,
contendo suas lágrimas e não esboçando nenhuma emoção,
eles não podiam descobrir que eu estava lá com ela”

“Mas naquela época, o brilho de uma espada era


tentação demais para mim, então sem pensar eu agarrei a
ponta da katana de um dos homens, assim cortando meu
dedo.”

“No momento que ele olhou para mim, eu pensei


que aquele seria meu fim, porém antes que ele encostasse e
espada em mim, minha mãe empurrou os dois pra longe e
disse que era para eu correr o máximo que eu pudesse, sem
olhar para traz”

“Meus olhos estavam repletos de lágrimas, eu mal


conseguia me mover, então minha mãe apenas abriu um

60
doce sorriso como só ela sabia e começou a cantarolar
aquele melodia que sempre me acalmava"

se um dia você encontrar uma flor

e estiver se sentindo sozinho

saiba que essa flor sou eu

enquanto lembrar de mim sempre estarei contigo

“Essas foram as últimas palavras que eu escutei da


minha mãe, pois antes que desse por mim, Takuan me
pegou no colo e me levou o mais longe que conseguiu, a
última vez que eu vi o rosto da minha mãe foi com aquele
doce sorriso enquanto ambos samurais partiam para cima
dela, com os olhos repletos de ódio”

“Takuan me ensinou muito sobre o mundo, desde o


céu até a terra e para muito além disso, ele me ensinou
sobre a vida e sobre sua brevidade, disse também que ela é
cheia de empecilhos, mas o importante é saber lidar com
eles, por isso ele me treinou até que eu estivesse bom o

61
suficiente para o derrotar com a espada, mas a única coisa
que ele me advertiu foi:”

- Eu te ensinei a se defender, não a atacar, mas deixo


livre pra tomar a escolha que quiser, apenas
lembre-se, que as vezes, é impossível voltar atrás.

“Eu sempre procurei guardar essas palavras em


minha alma, pois era incomum Takuan me dar
advertências. Um dia, ele disse que iria me ensinar a mais
importante de todas as lições, e que eu só descobriria qual
lição seria depois de tê-la cumprido.”

“ A essa altura posso dizer que passei a maior parte


da minha vida com Takuan, por isso sei que ele nunca
esteve tão sério quanto naquele dia. Fomos ao topo de uma
montanha onde se encontrava um templo ancestral, ele me
disse para entrar sozinho, pois esse era um tipo de coisa
que eu deveria fazer por mim.”

62
- Lembre-se apenas de que algumas vezes, é
impossível voltar atrás.

“ Foi com essas palavras que o Takuan me deixou


naquele templo, onde eu senti que eu tinha vista para todo
o mundo. No início eu simplesmente não sabia o que fazer,
então tentei de tudo, mas então lembrei de quando Takuan
me ensinou a meditar e o real significado disso, resolvi
então pôr em prática, e pessoalmente acho que fui bem
longe, mas eu então comecei a entrar fundo em minhas
memórias, e toda a minha infância que eu tinha esquecido,
com exceção daquela doce melodia”

“Não sei se foi o templo ou simplesmente minha


própria mente, mas quanto mais fundo eu ia, mais doía,
mais eu lembrava daqueles demônios que tiraram tudo de
mim e me enfurecia com eles. Em algum momento, eu
apenas entrei em colapso com minha própria mente e
desejei piamente apenas esquecer de tudo que eu já vivi,
pois seria muito mais fácil do que ter que lembrar cada dia

63
da minha vida daquele doce sorriso que eu perdi para
sempre.”

“ Em meio a minha loucura, tive o que acreditei


como sendo minha revelação, no final da tarde durante o
pôr do sol, um fresta de luz passou pela janela iluminando
um pedaço de um pergaminho escrito em uma língua
arcaica por um monge a mais de um século. Eu por sorte
aprendi diversos idiomas e mantras arcaicos com Takuan,
por isso consegui traduzir o que estava escrito, não
entendo o que tratava aquela passagem no momento, então
apenas guardei-a em meu kimono, junto a minhas adagas
antigas dadas a mim por Takuan.”

“ Porém, aquele forte desejo de deixar tudo para


trás perdurava em minha mente, então apenas ignorei os
avisos de Takuan e resolvi tentar a sorte na pós vida, me
jogando de cima daquela montanha”

“ Não sei se por sorte ou azar, sobrevivi, e o resto é


apenas a partir de onde eu lembro”

64
Paz
Após cruzarem o vilarejo, ambos Sora e Roppu se
sentiam exaustos, mas ainda continuaram por mais um
tempo até resolverem descansar. Por um bom tempo, eles
apenas se olharam, sem falar nada, não foi por falta de
assunto, mas simplesmente por ainda terem muito a pensar.

- Eu confesso que me impressionei com seu discurso


e a forma extremamente madura que você encarou
aquela situação, eu sempre soube que você não era
uma garotinha mimada, mas aquilo me
surpreendeu.
- Na verdade eu realmente não tenho certeza do que
aconteceu ou se de fato era eu naquele momento,
parecia tudo um sonho, onde eu apenas assistia
tudo que estava acontecendo - dizia Sora olhando
para o céu - a última coisa que eu realmente lembro

65
foi de te ver tomado por ódio ameaçando a todas
aquelas pessoas, mesmo que eu ache que eram
todos um bando de porcos, meu maior medo era de
que você tomasse uma ação onde não poderia
voltar atrás, e todo o resto é muito confuso pra
mim.
- Acho que a resposta para essa confusão pende em
seu pescoço.
- Depois de tudo talvez fosse até o mais lógico de se
acreditar. Mas eu devo confessar que algo que não
me sai da mente, é como eu senti que o tempo todo
eu estivesse ao lado do meu pai, era como se ele
estivesse me protegendo com sua alma , como se
esse fosse seu legado, mas afinal, “um homem
nunca morre enquanto prevalecerem suas ideias”.

E mais uma vez ocorreu um momento de silêncio,


até que Sora lembrou de algo que guardava em suas vestes.

66
- Pelo menos eu de fato consegui tirar algo daquela
confusão - dizia Sora enquanto ria e tirava um saco
de arroz bem cheio que escondia no busto.
- Esse seu jeito irreparável! - retrucava Roppu com
um sorriso inevitável no rosto
- Ao menos vamos ter algo para comer hoje.
- Devo confessar que de fato não é de todo mal.
- Minha maior dúvida atualmente é como você vem
se tornando tão eloquente em um espaço tão curto
de tempo, seriam resquícios do passado?
- Bem, na verdade, eu recuperei todas as minhas
memórias.
- Uou! - respondia Sora completamente surpresa -
Mas agora que você tem elas de volta, realmente
valeu a pena sua jornada em busca delas?
- Uhm... acho que talvez seja apenas indiferente
tê-las ou não, pois a busca por algo nunca nos leva
a resposta que buscamos, se a for conveniente ela
apenas chegará a nós. Foi apenas no momento que

67
eu desisti de buscar minhas memórias e me prestei
a entender o motivo de tê-las perdido que eu
consegui recuperá-las, dessa forma encarando meus
demônios.
- Mas afinal, os demônios que você enfrentou esse
tempo todo não foram o que lhe deram o que
buscava? - indagava Sora, confusa.
- Eu apenas libertei aquelas almas confusas e que se
fundiram a seus corpos ao serem consumidos por
seu ódio, assim como seu pai fez por aquela fera
infeliz e você fez por mim. Eles nunca foram de
fato demônios, apenas se deixaram consumir pelos
seus próprios, e apareceram em nosso caminho por
sentirem uma energia similar a deles, ou talvez
tenha sido eu a me atrair por isso, o que é
indiferente afinal.
- Então como de fato você acabou com seus próprios
demônios?

68
- A única coisa que eu percebi é que eles faziam
parte de mim, assim como o mal que reside dentro
do bem, e que da mesma forma residia o bem
dentro desse mal. Eu não creio que de fato tenha
acabado com eles, apenas tomei a iniciativa de
aprender a lidar com eles, ainda existe um grande
caminho em busca do meu completo equilíbrio de
corpo e alma, e só agora entendi o propósito de
toda essa jornada.

Logo então, perceberam o tempo que tinham


passado conversando e como suas barrigas clamavam por
comida, passando o resto do tempo preparando o que
podiam para se sentirem saciados. Ao olharem novamente
para o céu perceberam como o tempo havia passado
rápido, e em como seus corpos pediam por descanso,
pondo-se assim a deitar naquele macio chão de grama
ainda um pouco úmido por passar o dia na sombra
daquelas majestosas árvores que os cobriam.

69
- Para onde você pretende ir agora, Sora? -
perguntava Roppu deitado ao lado da garota
- Durante todo esse tempo eu esperei que a vida me
desse tal resposta, eu sempre segui outras pessoas
sem buscar um destino próprio e assim como você,
tentei fugir do meu passado angustiante, tentando
esquecer dos erros que cometi e de como tudo
aconteceu. Mas logo quando ele se foi, eu fiquei
tão alheia em relação a todo esse caos que decidi
que seguiria com você a sua jornada, mas agora
percebi que preciso tirar minhas próprias
conclusões sobre o mundo e me redimir por quem
eu fui um dia.
- Tudo que eu pretendo agora é cumprir a promessa
que eu fiz a um amigo e acabar com meus próprios
demônios por mim, para que assim eu possa voltar
para casa. Eu já paguei minha dívida com o
passado, agora é o momento de olhar para frente.

70
Ambos os jovens se entreolharam profundamente
por alguns momentos, sabendo os diferentes rumos que
haveriam de tomar na vida.

- Será que um dia vamos nos reencontrar? -


Perguntava sora com um brilho nostálgico nos
olhos.

Roppu sacou sua espada, que agora estava


completamente cega, e a estendeu em direção ao céu.

- Nos dois possuímos duas metades de um mesmo


inteiro, dividimos o fardo e o legado de uma
mesma alma. Tudo no mundo trabalha em prol de
obter o equilíbrio, assim como essas duas partes
hão de se juntar para voltar a ser só um. Da mesma
forma, nossas almas estão conectadas, então
mesmo que eu esteja para muito além do céu, ou
seja uma criatura tão minúscula que enxergue entre
os grãos de areia, eu tenho certeza que vou te
encontrar algum dia, seja como uma estrela ou o

71
próprio mar. Então lembre-se que nunca é um
adeus, e sim, um até logo!

E assim os dois jovens dormiram sobre a luz da


lua, sem saber o que os aguardaria para o futuro. Talvez
esse possa ser o fim dessa história, mas é apenas o início
da história de Roppu.

Fim

72
Em terras distantes no
interior da Bahia, em um pequeno
vilarejo chamado Gandu, nasce
durante uma noite escura e chuvosa
uma criança que foi nomeada de
Vinícius Barbosa Dias. Essa
criança, à medida que crescia,
desenvolvia gosto por histórias
impossíveis que falavam de heróis
improváveis, histórias essas que
sempre ajudavam o garoto a
entender o mundo, o qual era restrito
de conhecer.
Quando completou seu 13º aniversário, o pequeno
Vinicius percebeu que por mais que talvez não pudesse
alcançar as terras mágicas que tanto buscava, talvez
pudesse trazê-las a si assim como seus heróis da vida
moderna, iniciando assim sua primeira saga a qual vos
conta neste livro cheio de reviravoltas intitulado Roppu.
~Vinícius Barbosa Dias

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