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ENTREVISTA INTERVIEW S455

Cultura sexual, ciência e política:


uma entrevista com Richard Parker

Sexual culture, science, and politics:


an interview with Richard Parker

Regina Maria Barbosa 1 A constituição e a consolidação do campo de estudos sobre sexualidade,


Estela Maria Leão de Aquino 2 gênero e saúde no Brasil, nas últimas duas décadas, se confundem com
a trajetória profissional de Richard Guy Parker, tanto por sua defesa fir-
1 Núcleo de Estudos de me da pesquisa e do ensino nesse campo, como por sua militância apai-
População, Universidade xonada na área dos direitos humanos, sexualidade e AIDS.
Estadual de Campinas.
Rua Albert Einstein s/n, Esta entrevista 1 é ao mesmo tempo uma forma de agradecer e reco-
Cidade Universitária, nhecer o trabalho desse brilhante intelectual que, nascido acima da li-
Campinas, SP
nha do Equador – fazendo aqui referência a um de seus livros mais co-
13083-970, Brasil.
rbarbosa@nepo.unicamp.br nhecidos 2 –, tem sido um parceiro incansável nas lutas em prol de uma
2 MUSA – Programa de sociedade mais democrática, diversa e plural.
Estudos em Gênero e Saúde,
Richard Parker nasceu em 1957, no Estado de Wisconsin, Estados
Instituto de Saúde Coletiva,
Universidade Federal da Unidos. Obteve graduação em Antropologia, em 1980, e doutorado em
Bahia. Rua Padre Feijó 29, Antropologia, em 1988, na Universidade da Califórnia (UC), Berkeley,
4 o andar, Salvador, BA
40110-170, Brasil.
Estados Unidos. Em 1990, fez seu pós-doutorado na Universidade Fede-
musa@ufba.br ral do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Brasil, como bolsista do So-
cial Science Research Council.
Em 1983, veio ao Brasil com o propósito de realizar um estudo sobre
cultura e poder, tendo o carnaval carioca como campo etnográfico. Fas-
cinado com a força da sexualidade nessa festa popular, redefiniu seu ob-
jeto de investigação, produzindo um trabalho que se tornou referência
obrigatória para quem investiga o tema no Brasil. Posteriormente, sob o
impacto da emergência da AIDS, buscou articular essas duas questões.
Atualmente é professor titular e chefe do Department of Sociomedi-
cal Sciences e diretor do Center for Gender, Sexuality and Health na
Mailman School of Public Health da Universidade de Colúmbia em Nova
York, e também professor no Instituto de Medicina Social (IMS) da Uni-
versidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), de onde se encontra licen-
ciado.
A ênfase na articulação entre a produção acadêmica e a formulação
de políticas, investindo em uma interlocução permanente entre acade-
mia, Estado e sociedade, é sem dúvida uma marca na trajetória profis-
sional de Richard Parker, que sempre buscou promover espaços criati-

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vos e pouco usuais de diálogo entre essas instâncias. Assim, durante a


última década, além de seu trabalho acadêmico, também participou de
várias comissões e ocupou uma série de cargos em instituições governa-
mentais e não-governamentais. De 1991 a 1996, foi coordenador do AIDS
and Reproductive Health Network’s Working Group on Sexual Behavior
Research e, de 1994 a 1995, membro do Steering Committee de Pesquisa
Social e Comportamental, no Programa Global de AIDS da Organização
Mundial da Saúde (OMS). Em 1992, foi chefe da Unidade de Prevenção
do Programa Nacional de AIDS. De 1993 a 1996, pertenceu ao Comitê
Nacional de Pesquisa de Vacina de HIV/AIDS, e de 2000 a 2003, foi mem-
bro do Comitê Nacional de Pesquisa em HIV/AIDS, do Ministério da
Saúde (MS). De 1992 a 1995, foi coordenador-geral da Associação Brasi-
leira Interdisciplinar de AIDS (ABIA). Em 1995, deixou o cargo para se
tornar secretário-geral dessa mesma instituição, da qual se tornou presi-
dente em 1998. Desde 1994 é membro da Comissão de Cidadania e Re-
produção (CCR) e compõe atualmente o conselho diretor da ADVOCACI,
organização não-governamental sediada no Rio de Janeiro, do ICASO
(International Council of AIDS Service Organizations), em Toronto 1 e do Victor V. Valla: Escola Nacional de Saúde Pública,
Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2003
Institute for Gay Men’s Health Crisis (GMHC), em Nova York. (foto: Leandro Carvalho).
Entre as dezenas de publicações de sua autoria – livros, capítulos de
livros e artigos científicos sobre o tema – destacam-se as obras: Corpos,
Prazeres e Paixões: Cultura Sexual no Brasil Contemporâneo (1991) 2 ; Na
Contramão da AIDS: Sexualidade, Intervenção, Política (2000) 3 e Abaixo
do Equador: Culturas de Desejo, Homossexualidade Masculina, e Comu-
nidade Gay no Brasil (2002) 4 .
No início da década de 90, Richard criou, no IMS, o Programa de Es-
tudos em Sexualidade, Gênero e Saúde, iniciativa pioneira que promo-
veu, além de uma série de pesquisas, vários treinamentos curtos e semi-
nários relativos ao tema. A partir de 1996 tornou-se claro que essa expe-
riência deveria ser ampliada, de forma mais sistemática e incisiva, na
formação de jovens pesquisadores e na produção de conhecimento cien-
tífico de qualidade nessa área. Naquela ocasião, estava sendo concebido
pelas editoras deste suplemento o Programa Interinstitucional de Trei-
namento em Metodologia de Pesquisa em Gênero, Sexualidade e Saúde
Reprodutiva. Proposta que Richard Parker ajudou a viabilizar ao cons-
truir as condições materiais e políticas necessárias para sua concretiza-
ção, por intermédio do apoio da Fundação Ford, embora, naquele mo-
mento, ele já estivesse com data marcada para voltar aos Estados Unidos.

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Regina Barbosa Para começar, gostaríamos sexualidade surgindo em todos os momentos.


de recuperar um pouco a história dos estudos Quando falava com as pessoas sobre o carna-
sobre sexualidade através da sua biografia e a val, quando olhava as imagens, as representa-
maneira pela qual você se inseriu nesse campo. ções, ficava cada vez mais evidente que o car-
Richard Parker Num primeiro momento, mi- naval estava relacionado com a construção da
nha trajetória esteve relacionada com o pró- sexualidade. E foi realmente nesse contexto,
prio contexto político e cultural em que nasci e em 1983, que o projeto de pesquisa sobre o car-
cresci, nos Estados Unidos. De certa forma, sou naval transformou-se em um estudo sobre se-
herdeiro dos anos 60, das mudanças sociais xualidade, ficando o carnaval restrito a um úni-
desse período. Herdei também a atração pela co capítulo desse trabalho mais amplo. Outra
Antropologia, ciência que, em termos discipli- coisa que ocorreu na época foi a emergência da
nares, confere importância e propicia um en- AIDS. Em 1981, registrou-se o primeiro caso da
contro com a diversidade humana por meio doença nos Estados Unidos, e em 1982, na mi-
das diferenças culturais. Graduei-me em Antro- nha primeira vinda ao Brasil, houve aqui o pri-
pologia na UC Berkeley, e fiz mestrado e dou- meiro caso declarado 6 . Quando voltei para fa-
torado na mesma instituição. Foi nessa época zer o trabalho de campo, no ano seguinte, o de-
que meu encontro com o Brasil começou a se bate sobre a questão da AIDS atingia seu auge
configurar. No final dos anos 70 e início dos 80, nos Estados Unidos. Em São Francisco, na co-
as ciências sociais experimentaram um certo munidade gay, as pessoas estavam morrendo.
declínio. Após uma grande expansão durante Não se passava um dia sem se falar sobre AIDS.
os anos 60, houve uma contração orçamentá- Aqui, no entanto, embora a AIDS já estivesse
ria, e ficou muito difícil conseguir trabalho nos presente, ninguém tocava no assunto. Não se
Estados Unidos. As oportunidades de trabalho viam reportagens nos jornais e, quando saía al-
eram muito maiores se envolvessem pesquisa guma coisa, era sobre São Francisco ou Nova
em contextos exóticos; assim, o melhor para York. Ainda não havia o registro dela no imagi-
um antropólogo seria trabalhar com uma tribo nário brasileiro. Então, para mim, se colocava a
indígena, numa aldeia longínqua. Mas eu tam- junção da sexualidade evidente no carnaval e a
bém reconheci, muito rapidamente, que a sel- AIDS como pano de fundo, mas de uma forma
va teria de ser urbana. Na época eu já tinha in- ainda muito pouco conhecida e articulada.
teresse pelo Brasil e, como não falava o idio-
ma – eu conhecia o espanhol –, pensei que po- RB De que maneira se dá a relação entre carna-
deria aprender português no próprio país. Pas- val, sexualidade e AIDS no contexto brasileiro?
sei dois meses aqui e gostei muito de uma série Se você pudesse, talvez, pesquisar carnaval
de aspectos da cultura brasileira, as quais con- num outro país, por exemplo, da América do
siderei atraentes e interessantes. Resolvi então Sul ou América Central...
ficar para fazer a pesquisa de doutorado. No RP Absolutamente não. Muitos países come-
início, todo o meu interesse centrava-se na vin- moram o carnaval, mas em nenhum outro o
culação entre cultura e política, especialmente carnaval e o imaginário sexual que nele se pro-
no modo como a cultura é manipulada politica- duz e reproduz é tão vinculado à própria iden-
mente, como o poder funciona dentro da cul- tidade cultural, à brasilidade, em um certo sen-
tura. Não tinha a intenção de estudar sexuali- tido. No primeiro livro que publiquei, Corpos,
dade, queria estudar a construção política da Prazeres e Paixões... 3 , tento analisar essa rela-
cultura. A idéia era fazer uma pesquisa sobre a ção. De certa forma, ao menos simbolicamen-
manipulação do carnaval, um estudo histórico te, a interação sexual chega a ser quase uma
sobre como essa festa popular é transformada, metáfora, pela própria formação do povo bra-
em certo sentido, numa festa domesticada – em sileiro. Poucas sociedades conferem essa im-
síntese, mostrar de que maneira a cultura po- portância à sexualidade em termos de identi-
pular é apropriada pelos políticos e transfor- dade cultural. Em outros lugares essa dimen-
mada em um projeto de poder. Foi uma época são não teria emergido com a força que teve no
ótima para desenvolver esse estudo, já que a Brasil. Mas isso não foi previsto ou antecipado,
construção do Sambódromo 5 no Rio de Janei- ou seja, não vim com a intenção de investigar a
ro estava em pleno andamento, fato que, sim- partir dessa perspectiva. Fui descobrindo aqui.
bolicamente, consistia exatamente nisso: co- Terminei a primeira etapa da pesquisa em 1984
locar os pobres do morro num espaço contro- e voltei para os Estados Unidos. Lá a questão
lado pelo Estado. Havia, portanto, um clima da AIDS estava ainda mais explosiva. Se antes
bastante rico para essa discussão, e esse foi o eu só conhecia à distância as pessoas que mor-
propósito da minha vinda para o Brasil. No en- riam, naquele momento eu as conhecia pes-
tanto, quando comecei a pesquisa, percebia a soalmente. O impacto foi muito grande porque

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no Brasil a AIDS ainda permanecia como um da no seu projeto de pesquisa. Em outros cam-
tema não muito explorado. Foi então que real- pos que não estejam relacionados com a cons-
mente tentei analisar a “cultura sexual” no Bra- trução da identidade, talvez essa implicação
sil em termos do que ela tinha a dizer sobre o seja menor, menos problemática, ou requeira
caminho da epidemia e prever seus desdobra- menos negociação. Na investigação de sexuali-
mentos. Certamente, a idéia de que a epidemia dade, gênero ou raça, essas questões passam
aqui ficaria muito menos restrita a uma comu- sempre por um viés pessoal, que tem de ser ad-
nidade gay fechada, pela maneira como as re- ministrado, pensado e interpretado.
lações homo e bissexuais se dão no país, foi um
dos aspectos mais evidentes. Num sentido mais RB No Brasil e mesmo internacionalmente vo-
amplo, comecei a refletir, em 1985, sobre a ma- cê tem sido uma pessoa fundamental, pela sua
neira como a ideologia da sexualidade, do eró- atuação profissional e sua obra para a legitima-
tico, poderia influir tanto na epidemiologia da ção do campo dos estudos de sexualidade. Que
AIDS como nas políticas de prevenção. Voltei outros aspectos, além da AIDS, seriam relevan-
então para o Brasil, por um curto período, para tes para essa legitimidade e para a conforma-
pesquisar especificamente essas questões. Foi ção desse campo?
esse trabalho que resultou no primeiro artigo RP A AIDS, certamente, é fundamental, assim
acadêmico que publiquei, na revista Medical como também são, de outra maneira, a saúde
Anthropology Quarterly 7 , que veio a ser o pri- reprodutiva e o campo de estudos de popula-
meiro artigo antropológico sobre AIDS publi- ção. Especialmente a partir dos anos 90, esses
cado numa revista indexada. Em 1988, termi- dois campos que emergiram separadamente –
nei o doutorado e resolvi voltar para o Brasil e população e saúde reprodutiva, de um lado, e a
fazer uma pesquisa mais profunda sobre a po- AIDS, a sexualidade e homossexualidade, de
lítica de AIDS. Esse período, que a princípio ia outro – passaram a convergir e a interagir. A
ser de um ano, prolongou-se por mais dois e AIDS surgiu como uma epidemia, como uma
acabou se estendendo por dez anos. Há tam- questão que precisava de uma resposta urgen-
bém uma segunda dimensão, de ordem pessoal, te, o que conferiu legitimidade ao estudo da se-
que faz parte da vida de todos nós, na qual vão xualidade. E também, por falta de dados, não
se construindo relações afetivas e amorosas, se podia pensar sobre a AIDS, em 1985, sem
amizades, que ultrapassam a esfera profissio- encarar o fato de que se sabia muito pouco so-
nal. Permanecer no Brasil foi, além de uma de- bre a sexualidade. Além disso, a epidemia de
cisão intelectual, também uma decisão pes- AIDS tornou mais evidente a diversidade se-
soal. De repente percebi que as pessoas mais xual, dentro de cada sociedade e através das
importantes para mim estavam aqui e que fa- sociedades. Até então, a sexualidade era pensa-
zia muito mais sentido tentar construir uma vi- da de uma maneira biológica ou psicológica,
da no Brasil do que em qualquer outro lugar. mas fundamentalmente como sendo universal,
Eu poderia contar essa mesma história do pon- a mesma para todo o mundo. Mas as profundas
to de vista estritamente intelectual, mas isso, diferenças na dinâmica da epidemia de AIDS –
de certa forma, seria desonesto, porque de fato em culturas da África subsaariana, em comu-
não foi assim que ocorreu. Foi uma história co- nidades gays, nos países da Europa Ocidental
mo a vida – e todas as suas dimensões – o fun- ou na América do Norte – chamavam a atenção
damental na decisão tomada. O que, em últi- não só para a sexualidade em si, mas para a di-
ma instância, significa fazer com que o traba- versidade sexual e a sua complexidade. Nesse
lho ganhe sentido no contexto da vida e vice- sentido, a epidemia provavelmente ajudou tan-
versa. Para mim, também esse encontro com a to a priorizar o campo como merecedor de in-
sexualidade como área de estudo tinha muito a vestimento e reflexão, bem como a trazer a preo-
ver com isso. Para qualquer pessoa que investi- cupação com a construção social da sexuali-
gue sexualidade, raça, gênero, ou qualquer ou- dade. Esses temas entraram forçosamente na
tro fenômeno que, de uma forma ou de outra, pauta de discussão até nos setores a princípio
esteja relacionado com as dimensões mais pes- mais resistentes, como entre os profissionais
soais da identidade e da subjetividade, existe da área médica. De repente, abriram-se os olhos,
sempre uma negociação entre quem você é e admitindo-se que se sabia muito pouco e que
como vai construir seu próprio campo de in- havia muito a ser investigado, o que não quer
vestigação. Isso não significa confundir uma dizer que tenha sido fácil. Foi uma luta! Lem-
coisa com a outra – você pode, por exemplo, bro-me de quando participei da construção do
ser branco e investigar as relações raciais, a dis- primeiro programa global de controle da AIDS
criminação dos negros –, mas quer dizer que, de na OMS, em 1988, 1989 e 1990, sob a direção
alguma forma, a sua vida pessoal está implica- de Jonathan Mann. Ele conseguiu que a OMS

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apoiasse as investigações sobre sexualidade, res 10 (1994), que foi finalmente publicada pela
mas a pesquisa ainda era tímida, realmente não University of Chicago Press sob o título The So-
se queria enfrentar o tema da sexualidade. Foi cial Organization of Sexuality: Sexual Practices
uma luta a constituição dessa agenda, até en- in the United States.
tre setores razoavelmente esclarecidos. Nesse
sentido, o meu trabalho, bem como o de outras RB O Relatório Hite 11 é anterior a isso.
pessoas daquela época, foi realmente funda- RP É muito anterior e não científico, no senti-
mental. Outro produto disso foi o despertar pa- do da amostragem 12. Nos anos 80, o projeto de
ra a relevância do tema por parte de algumas pesquisa da Universidade de Chicago foi der-
fontes de financiamento, por meio de funda- rubado pelos republicanos no senado dos Es-
ções privadas, entre as quais se destacam a Fun- tados Unidos. Ia ser o primeiro estudo sobre o
dação Ford e, mais tarde, as fundações MacAr- tema e, ao contrário do Relatório Hite 11, muito
thur e Rockefeller. mais rigoroso em seus procedimentos metodo-
lógicos, com uma amostra representativa em
RB Quer dizer que você confere, nesse sentido, termos estatísticos 13 . As fundações tiveram de
um grande crédito às agências de fomento não- entrar para garantir sua realização. Aqui, as
governamentais? pesquisas começaram, mas de fato os projetos
RP Em um primeiro momento, sim. A relação foram encampados em nível governamental
entre agências não-governamentais e agências somente no campo da AIDS e por causa da exis-
intergovernamentais é sempre complicada. Nor- tência dessa verba, que era muito maior que
malmente, é típico das pequenas agências não- em outros campos. Entretanto, no Brasil, tem-
governamentais apoiar as áreas de maior risco, se assistido à incorporação desse tema como
mas investindo poucos recursos. E se os resul- prioridade governamental no MS, mas não em
tados são interessantes, a tendência é que es- agências nacionais de fomento a pesquisas, co-
sas áreas sejam incorporadas na agenda das mo o Conselho Nacional de Desenvolvimento
agências intergovernamentais, que possuem Científico e Tecnológico (CNPq). Nesse senti-
maiores recursos. No campo da sexualidade, do, você tem toda razão: nos Estados Unidos,
ocorreu esse processo: as fundações privadas com estrutura e verbas substanciais para pes-
fizeram uma primeira aposta, depois essa ques- quisa, apesar de todos os problemas políticos
tão foi incorporada, com recursos mais pesa- que existem hoje em dia, ainda assim há o apoio
dos, pelas agências maiores, governamentais e governamental. Por exemplo, no departamen-
intergovernamentais. to que atualmente chefio, na Universidade de
Colúmbia, uma das primeiras coisas que fiz foi
RB Você diria que esse processo também ocor- criar um centro de estudos sobre gênero, se-
re em países como o Brasil? Isso me parece mais xualidade e saúde, de certa forma inspirado no
claro em países como os Estados Unidos, onde modelo do que fizemos na UERJ, no Programa
há verbas substantivas para pesquisa. de Gênero, Sexualidade e Saúde. Nós consegui-
RP No caso da AIDS, por causa da particulari- mos dois financiamentos iniciais da Fundação
dade do Brasil – um país grande, com uma po- Ford para começar a desenvolver projetos. Ago-
pulação significativa, uma economia impor- ra estamos na fase de elaboração de um proje-
tante no sistema global –, há recursos vindos to de treinamento, incluindo a concessão de
de agências intergovernamentais, como o Ban- bolsas para os alunos, que deve ser financiado
co Mundial, mais do que em outros países em com recursos governamentais. A lógica é essa:
desenvolvimento. Basta citar o investimento tem-se uma pequena verba não-governamental
feito para realizar uma primeira pesquisa na- que dá a possibilidade de inovar, fazer um in-
cional sobre comportamento sexual 8 e agora vestimento de risco, mas mostrar que é um cam-
para uma segunda rodada da mesma pesquisa. po em que vale a pena investir, e aí, com alguma
Uma fundação dificilmente poderia fazer esse sorte, consegue-se verba governamental para
tipo de investimento. É muito mais complica- dar prosseguimento a essa linha de pesquisa.
do. De certa forma, é interessante comparar
com a situação dos Estados Unidos, onde havia RB Penso que essa é uma grande diferença,
uma pesquisa nacional pronta para ser feita pois as possibilidades de financiamento no
com recursos governamentais, que foi cortada Brasil não seguem usualmente esse caminho.
por conservadorismo político no final dos anos Dando continuidade aos temas que concebe-
80 e início dos 90, e levada adiante pelas fun- mos para essa entrevista, gostaríamos que você
dações, embora com menor abrangência 9 . Es- falasse um pouco sobre as diferentes perspec-
tou me referindo à pesquisa da Universidade tivas teóricas que enfocam o tema da sexuali-
de Chicago, de Edward Laumann e colaborado- dade e como você se localiza nesse campo.

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RP Nos anos 80, havia uma polarização muito veram algum sucesso. Na medida em que se po-
grande entre o essencialismo e o construtivis- dia entender melhor a construção social da ho-
mo 2 . De um lado, tinha-se a visão da sexuali- mossexualidade e das práticas sexuais, houve
dade como um produto dado pela natureza, um desdobramento em projetos de prevenção,
seja pela biologia ou pela psicologia, e, de ou- ações de reeducação e em estratégias de comu-
tro, entendida como cultural, social e histori- nicação. Havia uma passagem muito rápida
camente construída e, portanto, variável em dessa abordagem mais construtivista para uma
diferentes momentos históricos e contextos so- aplicabilidade prática, programática. No Brasil,
ciais. Em parte como resultado das pesquisas certamente, uma das coisas que me impressio-
sobre HIV/AIDS nos anos 80 e ao longo dos anos naram, muito mais até do que nos Estados Uni-
90, houve o surgimento de uma terceira posi- dos, foi a abertura que os programas governa-
ção que tenta escapar a essa polarização. É de- mentais, oficiais, tinham para esse tipo de abor-
nominada por alguns de biopsicossocial, pers- dagem interpretativa. Houve o diálogo desde o
pectiva que tenta integrar as duas primeiras começo, logo na primeira fase do Programa
vertentes. Eu arriscaria dizer que um estudo Nacional de AIDS no Brasil, quando Lair Guer-
entre os pesquisadores que trabalham no cam- ra de Macedo era a coordenadora, ainda nos
po provavelmente revelaria que a maioria de- anos 80 14 . Até quando nós, ativistas, criticáva-
les se posiciona nessa vertente biopsicossocial, mos as políticas adotadas pelo governo, ainda
que talvez venha apresentando menos avan- assim havia o diálogo e uma abertura para en-
ços em termos teóricos. Constatam-se maiores tender as particularidades da construção cul-
avanços nas posições mais radicais, seja na ge- tural da sexualidade.
nética, representativa do lado essencialista –
por exemplo, na tentativa de vincular certas RB Parece-me que um outro investimento a ser
práticas e identidades a uma dada construção feito seria na abordagem inter ou transdiscipli-
genética, enfim, o gene dos gays –, ou no cons- nar da sexualidade, um esforço que, de fato,
trutivismo mais radical. Esses projetos, de fato, ainda não se completou.
têm avançado mais em termos de propiciar RP Concordo. Há espaços onde isso tem acon-
pesquisas interessantes. Esse processo, me pa- tecido mais do que em outros. Num primeiro
rece, coloca duas questões importantes. Uma instante, a idéia de construções culturais foi
delas mostra claramente que, até hoje, apesar muito enfatizada. Foi um momento no qual a
de todo o investimento no campo da sexuali- contribuição da Antropologia foi fundamental.
dade, ainda falta investimento financeiro subs- Mas, ao longo dos anos 90, houve um crescen-
tantivo, investimento de longo prazo no que eu te interesse pelas questões mais estruturais da
chamaria de investigações de fundo. Ou seja, epidemia, trazendo, por exemplo, a contribui-
em outros campos científicos, o que embasa a ção da Sociologia e do estudo das desigualda-
pesquisa aplicada, pelo menos em países de- des sociais. Somaram-se ainda contribuições
senvolvidos, resulta de investimentos em áreas da Ciência Política, da Economia Política, em
básicas como a física, a química etc. Os investi- um esforço interdisciplinar que uniu a Antro-
mentos não vão produzir necessariamente al- pologia, a Sociologia e os Estudos Políticos e
guma conseqüência prática, aplicada e imedia- Econômicos no enfoque da economia política
ta, mas o dinheiro continua sendo investido do corpo. Essa é uma área em que de fato a in-
porque as pessoas sabem que isso cria funda- terdisciplinaridade tem crescido bastante, mas
mentos que depois possibilitarão pesquisas ainda assim sem envolvimento de psicólogos,
aplicadas. Na sexualidade esse processo não de pessoas ligadas às ciências comportamen-
aconteceu. A AIDS desmascarou isso, mas até tais. A verdadeira interdisciplinaridade só se
hoje quase não há centros de pesquisa em ne- consegue no trabalho conjunto de montagem
nhum lugar do mundo sobre os quais realmen- e desenvolvimento de projetos de pesquisa. E,
te se possa dizer: esse é um centro de pesquisa ironicamente, as próprias estruturas que fo-
sobre sexualidade – exceto o Instituto Kinsey, mentam pesquisas, o financiamento às pesqui-
mas sem o mesmo vigor de antes. Um dos gran- sas, a organização da universidade impedem,
des desafios que estamos pensando na Univer- de algum modo, que isso aconteça, porque tu-
sidade de Colúmbia é a criação de espaços em do continua sendo estruturado de uma manei-
algumas instituições de peso para possibilitar ra disciplinar e, de certa forma, ultrapassada.
essa tarefa, que não será nada fácil... A segunda Há alguns espaços nos quais existe uma certa
questão se refere ao fato de as pesquisas cons- interdisciplinaridade, o que é típico no campo
trutivistas terem tido uma aplicabilidade mui- da saúde coletiva, por exemplo. Em vários cen-
to imediata, muito relevante no contexto da tros há departamentos que agregam sociólo-
AIDS, uma das razões pelas quais realmente ti- gos, antropólogos, cientistas políticos, psiquia-

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tras, psicanalistas, mas realmente, conseguir ra muito intensa com relação à AIDS, embora
que pessoas desses diferentes âmbitos traba- tenha abrangido o setor saúde como um todo.
lhem juntas não é fácil. Muitas vezes, o que O pessoal do Instituto de Medicina Social e o
passa por interdisciplinaridade é um leque de da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), por
projetos feitos em comum, mas cada qual com exemplo, estava sempre indo e vindo para ocu-
seu olhar disciplinar. par postos na esfera executiva do governo. Em
São Paulo havia um movimento quase dialéti-
RB Caminhando para a questão da AIDS, você co, que me parece ter sido muito positivo para
vem insistindo desde a década de 80 sobre a o campo da saúde no Brasil. Depois da ditadu-
necessidade da interlocução entre academia, ra militar, quando o pessoal da reforma sanitá-
sociedade e Estado e o papel fundamental des- ria voltou a ocupar cargos públicos importan-
se diálogo para alcançar alguma resposta efeti- tes, houve uma melhora da qualidade do tra-
va no controle da AIDS. balho na saúde coletiva, do qual a AIDS é só
RP O primeiro dos grandes achados foi a des- um exemplo muito intenso – e talvez um exem-
coberta das dimensões sociais e políticas da plo que valha a pena entender um pouco me-
epidemia de AIDS, que surgiu da sociedade e lhor, porque a epidemia trouxe novos atores,
não da academia. Até mesmo as respostas à conferiu espaços de legitimidade para o movi-
epidemia, como o primeiro enfrentamento efe- mento gay e lésbico, para o movimento femi-
tivo na comunidade homossexual norte-ame- nista, de uma maneira diferente do que tinha
ricana, surgiram da própria comunidade. Não havido até então. A AIDS trouxe algumas coisas
partiram de programas governamentais e, mui- novas.
to menos, de investigadores. Estes tiveram de
aprender com essas lições para trazê-las para RB No caso brasileiro, você tem uma clara per-
uma ótica científica e começar a investigar. Aos cepção da importância da relação entre acade-
poucos, em alguns lugares, como nitidamente mia, sociedade e Estado. Que semelhanças e
ocorreu no Brasil, os governos foram suficien- diferenças existem com a realidade norte-ame-
temente esclarecidos para aprender com essas ricana?
experiências. Olhando para os anos 80, algu- RP Nos Estados Unidos, os campos são mais
mas pessoas, como Herbert Daniel ou o Beti- amplos e os recursos em jogo são maiores, por-
nho 15 , tiveram capacidade de desvendar a epi- tanto, parte dos diálogos se dá de uma maneira
demia com mais clareza sociológica, antropo- mais complexa. Não ajuda em nada, por exem-
lógica e política do que os investigadores na plo, o campo político norte-americano ter, de
universidade. Aos poucos, por causa da pres- um lado, uma democracia mais estabelecida e,
são dos movimentos sociais, houve um diálogo de outro, contar com um jogo partidário no
envolvendo o Estado, o que acabou possibili- qual a diferença entre republicanos e democra-
tando uma abordagem menos técnica, um pou- tas é muito pequena. O que não deixa de ser
co mais politizada 14 . Nesse sentido, a AIDS é irônico. Mas, em termos de grandes tendências,
só um exemplo a ser seguido em outros cam- os contextos de Brasil e Estados Unidos são se-
pos. Não foi só um diálogo de pessoas em luga- melhantes. No governo Clinton, por exemplo,
res estanques; havia um trânsito delas em vá- havia um intercâmbio muito grande entre aca-
rias esferas, como foi o meu caso. Eu era pro- demia, sociedade civil e Estado. Isso era muito
fessor universitário, comecei a atuar no Conse- nítido na Conferência Internacional de Popu-
lho da ABIA, assessorando o trabalho de uma lação e Desenvolvimento, realizada pela Orga-
ONG; passei um tempo como chefe da Unidade nização das Nações Unidas (ONU), em 1994,
de Prevenção do Programa Nacional de AIDS; no Cairo, ou em outros processos semelhantes,
depois passei a diretor executivo da ABIA, que se deram de uma maneira muito parecida
quando o Herbert Daniel esteve afastado por com o que estava ocorrendo no Brasil no mes-
questões de saúde, e durante todo o tempo mo período. Nos períodos de governo republi-
mantive minha ligação, como professor uni- cano, essa relação torna-se muito complicada,
versitário, com o IMS da UERJ. Parece-me que especialmente tratando-se de AIDS e sexuali-
isso foi muito positivo para o crescimento e o dade, educação sexual e população, campos ex-
amadurecimento do trabalho. Quando as pes- tremamente marcados por questões ideológi-
soas das ONGs passam a assumir responsabili- cas, as quais são muito contestadas nos Estados
dades em postos do Estado, começam a ama- Unidos por causa de sua tradição puritana e
durecer e a ter uma visão um pouco mais com- conservadorismo acentuado. No governo atual,
plexa dos desafios e dificuldades, de modo a por exemplo, há uma polarização crescente,
propiciar uma contribuição eficaz para a me- em que a sociedade civil e a academia ficam
lhoria do trabalho. Isso ocorreu de uma manei- completamente afastadas do Estado. E este é

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tomado, basicamente, por representantes de plementadas. É um ambiente muito excitante,


“think tanks” 16 , conservadores e religiosos que muito estimulante para trabalhar. As pessoas
usam seus recursos, que são muitos, para alo- sentem isso, muitas trabalham até à meia-noi-
car no Estado “cientistas” que tenham posturas te ou chegam para trabalhar às sete, oito horas
ideológicas extremistas e conservadoras. Pare- da manhã, estimuladas para fazer o que estão
ce-me que, apesar de o Brasil ser uma socieda- fazendo. Entretanto, a proposta intelectual não
de extremamente religiosa, as religiões brasi- é muito diferente, o que me impressionou. Eu
leiras, inclusive a católica, colocam-se de for- diria que muitas coisas que aprendi no Brasil
ma menos problemática. Com o movimento foram implementadas no meu trabalho nos Es-
evangélico isso é mais complicado, pois há po- tados Unidos de uma maneira interessante. Se
líticos evangélicos, a bancada evangélica, o que eu não tivesse desenvolvido um trabalho teóri-
torna a situação um pouco mais parecida, la- co, intelectual, dificilmente seria julgado favo-
mentavelmente, com a norte-americana. ravelmente por lá, mas a dimensão mais políti-
ca do meu estudo tem sido uma coisa interes-
RB Convivendo nos dois contextos acadêmicos, sante.
no Brasil e nos Estados Unidos, quais seriam as
principais diferenças e semelhanças existentes RB Você acha que o reconhecimento da inter-
e de que maneira estas interferem na produção seção entre ativismo e academia como algo im-
do conhecimento? portante nos Estados Unidos é recente?
RP Existem grandes semelhanças e grandes di- RP É mais recente, e acho também que não é
ferenças. Usando o exemplo do IMS da UERJ, o típico em todos os campos. A Saúde Coletiva,
espaço institucional é muito semelhante ao da bem como o Serviço Social, são campos que li-
Escola da Saúde Pública de Colúmbia. Embora dam sempre com problemas sociais, e a rele-
esta última seja muito maior, com mais qua- vância ou não do trabalho depende, de certa
dros acadêmicos, a estrutura de departamen- forma, da capacidade de se engajar e dialogar
tos não é muito diferente. Há o mesmo leque politicamente. Isso é diferente de uma certa
disciplinar; historiadores, psicólogos, sociólo- “torre de marfim” em que eu talvez estivesse se
gos, antropólogos e a tentativa de criar esse es- fosse professor em um departamento de Antro-
paço de reflexão interdisciplinar, aplicando as pologia. Talvez não fosse tão valorizado quanto
teorias e metodologias das Ciências Sociais às num departamento de Ciências Sociomédicas,
questões fundamentais da Saúde Pública. En- por exemplo. Há também aqui uma certa espe-
tão, nesse sentido, a proposta institucional é cificidade da Universidade de Colúmbia. Lá,
muito parecida. É óbvio que, em termos de re- dentro da Saúde Pública, que tradicionalmente
cursos, a escassez no Brasil prejudica muito. tem sido um espaço mais de esquerda, quase
Nos Estados Unidos, principalmente em Co- todos os professores mais engajados são anti-
lúmbia, os recursos estão muito mais disponí- gos e de alguma forma vinculados com as es-
veis do que aqui. Há também uma outra dife- querdas. Há um contraste muito grande com as
rença: Colúmbia é uma universidade privada, universidades de Harvard e Johns Hopkins, al-
não tem dinheiro do Estado, tem de levantar tamente competitivas, mais tecnocrata no caso
todos os recursos, e a educação oferecida aos desta última e mais conservadora no contexto
alunos, a formação, é distinta por ser uma uni- da primeira.
versidade privada. Nas universidades brasilei-
ras, principalmente nas públicas, tem-se maior RB Você tem exatos vinte anos de Brasil. Após
clareza sobre sua responsabilidade social – mais esse tempo, que impacto você diria que teve na
clareza, mas, ao mesmo tempo, menos capaci- sua vida profissional o fato de ter vindo, ter fi-
dade de desempenhá-la, pela escassez de re- cado aqui e ter mantido intercâmbio de diver-
cursos. A diferença se faz ainda mais nítida, sas maneiras com o Brasil?
pois, especialmente ao longo dos anos 90, ao RP Não posso imaginar minha vida profissio-
que me parece, houve sistematicamente me- nal sem isso, tampouco a minha vida pessoal.
nos investimentos nas universidades brasilei- Minha visão de mundo foi profundamente for-
ras, tanto federais como estaduais, ao passo que mada pelo meu encontro com a sociedade bra-
nos Estados Unidos, em Colúmbia, pelo menos sileira e, espero eu, de uma maneira muito po-
nos últimos seis ou sete anos o orçamento da sitiva. O que aprendi no Brasil, às vezes com
Escola de Saúde Pública passou de 30 para mais pesquisadores, mas muitas vezes com pessoas
de 100 milhões. Em menos de uma década tri- como Herbert Daniel, Betinho ou colegas de
plicaram-se os recursos disponíveis, o que dá trabalho no campo da AIDS, tem sido muito
uma sensação de que as coisas estão aconte- mais importante do que qualquer formação
cendo, crescendo, com novidades sendo im- educacional que tive anteriormente e decerto

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RICHARD PARKER S463

influenciou o tipo de problema, o tipo de ques- são muito ruins. Muito mais do que nos anos
tão que eu investigo hoje, ou com o que sou 80, os Estados Unidos têm uma hegemonia glo-
movido a me preocupar. Isso tudo foi funda- bal absoluta, sem nenhuma oposição, que terá
mentalmente formado no encontro com o Bra- efeitos na área de população, da saúde e dos
sil e as questões em debate aqui. A migração direitos reprodutivos e da própria AIDS. O go-
que fiz, ao longo dos anos, de uma perspectiva verno vai condicionar a concessão de dinheiro
mais estritamente antropológica – preocupado para a AIDS à promoção de abstinência sexual.
com a cultura – para uma preocupação maior Nesse contexto, acho até que eu estou bem po-
com questões políticas, com a economia políti- sicionado, em dois sentidos: pelo trabalho no
ca, foi inteiramente movida e estruturada pelo Brasil, que tem liderado uma política progres-
encontro com o trabalho no Brasil e o meu en- sista dessas questões com relação aos países
volvimento com pesquisadores e pensadores menos ricos, e nos Estados Unidos, pelo me-
nesse campo. Muito do que estou fazendo nos nos, tenho a felicidade de estar numa Universi-
Estados Unidos, em Colúmbia, é tentar levar dade que se constitui como pólo de resistência.
algumas experiências e lições construídas aqui Colúmbia certamente é uma aldeia para os “re-
no Brasil. Um grande mal dos norte-america- fugiados” que vêm do governo Clinton quando
nos é que eles não aprendem nada com o resto a administração do Bush entra. É um papel
do mundo. Se o trabalho que eu estou fazendo bastante importante a ser desempenhado, em
lá tem uma pequena utilidade, é por tentar in- termos de resistência, mas reconhecendo que
verter isso, construir um centro de pesquisa a batalha vai ser longa, que somos minoria e
baseado fundamentalmente no programa que muito enfraquecidos ante o dragão que esta-
nós construímos aqui, tentar trazer algumas mos enfrentando.
questões mais políticas para descentralizar a
visão de lá e relativizar outras. Isso pode dar, RB Para finalizar, o que você enxerga como
espero eu, alguns resultados interessantes. prioridades, hoje, na área de pesquisa sobre se-
xualidade? O que ainda falta fazer, onde se de-
RB Quais são os desafios que se colocam para ve investir?
você hoje, trabalhando nesses dois ambientes RP Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos,
acadêmicos distintos? Um deles, você acabou um dos grandes desafios é a institucionaliza-
de mencionar. Há outros? ção. Muito tem sido feito por conta da AIDS e
RP Esse, certamente, é um dos principais. Um em nome da sexualidade em si, mas com re-
segundo desafio é uma questão da conjuntura cursos que se evaporam muito fácil e rapida-
política num mundo globalizado, o que é uma mente se o trabalho não for mais instituciona-
outra coisa. Ao longo desses vinte anos, de cer- lizado. Seria muito importante a criação de es-
ta forma, as questões colocadas nos dois países paços institucionais capazes de treinar, formar
acabam por ser mais parecidas por conta das quadros e incorporá-los em trabalhos fixos, que
mudanças no capitalismo global – mudanças não sejam precários. Institucionalmente, o tra-
que aproximam o chamado “primeiro mundo” balho ainda é muito precário. Nós temos de en-
do chamado “terceiro mundo”, ao mesmo tem- trar numa nova fase. Mas o grande problema –
po que criam um “quarto mundo” nas comuni- e volto para aquele desafio anteriormente apon-
dades pobres e excluídas tanto no Norte quan- tado – é o momento histórico muito ruim para
to no Sul. A marginalização de certos setores da fazê-lo. Justamente por isso, vejo como ques-
população, tanto lá como aqui, parece ser mui- tão prioritária, mais do que qualquer questão
to semelhante hoje, talvez mais do que há vin- intelectual em si, como é que podemos cons-
te anos. Estamos num momento político muito truir, de uma forma mais sólida, as bases para
ruim. O governo Bush é uma tragédia mundial. desenvolver esse trabalho a longo prazo. E, nes-
O ataque terrorista de 11 de setembro teve, a se sentido, penso que o Programa de Metodo-
médio prazo, a sua pior conseqüência: legiti- logia em Pesquisa que vocês coordenam é um
mou o governo Bush. Um governo que estava a exemplo necessário para construir e consoli-
caminho de cair por si mesmo, sem legitimida- dar esse campo de investigação. Um próximo
de nos Estados Unidos e que certamente não passo é ver esse tipo de programa incorporado
seria reeleito, virou um governo forte. Aquele no currículo normal, não ser só um projeto es-
ataque produziu um efeito típico: em momen- pecial. Isso sempre foi pensado como uma pró-
tos de ameaça os americanos se unem e inves- xima etapa depois desse primeiro momento.
tem de legitimidade as suas lideranças. Agora Nesse sentido, ele está indo na direção certa e,
fica difícil imaginar o Bush não sendo reeleito me parece, até com mais sucesso do que talvez
e fazendo uma presidência de oito anos. É um imaginássemos quando tivemos a primeira
momento ruim e suas conseqüências também idéia. Finalmente, acho fundamental chamar a

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atenção também para o aspecto positivo da co-


laboração interinstitucional que esse progra-
ma proporciona, ainda que às vezes seja difícil
sustentar na prática a consolidação de todos os
interesses envolvidos, por ser algo que ultra-
passa os espaços institucionais.

Referências e notas

1 10
Esta entrevista foi concebida e editada pelas auto- LAUMANN, E. O.; GAGNON, J. H.; MICHAEL, R. T.
ras e realizada em duas etapas por Regina Maria & MICHAELS, S., 1994. The Social Organization of
Barbosa, no Rio de Janeiro em março de 2003 e em Sexuality: Sexual Practices in the United States.
Nova York em setembro do mesmo ano. Chicago: University of Chicago Press.

2 11
PARKER, R., 1991. Corpos, Prazeres e Paixões: Cul- HITE, S., 1978. O Relatório Hite: Estudo sobre a Se-
tura Sexual no Brasil Contemporâneo. São Paulo: xualidade Feminina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
Best Seller.
12
The Hite Report: A Nationwide Study of Female Se-
3
PARKER, R., 2000. Na Contramão da AIDS: Sexua- xuality, publicado pela feminista Shere Hite em
lidade, Intervenção, Política. Rio de Janeiro: Asso- 1976, provocou grande impacto à época por con-
ciação Brasileira Interdisciplinar de AIDS/São Pau- testar numerosas noções estabelecidas sobre a se-
lo: Editora 34. xualidade feminina, mas, no entanto, é criticado
atualmente por suas fragilidades metodológicas,
4
PARKER, R., 2002. Abaixo do Equador: Culturas de especialmente quanto à representatividade dos
Desejo, Homossexualidade Masculina e Comuni- achados.
dade Gay no Brasil. Rio de Janeiro: Record.
13
Apesar de técnicas de amostragem probabilística
5
A Passarela Prof. Darcy Ribeiro, também conheci- terem sido desenvolvidas e incorporadas aos in-
da como Sambródomo, está localizada na Rua Mar- quéritos populacionais desde as décadas de 30 e
quês de Sapucaí, no bairro de Cidade Nova, no Rio 40 do século XX, até a década de 70, acreditava-se
de Janeiro. Durante o Carnaval, anualmente, nela ser impossível adotá-las em pesquisas sobre se-
ocorre o desfile oficial de Escolas de Samba, agre- xualidade, pelo caráter íntimo e privado das res-
miações que apresentam enredos por meio do postas que ocasionaria um alto percentual de re-
samba, da fantasia e dos carros alegóricos. cusas. A partir dos anos 80, inúmeros estudos fo-
ram realizados, utilizando amostras probabilísti-
6
A esse respeito ver: CASTILHO, E. A.; CHEQUER, cas, comprovando sua viabilidade – a esse respei-
P. & STRUCHINER, C. J., 1992. AIDS no Brasil. In- to ver o capítulo 1 (pp. 7-13) em: ERICKSEN, J. A.
forme Epidemiológico do SUS, 1:117-124. & STEFFEN, S. A., 1999. Kiss and Tell: Surveying
Sex in the Twentieth Century. Cambridge: Harvard
7
PARKER, R., 1987. Acquired immunodeficiency University Press.
syndrome in urban Brazil. Medical Anthropology
14
Quarterly, 1:155-172. PARKER, R., 1994. A Construção da Solidariedade:
AIDS, Sexualidade e Política no Brasil. Rio de Ja-
8
MS (Ministério da Saúde), 2000. Comportamento neiro: Relume-Dumará.
Sexual da População Brasileira e Percepções do
15
HIV/AIDS. Brasília: Coordenação Nacional de DST Ambos fundadores da ABIA, militantes dos direi-
e AIDS, Secretaria de Políticas de Saúde, Ministé- tos de portadores de HIV e doentes de AIDS.
rio da Saúde.
16
Em termos gerais, “think tanks” poderia ser tradu-
9
A esse respeito ver o capítulo 9 (pp. 176-208) em: zido como instância, institucionalizada ou não, de
ERICKSEN, J. A. & STEFFEN, S. A., 1999. Kiss and produção intelectual de ponta. Neste contexto re-
Tell: Surveying Sex in the Twentieth Century. Cam- fere-se especificamente à produção intelectual de
bridge: Harvard University Press. conservadores ligados ao atual governo americano.

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