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Saúde Mental

Políticas e Instituições
Programa de Educação a Distância

Bases Conceituais e Históricas


do Campo da Saúde 1
Saúde Mental - Políticas e Instituições • Guia do Estudante 1
GOVERNO FEDERAL

MINISTRO DA SAÚDE
Humberto Costa

FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

PRESIDENTE
Paulo Marchiori Buss

DIRETOR DA ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA


Jorge Antonio Zepeda Bermudez

COORDENADOR DA ESCOLA DE GOVERNO EM SAÚDE - EAD


Antonio Ivo de Carvalho

EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA - ENSP

COORDENADOR GERAL
Antonio Ivo de Carvalho

COORDENADORA DA GESTÃO ACADÊMICA


Lia Ribeiro

CURSO SAÚDE MENTAL - POLÍTICAS E INSTITUIÇÕES

COORDENADOR
Paulo Amarante

COORDENADORES ADJUNTOS
João Paulo Lyra da Silva
Rosemary Corrêa Pereira

AUTORES
Ana Carla Silva
André Luís Duval Milagres
Denise Dias Barros
Ernesto Aranha Andrade
Jacob Portela
João Paulo Lyra da Silva
Maria Goretti Andrade Rodrigues
Marta Moreira Nunes
Patty Fideles da Silva
Paulo Amarante
Rosemary Corrêa Pereira
Waldir da Silva Souza

EQUIPE TÉCNICA-PEDAGÓGICA
Lúcia Maria Dupret Vassalo do Amaral Baptista
Henriette Santos

SECRETARIA / APOIO ADMINISTRATIVO


Maria Zenilda Moreno Folly
Cláudia Pacheco dos Santos

2 Saúde Mental - Políticas e Instituições • Guia do Estudante


Saúde Mental - Políticas e Instituições • Guia do Estudante 3
Copyright © 2003
Todos os direitos desta edição reservados à Fundação Oswaldo Cruz

PRODUÇÃO
Interligar Comunicação Interativa
www.interligar.com.br

PROJETO GRÁFICO
Heron Machado Rocha
Ana Cristina Secco

CAPA
Ilustração de Heron Machado Rocha com base em desenho de M. C. Escher (1898 - 1972)

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Lila Montezuma Gomes
Luciana Gomes

REVISÃO
Fernanda Veneu

Agradecimentos
Ernesto Venturini, CEBES, Cláudia Ehrenfreund, Pasquale Evaristo, Giuseppe Dell’Acqua, Manuel Desviat, Thiago de França,
Alexandre Bellagamba e Leandra Brasil da Cruz.

A485s Amarante, Paulo (Coord)


Saúde mental, políticas e instituições: programa de
educação a distância. / Coordenado por Paulo Amarante.
Rio de Janeiro: FIOTEC/FIOCRUZ, EAD/FIOCRUZ, 2003.
3v., ilus., 28 cm.
ISBN: 85-87743-16-3

1. Saúde mental 2. Política de saúde. 3. Instituições de


saúde. I. Título.

CDD - 20.ed. - 362. 2

PROGRAMA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA


EAD/ENSP
Av. Brasil, 4.036, sala 908 - Manguinhos
CEP: 21040-361
Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Tel./Fax: 0800 225530
proead@ead.fiocruz.br
www.ead.fiocruz.br

4 Saúde Mental - Políticas e Instituições • Guia do Estudante


BASES CONCEITUAIS E HISTÓRICAS DO CAMPO DA SAÚDE

Sumário

GUIA DO ESTUDANTE 7

MÓDULO 1 23
As Origens Históricas e Conceituais da Medicina Moderna e das
Políticas de Saúde

MÓDULO 2 39
A Transformação do Hospital em Instituição Médica e sua
Importância no Desenvolvimento da Medicina Contemporânea

MÓDULO 3 51
A Clínica e a Anatomia Patológica como Bases da
Medicina Científica Moderna

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6 Saúde Mental - Políticas e Instituições • Guia do Estudante
Guia do Estudante

Apresentação
Parabéns por sua iniciativa!
A partir de agora você é aluno do Curso de Educação a Distância em Saúde Mental da Escola Nacional de
Saúde Pública (Ensp), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Nosso desejo é poder fazer, junto com você, um
bom trabalho.
Para o melhor proveito é importante que você compreenda o porquê desse curso, em que ele se baseia, a
quem ele se dirige e de que forma ele vai funcionar. Sendo assim, sugerimos que você leia com atenção este
Guia do Estudante.
Lembre-se de que, com nossa equipe de especialistas e orientadores da aprendizagem, estaremos sempre
ao seu lado neste caminho.

O que é a Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz?


A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) é uma instituição de ensino, pesquisa e cooperação técnica do
Ministério da Saúde.
Sediada no Rio de Janeiro, a Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp) é uma das Unidades da Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz), herdeira da importante tradição sanitária que remonta a Oswaldo Cruz, Carlos Chagas
e outros pioneiros. Ao longo de seus quase 50 anos de existência, tem atuado continuamente na produção de
conhecimentos técnico-científicos e na formação de recursos humanos na área da Saúde Pública ou Saúde
Coletiva. Além dos cursos de Mestrado e Doutorado em Saúde Pública, oferece atualmente cerca de 35 cursos
de pós-graduação nos níveis de Especialização, Aperfeiçoamento e Atualização. Forma mais de 800
profissionais de Saúde Pública a cada ano.

Saúde Mental - Políticas e Instituições • Guia do Estudante 7


Qual a experiência da Ensp no campo da Saúde Mental?
No campo da Saúde Mental, a Ensp oferece o Curso de Especialização em Saúde
Mental há muitos anos, assim como outros cursos descentralizados de especializa-
ção e extensão. Possui também uma linha de investigação de História dos Saberes e
Práticas no campo da Saúde Mental e Instituições Psiquiátricas, responsável por
Disciplinas nos cursos de Mestrado e Doutorado em Saúde Pública.
O primeiro curso no campo da Saúde Mental da Escola Nacional de Saúde Pública
da Fundação Oswaldo Cruz, oferecido na sede da própria Ensp, aconteceu em 1963.
A partir de 1994 foram iniciados também outros cursos descentralizados, tais
como os cursos de Especialização em Santos, Belém e Tocantins e os de Especi-
alização em Nível de Residência (em convênio com o Instituto Philippe Pinel e o
Centro Psiquiátrico Pedro II, ambos no Rio de Janeiro).
Desde 1992 os cursos de Saúde Mental da Ensp vêm sendo oferecidos em con-
vênios com o Ministério da Saúde, o Centro di Studi e Richerche per la Salute Mentale
della Regione Autonoma Friulli Venezia-Giulia (Trieste/Itália), o Servizio di Igiene
Mentale (AUSL – Imola/Itália) e o Instituto de Salud Mental e Servicios Psiquiátricos
José Germain (Madri/Espanha), todos centros colaboradores da OMS.

E o que é educação a distância?


A educação a distância é uma modalidade educacional, reconhecida pela Lei
n. 9.394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que permite que você
não precise se locomover de sua cidade, nem se ausentar do seu trabalho, para
concluir sua aprendizagem. Utilizando-se das Novas Tecnologias de Informação e
Comunicação, a EAD permite que você se organize e realize seu curso no local e
horário estipulado segundo sua dinâmica e necessidade e, portanto, com a
liberdade e o compromisso de aprender e estudar com mais autonomia e responsa-
bilidade. No entanto, você não estará sozinho. Um sistema de orientação estará à
sua disposição para auxiliá-lo neste processo.

Por que um curso de Saúde Mental a distância?


O campo da Saúde Mental tem mudado. E muito.
A base teórica mudou e as práticas assistenciais mudaram.
Se antes o hospital psiquiátrico deveria ser o centro da prática psiquiátrica, agora
se implanta, quase no mundo todo, um atendimento no modelo baseado na aten-
ção territorial ou comunitária em saúde mental.
Aqui no Brasil, aconteceu ainda a criação do Sistema Único de Saúde (SUS),
que contribuiu para mudar o panorama do campo da saúde mental. Com a
implantação do SUS, houve um admirável desenvolvimento no setor saúde,
com uma tendência dominante de reformulação de princípios e estratégicas,
acompanhada pelo campo da saúde mental. Atualmente, já estão em funcio-
namento mais de 300 serviços de atenção psicossocial, distribuídos por todo
o território nacional.

8 Saúde Mental - Políticas e Instituições • Guia do Estudante


Essas inovações trazem novos desafios, outras exigências, para o profissional
no dia-a-dia de seu de trabalho.
Já não basta ter uma formação clínica exemplar. Nós, profissionais, precisamos
conhecer diversos assuntos, de diferentes esferas, a respeito do cuidado dos
clientes, dos usuários dos serviços, e da organização dos serviços de saúde
mental. Nós precisamos de uma formação que nos familiarize com o campo da
saúde pública, ou saúde coletiva. Isso nos facilita ter uma compreensão sobre as
relações entre saúde e sociedade, entre indivíduo e estado, entre indivíduo e
instituições do campo, que sirva de base para nossa atuação.
Os serviços de atenção psicossocial são novos, principalmente, pelo fato de
serem embasados em uma lógica distinta daquela do modelo clássico (hospitalar
e individualista), para o qual todo o sistema formador era destinado. Esses servi-
ços configuram-se como espaços de atuação multiprofissional e multidisciplinar.
Sendo assim, fica clara a necessidade de uma formação que se contraponha
àquela formação especialista tradicional. A necessidade de uma formação que
conte com a afluência de várias disciplinas e saberes articuladores de uma visão
crítica da assistência.
A modalidade de educação a distância vem ao encontro desta demanda de
formação profissional requerida por tais serviços. A educação a distância possibi-
lita aliar estudo e trabalho sem a obrigatoriedade da presença. Sendo assim, você
pode participar de um processo de formação por meio de um curso a distância,
em sua própria cidade, de acordo com sua disponibilidade.

Como é possível aprender num curso a distância?


Faz parte da vida ensinar e aprender. É impossível viver sem aprender. Nós
aprendemos sempre! Logo, responder à essa questão vai depender da forma
como você entende o que é aprender, e quais os fundamentos que dão base,
sustentação ao processo de construção de conhecimentos.
Para entender bem essa questão, vamos exercitar primeiro a nossa capacida-
de de “criar sentido” para noções ou conceitos tais como método/metodologia e
educação.
Estar junto é o primeiro ponto. Estar juntos, para o que queremos com as ativi-
dades deste curso, quer dizer interagir. Interagir, trocar, repetitivamente, muitas
vezes, continuamente, abrindo possibilidades de encontrar novas maneiras de
ver o mundo.
Assim, já começamos a falar de educação e de método; de uma metodologia
da Educação.
Estamos falando do que em sociologia do conhecimento denomina-se de cons-
trucionismo. Essa abordagem teórica entende que os indivíduos são construtores
de seus próprios conhecimentos, a partir de suas experiências e expectativas. Isto
é, construímos significados e definimos nosso próprio sentido da realidade de
acordo com nossas experiências prévias e com os diferentes contextos de
aprendizagem.

Saúde Mental - Políticas e Instituições • Guia do Estudante 9


Em resumo, nossa compreensão é que a aprendizagem depende em muito do
que já sabemos e do que consideramos relevante saber, e que refletir e conscien-
tizar-se disto é um elemento essencial para selecionarmos, incorporarmos, trocar-
mos e conduzirmos com autonomia o processo de construção do conhecimento.
Estes pressupostos são diametralmente opostos ao enfoque tradicional, que
compreende os indivíduos como “tábulas rasas”, sobre as quais o que se escrever
poderá ser lido exatamente como foi escrito. Ou seja, o enfoque pelo qual a sim-
ples transmissão de informações é suficiente para a aprendizagem.
Nós, ao propor uma conversa, um diálogo, uma troca de experiências, quere-
mos dizer que:

É exatamente a partir da reflexão sobre suas vivências e necessida-


des profissionais que o convidamos a participar das atividades, a
explorar os materiais disponíveis e a interagir com outros alunos e
com seu orientador.

A aplicação dessa base teórica a distância requer a elaboração de estratégias


pedagógicas consistentes. Esse curso baseia-se em material impresso especial-
mente construído, e num sistema de orientação composto por uma equipe de
professores (orientadores da aprendizagem). Além disso, de Internet, telefone, fax
e correio para comunicação entre participantes e orientadores.
Para acompanhar o processo de ensino aprendizagem o curso também conta
com uma organização de apoio administrativo e de gestão acadêmica.
Por isso, recomendamos que você, ao concluir a leitura deste guia, entre em
contato o mais rápido possível com seu orientador para que se conheçam e
negociem um plano compatível com seus interesses e necessidades. Assim, ele
acompanhará suas atividades e estará sempre disponível para atendê-lo nos
horários combinados.

Quais os objetivos do curso?


O objetivo geral do curso é aperfeiçoar ou desenvolver profissionais ligados, ou
afins, ao campo da Saúde Mental, de forma crítica, quanto aos saberes e práticas
do campo.
Os objetivos específicos são:
• Conhecer os principais aspectos da constituição histórica dos saberes e
práticas institucionais no campo da assistência psiquiátrica e saúde
mental.
• Conhecer as fundamentações teóricas e as principais características
assistenciais dos modelos de reformas psiquiátricas.

10 Saúde Mental - Políticas e Instituições • Guia do Estudante


• Conhecer as bases institucionais e técnicas dos modelos de serviços e ações
de saúde e saúde mental adotados no Brasil no âmbito do SUS.

Qual o modelo pedagógico desse curso?


Com base na discussão teórica, você será estimulado a produzir conhecimento
sobre os problemas vividos no cotidiano da atenção em saúde mental. A busca
por soluções e sua discussão lhe permitirá desenvolver uma abordagem crítica
acerca de seus próprios conhecimentos e das suas práticas.
Vários recursos são oferecidos através dos livros-texto e do acompanhamento
tutorial a distância, tais como: bibliografia, orientação direta, lista de discussão,
entre outros.

Quais as competências profissionais, conhecimentos, e


habilidades que este curso permitirá adquirir?
A competência profissional é entendida aqui como um assumir de responsabi-
lidade, uma atitude social, antes mesmo de ser um conjunto de conhecimentos
profissionais. A intenção com este curso é que você obtenha, no decorrer das
atividades, novas referências para identificar, promover e gerir saberes, enfrentan-
do, com iniciativa e responsabilidade, as situações e acontecimentos do campo
da Saúde Mental e da atenção psicossocial.
Entendemos que nós, profissionais, devemos estar aptos a lidar com a heteroge-
neidade deste campo, decorrente da diversidade das profissões, dos profissionais,
dos usuários, das técnicas de cuidado utilizadas, das relações sociais e inter-
pessoais, das formas de organizações de trabalho, dos espaços e ambientes de
trabalho. Vemos, assim, a importância da formação de competências profissionais
para esse contexto, tendo como referência a Reforma Psiquiátrica e como estratégia
de reordenação setorial e institucional o Sistema Único de Saúde (SUS).
É importante frisar que as competências profissionais são construídas ao longo
de nossa vida profissional, na qual partilhamos experiências e práticas coletivas
ao lidar na assistência. Através do curso, pretendemos, partilhar uma formação
profissional que possibilite aplicar e desenvolver criativamente os conceitos estu-
dados na prática cotidiana de gestão dos serviços e na formulação de políticas
públicas em nossa área específica.
Ao final do curso, pretende-se que você reforce sua capacidade para uma atua-
ção crítica na área de gestão, formulação e implementação de políticas públicas
em saúde mental, no contexto da Reforma Psiquiátrica.

Saúde Mental - Políticas e Instituições • Guia do Estudante 11


Como funciona o Programa de Educação a Distância em
Saúde Mental?
Como já foi mencionado, a produção de conhecimento, neste curso a distância,
é sustentada por meio do tripé:

• O material didático
• A orientação
• A avaliação

O material didático, auto-instrucional, é representado por este material im-


presso e por ferramentas em meio digital, expostas na rede mundial de computa-
dores, a Internet. O material contém as informações necessárias ao cumprimento
dos objetivos do curso, ou mesmo a indicação de onde e como encontrá-las. O
conteúdo está organizado em eixos de conhecimentos divididos em três unidades.
A orientação oferece atendimento às dúvidas sobre os conteúdos do material
impresso e espaço para discussão e troca de experiências. O atendimento pode-
rá se dar por via fax, por cartas, pelo correio eletrônico (e-mail via Internet) e por
intermédio do portal da EAD na Internet. Um grupo de orientadores, especialmen-
te treinados nos conteúdos do curso, atende aos alunos em horários pré-determi-
nados. Cada orientador mantém um contato regular com os alunos sob sua res-
ponsabilidade através dos meios citados, lê e avalia os trabalhos e exercícios
enviados, dá explicações adicionais e tira dúvidas.
A avaliação do curso será realizada por meio dos exercícios e outras ativida-
des programadas, sob coordenação e supervisão dos orientadores. Ao final de
cada Módulo, haverá um exercício ou trabalho específico, que você encontrará em
seu material didático, e que deve ser realizado como condição indispensável para
a obtenção do título. Tais exercícios e/ou atividades devem ser realizados em uma
média de duas ou três laudas e enviados para o orientador.

Como acompanhar este curso?


Convidamos você a seguir nosso roteiro de estudos e comprovar que é possível
compreender melhor um assunto tão complexo como a Saúde Mental estudando
a distância com auxílio deste material didático, da orientação e do processo de
avaliação.
Este curso corresponde a 240 horas/aula e tem duração de 10 meses. Entretan-
to, o aluno pode concluí-lo em menos tempo, de acordo com sua disponibilidade
e dedicação. O aluno deve ter um tempo mínimo de estudo de 6 horas por semana.
Seguindo estas orientações, você terá condições de realizar o curso com ótimo
aproveitamento e dentro do prazo estipulado.
As informações a seguir vão ajudar você a se engajar neste curso e facilitar a
utilização dos recursos colocados à sua disposição para promover a leitura,
a compreensão e a aprendizagem dos conteúdos.

12 Saúde Mental - Políticas e Instituições • Guia do Estudante


Como percorrer o caminho por meio das unidades e módulos
do curso?
Os conteúdos são inter-relacionados. Cada uma das unidades e dos módulos
foi desenvolvido de forma a acrescentar e enriquecer os conhecimentos já
trabalhados. Sendo assim, procure seguir o programa em sua seqüência, ou seja,
da Unidade I à Unidade III, fazendo os exercícios e trabalhos quando solicitado e
cumprindo os prazos indicados.
Você deverá proceder à leitura e ao estudo da Unidade I, realizar as tarefas
referentes a essa unidade, para então iniciar o estudo da Unidade II; após o térmi-
no da segunda unidade, você poderá passar à Unidade III, e assim concluir todas
as unidades.
Seguir a seqüência das unidades e módulos, porém, não é obrigatório. Sugeri-
mos que você converse com seu orientador caso pretenda estudar o conteúdo do
curso de forma não linear. Lembre-se de que, durante todo o percurso, você con-
tará com o auxílio de seu orientador..

Como se desenvolvem os conteúdos?


Os conteúdos estão organizados em três unidades de acordo com o quadro
a seguir.

Saúde Mental - Políticas e Instituições • Guia do Estudante 13


Qual a estrutura dos módulos?
Todos os módulos tem as seguintes seções:
• Apresentação – é a seção inicial do módulo, em que se busca contextualizar o
assunto tratado dentro do percurso do curso.
• Objetivos do Módulo – apresenta, de maneira sintética, os objetivos
específicos do módulo a ser estudado.
• Desenvolvimento do Conteúdo – é o corpo do texto em si. O texto é
apresentado em uma linguagem que facilita o aprendizado à distância. Cada
texto é dividido em partes ou seções.
• Glossário – em alguns casos, existem termos cujo entendimento é indis-
pensável para o acompanhamento do texto apresentado no módulo; nesses
casos, o termo que está destacado em negrito é conceituado no que chama
mos de glossário. O glossário aparece no decorrer do módulo, sempre que
for necessário.
• Questões para Reflexão – são questões que aparecem durante cada módulo
e servem para auxiliar a aprendizagem. Essas questões utilizam conceitos
importantes dentro de cada módulo, procurando ajudá-lo a relacionar os
conteúdos trabalhados à sua realidade, à sua experiência profissional.
Essas questões são muito importantes. Porém, não farão parte da avaliação
formal do curso. Ou seja, você não tem a obrigação de nos enviar suas
respostas e reflexões. No entanto, nada impede que você discuta com seu
orientador reflexões e dúvidas que elas promovam.
• Destaques – destacam uma idéia que está sendo apresentada, ou fazem um
apanhado, organizam um tema que está sendo debatido no momento.
• Anotações – no decorrer das páginas, você encontrará espaços laterais (não
pautados) ou no final de cada módulo (pautados) destinados às suas
anotações. Estes espaços visam a organizar o seu estudo, e assim facilitar o
processo de aprendizagem.
• Bibliografia, Leitura Recomendada e Dicas de Filmes – ao final de cada
módulo são indicados como bibliografia os textos utilizados pelos autores
na elaboração do texto. Alguns textos merecem uma atenção especial por
serem muito importantes para a discussão e o aprofundamento do tema
estudado no módulo. Estes textos são indicados como Leituras Recomenda-
das. Para enriquecimento e maior reflexão sobre algumas temáticas, ao final
de várias unidades, são apresentadas dicas de filmes com uma pequena
resenha.
• Avaliação Final – este é o exercício de caráter formal e obrigatório de
cada módulo. Você deverá prepará-lo cuidadosamente e encaminhá-lo
ao seu orientador, que o avaliará e lhe dará um conceito. Este é o ins-
trumento de avaliação formal do curso que permitirá a você alcançar o
certificado final.

14 Saúde Mental - Políticas e Instituições • Guia do Estudante


Como acessar os conteúdos e ferramentas em meio digital,
expostas na rede mundial de computadores, a Internet?
Inicialmente é necessário que você tenha acesso a um computador que esteja
ligado à Internet. Esse computador terá nele instalado um navegador, um browser
(paginador).
Com o navegador é fácil obter o máximo da World Wide Web, a Rede Mundial.
Você poderá procurar novas informações ou “navegar” por suas páginas favoritas
da Web.

O que é uma página Web?


Uma página Web é um catálogo informatizado (com informações registradas e
organizadas em máquinas, automatizadas) de um conjunto de informações sobre
diversos tópicos, entre os quais a descrição de instituições, formas de acesso, e
uma diversidade de outras informações e serviços.
Temos páginas Web do Curso à sua disposição na Internet.
A página principal do nosso curso poderá ser acessada (posta disponível na
tela do computador pelo qual você está tendo acesso à Internet) através da página
Web: www.ead.fiocruz.br da Educação a Distância da Escola Nacional de Saú-
de Pública da Fundação Oswaldo Cruz (EAD/Ensp).
Você poderá se identificar, utilizando uma palavra, um nome próprio para o siste-
ma informatizado dessa página (o login), e uma senha, que equivale a uma assina-
tura sua, válida para o sistema informatizado dessa página. Você receberá seu login
e sua senha no ato da matrícula.
Uma vez identificado, você terá acesso às ferramentas eletrônicas de auxílio à
sua aprendizagem.

Quais são essas ferramentas eletrônicas encontradas na


página Web do curso?
As ferramentas são:
A Tutoria on-line, o Fale Conosco Suporte, o Fale Conosco Coordenador, o Ca-
lendário e o Quadro de Avisos.
Chamamos de tutoria a orientação permanente e sistemática do processo de
aprendizagem, com o intercâmbio de opiniões e abordagens entre você e os
orientadores (docentes) e a identificação e resolução de dificuldades, tanto na
compreensão dos conceitos quanto em sua aplicação. São encontros onde se
produzem intercâmbios entre você e os docentes.
Na Tutoria on-line, o aluno pode digitar um texto com uma pergunta, um comen-
tário, a resposta a uma questão de avaliação endereçados a seu orientador, que
poderá responder utilizando a mesma ferramenta. Trata-se de mais um canal de
comunicação com seu orientador. Você também poderá se comunicar com seu
orientador por telefone, por fax, por correio, por correio eletrônico, o que for melhor
para você.

Saúde Mental - Políticas e Instituições • Guia do Estudante 15


16 Saúde Mental - Políticas e Instituições • Guia do Estudante
Ao entrar no espaço da Tutoria on-line pela primeira vez, será exibido um link
com o texto “inserir uma nova pergunta”. Ao clicar sobre esse link, será mostrada
uma tela com o nome do seu tutor e um espaço para digitar a dúvida. Clique em
“Inserir pergunta” para enviar o texto para o seu tutor. Clique em voltar. Ao retornar
para o início da Tutoria on-line, será mostrado um trecho da sua pergunta, que
aparecerá com o status de “não respondida”. Todas as perguntas feitas ficarão
nesta situação, até serem respondidas pelo tutor. Quando isto acontecer, o aluno
receberá uma mensagem automática por e-mail, avisando-o que suas dúvidas
foram respondidas. Basta retornar à Tutoria on-line e clicar sobre as perguntas que
estejam com status “respondido” para que seja exibida a resposta.
O Fale Conosco Suporte permite que alunos, tutores e coordenador digitem
perguntas sobre questões técnicas sobre as páginas do curso para os técnicos do
suporte responderem, utilizando a mesma ferramenta.
O Fale Conosco Coordenador permite que alunos e tutores digitem perguntas
sobre questões gerenciais e pedagógicas do curso para o coordenador respon-
der, utilizando a mesma ferramenta.
O Calendário serve para o coordenador divulgar notícias, eventos, enfim, maté-
rias de interesse geral para alunos e tutores.
O Quadro de Avisos permite que coordenador digite avisos sobre o curso para
todos ou só para os tutores e que um tutor digite avisos sobre o curso só para
seus alunos.

Explicando um pouco mais a orientação


Haverá uma orientação individual durante toda a trajetória do curso. Um orien-
tador (professor) ficará a seu dispor para dúvidas, sugestões, orientações e enca-
minhamento das questões. O aluno receberá uma mensagem de boas-vindas ao
curso da Coordenação e também do seu orientador da aprendizagem.
O orientador é esse professor que será a sua principal referência em relação ao
desenvolvimento do processo de aprendizagem no curso. A função dele é facilitar
a realização das atividades propostas, participar da construção do conhecimen-
to, em um processo dinâmico, que começa com a interação entre vocês. Ele o
acompanhará ao longo do curso, apoiando-o e monitorando seus progressos.
Esses orientadores são profissionais da área de Saúde Coletiva, preparados,
tanto do ponto de vista do conteúdo quanto da dinâmica do curso, para estabelecer
uma boa relação pedagógica com cada aluno.
Recomendamos novamente que você entre em contato o mais rápido possível
com seu orientador, para que se conheçam e negociem um plano de trabalho.
Toda interação será possível sobre a base das dúvidas que sejam formuladas,
sobre as interpretações dos diferentes temas, sobre o relato de experiências rea-
lizadas, e sobre os progressos na leitura e discussão do material didático. É impor-
tante o compartilhamento dos progressos, o encaminhamento das questões a
serem resolvidas, o esclarecimento das dificuldades quanto à compreensão e
aplicação dos conceitos, o aprofundamento ou ampliação de temáticas de inte-
resse específico, e as aplicações dos conceitos a novas situações.

Saúde Mental - Políticas e Instituições • Guia do Estudante 17


Junto com a confirmação de sua matrícula, você recebe o número do
fax, a caixa postal de correio e o endereço de correio eletrônico
(e-mail), com os quais você poderá contactar o seu orientador.

Como já foi dito, além do acesso pela página Web do curso, você terá à sua
disposição diversas outras maneiras de se comunicar com seu orientador.
Através do telefone 0800-225530 você poderá, em horário e dias predetermina-
dos, fazer contato com seu orientador, apresentando seus problemas e
dúvidas.
Podem ser feitas também consultas individuais ou em grupo por fax ou correio
eletrônico. Assim, suas questões, argumentações e respostas podem ser coloca-
das por escrito. Alunos que moram próximos podem se reunir e elaborar consultas
de caráter coletivo.
A vantagem de escrever suas questões e argumentações é que ajuda você a
elaborar mais precisamente a discussão ou dúvida que tenha. É um esforço que,
por si mesmo, contribui para ir solucionando os problemas. O retorno será dado no
menor tempo possível e pelo mesmo meio utilizado por você.

IMPORTANTE: O contato com o orientador significa que o aluno se


encontra em atividade. A inatividade que se estenda por um período
de 3 meses, sem justificativa, implicará o desligamento do curso.
Por isso, não deixe de entrar em contato com seu orientador e
colocá-lo a par do que está acontecendo com você. Ele estará sempre
à sua disposição para auxiliá-lo a resolver suas dificuldades.

Que tipo de certificado esse curso irá fornecer?


Tendo cumprido satisfatoriamente as exigências da avaliação do programa de
ensino em saúde mental a distância você ganha um certificado da Escola Nacio-
nal de Saúde Pública da Fiocruz.
Como este programa corresponde a 240 horas/aula, a serem cumpridas no
período de 10 meses, ao final, o aluno receberá o Certificado de Curso de Aperfei-
çoamento pela Escola Nacional de Saúde Pública.
Lembramos que esse nosso curso é feito para profissionais de nível superior
com interesse no Campo da Saúde Mental. No entanto, os profissionais de nível
médio também podem realizar este curso e tendo cumprido satisfatoriamente as
exigências da avaliação, receberão um Certificado de Curso de Desenvolvimento,
fornecido pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, também
da Fiocruz.

18 Saúde Mental - Políticas e Instituições • Guia do Estudante


Pretendemos, futuramente, desenvolver um Curso de Especialização em Saú-
de Mental a Distância. Para inscrição nesse futuro programa, será necessário que
o aluno já tenha obtido o Certificado do Curso de Aperfeiçoamento em Saúde
Mental a Distância.
Relembramos que, para receber o Certificado, você deverá se matricular e
cumprir com regularidade e desempenho adequado todas as normas do curso,
expostas neste Guia do Estudante. A conclusão do curso está diretamente vincu-
lada ao cumprimento de todos os requisitos e etapas previstas.

Informações adicionais
Após você ter concluído o seu curso a distância em Saúde Mental, você passa-
rá integrar o nosso fórum de ex-alunos. Esse fórum tem como objetivo mantê-lo
atualizado e participando das discussões do campo da Saúde Mental. A organiza-
ção do fórum promoverá, entre outras atividades, listas de discussões, intercâm-
bio entre profissionais, acesso a informações atualizadas sobre a área. O fórum
privilegiará as ferramentas da Internet para o seu funcionamento.
Uma observação importante: uma vez iniciado, o curso é individual e
intransferível.
Somente após a confirmação de sua matrícula por correspondência pela Ensp,
você poderá solicitar a orientação à distância (esclarecimento de dúvidas via
correio, fax e correio eletrônico).

Os meios para você entrar em contato conosco são:


Ligação gratuita: 0800-230085
E-mail: proead@ead.fiocruz.br
Horário para atendimento ao público: 9 às 16 horas
Bom trabalho!

Saúde Mental - Políticas e Instituições • Guia do Estudante 19


20 Saúde Mental - Políticas e Instituições • Guia do Estudante
Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 1 21
22 Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 1
MÓDULO 1

As Origens Históricas e Conceituais da Medicina Moderna


e das Políticas de Saúde

Apresentação
Neste módulo, estudaremos as origens da medicina dita moderna. Serão abordados os principais proces-
sos de constituição da medicina como práticas públicas, experiências pioneiras fundamentais que ocorreram
na Alemanha, na França e na Inglaterra.

Objetivos
• Conhecer e analisar as características históricas do nascimento da medicina social na Alemanha,
na França e na Inglaterra.
• Refletir sobre as relações entre o desenvolvimento da medicina e as condições históricas e sociais.
• Analisar e refletir sobre o processo de formulação de políticas públicas de saúde.
• Construir um pensamento crítico sobre as práticas de saúde e suas relações com o processo social.

Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 1 23


As primeiras políticas de saúde
A história de nosso país tem forte ligação com a da Europa ocidental. Esta
ligação é particularmente mais nítida no período que vai do descobrimento do
Brasil até a proclamação da República, no fim do século XIX.
Pode-se caracterizar a Era Moderna, na Europa ocidental, pela ocorrência de
três fenômenos. Foram eles a urbanização, a industrialização – acelerando e inten-
sificando a acumulação de riquezas – e, como decorrência dos primeiros, a estru-
turação do Estado, tal como hoje o conhecemos.

Mas, que importância teria para nós recordar esses aconteci-


mentos? O que teriam a ver fatos tão antigos com a nossa
prática atual de assistência à Saúde Mental?

Algumas profissões e instituições de saúde, tal como as conhecemos hoje em


dia, surgiram naquela época, como passaremos a ver.
Na Idade Média, os tratamentos eram exercidos ora nas ruas – em quitandas,
feiras, pelos cirurgiões barbeiros, curandeiros ou outros “médicos” populares –,
Era Moderna – A Era Moderna é
ora nas casas, por práticos que eram reconhecidos como médicos.
delimitada para fins didáticos entre
os séculos XV e XVIII. O período é Os cirurgiões barbeiros e curandeiros faziam cirurgias, indicavam remédios
de grande transformação também que eles mesmos preparavam, ou ainda aplicavam ventosas, sangrias e outras
nas idéias que a Europa passa a
produzir e valorizar. Inicia-se um formas de tratamento, assim como os médicos. O que se observava é que, entre
processo de ascensão do médicos e curandeiros, quase não havia distinção. O importante era ter o “dom”
conhecimento racional sobre o
religioso. de curar que, à época, em princípio emanava do “divino”. Os homens se viam
como criaturas de Deus e o ideal seria empregar todos os esforços para salvar o
Idade Média – Período decorrido
de 395 (época da divisão do maior número de almas possível.
Império Romano) até 1453 (fim do
Império Romano do Oriente). Neste Da Idade Média para a Era Moderna, surgiu um novo registro simbólico com o
período, a Europa encontrava-se qual as pessoas passavam a se identificar: tratava-se do registro do cidadão.
dividida em unidades mínimas de
poder local, os feudos. O poder Esse registro remetia às idéias de cidade e de Estado como espaços em que
central era representado pela passava a haver uma identidade comum. Em outras palavras, além de criaturas
Igreja Católica e o pensamento
religioso constituiu-se de forma de Deus, as pessoas pertenceriam a uma cidade, que se encontrava ainda sob o
dominante na sociedade. poder de um Estado.
Cidadão – Indivíduo no gozo dos
direitos civis e políticos de
Se, até então, o ideal maior seria o de salvar a alma, um outro ideal surgia: fazer
um Estado. tudo para fortalecer a cidade e o Estado.

24 Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 1


Neste contexto, nasceu a medicina moderna. Além do dever da salvação indi-
vidual da alma, em que a Igreja era a instituição que canalizava o poder, os
indivíduos deveriam, coletivamente, fortalecer o Estado e a cidade, colaboran-
do para a acumulação de riquezas.

Onde queremos chegar com essas reflexões?

Queremos demonstrar que até muito pouco tempo os historiadores da medici-


na consideravam que a medicina moderna era eminentemente individual. Por um
lado, porque parecia privilegiar fundamentalmente a relação médico-paciente e,
por outro, porque seu objetivo seria o de curar as doenças, ou ainda reduzir
ou suprimir o sofrimento causado por uma ou
outra doença.
O fato de que a medicina permeava as
relações de mercado, em uma economia ca-
pitalista, restrita à relação de mercado do
médico com o doente, parecia comprovar
esta hipótese.
Mas, ao contrário, de acordo com o que ve-
remos, o que denominamos medicina moder-
na é, originalmente, uma medicina social.
Enfim, falando de história, trataremos mais
especificamente da história da medicina e
conheceremos os processos que fizeram da
medicina aquilo que ela é hoje. Veremos o
nascimento da medicina moderna na Alema-
nha, na França e na Inglaterra. Procuraremos Europa no início do século XVIII
entender qual a noção de corpo humano (corpo das pessoas que, além de criaturas
de Deus, passaram a ser cidadãos do Estado e da cidade) implícita nos regula-
mentos dessa medicina que surgia.

O nascimento da medicina como práticas sociais e coletivas


A partir de meados do século XVIII, a população da Europa aumentou rapida-
mente. O crescimento do contingente urbano, isto é, da concentração de pessoas
nas cidades, excedeu em muito a disponibilidade de habitação. O meio ambiente
passou a sofrer deterioração, o que propiciou o adoecer disseminado, causado
pelas más condições de saúde.
Se o aumento populacional ocorreu em paralelo a um rápido aumento das
taxas de mortalidade geral, em extratos mais vulneráveis da população, como as
crianças e os internos em prisões, hospitais e outras instituições de asilo, o aumen-
to das taxas de mortalidade foi ainda maior. Esse período também testemunhou o
começo e o rápido crescimento dos hospitais como instituições médicas.

Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 1 25


A medicina e a constituição do Estado Moderno na Alemanha
Na Alemanha, no começo do século XVIII, passou-se a produzir um conheci-
mento que tinha por objeto o próprio Estado, ou todo o conjunto dos procedimen-
tos pelos quais o Estado extraiu e acumulou conhecimentos para melhor assegu-
rar seu funcionamento.
O desempenho geral do aparelho político do Estado tornava-se um objeto
fundamental, além dos recursos naturais da sociedade e do bem-estar de sua
população. Firmou-se, assim, o que passou a se chamar de ciência do Estado.
A Alemanha, até o início do século XIX, foi um Estado fraco, ou seja, constituía-
se como um conjunto de pequenas unidades, que tinham estruturas muito frágeis.
Por este motivo, a preocupação teórica e prática com a noção de Estado se fez
importante. Mais precisamente na Prússia – a mais forte das pequenas unidades
– surgiu uma ciência política do Estado.
Esta é uma das razões pelas quais, na Alemanha, se instituiu uma primeira
medicina social, denominada por Michel Foucault, em O nascimento da medicina
social (1979), de medicina de Estado.
Esta medicina de Estado era caracterizada por uma prática médica centrada
na melhoria do nível de saúde da população. Não era voltada para o tratamento
de doenças, ou para diminuir o sofrimento que causavam. O principal objetivo era
Ciência do Estado – É o conjunto qualificar os indivíduos como componentes de uma nação.
de conhecimentos especializados
como a demografia, geografia, que
segundo Michel Foucault, servem
para reestruturar normas, regras
de controle institucionais diante da Como assim? Como se poderia melhorar o nível de saúde da
nova realidade social.
população sem tratar de suas doenças?
Ciência Política – A ciência
política é a área do conhecimento
que analisa os fenômenos que
envolvem a estrutura, a manuten-
ção ou a transformação do poder
Um exemplo que nos daria uma boa resposta pode ser encontrado nos progra-
político. Envolve a compreensão mas de melhoria de saúde da população propostos por Wolfgang Thomas Rau,
dos agentes sociais e instituições
Johann Peter Frank e Franz Anton Mai, denominados originalmente política
envolvidas no processo de poder
político. médica. Daí surgiu a noção de polícia médica (Medizinichepolizei), criada em 1764
por Wolfgang Thomas Rau, e que consistia em quatro estratégias fundamentais:
Natalidade – Quantidade de
nascimentos ocorridos na
população, expressos mediante
um coeficiente de nascimentos
vivos na população (1000
1. Um sistema bastante completo de observação da morbidade populacional,
habitantes/ano). No Brasil a cifra é isto é, do conjunto de doenças que afetavam a população. Estes registros
de aproximadamente 20 (nascidos
por mil habitantes em cada ano).
eram, portanto, muito mais sofisticados do que os simples quadros de
registros de natalidade e mortalidade então realizados na França e na
Mortalidade – É a quantidade de
óbitos na população: pode ser
Inglaterra.
calculada em termos globais, por
faixa de idade, por grupo de
2. Um sistema de normalização (elaboração e adoção de normas), tanto da prática
causas, por diagnóstico, etc. A quanto do saber médico (controle da formação médica e da emissão dos
mortalidade infantil é um dos
coeficientes mais utilizados neste
diplomas). A medicina e o médico foram, então, os primeiros objetos da normaliza-
campo: aproxima-se, no Brasil, da ção na Alemanha. Ou seja: o médico foi o primeiro profissional normalizado na
cifra de 40 (óbitos antes de
completar um ano de vida, por mil
Alemanha; o primeiro profissional a ter atribuições e definições oficiais,
nascidos vivos). regulamentadas e controladas pelo Estado.

26 Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 1


3. Um sistema centralizado para controle da atividade médica (banco de
informações sobre os médicos e sobre os tratamentos), oficializando, pela
primeira vez no Ocidente, a subordinação da prática médica a um poder
administrativo estatal.
4. A criação de um efetivo médico estatal (dos médicos de distrito aos oficiais
médicos), constituindo o médico como funcionário do Estado e como
administrador sanitário.

Enfim, analisando o exemplo do processo na Alemanha, vimos


como, de maneira aparentemente contraditória, no início da
medicina moderna, existiu uma situação de estatização levada ao
máximo. Não existia uma medicina restrita à relação de mercado
do médico com o doente. É importante observar que a cura das
doenças não era, nesta medicina de Estado, um objeto, nem
explícito nem implícito. A noção de prevenção, ou de qualificação
da força de trabalho, tampouco estava presente. A idéia central
era a da qualificação do corpo de cada indivíduo como membro
constituinte do Estado. Daí a importância em regular a formação
dos médicos. Estes teriam “um ritual de formação”: seleção, di-
plomas, controle da prática pelo Estado.
Em outras palavras, não se investia no corpo das pessoas como
corpos doentes que precisavam ser tratados. Porém, tampouco
se investia nos corpos saudáveis com o objetivo de preveni-los de
doenças. Investia-se nos corpos como corpos do Estado. Enfim, o
Estado somente poderia ser forte e poderoso se os seus indivídu-
os assim o fossem.
Johann Peter Frank

Questão para reflexão


No contexto que estudamos, a noção de corpo aparece, intrinsecamen-
te, como uma “máquina” social. A noção de “corpo da nação” se confun-
de entre a referência ao coletivo das pessoas de uma mesma nacionalida-
de e a referência ao corpo de cada um, que deveria ser devotado à cons-
trução da nação. Neste sentido, reflita sobre o modo através do qual as
profissões da saúde (o “corpo profissional”) funcionam como instrumento
para a construção do Estado.

Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 1 27


A medicina e a constituição da cidade moderna na França
Vimos como se estruturou a Medicina de Estado na Alemanha. Na França, foi a
urbanização que mais contribuiu para a organização das práticas médicas, como
estudaremos a seguir.
Já em fins do século XVIII, as cidades francesas eram muito desorganizadas,
submetidas a muitos poderes paralelos, simultâneos e, muitas vezes, contraditórios
e opostos. Portanto, não se configuravam como sendo o que se poderia denominar
exatamente uma unidade territorial, uma cidade, tal qual hoje a definiríamos.
Neste contexto, em um cenário de confusão urbana, tornou-se urgente a unifi-
cação do poder, determinada por razões tanto de ordem econômica (a cidade
como importante lugar de mercado e de industrialização emergente), quanto de
ordem política (crescimento da pobreza e do proletariado, conflitos de jurisdição
e de poderes, revoltas etc.), inscritas já no processo que vai desembocar na Revo-
lução Francesa.
Enfim, era preciso constituir a cidade como uma unidade política, geográfica
e social.

O que significa isso?

Era preciso organizar o corpo urbano de modo coerente e homogêneo, com um


poder único e muito bem regulamentado. A urbanização e a industrialização –
acelerando e intensificando a acumulação de riquezas –, bem como a concentra-
ção econômica faziam das grandes cidades um palco de sérios conflitos.

As cidades tornaram-se palco de grandes conflitos e questões so-


ciais e sanitárias. Nelas, desenvolveu-se a chamada medicina urbana.

Ou seja, neste investimento de ordenação do espaço urbano, a medicina mere-


ceu um papel muito importante, caracterizando-se por três grandes objetivos.

Revolução Francesa – Foi uma


transformação radical na Quais foram esses objetivos?
organização do poder político
ocorrida na França, que pôs fim ao
Absolutismo da Idade Moderna.
Historicamente assinala o início da 1. A análise de lugares onde poderiam se formar e reproduzir as doenças.
Idade Contemporânea. Represen-
tou a afirmação da ideologia da
Os cemitérios – principais alvos desta intervenção – foram regulamentados,
democracia representativa, da tendo sido definida a sua melhor localização. Foucault cita o exemplo do
cidadania (sob a bandeira
“Liberdade, Igualdade e
Cemitério dos Inocentes, bem no centro de Paris. Nele eram jogados,
Fraternidade”). amontoados uns sobre os outros, os cadáveres dos que não tinham recursos

28 Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 1


para manter um túmulo individual. É nesse momento
que os cemitérios começam a ser transferidos para
as periferias das cidades, ao mesmo tempo que sur-
gem o caixão individual e as sepulturas familiares;
2. O controle da circulação dos elementos, essencial-
mente a água e o ar. A medicina deveria contribuir
na tarefa de manter sadios o ar e a água, considera-
dos os principais fatores causadores de doenças.
Atribuía-se ao ar uma influência direta sobre o orga-
nismo, seja por veicular miasmas, seja por suas pró-
prias qualidades de frio, quente, úmido ou seco que
Rue Champlain, Paris,
poderiam provocar alterações nos corpos. Algumas das prescrições da
por volta de 1865
medicina urbana seriam o alargamento das avenidas, a ventilação das casas
e instituições, a circulação do ar pela cidade, a liberação dos cursos dos rios,
dentre outras.
3. Ser aplicada às fontes de água, aos esgotos, barcos-lavanderia e barcos-
bombeadores, a organização das distribuições e seqüências, ou seja, o
enquadre dos diferentes elementos necessários à vida comum da cidade.
A questão seria: como evitar que se aspirasse água de esgoto nas fontes de
águas potáveis; ou como evitar a utilização de águas contaminadas pelos
barcos que lavavam as roupas? Em outras palavras, foi instituído o
ordenamento do sistema de águas e esgotos e a “disposição correta” de
vários elementos da cidade.

Neste contexto, pela ação da medicina urbana, a prática médica começou a ter
contatos com outras áreas de conhecimento. Foi devido a este investimento de
analisar o ar, as águas, os esgotos e assim por diante, que a medicina passou a
relacionar-se regularmente com algumas ciências não médicas, principalmente a
química, mas também a física.

Quais as conseqüências práticas desses contatos da medi-


cina com outras áreas de conhecimento?

A primeira foi sua inserção no campo das ciências físico-químicas. A segunda


foi o surgimento da noção de meio ambiente, da junção desta medicina das coisas
(principalmente do ar e da água) com as ciências naturais.

Enfim, o meio ambiente, ou, em última instância, a ecologia tornou-se


também objeto da medicina urbana.

Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 1 29


Finalmente, no contexto dessa medicina urbana, surgiu a noção de salubrida-
de, fundamental na medicina moderna. Não confundir com a noção que hoje te-
mos a respeito da saúde de cada pessoa. Era relacionada ao estado das coisas,
do meio e de seus elementos constitutivos, que permitiriam a melhor saúde possí-
vel para a cidade. Desse modo, seria a base material e social, em última instância
capaz de assegurar a melhor saúde possível dos indivíduos.

Daí veio a noção de higiene pública como técnica de controle e de


modificação dos elementos materiais do meio capazes de favorecer
ou de prejudicar a saúde pública. Um aspecto muito importante
que devemos considerar, para retomar um pouco mais adiante, é o
fato de que uma significativa parte do surgimento da medicina
moderna teve início neste processo da medicina do espaço urbano
na França. Voltaremos a este tema quando estudarmos a história
do hospital.

Vimos, assim, que a organização da medicina na França tinha demarca-


ções muito mais coletivas e sociais do que individuais, ao mesmo tempo que
não era uma medicina curativa, terapêutica. Muito menos tinha como objeto
uma intervenção direta no corpo “biológico” (da História Natural) dos indiví-
duos. Assim, não se tratava de uma medi-
cina produzida por uma preocupação mé-
dica voltada para o indivíduo ou para
a doença, mas para o espaço urbano. Con-
tudo, esta experiência, denominada
medicina do espaço urbano, possibilitou uma
aproximação das práticas médicas com as
ciências químicas e físicas e com a constru-
ção das noções modernas de meio ambien-
te e salubridade. Enfim, será uma experiên-
cia que retomaremos adiante, uma vez que
está na base das práticas clínicas da nossa
medicina contemporânea.
Este processo de constituição da me-
dicina do espaço urbano produziu uma
Mapa de Paris, 1817 medicalização da cidade. Foi muito relevan-
te por uma série de razões. As mais importantes estão relacionadas ao surgi-
mento de várias articulações entre a medicina e as demais ciências extra-
médicas (química, física, biologia), que passaram a auxiliar a tarefa de medi-
calização do espaço urbano, ampliando as bases e estratégias das interven-
ções médicas.

30 Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 1


Questão para reflexão
Procure refletir sobre as possíveis semelhanças entre os momentos histó-
ricos que estudamos e as políticas públicas de saúde no Brasil atualmente.

A medicina da força de trabalho e a industrialização na


Inglaterra

Como já vimos, na Era Moderna surgem os es-


tados nacionais, as cidades crescem e se enchem
de fábricas. Estudamos como essa transformação
na Alemanha e na França moldou as práticas mé-
dicas. Veremos agora como a industrialização in-
fluenciou tais práticas na Inglaterra.
Determinadas estratégias que aconteceram na
Inglaterra no final do século XIX foram denomina-
das, em conjunto, medicina da força de trabalho.
Lá, no segundo terço do século XIX, a pobreza se
evidenciava como um grande perigo para a so-
ciedade.
A industrialização havia acelerado e intensificado a acumulação de riquezas. Pobres aguardando
atendimento médico
A intensificação da acumulação de riquezas em um regime capitalista (caracteri-
zado pela apropriação privada dos meios de produção) ocorreu com a concentra-
ção, não só espacial, das novas riquezas assim geradas (nos países “centrais”, em
suas cidades, em alguns bairros), como também com o surgimento de grupos
sociais dominantes.

Por que a pobreza representava um grande perigo para a


sociedade inglesa?

Neste contexto, a pobreza passou a ser vista como ameaçadora à ordem pública,
seja como potencial força revolucionária, seja como possível portadora e transmis-
sora de doenças (por exemplo, na década de 1830 houve uma grave epidemia de
cólera na Europa). Essa era a pobreza que se tornou objeto de políticas públicas.

Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 1 31


Entre 1801 e 1841, a população de Londres dobrou, e a de Leeds praticamente
triplicou. Com tal crescimento, aumentaram também as taxas de mortalidade. Entre
1831 e 1844, a taxa de mortalidade por mil habitantes aumentou, em Birmingham,
de 14,6 para 27,2; em Bristol, de 16,9 para 31; e, em Liverpool, de 21 para 34,8.
Mais uma vez, essa era a pobreza objeto de políticas públicas.

Na medida em que a Revolução Industrial se desenvolveu, a saúde e


o bem-estar social dos trabalhadores se deterioraram.

No país onde a Revolução Industrial e seus efeitos prejudiciais à saúde foram


sentidos antes em relação a outros países europeus, teve origem o movimento em
direção a uma reforma sanitária que levou ao estabelecimento de instituições de
saúde pública.
Em 1833, o Primeiro Ministro, Conde Grey, fundou a Comissão da Lei dos Po-
bres para examinar o sistema legal de assistência aos pobres na Grã-Bretanha. No
relatório, publicado em 1834, a Comissão fez algumas recomendações ao Parla-
mento e, como resultado, o Decreto de Emenda à Lei dos Pobres foi promulgado.

O que instituía este decreto?

1. Pessoa alguma, tendo o corpo sadio, deveria receber dinheiro ou outra


ajuda das autoridades da Lei dos Pobres, a não ser em uma workhouse.
2. As condições de vida nas workhouses deveriam ser tornadas muito severas, de
modo a desencorajar as pessoas a quererem receber ajuda.
3. Deveriam ser construídas workhouses em cada paróquia ou, se as paróquias
Lei dos Pobres – O Decreto de fossem muito pequenas, em consórcio de paróquias.
Assistência aos Pobres de 1601 foi
uma lei inglesa comumente citada
4. Em cada paróquia ou consórcio, os contribuintes tinham de eleger uma
como a origem da moderna
política de bem-estar social. Por Junta de Curadores para supervisionar a workhouse, para recolher a taxa dos
este decreto, exigiu-se que pobres e para enviar relatórios para a Comissão Central da Lei dos Pobres.
as paróquias arrecadassem dos
ricos uma ‘taxa dos pobres’ 5. A Comissão Central da Lei dos Pobres, de três homens, deveria ser designa-
(dinheiro para a assistência à
pobreza). No entanto, ela não foi da pelo governo e deveria ser responsável por supervisionar a aplicação do
a primeira lei inglesa de bem estar Decreto de Emenda por todo o país.
social: a Lei dos Pobres
de 1388 foi a primeira.

Workhouses – Asilos de trabalho Os curadores, função criada pela Emenda de 1834, serviam não aos interesses
– instituições para o provimento de dos pobres, mas dos pagadores de taxas, ricos como eles. Costumavam defender
emprego para os pobres e de
subsistência para os “fracos”. que os pobres eram responsáveis pelo estado de miséria em que viviam. Cada
Existiram na Inglaterra do século paróquia ou consórcio de paróquias teria uma workhouse. O sistema da assistên-
XVII até o século XIX e também em
países como a Holanda e os da
cia externa, que havia mantido os pobres em suas próprias comunidades (com
América Colonial. algumas exceções), foi abolido.

32 Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 1


Com o Decreto de Emenda à Lei dos Pobres, nascia o que viria a ser um conjun-
to de medidas de controle médico da pobreza. Tinha caráter ambíguo: ao mesmo
tempo que garantia assistência médico-sanitária aos po-
bres, obrigava-os a submeterem-se a vários controles
médicos.
A Comissão da Lei dos Pobres, criada em 1834, estudou
os problemas da saúde comunitária e sugeriu meios para
resolvê-los. Seu relatório, em 1838, informava que os gastos
necessários à adoção e manutenção de medidas de pre-
venção às doenças alcançariam montante inferior aos
custos crescentes da assistência aos doentes. Censos sa-
nitários provaram que existia uma relação entre sujeira no
meio ambiente e doenças transmissíveis, indicando que a
saúde pública protetiva seria mais da alçada dos enge-
nheiros do que da dos médicos.
Indústria têxtil na Inglaterra,
Em 1847, a Comissão Central da Lei dos Pobres foi extinta devido a abusos séc. XVIII
ocorridos. Assim, muitas das workhouses vieram a se transformar, em 1930, em
instituições de assistência pública e hospitais.

O debate sobre saúde pública na Inglaterra cresceu no final do


século XVIII. Dado o alto grau de urgência durante a década de 1830,
foi matéria de diversos relatórios do Governo.

Os primeiros Decretos Nacionais de Saúde Pública foram promulgados em


1848. O Decreto de Saúde Pública daquele ano estabeleceu um Conselho Geral
de Saúde para fornecer diretrizes e ajuda em assuntos sanitários. O Conselho
tinha autoridade para estabelecer conselhos locais de saúde e para investigar
condições sanitárias em alguns distritos em particular. A partir de então, vários
Decretos de Saúde Pública foram promulgados para regular o esgoto e a deposi-
ção de refugos, a habitação dos animais, o suprimento de água, prevenção e
controle das doenças, registro e inspeção de residências de cuidados e hospitais
privados, a notificação de nascimentos, e a provisão de serviços materno-infantis
de bem-estar social.
Sir John Simon foi um dos médicos mais devotados neste processo. Sua atua-
ção política o envolveu intensamente na criação de um departamento médico
estatal para administrar a saúde pública, estabelecer a pesquisa científica esta-
tal, aperfeiçoar o sistema de vacinação e supervisionar a profissão médica. Sua
defesa a favor de uma legislação de saúde pública foi importante para a promul-
gação do Decreto Sanitário de 1866. Este documento representou uma lei da
saúde pública universal, “científica” e compulsória, e, ao mesmo tempo, constituiu
os primórdios da higiene industrial.

Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 1 33


O Decreto de Saúde Pública de 1875 proveu um código sanitário completo
que, com consolidação e ajustes, permaneceu em vigor pelos cem anos seguin-
tes. Criou uma autoridade de saúde pública em cada área do país. Os sistemas de
Health Service e Health Officers, criados então, impunham uma série de medidas
de controle de doenças e de lugares insalubres. Com este conjunto de medidas,
a medicina social inglesa voltava-se fundamentalmente para o trabalhador pobre,
ao mesmo tempo que, ao prevenir sua condição de contagiante, procurava qua-
lificá-lo como mão-de-obra.

Vimos como o desenvolvimento da medicina na Inglaterra teve enorme relação


com o processo de industrialização e com o conseqüente controle das popula-
ções pobres e proletárias.
Analisando o surgimento dos três processos de medicina social que pusemos em
destaque, temos que a medicina social inglesa foi a que teve mais futuro, na medida
em que conseguiu articular, simultaneamente, três estratégias complementares: uma
assistência médica ao pobre, o controle da força de trabalho e o esquadrinhamento
geral da saúde pública.

34 Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 1


Referências bibliográficas
FOUCAULT, Michel, 1979. O nascimento da medicina social. In: Microfísica do
Poder. Rio de Janeiro: Graal, pp. 79-98.
ROSEN, George, 1980. Da Polícia Médica à Medicina Social. Ensaios sobre história
da assistência médica. Rio de Janeiro: Graal.
ROSEN, George, 1994. Uma história da saúde pública. São Paulo: Editora Unesp/
Abrasco/Hucitec.

Leituras recomendadas
FOUCAULT, Michel, 1977. O Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro: Editora Foren-
se Universitária.
MACHADO, Roberto, 1988. Ciência e Saber: a trajetória da arqueologia de Michel
Foucault. Rio de Janeiro, Graal.

Dicas de filmes
Tempos modernos – Direção de Charles Chaplin, com Charles Chaplin e
Paulette Goddard. Sátira sobre o processo de industrialização e à mecanização
do trabalho que levam um operário à loucura. Na época de seu lançamento, foi
proibido na Itália e na Alemanha.

Avaliação
Você poderia estabelecer relações entre as experiências históricas que
estudamos (medicina de Estado, medicina urbana e medicina da força
de trabalho) com alguma política atual de saúde (vigilância sanitária, vigilância
epidemiológica, saúde e meio ambiente, medicina do trabalho) existentes no
Brasil, ou em seu estado ou cidade? Pense bem, pesquise e envie seu texto.
Estamos esperando!

Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 1 35


36 Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 1
Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 1 37
38 Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 2
MÓDULO 2

A Transformação do Hospital em Instituição Médica e


sua Importância no Desenvolvimento da Medicina
Contemporânea

Apresentação
Neste módulo veremos as transformações ocorridas com o hospital que, de instituição religiosa e filantrópi-
ca, de caridade aos pobres e necessitados, tornou-se uma instituição médica. Analisaremos como se deu este
processo e quais foram as estratégias que possibilitaram tal transformação. Estudaremos ainda a importância
que o hospital passou a ter no desenvolvimento da medicina, tanto no que diz respeito à produção de conhe-
cimentos médicos, quanto para a própria reprodução do saber e da prática médica, como um espaço privile-
giado de formação dos quadros de saúde.

Objetivos
• Conhecer as características do hospital como instituição religiosa e filantrópica de assistência aos pobres e
necessitados.
• Analisar as condições que possibilitaram a transformação do hospital em instituição médica.
• Identificar as condições históricas de possibilidades nas quais se deu tal transformação.
• Reconhecer a importância do hospital no desenvolvimento e na reprodução do saber e da prática médica
contemporâneos.

Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 2 39


A origem do hospital
Até o momento, tratamos dos objetos medicina, saúde e doença fazendo muito
pouca referência ao termo “hospital”, instituição médica por excelência, lugar
privilegiado tanto de exercício da atividade médica quanto de produção de saber
da medicina moderna.

A que você atribui esta ausência?

A origem do hospital remonta a muitos e mui-


tos anos. George Rosen, um importante historia-
dor da medicina e das instituições e políticas de
saúde, recorda-nos de que o apóstolo Paulo
de Tarso pregava que a caridade era a maior
das virtudes cristãs. Assim, principalmente du-
rante o final do Império Romano e de boa parte
do período medieval, a Igreja Católica deu início
à construção de hospitais para o cumprimento
da caridade cristã. A partir do século IV, do pri-
meiro hospital que se tem registro, criado por
Interior do hospital Hotel Dieu,
Paris - 1500 São Basílio em Cesaréia, Capadócia (369-372), muitas outras instituições des-
ta natureza passaram a ser construídas com a mesma finalidade.

E qual a finalidade destes hospitais?


Curar os enfermos, pesquisar e erradicar as doenças?

Não. O hospital não era uma instituição médica, e sim religiosa, filantrópica, de
caridade, de assistência aos pobres e desamparados.
Como sabemos, o termo hospital vem do latim hospitale, que significa hos-
pedaria, hospedagem, ou aquele/aquilo que pratica a hospitalidade, que é
hospitaleiro.

Sua missão era praticar a caridade, prover um teto, uma roupa, um prato de
comida aos necessitados; estender a mão a quem nada tinha; sobretudo, pregar
e praticar a palavra de Deus servindo ao próximo.

40 Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 2


Mas, na maioria dos casos, quando os doentes iam para os hospitais,
não era com o objetivo de serem curados, mas de esperar a morte em
um ambiente de acolhimento e cuidado cristão.
O processo de transformação do hospital de instituição religiosa e
filantrópica para instituição médica iniciou-se em uma data muito
importante. Trata-se da criação do Hospital Geral de Paris, no ano de
1656, no contexto das transformações que estudamos anteriormente e
que identificamos como a medicina do espaço urbano na França.
Assim, após termos estudado aqueles três processos de medicina
social, na Alemanha, França e Inglaterra, retornaremos principalmente
à França, onde abriremos uma “janela”, para observar e refletir sobre
alguns detalhes importantes, embora o processo tenha ocorrido, em
proporções variadas, em praticamente toda a Europa ocidental.

Extração da pedra da loucura


Jeronimus Bosch (1450-1516)

França, fins do século XVIII


O Hospital Geral de Paris teve um papel singular: passou a ser responsável
pela internação de todos os pobres, independente do sexo, idade ou proveniên-
cia. Lá eram internados tanto os pobres válidos (que poderiam trabalhar), como os
inválidos (incapazes de trabalhar por serem doentes ou convalescentes). Assim, a
adjetivação geral que acompanhava o termo hospital era decorrente do fato de
que tratava-se de uma instituição de internação que não era específica, isto é, não

Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 2 41


era destinada exclusivamente a mulheres, ou a homens, a crianças ou a adultos, a
válidos ou a inválidos, e assim por diante. Era, pois, uma instituição de internação
geral, isto é, de internação generalizada. A única característica que poderia ser
comum a esta população internada era sua condição de pobreza, de desamparo,
de ausência de recursos próprios para a subsistência.
Por outro lado, a internação poderia ser voluntária (muito embora eram poucos
os que se internavam voluntariamente) ou involuntária, isto é, a internação era
determinada por autoridades públicas.
Em uma instituição com tais características, tornava-se necessário, conseqüen-
temente, um poder forte e rigoroso. Essa tarefa era confiada a diretores vitalícios
com plenos poderes, exercidos não apenas no interior dos prédios do Hospital
Geral, mas também em toda a cidade de Paris, sobre todos aqueles que viviam
em sua jurisdição.
No decreto de fundação do Hospital Geral de Paris, podia-se ler que o diretor
tinha todos os poderes de autoridade, direção, administração, correção e punição
e, como vimos, não apenas sobre os internos, mas sobre todos os pobres de Paris.
Em outras palavras, o poder do diretor era total, em toda a jurisdição, pois ele
decidia internar quem quer que fosse, quando julgasse necessário ou quando lhe
fosse solicitado por uma autoridade pública. Obviamente, a presença de uma
instituição com tamanhos poderes servia, certamente, como advertência a todos
aqueles que habitavam a cidade.
Verificamos, assim, como o hospital, pela primeira vez em sua história, deixava
de ser uma instituição religiosa e filantrópica e adquiria outras finalidades
e funções.

Mas o Hospital Geral de Paris não parece ter sido uma insti-
tuição médica!?

Realmente, se o hospital perdia seus objetivos mais propriamente religiosos e


filantrópicos, ainda não se poderia dizer que tivesse sido transformado em uma
instituição médica. Tornava-se menos uma instituição religiosa e mais uma institui-
ção pública, de Estado. E, da mesma forma que no hospital religioso e filantrópico,
os doentes, quando iam para lá, não era para serem curados, mas, em grande
parte, para serem separados da sociedade a qual poderiam contagiar, ou ainda
para morrer em um ambiente protegido, com uma assistência ao mesmo tempo
religiosa e médica. A esta estrutura institucional, Michel Foucault denominou de
Grande Internação ou Grande Enclausuramento, por sua natureza semijurídica de
controle e segregação social. Outra expressão por ele utilizada foi a de Terceira
Ordem da Repressão, para caracterizar a função semijurídica do Hospital Geral de
Paris, uma estrutura de poder que se situava entre a polícia e a justiça.

42 Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 2


Por que ocorreram tais mudanças?

Com o fim da Idade Média, muitas transformações sociais e econômicas ocor-


reram nas sociedades ocidentais. A produção de manufaturados cresceu em im-
portância, fazendo com que as pessoas migrassem dos campos para as cidades.
Houve um crescimento demográfico bastante acentuado nas áreas urbanas.
Como vimos no tópico sobre a medicina do espaço urbano na França, após o
fim da Idade Média, as cidades francesas eram muito confusas, com muitos pode-
res paralelos, simultâneos e, muitas vezes, contraditórios e opostos.
As cidades dispostas desta forma desorganizada, não eram adequadas aos
novos papéis que precisariam desempenhar, seja no aspecto econômico – como
importante lugar de mercado e de industrialização emergente – seja no aspecto
político – devido ao crescimento da pobreza e do proletariado, com inúmeros
conflitos daí decorrentes.

Vimos, então, como as cidades tornaram-se objeto de preocupação


e de transformação política, econômica e social e como, com o
objetivo de operar tais transformações, a medicina teve um
importante e singular papel. Estudamos também que, entre os prin-
cipais objetivos da medicina urbana, estava o de analisar
os lugares onde poderiam formar-se e reproduzir-se as doenças.
Ora, uma instituição com as características do Hospital Geral, onde
poderiam ser encontrados todos os tipos de doentes, de doenças, de
miseráveis, de carências, não seria um dos principais objetivos
de intervenção da medicina urbana?

No contexto imediatamente anterior à Revolução Francesa, os Hospitais Gerais


cumpriam um papel muito importante, pois auxiliavam a ordem pública, excluin-
do do meio urbano considerável parcela dos inimigos do rei ou do Estado, assim
como os segmentos mais indesejáveis que ameaçavam a ordem pública e o bem-
estar das classes dominantes. Eram destinados àqueles cujos crimes não os leva-
vam à prisão, aos calabouços, aos suplícios públicos. Isto fazia com que fossem
instituições verdadeiramente requisitadas pelas autoridades do regime.

E a transformação do hospital em instituição médica?

As primeiras observações sobre o hospital como instituição de cura e tratamento


de doenças surgiram neste período que estamos estudando, isto é, no final do
século XVIII, a partir daquelas visitas sistemáticas da medicina urbana. Na França,
onde tais mudanças foram muito importantes pelo significado e a repercussão

Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 2 43


que a Revolução Francesa teve para todo o mundo ocidental, tais visitas da medi-
cina social foram realizadas inicialmente por Tenon, por solicitação da Academia
de Ciências, com o objetivo de reestruturar o Hospital Geral de Paris.
Tenon estudou a quantidade e o tipo de doentes existentes nos hospitais, como
eram distribuídos, como eram tratados. E começou a formular idéias de como os
doentes seriam mais bem tratados e mais bem distribuídos, de como poderiam
contaminar uns aos outros ou aos que trabalhavam no hospital, ou ainda, à popu-
lação geral. Estudou também as normas e rotinas, os hábitos e práticas existentes
nos hospitais, tudo com o objetivo de organizar aquele espaço institucional até
então visivelmente desordenado. Estudou, por fim, sua localização na cidade, sua
relação com as correntes de ventos, com a posição do sol, e assim por diante.

O hospital como instrumento terapêutico é uma invenção relativamente


nova, que data do final do século XVIII.

Afirmamos que, anteriormente, os hospitais não eram instituições exclusiva-


mente médicas. Tinham doentes, é verdade, e tinham médicos, o que também é
verdade. Mas os doentes estavam ali por motivos de assistência cristã ou filantró-
pica (como no caso dos hospitais originais, de
natureza religiosa), ou por razões de ordem social,
econômica e política (como no caso do Hospital Ge-
ral de Paris). Poder-se-ia dizer que eram tratados,
tanto espiritualmente (pelos religiosos) quanto fisi-
camente (pelos médicos). Contudo, em um presídio
também existem médicos, sem que o presídio seja,
por isto, uma instituição médica. Da mesma forma
que existem médicos em escolas, fábricas e em ou-
tras instituições.
O que passou a ocorrer no contexto que estamos
estudando é que, com as visitas médicas ao hospi-
tal, no âmbito das reformulações ocorridas nos
centros urbanos, especificamente na França, o hos-
Monjas cuidando de doentes em
um mosteiro medieval
pital passou a ser medicalizado, isto é, tornou-se uma instituição médica específi-
ca, como continuaremos a ver adiante. Mas, por que o hospital foi medicalizado e
não uma outra instituição? Porque, enquanto espaço de exclusão, de concentra-
ção de doenças e mortes, passou ele mesmo a ser percebido como local insalu-
bre e de desordem, devendo, portanto, ser um espaço a ser higienizado pela
medicina social.

44 Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 2


A intervenção regular e constante da medicina urbana sobre o hospital permitiria
ao médico agrupar as doenças e, assim, observá-las de uma forma diferente, no dia-
a-dia, em seu curso e evolução. Produzia-se, desta forma, um saber sobre as doen-
ças que – fundamentado no modelo epistemológico das ciências naturais – até
então não havia sido possível.
E quais eram as características das ciências naturais que os médicos utiliza-
vam? Inicialmente, utilizavam o princípio do isolamento, que consistia em isolar o
objeto do conhecimento das interferências que poderiam prejudicar a observa-
ção. Exemplificando, na botânica, retira-se uma planta de uma floresta e transpor-
ta-se para o laboratório, para que se possa estudá-la sem as interferências de
ervas daninhas, de insetos ou de outros fatores que dificultariam a observação da
planta em seu estado puro. O isolamento seria, portanto, o princípio que permitiria
que o objeto do conhecimento, no caso a planta, pudesse ser observado em
estado puro no laboratório (in vitro), e não em seu estado natural (in natura).
Outro princípio utilizado pelas ciências naturais era o do afastamento, isto é, da
separação e conseqüente agrupamento dos objetos pelas características seme-
lhantes ou diferentes. Ou seja, no caso das plantas, haveria o agrupamento de
plantas que tinham os mesmos tipos de folhas ou de caules, ao mesmo tempo em
que eram diferenciadas de outras, com folhas e caules diversos. Enfim, o princípio
do afastamento permitia a classificação dos objetos em famílias, gêneros e espé-
cies, isto é, permitia a construção de uma taxonomia.
Os médicos utilizavam-se, então, desta metodologia para conhecer e classifi-
car as doenças e, desta feita, o hospital tornava-se lugar de exame, um laboratório
que permitiria uma nova classificação das doenças, agora fundamentada em um
método científico, isto é, o método naturalista. Mas tornava-se também, e pela
primeira vez, lugar de propósito de cura (e não mais de morte), por um saber e
uma prática construídos em seu interior. Mas, se é verdade que este novo modelo
epistemológico produziu um saber original sobre as doenças, é verdade ainda
que este saber se constituía sobre uma doença modificada pela ação prévia da
institucionalização, in vitro. Em outras palavras, a doença isolada, em estado Modelo epistemológico –
puro, como pretendiam as ciências naturais, era uma doença transformada pela Refere-se ao conjunto de teorias e
conceitos que possibilitam o
própria intervenção médica. Neste primeiro momento, o objetivo da cura surgia conhecimento. A área do
em decorrência não do propósito de reduzir o sofrimento humano, mas do de conhecimento que analisa os
modelos epistemológicos chama-
anular os efeitos negativos e nocivos do hospital no espaço urbano. se filosofia da ciência ou
epistemologia.

Ciências naturais – Estão voltadas


para o estudo do mundo físico.
Questão para reflexão Primeira área do conhecimento
Vimos como a medicina social transformou os hospitais-instituições que adquiriu o estatuto de ciência,
as ciências naturais, como a
religiosas e filantrópicas em hospitais-instituições médicas. biologia, a química e a física,
Procure conceber práticas médicas e de saúde que não tenham como sistematizaram um modelo de
conhecimento baseado na
núcleo central a instituição hospitalar. Como seriam?
experimentação e na busca de leis
de causalidade, que influenciou
até mesmo as ciências humanas
no início de sua constituição.
Enfim, o processo de medicalização do hospital em fins do século XVIII ocorreu,
Taxonomia – Ou taxionomia é a
essencialmente, a partir de uma nova tecnologia política, que foi denominada por ciência da classificação nominal
Michel Foucault (1977) de disciplina. dos seres vivos.

Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 2 45


Mas o que significa esta tecnologia política denominada
disciplina?

Para Michel Foucault, significa:

1. Uma arte de distribuição espacial dos indivíduos.


2. O exercício de um controle sobre o desenvolvimento
de uma ação (e não sobre o seu resultado).
3. Uma vigilância permanente e constante dos indivíduos.
4. Um registro contínuo de tudo o que ocorria na
instituição.

Se o hospital sofreu transformações fundamentais com


o processo de medicalização, o modelo epistemológico
da medicina também sofreu mudanças que iriam possibi-
litar o nascimento da medicina anátomo-clínica (uma nova
A liberdade liderando o povo
organização do saber e da prática médica em que são conjugadas a experiência
Eugène Delacroix (1798-1863),
Museu do Louvre, Paris da clínica e da anatomopatologia), como estudaremos no módulo seguinte.
Como já pudemos constatar, com a Revolução Francesa, muitas transforma-
ções importantes ocorreram na história da humanidade. Mudaram as relações
econômicas – com a industrialização e o surgimento da burguesia – e políticas,
com as repúblicas democráticas. Com a derrocada da aristocracia, caíam tam-
bém o poder da Igreja e o Estado Absolutista, monárquico-clerical, hegemônico
no período feudal. Os homens passavam a fazer suas próprias leis, cujo símbolo
maior foi a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, e não
queriam mais subjugar-se às leis totalitárias do rei ou da Igreja, nem às explica-
ções mágicas e sobrenaturais sobre a vida e a natureza.
Estado Absolutista – O O advento da figura do cidadão, personagem da polis, sujeito da política, que
Absolutismo foi o regime político
característico da Idade Moderna
votava, participava, escolhia os dirigentes, construía o Estado e a Nação teve o
(historicamente demarcada entre mais alto valor de significado neste contexto. Os princípios da Revolução France-
os séculos XV a XVIII). Baseava-se
sa – Liberdade, Igualdade e Fraternidade – explicitam bem esta nova ordem que se
no princípio do Direito Divino, que
materializava-se em práticas estava procurando constituir sob a égide da democracia e da cidadania.
totalitárias, já que o Rei seria
supostamente a encarnação da Ora, se a lei não era mais privilégio do rei ou do clero, se ao cidadão competia
vontade de Deus na terra. A forma escolher, decidir, construir a nova sociedade, então, qual seria a ordem, a raciona-
mais elaborada do Absolutismo
político ocorreu na França, um dos lidade que deveria guiá-los no caminho certo? A ciência. A ciência assumia neste
primeiros estados nacionais contexto a palavra da verdade, da objetividade, da ordem e da moral. Construída
da Europa.
pela Razão humana, seria a única possibilidade de se chegar à verdade das
Período feudal – O período em coisas e dos fatos.
que o feudalismo foi o principal
modo de produção, na Idade As transformações que então ocorriam nos hospitais estavam plenamente inte-
Média. A sociedade feudal dividia- gradas a esses princípios. Com a introdução do médico no cotidiano dos hospi-
se em classes sociais baseadas no
status. No feudalismo, as relações tais, como dissemos, não mais esporadicamente, não mais quando solicitado,
sociais baseavam-se em princípios mas cotidianamente, anotando, observando, relacionando os fatos e os desdo-
de dominação local, de lealdade e
de obrigações. Inexistia o Estado
bramentos, a medicina ia construindo um conjunto de informações até então im-
como unidade territorial e política. possíveis de se obter.

46 Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 2


Em outras palavras, em nenhum outro momento da história, os médicos tiveram
à disposição, e simultaneamente, tantos pacientes sofrendo de tantos males dife-
rentes, em uma só instituição, para observá-los e classificá-los, para experimentar
suas teorias e tratamentos. O princípio epistemológico do isolamento, somado ao
poder institucional do diretor do Hospital Geral, e ao poder e tarefa da medicina
urbana de higienizar as cidades, davam ao médico um poder político muito gran-
de sobre todos os doentes existentes na cidade.
O princípio do isolamento preconizava que era preciso isolar para observar e
conhecer, ao passo que o princípio da higienização das cidades possibilitava a
internação, mesmo que involuntária.

Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 2 47


Referências bibliográficas
FOUCAULT, Michel, 1977. O Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro: Editora Foren-
se Universitária.
FOUCAULT, Michel, 1979. O nascimento do hospital. In: Microfísica do Poder. Rio
de Janeiro: Graal, pp. 99-111.
FOUCAULT, Michel, 1978. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Pers-
pectiva.
ROSEN, George, 1980. Da Polícia Médica à Medicina Social. Ensaios sobre história
da assistência médica. Rio de Janeiro: Graal.
ROSEN, George, 1994. Uma História da Saúde Pública. São Paulo: Editora Unesp/
Abrasco/Hucitec.

Leituras recomendadas
FOUCAULT, Michel, 1977. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes.
GOFFMAN, Erwin, 1977. Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo: Perspectiva.
MACHADO, Roberto; MURICY, Kátia; LOUREIRO, Angela & LUZ, Ricardo, 1978.
Danação da Norma – Medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de
Janeiro: Graal.

Avaliação
Vimos que a medicina contemporânea desenvolveu-se basicamente
no interior do hospital. Desta feita, o saber médico sobre as doenças
seria um saber construído sobre uma doença transformada pela experiência
da institucionalização. Em outras palavras, ao isolar os doentes no hospital para
poder conhecer as doenças, a medicina teria interferido sobre o próprio processo
patológico. Procure, assim, desenvolver, quais as conseqüências da instituciona-
lização sobre as doenças mentais; seria possível que a hospitalização tivesse
transformado as doenças mentais?
Escreva suas considerações em duas ou três páginas e envie para seu orienta-
dor. Lembre-se que, nas referências bibliográficas e na leitura recomendada, você
poderá encontrar mais informações e argumentos.
Bom trabalho! Estamos aguardando seu texto!

48 Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 2


50 Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 3
MÓDULO 3

A Clínica e a Anatomia Patológica como Bases da Medicina


Científica Moderna

Apresentação
Nesta unidade, veremos de que maneira a medicina, como ciência, associa duas vertentes: 1) a da prática
médica, aqui denominada “experiência clínica”, o lugar da relação médico-paciente e 2) a da “medicina
interna”, ou a vertente da anatomia patológica, que “abre os corpos” para ver o que existe em seu interior, para
ver as causas internas das doenças. Se a primeira busca tanto o discurso quanto a experiência do indivíduo
como doente, a segunda é o domínio do saber exclusivo do médico, que olha e identifica o que “há de errado
nos órgãos, nos exames”. A associação das duas vertentes vai desenhar a medicina moderna, nascida no
século XVIII.
Abordaremos, aqui, as origens e a constituição da experiência clínica e da anatomia patológica como base
da ciência médica. Veremos a transformação da prática médica clássica em uma medicina considerada
científica, que caracteriza o que denominamos medicina moderna. Estudaremos as bases históricas e institu-
cionais da clínica e da anatomia patológica, assim como os princípios teóricos e conceituais da nova experiên-
cia, denominada anátomo-clínica.

Objetivos
• Analisar a ruptura entre a medicina clássica e a medicina moderna.
• Conhecer o nascimento da clínica e da anatomia patológica como bases da medicina científica.
• Identificar as condições históricas que possibilitaram tais experiências.
• Identificar os princípios teóricos e conceituais da clínica médica e da anátomo-clínica.

Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 3 51


As condições para o surgimento da clínica
Ciência é um conjunto de teorias e práticas. Surge como tentativa, por parte de
indivíduos e instituições, de responder questionamentos sobre si e sobre o meio
que os cerca.
A medicina, como ciência, tenta reunir o que se apresenta na queixa e na expe-
riência singular do paciente a um aspecto que possibilite a generalização, ou seja,
busca descobrir aquilo que se repete, o que não diria respeito apenas a um pa-
ciente e poderia, portanto, se repetir em outros.
A origem da medicina moderna está na clínica. Esta se baseia no encontro
entre a pessoa que se queixa e a que a atende.
Algumas condições possibilitaram que a clínica pudesse ocorrer e que tivesse
uma enorme importância, tanto para a medicina quanto para a sociedade con-
temporânea.
A palavra clínica vem do grego klinus – que significa leito ou cama – e tem
o sentido de inclinar-se. Clínica médica significaria, então, estar ao leito, assis-
tir o doente na cama, no dia-a-dia de sua evolução, escutar sua história, para
buscar soluções.
A prática de reunir doentes em um espaço “especial”, em separado, para
observar evoluções de patologias e quadros clínicos, só se tornou possível a
partir da atuação regular do médico no hospital, que se tornou o observatório
ideal de doentes e doenças.

Quais foram estas condições?

A primeira condição foi a reorganização da instituição hospitalar. O hospital dei-


xou de ser uma hospedaria de indigentes, uma instituição filantrópica, de exercício
da caridade religiosa, para se tornar uma instituição médica.
A segunda condição foi a redefinição do estatuto social do doente. Às mudanças
nas relações sociais no espaço do hospital, é associada a afirmação do status dos
homens como cidadãos. O ideal de igualdade para o indivíduo exercer sua liberda-
de no interior de uma nação fraterna implicava um homem que deveria ser pro-
dutivo. Não mais representando, como papel principal, a figura do desafortunado,
do amaldiçoado, o doente era alguém que poderia contaminar outras pessoas.
Por isto, deveria ser afastado do convívio social para ser tratado.
A terceira condição foi o surgimento de um uso absolutamente novo da lingua-
gem científica aplicada à medicina, que propunha definir as causas das doenças.
Partia da experiência vivida pelo paciente, isto é, seus sintomas, seus sentimen-
tos, e buscava os processos patológicos do funcionamento humano e dos “distúr-
bios” localizados nos órgãos. Ao nomear o que via, o médico passou a construir
uma linguagem própria.
Essa mudança, que partia do singular e possibilitava “generalizar” as experiên-
cias individuais, buscava destacar a doença, fazendo ver mais a doença do que o
sujeito que sofria.

52 Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 3


A forma de obter conhecimento da experiência do paciente, moldada pela
observação do médico, era chamada “empiricista”, ou seja, um conhecimento
centrado na experiência do observador. Dito de outra forma, partindo da experiên-
cia sensível do observador, se nomeava, em uma linguagem, o que se via, ao
mesmo tempo em que se fazia ver.

Veremos, agora, os aspectos mais importantes destas condições.

A reorganização da instituição hospitalar


Como sabemos, anteriormente a intervenção médica no espaço hospitalar
era eventual e irregular. Mas, a partir da transformação do hospital em instituição
médica, essa intervenção passou a ser regular e constante, possibilitando,
assim, uma nova forma de contato da medicina com as doenças, produzindo
um novo saber.
As ciências modernas organizam o conhecimen-
to e desenvolvem métodos que possibilitem o aces-
so a ele. Torna-se então necessário um lugar reser-
vado para a observação e a sistematização da ex-
periência. No caso da medicina, a organização do
espaço hospitalar funcionou como um dos funda-
mentos necessários para uma melhor observação
da doença.
O hospital tornou-se lugar de exame, fonte para a
construção de uma ciência empírica, isto é, de or-
ganização da experiência. Como vimos, foi inaugu-
rada uma nova possibilidade, a de o médico estar
ao lado dos doentes; de poder anotar as mudan-
ças, as melhoras ou pioras no dia-a-dia das evolu-
ções; de relacionar tais evoluções aos mais varia-
dos fatores e, enfim, de poder agrupar as doenças
Hospital em Arles
pelas semelhanças e diferenças. Vincent Van Gogh (1853-1890)
Coleção Oscar Reinhart
Assim nasceu a clínica médica tal como a conhecemos atualmente. O estar ao
leito produziu um novo saber e uma nova relação entre o médico e o doente, entre
o doente e a instituição, entre o médico, o doente e a instituição.

Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 3 53


A redefinição do estatuto social do doente
Como vimos no módulo anterior, as transformações de natureza cultural, política
e científica, ocorridas durante os séculos XVII e XVIII, tiveram decisiva influência na
construção do que passamos a denominar de estatuto social do doente. Tanto em
relação à idéia de Estado Moderno, quanto à de cidade como centro urbano – como
passou a ocorrer na França em fins do século XVIII com o advento do conceito de
cidadão –, as doenças e os corpos dos indivíduos deixaram de ser problemas
exclusivamente pessoais (de cuidado próprio) ou de mera caridade ou filantropia.
O corpo doente passou a ser questão tanto política, de Estado ou de saúde
pública, quanto de interesse científico, de conhecimento sobre as doenças. Neste
contexto, o Estado, associado à prática médica, pôde elaborar as políticas de
saúde. O corpo doente não deveria ser tratado apenas pela caridade religiosa ou
filantrópica, mas pela política de saúde, pela polícia médica, pela vigilância sani-
tária, e assim por diante. Desta forma, a doença tornava-se, além de uma questão
política e científica, questão de cidadania.
Visto de outro ângulo, ainda, o tratamento de uma peste ou lepra deixava de ser
ato de caridade apenas, ou de uma eventual busca de tratamento, para tornar-se
um imperativo social e político. A internação hospitalar dos doentes tornava-se,
então,, uma questão de política sanitária e social. Embora o cidadão fosse livre,
pairava sobre sua liberdade o direito social de proteger o Estado de suas doenças
e males. O poder de internar no hospital era um poder de polícia médica, um
poder superior.

O método de conhecimento e a clínica


Um dos médicos mais importantes que participaram deste processo foi
Philippe Pinel, que buscava, em suas próprias palavras, uma base “verdadeira-
mente científica” para o conhecimento da realidade. A referência principal desta
base “verdadeiramente científica” deveria ser encontrada, segundo ele, no modelo
das Ciências Naturais.
Em seu clássico livro Tratado Médico-Filosófico sobre a Alienação Mental ou a
Mania, publicado pela primeira vez em 1801 e considerado o primeiro livro estrita-
mente psiquiátrico, Pinel faz a afirmação a seguir, que denota sua admiração pelo
método naturalista:

A arte de descrever os fatos é a suprema arte em medicina.

Como era o método de conhecimento original das ciências


naturais, então?

Para estas, as idéias constituíam-se a partir da experiência, isto é, todo o conhe-


cimento humano teria origem na sensação. A partir da senso-percepção humana

54 Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 3


seriam formadas as idéias, das mais simples às mais abstratas e complexas. Em
outras palavras, a observação empírica, isto é, a experiência, possibilitaria uma
leitura do real.

E como seria este processo no que diz respeito à medicina?

Vamos nos lembrar de que, na Europa Ocidental, ocorriam


mudanças históricas que transformavam a própria dimensão
imaginária em que o homem se reconhecia. O homem, que era
criatura de Deus, se via agora também como cidadão.
Na experiência da dor ou da incapacidade, as criaturas de Deus
deveriam, principalmente, rezar ao Senhor para que Ele as livrasse
dos males de que poderiam padecer. Nesta relação transcendente
ou imanente (que remetia ou que provinha do sagrado) se
compreendia o sofrimento.
Já na Era Moderna, os cidadãos poderiam vir a padecer, em
corpos adoecidos, de fenômenos naturais, que poderiam ser
reconhecidos pelos sábios. Poderiam padecer de doenças.
Observa-se a transformação da “idéia” de mal para a noção
científica de doença; da idéia de fatalidade, experiência cósmica,
trágica, à localização da doença no organismo como entidade,
como distúrbio fisiológico. Como doença localizada no corpo, a
experiência de contato cotidiano assume um novo caráter.
Melancolia
Ora, a relação cotidiana com as doenças, que era a base da experiência, iria Albert Dürer (1471-1528)
servir de fonte para a construção da ciência médica.

Mas o que significa a experiência como forma de obtenção de


conhecimento?

Significa retomar a possibilidade de buscar na realidade, na observação, a via


de acesso à construção do conhecimento científico.

Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 3 55


Voltemos às palavras do próprio Philippe Pinel que, ao citar seu mestre, o filósofo
Estevan Condillac, nos explicou a natureza do método naturalista:

Analisar nada mais é do que observar em uma ordem sucessiva as


qualidades de um objeto, a fim de lhes dar no espírito a ordem simultânea
em que elas existem...
Ora, qual é esta ordem?
A natureza a indica por si mesma; é aquela na qual ela apresenta os objetos.

A clínica e a nova linguagem


A clínica tornou-se um olhar que seria, ao mesmo tempo e por isto mesmo, lingua-
gem. A fonte do saber médico seria este olhar, a base para a construção de um
discurso. Tal discurso conjugaria uma dimensão prática, de intervenção e ação.
O olhar clínico teria a paradoxal propriedade de ouvir uma linguagem no momento
em que percebia um espetáculo, como nos demonstrou Foucault em seu clássico
O nascimento da clínica.
A grande questão seria traduzir uma linguagem pessoal – um saber da ordem
do senso comum, da experiência singular – para uma linguagem científica, que
poderia ser acessada por especialistas, e fa-
cilmente codificável em um conjunto de sinais
e sintomas gerais, passíveis de serem vivi-
dos por seres humanos, e portanto descritos
em manuais.
Pensado como linguagem de ação, o sin-
toma, que seria a realidade da doença, tinha
uma estrutura lingüística e, ao mesmo tem-
po, poderia ser enunciado por uma lingua-
gem rigorosa.
Mas, observe: quando falamos de lingua-
gem, não estamos falando de conteúdos
temáticos ou de modalidades lógicas, mas
da estrutura falada do percebido, isto é, da
articulação das maneiras de ver e dizer.
O estudo da clínica mostra que o espaço da
A lição de anatomia do
dr. Nicolaes Tulp, percepção seria a tal ponto um espaço lingüístico, que não haveria diferença
Rembrandt van Rijn (1606-1669), fundamental entre o ver e o dizer. Na medicina classificatória, o ver estava
Mauritshuis, Haia totalmente subordinado ao dizer. Com a clínica, não havia mais uma lingua-
gem anterior à visão (no próprio momento em que se percebia um espetáculo,
se ouvia uma linguagem).
Em outras palavras, na clínica, utilizava-se a relação do ato perceptivo com o
elemento da linguagem, isto é, buscavam-se os termos mais adequados, e que
melhor traduzissem o que se observava. Por exemplo, a lesão na pele causada

56 Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 3


pela lepra seria denominada lepidóptera, isto é, porque assemelhava-se a uma
asa de borboleta (que é um lepidóptero). Assim sendo, ao “ver” no formato
da lesão uma asa de borboleta, e ao nomeá-la “asa de borboleta”, fazia-se
ver na lesão o que o clínico havia visto.
Este espaço e a linguagem a ele diretamente ligada foram profundamente
modificados pela constituição, no início do século XIX, da anátomo-clínica.

Questão para reflexão


Estudamos o surgimento da clínica médica, e vimos que o modelo de
conhecimento que a fundamentava era o das ciências naturais.
Reflita sobre as implicações de considerar as doenças como
objetos naturais. Você já havia pensado nisto?

A anátomo-clínica
Paralelamente ao início da atuação regular do médico no hospital, como vimos
no módulo anterior, ocorria a superação de racionalidades místicas e mágico-
religiosas, tornando possível a abertura de cadáveres: o corpo humano deixava
de ser sagrado para tornar-se objeto de conhecimento científico.
Como o próprio nome indica, o nascimento da anátomo-clínica foi o resultado
da relação constitutiva da clínica com a anatomia patológica. Seria a reunião da
experiência vivida pelo doente, a narrativa de sua doença, com a escuta do médi-
co e seu exame de sinais e sintomas, com a possibilidade de ter acesso ao
mecanismo interno de funcionamento de órgão e tecidos, identificando as causas
das disfunções.
A clínica foi buscar na filosofia de Condillac a descoberta de um princípio que é,
ao mesmo tempo, universal e uma leitura metódica que, percorrendo as formas de
decomposição, descrevia as leis da composição. Assim, começou a se produzir Sinais – São os aspectos
uma mudança fundamental com relação à clínica e à medicina classificatória que constatáveis, verificáveis pelos
sentidos de um observador,
implicou o deslocamento do espaço da percepção da doença considerada como associados à experiência de uma
essência nosológica para o corpo doente. doença vivida por alguém.
Exemplo: aumento da temperatura
corporal na febre.

Sintomas – São os aspectos


sensíveis da experiência de uma
doença vivida por alguém.
Exemplo: desânimo que
acompanha a febre.

Essência nosológica – Sinais e


Na anátomo-clínica, o novo espaço da percepção localizava-se no corpo do sintomas próprios a uma mesma
patologia, sendo constante nos
doente, em que as doenças se organizavam em classes a partir do tipo de tecido. indivíduos que sofrem a doença.
Distingue-se daquilo que é
A anátomo-clínica se constituiu a partir da relação que se estabelecia entre os particular à vivência de um
indivíduo específico (por exemplo,
métodos da clínica e da anatomia patológica, dois procedimentos analíticos ou
sua idade), que venha a
dois olhares de superfície. padecer dela.

Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 3 57


Estabelecendo um caminho entre as dimensões heterogêneas dos sintomas e
dos tecidos, a anátomo-clínica criou um novo espaço de percepção médica: o
corpo doente.
Deve-se a Broussais o passo definitivo que desvalorizou a problemática das
essências mórbidas e deslocou a doença do espaço nosográfico para o organis-
mo. Para este autor, o estudo das febres deveria ser realizado pela análise das
formas particulares de inflamação – processo que se desenvolve no interior de um
tecido alterando-o de modo específico – o que possibilitava precisar a relação
entre os sintomas da doença e a lesão orgânica. O espaço local da doença seria,
ao mesmo tempo e imediatamente, um espaço causal.
A partir de então, o olhar do médico poderia dirigir-se a um organismo doente.
É neste deslocamento da doença considerada como essência nosográfica para a
doença identificada com o organismo doente que residiria a principal característica
da transformação que deu origem à clínica moderna.
Se anteriormente o médico era convocado ao hospital tão somente para aten-
der a alguns casos mais graves, este novo contexto o tornaria a personagem mais
importante do hospital.
É assim que, como detentor máximo do poder hospitalar, o médico, filósofo e
enciclopedista Philippe Pinel, considerado o “pai da psiquiatria” e um dos fundado-
res da clínica médica, iniciava sua grande obra de medicalização no hospital, como
veremos mais detidamente na próxima unidade.

58 Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 3


Referências bibliográficas
CANGUILHEM, Georges, 1982. O Normal e o Patológico. Rio de Janeiro: Editora
Forense Universitária.
FOUCAULT, Michel, 1977. O Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro: Editora Foren-
se Universitária.

Leituras recomendadas
MACHADO, Roberto, 1988. Ciência e Saber: a trajetória da arqueologia de Michel
Foucault. Rio de Janeiro: Graal.
BERCHERIE, Paul, 1989. Os Fundamentos da Clínica – história e estrutura do saber
psiquiátrico. Rio de Janeiro: Zahar.

Dicas de filmes
O outro lado da nobreza – Direção de Michael Hoffman. Com Robert Downey
Jr., Meg Ryan e Hugh Grant. Ganhador de dois Oscar, retrata a história de um
estudante de medicina no século XVII, abordando a concepção científica da me-
dicina moderna, que então surgia, e a estrutura social da época.

Avaliação
Faça uma pesquisa nos livros que você tem ou conhece, sobre como os
autores definem clínica. Procure debater e questionar com os mesmos:
levante questões e faça comentários sobre as definições que você encontrar. Ou,
se preferir, faça uma ou duas entrevistas com clínicos que você conhece, ou com
os quais você trabalha, sobre as opiniões que têm, conceitos e técnicas relaciona-
das à clínica que praticam. Lembre-se, a questão não deve ultrapassar duas pági-
nas. Boa sorte! Aguardamos seu texto!

Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 3 59


60 Saúde Mental - Políticas e Instituições • Módulo 3
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RELAÇÃO DE IMAGENS UTILIZADAS

Módulo 1

Pág. 25 - Europa no início do século XVIII


Fonte: O surgimento das nações, Leon Pomer, p. 39, Atual Editora, 1986

Pág. 27 - Johann Peter Frank


Fonte: Uma história da saúde pública, George Rosen, Editora Unesp, Hucitec e Abrasco, 1994

Pág. 29 - Rue Champlain, Paris, por volta de 1865, Museu Carnavalet


Fonte: Paris Babilônia, Rupert Christiansen, Editora Record, 1998

Pág. 30 - Mapa de Paris, 1817


Fonte: http://www.library.yale.edu/MapColl/paris.htm

Pág. 31 - Pobres aguardando atendimento médico


Fonte: História moderna e contemporânea, Leonel I. A. Mello e Luis C. A. Costa, p. 166, Editora Scipione, 1991

Pág. 33 - Indústria têxtil na Inglaterra, séc. XVIII


Fonte: http://planeta.terra.com.br/arte/mundoantigo/industrial/cang1.htm

Módulo 2

Pág. 40 - Interior do hospital Hotel Dieu, Paris-1500


Fonte: Uma história da saúde pública, George Rosen, Editora Unesp, Hucitec e Abrasco, 1994

Pág. 41 - Extração da pedra da loucura, pintura de Jeronimus Bosch (1450-1516)

Pág. 44 - Monjas cuidando de doentes em um mosteiro medieval


Fonte: Uma história da saúde pública, George Rosen, Editora Unesp, Hucitec e Abrasco, 1994

Pág. 46 - A liberdade liderando o povo, pintura de Eugène Delacroix (1798-1863), Museu do Louvre, Paris

Módulo 3

Pág. 53 - Hospital em Arles, pintura de Vincent Van Gogh (1853-1890), coleção Oscar Reinhart

Pág. 55 - Melancolia, gravura de Albert Dürer (1471-1528)


Fonte: http://www.ibiblio.org/wm/paint/auth/durer/engravings/melencolia-i.jpg

Pág. 56 - A lição de anatomia do dr. Nicolaes Tulp, pintura de Rembrandt van Rijn (1606-1669), Museu Mauritshuis, Haia

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Formato: 21 x 28 cm
Tipologia: Lucida Bright e Swiss721
Papel: capa - Duo Design 250g / miolo - Alta Alvura 120g
Fotolitos e Impressão: Corbã Editora e Artes Gráficas
Rio de Janeiro, fevereiro de 2003

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