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1590/S1413-24782020250049
ARTIGO
Sexualidades no contexto escolar:
violência ética e disputas por reconhecimento
RESUMO
Este texto apresenta uma pesquisa que investigou a produção da violência ética
e do reconhecimento das sexualidades em contextos escolares. Entendemos que
a radicalização da teoria do reconhecimento, por Judith Butler, tem possibilitado
análises importantes sobre os vínculos entre política e moral. Uma das facetas da
violência ética caracteriza-se pela obliteração do relato de si, do silenciamento das
lutas e dos sofrimentos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, intersexuais
e mais (LGBTI+). Para nossas análises, promovemos grupos focais e uma entrevista
narrativa com docentes da educação básica de escolas públicas. A pesquisa é fruto
do trabalho de um conjunto de pesquisadores/as que nos últimos quatro anos, em
um curso de mestrado, se envolveram com o tema das sexualidades nos contextos
escolares. Nossas análises apontam tanto para a produção de vidas insuportáveis
como para a constituição de resistências que buscam pela possibilidade de vidas
habitáveis, porém numa ambiência marcada por discursos contrários às sexualidades.
PALAVRAS-CHAVE
sexualidades; escola; violência ética; reconhecimento; LGBTfobia.
I
Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, MG, Brasil.
INTRODUÇÃO
O presente artigo apresenta uma pesquisa que investigou a produção da
violência ética e do reconhecimento das sexualidades nos contextos escolares.
Aqui utilizamos a noção de sexualidades para pensar na afirmação das identidades e
das não identidades que se apresentam na contemporaneidade, algo que se aproxima
do acrônimo LGBTI+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexuais
e o sinal de + indicando uma abertura a outras performatividades de gênero)1, sem
abrirmos mão dos desdobramentos da sigla no cotidiano escolar e nas políticas
públicas. Acreditamos que a noção LGBTfobia é uma derivação do acrônimo, bem
como transfobia e lesbofobia, sendo ambas irredutíveis uma à outra e tendo seus usos
orientados por estratégias políticas e metodológicas. Ainda assim, ressaltamos que
o uso menos rigoroso dessas noções, por nós, indica a necessária atenção a termos
êmicos negociados no contexto atual, pois opções teórico-metodológicas podem
dizer de posições políticas presentes em nossas vidas. A identidade dos sujeitos como
afirmação possível de si, a partir e além dos processos identitários, se torna inteligível
com a compreensão do gênero como um ato performático. Esse ato fala do modo
como as formas de existência se aproximam da norma de gênero (Butler, 2003).
O regime de performatividade trazido por Judith Butler refere-se à reiteração
da matriz heterossexual e a suas falhas no ato de repetição, o que possibilita outras
formas de performatividade (Butler, 2003) que nem sempre desfrutam inteligibi-
lidade moral e política por contestarem e/ou transformarem a norma, ainda que
isso não se faça livre das amarras normativas do gênero e das sexualidades (Butler,
2015). Butler elaborou essa análise utilizando de maneira intensa a obra de Michel
Foucault. Assim, ela entende que a adesão ou contestação de uma performativida-
de heterossexual pelos sujeitos sempre ocorrerá em dado regime de verdade, este
considerado haja vista a obra foucaultiana (Foucault, 2018a). Logo, as siglas e suas
transformações são marcadores históricos que indicam os processos de produção
de diferenças e diferenciações da des/articulação de sujeitos políticos (Brah, 2006).
Pelo ato de nomeação que fazem na arena pública, siglas como LGBTI+ têm con-
seguido, muitas vezes, produzir inteligibilidade política na cena pública, bem como
formas de reconhecimento.
As noções de violência ética e de reconhecimento foram escolhidas por le-
varmos em conta que elas possuem grande potência na análise de disputas morais
e políticas, como julgamos ser a questão das sexualidades nos contextos escolares.
Butler (2015) analisa as noções de violência ética, reconhecimento e esperança
para pensar os limites/as possibilidades do sujeito em relatar a si mesmo diante das
interpelações que sofre. Tal reconhecimento pode acontecer em três momentos, que
se entrecruzam: diante do coletivo, diante do outro e diante de si mesmo. Moral e
política constituem ambiência para a produção do silenciamento ou reconhecimen-
to de LGBTI+, tendo entre uns e outros zonas cinzentas que dizem de ruídos ou
indícios de vozes possíveis.
Uma das facetas da violência ética caracteriza-se pela obliteração do relato
de si, da emergência do reconhecimento daqueles/as que sofrem interpelações e
ataques com base em sua contestação da norma de gênero, ou seja, no dimorfis-
mo sexual, no privilégio do homem e na heterossexualidade compulsória (Butler,
2003). Essa violência surge sempre que um jovem gay é impedido de narrar seu
sofrimento, seja na sua escola, seja em outro lugar. O impedimento dá-se pelo
desprezo do coletivo, pelas ameaças do outro, pelas coações emocionais do sujeito
ou por tantos modos em que a mudez fabrica silêncios e medo. Portanto, temos
a violência ética operando em favor da LGBTfobia. Esta pode ser compreendi-
da como um dispositivo (Foucault, 1988) de regulação dos corpos de LGBTI+,
entre outras formas de existência que desafiam a norma de gênero por práticas
discursivas ou não discursivas.
Ainda que certa polêmica exista acerca das noções como homofobia, les-
bofobia e seus similares (Costa e Nardi, 2015; Junqueira, 2007), como a junção
LGBTfobia, elas adentram cada vez mais como conceitos e/ou categorias analíticas
na produção acadêmica (Borrillo, 2010), nos textos das políticas públicas e nos
instrumentos de direitos humanos (Brasil, 2009). Esses termos provêm da pauta
do ativismo social e dão inteligibilidade à experiência das sexualidades. A tensão,
não rara, entre posições acadêmicas, políticas públicas e movimentos sociais, no
contexto de gênero e sexualidades, não deveria bloquear alianças necessárias para
o avanço de pautas políticas, pois poderia produzir o epistemicídio de importantes
elementos na articulação de direitos de LGBTI+.
Aqui trazemos a noção de epistemicídio articulada por Sueli Carneiro
(2005) na análise das dominações raciais com base nas leituras que ela fez de
outros autores. Para a teórica, essa noção “tem se constituído no instrumento
operacional para a consolidação das hierarquias raciais por ele produzidas,
para as quais a educação tem dado contribuição inestimável” (Carneiro, 2005,
p. 33), sendo capaz de apagar saberes e fazeres no contexto em que se articula.
Acreditamos que negar e/ou desacreditar termos êmicos ou categorias ainda
frágeis das lutas sociais LGBTI+ é operar de modo epistemicida, pois mata em
broto saberes e fazeres irrenunciáveis para a produção de uma frondosa demo-
cracia participativa nos contextos sociais, algo que desejamos a todas as escolas.
Numa perspectiva dos debates sobre educação, democracia e justiça, temos
autores que apontam cenários para essa ambiência política. Na ótica de uma
justiça curricular, o pesquisador espanhol Jurjo Torres Santomé (2013, p. 163)
considera ser “preciso aceitar a pretensão de que o século XXI deve ser o século
da justiça social, da paz, da compreensão e da solidariedade global e trabalhar
para isso”. Assim, as escolhas metodológicas também dizem das orientações
políticas de uma pesquisa.
Também, entendemos, fundamentados em Wladimir Saflate (2015), que a
radicalização da teoria do reconhecimento, por Butler, tem possibilitado análises
importantes sobre os vínculos entre política e moral. Recortamos em nossa pes-
quisa relatos que falam daqueles/as que têm sido des/classificados/as nas escolas
Raça, sexualidade e gênero, por exemplo, são três marcadores que se tornaram
alvo de ataques nos contextos das conferências (municipais, estaduais e nacional)
de educação, sendo algumas das categorias que foram banidas ou esgarçadas nos
documentos finais do Plano Nacional de Educação. Essa análise das mudanças de
noções mobilizadoras para termos malditos não é completa, mas ainda assim diz
de um contexto de influência muito específico no Brasil. A análise da recolonização
da esfera civil pelo discurso religioso tem contribuído para essa mudança.
Percebe-se que se formou uma aliança composta por evangélicos e católicos mais
ortodoxos, quando não fundamentalistas, bem como organizações conservadoras/
reacionárias que defendem o que chamam de família e costumes tradicionais, uni-
das em divulgar e disseminar informações distorcidas para impedir que se alcance
a equidade entre os gêneros e o respeito à diversidade sexual, conforme vem sendo
ratificado internacional e nacionalmente há décadas com a intenção de diminuir
as discriminações e as violências baseadas em gênero. (Reis e Eggert, 2017, p. 18)
A gente entra na faculdade, participa desses debates sobre gênero, o que é ser
mulher, o que é ser homem. E diz que nunca vai fazer isso como professor, né,
jamais eu vou fazer isso. E para minha surpresa e durante essa conversa que
eu pensei nisso [...]. E teve um dia inclusive que nós começamos com essa
conversa na sala. E teve um menino que falou assim: “Mas eu procuro fazer
minha letra bonita mesmo, porque a letra quando é bonita a professora dá nota
boa. Porque as meninas têm tudo nota boa”. (Grupo Focal, professor Gilberto
Freyre3, 2017)
O professor Gilberto Freyre indica como a fala do aluno produz uma re-
flexividade que leva o docente a perceber as expectativas de gênero nos processos
avaliativos. Em sua observação, há a contestação de um padrão consensual de
comportamento feminino/masculino que já está naturalizado em nossas ações,
sem que nos demos conta disso. Isso aponta para uma posição crítica do professor
em relação a uma governabilidade sexista sobre o modo de escrever. Outra fala
também analisa o poder da naturalização das questões de gênero e das sexualidades
no nosso cotidiano:
Isso está enraizado na gente mesmo, por mais liberal que a gente seja, ou a
gente acha que a gente é. Mas a gente falando a gente reflete, mas você não está
errado. Não quer dizer que você esteja errado de ser assim. É porque a gente
tem isso tudo enraizado dentro da gente. Eu mesma se for começar aqui a ana-
lisar coisas que eu fiz ou que eu faço em relação a minha vida diante de outras
pessoas ou o meu posicionamento diante de outras pessoas, eu vou encontrar
um monte de coisa que pode ser considerada defeito, pode ser considerada uma
coisa errada. (Grupo Focal, Professora Marie Curie, 2018)
Esse menino classificado como viado pelo enunciado “Bolsonaro vai matar
todos os viados” pode experimentar uma vida insuportável. Dessa insuportabilidade,
ele tentará escapar. Nesse momento, quando a possibilidade do armário se tornar
insuficiente, qual será sua destinação? Será ele “gente que chega pra ficar” ou
“gente que vai pra nunca mais”? A questão do suicídio e/ou sua ideação suicida
tem aparecido mais como discussões nas redes do que em pesquisas acadêmicas.
Em nossas análises, a temática do suicídio de LGBT+ (ou suas ideações) tem
Eu tenho percebido é que existe hoje uma dificuldade grande da escola [de]
trabalhar essas questões da sexualidade e gênero, e quando a gente toca nesse
assunto a resposta é “os pais não gostam”. Parece uma desculpa, “não vamos fa-
lar disso, porque os pais não gostam”. Eu não sei se isso é uma realidade ou se é
uma forma de fugir da situação, porque é diferente aceitar e respeitar. Ou fazer
de conta que não existe. “Não, eu não tenho preconceito. Desde que não fique
perto de mim, não entre nas rodas onde eu estou”. Então eu percebo que essas
questões são muito mais veladas entre os adultos, entre as gerações mais adultas,
do que entre os próprios jovens. Entre eles, eles são bastante abertos a essas
questões. (Grupo Focal, Professora Luna, 2018)
A professora Luna não aponta apenas o clima de medo em que vivem os/
as docentes; traz em sua fala a emergência de um discurso de reconhecimento
das sexualidades, ainda que precário. Ao afirmar que os jovens “estão bastante
abertos a essas questões”, identifica que existe um reconhecimento em processo,
algo que emerge como contestação e transformação do silêncio imposto pela
violência ética em relação ao gênero e às sexualidades. Aqui poderíamos pensar
em revoluções que ocorrem na educação (Torres Santomé, 2013), mas também
dizem de permeabilidades como outras que se dão em diferentes domínios da
vida. Os movimentos de LGBTI+ conseguem grande capilaridade social, seja
em manifestações, como as paradas LGBTI+, seja ainda em redes da internet,
produzindo semânticas de reconhecimento que, via estudantes e docentes, aden-
tram na escola, como revelam as falas dos/as professores/as que colaboraram com
nossas pesquisas. Destacamos que nos grupos focais não houve questões sobre
travestilidade e transexualidade, indicando como o epistemicídio opera de forma
mais violenta sobre esses corpos. Não abriremos essa discussão neste texto; ela
está em elaboração em nosso grupo de pesquisa.
A entrevista narrativa da professora Luana, autoidentificada como mulher
transexual, possibilitou localizarmos interdependências que se tornam fundamentais
para o sujeito relatar a si para toda a comunidade escolar, produzir uma inteligi-
bilidade capaz de enfrentar a violência ética que atinge as mulheres transexuais.
No contexto de nossas idas a campo, a entrevista narrativa foi importante
para aprofundarmos nossas análises. A entrevista narrativa com Luana foi realizada
pelo professor de curso profissionalizante, também autor deste artigo, em meados
de 2017, com duração de pouco mais de 120 minutos. Também foram seguidos
todos os procedimentos orientados pelo comitê de ética em pesquisa. O pesquisador
conheceu Luana durante sua atividade de professor no mesmo município em que
ela atuava, numa cidade de médio porte a uns 80 km de Belo Horizonte. Após al-
guns encontros informais, Luana mostrou-se muito interessada em colaborar com
a pesquisa, até mesmo mostrando um diário que tem produzido para registrar suas
experiências. No período da pesquisa, ela estava com 25 anos aproximadamente,
vivia com um companheiro e expressava uma performatividade de gênero femi-
nina. Esse formato de entrevista narrativa parte de uma questão aberta com uma
orientação ao narrador de falar o tempo que lhe aprouver. As entrevistas narrativas
“se caracterizam como ferramentas não estruturadas, visando a profundidade, de
aspectos não específicos, a partir das quais emergem histórias de vida, tanto do
entrevistado como as entrecruzadas no contexto situacional” (Muylaert et al., 2014,
p. 194). Também, acreditamos que a narrativa tem a legitimidade de um testemunho
ao colocar alguém diante de uma audiência que está disposta a ouvir o relato dos/
das narradores/as (Hartmann, 2005).
Ao optar pela narrativa de uma mulher transexual, a professora Luana, dese-
jávamos aprofundar o diálogo de nossa pesquisa com as especificidades da transfobia
e/ou o reconhecimento das transexualidades. Em nossos grupos focais, o tema eram
gênero e sexualidades, e nada apareceu acerca das travestilidades e transexualidades.
Esse é um dado que informa como a sigla LGBTI+ ainda é insuficiente e/ou não se
faz entender nos espaços escolares. O relato de professores/as sobre a insegurança
em discutir as transgressões dos padrões hetero, principalmente tratando-se de
identidades não binárias, como as pessoas trans, revela a capacidade da norma em
moldar até a forma como as pessoas vão conhecer o gênero e as sexualidades e se
referir a ambos. Desse modo, podemos entender como o regime de verdade por
nós adjetivado como cisheteronormativo prejudica a semântica de reconhecimen-
to nos processos de governabilidade dos corpos. Pois, ainda que a maioria dos/as
colaboradores/as consiga nomear e denunciar a heteronormatividade, não se sente
preparada para problematizar nem dialogar sobre padrões não dicotômicos de gê-
nero, denunciando a não problematização e/ou o silenciamento acerca de travestis
e transexuais nas escolas. O relato a seguir fala de como os sujeitos da escola se
apropriam de determinadas questões acerca das transexualidades, algo que nos foi
apresentado pela narrativa da professora Luana:
Essas nomenclaturas são um pouco complicadas. Mas é o meu ponto de vista.
Porque definir exatamente até onde vai uma até onde vai a outra é muito com-
plicado! E a cada ano vai aumentando. E o LGBT já virou LGBTTTT, não
sei o quê... E, vai aumentando, porque é muito... vai abrangendo muita coisa...
Porque vai falando, ela é isso, ela é aquilo... É difícil [definir]. Igual a Ivana [per-
sonagem transexual masculino da novela Força do Querer, da Rede Globo, exibida
em 2017], com esse assunto tão em evidência, eu não assisto, quase não assisto
televisão, mas leio muito, vejo as pessoas comentando, porque aí vira assunto da
escola e está nessa evidência toda! A Ivana, pelo que eu entendi, porque as pes-
soas comentam, vira assunto da escola, vira assunto dos funcionários, dos alunos,
pelo que eu entendi, não sei se corresponde, se você assiste, mas, assim, pelo que
eu entendi a Ivana se identifica como homem, mas ela, sexualmente, ela gosta de
homem. Não é de mulher! Que é assim, pra mim, pelo menos, até então e eu já
li muita coisa, é diferente! Porque logo você espera que goste de mulher. Então é
mais uma coisa, mais diferente ainda. Quando as meninas [colegas de trabalho]
me contaram, na escola, porque até então eu não tinha lido sobre, só sobre a
transformação, eu fiquei assim, nossa, é diferente... Porque pra isso um homem
também vai ter que gostar; no caso dela, ela tem um namorado e tudo. E como
que ele vai fazer? Porque, pra ele amar ela, ele vai ter que... Ela vai estar numa
figura de homem, né? É difícil! É difícil! (Professora Luana, 2017)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nas falas ocorridas nos grupos focais e na entrevista narrativa de nossa
pesquisa, analisamos como estão em curso disputas pela produção de uma verdade
sobre a distribuição e destinação dos corpos, além da emergência de diferentes
posições discursivas diante de um regime de verdade cisheteronormativo na escola,
desde aquelas que se orientam por esse regime como outras que o contestam e/ou
buscam formas de transformá-lo.
Nesse contexto, uma semântica produzida nas lutas sociais nos parece
extremamente relevante para nomear e averiguar os modos como esse regime de
verdade opera nas dinâmicas sociais. Podemos considerar que essas lutas sociais de
mulheres LGBTI+, entre outros grupos submetidos a processos de des/classifica-
ção, ao afirmarem o reconhecimento de si na escola, tensionam o currículo oficial e
indicam parte das revoluções de nossa época na educação (Torres Santomé, 2013).
O termo LGBTfobia, compreendido como um dispositivo dinâmico nessas disputas,
é um bom exemplo dessa semântica. Ainda que não tenhamos encontrado a ori-
gem desse termo, percebemos pelas mídias sociais sua articulação por ativistas dos
movimentos LGBTI+, principalmente por ocasião dos debates da criminalização
da homofobia, o que é de domínio público. A noção de LGBTfobia ganha sentido
político quando a tomamos como analisadora dos contextos escolares, apesar das
questões teórico-metodológicas que podemos levantar acerca dela.
Foi desse modo que o termo homofobia se articulou a discursos de direitos
humanos e nos movimentos sociais até ganhar sistematização acadêmica (Borrillo,
2010). Qual é a estratégia política em utilizar o termo LGBTfobia? O termo LGBT-
fobia parece emergir numa busca de organizar uma defesa mais alargada de LGBTI+
do que o termo homofobia. Por outro lado, essas siglas sempre portam ambiguidades,
reduções que podem invisibilizar outros sujeitos. Todavia, afastar-se da produção de
categorias êmicas que emergem no contexto das sexualidades, pensar num campo das
sexualidades estritamente acadêmico, poderia nos tornar perpetradores/as da violência
ética que analisamos, não dar lugar ao eu que relata sobre si mesmo.
Tendemos a identificar na escola um discurso que nomeamos como reacioná-
rio raivoso pelos seus efeitos no contexto educacional, pois surge como uma forma
cruel de reagir contra algo ou alguém haja vista certos anacronismos que não se
tornam pretérito. A investida antigênero é uma articulação discursiva potente nas
disputas que se desdobram entre os/as participantes da escola.
Tal investida também diz de uma ambiência internacional em que políticas
neoliberais tomam a educação numa perspectiva economicista do capitalismo hege-
mônico. Aqui, temos o deslocamento das noções de tolerância, também problemá-
ticas, para a explicitação da crueldade. No funcionamento da LGBTfobia temos a
produção do medo, da violência, da constituição daqueles/as que podem ir para não
mais voltar. A eliminação dos sujeitos e/ou de suas vozes se constitui como violência
ética nas escolas, algo que pode ser rompido com o reconhecimento das sexualidades
nesse contexto. Para esse reconhecimento, é preciso trazer a voz do eu que relata a si.
Essa voz e as formas de reconhecimento que assistem a ela, produzindo cadeias
semânticas em que sujeitos podem se vincular moralmente a formas de existência
inteligíveis, são fundamentais para os direitos de LGBTI+. Nos contextos escolares,
isso pode produzir análises que orientem para uma justiça curricular (Torres Santomé,
2013) mais atenta às urgências de enfrentamento da LGBTfobia. Um jovem estudante
que é ameaçado pelo enunciado “Bolsonaro vai matar todos os viados” precisa ter pos-
sibilidades de se defender e de ser defendido por outros no contexto escolar. O “corpo
viado” é um modo de expressão e produção de saberes acerca do mundo, e o desejo
de destruí-lo faz parte da tentativa de se subtrair da escola formas de saberes, o que
entendemos como parte do epistemicídio (Carneiro, 2005) das sexualidades. O desejo
de eliminação do outro, aqui identificado como viado, figura como uma tentativa de
eliminar a inteligibilidade de um corpo que denuncia os anacronismos morais, estes
incapazes de dialogar com performatividades que já não cabem nos estreitos limites
das máximas morais de nossa sociedade, como analisa Butlter (2015).
Na perspectiva de Butler (2015), o relato de si inaugura uma reflexividade
em que o eu está em conformidade com a normalização ética e com os referenciais
morais de uma matriz prevalecente. A autora articula sua análise com base em
Foucault (2018a; 2018b) acerca da constituição dos modos de ser do sujeito nos
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