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Homossexualidade feminina: a comparação anatômica e sua

consequência
Diogo Nonato Reis Pereira

Vivendo tempos sombrios, em que a desinformação assola a realidade e


impõe às mentes críticas o estarrecimento diante da intolerância sobre
assuntos relacionados ao campo da sexualidade, nos vemos como ponto fora
da curva do comum – ou até por que não dizer, como resistência – diante de
uma decisão eletiva majoritária que, infelizmente escolheu a desconstrução de
políticas públicas e discursos que viabilizam o respeito à diversidade. Hoje, de
forma expressiva damos início a uma articulação da teoria psicanalítica da
sexuação com as questões de gênero presentes em outros discursos e
necessária aos tempos atuais.
A mim, o tocante do tema “Gênero e Sexuação” perpassa por uma
realidade de clínica e docência acadêmica por encontrar em ambas situações a
inquietação de sujeitos ao se depararem com a possibilidade homossexual.
Assim, decido abrir meu trabalho tratando da “Homossexualidade feminina: a
comparação anatômica e sua consequência”, ainda que de forma inicial em
termos de estudos e leituras.
Ao iniciar este trabalho, recordo a leitura do texto “A psicogênese de um
caso de homossexualismo numa mulher”, de 1920, em que Freud trata da
história de uma jovem de 18 anos que, segundo os pais, tinha adoração e
admiração preocupantes por certa dama da sociedade, 10 anos mais velha. Ao
ser perseguida pelo pai e flagrada na companhia da dama, tentou suicídio.
Embora o pai não aceitasse as tendências “inaturais” da filha, a mãe não
encarava com tanta seriedade, incomodando-se apenas com a falta de
discrição da mesma.
Iniciando sua análise com a jovem, Freud supõe que o Complexo de
Édipo havia sido vivido, conforme se esperava de uma menina; ou seja,
identificou-se com a mãe e escolheu o pai como objeto amoroso. Porém, aos
dezesseis anos, relata que começa a diminuir o afeto por um irmão menor e,
em troca, interessa-se por mulheres maduras que mantinham aparência ainda
jovem. Percebendo que a jovem fazia substituições da mãe pelas mulheres
mais velhas, Freud levanta a hipótese de que a jovem, na puberdade, ao
reviver seu Complexo de Édipo sofreu um grande desapontamento no
momento em que tomou consciência do desejo de possuir um filho do pai. Via
a mãe como a única eleita e, portanto como a mais odiada rival. Por
consequência, se afastou do pai e dos homens em geral, renunciando sua
feminilidade e buscando outro objeto para a sua libido. Ao abandonar o pai
como seu objeto amoroso, identifica-se com ele e toma a mãe no lugar do
objeto abandonado. Assim, preserva a mãe do seu ódio e pune o pai.
Dou-me por satisfeito até o momento, ao relatar o caso, pois ao tratar da
homossexualidade feminina, coloco-me a questão da comparação anatômica
como ponto de sutura da sexualidade infantil. Para tanto, recorro ao texto “A
organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade”, de
1923, em que Freud trata da observação feita pela criança da distinção sexual
através da anatomia. Nesta época, a presença do pênis assume o papel
primordial, pois não se reconhece a vagina com a possibilidade de outro sexo,
mas como a ausência do primeiro que foi observado. Deste modo, a inscrição é
do que pertence ao masculino. O feminino é colocado como aquilo que não é
masculino e que, portanto, possuidor de uma ausência.
Um ano depois, em 1924, com o texto “A dissolução do Complexo de
Édipo”, Freud afirma, pela primeira vez, que poderíamos atribuir uma
organização fálica e um complexo de castração também às meninas. E a
ausência sentida é temporariamente substituída pelo clitóris, que na menina
inicialmente comporta-se exatamente como um pênis, mas quando ela tem a
oportunidade de comparar seus órgãos genitais com outra criança do sexo
masculino logo percebe que algo lhe falta. Essa falta lhe cai como uma injustiça
e como motivo para se sentir inferior. Por algum tempo ainda, acredita que
ainda terá esse órgão tão valioso, ou seja, que o seu pênis irá crescer. Diante
da impossibilidade do seu desejo se concretizar a menina aceita a castração
como um fato consumado, mas não sem resistências, pois tenta de alguma
forma obter alguma compensação através da associação pênis-bebê. Seu
complexo de Édipo culmina no desejo de receber do pai um bebê/ dar ao pai
um filho. O que se observa é que pelo fato desse desejo não poder ser
realizado a menina não vê outra saída a não ser abandonar o pai como objeto
de amor e utilizar a libido investida na sua identificação com a mãe.
Essa diferenciação dos sexos em sua comparação é retomada por
Freud na introdução do texto “Feminilidade”, em 1933, ao se questionar sobre
como os adultos conseguem diferenciar um homem de uma mulher. Neste
texto, o psicanalista ressalta que as diferenças anatômicas nos trariam a
certeza da diferenciação, mas que permaneceríamos confusos se
percebêssemos que em ambos aparelhos sexuais há presença das duas
possibilidades – ainda que de forma atrofiada. Assim, o que os diferenciaria
seria a presença mais de um que do outro. Mantendo-se na indicação da
bissexualidade, Freud diz da proporcionalidade de masculino e feminino que há
em cada indivíduo está para além da anatomia e da sua produção de sêmen ou
óvulos. Apontado ainda há algum tempo, em 1905, nos “Três ensaios ...”, há a
disposição bissexual de todo o ser humano e que esta ganha força
considerável no início do desenvolvimento. Com isso, inicialmente não há a
clara definição entre ser homem ou ser mulher. Esta definição somente será
possível a partir do sexo do seu objeto amoroso e essa escolha requer um
caminho libidinal a ser percorrido.
Mas, voltando às características do campo anatômico, a presença
percebida do pênis marca essa posição sexual – do homem, do masculino –
mas, não pelo órgão apenas, mas por sua representação fálica, pela primazia
do falo já captada na lógica significante.
Como nos aponta Lacan em seu texto, “A significação do falo”, essa
lógica é assumida a partir da instalação, no sujeito, de uma posição
inconsciente sem a qual ele não poderia identificar-se com o tipo ideal de seu
sexo, nem tampouco responder, sem graves incidentes, às necessidades de
seu parceiro na relação sexual, ou até mesmo acolher com justeza as da
criança daí procriada. (p. 692).
Luciano Elia, em “Corpo e sexualidade” aborda que se a anatomia
apresenta uma disparidade de sexos – há dois sexos anatômicos – o
inconsciente não registra, no campo simbólico que lhe é consubstancial, o
campo do significante, uma tal dualidade: a consequência psíquica da referida
distinção anatômica entre os sexos é o registro desta distinção em termos de
UM e não de dois sexos.
UM, não como numeral de uma série natural da matemática, como
unidade no campo da realidade, da nossa percepção enquanto objeto natural.
UM, no seu estatuto significante, que se define por sua relação ao ZERO. Esse
ZERO é assumido aqui enquanto ausência radical e estrutural.
Assim, o UM, não idêntico a si mesmo, assume correlação de FALO, por
registrar no inconsciente a diferença sexual num conjunto de elementos com
base numa certa identidade, fundando conjunto por operação do Pai mítico da
“horda primeva” de Freud, aquele que por instituir, escapa à castração.
E, como lugar do Outro ao qual falta radicalmente um significante, a
CASTRAÇÃO, ou seja, o ZERO; na exclusão, na exceção, afetando a série das
mulheres que só são contáveis no um a um, não passíveis de inclusão num
conjunto-totalidade – se diferenciando dos homens, não pela anatomia, mas
por não se submeteram à função fálica.
Assim, a questão do masculino e feminino se desenha no enunciado da
sexuação, em que a exceção paterna pode ser escrita assim: “existe um
elemento que recusa a castração” (O Pai – Ǝx.Φx), proposição existencial da
qual decorre que “para todo elemento do conjunto definido a partir desta
exceção, a castração, a função fálica vigore” (os homens), que chamo de
masculino, portanto.
A partir disso, as mulheres se inscrevem assim: “não existe nenhum
elemento para o qual a função fálica não vigore”. Disso discorre que a
proposição universal para as mulheres seja: “para não-todo elemento da série
a função fálica vigora”.
Deste modo, o sexo da mulher não existe, não faz complemento à
sexualidade definida pelo significante falo. Falo que vigora para ambos e que,
por isso mesmo, não os faz simétricos e coloca a mulher num gozo
suplementar.
Seria, portanto, a identificação com o UM, do masculino, que traria à
mulher sua posição masculina na sexuação?
Na tentativa de me aproximar de uma resposta a essa pergunta, busco
em Freud um início de aproximação através do seu texto de 1925, “Algumas
consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos”, e aponto que
a esperança de algum dia obter um pênis e tornar-se semelhante a um homem
implica numa recusa da realidade e pode persistir até uma idade avançada,
sendo o motivo para que a menina se comporte como um homem. Ainda há a
possibilidade da tentativa de se diferenciar como uma exceção, num Complexo
de Masculinidade vivido por ela.
Continuando a tentativa, ao retomar o caso da jovem homossexual,
percebe-se para além do ressentimento com o nascimento e privilégio
oferecidos aos irmãos, sua porção masculina presente em sua constituição
bissexual torna-se mais expressiva. Com isso, as portas para a identificação
com a figura paterna veem-se abertas. Assim, diante da castração, se oferece
como mais um do conjunto e não da série e orienta-se por uma decepção que
reforça a vertente da demanda de amor. Como ressaltado por uma nota de
rodapé do caso, mais precisamente na página 201, há um jogo de palavras
com verbo niederkommen, que significa tanto “cair” quanto “dar à luz”. Nessa
dupla siginificação metaforizo também o momento em que “cai” a possibilidade
do feminino para “dar à luz” a identificação com o pai numa reeditada tentativa
de ser amada no conjunto.
Como afirmei de início, trata-se de estudos iniciais acerca do assunto,
que mesmo sem estar fechado me posiciona outros questionamentos a seguir,
como: seria a identificação com a posição do UM e, portanto fálica, algo que
causa um mal-estar no discurso tradicional dentro da contemporaneidade uma
vez que se posiciona falicamente sem possuir o que no imaginário popular
deveria possuir? A homossexualidade feminina quebraria a lógica desse
discurso por ser a possibilidade de uma potência viril na cultura?

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