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Sesc | Serviço Social do Comércio

Departamento Nacional

27

ISSN 1809-9815
Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p.1-156 | jan.-abr. 2015
Sesc | Serviço Social do Comércio CONSELHO EDITORIAL
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Sinais Sociais / Sesc, Departamento Nacional - Vol. 1, n. 1 (maio/


ago. 2006)-  . – Rio de Janeiro : Sesc, Departamento
Nacional, 2006 -  .
v.; 30 cm.
As opiniões expressas nesta revista são de inteira Quadrimestral.
responsabilidade dos autores. ISSN 1809-9815
1. Pensamento social. 2. Contemporaneidade. 3. Brasil.
As edições podem ser acessadas eletronicamente em I. Sesc. Departamento Nacional.
www.sesc.com.br.
SUMÁRIO

Apresentação 7

Editorial 8

Evolução do trabalho infantil no Brasil


Ana Lúcia Kassouf 11

K., relato de uma busca: autoficção e efeitos políticos


Anna Faedrich, Renato Lima e Jacques Fux 49

Contribuições da experiência internacional ao gerenciamento


das rendas do petróleo do pré-sal brasileiro
Beni Trojbicz 69

Governo representativo e democratização: revendo o debate


Fernando Limongi 95

Fome, pobreza e desenvolvimento: um convite à leitura


de Josué de Castro
Rosana Magalhães 127
APRESENTAÇÃO

A origem do Sesc vincula-se à intenção de contribuir para o desenvolvimento do


Brasil a partir de uma profunda compreensão de seu potencial e dos obstáculos
ao seu progresso.

Uma tarefa desafia aqueles que receberam como legado a missão de realizar
no presente os ideais vislumbrados pelos líderes do passado: a revisão e a
ampliação permanente dessa compreensão.

Assim como ao Sesc cabe atuar sobre a realidade social, cabe valorizar e difundir
o entendimento acerca dessa realidade, dos conceitos e questões fundamentais
para o país e das políticas públicas e formas diversas de promover o bem-estar
coletivo.

antonio oliveira santos


Presidente do Conselho Nacional

Ler, estudar, pesquisar. Divergir, argumentar, contrapor. Comparar, debater,


discutir. Criticar, questionar, propor. Fundamentar, elaborar, testar. Organizar,
encadear, remeter. Rever, revisar, publicar. Apresentar, expressar, transmitir.

Com a revista Sinais Sociais, colaboramos para que esses verbos sejam conjuga-
dos em favor de uma sociedade que traduza de forma mais fidedigna a expressi-
va riqueza cultural e o potencial realizador de seus cidadãos.

Conhecer para compreender, difundir para mobilizar, agir para transformar:


eis as vertentes que definem a linha editorial da Sinais Sociais no ambiente do
pensamento e da ação social.

maron emile abi-abib


Diretor-Geral do Departamento Nacional
Pensar o Brasil e seus grandes desafios é objeto de constante reflexão do Sesc.
As múltiplas atividades desenvolvidas pela Instituição, como pesquisas, estudos
especializados, programas de educação permanente e orientações técnicas,
praticadas em consonância com as ações programáticas nas áreas de Educação,
Saúde, Cultura, Lazer e Assistência, reafirmam o compromisso do Sesc em
contribuir para uma sociedade melhor para todos.

Para tanto, entende ser fundamental promover o debate qualificado sobre a


agenda pública, seus programas e políticas, referendado pelos seus maiores
expoentes no campo das Ciências Sociais e Humanas, alicerçado no aprofun-
damento teórico, com a intenção de trabalhar em sintonia com os pesquisado-
res que exploram e iluminam as várias facetas da questão social no país.

Nesse sentido, apresentamos nesta edição temas que revelam a preocupação


dos autores em interpelar alguns pontos que envolvem problemas em
relação à segurança alimentar, à evolução do trabalho infantil no Brasil,
aos investimentos sociais procedentes de recursos minerais do país, às
questões políticas relacionadas à participação direta e à natureza do sistema
representativo, além do resgate, por meio de uma análise literária, de períodos
traumáticos oriundos dos regimes autoritários.

Anna Faedrich, Renato Lima e Jacques Fux, em interessante análise do livro


de Bernardo Kucinski, refletem sobre o que a narrativa ficcional pode fazer,
tratando a autoficção como gênero, a partir do relato abordado no livro sobre
a época da ditadura militar. Pretendem trazer para o debate a questão da
autoficção e seus efeitos políticos, relacionados com a memória traumática do
período analisado.

Com a preocupação em mostrar para o leitor a trajetória de redução do


trabalho infantil no Brasil, Ana Kassouf apresenta sua evolução a partir dos
dados disponíveis na PNAD-IBGE, em estudos anteriores no país e em outras
sociedades, contribuindo para um entendimento mais meticuloso sobre as
causas e consequências do trabalho na infância.

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O artigo de Beni Trojbicz traz a discussão sobre o gerenciamento gover­
namental dos recursos do pré-sal no financiamento de programas que
visam à melhoria dos serviços públicos, à redução da pobreza e à conservação
do meio ambiente. Apresenta o caso brasileiro em uma perspectiva
internacional, por meio de temas atuais e relevantes: a política econômica, o
investimento social e o impacto do marco regulatório de recursos minerais que
os envolve.

Fernando Limongi, por sua vez, trata da distinção entre o sistema


representativo, com características próprias e a participação direta ou a
“democracia”. Propõe uma releitura do debate sobre a evolução política no
país, a partir de estudos recentes sobre a evolução política europeia e a norte-
americana que recomendam uma revisão da forma usual de se entender a
evolução política brasileira.

Por fim, a autora Rosana Magalhães discute o tema da segurança alimentar,


a partir de um convite à leitura de Josué de Castro, cuja obra é de suma
importância para a renovação do pensamento social brasileiro, e à visão crítica
de uma realidade dramática ainda presente no país e em várias regiões do
mundo no campo do combate à fome. Reafirmando as intenções da instituição,
de pesquisadores e gestores no combate à “insegurança alimentar”, ressalta
em seu estudo junto ao grande médico, sociólogo e geógrafo, o compromisso
público sobre padrões alimentares sustentáveis e orientados pela equidade.

Apresentamos nesta edição da Sinais Sociais, novos e velhos problemas,


aprofundando as questões que os enlaçam, refletindo sobre as alternativas
possíveis e desejáveis, em um horizonte que requer trabalho árduo e obrigação
ética em busca de um padrão civilizatório. Na utopia que se acredita no fazer de
muitas mãos, na transformação de conceitos e atitudes. No nosso compromisso
institucional com a mudança na perspectiva de uma melhor qualidade de vida
para todos os cidadãos.

Boa leitura e mãos à obra, sempre!

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Evolução do trabalho infantil
no Brasil

Ana Lúcia Kassouf

11
Ana Lúcia Kassouf
Possui mestrado em Economia Aplicada pela Esalq,
Universidade de São Paulo, doutorado em Applied
Economics pela University of Minnesota e pós-doutorado
pela London School of Economics e University of
Minnesota. Trabalhou como consultora de projetos
da OIT, Banco Mundial, Unicef e Unesco. Atualmente é
professora titular do Departamento de Economia da Esalq,
Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de
Economia, com ênfase em Economia do Bem-Estar Social,
atuando principalmente nos temas: trabalho infantil,
educação, saúde, rendimento e programas sociais.

12
Resumo
O objetivo desse estudo é apresentar a trajetória de redução do
trabalho infantil no Brasil e analisar os fatores que levaram a
essa redução desde o início da década de 1990. Criação de leis
e comissões de combate ao trabalho infantil, maior fiscalização
no trabalho, implementação de programas sociais, políticas de
fortalecimento da educação de crianças e jovens e atuação de
organismos internacionais direta ou indiretamente impactaram
na redução do trabalho infantil. Apesar dessa redução, quase
dois milhões de crianças e adolescentes de 5 a 15 anos ainda
trabalham. Muitos desses trabalhadores não são remunerados
ou recebem baixos rendimentos e trabalham um número
elevado de horas por semana, o que os impedem de estudar.
É importante ampliar e melhorar o acesso à educação de
qualidade, adotando estratégias que garantam no mínimo a
conclusão do ensino básico (Fundamental e Médio). Finalmente,
para eliminar as piores formas de trabalho infantil é preciso
fortalecer os sistemas públicos de inspeção do trabalho.

Palavras-chave: Trabalho infantil. Educação. Trajetória temporal.

Abstract
The aim of this study is to present the trajectory of reducing child
labor in Brazil and analyze the factors that led to this reduction from
early 1990. The creation of laws and commissions to combat child
labor, greater surveillance at work, implementation of social programs,
strengthening policies to support children and youth education, and
international organization activities directly or indirectly impacted on
the reduction of child labor. However, there are still 2 million children
and youths, aged 5 to 15, who are still working. Many are not paid or
are on low income and work a high number of hours per week, which
prevent them from studying. It is important to expand and improve
the access to quality education, adopting strategies that ensure at
least the completion of basic education (primary and secondary).
Finally, to eliminate the worst forms of child labor, the public labor
inspection systems need to be strengthened.

Keywords: Child labor. Education. Chronological trajectory.

13
Evolução do trabalho infantil no Brasil

1. Introdução

De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), no mundo,


aproximadamente 150 milhões de crianças entre 5 e 14 anos traba-
lhavam em 2008 enquanto 215 milhões de trabalhadores tinham idade
inferior a 18 anos (INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION, 2010).

Nas últimas décadas, as análises empíricas visando obter as causas, con-


sequências e soluções para o trabalho infantil estão sendo facilitadas
pelo aumento da disponibilidade de “microdados”, isto é, dados indivi­
duais ou desagregados com informações mais detalhadas dos indivíduos
da amostra. No Brasil, a principal pesquisa utilizada para analisar o tra-
balho infantil é a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad),
coletada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) anual-
mente em todo o território nacional. Desde 1992 incorporam-se à Pnad
questões sobre o trabalho de crianças a partir dos cinco anos de idade e
em 2001 e 2006 incluiu-se um suplemento com perguntas específicas
e detalhadas sobre trabalho infantil. O Brasil é hoje reconhecido interna-
cionalmente por sua capacidade de combater o trabalho infantil utilizan-
do politicas sociais inovadoras e bases de dados de qualidade.

A utilização dessas bases de dados resulta em análises e pesquisas que


geram um maior entendimento dos mecanismos de alocação de tempo
dentro e fora do domicílio, suas interações com as forças de mercado e o
efeito dessas interações no trabalho infantil. A pobreza, escolaridade dos
pais, tamanho e estrutura da família, sexo do chefe, idade em que os pais
começaram a trabalhar, local de residência, entre outros são os determi-
nantes mais analisados e dos mais importantes para explicar a alocação
do tempo da criança para o trabalho. Nesse sentido é importante destacar
que para atividades ilícitas que envolvem crianças e adolescentes – como
a exploração sexual, tráfico de pessoas e de drogas –, ainda há muito
que avançar para a construção de registros administrativos e informa-
ções que apoiem o aperfeiçoamento das políticas de proteção social, edu­
cação e assistência social às crianças e adolescentes e às suas famílias.

Em geral, a população dos estratos mais elevados de renda não trabalha na


infância. Estudos mostram que o aumento da renda familiar reduz a pro-
babilidade de a criança trabalhar e aumenta a de ela estudar (RAMALHO;
MESQUITA, 2013; NAGARAJ, 2002; KASSOUF, 2002). Observa-se que as nações

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Ana Lúcia Kassouf

que se tornaram mais ricas apresentaram uma redução no trabalho


infantil. Tanto na China, como na Tailândia e na Índia, o crescimento
do produto interno bruto foi acompanhado pelo declínio do trabalho in-
fantil. Por outro lado, maior oferta de trabalho e desejo de consumo dos
jovens também os atraem para o mercado de trabalho.

Observa-se que crianças de pais com maior escolaridade são menos


propensas a trabalhar, o que pode ser interpretado como valorização da
educação dos filhos pelos pais, aspirando para eles um futuro melhor.
Muitos estudos mostram que a escolaridade da mãe tem um maior
efeito sobre o trabalho das crianças com relação ao observado para a
escolarida­de do pai. Bhalotra e Heady (2003) encontram efeito negativo
somente para a escolaridade da mãe sobre o trabalho de crianças da área
rural de Gana, assim como Rosati e Tzannatos (2000) no Vietnam e Cigno,
Rosati e Guarcello (2000) na Índia. Entretanto, Kassouf (2002) obtém efei-
to negativo e altamente significativo para mãe e pai no Brasil.

A composição familiar também afeta o trabalho infantil. Muitas crian-


ças trabalham mais quanto maior é o número de irmãos, principalmente
mais novos. Em pesquisa incluindo a ordem de nascimento, constatou-se
que o último a nascer teve menor probabilidade de trabalhar do que seu
irmão mais velho, isto é, algumas crianças trabalham para permitir que
outras estudem (EMERSON; SOUZA, 2008).

Praticamente todos os estudos que incluíram como determinante do tra-


balho infantil o sexo do responsável pela família concluíram que crianças
de famílias chefiadas por mulheres têm maior probabilidade de trabalhar.
Suportam essa hipótese os estudos de Patrinos e Psacharapoulos (1994)
para o Paraguai, Grootaert (1998) para a Costa do Marfim e Bhalotra e Heady
(2003) para o Paquistão. O resultado das pesquisas pode estar mostrando
um grau de vulnerabilidade da família que não está sendo captado pela
renda, podendo estar relacionado ao acesso a crédito, a lidar com crises
e à percepção quanto à disponibilidade de diferentes alternativas de tra-
balho, entre outros fatores. No Brasil, em 2011, observa-se que 38% das
famílias são chefiadas por mulheres.

A área rural, em suas múltiplas atividades produtivas, abriga uma grande


porcentagem de crianças e adolescentes trabalhando, não só por ter um
nível maior de pobreza, mas também pela infraestrutura escolar mais

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Evolução do trabalho infantil no Brasil

fraca e menor taxa de inovação tecnológica que podem desencorajar a


frequência escolar. Ademais, há maior facilidade de a criança ser absor-
vida em atividades informais e a prevalência de trabalhos agrícolas fa-
miliares e que exigem menor qualificação facilita o emprego de crianças.

Há estudos mostrando também que crianças de pais que foram traba-


lhadores na infância têm maior probabilidade de trabalhar, isto é, pais
que trabalharam quando crianças enxergam com mais naturalidade o
trabalho infantil e são mais propensos a colocar os filhos para trabalhar,
principalmente como alternativa à exclusão escolar (EMERSON; SOUZA,
2003). Aquino et al. (2010) concluem em pesquisa realizada com dados de
1992 a 2004 no Brasil que há maior chance de os filhos trabalharem quan-
do os pais foram trabalhadores infantis, principalmente na zona rural.

Podemos citar outros determinantes do trabalho infantil, também im-


portantes, mas não tão utilizados na literatura existente, como salário,
idade e ocupação dos pais, tamanho da propriedade agrícola onde as
crianças trabalham, custos relacionados à escola, medidas de qualidade
do estabelecimento de ensino onde a criança está inserida, além de me-
didas que reflitam a infraestrutura da comunidade, como disponibilida-
de de transporte público, rodovias, eletrificação etc.

A grande maioria dos estudos quantitativos parece concordar com a vi-


são de que o trabalho exercido durante a infância dificulta a aquisição de
educação e capital humano. Os estudos mostram que quanto mais jovem
o indivíduo começa a trabalhar, menor é o seu salário na fase adulta da
vida e esta redução é atribuída, em grande parte, à perda dos anos de es-
colaridade devido ao trabalho na infância. Como em muitos países há um
número expressivo de crianças e adolescentes que trabalham e estudam,
torna-se primordial que se analise não só se o trabalho é responsável
pela baixa frequência das crianças na escola, mas também se o trabalho
infantil reduz o desempenho escolar. Pesquisa com crianças no Ensino
Fundamental em escolas públicas e privadas do Brasil mostrou que o tra-
balho infantil, principalmente fora do domicílio e durante longas horas,
reduz o desempenho escolar (BEZERRA; KASSOUF; ARENDS-KUENNING,
2009). Gunnarsson, Orazem e Sánchez (2004) realizaram uma pesquisa
em 11 países da América Latina e concluíram que os estudantes que tra-
balhavam obtinham 7,5% menos pontos nos testes de matemática e 7%
menos nos testes de idioma do que os alunos que somente estudavam.

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Ana Lúcia Kassouf

Semelhantemente, Ponczek, Portela e Emerson (2013) utilizam dados da


cidade de São Paulo para concluir que o trabalho realizado por crianças
afeta negativamente o aprendizado de Matemática e Português.

A baixa escolaridade e o pior desempenho escolar, causados pelo trabalho


infantil, têm o efeito de limitar as oportunidades de emprego a postos que
não exigem qualificação e que dão baixa remuneração, mantendo o jovem
dentro de um ciclo repetitivo de pobreza já experimentado pelos pais.

Outra consequência do trabalho realizado na infância é a de piorar o es-


tado de saúde física e mental da pessoa, tanto na fase inicial da vida,
quanto na fase adulta. Kassouf, McKee e Mossialos (2001), utilizando da-
dos do Brasil, mostram que quanto mais cedo o indivíduo começa a tra-
balhar pior é o seu estado de saúde em uma fase adulta da vida, mesmo
controlando a renda, escolaridade e outros fatores. Os efeitos negativos
do trabalho infantil sobre a saúde foram constatados em alguns estudos,
apesar de a literatura abrangendo esse tópico ser bastante escassa pela
falta de dados. Forastieri (1997) coloca que os locais de trabalho, equipa-
mentos, móveis, utensílios e métodos não são projetados para utilização
por crianças, mas, sim, por adultos, o que pode acarretar problemas
ergonômicos, fadiga e maior risco de acidentes.

2. Evolução do trabalho infantil no Brasil

O Gráfico 1 apresenta a evolução do percentual de crianças e adolescen-


tes que trabalharam no Brasil no período de 1992 a 2011, separando os
dados por faixas de idade.1 Considerou-se trabalhador aquele que havia
trabalhado na semana anterior à entrevista, produzido alimento para
consumo próprio, trabalhado na construção para uso próprio ou que
não havia trabalhado na semana anterior por estar de férias ou ter tido
algum problema de saúde. Assim, inclui-se o trabalho remunerado ou
não por uma hora ou mais na semana anterior à pesquisa, não incluindo
as crianças e adolescentes procurando emprego ou realizando afazeres
domésticos no próprio domicílio. No Gráfico 1, foram excluídos os ado-
lescentes de 16 e 17 anos com posição na ocupação “empregado com car-
teira de trabalho assinada”, mas incluídos os trabalhadores domésticos
com carteira assinada. Também foram excluídos os de 14 e 15 anos que
são aprendizes, identificados por possuírem carteira assinada.

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Evolução do trabalho infantil no Brasil

Para as crianças de 5 a 15 anos de idade (série não apresentada no Gráfico


1), a redução na incidência de trabalho foi de mais de 10 pontos percen-
tuais. O número de crianças trabalhando nessa faixa etária se reduz pro-
gressivamente durante todo o período considerado, passando de pouco
mais de 5,5 milhões ou 14,6% nessa faixa etária em 1992 para cerca de
1,5 milhão ou 4,3% em 2011.

Para as crianças na faixa de 5 a 9 anos verifica-se que, no período em aná-


lise, houve redução de três pontos percentuais na incidência de trabalho.
Observe que para essa faixa etária a ocorrência de trabalho infantil já é
baixa – não ultrapassando 4% em todos os anos. Em 2011 0,4% das crian-
ças nessa faixa etária estavam trabalhando.

Considerando-se anos consecutivos, o maior decréscimo na porcentagem


de crianças de 10 a 15 anos trabalhando ocorre de 1995 para 1996, com
quatro pontos percentuais de queda. Em 1992, cerca de 23% das crianças
trabalhavam, percentual que se reduz em quase 16 pontos percentuais
em 2011, atingindo 7%. Já na faixa etária de 16 e 17 anos, as porcentagens
passam de um pouco mais de 45%, ou 2,5 milhões de adolescentes sem
carteira assinada trabalhando em 1992, para 23%, ou 1,5 milhão em 2011,
ou seja, um decréscimo de 22 pontos percentuais no período. Observa-se
pela Figura 1 que a presença do trabalho infantil se acentua com a idade.

GRÁFICO 1 – Evolução do trabalho de crianças e adolescentes (1992 a 2011).

Fonte: Pnads (IBGE, 1992-2011), exceto a área rural da região Norte.


Nota: dados não incluem adolescentes de 13 a 17 anos com carteira assinada nem a área rural da
região Norte.

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Ana Lúcia Kassouf

Com relação aos indicadores educacionais (analfabetismo, anos de es-


colaridade, desempenho escolar etc.), o Brasil ainda apresenta índices
inferiores a muitos países da América Latina, como Chile, Uruguai, Peru,
Cuba, México e outros (UNESCO, 2011). Entretanto, a partir da década
de 1990 ocorre um aumento da frequência escolar, principalmente no
Ensino Fundamental ou entre estudantes de 7 a 15 anos, como pode ser
observado no Gráfico 2. Em 1992, 85% da população com idade entre 7 e
15 anos frequentavam a escola, atingindo em 2011 quase 98%. Vale lem-
brar que, com a aprovação da Lei nº 11.274/06, o Ensino Fundamental no
Brasil teve a sua duração alterada de 8 para 9 anos em 2009, assegurando
o ingresso de crianças de 6 anos no ensino obrigatório. As porcentagens
são bem inferiores para os jovens de 16 e 17 anos. Somente 57% deles
estavam na escola em 1992, aumentando para 80% em 2011. Ainda assim,
cerca de 1,4 milhão de adolescentes de 16 e 17 anos estão fora da escola
atualmente.

GRÁFICO 2 – Porcentagem de crianças e adolescentes na escola (1992 a 2011).

Fonte: Pnads (IBGE, 1992-2011), exceto a área rural da região Norte.

A redução do trabalho infantil assim como o aumento da frequência es-


colar observados nas últimas décadas no Brasil estão associados tanto
às mudanças nas condições socioeconômicas das crianças e adolescen-
tes como às diversas ações direcionadas ao combate do trabalho infan-
til, por parte de órgãos públicos, de organizações da sociedade civil, de
sindicatos, do setor produtivo e de organismos internacionais, como o

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Evolução do trabalho infantil no Brasil

Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e a Organização In-


ternacional do Trabalho (OIT). Algumas ações serão descritas a seguir,
lembrando que algumas delas não foram acompanhadas de uma avalia-
ção mais detalhada acerca do seu impacto sobre o fenômeno estudado e,
portanto, pode haver um gap importante entre o desenho de tais ações e
sua concretização.

Em 1990 é instituído o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e com


ele implementa-se um Sistema de Garantia de Direitos e um Sistema de
Proteção. É então detalhado como se pode implementar os direitos das
crianças e adolescentes, a quem cabe garantir esses direitos e é estabe-
lecido um sistema de denúncias. Os Conselhos de Direitos, de âmbito
nacional, estadual e municipal, e os Conselhos Tutelares, criados no ECA,
são corresponsáveis na ação de combate ao trabalho infantil, cabendo a
eles cuidar dos direitos das crianças e adolescentes em geral, em parce-
ria com o Ministério Público e o Juizado da Infância e da Adolescência.
A legislação brasileira sobre o trabalho infantil está harmonizada com as
atuais disposições da Convenção dos Direitos da Criança da Organização
das Nações Unidas (ONU) e das Convenções números 138 e 182 da Orga-
nização Internacional do Trabalho (OIT).

A OIT tem papel importante na luta contra o trabalho infantil. Sua visão
é a de que o trabalho infantil prejudica a saúde, a educação e a qualida-
de de vida em geral das crianças. Preocupada com a situação de explora-
ção do trabalho infantil, a OIT lançou em 1992 o Programa Internacional
para Eliminação do Trabalho Infantil (IPEC). Trata-se de um programa
mundial de cooperação técnica, que visa à erradicação progressiva do
trabalho infantil mediante o fortalecimento das capacidades nacionais
e do incentivo à mobilização mundial para o enfrentamento da questão.
Promove o desenvolvimento e a aplicação de legislação protetora e apoia
organizações parceiras na implementação de medidas destinadas a
prevenir o trabalho infantil, a retirar crianças de trabalhos perigosos e
a oferecer alternativas imediatas, como medida transitória para a erra-
dicação do trabalho infantil. O trabalho da OIT e do IPEC foi fundamental
para promover uma conscientização e mudar os pré-conceitos cultu-
rais com relação ao trabalho infantil no Brasil. Assim, o trabalho infantil
começou a ser visto como algo negativo e que pode causar danos às
crianças.

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Ana Lúcia Kassouf

Muitos ministérios têm ações que contribuem para a redução do traba-


lho infantil, como o Ministério da Educação, da Saúde, da Cultura, dos
Esportes e da Previdência e Assistência Social. O Ministério do Trabalho
e Emprego, Ministério Público do Trabalho e o Ministério do Desenvolvi-
mento Social, por outro lado, agem de forma mais direta no combate ao
trabalho infantil.

O Ministério do Trabalho e Emprego, na década de 1990, cria comissões


de combate ao trabalho infantil nas Delegacias Regionais do Trabalho,
evoluindo posteriormente para núcleos e depois para grupos. A criação
desses grupos propiciou a consolidação de uma ação minuciosa de fisca-
lização, que resultou na elaboração do primeiro diagnóstico do trabalho
infantil, editado em 1995, contendo informações detalhadas que forne-
ceram a base operacional para as ações neste campo, estimulando a cria-
ção dos Fóruns Estaduais. Os grupos especiais de combate ao trabalho
infantil e proteção ao trabalhador adolescente (Gectipas) investigam as
condições de saúde das crianças e adolescentes e os prováveis proble­
mas decorrentes do trabalho, encaminham essas crianças ao Progra-
ma de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) e/ou às instâncias do sistema
de garantia de direitos. Procuram, ainda, coordenar sua atuação de fisca-
lização com outras ações educativas e de proteção ao adolescente e de
apoio à família, desenvolvidas por outras instâncias governamentais e
não governamentais.

O Ministério Público do Trabalho (MPT) defende o ordenamento jurídico


e os direitos sociais dos trabalhadores e tem atuado na defesa dos direi-
tos das crianças e dos adolescentes que se encontram em situação de
trabalho. O MPT tem promovido a articulação entre os diversos setores
envolvidos com a problemática, com participação ativa na constituição
e manutenção de Fóruns Estaduais. A meta é a erradicação do trabalho
infantil e proteção do trabalhador adolescente.

O Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI)


foi criado no final de 1994 com o objetivo de propiciar instância aglutina-
dora e articuladora de agentes sociais institucionais envolvidos com po-
líticas e programas destinados a prevenir e erradicar o trabalho infantil
no país. Em seu momento inicial, as principais propostas de atuação do
Fórum Nacional incluíam elaborar e socializar estratégias de atuação na
prevenção e erradicação do trabalho infantil, mobilizar empregadores,

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Evolução do trabalho infantil no Brasil

empregados e suas respectivas organizações, para estabelecer, via nego-


ciação coletiva, normas específicas que visassem à erradicação do traba-
lho infantil, integrar esforços das diversas áreas na defesa dos direitos da
criança e do adolescente, sensibilizar a sociedade por meio de influência
junto aos meios de comunicação de massa, dentre outros.

As ações do Fórum são complementárias às do Conselho Nacional dos


Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), criado em 1992 para for-
mular políticas públicas e destinar recursos para obter o cumprimento
do Estatuto da Criança e do Adolescente. Assim, o Fórum fomenta dis-
cussão mais específica, subsidiando o Conanda com informações mais
precisas sobre o trabalho infantil.

Em 1996 é sancionada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional


– LDB e é instituído o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensi-
no Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef). Em 1998 passa
então a vigorar a nova sistemática de redistribuição dos recursos desti-
nados ao Ensino Fundamental com base no número de alunos atendidos
em cada rede de ensino, levando a um aumento das matrículas.

Uma ampla mobilização social de organizações governamentais e não go-


vernamentais ocorreu no processo de elaboração da Constituição de 1988
para se estabelecer princípios constitucionais que priorizassem a criança
e o adolescente e as ações de políticas sociais voltadas a eles. Assim, a
idade de 14 anos foi estabelecida na Constituição de 1998 como idade
mínima para o trabalho e proibiu-se qualquer forma de trabalho noturno
e perigoso à saúde para crianças menores de 18 anos. Em dezembro de
1998 foi aprovada uma Emenda Constitucional que elevou a idade míni-
ma para 16 anos, salvo na condição de aprendiz a partir dos 14 anos.

O Brasil é signatário das convenções números 138 e 182 da OIT, e as-


sim assumiu o compromisso de cumprir suas determinações. Desde a
adoção da convenção da OIT número 182 para a eliminação das piores
formas de trabalho infantil em 2000, governo, sociedade civil e organiza-
ções internacionais têm implementado muitas ações visando à redução
das piores formas de trabalho infantil e vêm, assim, obtendo resultados
significativos. Sabe-se que a erradicação do trabalho infantil, juntamen-
te com a disponibilidade de educação de qualidade e capacitação dos
jovens, é fundamental para a obtenção de melhores postos de trabalho

22 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015


Ana Lúcia Kassouf

e melhores salários na fase adulta da vida, como forma de se quebrar o


ciclo de pobreza vivido pela família e aumentar a qualidade de vida da
população. Em 2002 o Brasil ratificou a Convenção 138, que estabelece
idade mínima de 15 anos para ingresso no mercado de trabalho e normas
para a redução do trabalho infantil.

Em 2002 é criada a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infan-


til (Conaeti), controlada pelo Ministério do Trabalho e Emprego. A Conaeti
foi responsável pela elaboração do Plano Nacional de Prevenção e Erra-
dicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente em
2003 e sua revisão em 2010. Sua principal competência é a coordenação,
monitoramento e avaliação do Plano. Além disso, cabe à Conaeti verifi-
car a conformidade entre as Convenções 138 e 182 da OIT e as normas
legais vigentes, propor mecanismos para o monitoramento da aplicação
da Convenção no 182 e avaliar a definição dos trabalhos penosos para
menores de 18 anos.

O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) im-


plantou em 2005 o Sistema Único de Assistência Social (Suas), com o
objetivo de articular meios, esforços e recursos para a execução dos pro-
gramas, serviços e benefícios socioassistenciais.O Suas organiza a oferta
da assistência social em todo o Brasil, promovendo bem-estar e proteção
social às famílias, crianças, adolescentes, pessoas com deficiência e ido-
sos. A gestão da assistência social brasileira é acompanhada e avaliada
tanto pelo poder público quanto pela sociedade civil, igualmente repre-
sentada nos conselhos nacionais do Distrito Federal, estaduais e munici-
pais de assistência social.

Um exemplo de assistência social realizada pelo MDS é a oferta de Equi-


pes Volantes e Serviços Especializados em Abordagem Social. As equipes
permitem que os municípios tenham condições de ampliar a busca ativa
nos territórios, identificar situações de trabalho infantil e realizar regis-
tros/atualizações no Cadastro Único. Essas ações garantem a transferên-
cia de renda às famílias com crianças e adolescentes retirados da situa-
ção de trabalho, a inclusão das crianças e adolescentes nos Serviços de
Convivência e Fortalecimento de Vínculos e o acompanhamento familiar
por meio dos Centros de Referência de Assistência Social (Cras) e Centros
de Referência Especializado de Assistência Social (Creas).

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015 23


Evolução do trabalho infantil no Brasil

Muitos benefícios da Política de Assistência Social, que integra a Proteção


Social Básica no âmbito do Suas, são geridos pelo MDS. Entre eles desta-
ca-se o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), o Programa
Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC).

O Peti foi criado em 1996 com o objetivo de retirar as crianças e ado-


lescentes do trabalho considerado perigoso, penoso, insalubre ou degra-
dante, ou seja, aquele trabalho que coloca em risco a saúde e segurança
das crianças e adolescentes. A família inserida no Peti recebe uma bol-
sa mensal para cada filho, menor de 16 anos, retirado do trabalho. Para
isto, as crianças e adolescentes devem estar frequentando a escola e a
jornada ampliada. A jornada ampliada visa fomentar e incentivar a am-
pliação do universo de conhecimentos da criança e do adolescente, por
meio de atividades culturais, esportivas, artísticas e de lazer, no período
complementar à escola. O programa também proporciona apoio e orien-
tação às famílias por meio da oferta de ações socioeducativas. Dados de
2012 mostram que cerca de 854 mil crianças e adolescentes são atendi-
dos pelo Peti em 3.597 municípios (65% do total), distribuídos ao longo de
todo o território nacional. Estes municípios contam com 16.156 núcleos
e 41.968 orientadores sociais. Mensalmente é desembolsado pouco mais
de 37 milhões de reais para o pagamento das bolsas e para garantir o
funcionamento da jornada ampliada no Peti.

Yap, Sedlacek e Orazem (2001), usando dados de municípios da Bahia,


Pernambuco e Sergipe que implementaram o Peti, encontraram aumen-
to no tempo de permanência na escola, redução do trabalho infantil e
nas atividades perigosas e melhoria na distorção idade-série em crianças
beneficiárias do Peti. Barros e Mendonça (2011) destacam o programa de
erradicação do trabalho infantil (Peti) como responsável por mais de 80%
da queda do trabalho infantil no período analisado de 1992 a 2009, sendo
o fator principal para a redução da incidência de crianças trabalhando
nos últimos 20 anos, mesmo considerando as significativas melhorias
das condições socioeconômicas das famílias.

Apesar de o Peti ser uma política específica para atender crianças e ado-
lescentes em situação de trabalho, outros programas sociais sem foco es-
pecífico no trabalho infantil também têm impacto na sua redução, como
o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e os programas de transferên-
cia de renda condicionada, Bolsa Escola (2001 a 2003) e Bolsa Família (que

24 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015


Ana Lúcia Kassouf

a partir de 2004 incorpora dezenas de programas dispersos de transfe-


rência de recursos para diferentes segmentos da população pobre). Em
2006 o Peti foi incorporado ao Programa Bolsa Família.

O BPC é um benefício individual que assegura a transferência mensal de


um salário-mínimo ao idoso, com 65 anos ou mais, e à pessoa portadora
de deficiência, de qualquer idade, com impedimentos de longo prazo, de
natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação
com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva
na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. O BPC é
um direito garantido pela Constituição Federal de 1988 e regulamentado
pela Lei Orgânica da Assistência Social (Loas) e começou a ser pago a par-
tir de 1996. Para ser elegível é preciso comprovar renda mensal familiar
per capita inferior a um quarto do salário-mínimo vigente. Atualmente há
3,6 milhões de beneficiários do BPC em todo o Brasil, sendo 1,9 milhão de
pessoas com deficiência e 1,7 milhão de idosos. Comparado aos outros
programas do governo federal, o valor do benefício é bastante alto, e isto
se reflete no tamanho do orçamento destinado ao programa. Oliveira e
Kassouf (2012) analisaram o impacto do BPC recebido por idosos e obser-
varam uma redução no trabalho de crianças de 10 a 15 anos que residem
em domicílios em que há idosos beneficiados pelo programa.

O Programa Bolsa Família (PBF) foi criado em 2003 para integrar e unificar
o programa Bolsa Escola, o Auxílio Gás, o Bolsa Alimentação e o Cartão
Alimentação. É um programa de transferência direta de renda, que além
de beneficiar famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza, pos-
sui condicionalidades que reforçam o acesso a direitos sociais básicos
nas áreas de Educação, Saúde e Assistência Social. A contrapartida é que
as famílias beneficiárias mantenham seus filhos e/ou dependentes com
frequência na escola e vacinados, enquanto gestantes ou lactantes de-
vem realizar o pré-natal e o acompanhamento da sua saúde e do bebê.
Ademais, crianças e adolescentes com até 15 anos em risco ou retiradas
do trabalho infantil pelo Peti devem participar dos Serviços de Convivên-
cia e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) do Peti e obter frequência míni-
ma de 85% da carga horária mensal. A seleção das famílias é feita com
base nas informações registradas pelo município no Cadastro Único,2
instrumento de coleta de dados que tem como objetivo identificar todas
as famílias de baixa renda existentes no Brasil. Com base nesses dados,

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015 25


Evolução do trabalho infantil no Brasil

o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome seleciona,


de forma automatizada, as famílias que serão incluídas no Programa. No
entanto, o cadastramento não implica a entrada imediata das famílias
no Programa e o recebimento do benefício. Os valores dos benefícios pa-
gos pelo programa variam de acordo com as características de cada fa-
mília, dependendo da renda mensal da família por pessoa, o número de
crianças e adolescentes de até 17 anos, de gestantes, nutrizes e de com-
ponentes da família. Atualmente, o programa atende mais de 14 milhões
de famílias e tem um custo de R$ 25 bilhões.

Uma vez que a condicionalidade educacional torna obrigatória a frequên-


cia das crianças à escola, há redução do tempo dispendido em outras ati-
vidades, inclusive no mercado de trabalho, o que acarreta redução do tra-
balho infantil. Diversos estudos que analisaram o impacto dos programas
de transferência de renda condicionada sobre o trabalho infantil mostram
efeitos positivos, tanto na redução da participação das crianças no mer-
cado de trabalho quanto na redução do número de horas de trabalho das
crianças. Ferro, Kassouf e Levison (2010) mostram que o programa Bolsa
Escola reduz de 2% a 3% a probabilidade de crianças da área urbana traba-
lharem e de 6% a 9% a probabilidade de crianças da área rural trabalharem.
Apesar de o programa Bolsa Família atender mais de 13 milhões de famí-
lias em todo o território nacional e diversas pesquisas terem mostrado um
grande impacto do programa na redução da pobreza e desigualdade de
renda, aumento da escolaridade, queda no trabalho infantil e melhoria da
nutrição e saúde das famílias, o seu orçamento é relativamente baixo, com
valor em torno de 0,6% do PIB (Produto Interno Bruto).

Além de todos esses fatores que com certeza colaboraram para a redução
do trabalho infantil, fatores socioeconômicos também foram responsá-
veis pela diminuição do número de crianças trabalhando.

O salário-mínimo real, por exemplo, aumenta de forma expressiva no


período analisado e passa de R$ 227,00 em 1992 para R$ 585,00 em 2011,
como pode ser visualizado no Gráfico 3. O índice de Gini, que mede a
desigualdade de renda da população, atinge em 2011 o valor mais baixo
dos últimos 35 anos e a pobreza reduz significativamente, com o número
de pessoas pobres (com renda inferior a R$ 200,00 por mês) passando de
53 milhões em 1995 para menos de 34 milhões em 2011, ou seja, uma
redução de 36%.

26 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015


Ana Lúcia Kassouf

Salário-mínimo real (R$) GRÁFICO 3 – Evolução do salário-mínimo real no Brasil (1992 a 2011).

Fonte: Ipeadata.

Finalmente deve ser citado o documento formulado na reunião de Haia


na Holanda em 2010, denominado Roadmap, que estabelece como priori-
dade a eliminação das piores formas de trabalho infantil até 2016. Como
recomendações para atingir esse objetivo são destacadas as seguintes
ações:

1) Adotar e implementar legislações contra o trabalho infantil e as piores


formas de trabalho infantil, desenvolver e implementar planos de ações
para a redução das piores formas de trabalho infantil, possibilitar que
crianças e famílias tenham acesso à justiça, rever e atualizar a lista de
atividades perigosas, promover e fortalecer as fiscalizações no trabalho.

2) Fornecer educação de qualidade às crianças e jovens, melhorar e facili-


tar o acesso às escolas, reduzir ou eliminar custos, facilitar e possibilitar
a transição das crianças engajadas nas piores formas de trabalho para
escolas apropriadas e treinamento vocacional.

3) Implementar estratégias, políticas e programas que ofereçam serviços


sociais e de saúde para famílias vulneráveis e socialmente excluídas,
assim como para crianças com necessidades especiais.

4) Promover emprego decente, oferecer cursos de capacitação, regulari-


zar e formalizar economias informais, fortalecer a fiscalização no tra-
balho e combater o trabalho infantil em toda a cadeia produtiva.

Muitas das ações propostas no Roadmap já estão sendo implementadas


no Brasil.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015 27


Evolução do trabalho infantil no Brasil

3. Análise dos dados

Nesta seção serão apresentadas informações sobre trabalho infantil com


base nos dados das Pnads de 1992 a 2011.

O Gráfico 4 mostra a idade em que o indivíduo começou a trabalhar por


faixa etária em 1992 e 2011. Nas faixas etárias mais jovens, os indivíduos
em 1992 começavam a trabalhar cerca de dois anos mais cedo do que
os indivíduos em 2011. Já nas faixas etárias de indivíduos mais idosos,
a idade de ingresso no mercado de trabalho é semelhante em 1992 e
2011. Ademais, quanto mais jovem é o indivíduo mais tarde ele inicia no
mercado de trabalho. Enquanto os jovens de 20 a 30 anos iniciaram suas
atividades laborais com 16 anos em 2011, os de 70 a 80 anos iniciaram
com menos de 12 anos de idade, em média. Isso mostra mais uma vez
que há uma tendência de queda no trabalho infantil.

GRÁFICO 4 – Idade em que o indivíduo começou a trabalhar, por faixa etária (1992 e 2011).
Idade que começou a trabalhar

Fonte: Pnad (IBGE, 1992, 2011).

O Gráfico 5 mostra o percentual de crianças de 10 a 15 anos trabalhan-


do no período de 1992 a 2011 por região do Brasil. Em todo o período, é
na região Nordeste onde há maior percentual de crianças trabalhando,
enquanto no Sudeste observa-se o menor percentual. A região Sul foi a
que mais reduziu o trabalho infantil, passando de 29% em 1992 para 8%
em 2011, ou seja, uma redução de quase 21 pontos percentuais no perío-
do. As regiões Nordeste e Centro-Oeste também tiveram uma redução

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Ana Lúcia Kassouf

de quase 20 pontos percentuais no período. A região Norte não inclui


a área rural, que não era coletada pelo IBGE antes de 2004, e foi então
excluída para possibilitar a comparação no período. Se incluíssemos a
área rural, em 2011, o percentual de crianças trabalhando de 10 a 15 anos
seria de 11,8%, valor bem superior ao apresentado no Gráfico 5 (7,1%). A
região Sudeste partiu de uma taxa de trabalho infantil, em 1992, de 17%
e reduziu para menos de 5% em 2011. Atualmente, incluindo o Norte ru-
ral, observa-se que as maiores incidências de trabalho infantil estão no
Norte e Nordeste, vindo em seguida o Sul e Centro-Oeste e com a menor
porcentagem o Sudeste.

GRÁFICO 5 – Porcentagem de crianças de 10 a 15 anos trabalhando por região do Brasil


(1992 a 2011).

Fonte: Pnads (IBGE, 1992-2011); excluem a área rural da região Norte, exceto Tocantins.

O Gráfico 6 mostra o percentual de crianças de 10 a 15 anos que trabalha


por unidade da federação e Distrito Federal em 1992 e 2011. Em 2011,
observa-se que as maiores porcentagens estão nos estados do Norte e
Nordeste e as menores porcentagens estão no Distrito Federal, Rio de
Janeiro e São Paulo, que são estados bastante urbanizados. O Piauí tem
a maior porcentagem de crianças trabalhando, vindo em seguida, Tocan-
tins, Maranhão, Amazonas e Acre. Ao analisarmos os valores absolutos,
observamos que em 2011, Bahia e Minas Gerais contêm o maior número
de crianças e adolescentes trabalhando, com valores próximos a 180 e
160 mil, respectivamente. O estado de São Paulo tem 150 mil crianças

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015 29


Evolução do trabalho infantil no Brasil

trabalhando, apesar de a porcentagem ser baixa. Também é alto o nú-


mero de trabalhadores no Maranhão, Ceará, Paraná e Rio Grande do Sul,
com valores próximos a 100 mil trabalhadores. Comparando os valores
de 1992 e 2011, observa-se que as maiores quedas na porcentagem de
crianças trabalhando ocorreram nos estados de Pernambuco, Paraíba e
Maranhão, com redução de quase 25 pontos percentuais. Todos os esta-
dos tiveram redução na porcentagem de crianças trabalhando no perío-
do analisado e muitos reduziram mais de 20 pontos percentuais.

GRÁFICO 6 – Porcentagem de crianças de 10 a 15 anos trabalhando por estado do Brasil


(1992 e 2011).
% de crianças de 10 a 15 anos trabalhando

     Fonte: Pnads de 1992 e 2011; excluem a área rural da região Norte, exceto Tocantins.

O Gráfico 7 mostra a relação entre o trabalho infantil e o PIB per capita


entre os estados brasileiros em 2011. Pela reta estimada, observa-se uma
relação inversa, isto é quanto maior a renda do estado menor é o traba-
lho infantil. O Piauí, Maranhão e Tocantins foram os estados com maior
incidência de trabalho infantil, destacando-se os estados do Nordeste e
do Norte com elevada incidência de trabalho infantil e também os esta-
dos mais pobres do país. Já o Distrito Federal, São Paulo e Rio de Janeiro
são os estados mais ricos do país e têm menor incidência de crianças
de 10 a 15 anos trabalhando. Por outro lado, há estados com PIB per ca-
pita semelhante e valores bastante diferentes de trabalho infantil como,

30 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015


Ana Lúcia Kassouf

por exemplo, Rio de Janeiro e Santa Catarina. Os dois estados têm PIB
per capita próximo a R$ 11.000,00, mas no Rio de Janeiro a porcentagem
de crianças trabalhando é menos de 2% e em Santa Catarina é quase
6%. Nesse último estado há emprego de crianças na agricultura familiar,
mais por razões culturais do que por necessidade de renda. Da mesma
forma, Tocantins, Bahia, Pernambuco e Amapá têm PIB per capita próximo
a R$ 5.000,00 e porcentagens de crianças trabalhando com variação de
15% a 3%.

GRÁFICO 7 – Porcentagem de crianças de 10 a 15 anos trabalhando por estado.


(Dados do PIB per capita, 2011).
% de crianças de 10 a 15 anos trabalhando

Fonte: Pnad (IBGE, 2011).

Apesar de o número de crianças trabalhando ser maior na área urbana


com relação à área rural, a porcentagem de trabalhadores é superior na
rural. Vale lembrar que, de acordo com a Pnad de 2011, 85% da população
brasileira encontra-se na área urbana. Observe no Gráfico 8 que quase 50%
das crianças de 10 a 15 anos trabalhavam na área rural em 1992 contra
15,6% na área urbana. Essas porcentagens caem sistematicamente ao lon-
go do período, atingindo 19% e 5%, respectivamente, em 2011. Houve uma
queda de 30 pontos percentuais na área rural, no período de 1992 a 2011,
enquanto na área urbana a queda foi de pouco mais de 10 pontos percen-
tuais. Em 1992 pouco menos de 2,4 milhões de crianças trabalhavam, tanto
no rural como no urbano do Brasil, mas em 2011 esse número cai para
600 mil no rural e 800 mil no urbano.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015 31


Evolução do trabalho infantil no Brasil

GRÁFICO 8 – Porcentagem de crianças de 10 a 15 anos trabalhando nas áreas rural e urbana


do Brasil (1992 a 2011).

     Fonte: Pnads (IBGE, 1992-2011); excluem a área rural da região Norte, exceto Tocantins.

Há mais meninos trabalhando do que meninas no Brasil, mas essa dife-


rença tem se reduzido ao longo do tempo. Em 1992, 31% dos meninos de
10 a 15 anos trabalhavam, reduzindo para 9,5% em 2011. Já as meninas
passaram de 16% para menos de 5% nesse período, como pode ser obser-
vado no Gráfico 9.

GRÁFICO 9 – Porcentagem de crianças de 10 a 15 anos trabalhando por sexo (1992 a 2011).

     Fonte: Pnads (IBGE, 1992-2011); excluem a área rural da região Norte, exceto Tocantins.

O Gráfico 10 mostra a porcentagem de crianças de 10 a 15 anos que só


estudam, trabalham e estudam, só trabalham e não trabalham nem es-
tudam. Em 1992, 68% das crianças só estudam, 15% estudam e traba-

32 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015


Ana Lúcia Kassouf

lham, 8,5% só trabalham e 8,3% não estudam nem trabalham. Ao longo


do tempo, aumenta a porcentagem de crianças só estudando e diminui as
demais categorias. Em 2011, 91% só estudam, 6,6% estudam e trabalham,
somente 0,5% só trabalha e 2,2% não estudam nem trabalham. Dessas
2,2% ou 460 mil crianças nessa faixa etária que não estudam nem traba-
lham, 72% das meninas e 30% dos meninos declararam cuidar de afazeres
doméstico 22 horas e 10 horas por semana, respectivamente, o que expli-
ca em parte a alta incidência de crianças sem atividade (trabalho e escola)
aparente. Entretanto, ainda é alta a porcentagem de meninos sem traba-
lhar nem estudar e que também não cuidam de afazeres domésticos.

O aumento da porcentagem de crianças de 10 a 15 anos de idade só es-


tudando e a redução nas atividades laborais de 1992 a 2011 podem estar
associados às políticas governamentais voltadas à educação e aos pro-
gramas de transferência de renda condicionada, como o Bolsa Escola e o
Bolsa Família, que fornecem renda às famílias pobres, mas exigem como
contrapartida a frequência das crianças na escola, resultando em eleva-
ção da frequência escolar e redução do trabalho infantil.

GRÁFICO 10 – Porcentagem de crianças de 10 a 15 anos estudando e/ou trabalhando ou sem


estudar nem trabalhar (1992 a 2011).

.
Fonte: Pnads (IBGE, 1992-2011); excluem a área rural da região Norte, exceto Tocantins.     .

A Tabela 1 mostra a porcentagem de crianças ocupadas por posição


na ocupação em 1992 e 2011. A maioria das crianças empregadas são
não remuneradas, vindo em seguida os empregados sem carteira de

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015 33


Evolução do trabalho infantil no Brasil

trabalho assinada. Em 1992 os trabalhadores na produção para o pró-


prio consumo representam 7,4%, passando para 15,2% em 2011. Já os
trabalhadores domésticos passam de 10% em 1992 para 7,8% em 2011.
Vale lembrar que a legislação brasileira proíbe o trabalho de menores
de 16 anos, permitindo a partir de 14 anos somente na condição de
aprendiz. O Decreto nº 6.481, que tratou da proibição das piores for-
mas de trabalho infantil regulamentou a Convenção 182, da Organiza-
ção Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil e atualizou a lista
de atividades econômicas consideradas insalubres e perigosas para o
trabalho de menores de 18 anos. Pelo decreto, ficou proibido o trabalho
do menor de 18 anos em 94 tipos de atividades que podem causar da-
nos à integridade física, mental, social, moral e ao desenvolvimento
dos jovens. Entre as atividades elencadas, estão as que se referem aos
serviços domésticos. Isso porque os jovens que trabalham nestas ati-
vidades estão sujeitos, por exemplo, a esforços físicos intensos, isola-
mento, abuso físico, psicológico e sexual, longas jornadas de trabalho,
trabalho noturno, calor, exposição ao fogo, posições antiergonômicas e
movimentos repetitivos, podendo comprometer o processo de forma-
ção social e psicológica.

O emprego doméstico inclui todos os serviços domésticos: faxineira,


lavadeira, diarista, jardineiro, empregada doméstica e babás. Do total de
crianças de 10 a 15 anos que têm emprego doméstico em 2011 (122.651),
mais de 12% somente trabalham e não estudam (mais de 15.000). Essas
crianças recebem em média R$ 150,00 por mês (variando de R$ 10,00 a
R$ 800,00 segundo a amostra) e trabalham, em média, 28 horas por se-
mana. As engajadas na categoria “outro empregado sem carteira de tra-
balho assinada” recebem quase o dobro de salário (R$ 268,00 por mês)
e trabalham 20,8 horas por semana, em média. Das crianças de 10 a
15 anos que trabalham, a maior porcentagem daquelas com emprego
doméstico está na região Centro-Oeste (10%) e Sul (8%), vindo em se-
guida a região Sudeste, Nordeste e Norte. Há 135 mil adolescentes de
16 e 17 anos no trabalho doméstico, sendo mais comum nas regiões
Norte (9,2%) e Nordeste (9,1%), vindo em seguida a região Centro-Oeste,
Sudeste e Sul.

34 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015


Ana Lúcia Kassouf

TABELA 1 – Crianças de 10 a 15 anos ocupadas por posição na ocupação (1992 e 2011).

Posição na ocupação 1992   2011  

  Número % Número %

Empregado com carteira de trabalho assinada 206.953 4,33 33.293 2,11

Outro empregado sem carteira assinada 1.129.859 23,63 464.860 29,46

Trabalhador doméstico 480.764 10,05 122.651 7,77

Conta própria 263.939 5,52 98.368 6,23

Empregador 658 0,01 1.372 0,09

Trabalhador na produção para o próprio consumo 353.181 7,39 240.286 15,23

Trabalhador na construção para o próprio uso - - 11.525 0,73

Não remunerado 2.346.914 49,08 605.323 38,37

Fonte: Pnads (IBGE, 1992-2011)de 1992 e 2011; excluem a área rural da região Norte, exceto Tocantins.    .

O ramo agrícola é o que mais emprega crianças no Brasil. Como pode ser
observado no Gráfico 11, em 1992, 52,4% das crianças de 10 a 15 anos que
trabalhavam estavam exercendo atividades agrícolas e pecuárias, passan-
do para 44% em 2011. Apesar de ter havido uma redução na porcentagem
de crianças trabalhando no ramo agrícola, ainda é o ramo de atividade com
a maior porcentagem de crianças trabalhando. Em 2011, além do ramo agrí-
cola, 19% das crianças estavam trabalhando no comércio, 12% em serviços,
8% na indústria, 8% no emprego doméstico e 4% na construção civil. Den-
tro do ramo agrícola, as crianças trabalham principalmente nas culturas
de arroz, milho, mandioca, em hortas e com manejo de animais e aves.

GRÁFICO 11 – Porcentagem de crianças de 10 a 15 anos trabalhando no ramo agrícola


(1992 a 2011).
% de crianças de 10 a 15 anos trabalhando

Fonte: Pnads (IBGE, 1992-2011); excluem a área rural da região Norte, exceto Tocantins.    .

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015 35


Evolução do trabalho infantil no Brasil

A média do número de horas trabalhadas semanalmente por crianças de


10 a 15 anos de 1992 a 2011 pode ser visualizada no Gráfico 12. Pode-se
observar que há uma queda constante de 1992 a 2006, passando de 32
para 21 horas. Após esse período, as médias de horas oscilam e em 2011
o valor é de 22 horas por semana. Em 2011, o ramo de atividade que teve
a maior média de horas trabalhadas por semana foi o de serviços domés-
ticos (28h), seguido pela construção civil (26h). O ramo agrícola foi o que
apresentou o menor número médio de horas trabalhadas (19h), sendo o
único ramo que apresentou jornada de trabalho semanal média de me-
nos de 20 horas para crianças de 10 a 15 anos.

GRÁFICO 12 – Média de horas trabalhadas por semana no trabalho principal (1992 a 2011).
Horas trabalhadas por semana

Fonte: Pnads (IBGE, 1992-2011); excluem a área rural da região Norte, exceto Tocantins.

Ao dividirmos a renda das famílias com crianças de 10 a 15 anos em dé-


cimos de renda, do mais pobre para o mais rico, observamos no Gráfico
13 que há maior porcentagem de crianças trabalhando no estrato mais
pobre de renda. Em 1992 a diferença é mais acentuada, passando de 36%
para 11%, já em 2011 no décimo mais pobre, 11,7% das crianças traba-
lham e no décimo mais rico, 4,5%. Observe que mesmo nos décimos mais
ricos há um número elevado de crianças trabalhando; em 2011, quase
225 mil trabalham nos dois décimos mais ricos e 230 mil no décimo mais
pobre. Em 1992, 500 mil trabalham nos dois décimos mais ricos e 700 mil
no décimo mais pobre.

36 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015


Ana Lúcia Kassouf

GRÁFICO 13 – Porcentagem de crianças de 10 a 15 anos trabalhando por décimo de renda


familiar per capita (1992 e 2011).
% trabalhando de 10 a 15 anos

Fonte: Pnads (IBGE, 1992-2011); excluem a área rural da região Norte, exceto Tocantins.    .

O Gráfico 14 mostra os rendimentos mensais médios deflacionados das


crianças de 10 a 15 anos que trabalham e têm remuneração para cada
décimo de renda familiar per capita em 2011. No décimo mais pobre, o
rendimento mensal médio é de cerca de R$ 100,00, aumentando até atin-
gir R$ 420,00 no décimo mais rico de renda familiar.

GRÁFICO 14 – Porcentagem de crianças de 10 a 15 anos trabalhando e rendimento mensal


médio por décimo de renda familiar per capita (2011).
Porcentagem trabalhando
Rendimento mensal

Fonte: Pnad (IBGE, 2011).    .

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015 37


Evolução do trabalho infantil no Brasil

Essa mesma análise realizada para adolescentes de 16 e 17 anos mostra que, em


2011, se não considerarmos o décimo mais rico, a porcentagem de adolescen-
tes trabalhando aumenta ao invés de diminuir (Gráfico 15). Está havendo uma
mudança ao longo do tempo com relação aos fatores que levam crianças e ado-
lescentes ao mercado de trabalho. Outros fatores, que não pobreza e necessi-
dade, precisam ser avaliados. Disponibilidade de trabalho, maior qualificação e
escolaridade dos jovens para obterem empregos com maior facilidade, influên­
cia dos pais e do ambiente mais rico para a inclusão no mercado de trabalho,
autonomia e consumismo etc.

GRÁFICO 15 – Porcentagem de crianças de 16 e 17 anos trabalhando por décimo de renda


familiar per capita (1992 e 2011).
% trabalhando de 16 e 17 anos

Fonte: Pnads (IBGE, 1992-2011); excluem a área rural da região Norte, exceto Tocantins.

Caracterizar o perfil das crianças que exercem atividades tidas como perigosas,
tais como cultivo de cana-de-açúcar e fumo, pesca, extração de minérios, fa-
bricação de produtos químicos e outros é difícil devido ao reduzido número de
observações de pessoas até 17 anos na amostra da Pnad nessas atividades. De-
ve-se levar em consideração que o reduzido número de observações resulta na
não representatividade da população. Na Tabela 2, foram selecionadas algumas
atividades consideradas perigosas, com base na Pnad 2011 e na lista de piores
formas de trabalho infantil divulgada pela Comissão Nacional de Erradicação
do Trabalho Infantil (Conaeti). Vale ressaltar que não há dados detalhados sobre
crianças e adolescentes desenvolvendo essas atividades e a tabela serve como
uma orientação, mas não é precisa.

38 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015


Ana Lúcia Kassouf

Observa-se que há mais de 10 mil crianças e adolescentes com menos


de 18 anos trabalhando no cultivo de cana-de-açúcar e mais de 22 mil no
cultivo de fumo. Mais de 83 mil trabalham na exploração florestal e fabri-
cação de produtos de madeira e móveis. Quase 36 mil trabalham em ati-
vidades relacionadas à pesca e muitos estão envolvidos na fabricação de
couro, borracha, produtos químicos, minerais, metais e máquinas. Ademais,
63 mil trabalham como ambulantes no comércio de bens e alimentos.

TABELA 2 – Crianças e adolescentes com menos de 18 anos trabalhando em atividades


perigosas (2011).

Atividades perigosas Número de pessoas


menores de 18 anos

Cultivo de cana-de-açúcar 10.184

Cultivo de fumo 22.575

Silvicultura, exploração florestal e fabricação de produtos de madeira e móveis 83.571

Pesca 35.889

Fabricação de couro e artefatos de couro 36.304

Fabricação de produtos químicos 15.221

Fabricação de borracha e plástico 7.377

Fabricação de produtos de minerais não metálicos (cerâmica, mármore etc.) 21.674

Fabricação de produtos de metal 28.155

Fabricação de máquinas e equipamentos 16.140

Comércio ambulante 62.938

Total 340.028

Fonte: Pnad (IBGE, 2011).

Uma forma de reduzir o número de crianças e adolescentes exercendo


atividades perigosas e os riscos envolvidos na realização dessas ativi-
dades é por meio das ações de fiscalização do trabalho. A Secretaria de
Inspeção do Trabalho (SIT) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE)
desenvolve ações de fiscalização do trabalho, articulação e mobilização
social destinadas à prevenção e eliminação do trabalho infantil no país.
Com base nas informações do Sistema de Informações sobre Focos de
Trabalho Infantil (Siti), foram realizadas em todo o país cerca de 7.029
ações de fiscalização em 2011, que redundaram na retirada de 10.362
crianças e adolescentes com idade inferior a 18 anos em situações irre-
gulares. A Tabela 3 mostra que a região Nordeste é onde há maior número
de crianças afastadas (4.191) e a região Sul mostra o menor valor (810).

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015 39


Evolução do trabalho infantil no Brasil

Todas as outras regiões têm valores semelhantes e em torno de 1.800


crianças e jovens afastados do trabalho. O Ceará (829), Pernambuco (817),
Bahia (801) e Mato Grosso do Sul apresentam os maiores contingentes
de crianças e adolescentes afastados em situação irregular de trabalho.
Observa-se também que ainda é reduzida a porcentagem de municípios
fiscalizados no Brasil, pois em 2011 somente 720 municípios no total de
5.565 foram fiscalizados, o que representa 13% dos municípios.

TABELA 3 – Número de crianças e adolescentes afastadas de situação irregular de trabalho


infantil e número de ações fiscais e de municípios fiscalizados no Brasil, grandes regiões e
unidades da federação (2011).

Número de Número de municípios Número total de crianças


ações fiscais e adolescentes afastadas
Área geográfica realizadas Fiscalizados Total % Fiscalizados do trabalho
Região Norte 736 75 449 17 1747
Rondônia 83 8 52 15 292
Acre 94 15 22 68 180
Amazonas 223 9 62 15 430
Roraima 22 2 15 13 21
Pará 123 30 143 21 458
Amapá 42 2 16 13 111
Tocantins 149 9 139 6 255
Região Nordeste 1319 212 1794 12 4191
Maranhão 142 12 217 6 239
Piauí 101 21 224 9 309
Ceará 151 30 184 16 829
Rio Grande do Norte 23 13 167 8 326
Paraíba 30 10 223 4 316
Pernambuco 254 33 185 18 817
Alagoas 18 9 102 9 327
Sergipe 207 26 75 35 227
Bahia 393 58 417 14 801
Região Sudeste 2367 195 1668 12 1725
Minas Gerais 262 61 853 7 635
Espírito Santo 39 15 78 19 405
Rio de Janeiro 1510 44 92 48 496
São Paulo 556 75 645 12 189
Região Sul 848 118 1188 10 810
Paraná 287 24 399 6 364
Santa Catarina 454 41 293 14 217
Rio Grande do Sul 107 53 496 11 229
Região Centro-Oeste 1759 120 466 26 1889
Mato Grosso do Sul 776 65 78 83 763
Mato Grosso 175 26 141 18 269
Goiás 333 28 246 11 574
Distrito Federal 475 1 1 100 283
Total Brasil 7029 720 5565 13 10362

Fonte: Siti – Sistema de Informações sobre Focos de Trabalho Infantil no Brasil/Ministério do Trabalho.
As informações referentes à quantidade de municípios em cada estado foram retiradas do Censo 2010.

40 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015


Ana Lúcia Kassouf

Apesar de ainda ser reduzida a porcentagem de municípios fiscalizados,


sabe-se que as inspeções do trabalho infantil foram intensificadas a par-
tir de 1994 com a criação do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação
do Trabalho Infantil (FNPETI) e o número de ações fiscais tem aumen-
tado. Entretanto, ao contrário do início da década de 1990 quando era
mais fácil encontrar as crianças exercendo praticamente todos os tipos
de atividades, inclusive no mercado formal, atualmente, com a grande
redução no número de crianças trabalhando e com maior conscienti-
zação da população de que o trabalho infantil é maléfico, fica cada vez
mais difícil encontrar crianças e adolescentes em situação de trabalho,
exigindo muito mais esforço por parte dos fiscais e mais recursos para
cobrir os custos. Antigamente, a cada ação fiscal realizada se encontra-
va em média sete crianças e adolescentes, mas hoje em dia essa média
caiu para menos de uma criança ou adolescente. Observa-se assim que a
fiscalização tem ido mais a campo, tem interiorizado mais as suas ações,
mas ainda assim o corpo fiscal é pequeno e não tem condições de atingir
a totalidade dos municípios. Assim, há um dispêndio maior de recursos
e um maior número de ações, ainda que o corpo fiscal não tenha aumen-
tado. O desafio de hoje é encontrar essas crianças e fazer a ação fiscal e
não simplesmente ir a campo.

O Gráfico 16 mostra o número de crianças e adolescentes encontrados


em situação de trabalho e afastados pela fiscalização de 2000 a 2012.

GRÁFICO 16 – Número de crianças e adolescentes encontrados em situação de trabalho e


afastados pela fiscalização (2000 a 2012).
Crianças/adolescentes afastados pela fiscalização

Fonte: Ministério do Trabalho e Emprego.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015 41


Evolução do trabalho infantil no Brasil

6. Considerações finais

O número de crianças e adolescentes de 5 a 15 anos trabalhando (ex-


cluindo empregado com carteira de trabalho assinada) se reduz pro-
gressivamente durante todo o período considerado, passando de
pouco mais de 5,5 milhões ou 15% em 1992 para cerca de 1,7 milhão
ou 4% em 2011. A diminuição do número de crianças e adolescen-
tes trabalhando no Brasil deve ser atribuída a diversas ações direcio-
nadas ao combate do trabalho infantil, desde o início da década de
1990, por parte de órgãos públicos, de organizações da sociedade ci-
vil, de sindicatos, do setor produtivo e de organismos internacionais.
As diferentes ações, que incluem a criação de programas sociais re-
sultaram em um significativo aumento da frequência escolar no perí-
odo, queda da pobreza e desigualdade de renda e aumento do salário-
mínimo real, que direta ou indiretamente impactaram na redução do
trabalho infantil.

Apesar do progresso observado na redução do trabalho infantil e no


aumento da frequência escolar de 1992 até 2011, quase 2 milhões de
crianças e adolescentes de 5 a 15 anos ainda trabalham. Muitos desses
trabalhadores não são remunerados ou recebem baixos rendimentos
e trabalham um número elevado de horas por semana, o que os impe-
dem de estudar.

A baixa escolaridade e o pior desempenho escolar têm o efeito de limi-


tar as oportunidades de emprego a postos que não exigem qualificação
e que dão baixa remuneração, mantendo o jovem dentro de um ciclo
repetitivo de pobreza já experimentado pelos pais. Ações fiscalizadoras
são necessárias, mas são cada vez de mais difícil acesso, dado o caráter
informal do trabalho.

As maiores porcentagens de crianças e adolescentes trabalhando estão


na região Norte e Nordeste, vindo em seguida o Sul, Centro-Oeste e por
último o Sudeste. A redução do trabalho infantil de 1992 a 2011 está em
torno de 20 pontos percentuais nas regiões Sul, Nordeste e Centro-Oeste.
O Sudeste apresentou uma redução de 12 pontos percentuais. Antes de
2004 não se coletava informações do Norte rural, o que impossibilita a
comparação. De forma análoga, a porcentagem de crianças de 10 a 15

42 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015


Ana Lúcia Kassouf

anos trabalhando na área rural do Brasil cai de 50% em 1992 para 19% em
2011, enquanto na área urbana, a queda foi de 15,6% para 5%.

As maiores porcentagens de trabalho infantil estão nos estados do Norte


e Nordeste e as menores porcentagens estão no Distrito Federal, Rio de
Janeiro e São Paulo, que são estados bastante urbanizados. O Piauí tem
a maior porcentagem de crianças trabalhando, vindo em seguida, Tocan-
tins e Maranhão. Comparando os valores de 1992 e 2011, observa-se que
as maiores quedas na porcentagem de crianças trabalhando ocorreram
nos estados de Pernambuco, Paraíba e Maranhão, com redução de quase
25 pontos percentuais.

Os dados mostram que uma porcentagem elevada de crianças e ado-


lescentes em domicílios relativamente mais ricos trabalha, mostrando
que não é só pobreza e necessidade que leva os jovens a trabalhar, mas
também uma maior oferta de trabalho, um maior desejo de consumo e
independência financeira e a perspectiva de que a escola e os estudos no
qual deveriam estar inseridos não trazem retornos futuros.

Muitas das ações sugeridas pelo Roadmap estão sendo implementadas


no Brasil. Atualmente, 98% das crianças de 6 a 14 anos estão na escola.
Cerca de 14 milhões de famílias estão sendo atendidas pelo programa
Bolsa Família, o qual tem incorporado o programa Peti, voltado para a eli-
minação das piores formas de trabalho infantil e assistência às famílias.
O programa Brasil Carinhoso visa atender famílias com pelo menos um
filho de até 15 anos que, mesmo recebendo o Bolsa Família, continuavam
na extrema pobreza, ou seja, com renda mensal inferior a R$ 70 por pes-
soa. Os programas envolvem não só o Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome (MDS), mas também o Ministério da Saúde (MS)
e o Ministério da Educação (MEC). A fiscalização e retirada de crianças e
adolescentes em situações irregulares de trabalho é realizada pelo Mi-
nistério do Trabalho e Emprego (MTE). O Ministério Público do Trabalho
(MPT) atua na defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes que se
encontram em situação de trabalho.

Dos cerca de 1,7 milhão de trabalhadores de 5 a 15 anos no Brasil, 1 mi-


lhão têm entre 14 e 15 anos e deveriam estar cursando ou iniciando o
Ensino Médio. Assim, o problema não é mais incluir e manter as crianças
no Ensino Fundamental, mesmo porque atualmente 98% das crianças de

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015 43


Evolução do trabalho infantil no Brasil

6 a 14 anos frequentam a escola, mas garantir que concluam o Ensino


Médio e/ou cursos técnicos, adotando paralelamente políticas de capaci-
tação que tornem a escola mais interessante e atrativa, de forma a adiar
a entrada desses jovens no mercado de trabalho.

É importante ampliar e melhorar o acesso à educação de qualidade,


obrigatória e gratuita, para todas as crianças e adolescentes, adotando
estratégias que garantam a conclusão do ensino básico (Fundamental
e Médio). Disponibilidade de cursos técnicos e de capacitação adapta-
dos às necessidades do mercado de trabalho é de extrema importância
para a qualificação dos adolescentes e sua formação profissional para
que possam estar aptos a trabalhar no futuro em melhores condições e
recebendo melhores salários. Ademais, é preciso atender às necessida-
des dos adolescentes carentes que precisam do rendimento do trabalho
para sua sobrevivência ou da sua família, assistindo-os com programas
de renda para garantir sua transição à educação ou à formação profissio-
nal adequada.

No âmbito da proteção social, é importante facilitar o acesso e a presta-


ção de serviços de saúde e social nos territórios vulneráveis e marginali-
zados, como nas regiões mais pobres e em locais mais remotos e de difí-
cil acesso, além de garantir atendimento às crianças e aos adolescentes
em situação de vulnerabilidade social, de modo a evitar que ingressem
no mercado de trabalho.

Finalmente, é preciso trabalhar a favor da regulação e formalização da eco-


nomia informal, fortalecendo os sistemas públicos de inspeção do traba-
lho, apoiando a criação de empregos e promovendo o trabalho decente.

Infelizmente, mesmo com a luta de diversos órgãos pela erradicação do


trabalho infantil, ainda há alguns setores da sociedade defendendo a in-
serção precoce de crianças e adolescentes no mundo do trabalho como
forma de mitigar a pobreza, o ócio, o consumo de drogas e a criminalida-
de. O papel da comunicação e da mídia é imprescindível para transmitir
conhecimento e conscientizar a sociedade dos prejuízos e danos que o
trabalho precoce causa às crianças, assim como da necessidade de se
priorizar a educação de qualidade.

Sabe-se hoje que não existe uma única política para eliminar o trabalho
infantil e a sua persistência é uma evidência clara de que não há uma

44 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015


Ana Lúcia Kassouf

solução fácil. Entretanto, hoje temos maior e melhor entendimento das


causas e consequências do trabalho infantil, o que nos permite avaliar
e sugerir políticas para reduzi-lo ou erradicá-lo com maior segurança.
Não há dúvidas de que o trabalho que envolve as piores formas de tra-
balho infantil – exploração sexual, tráfico e atividades de risco às crian-
ças e adolescentes – deve ser banido, assim como os investimentos na
qualidade e disponibilidade de escolas devem ser incentivados. É funda-
mental avançar no entendimento dos fatores que resultem na atração e
permanência na escola por um período maior para todas as crianças
e adolescentes brasileiros.

Notas

1 Nos anos de 2000 e 2010 não se realizou a Pnad por serem anos de censo
e em 1994 excepcionalmente também não houve Pnad. Em 1996 e 1997 as
informações da Pnad sobre trabalho não incluíram menores de 10 anos. Para
efeito de comparação, esses dados não incluem a área rural da região Norte, a
qual não era levantada antes de 2004.

2 Cadastro Único. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/bolsafamilia/resolve


uid/1169e4d98311fe31e82e6712f9aa7c4a>. Acesso em: 23 ago. de 2013.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015 45


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Ana Lúcia Kassouf

K., relato de uma busca:


autoficção e efeitos políticos

Anna Faedrich,
Renato Lima e
Jacques Fux

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015 49


Anna Faedrich
Professora substituta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(Uerj/Departamento de Teoria da Literatura e Literatura Brasileira),
pós-doutoranda em Estudos de Literatura na Universidade Federal
Fluminense (UFF), doutora em Letras – Teoria da Literatura
(PUCRS/2014). Autora da tese de doutorado Autoficções: do conceito
teórico à prática na literatura contemporânea brasileira (2014),
pesquisa sobre autoficção e literatura contemporânea.

Renato Lima
Doutorando em Ciência Política no Massachusetts Institute of
Technology (MIT), mestre em Estudos da América Latina pela
Universidade de Illinois em Urbana-Champaign (UIUC) e jornalista
pela UFPE. Fundador do programa de rádio “Café Colombo –
o seu programa de livros e ideias” da Universitária FM, Recife.

Jacques Fux
Pós-doutorando em Literatura Comparada pela UFMG. Pós-doutor
em Teoria Literária pela Unicamp. Visiting Scholar em Harvard
(2012/2014). Doutor em Literatura Comparada pela UFMG e doutor
em Língua, Literatura e Civilização Francesa pela Universidade de
Lille 3. Autor dos livros Literatura e matemática: Jorge Luis Borges,
Georges Perec e o Oulipo (versão da tese que recebeu o Prêmio
CAPES de Melhor Tese de Letras/Linguística 2011) e Antiterapias
(Prêmio São Paulo de Literatura 2013).

50
Resumo
Este artigo tem como objetivo discutir a questão da autoficção em
relação à memória traumática do período da ditadura militar no
Brasil. Além disso, propomos pensar nos efeitos políticos desencade-
ados a partir da publicação do livro K., relato de uma busca, de Bernar-
do Kucinski. O livro narra, na voz do pai da vítima, o desparecimen-
to de Ana Rosa Kucinski, professora de Química na Universidade
de São Paulo (USP), e de seu marido, o físico Wilson Silva, durante
a ditadura militar brasileira, e o processo instaurado pela Univer-
sidade por “abandono de emprego”. Aqui pensamos essa questão
no contexto político e literário e o que mudou após a publicação do
livro.

Palavras-chave: K: relato de uma busca. Ditadura militar. Autoficção.

Abstract
The objective of this article is to discuss the autofiction issue regarding the
traumatic memory of the military dictatorship period in Brazil. We also
propose thinking about the political effects triggered since the publication
of the book K., by Bernardo Kucinski. In the victim’s father voice, the book
chronicles the disappearance of Ana Rosa Kucinski, a Chemistry Teacher at
the University of São Paulo (USP), and her husband, the Physicist Wilson
Silva, during the military dictatorship in Brazil, in addition to the process
initiated by the University for “job abandonment”. Here, we think this
issue in a political and literary context and what has changed after the
book publication.

Keywords: K. Dictatorship. Autofiction.

51
K., relato de uma busca: autoficção e efeitos políticos

1. Introdução

Um dos fenômenos culturais e políticos mais surpreendentes dos anos


recentes é a emergência da memória como uma das preocupações cultu-
rais e políticas centrais das sociedades ocidentais. Esse fenômeno carac-
teriza uma volta ao passado que contrasta totalmente com o privilégio
dado ao futuro, que tanto caracterizou as primeiras décadas da moderni-
dade do século XX.

Henry Rousso (2002, p. 88)

Quais os limites da ficção? E da ficcionalização de si mesmo, de


experiências próprias, de traumas e de acontecimentos dolorosos?
É possível sublimar a dor por meio da literatura? Não seria, então, o
registro do trauma no plano literário uma prática visceral e cada vez
mais comum aos autores contemporâneos? E quais são os efeitos disso?
Efeitos jurídicos,1 como os casos em que o autor sofre ameaça de processo
por ter exposto a vida íntima de outra pessoa; e efeitos políticos, como no
caso de K., relato de uma busca, em que a obra literária acaba provocando
alguma mudança na realidade, como a abertura de um processo de um
desaparecido político?

Não é raro encontrarmos na literatura brasileira contemporânea obras


marcadas pela ambiguidade, pelo hibridismo e pelo desbordamento. Des-
bordar é ir para além das bordas, trans-bordar, romper fronteiras, perder
a noção do limite, enfim, amalgamar a antítese paradigmática verdade/
ficção. Neste artigo, nossa atenção estará voltada, justamente, nesse tipo
de obra literária que, de alguma forma, está calcada numa “realidade”.

K., relato de uma busca, livro do jornalista e professor Bernardo Kucinski


(1937), publicado em 2014 pela Cosac Naify, inicia com o impacto das
primeiras páginas na cor preta, detalhe que, ao longo da leitura do ro-
mance, entendemos como uma espécie de luto pelo desaparecimento
da irmã do autor na época da ditadura militar no Brasil. Em uma dessas
páginas, está a dedicatória de Bernardo: “Às amigas, que a perderam: / De
repente / um universo de afetos se desfez.” As páginas pretas e a dedica-
tória já dão o tom do livro: noir, luto, dor irreparável. A matéria do livro
é justamente esta: o testemunho de um trauma que ao mesmo tempo é
coletivo, causado pela época de repressão, perseguição, tortura e censura

52 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 49-67 | jan.-abr. 2015


Anna Faedrich, Renato Lima e Jacques Fux

da ditadura, e pessoal, por meio de um relato sobre o sumiço de Ana Rosa


Kucinski e de seu marido Wilson Silva, em abril de 1974. “O carteiro nun-
ca saberá que a destinatária não existe, que foi sequestrada, torturada e
assassinada pela ditadura militar” (KUCINSKI, 2014, p. 12). Tal relato sen-
sibiliza facilmente o leitor, detido em páginas de tristeza, revolta, história
do Brasil, desespero familiar, inconformação etc.

O livro está dividido em 28 capítulos, seguidos de um post scriptum, em


linguagem e ritmo fluidos. É possível que o autor se exceda um pouco no
didatismo, marcado por inúmeras – talvez, desnecessárias – notas expli-
cativas de rodapé, geralmente sobre referências ao judaísmo e à questão
da ficção, que podem ser interpretadas como uma aparente subestima-
ção do leitor. O relato – que transcende o mero relato – adquire tom ín-
timo pelo acesso que temos às mentes narradas e, principalmente, aos
sentimentos de um pai, que sofre a perda da filha. Em tempos de repres-
são, o livro mostra a angústia de não saber exatamente o que aconteceu
com a filha, de não saber se ela ainda está viva ou não; uma dor que leva
o pai a uma busca exaustiva, quase sisífica, por respostas, rastros e pistas
sobre o paradeiro da filha:

Assim começou a saga do velho pai, cada dia mais aflito, mais maldormi-
do. No vigésimo dia, depois de mais uma incursão inútil ao campus e à
casa de Padre Chico, recorreu aos amigos do círculo literário; os mesmos
que por descontrole havia amaldiçoado. Quem sabe conheciam alguém
que conhecesse alguém outro, na polícia, no exército, no SNI, seja onde
for dentro daquele sistema que engolia pessoas sem deixar traços
(KUCINSKI, 2014, p. 18).

Apesar de o narrador predominante ser em terceira pessoa e de dar uma


unidade à narrativa, Kucinski joga com o foco narrativo, deixando ecoar
outras vozes. Uma delas parece ser a sua própria voz, irmão de Ana, logo
no primeiro capítulo. Trata-se de um texto grifado em itálico, que aborda
“As cartas a destinatária inexistente”. Os vestígios que nos permitem o
esforço de identificar essa voz estão nas seguintes sentenças: “Nunca
conheceu meus filhos. Nunca pôde ser a tia de seus sobrinhos. Eu sem-
pre lamentei em especial essa consequência de tudo o que aconteceu”
(KUCINSKI, 2014, p. 11, grifo nosso). Essa mesma voz volta ao final do
livro, no post scriptum, texto igualmente grifado, no qual o irmão fala de
um telefonema recebido após 40 anos do sumiço de Ana: “Passadas quase
quatro décadas, súbito, não mais que de repente, um telefonema a essa

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K., relato de uma busca: autoficção e efeitos políticos

mesma casa, a esse mesmo filho meu que não conheceu sua tia seques-
trada e assassinada” (KUCINSKI, 2014, p. 181, grifo nosso).

Outra voz muito interessante dentro da obra é a voz do opressor, um foco


narrativo diferenciado, dando espaço para a surpresa que é se deparar
com um narrador em primeira pessoa, ninguém menos que um dos se-
questradores do casal:

O que fazer com a cadela? Com o casal tudo deu certo, do jeito que o che-
fe gosta, sem deixar rastro, sem testemunha, nada, serviço limpo, nem
na casa entramos, para não correr risco com vizinhos, casa muito colada
nas outras; pegamos os dois no beco, de surpresa; uma sorte, aquela saí-
da lateral do parque, meio escondida, quando os dois se deram conta, já
estavam dentro do carro e de saco na cabeça, só a cadela latiu, mas já era
tarde (KUCINSKI, 2014, p. 63).

Não há como negar que a história de Kucinski parte da realidade, de um


momento histórico traumático no país, o qual o autor não mostra esforço
em disfarçar por meio de recursos literários. Não há nada implícito no
que diz respeito ao teor da obra. O perfil jornalístico do autor revela-se na
pesquisa, na procura e na vontade de alcançar uma “verdade” irreal, mas
que serviria para atar as pontas de uma história traumática vivenciada
pelo autor e por sua família.

Se considerarmos a literatura, entre suas diferentes concepções ao


longo da história, como um conjunto de produção escrita dotada de
propriedades específicas, que basicamente se resumem numa elabo-
ração especial da linguagem e na constituição de universos ficcionais
ou imaginários, podemos dizer que o ato de atribuir valor literário a
uma obra é, portanto, levar em consideração o modo especial de elabo-
ração da linguagem, inerente às composições literárias, caracterizado
por um desvio em relação às ocorrências mais ordinárias da linguagem.
Vale lembrar que esse é um método de análise de base linguística, que
privilegiará também o caráter plurissignificativo da literatura, o qual
possibilita várias leituras de um mesmo texto. Sendo assim, em rela-
ção à qualidade literária, K. não apresenta grande complexidade no
que diz respeito à linguagem e às possíveis entrelinhas e subentendi-
dos, que poderiam ser intencionalmente construídos. É um relato, ao
mesmo tempo tão objetivo (refletido, por exemplo, na transparência da
linguagem), que pode até parecer pouco literário (se considerarmos os

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Anna Faedrich, Renato Lima e Jacques Fux

critérios de base linguística referidos), e tão subjetivo, na medida em


que mostra a repercussão dos acontecimentos sociais na interioridade
do sujeito. Ou melhor, dos sujeitos, já que há diferentes focos narrativos
ao longo do livro.

Podemos pensar em K. como uma espécie de um livro-denúncia, em-


bora não tão audacioso quanto O que é isso, companheiro?, de Fernando
Gabeira, escrito ainda num momento de transição político-social.2 Em
nossa literatura atual, o testemunho e a denúncia não correm o mes-
mo risco de censura ou represália, ademais são bem aclamados pelo
público-leitor e pela crítica. Uma forma de elucidar essa boa aclamação
da crítica são os próprios prêmios literários – que acabam atribuindo
valor à obra literária. K., por sua vez, é um livro bem-aclamado pela
crítica, finalista dos Prêmios Portugal Telecom e São Paulo de Literatura
em 2012, entre outros.

Se mencionamos no início do artigo que a literatura contemporânea


compartilha da ambiguidade, do hibridismo e do desbordamento, K. é
uma das obras que reforça essa constatação. Tais características são co-
muns, também, ao que chamamos hoje de autoficção. A nossa intenção
não é definir K. como uma autoficção propriamente dita, mas refletir so-
bre as possíveis relações entre a prática autoficcional, o livro de Kucinski
e a possibilidade de denúncia e aceitação de um desdobramento “real”,
ou seja, os rumos que foram tomados em relação à “justiça” e à memória
dos fatos narrados com publicação desse livro.

2. Da ambiguidade e do desbordamento

Um recado ao “caro leitor” logo nas primeiras páginas do livro já esta-


belece o chamado “pacto oximórico”3 (típico da autoficção) com o leitor.
Neste “contrato de leitura”, o autor cria deliberadamente um jogo de am-
biguidades com o receptor da obra. Kucinski assina embaixo do recado,
onde diz: “Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu.” Ora,
parece-nos óbvio e até um pouco ingênuo dizer que se tudo fosse in-
venção, tornar-se-ia impossível alguma coisa ter realmente acontecido,
ou seja, não ser invenção, mesmo que seja no campo ficcional. O que
nos interessa aqui é que é justamente nesta contradição, uma espécie de
“alerta ao leitor”, um “paratexto” intencional, que o pacto é estabelecido.

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K., relato de uma busca: autoficção e efeitos políticos

A ambiguidade está anunciada. E o leitor deve se preparar. Para o quê?


Para o desbordamento, que tanto desconforta o leitor acostumado com
o prazer da leitura e a outra margem do rio bem-delineada. O texto des-
borda, retira bordas, transcende às bordas. Não importa mais o ponto de
início e de fim bem-marcados. Trata-se da falta de fronteiras, de buracos,
da falta, entre o que é real e o que é imaginado, o que aconteceu e o que
foi criado; e o leitor tende a ficar perdido neste entre-lugar, entre o fato
e a ficção; entre mundo real e mundo imaginado. E não pode reclamar
porque foi devidamente pré-avisado.

3. Hibridismo

Se num texto de autoficção, isto é, o exercício literário em que o autor


ficcionaliza fragmentos da sua própria vida,4 nós temos como condição
necessária a identidade onomástica entre autor, narrador e protagonista
(A = N = P), K., por sua vez, apresenta diferentes “eus”, diferentes narra-
dores, formando, assim, um texto híbrido no que diz respeito ao foco
narrativo e, também, à tessitura, ao apresentar relatos, diários, cartas e
post-scriptum.

A narração em terceira pessoa é predominante no livro. Por meio dela, é


como se o autor se transportasse para a pele de seu pai, conseguindo ex-
por tudo o que não é objetivo da história: os sentimentos, as frustrações,
os pensamentos, a “transparência interior”5 da personagem. Poderíamos
falar aqui em alterficção, uma prática muito próxima à autoficção, uma
“irmã mais nova” do gênero incipiente, tendo por base o conceito de al-
terbiografia proposto por Ana Maria Bulhões-Carvalho (2011).

Pensando na etimologia da palavra alterbiografia (alter/outro + biogra-


fia – do grego antigo: βιογραφία, de βíος – bíos, vida e γράφειν – gráphein, 
escrever), vemos que se trata de uma escrita da vida do outro, ou ainda,
uma escrita de si como se fosse um outro.  O corpus do trabalho de Bulhões-
Carvalho é o livro de Silviano Santiago, Em liberdade.6 Trata-se de uma
espécie de diário do escritor brasileiro Graciliano Ramos (1892-1953), in-
ventado por Santiago, escrito no intervalo entre sua saída da cadeia e
a instauração do Estado Novo. Não é, de forma alguma, uma biografia
estrito senso de Graciliano Ramos, mas sim uma “apropriação” de sua
voz narrativa, uma apropriação de sua identidade, numa mescla ousada

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Anna Faedrich, Renato Lima e Jacques Fux

de gêneros – biografia, romance, ensaio, em que, de acordo com Bulhões-


Carvalho, “cabe perfeitamente o nome de alterbiografia”:

A mescla de recursos, agenciados numa mesma obra pela lógica do pa-


radoxo – porque aponta simultaneamente para dois sentidos opostos –,
serve para que este escritor possa escrever a vida de um outro, persona-
gem real da literatura e da história política brasileira, Graciliano Ramos,
usando provas factuais suficientes para que se garanta sua identificação,
num primeiro movimento, como se fosse encapsular-lhe a vida numa
biografia; para depois, num golpe certeiro, apossar-se de sua identidade,
de modo a passar por ele, registrando seus pensamentos e emoções como
se fosse ele, imitando a escrita de um possível diário iniciado após a saída da
prisão. Isto é, torna-se narrador de uma autobiografia de outro, criando-o como
um alter de si mesmo. A essa forma miscigenada de discurso, suficiente-
mente ambíguo para dar conta das vicissitudes de projeto literário tão
ousado, cabe perfeitamente o nome alterbiografia (BULHÕES-CARVALHO,
2011, p. 28, grifos nossos).

Outro exemplo é o livro de Gertrude Stein, A autobiografia de Alice B.


Toklas. Stein escreve de si por meio da voz da companheira Alice. O
nome da narradora e da protagonista não é o mesmo da autora. É a
escrita da vida do outro (de Alice B. Toklas, de Graciliano Ramos) e da
sua própria vida (Stein, Santiago) pela apropriação da voz narrativa do
outro. Podemos, dessa forma, denominar essas obras como alterficções,
ao invés de autoficções. Também essa diferenciação não é tão relevante
assim, já que são classificações tidas como “irmãs”, isto é, uma prática
análoga à outra. Importante é observarmos mais um tipo de desdobra-
mento da escritura autobiográfica.

Dessa forma, a letra K no livro de Bernardo Kucinski, em seu sentido


mais explícito, refere-se ao pai Majer Kucinski, sendo a alterficção uma
estratégia literária em que o autor fala do outro e de si mesmo por meio
do outro. A polissemia da letra também nos leva a pensar numa referên-
cia ao próprio autor Bernardo Kucinski e, no plano literário, à Kafka, com
quem partilha o sentimento do absurdo.

Mas K. clama por uma reparação histórica, por uma necessidade de inter-
vir nas leis e no perdão que a História, e o tempo, insistem em corroborar.
É uma audácia, sobretudo para um livro de ficção, mas talvez seja essa a
única forma de se enfrentar verdadeiramente essa questão tabu e trau-
mática da ditatura brasileira.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 49-67 | jan.-abr. 2015 57


K., relato de uma busca: autoficção e efeitos políticos

4. O aspecto dramático

Um terceiro e último aspecto da ficção de K., que se assemelha ao exercí-


cio autoficcional, é o aspecto noir, isto é, a dramaticidade. Trata-se de tex-
tos que compartilham um trauma, uma dor, por meio de uma escritura
que é visceral, incontrolada, uma verdadeira necessidade. A autoficção é
o exercício literário que permite ao autor a elaboração,7 por intermédio
da escrita, de um sentimento de dor e de luto. Mais do que um mero rela-
to ou desabafo, a experiência traumática é sublimada em arte.

Serge Doubrovsky relaciona a autoficção à Psicanálise e, para ele, o exer-


cício autoficcional é uma “prática da cura”. Para ele, “a autoficção é a fic-
ção que decidi, enquanto escritor, dar a mim mesmo e por mim mesmo,
nela incorporando, no sentido pleno do termo, a experiência da análise,
não apenas na temática, mas na produção do texto” (DOUBROVSKY, 1988,
p. 77, tradução nossa).8

Sobre a sua autoficção Fils, Doubrovsky escreve um ensaio de autoanálise


dos processos escriturais colocados em jogo pelo romance,

a saber, os recursos do domínio consonântico substituídos pela ordem


sintática e discursiva tradicional, para tentar elaborar não uma escrita
do inconsciente (que, sem dúvida, não a tem), mas para o inconsciente
(o que se esforça em fazer, sem sabê-lo, a própria escrita analítica, desde
que ela existe) (DOUBROVSKY, 1988, p. 77, tradução nossa).9

Doubrovsky fala em explorar as profundezas inconscientes de sua intimidade,


elucidar coisas ainda obscuras, fala também em uma análise interminável.
Ele diz:

A experiência da Psicanálise, possível somente depois de Freud, é o pri-


meiro esforço ou efeito de ruptura em relação ao dilema clássico de um
autoconhecimento separado de si mesmo em sua dimensão do outro,
uma vez que é através da escuta do outro que a verdade retorna (aconte-
ce) no discurso que o sujeito se esforça para compreender (DOUBROVSKY,
1988, p. 77, tradução nossa).10

É sempre interessante pensarmos como se dá a projeção do autor na


escrita e a construção desse ser-ficcional, ou ainda, desse duplo-ficcio-
nal. Para cada obra literária será necessário um olhar singular e especial,
uma vez que reconhecemos no monumento literário a impossibilidade
de uma classificação genérica e homogênea, que cria “caixinhas fixas”

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Anna Faedrich, Renato Lima e Jacques Fux

para enquadrar e simplificar os gêneros literários. Nesse sentido, o dis-


curso crítico-literário atual fala em autoficções no plural, reconhecendo
a multiplicidade do exercício de ficcionalização do eu.

Camille Renard (2010), no artigo intitulado “Neuroses do indivíduo con-


temporâneo e escritura autoficcional: o caso Fils”,11 analisa a escritu-
ra autoficcional como “prática da cura”, tendo como corpus de análise
a própria autoficção de Doubrovsky. Renard observa que a proposta de
um novo gênero literário se associa a três elementos – o inconsciente, a
escritura e a cura analítica. Tal reflexão nos ajuda a entender melhor
a autoficção enquanto prática da cura ou escrita terapêutica:

A escritura da cura analítica expressa, graças à autoficção, o inconsciente do


autor/narrador. Depois que a psicanálise atacou a noção de identidade
pessoal que funda tradicionalmente a escritura do eu, a ambição da au-
toficção consiste em renovar o gênero autobiográfico. Mas ao estabelecer
uma escritura do inconsciente, “pós-analítica”, Doubrovsky realiza um
discurso sobre o significado sociocultural de sua obra. A autoficção literá-
ria revelaria as evoluções de um indivíduo contemporâneo à identidade
equivocada (RENARD, 2010, tradução e grifo nosso).12

Sendo assim, o sujeito da autoficção está à procura de si mesmo e busca,


pelo jogo de palavras, escrever os meandros do inconsciente. Entretanto
Renard, que parte da área das ciências sociais, mostra que a autoficção,
enquanto escrita da cura e das neuroses do indivíduo contemporâneo,
permite que o texto literário construa imagens coletivas e – o que ela
chama de – “um espírito do tempo” (zeitgeist):13 “O espírito do tempo é
o produto de um gênero literário informado pelas mutações sociais in-
formadas pela produção literária” (RENARD, 2010, tradução nossa).14 A
estudiosa observa que há uma interação entre a produção literária e a
evolução sociocultural.

Essa busca, portanto, do narrador (e do autor) de K., visa à denúncia, à ex-


purgação e à reparação histórica. Há que se pensar, também, em outros
aspectos relativos ao autor do livro.

Bernardo Kucinski é uma pessoa influente no meio político. Um livro-


denúncia, mesmo ficcional, escrito por ele, tem uma certa credibilida-
de, ainda mais se pensarmos que os fatos narrados habitam o imaginá-
rio e os traumas de muitos, ainda vivos, que também viveram, e senti-
ram, experiências semelhantes. Uma questão também de fundamental

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 49-67 | jan.-abr. 2015 59


K., relato de uma busca: autoficção e efeitos políticos

importância aqui, é que a forma como a memória da ditadura é tratada


no Brasil, permite (e auxilia) o tratamento ficcional, e responsável, desses
momentos traumáticos da recente História. Assim se torna necessário
explicar o tratamento brasileiro, distinto de outros países que vivencia-
ram questões similares.

5. Limites políticos à memória e à verdade

Saber do paradeiro dessas pessoas e não revelá-lo à sociedade já estava


me atormentando há muito tempo. Eu sei que cada uma dessas pessoas
tem uma família que merece saber a verdade, por pior que ela seja. E
se tive coragem, por ideologia, de fazer o que fiz, agora eu preciso ter a
mesma coragem para contar o que foi feito. Ao folhear o Livro dos desa-
parecidos, produzido pela Presidência da República, consegui identificar
as pessoas que eu levei para cremação. Os corpos, repito, já chegavam
mortos para mim. Não tenho responsabilidade pela tortura e pelo assas-
sinato deles, mas sim pelo desaparecimento.

Cláudio Guerra, Marcelo Netto, Medeieros (2012, p. 54)

A forma como indivíduos se recordam de eventos traumáticos de regimes


autoritários é influenciada pela própria dinâmica política da mudança de
regime e transição democrática. No quebra-cabeça mental de construir
uma memória ou esclarecer episódios, a quantidade de peças que uma
pessoa tem em mãos para reconstruir fatos e evidências enfrenta limi-
tes do processo político de transição e os acordos que foram feitos no
passado. Como será argumentado, mecanismos da chamada justiça de
transição, como comissões da verdade, processos criminais a violadores
de direitos humanos e formas de homenagear vítimas de regimes auto-
ritários, contribuem para o resgate da memória das pessoas e familiares
diretamente envolvidos – ao produzir novas peças desse quebra-cabeça
– bem como transcendem o pessoal para ganhar repercussões políticas
amplas.

Uma das temáticas mais caras à ciência política é a de transições de re-


gimes, em especial a da democratização. Nas últimas décadas do sécu-
lo XX, quando muitos países estavam migrando de regimes autoritários
para formas mais participativas de governo, uma imensa literatura foi
produzida para tentar entender como se dava esse processo, quais seus

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Anna Faedrich, Renato Lima e Jacques Fux

limites, como acelerar tais transições em regimes ainda fechados e, final-


mente, o que seria necessário para consolidar a democracia e evitar re-
tornos autoritários. A América Latina, palco de vários governos militares,
foi fonte constante de reflexão.

Um dos mais influentes argumentos dessa literatura é o de Huntington


(1991), que considera que a balança de poder, existente no momento
da transição, determina os limites do regime democrático em lidar com
violações de direitos humanos do passado. Em casos de colapso do re-
gime autoritário, quando seus líderes falharam de tal forma que não
conseguem negociar uma saída do poder, é mais fácil processar oficiais
do regime anterior e expor seus crimes. Trata-se de governos e líderes
que saíram do poder desmoralizados, com muito pouca base de apoio
na população e sem conseguir prerrogativas formais e informais que os
protegessem uma vez fora do governo. Entretanto, mesmo nesses casos,
novos regimes democráticos podem enfrentar resistências, tais como
tentativas de novos golpes militares ou rebeliões armadas.

Um outro modelo de transição se dá quando o regime autoritário en-


saia uma abertura e inicia um processo de transição negociada do poder.
Isso exige dos atores da sociedade civil a definição de uma estratégia de
cooperação: negociar e aceitar termos exigidos pelo regime autoritário
– incluindo a proteção contra crimes previamente cometidos – ou ficar
irredutível, o que acaba prolongando a longevidade do regime de exce-
ção. Afinal, qual líder de um governo não democrático estaria disposto a
abreviar o seu regime e passar o controle para uma democracia se tiver
certeza que no dia seguinte será processado e preso? Da mesma forma,
qual desses líderes gostaria de ver episódios negativos como desapareci-
mento de pessoas e casos de tortura sendo trazidos à luz do dia?

Dessa forma, o colapso de um regime implica maiores possibilidades de


atacar o passado autoritário, enquanto a transição negociada acelera o
caminho para a democracia ao custo de não expor o passado autoritário
nem buscar o accountability. Em relação à “verdade” e memória, questões
importantes para a ficção e literatura, as implicações são ainda mais su-
tis e difíceis.

Na América Latina, a Argentina representa o caso de colapso de regime


com a rápida instauração de uma comissão da verdade, presidida pelo

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 49-67 | jan.-abr. 2015 61


K., relato de uma busca: autoficção e efeitos políticos

escritor Ernesto Sábato, seguida de processos contra militares. Chile e


Brasil, países de transições negociadas para a democracia, protegeram
o passado ao adotar uma anistia. A proteção a esse passado liberta a
possibilidade ficcional, por excesso de lacunas. Processos de busca pelo
esclarecimento do período autoritário foram conduzidos por mecanis-
mos oficiais – como comissões da verdade, muito mais cedo e com maior
intensidade no Chile do que no Brasil – mas igualmente enfrentaram
resistências e pouca cooperação dos militares.

Na Argentina, o grupo liderado por Sábato, a Comissão Nacional sobre


o Desaparecimento de Pessoas (Conadep), produziu um relatório que
identificou gravíssimos casos de violação de direitos humanos, identi-
ficando cerca de 9.000 vítimas, mas reconhecendo que inúmeros outros
episódios ficaram sem respostas (há quem aponte até 30.000 mortes pela
ditadura argentina, como Skaar (2011)). No Chile, creditam-se à ditadura
de Pinochet 3.197 vítimas (COLLINS, 2010) enquanto no Brasil seriam 474
(BRASIL, 2007).

Dos três países, a Argentina foi o que foi mais longe em processar mi-
litares. Um dos primeiros atos do governo de Raúl Alfonsín na Argenti-
na pós-ditadura militar foi revogar a anistia que protegia os militares. A
Conadep trabalhava com a perspectiva real de obter evidências que se-
riam depois usadas em tribunais contra os agentes do regime autoritário.
Dessa forma, cooperar com a Comissão – produzir verdade, portanto – era
assinar uma sentença condenatória por parte de quem sabia dos casos
de desaparecimento por estar diretamente envolvido. Não espanta, por-
tanto, que o número total de vítimas seja tão pouco conhecido, variando
entre cerca de 10.000 até o triplo desse número. Tanto Chile quanto o
Brasil não aboliram o mecanismo da anistia, embora no Chile processos
criminais contra militares tenham avançado pelo uso de brechas legais.
Cooperar com comissões da verdade, dado a existência de anistia, é pos-
sível, mas tem seu risco. Quem participou e revela o que sabe de atos
criminosos em uma ditadura, porque protegido por uma anistia, produz
material que pode ser justamente usado por quem deseja ver um fim à
impunidade e, talvez, um bordeamento mais plausível do evento.

Pelo exposto, a busca da verdade sem anistia não incentiva a cooperação de


quem sabe sobre episódios violentos mas tem receio das consequências
criminais que pode sofrer. Por sua vez, a busca da verdade com anistia pode

62 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 49-67 | jan.-abr. 2015


Anna Faedrich, Renato Lima e Jacques Fux

incentivar a cooperação de alguns, mas não afasta completamente o risco


da cooperação, dado que a verdade sobre o passado tem efeitos reais so-
bre a política, inclusive a pressão pelo fim da impunidade. Por fim, existe
um outro tipo de modelo, o que foi adotado na África do Sul por ocasião
do fim do apartheid. Neste caso, uma Comissão da Verdade e Reconciliação
Nacional trabalhou com o mandato de conceder anistia aos indivíduos
que cooperassem, se apresentando à comissão e contando integralmente
o que sabiam. Não testemunhar, neste caso, era correr o risco de ser pro-
cessado. Consequentemente, anistia em troca de verdade, é o modelo que
oferece maiores incentivos para o conhecimento do passado.

O Brasil se engajou apenas tardiamente em mecanismos de justiça de


transição (OLIVEIRA, 2014). Dado os limites impostos pela natureza po-
lítica da mudança de regime – negociada e com anistia – esforços atuais
de se conhecer mais sobre episódios autoritários esbarram na falta de in-
centivos à cooperação por parte de quem mais teria a contar. Na falta de
evidências concretas ou completas, o que se sabe apenas parcialmente é
preenchido com especulações plausíveis e ficcionais, como diz Kucinski
em K.

6. Efeitos da ficção e da anistia brasileira

No dia 17 de abril de 2014, a Congregação do Instituto de Química da


USP decidiu, por unanimidade, revogar a demissão da docente Ana Rosa
Kucinski, que teria abandonado, sem justificava, seu trabalho como pro-
fessora e pesquisadora deste Instituto há 40 anos. O processo foi revisto
e uma decisão inédita foi tomada.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 49-67 | jan.-abr. 2015 63


K., relato de uma busca: autoficção e efeitos políticos

Notas
1 Podemos relacionar os efeitos jurídicos de expor a vida de outra pessoa com
o debate atual sobre as biografias não autorizadas. Entretanto, na autoficção,
tal efeito é amenizado por seu caráter fictício. Em 2014, artistas integrantes
do grupo Procure Saber, tais como Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Chico
Buarque, Caetano Veloso, Djavan, defenderam o direito à privacidade por meio
da autorização prévia a biografias. Segundo os artigos 20 e 21 do Código Civil
(BRASIL, 2002), é proibida a publicação de informações pessoais de qualquer
cidadão em casos que “atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade,
ou se se destinarem a fins comerciais”. Há dois casos famosos de censura
de biografias não autorizadas no Brasil, o da biografia Roberto Carlos em
detalhes, de Paulo Cesar de Araújo; e o da biografia de Daniella Perez escrita
por Guilherme de Pádua, seu assassino (que já cumpriu a pena e está livre).
A questão é considerada polêmica porque, de um lado, temos os artistas
querendo o direito de preservar a vida pessoal (“Pensei que o Roberto Carlos
tivesse o direito de preservar sua vida pessoal. Parece que não” (BUARQUE,
2013) e, de outro, temos uma série de jornalistas e biógrafos, principalmente,
alegando a liberdade de expressão conquistada a duras penas (inclusive pelos
próprios Chico Buarque e Caetano Veloso na época da ditadura militar) e o
retrocesso que é censurar as biografias. Vale lembrar que Paulo César de Araújo
lançou, finalmente, o livro O réu e o rei, em 2014.

2 Não nos estenderemos, aqui, na reflexão sobre O que é isso, companheiro?,


porque o objetivo desse artigo não é uma leitura comparativista entre as obras.
A intenção é mostrar que um livro-denúncia publicado hoje, numa sociedade
democrática, que conquistou a liberdade de expressão e a liberdade de
imprensa, não se compara com um livro-denúncia publicado em um momento
de transição política, em que os riscos de censura e repressão são inigualáveis.

3 Expressão proposta por Hélène Jaccomard (1993) em Lecteur et lecture dans


l’autobiographie française contemporaine: Violette Leduc, Françoise d’Eaubonne,
Serge Doubrovsky, Marguerite Yourcenar.

4 Segundo Serge Doubrovsky (1977), a autoficção é “ficção, de acontecimentos


e fatos estritamente reais”.

5 Esta é uma expressão utilizada pela teórica norte-americana Dorrit


Cohn (1978) no livro Transparent minds: Narrative modes for presenting
consciousness in fiction, em que a autora mostra as técnicas utilizadas, no
âmbito da narratologia, para “transparecer a mente” da personagem.

6 1981; vencedor do Prêmio Jabuti de Romance, em 1982.

7 Trata-se da elaboração psicológica (ou perlaboração), expressão utilizada


por Freud para designar o trabalho de integração das experiências vividas ao
mundo mental. Em “Recordar, repetir e elaborar (novas recomendações sobre
a técnica da psicanálise II)”, artigo de 1914, Freud explica que a elaboração é
um processo lento e trabalhoso de transformação, e que a experiência se torna
traumática ao não ser elaborada (FREUD, 1996).

64 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 49-67 | jan.-abr. 2015


Anna Faedrich, Renato Lima e Jacques Fux

8 No original: Autofiction, c’est la fiction que j’ai décidé, en tant qu’écrivain, de


me donner de moi-même et par moi-même, en y incorporant, au sens plein du
terme, l’expérience de l’analyse, non point seulement dans la thématique, mais
dans la production du texte.

9 No original: “[...] à savoir les ressources du domaine consonantique substituées


à l’ordre syntaxique et discursif traditionnel, pour tenter d’élaborer non une
écriture de l’inconscient (qui n’en a sans doute pas), mais pour l’inconscient (ce
que s’efforce de faire, sans bien le savoir, l’écriture analytique elle-même, depuis
qu’elle existe)”.

10 No original: L’experience de la psychanalyse, possible seulement depuis Freud,


est bien le premier effort ou effet de rupture par rapport au dilemme classique
d’une autoconnaissance coupée d’elle-même en sa dimension de l’autre, puisque
c’est de l’écoute de l’autre que la vérité revient (advient) dans le discours où le
sujet tâche à se saisir.

11 No original: Névroses de l’individu contemporain et écriture autofictionnelle:


le cas Fils. Renard, na época da publicação, era doutoranda em Ciência Política na
Paris II e na EHESS (École de Hutes Études en Sciences Sociales).

12 No original: L’écriture de la cure analytique exprimerait grâce à l’autofiction


l’inconscient de l’auteur/narrateur. La psychanalyse ayant battu en brèche la
notion d’identité personnelle qui fonde traditionnellement l’écriture du «moi»,
l’ambition de l’autofiction consiste à renouveler le genre autobiographique. Or
tout en instituant une écriture de l’inconscient, «postanalytique», Doubrovsky
tient un discours sur la portée socio-culturelle de son œuvre. L’autofiction
littéraire révèlerait les évolutions d’un individu contemporain à l’identité
équivoque.

13 Termo alemão que significa espírito da época, espírito do tempo ou sinal


dos tempos. O Zeitgeist significa, em suma, o conjunto do clima intelectual e
cultural do mundo, numa certa época, ou as características genéricas de um
determinado período de tempo.

14 Tradução nossa. No original: L’esprit du temps est le produit aussi bien d’un
genre littéraire informé par les mutations sociales que des mutations sociales
informées par la production littéraire.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 49-67 | jan.-abr. 2015 65


K., relato de uma busca: autoficção e efeitos políticos

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VOLTAR Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 49-67 | jan.-abr. 2015 67


Ana Lúcia Kassouf

Contribuições da experiência
internacional ao gerenciamento
das rendas do petróleo do
pré-sal brasileiro*

Beni Trojbicz

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015 69


Beni Trojbicz**
Economista formado pela Universidade de São Paulo, MBA
pelo INSEAD (França), mestre e doutor em Administração
Pública e Governo pela Fundação Getulio Vargas (EAESP-
FGV). Atualmente é pesquisador pós-doutor do Centro de
Política e Economia do Setor Público da Fundação Getulio
Vargas (CEPESP-FGV). Atua principalmente nas áreas de
Economia Política e Políticas Públicas, com foco no setor
de Petróleo.

* Versão modificada de trabalho apresentado no 8º Encontro da Associação Brasileira


de Ciência Política, em Gramado 2012 (beneficiada pelas contribuições recebidas acerca
das formulações iniciais, em 2013).

** O autor gostaria de agradecer à Fapesp pelo apoio financeiro na forma de bolsa de


doutorado e pós-doutorado.

70
Resumo
Em seu discurso de posse, Dilma Rousseff se referiu ao
pré-sal como fonte de recursos que seria utilizada para
financiar melhora dos serviços públicos, redução da pobreza
e conservação do meio ambiente, indicando nova orientação
atribuída às políticas de desenvolvimento econômico e seus
vínculos com o bem-estar social. Não é trivial o gerenciamento
das rendas minerais, sendo abundante na literatura a referência
à “maldição dos recursos naturais”– presença de resultados
negativos acompanhando sua exploração, do ponto de vista
econômico, político e social. Existem muitas experiências de
gerenciamento das rendas minerais, com diferentes resultados
e possíveis aprendizados para o caso do pré-sal brasileiro. Esse
trabalho vai apresentar experiências internacionais relevantes,
focando a perspectiva política e institucional, e em seguida as
implicações para a experiência brasileira.

Palavras-chave: Política comparada. Petróleo. Pré-sal. Rendas


minerais.

Abstract
In her inaugural address, President Dilma Rousseff referred to
the pre-salt oil as a source of resources that would be used to
finance public services improvement, poverty reduction, and
environmental conservation, indicating a new orientation given
to economic development policies and its links with the social
welfare. Management of mineral revenues is not trivial, with
plenty of reference in the literature on the “resource curse” – the
presence of negative economic, political, and social results following
its exploitation. There are many international experiences in
natural resources management, with different results and possible
apprenticeships for the Brazilian pre-salt case. This paper will present
relevant international experience, focusing on the political and
institutional perspective, followed by the implications to the Brazilian
experience.

Keywords: Comparative politics. Oil. Pre-salt. Mineral Rents.

71
Contribuições da experiência internacional ao gerenciamento das rendas do petróleo do pré-sal brasileiro

Introdução
A descoberta de maciças reservas de petróleo no pré-sal1 brasileiro desen­
cadeou processo de reforma do marco regulatório do petróleo para ex-
plorar essa riqueza. A então ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff,
cuja carreira originou-se no setor energético e que havia recentemente
ocupado o cargo de ministra das Minas e Energia, foi artífice dessa mu-
dança e a ela pode-se atribuir parte importante da responsabilidade pela
legislação aprovada em 2010. Já como presidente, em seu discurso de
posse, ela se referiu ao pré-sal como fonte de recursos que seria utilizada
para financiar melhora dos serviços públicos, redução da pobreza, con-
servação do meio ambiente e geração de poupança de longo prazo:

O meu governo terá a responsabilidade de transformar a enorme riqueza


obtida no pré-sal em poupança de longo prazo, capaz de fornecer às atu-
ais e às futuras gerações a melhor parcela dessa riqueza, transformada,
ao longo do tempo, em investimentos efetivos na qualidade dos serviços
públicos, na redução da pobreza e na valorização do meio ambiente. Re-
cusaremos o gasto apressado, que reserva às futuras gerações apenas as
dívidas e a desesperança (ROUSSEFF, 2011).

Ideologia socialdemocrata encontra-se subjacente ao discurso, uma vez


que o ponto de partida implícito é a distribuição social dos resultados do
crescimento econômico. Como indica Przeworski (1991), na socialdemo-
cracia o Estado não busca controle dos meios de produção, mas sim ga-
rante que resultados do crescimento econômico têm distribuição social.

Dentro da tradição brasileira, esse modelo indica nova orientação atri-


buída às políticas de desenvolvimento econômico e seus vínculos com o
bem-estar social. Tal orientação tem origem na posição fundamental dos
direitos sociais indicada na Constituição de 1988 (DRAIBE, 2003), mas que
somente passam a ocupar posição central na agenda pública durante o
governo Lula (CUNHA; PINTO, 2008; HUNTER; POWER, 2007 apud PEDROTI,
2011). Diferenciando-se de maneira clara dos governos anteriores, pela
articulação entre desenvolvimento econômico e social (SINGER, 2009).

Não é trivial o gerenciamento das rendas minerais, sendo abundante na


literatura referência à “maldição dos recursos naturais”, isto é, a presença
de resultados negativos acompanhando sua exploração, tanto do ponto de
vista econômico, político e social. Na área econômica, o fenômeno da
“doen­ça holandesa” costuma ser o mais destacado. Ele implica a apreciação

72 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 69-93 | jan.-abr. 2015


Beni Trojbicz

do câmbio decorrente de maciça entrada de divisas originadas nas ren-


das minerais, que sobrevalorizam a taxa de câmbio local, tornando os
produtos de outros setores da economia pouco competitivos em relação
aos produtos estrangeiros, gerando atrofia. Do ponto de vista político, os
resultados negativos aparecem devido aos conflitos gerados pelos inte-
resses de diferentes grupos atraídos pelo alto valor de tais recursos e por
sua luta para apropriá-los privadamente. Finalmente, do ponto de vista
social, as rendas minerais tendem a aumentar a desigualdade existente,
ao privilegiar os grupos e regiões mais diretamente relacionados à ativi-
dade extrativista, prejudicando a coesão social (ASFAHA, 2012; HINOJOSA;
BEBBINGTON; BARRIENTOS, 2012; RIESCO, 2008; UNITED NATIONS RE-
SEARCH INSTITUTE FOR SOCIAL DEVELOPMENT, 2008, 2010).

Mas dentre os diferentes países que exploram suas riquezas naturais,


encontram-se resultados diversos, sendo que para alguns países, a “mal-
dição” não se manifesta. Uma ação importante para que não se incor-
ra no fenômeno é a neutralização da doença holandesa, para o que são
necessárias políticas macroeconômicas que desfaçam as pressões infla-
cionárias advindas do fluxo de moeda estrangeira, e que afetam a com-
petitividade da indústria (UNITED NATIONS RESEARCH INSTITUTE FOR
SOCIAL DEVELOPMENT, 2010 apud STÜRMER, 2008).

Uma vez que a doença holandesa seja neutralizada, ainda existe um


longo caminho para que os recursos gerados pela exploração das rique-
zas minerais sejam utilizados no desenvolvimento social. Governos não
necessariamente conseguem utilizar os recursos advindos das riquezas
naturais na indução do processo de crescimento econômico sustentado,
muito menos no crescimento acompanhado de distribuição equitativa
dos recursos para melhora do bem-estar geral dos cidadãos (UNITED
NATIONS RESEARCH INSTITUTE FOR SOCIAL DEVELOPMENT, 2010).

De forma geral, a existência de uma fonte de recursos substantiva au-


menta a possibilidade de conflitos entre atores sociais, já que é mais
provável que existam tentativas de apropriação privada desses recursos.
Um segundo elemento geral a ressaltar, é que uma entrada vultosa de
recursos, se não administrada de forma a gerar resultados equitativos
para a sociedade, tende a acentuar a desigualdade no país. Esse resulta-
do se deve ao fato de que, numa sociedade desigual, os grupos com mais
recursos, naturalmente terão acesso privilegiado às rendas minerais,

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 69-93 | jan.-abr. 2015 73


Contribuições da experiência internacional ao gerenciamento das rendas do petróleo do pré-sal brasileiro

acentuando as desigualdades já existentes. Ação específica do Estado no


sentido de garantir a distribuição equitativa pode atenuar ou até neutra-
lizar esse efeito.

O Estado de bem-estar (Welfare State)2 se encontra subjacente à presente


análise, motivando o estudo das rendas minerais pois estas são uma das
formas de seu financiamento.3 Nesse sentido, o marco teórico utilizado é o
conceito de “Estado de bem-estar desenvolvimentista” (DRAIBE, 2007), que
está apoiado em dois elementos importantes. O primeiro deles é a utiliza-
ção de abordagem integrada das políticas econômica e social, em que as

[...] políticas sociais são posicionadas em seus contextos político e eco-


nômico, com especial atenção aos vínculos entre desempenho macroe-
conômico e o objetivo fundamental de melhorar bem-estar, [...] buscando
explorar possibilidades de construção de nexo Estado-sociedade que seja de-
senvolvimentista, democrático e socialmente inclusivo, bem como sublinhan-
do o papel da política social em assegurar este objetivo (DRAIBE, 2007,
p. 2-3, grifos do autor).4

O segundo elemento é a perspectiva histórica utilizada na análise, em que


processos de transformação econômicos e sociais são tratados em pro-
fundidade e em períodos estendidos no tempo, visando reter sua com-
plexidade. Nesse sentido, a abordagem utilizada toma a política social
como ponto de partida, em contraposição a outras abordagens integradas
que partem da política econômica. Tal dinâmica implica radicalização do
argumento keynesiano, em que se orquestra mudança de direção para
interpelação concreta e histórica da análise da política social (DRAIBE,
2007, p. 2-3).

Tal referencial teórico está aqui embutido numa exposição de casos múl-
tiplos, em que os temas foram selecionados com base em dois objetivos.
O primeiro deles é apontar a diversidade de resultados existentes na ex-
periência internacional, elemento que também norteou a escolha dos
países a serem incluídos no estudo. O segundo objetivo diz respeito à de-
tecção de questões pertinentes ao caso brasileiro. A exposição dos casos
contém breve panorama histórico do país visando à criação de contexto
para a análise.

O artigo está estruturado da seguinte forma: após esta introdução, a pró-


xima parte do trabalho trata das experiências internacionais no geren-
ciamento das rendas minerais, seguida de avaliação de algumas dimen-

74 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 69-93 | jan.-abr. 2015


Beni Trojbicz

sões desse gerenciamento para o caso do pré-sal brasileiro. Uma última


parte conclui e sugere pesquisas adicionais, com base na avaliação do
caso brasileiro à luz da experiência internacional.

Experiência internacional

Como mencionado, os casos escolhidos buscam espelhar diversidade


de resultados presente na experiência internacional. Nesse sentido, um
primeiro critério foi inclusão de casos vistos como bem-sucedidos, mas
também aqueles cujos resultados não são tão positivos. Para representar
processos de sucesso, foram incluídos os casos da Noruega e Chile, em
que o caminho adotado tem matizes ideológicos distintos, respectiva-
mente socialdemocrata e liberal. A Indonésia representa modelo de ge-
renciamento efetivo do ponto de vista econômico, mas executado baixo
regime autocrático e sem distribuição social de seus resultados. A Ni-
géria é caso paradigmático sobre o potencial nocivo da abundância de
recursos naturais, enquanto o caso da Bolívia apresenta problemas polí-
ticos e sociais recentes, em contexto de distribuição social dos recursos.

Noruega5
A Noruega é caso paradigmático na utilização dos recursos advindos
da exploração das riquezas naturais, onde ao mesmo tempo em que a
exploração do petróleo foi acompanhada de políticas econômicas que
lograram neutralizar os efeitos da doença holandesa, os recursos auferi-
dos foram utilizados na promoção do bem-estar da sociedade de forma
universal.

O petróleo norueguês foi descoberto no mar do Norte nos anos 1960 e


a produção começou em 1973. Inicialmente, a exploração foi feita por
empresas estrangeiras. Durante os anos 1970, o envolvimento do Estado
norueguês aumentou, em grande parte por meio da criação da compa-
nhia de exploração e produção estatal Statoil.6

Entre o final dos anos 1970 e o começo dos anos 1980 houve grande au-
mento de consumo, acompanhado de superaquecimento da economia,
originados no aumento da cotação do petróleo. O aprendizado gerado
possibilitou amadurecimento da política fiscal, levando à constituição do
“Fundo do Petróleo”, posteriormente renomeado Government Petroleum

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 69-93 | jan.-abr. 2015 75


Contribuições da experiência internacional ao gerenciamento das rendas do petróleo do pré-sal brasileiro

Fund Global (GPF-G). Entre meados da década de 1980 e meados da déca-


da de 1990, outro aprendizado decorrente dos déficits da economia não-
petrolífera, que atingiu 9,5% do PIB não petrolífero, levou à criação de
regra fiscal que limita a utilização das receitas do petróleo depositadas
no fundo (GOBETTI, 2009).

Dois aspectos da experiência norueguesa serão apontados. Em primeiro


lugar, tratarei das inovações institucionais no gerenciamento financeiro
dos recursos das rendas minerais, em segundo lugar, abordarei o desen-
volvimento de políticas públicas visando atenuar os impactos do aumen-
to de importância do setor de petróleo sobre o emprego.

As duas inovações institucionais importantes no caso norueguês são a


criação do GPF-G e a regra estrutural que limita as transferências de re-
cursos do fundo para o orçamento. O GPF-G tem como objetivo garantir
o uso sustentado e transparente das receitas da exploração do petróleo,
e recebe todas as receitas de impostos e ganhos da propriedade pública
direta com a exploração do petróleo. Foi criado em 1990, mas o depósito
de valores foi iniciado somente em 1996, tendo acumulado desde então
recursos da ordem de U$ 400 bilhões, valor próximo do PIB norueguês. A
adoção do fundo teve três resultados positivos a serem ressaltados: a es-
tabilização macroeconômica, a continuidade de gasto social elevado, e a
equidade intergeracional (UNITED NATIONS RESEARCH INSTITUTE FOR
SOCIAL DEVELOPMENT, 2010).

Fundamental na estabilização macroeconômica, a utilização de fundos


no gerenciamento dos recursos de rendas minerais é elemento anticí-
clico e de combate à doença holandesa, pois amortece o fluxo de divisas
estrangeiras auferidas com a exportação do petróleo, que de outra ma-
neira gerariam desvalorização do câmbio e perda de competitividade do
produto nacional.

Do ponto de vista da estabilização das receitas para utilização em polí-


ticas sociais, os fundos regulam a volatilidade das receitas do petróleo,
permitindo que a utilização dos recursos em gastos públicos se desco-
necte dos ciclos econômicos. A utilização do patrimônio do fundo é fei-
ta por meio de transferência ao orçamento público anualmente, sendo
utilizados no financiamento de políticas públicas de caráter universal.
Como resultado, uma parte importante da riqueza gerada pelo petróleo é

76 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 69-93 | jan.-abr. 2015


Beni Trojbicz

transferida para os cidadãos noruegueses na forma de aumento do gasto


com bem-estar, ao invés de cortes nos impostos ou subsídios ao combus-
tível, que tendem a favorecer grupos de maior renda.

A equidade intergeracional é decorrente da poupança de longo prazo


propiciada pela existência do fundo. O aprofundamento dessa caracte-
rística se deu em 2001, quando a transferência de recursos do fundo ao
orçamento público foi limitada a 4% do valor do fundo, tornando a utili-
zação de recursos inferior ao rendimento de longo prazo – então calcu-
lado em 4,25% ao ano. Dessa forma, o fundo ganhou sustentabilidade, e
gerações futuras poderão se beneficiar da riqueza mineral, mesmo que
tais recursos já tenham se exaurido.

O segundo aspecto da experiência norueguesa a ressaltar é a política de


emprego implantada concomitantemente às mudanças setoriais origi-
nadas no desenvolvimento da indústria do petróleo. Após a descoberta e
início da exploração do petróleo nos anos 1970, a Noruega sofre período
de rápida transição setorial, em que a coordenação do Estado sobre o
mercado de trabalho foi fundamental.

Períodos de transição setorial são momentos em que a participação re-


lativa de setores na economia se modifica, e implicam obsolescência da
capacitação profissional de parte da população, bem como do capital em-
pregado. No caso norueguês, houve um aumento do setor petrolífero, da
indústria relacionada ao petróleo e do setor de serviços públicos, mas um
declínio da participação de indústrias tradicionais de manufaturados e
de exportação – metais, pesca e silvicultura.

Esse declínio implicou diminuição do emprego para trabalhadores capa-


citados a atuar naquelas áreas de especialização, concomitantemente,
aumentou a demanda para atuação em setores para os quais os trabalha-
dores não possuíam capacitação.

As ações do governo nesse momento lograram gerar crescimento líquido


da participação da população adulta no mercado de trabalho, resultado
de ações orientadas à incorporação da mulher no mercado de trabalho,
mas também a movimentos para flexibilizar a jornada de trabalho.

Educação superior subsidiada para as mulheres nos anos 1960, aumento


da oferta de creches nos anos 1970, e provisão de cuidados para a terceira

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 69-93 | jan.-abr. 2015 77


Contribuições da experiência internacional ao gerenciamento das rendas do petróleo do pré-sal brasileiro

idade são exemplos de ações que incorporaram a força de trabalho femi-


nina ao mercado laboral, fazendo com que essa participação aumentasse
de 40% para 80% entre 1970 e 1990. Houve ainda, como resultado das
políticas de flexibilização do tempo de trabalho, aumento absoluto da
participação da população adulta no mercado de trabalho, de 65% para
80% entre 1970 e 2006.

Com relação ao efeito do aumento da demanda de serviços do setor pú-


blico, esse foi outro vetor de mudança setorial importante na composição
da mão de obra nacional, resultado da expansão do Estado de bem-estar,
e financiada pelos recursos adicionais das rendas minerais. Essa deman-
da adicional de pessoal para postos de serviços públicos foi suprida por
meio do aumento da escolaridade da população adulta, permitindo a ex-
pansão da provisão desses serviços sem efeitos colaterais de escassez de
mão de obra nos demais setores da economia.

O desempenho positivo do modelo de exploração de rendas minerais na


Noruega é explicado com base na forte governança democrática centrada
em representação política ampla com pesos e contramedidas na socie­dade
civil. Nesse sentido, a existência de burocracia funcional estabelecida,
além de setor industrial com sindicatos e associações patronais fortes, é
vista como fator explicativo desse bom resultado. Por outro lado, o siste-
ma parlamentarista favoreceu gasto redistributivo em programas univer-
sais, propiciando acumulação de capital humano, sendo que o sistema
político permitiu continuidade no gerenciamento das rendas minerais,
mesmo durante mudanças de governo (UNITED NATIONS RESEARCH
INSTITUTE FOR SOCIAL DEVELOPMENT, 2008).

Chile
O Chile apresenta experiência bem-sucedida na superação da “maldição
dos recursos naturais”, por meio de modelo ideológico liberal, apresen-
tando inovação institucional financeira de lógica similar à encontrada na
Noruega.

A exploração de minerais no Chile remonta à época colonial, o que intro-


duz dois elementos históricos de grande importância. O primeiro é que o
gerenciamento recente das rendas minerais foi condicionado pela longa
experiência acumulada, em que se destacam os ciclos de expansão e re-
tração de commodities, especialmente a queda do preço do nitrato7 após a

78 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 69-93 | jan.-abr. 2015


Beni Trojbicz

crise de 1929. O segundo elemento é a participação do capital externo na


exploração dos recursos minerais. O ciclo do nitrato foi promovido por
empreendedores ingleses, que detinham a propriedade dos recursos, en-
quanto o cobre inicialmente foi explorado por capitais norte-americanos,
suscitando questionamentos sobre a estrutura de propriedade em indús-
tria estratégica, com estilo de exploração de enclave, de baixa contribui-
ção para a economia do país (GUAJARDO, 2012).

Nesse sentido, a preocupação com a apropriação estrangeira excessiva


sobre as rendas do cobre motivou transformações importantes no geren-
ciamento das atividades de mineração. Em 1955 a política “Nuevo Trato”
garantiu pagamento de renda mínima ao Estado sobre exploração do co-
bre, bem como criação de burocracia específica para fiscalização do setor,
o Departamento del Cobre. Em 1969, a “Chilenização do Cobre” aprofun-
dou a participação do Estado na exploração da mineração, determinou a
obrigatoriedade de associação minoritária das companhias exploradoras
estrangeiras ao Estado chileno e passou para o Estado o controle do mar­
keting e venda do cobre. Em 1971, a nacionalização do cobre é aprovada
pelo parlamento, por meio de reforma constitucional. No governo militar,
iniciado com o golpe que derrubou Salvador Allende em 1973, a minera-
ção foi objeto de disputa entre as correntes nacionalistas e liberais das
forças armadas. Apesar da ampla privatização das empresas estatais im-
posta pela ala liberal dos militares, os nacionalistas lograram manter o
controle estatal sobre a mineração pela Codelco (Corporación Nacional
del Cobre).8 Sem privatizar a Codelco, o avanço dos liberais na legislação
da mineração se deu pela privatização das propriedades de mineração,
por meio da Lei 18.097/81, que permitiu que empresas estrangeiras vol-
tassem a operar no Chile, estabelecendo marco de referência que acele-
rou o desenvolvimento da mineração no país (GUAJARDO, 2012) .

Dentro desse contexto, também no Chile foram implantadas inovações


institucionais decorrentes da necessidade de gerenciamento das rendas
minerais, em que se encontram ações anticíclicas e intergeracionais. As
inovações mencionadas são a Regra de Equilíbrio Estrutural (REE) e a Lei
de Responsabilidade Fiscal (LRF).

Em 2001 foi adotada a REE, política de equilíbrio estrutural com meta de


superávit de 1% do PIB. A REE relaciona gasto governamental a condições
econômicas de médio e longo prazo, buscando isolar o efeito cíclico de

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 69-93 | jan.-abr. 2015 79


Contribuições da experiência internacional ao gerenciamento das rendas do petróleo do pré-sal brasileiro

três variáveis macroeconômicas de grande influência na determinação


das receitas do governo: a atividade econômica, os preços do cobre e do
molibdênio.9 Essa regra indica o equilíbrio orçamentário caso os três in-
dicadores estejam em nível de médio prazo, consistindo na utilização
da projeção desses indicadores na determinação da “receita estrutural”
– definida como receita governamental caso o PIB e os preços do cobre e
molibdênio estivessem em seu nível de médio prazo. Os gastos governa-
mentais são calculados de forma que, diminuídos da “receita estrutural”,
se incorra em superávit de 1% do PIB (VELASCO et al., 2007). A REE foi
utilizada com sucesso na proteção da economia em face das oscilações
econômicas originadas na crise de 2008 (ORGANISATON FOR ECONOMIC
CO-OPERATION AND DEVELOPMENT, 2012).

Enquanto a REE regula o fluxo fiscal buscando gerar ação anticíclica, a


Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) regula tais fluxos por meio da cria-
ção de regras e instituições para administração dos ativos resultantes.
Tido como o segundo pilar da institucionalização da política fiscal chi-
lena, a LRF foi gerada em 2006. Dentre os principais elementos de inte-
resse da LRF, estão o Fundo de Reserva da Previdência (FRP) e o Fundo
de Estabilização Econômica e Social (FEES). O FRP foi criado para garan-
tir assistência e previdência mínima, em que se estabeleceu um apor-
te anual ao FRP equivalente ao superávit efetivo do ano anterior. Já o
FEES foi criado visando isolar o gasto público de situações de grande
expansão ou recessão econômica, acumulando os superávits existentes
(VELASCO et al., 2007).

Vale sublinhar que, se no caso norueguês todas as receitas auferidas com


a exploração do petróleo são direcionadas ao fundo, e somente seus ren-
dimentos são transferidos para o orçamento público, no caso chileno os
recursos advindos da exploração mineral são diretamente utilizados no
orçamento nacional, sendo retida somente parte desses recursos, que se
transformam em reserva para utilização em períodos de menor ativida-
de econômica.

Essa inovação institucional proporcionou vários benefícios para o Chile,10


mas que não enfatizam a área social como no caso norueguês. No entan-
to, se observa que o manejo das riquezas minerais no Chile teve um efeito
positivo na política social do país, ainda que sem ênfase universalista.

80 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 69-93 | jan.-abr. 2015


Beni Trojbicz

Manuel Riesco (2008) aponta alguns aspectos negativos da estratégia


chilena de exploração de riquezas minerais, advogando a retenção e
maximização dos recursos advindos de riquezas minerais para o desen-
volvimento social do país. Em sua crítica, o autor aponta que políticas
tributárias deficientes possibilitaram que agentes privados, principal-
mente companhias estrangeiras, apropriassem a maior parte das rendas
minerais. Adicionalmente, os incentivos dispensados aos investimentos
extrativistas geraram distorções na alocação de recursos e prejudicaram
economia e receitas federais. Riesco ainda aponta que medidas correti-
vas foram tomadas com a implantação de um imposto especial sobre a
mineração, que apesar de haver gerado um bilhão de dólares adicionais
à arrecadação do setor, ainda seria insuficiente quando comparado aos
lucros que mineradoras obtêm no Chile. Segundo Riesco (2008), a ade-
quação do nível de impostos entre as mineradoras públicas e privadas
poderia gerar recursos que permitiriam ao Estado chileno aumentar seu
gasto social em mais de dois terços do valor atual.

Em contraste com os casos chileno e norueguês, os casos nigeriano e indo-


nésio apresentam novos matizes sobre as dificuldades advindas da exis-
tência de riquezas minerais abundantes, em que se percebe a importância
do contexto histórico para entender a situação específica de cada país.

Indonésia11
No caso da Indonésia, se observa que o país logrou utilizar os recursos
da exploração mineral para gerar desenvolvimento econômico, mas esse
desenvolvimento não se refletiu em uma melhora significativa do bem-
estar social. Níveis altos de corrupção, orientação econômica pró-mer-
cado e um governo autoritário explicam parcialmente esse resultado.
Ainda assim, a Indonésia é considerada caso bem-sucedido no que diz
respeito a resultados econômicos da exploração dos recursos minerais.

Entre os anos 1970 e os anos 2000, a Indonésia fez transição de país de


baixa renda para país de renda média. Bom gerenciamento econômico
conseguiu manter a produção agrícola concomitante ao desenvolvimen-
to de setor industrial competitivo. Como resultado, houve diminuição de
dependência da exportação de matérias-primas e utilização de parcela
significativa das rendas minerais para agricultura, infraestrutura e ser-
viços sociais.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 69-93 | jan.-abr. 2015 81


Contribuições da experiência internacional ao gerenciamento das rendas do petróleo do pré-sal brasileiro

A Indonésia evitou a doença holandesa ao desvalorizar a taxa de câmbio


em resposta à alta na cotação do petróleo, protegendo a competitividade
nacional. O investimento de parte importante dos recursos recebidos no
exterior foi responsável em grande medida pela contenção da inflação e
consumo, possibilitando uma taxa de poupança doméstica de 30%.

O governo autoritário de Suharto foi responsável pela estratégia de ge-


renciamento das rendas minerais, utilizando instituições de exploração
do petróleo fracas, contrabalançadas por uma tradição de instituições
fortes a nível central, especificamente para política econômica, finanças
e planejamento.

No período pós-Suharto (1998), desenvolveu-se estratégia de canalizar


recursos para serviços sociais por meio de políticas de descentralização,
visando diminuir a corrupção, bastante difundida, e a influência dos par-
tidários de Suharto. Essa política de descentralização permitiu introduzir
políticas de transferências monetárias, financiadas com a eliminação de
subsídios aos combustíveis, que teve boa aceitação por parte da socieda-
de. Em 2005, essas transferências monetárias chegaram a 19 milhões de
famílias carentes, enquanto os preços dos combustíveis dobraram, sem
gerar distúrbios sociais (UNITED NATIONS RESEARCH INSTITUTE FOR
SOCIAL DEVELOPMENT, 2008, p. 17-18).

No entanto, o desenvolvimento social da Indonésia é pior que de outros


países da região, mesmo considerando a relativa riqueza do país. No se-
tor da saúde, são exemplos as políticas de vacinação deficientes e falta
de pessoal. Na área da educação, apesar da bem-sucedida inclusão de
crianças na pré-escola, não houve sucesso no aumento de matrícula na
educação secundária. Esforços para melhorar os níveis de educação não
foram apoiados por aumentos de orçamento. Existem bons resultados
no combate à pobreza, com a diminuição das pessoas vivendo com me-
nos de um dólar por dia de 17,4% em 1993 para 7,5% em 2002, sendo que
são indicados progressos com gasto público em educação e saúde desde
2006/2007.

Nigéria12
A Nigéria oferece um caso fascinante sobre utilização de riquezas mine-
rais no desenvolvimento social, com grande variabilidade nas políticas
ao longo do tempo.

82 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 69-93 | jan.-abr. 2015


Beni Trojbicz

Na história recente da Nigéria existem dois períodos com desenvolvi-


mento das áreas social e econômica de forma articulada. O primeiro
período vai de 1955 a 1960, durante o 1º Plano de desenvolvimento do
governo da Nigéria Ocidental, o qual se concentrava em capital humano,
infraestrutura, apoio à produção agrícola e diversificação da economia.
Esse período mostra um compromisso normativo com o desenvolvimen-
to social, aliado à política fiscal conservadora e administração pública de
alta qualidade. Após a guerra civil (1967-1970) se inicia o segundo período
de desenvolvimento econômico-social articulado: o 2º Plano Nacional de
Desenvolvimento (1970 a 1974) tinha na política social instrumento para
promoção de desenvolvimento de senso de identidade nacional e coesão
social. Essa política social foi financiada em grande medida com recursos
originados da exploração de recursos naturais: agrícolas e hidrocarbone-
tos. A ênfase nesse período foi em políticas de educação e saúde, eviden-
ciando as dimensões produtivas e redistributivas da política social. As
ações de política sociais universais desse período incluem o programa
de educação primária universal e ensino superior gratuito. Através dessa
ação, se atingiu um investimento em educação da ordem de 6% do PIB
em 1980, sendo que a saúde apresentou expansão similar.

Durante o 3o Plano Nacional de Desenvolvimento (1975-1980), o salto do


preço do petróleo aumentou as receitas do Estado em sete vezes. Esse pe-
ríodo evidencia as dificuldades políticas e institucionais relativas à “mal-
dição”, já que o aumento das receitas levou a agravamento substantivo
de corrupção, que, aliada à péssima gestão das receitas adicionais, não
permitiu utilização desses recursos para desenvolvimento econômico e
social. A inexistência de políticas anticíclicas deixou o país vulnerável à
posterior queda da cotação do petróleo, que levou a Nigéria a grave crise
econômica.

No período subsequente, entre 1980 e 1985, se iniciou transição para po-


líticas pró-mercado, com lançamento de programa de estabilização em
1982, que visava diminuir a dependência do petróleo. Essa política se
concentrou em uma retração do gasto público, racionamento de crédito
e divisas externas e um programa de liberalização da economia. Após
1985, houve aprofundamento da agenda de reforma neoliberal, que le-
vou à decadência institucional e à erosão da confiança e coesão social,
sem solucionar a dependência dos recursos da exploração do petróleo.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 69-93 | jan.-abr. 2015 83


Contribuições da experiência internacional ao gerenciamento das rendas do petróleo do pré-sal brasileiro

O marco de políticas sociais universais, desenvolvido nos anos 1970, foi


enfraquecido no período de estabilização, desaparecendo no regime de
liberalização. Para que se tenha ideia do impacto dos cortes no gasto
público após 1982, o gasto com educação passou de 6% do PIB em 1980
para 0,65% do PIB em 1995. Posteriormente, a diminuição na qualidade
do serviço foi usada com argumento para defender a transição para a
provisão privada. Houve também queda nos indicadores de desenvol-
vimento humano, e aumento da pobreza de 28% em 1980 para 66% em
1996 (UNITED NATIONS RESEARCH INSTITUTE FOR SOCIAL DEVELOP-
MENT, 2008, p. 17-19).

Bolívia
O caso boliviano mostra a utilização de recursos minerais em ambiente
pouco estável, em que dividendos gerados pela participação estatal em
empresas de energia financiavam o sistema de pensão isento de contri-
buição, dirigido aos idosos: o Bono Solidário ou Bonosol.

Com a renacionalização das empresas de petróleo e gás em 2006,13 em-


presas privadas foram obrigadas a assinar novos contratos de exploração
com o governo boliviano, prejudicando o financiamento do Bonosol, que
levou à substituição deste em 2007 pelo Renta Dignidad, novo fundo de
pensão universal. O financiamento do Renta Dignidad se baseou em im-
postos diretos preexistentes sobre hidrocarbonetos, também utilizados
para políticas redistributivas para as regiões mais pobres, grupos indíge-
nas, comunidades agrícolas, universidades e outras instituições públicas.

O redirecionamento dos recursos provocou grande resistência dos que ti-


veram seus rendimentos diminuídos, em especial as regiões governadas
pela oposição ao presidente Evo Morales. Em agosto de 2008, em virtude
do aumento dos preços internacionais do gás natural, foi decidido au-
mentar o valor anual da pensão, o que aumentou a tensão entre o gover-
no e grupos anteriormente beneficiários desse imposto.

Esse processo ilustra os conflitos originados nas políticas redistri-


butivas, mas ilustra também a fragilidade de um modelo que apoia
programas de bem-estar em rendas minerais, devido à volatilidade
dessas receitas. A volatilidade se exacerbou no caso boliviano pelo
recente declínio de exportações e preços do gás natural, diminuin-
do a renda mineral recebida e colocando em perigo o financiamento

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Beni Trojbicz

do sistema de pensões (UNITED NATIONS RESEARCH INSTITUTE FOR


SOCIAL DEVELOPMENT, 2010).

Elemento adicional a ser considerado é a forte pressão para utilização


imediata dos recursos advindos da exploração das riquezas minerais,
dada necessidade de aliviar condições precárias em que vive grande par-
te da população. Isso ocorre especialmente se a plataforma pela qual se
elegeram os governantes explicita a redistribuição de renda, o que gera
pressão que pode levar a conflito social e político (UNITED NATIONS RE-
SEARCH INSTITUTE FOR SOCIAL DEVELOPMENT, 2010).

Resumo dos casos

O Quadro 1 apresenta os principais elementos dos casos apresentados


recortados por variáveis econômicas ou sociais e políticas. Nas questões
econômicas destacam-se questões relacionadas à doença holandesa e
variabilidade das receitas das rendas minerais. No âmbito social e políti-
co se destacam questões redistributivas.

QUADRO 1 – Resumo dos principais elementos dos casos.

País Variáveis econômicas Variáveis sociais e políticas

Controle da doença holandesa com inovação institucional de criação


de fundo

Noruega Não existe problema de dependência dos recursos minerais Redistribuição social dos recursos
Políticas anticíclicas
Política de emprego visando coordenar mudanças setoriais

Controle da doença holandesa com inovação institucional de nível de


renda de médio prazo
Melhora na qualidade de vida da população,
Chile
Solução parcial do problema da dependência de recursos naturais mas sem vínculo direto com políticas sociais
Políticas anticíclicas

Controle da doença holandesa com investimentos dos recursos no


Governo autoritário até 1998
exterior
Indonésia Corrupção
Solução parcial do problema da dependência de recursos naturais
Redistribuição só iniciada recentemente
Não existe menção a politicas anticíclicas

Dependência do petróleo indica subdesenvolvimento de outros setores Inicialmente processo de redistribuição,


da economia, doença holandesa processo de liberalização da economia levou
Nigéria à captura dos recursos por grupos privados
Dependência das riquezas minerais
Abundância de recursos levou a aumento
Sem políticas anticíclicas da corrupção

Subdesenvolvimento de outros setores da economia, doença holandesa Políticas redistributivas


Bolívia Dependência das riquezas minerais Fragilidade nas questões econômicas impede
Sem políticas anticíclicas continuidade das políticas redistributivas

Fonte: Elaborado pelo autor.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 69-93 | jan.-abr. 2015 85


Contribuições da experiência internacional ao gerenciamento das rendas do petróleo do pré-sal brasileiro

Como a experiência internacional pode contribuir para


o caso brasileiro?

Com base nos elementos apontados nos casos internacionais, foram es-
colhidos dois temas para discussão no contexto do caso brasileiro: a cria-
ção de fundos de poupança ou estabilização e a atuação do Estado sobre
a política de emprego, visando amortecer os efeitos da mudança setorial
originada na ascensão da atividade relacionada ao petróleo.

Criação de fundos de poupança ou estabilização

A criação de fundos de poupança ou estabilização engloba três questões


inter-relacionadas: a estabilização macroeconômica, o financiamento de
políticas públicas e a equidade intergeracional. Essa última é resultado
da capacidade de criar poupança de longo prazo para as gerações futuras
e está sujeita à pressão por utilização imediata dos recursos. No caso
brasileiro, ela também introduz elementos da disputa federativa.

No caso norueguês em maior medida, mas também no caso chileno, se


observa utilização bem-sucedida de fundos, visando amortecer dese-
quilíbrios macroeconômicos, criar justiça intergeracional e gerar fluxos
contínuos de recursos para políticas públicas. Por outro lado, o caso bo-
liviano mostra efeitos da pressão da população pela utilização imediata
das receitas das rendas minerais. Vale ressaltar que a criação de fundos
não é garantia de sucesso nos objetivos mencionados. Fundos podem ser
criados, mas a aderência às regras depende da manutenção do compro-
misso governamental.

No Brasil, houve criação do Fundo Social do Pré-Sal (FS), por meio da Lei
nº 12.351/2010, depois modificada pela Lei nº 12.858 de 9 de setembro de
2013. Essa última responde a pressões da população por melhoras nos
serviços públicos e estabelece destinação determinada para royalties e
participação especial de todos os entes federativos: 75% para gastos com
educação e 25% para gastos com saúde. Além disso, indicou utilização
imediata de 50% dos recursos do FS para a educação.

A Lei nº 12.858/2013 cria condicionantes à lei de 2010, com impactos


diversos sobre a efetividade dos objetivos originais do FS. Em primeiro

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Beni Trojbicz

lugar, afeta negativamente a capacidade do governo de combater flutua-


ções macroeconômicas. Na lei de 2010, o desenho das fontes de recursos
para o FS indica que a maior fonte de recursos será originada na parti-
cipação do Estado no petróleo físico extraído sob regime de partilha,14 o
que é denominado profit oil. Dadas as características do regime de parti-
lha, não é esperado fluxo importante de recursos originados no profit oil a
curto e médio prazo.15 Por outro lado, existe grande estoque de contratos
celebrados sob regime de concessão,16 inclusive em áreas do pré-sal. Nes-
ses contratos, a receita do Estado se origina principalmente no pagamen-
to de royalties e participação especial, que devem ingressar na economia
de forma direta, o que pode gerar desequilíbrios macroeconômicos. Com
a lei de 2013, determinou-se uso imediato de 50% dos recursos do FS, o
que impacta a já baixa capacidade de controle das flutuações macroeco-
nômicas do governo central.

A segunda questão inter-relacionada, a equidade intergeracional, apre-


senta matizes. Como mencionado, existe uma distinção sobre o fluxo de
recursos para o FS no curto e médio prazo. No curto prazo, a maior parte
das receitas recebidas pelo Estado brasileiro será originada nos royalties
e participação especial dos contratos de concessão. A parcela desses re-
cursos a ser destinada ao FS é de aproximadamente 20% das receitas dos
royalties, o que representa parcela minoritária destas receitas. No médio
prazo os contratos de partilha passaram a fornecer recursos mais gene-
rosos ao fundo, com o início do pagamento de profit oil. Nos dois casos,
somente metade dos recursos que ingressarem no FS constituirão pou-
pança de longo prazo.

No entanto, dada existência de significativas carências da população,


cabe questionar o que seria equidade intergeracional no caso brasileiro.
A literatura17 oferece vários modelos que tratam da definição de como
recursos podem ser distribuídos ao longo do tempo, indicando que tal
escolha é normativa (GOBETTI, 2009).

O modelo norueguês, que é chamado bird-in-hand, é o caso que mais fa-


vorece as gerações futuras, em detrimento das presentes, pois somente
rendimentos são utilizados. Em um país em que a população já goza de
excelente padrão de desenvolvimento humano, tal configuração não im-
plica manutenção de carências da população, o que o torna aceitável.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 69-93 | jan.-abr. 2015 87


Contribuições da experiência internacional ao gerenciamento das rendas do petróleo do pré-sal brasileiro

Outros modelos chamados de “modelos de renda permanente” apresen-


tam maior equilíbrio entre a utilização dos recursos pelas gerações atuais
e as gerações futuras, o que pode ser mais adequado à situação do Brasil.

Portanto, a promoção de equidade intergeracional é elemento polêmico,


pois é necessário balancear as carências da população no presente com
a exaustão das riquezas minerais futuras e, nesse sentido, parece que o
desenho da legislação brasileira logrou certo equilíbrio.

Em terceiro, com relação aos fluxos contínuos de recursos para políticas


públicas, a lei de 2013 foi um grande avanço, pois garante a utilização dos
recursos do petróleo para fins estritos de políticas públicas. No entanto,
essa lei não soluciona o problema da distribuição desigual dos recur-
sos entre estados e municípios da Federação. A distribuição federativa
atual dos recursos do petróleo obedece à legislação de 1985, que benefi-
cia estados e municípios confrontantes às explorações, principalmente
o estado do Rio de Janeiro e alguns de seus municípios litorâneos. Essa
questão tornou-se o centro dos debates legislativos durante o processo
de aprovação do marco regulatório de 2010, nos quais a maioria dos par-
lamentares apoiou nova distribuição dos recursos, com base no Fundo
de Participação dos Estados (FPE) e Fundo de Participação dos Municípios
(FPM). Esse processo incluiu dois vetos presidenciais, derrubados pelo
Parlamento. Atualmente, o processo encontra-se no Supremo Tribunal
Federal, no qual a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn), promo-
vida pelos estados atualmente mais beneficiados, aguarda julgamento.

A distribuição desigual dos recursos implica recursos acima dos neces-


sários para jurisdições mais beneficiadas pelo arranjo atual, enquanto
jurisdições menos beneficiadas recebem quantias irrisórias. Nesse sen-
tido, a destinação obrigatória para políticas de saúde e educação gera
solução desigual em termos regionais para o problema do financiamento
das políticas públicas.

Em suma, o FS apresenta deficiências com relação à sua capacidade de


amortecer desequilíbrios macroeconômicos, mas pode constituir fonte
de recursos estável para execução de políticas públicas, desde que se lo-
gre distribuição mais equitativa dessa riqueza entre os entes da fede-
ração. Em termos de equidade intergeracional, é certo que a criação de
poupança de longo prazo beneficiaria as gerações futuras, mas, dadas as

88 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 69-93 | jan.-abr. 2015


Beni Trojbicz

carências atuais, utilizar parte dessas receitas para aliviar essas carên-
cias parece acertado.

Política de emprego visando amortecer mudanças setoriais

O caso norueguês mostrou ações do Estado visando facilitar a adaptação


da força de trabalho às mudanças setoriais decorrentes da emergência
do setor do petróleo. Tais ações se mostraram importantes na manuten-
ção do emprego naquele país.

Já surgem sinais de estrangulamento na oferta de mão de obra para ati-


vidades relacionadas à exploração do petróleo no Brasil. Existem também
programas de qualificação financiados pela Petrobras, mas de caráter pon-
tual. Não se criou política ampla para antecipar as mudanças setoriais.

À luz da experiência norueguesa, é necessário avaliar as implicações do


contexto atual, em que se inclui o processo de expansão do setor primá-
rio e retração da indústria, visando criar política efetiva para tratar dos
desafios na economia do trabalho.

Considerações finais

As experiências internacionais apresentadas mostram grande varieda-


de nos resultados do desenvolvimento a partir de contextos históricos
e institucionais específicos. No entanto, alguns elementos podem ser
observados e avaliados, visando iluminar entendimento de aspectos es-
pecíficos do caso brasileiro. Nesse sentido, as experiências da Noruega e
do Chile são mais relevantes, apontando soluções concretas da estabi-
lização macroeconômica, equidade intergeracional e estabilidade do fi-
nanciamento de políticas públicas. O caso boliviano aponta dificuldades
na criação de poupança de longo prazo em contextos de carência social.
Finalmente, a experiência de intervenção estatal norueguesa, visando fa-
cilitar a mudança setorial, pode indicar necessidade de maior atenção a
este aspecto do contexto nacional atual.

A partir dos elementos expostos, poderiam desenvolver-se pesquisas


para aprofundar questões aqui apresentadas. Em primeiro lugar é neces-
sária uma avaliação da efetividade do FS enquanto elemento de estabi-

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 69-93 | jan.-abr. 2015 89


Contribuições da experiência internacional ao gerenciamento das rendas do petróleo do pré-sal brasileiro

lização macroeconômica, promotor de justiça intergeracional e financia-


dor de políticas públicas. Tal avaliação deve necessariamente levar em
consideração o aspecto federativo, elemento que não está presente nos
casos da Noruega e do Chile. Nesse sentido, recomenda-se fazer uma
análise de cenários para os recursos depositados no FS para maior clare-
za sobre implicações da política pública em seu formato atual.

Outro tema de interesse estaria no campo das políticas de emprego ne-


cessárias à coordenação de mudança setorial decorrente do aumento de
importância da indústria do petróleo no Brasil. Nesse sentido, se faz ne-
cessário inventário das ações empreendidas atualmente e sua adequa-
ção aos cenários futuros.

Notas
1 Camada geológica anterior à camada de sal, localizada na plataforma
continental brasileira, onde em 2006 foram descobertas reservas de petróleo e
gás natural que tornariam o Brasil um dos maiores produtores mundiais.

2 Nesse texto utilizo o termo “Estado de bem-estar” como sinônimo de políticas


sociais propositalmente. Apesar de controverso, não desenvolverei a discussão
aqui.

3 O Estado de bem-estar também pode ser financiado por impostos, previdência


social, ajuda externa e envio de trabalhadores nacionais no exterior (UNRISD,
2010).

4 Tradução livre do autor, itálicos presentes no original.

5 Esta seção se baseia fortemente em Mehlum, Moene e Torvik (2012).

6 Equivalente a Petrobras no Brasil.

7 O Chile era o único produtor mundial de nitrato, insumo que teve demanda
elevada em decorrência da aceleração da produção industrial europeia. Dada a
posição monopolista, o Chile usufruiu de alta lucratividade na atividade. Com
a invenção do nitrato sintético e a diminuição da atividade em decorrência da
crise de 1929, a demanda do nitrato teve diminuição brusca, com efeitos fiscais
profundos sobre a economia chilena. Entre 1880 e 1931, o nitrato foi responsável
por 42% das receitas governamentais, caindo para 14% entre 1932 e 1945
(GUAJARDO, 2012).

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Beni Trojbicz

8 A Codelco foi criada com a nacionalização do cobre, pelo agrupamento dos


ativos das empresas mineradoras estrangeiras, sendo de importância para o
governo tanto pela receita gerada como também pela influência econômica
sobre o país. Essa importância estratégica da Codelco para o governo é parte
da explicação da manutenção da empresa como estatal, mas houve influência
do posicionamento nacionalista de seus trabalhadores, que logrou mobilizar a
opinião pública contra a privatização.

9 Produto derivado da exploração do cobre.

10 “Benefícios da aplicação do conceito de equilíbrio estrutural mencionados:


implementação de política anticíclica; aumento de poupança pública durante
períodos de grande crescimento, permitindo evitar apreciação cambial e
manutenção da competitividade do setor exportador; redução da volatilidade
da taxa de juros; maior credibilidade do governo chileno como emissor de
dívida pública, levando à diminuição do risco soberano; melhora no acesso a
financiamento externo durante choques externos e menor contágio de crises
internacionais; redução da exigência financeira internacional; e melhora na
capacidade de planejamento de políticas sociais de longo prazo pela garantia
de sustentabilidade financeira” (UNRISD, 2008, p.14) – Tradução livre do autor.

11 Esta seção se baseia fortemente em Ascher (2012).

12 Esta seção se baseia fortemente em UNRISD (2008).

13 As empresas haviam sido privatizadas em 1990.

14 A Lei nº 12.351/2010 também instituiu o regime de partilha da produção para


as áreas de interesse estratégico como o Pré-Sal. Nesse regime, a empresa que
recebe a concessão para exploração incorre nos riscos da exploração, e
os recursos auferidos com a venda do petróleo são destinados primeiramente
a ressarcir os investimentos de exploração. O petróleo extraído nesse período é
denominado cost oil. Em seguida, o petróleo extraído passa a ser dividido entre
empresa concessionária e Estado na proporção estabelecida no contrato de
partilha. O petróleo extraído nesse período é denominado profit oil.

15 O primeiro contrato sob regime de partilha foi o campo de Libra, licitado em


outubro de 2013. Após a licitação, existe período de prospecção, recuperação de
custos de investimento do consórcio exploratório e criação de massa crítica de
recursos no FS.

16 Regime de exploração vigente quando da descoberta das jazidas do


pré-sal, instituído pela Lei do Petróleo (Lei 9.478/1997), em que a empresa
concessionária incorre nos riscos de exploração, pagando principalmente
royalties e participação especial como contrapartida ao Estado.

17 Para discussão mais aprofundada sobre modelos fiscais de utilização das


rendas minerais, ver Maliszewski (2009).

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 69-93 | jan.-abr. 2015 91


Contribuições da experiência internacional ao gerenciamento das rendas do petróleo do pré-sal brasileiro

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Governo representativo e
democratização: revendo o
debate1

Fernando Limongi

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Contribuições da experiência internacional ao gerenciamento das rendas do petróleo do pré-sal brasileiro

Fernando Limongi
Fernando Limongi é professor titular da Universidade de
São Paulo (USP) e pesquisador do Cebrap/CEM/Neci e
bolsista do CNPq. É coautor, com Argelina Figueiredo, de
Política orçamentária no presidencialismo de coalizão (Rio
de Janeiro, Editora FGV/Konrad Adenauer, 2008); Executivo
e legislativo na nova ordem constitucional (Rio de Janeiro,
Editora FGV/Fapesp 1999); e, com Adam Przeworski,
Michael Alvarez e José Antonio Cheibub, de Democracy
and Development: Political Institutions and Well-Being in
the World, 1950-1990 (New York: Cambridge University
Press, 2000).

96 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 69-93 | jan.-abr. 2015


Beni Trojbicz

Resumo
Este artigo propõe uma releitura do debate sobre a evolução
política do país. Partindo das teses que sustentam a inviabilidade
ou incompletude da democracia no Brasil, o artigo sugere uma
revisão da forma de entender o processo de democratização.
Trata-se de revisitar um velho debate cujas origens são traçadas
a interpretações clássicas como o de Victor Nunes Leal e Sérgio
Buarque de Holanda.

Palavras-chave: Democracia. Governo representativo. Direitos


civis. Direitos políticos.

Abstract
This paper proposes a new reading of the debate on the country’s
political evolution. Starting from the theses that support the infeasibility
or incompleteness of democracy in Brazil, this paper proposes a review
to understand the democratization process, addressing an old debate
originated with the classical interpretations of Nunes Leal and Sergio
Buarque de Holanda.

Keywords: Democracy. Representative government. Civil rights. Political


rights.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 69-93 | jan.-abr. 2015 97


Governo representativo e democratização: revendo o debate

Introdução1

A história política do Brasil pede uma revisão. A forma usual de recons-


tituí-la assume que a história política do país difere radicalmente da tra-
jetória seguida em países como a Inglaterra, França e Estados Unidos. A
herança colonial, a ausência de uma ruptura efetiva com o passado, é
uma variável chave nas interpretações canônicas sobre a evolução do go-
verno representativo e da democracia no país. Contudo, estudos recentes
sobre a evolução política europeia e norte-americana recomendam uma
revisão da forma usual de entendermos a evolução política do país. Este
é o objetivo deste trabalho.

O governo representativo falseado

Em seu clássico Coronelismo, enxada e voto, Victor Nunes Leal define seu
objeto de estudo da seguinte forma: “Concebemos o ‘coronelismo’ como o
resultado da superposição de formas desenvolvidas de governo represen-
tativo a uma estrutura econômica e social inadequada” (LEAL, 1975, p. 20).

Mais que inadequação, teríamos uma inviabilidade. O governo represen-


tativo não encontraria no Brasil a realidade social sobre a qual se assen-
tava em outros lugares.

A descrição realista das práticas eleitorais do país é um dos sustentácu-


los da análise do autor. No essencial, estas práticas teriam experimen-
tado pouca variação ao longo do primeiro século de vida independente
do país. As inúmeras reformas da legislação eleitoral feitas no Império e
na Primeira República não teriam tido chances de sucesso. O problema
fundamental residiria na ausência de um eleitorado que apresentasse
as condições exigidas para o funcionamento de um governo represen-
tativo. Não teríamos, de fato, eleitores, pelo menos não os exigidos para
um funcionamento efetivo do governo representativo. Sérgio Buarque de
Holanda argumenta que

Proclamadas com eloquência, e abraçadas aparentemente com sinceri-


dade, as doutrinas revolucionárias foram, assim, condicionadas no Brasil
a fatores que não existiam, ou existiram de maneira diferente, em seus
lugares de origem. [...] Mas se a derrocada do absolutismo e a afirma-
ção da independência ajudavam a remoção do obstáculo, o certo é que

98 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 95-125 | jan.-abr. 2015


Fernando Limongi

não poderiam, somente, suprir algumas lacunas sérias da organização


preexistente. [...] A mais notável, entre estas lacunas, era a inexistência
de uma numerosa camada social intermediária entre os grandes senho-
res e a parte ínfima da população livre, que pudesse fazer as vezes de
classe média. [...] Como entender, com efeito, um sistema representativo
digno desse nome onde faltava o elemento que em toda a parte vinha
constituindo o nervo das democracias? (HOLANDA, 1972, p. 80).

O contraste é claramente enunciado nestas duas formulações. Em certas


sociedades, observa-se a adequação entre a forma e a realidade, entre o
governo representativo e as práticas eleitorais. O Brasil é caracterizado ne-
gativamente, pelo que está faltando. A ausência do elemento fundamen-
tal sobre o qual se assentaria o governo representativo condiciona a sua
adaptação aos trópicos. Adequado na origem, inadequado em sua cópia.

A ausência, o que faltaria à sociedade brasileira, a tal camada intermediá­


ria numerosa, é o elemento central da caracterização. O latifúndio, her-
dado do período colonial, o obstáculo que a independência não remove,
gera a atrofia. O eleitor nacional típico, porque dependente do proprie-
tário de terra, não teria vontade autônoma a expressar. Votaria a mando,
expressando a vontade de seus superiores.

Destituído de eleitores capacitados, o país não poderia senão experimen-


tar uma versão falseada do governo representativo. Em suas versões mais
extremadas, estes argumentos sublinham o irrealismo de nossas elites
políticas, a falta de percepção destas sobre as condições sociais vigentes
no país. A insistência com que as elites nacionais teriam “importado”
os modelos políticos da Inglaterra, Estados Unidos e França seria a prova
de seu irrealismo.

A suposição fundamental deste tipo de visão é a de que em certos países


seriam observadas as condições sociais necessárias para o sucesso do go-
verno representativo. Por lá, haveria povo ou classe média, a matéria ne-
cessária para o funcionamento adequado do governo representativo. Au-
sentes estas condições, a cópia redundaria em farsa. As “formas desenvol-
vidas do governo representativo” não funcionariam porque fora de lugar.

Se assim for, isto é, se aceitarmos as premissas desta crítica, a história


institucional do Brasil não mereceria estudo. Para entender a evolução ins-
titucional do governo representativo, o correto seria estudar o que se
passou com o original. Nada de relevante teria tido lugar nestas plagas.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 95-125 | jan.-abr. 2015 99


Governo representativo e democratização: revendo o debate

A experiência do governo representativo no Brasil seria sempre e irre-


mediavelmente marcada pelo atraso, expresso de forma mais clara nas
práticas eleitorais viciadas, em que violência e fraude campeariam.

Nunes Leal, por exemplo, após revisar a evolução da legislação eleitoral


brasileira, conclui:

Através de todas essas tentativas, recebidas confiantemente por uns e,


com descrença ou pessimismo por outros, o mecanismo representativo
continuou a revelar deficiências, por vezes graves. [...] Sempre impressio-
nou aos espíritos mais lúcidos o artificialismo da representação, que era
de modo quase invariável maciçamente governista. Entretanto, a subsis-
tência de certos vícios exteriores ou formais, notadamente a insinceridade
da verificação de poderes [...] muito concorria para que se atribuíssem os
defeitos do nosso regime representativo a fatores de ordem puramente
ou predominantemente política. Por esse mesmo motivo, a atenção dos
observadores quase sempre se desviava dos fatores econômicos e sociais,
mais profundos, que eram e ainda são [1947], os maiores responsáveis
pelo governismo e, portanto, pelo falseamento intrínseco da nossa repre-
sentação (LEAL, 1973, p. 241).

A transformação da legislação eleitoral brasileira, portanto, teria pouco


interesse: pura reafirmação do “artificialismo”. As reformas feitas – e não
foram poucas – seriam apenas a prova do irrealismo de nossas elites,
reafirmando, a cada nova tentativa, a impossibilidade de implantação
de mecanismos representativos no país. Consequentemente, o debate
institucional nacional seria vazio porque descolado da realidade, por
não atacar o problema de fundo, a realidade social por detrás do voto de
cabresto.

Quando analisada, invariavelmente, a evolução da legislação eleitoral


brasileira tende a ser vista como a comprovação do elitismo arraigado
das nossas elites, de sua rejeição profunda a qualquer valor democrático,
expresso em uma constante negação de medidas que ampliassem a par-
ticipação popular. A aprovação da Lei Saraiva em 1881 seria a expressão
mais acabada deste reacionarismo.2 Como se sabe, esta lei levou a uma
drástica redução do direito ao voto, reduzindo-o a praticamente a 1% da
população do país.3

Frise-se a data: 1881. As elites brasileiras optaram por uma redução do


eleitorado no final do século XIX, no momento em que os países euro-
peus estariam caminhando na direção contrária. Por isto mesmo, quando

100 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 95-125 | jan.-abr. 2015


Fernando Limongi

analisa a legislação eleitoral do império, José Murilo de Carvalho (1988,


p. 140) afirma que “no que se refere à definição da cidadania, a evolução
da legislação foi uma involução”.4

O reacionarismo das elites políticas brasileiras não poderia ser maior e


mais completo, como mostrariam os debates parlamentares que acom-
panharam a discussão e a aprovação da Lei Saraiva. Os eleitores pobres
acabaram responsabilizados pelo desvirtuamento das práticas represen-
tativas. Para moralizar as eleições, esta a conclusão a que teria chegado
a elite governante brasileira, seria necessário afastar os pobres das elei-
ções, negar-lhes o direito a voto.

Seguindo esta linha de argumentação, a literatura recente tende a afir-


mar o caráter anômalo do desenvolvimento político brasileiro, sua diver-
gência em relação ao modelo ocidental clássico representado, por exem-
plo, no conhecido esquema proposto por T. H. Marshall para dar conta da
expansão da cidadania na Inglaterra. Neste tipo de análise, a ênfase recai
sobre a diferença, sobre a especificidade da experiência nacional cujo
resultado último seria uma democracia atrofiada e frágil.

Estas análises, em geral, carecem ou não são fundamentadas por um


modelo explicativo claro para a emergência do regime democrático. A
história política do Brasil continua caracterizada pela negativa, pela au-
sência, a partir de um contraste a um modelo de desenvolvimento po-
lítico modelar. A referência é a história política da Inglaterra, França e
Estados Unidos sem que estas sejam examinadas a fundo. Nas análises
recentes (CARVALHO, 2005; O´DONNEL, 2011; HOLSTON, 2013), o modelo
elaborado por T. H. Marshall para dar conta do caso inglês é tomado como
o padrão, enquanto o Brasil (ou de forma mais geral, a América Latina)
assume o papel do caso desviante.

Como afirma José Murilo de Carvalho (2003, p. 11), a sequência identifica-


da por Marshall é tanto histórica quanto lógica. O ponto de partida define
os degraus seguintes. Os direitos civis, cujo reconhecimento teria se dado
na Inglaterra no século XIX, anunciam os direitos políticos e os sociais.
Se todos os membros de uma comunidade política são iguais perante a
lei, isto significa que se assume que todos são dotados da capacidade de
tomar as decisões, de celebrar contratos, enfim de ser responsáveis pe-
los seus próprios atos. Reconhecida esta igualdade fundamental, então

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 95-125 | jan.-abr. 2015 101


Governo representativo e democratização: revendo o debate

é apenas um passo para aceitar que estes mesmos indivíduos têm ca-
pacidade para participar das decisões políticas. A extensão dos direitos
políticos, que viria no século XIX, não seria senão o reconhecimento das
consequên­cias do primeiro avanço. Tratar-se-ia de uma decorrência his-
tórica e lógica. O encadeamento entre um e outro seria necessário.

A relação entre os direitos políticos e sociais seria da mesma ordem. A


relação seria direta. Se o voto é estendido aos mais pobres, então um
governo que siga a vontade da maioria deve adotar políticas que visem
à promoção da igualdade. No mínimo, os mais pobres devem ser prote-
gidos dos azares do mercado. Se o governo com voto da maioria não o
fizer, então esta não é uma democracia efetiva, real. No máximo, pode ser
vista como uma democracia incompleta, atrofiada pela herança história:
a falta de uma ruptura com o passado no momento de implantação do
direito civil.

Dada a natureza da relação interna entre as fases da expansão da cidada-


nia, isto é, dado o caráter ao mesmo tempo histórico e lógico da evolução,
segue que o ponto de partida é o passo verdadeiramente fundamental,
do qual os demais são derivados. O ponto de partida define a trajetória
posterior. Como afirma David Held:

A cidadania civil constitui um passo significativo no desenvolvimento


dos direitos políticos; na medida em que o agente individual foi reconhe-
cido como uma pessoa autônoma – isto é, uma pessoa capaz de refletir e
de tomar decisões sobre as condições básicas da vida – foi mais fácil pen-
sar nessa pessoa como, em princípio, sendo capaz de responsabilidade
política (HELD, 1995, p. 67 apud O’DONNEL, 2011, p. 55).

Se, de fato, o direito civil anuncia sua transformação no século seguinte,


se esta pode ser deduzida daquela, então a democratização do sistema
político inglês não precisa ser investigada. Tratar-se-ia de uma mera con-
sequência. Nesta explicação, a verdadeira ruptura é a anterior, a afirma-
ção da cidadania civil, o reconhecimento da autonomia individual, da
capacidade de cada um de tomar decisões. Dada esta premissa, o reconhe-
cimento de que todos teriam o direito de participar do processo político
é uma consequência direta. O desdobramento ou passagem do civil ao
político seria natural e necessário. Houve resistências, é certo, mas estas
estavam necessariamente fadadas ao fracasso. Seriam menos relevantes
que a marcha inexorável anunciada pela ruptura anterior.

102 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 95-125 | jan.-abr. 2015


Fernando Limongi

Assim, neste tipo de análise, por paradoxal que possa parecer, a demo-
cratização não é problematizada ou estudada. Democracias emergem
naturalmente das revoluções burguesas, da quebra da velha ordem. Se-
pultado o Antigo Regime, o novo florescerá. Pode demandar tempo, mas
a evolução pode ser tomada como certa.

Esta, digamos, seria a rota clássica, aquela que na formulação clássica


de Barrington Moore Jr. (1966) permite combinar modernização socioe-
conômica e política, isto é, na qual a modernização culmina na demo-
cracia representativa. Nos demais casos históricos analisados por Moore,
a ausência de uma ruptura violenta com o passado feudal condiciona
o desenvolvimento histórico futuro, impossibilitando o nascimento de
governos democráticos.

A equação “se revolução burguesa então democracia representativa” per-


mite que Moore desconsidere a democratização das sociedades que exa-
mina. Por exemplo, a reconstituição da história política inglesa é aban-
donada em 1688. Isto é, no interior do modelo explicativo oferecido por
Moore, a Revolução Gloriosa seria suficiente para estabelecer toda a tra-
jetória subsequente do país. A primeira reforma estendendo o sufrágio,
contudo, só viria a acontecer um século e meio mais tarde, em 1832, após
longas e acirradas discussões, quando o direito de voto foi estendido a
não mais que 20% da população adulta masculina. Duas outras reformas
(1867 e 1884) promoveram novas extensões de tal sorte que o direito do
voto havia sido estendido a não mais que 60% da população adulta mas-
culina no final do século XIX. Mulheres – e apenas algo como 40% delas –
obtêm o direito de votar ao final da Primeira Guerra Mundial. O sufrágio
universal só foi adotado na segunda década do século XX.5

Assim, o período histórico olimpicamente omitido por Moore não é pe-


queno. Na literatura recente referências a Barrington Moore e a revolu-
ções burguesas são escassas. Abordagens mais recentes tomam a ex-
tensão da cidadania como eixo central para a construção das trajetórias
divergentes. Marshall passou a ocupar o lugar que pertenceu a Moore.
Em lugar da modernização, o processo de longo prazo subjacente e que
confere sentido às análises passou a ser a expansão da cidadania. A afir-
mação do princípio da igualdade, não importa se formal, continua a ser
o marco inicial.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 95-125 | jan.-abr. 2015 103


Governo representativo e democratização: revendo o debate

As referências e variáveis mudaram, a estrutura do modelo explicativo


não. O esquema é o mesmo. A história da ampliação da cidadania com-
portaria diferentes rotas, determinadas em última análise pelo momento
fundador ou original da instauração da igualdade civil. O fundamental é
o grau de ruptura com o Antigo Regime e a afirmação da igualdade for-
mal perante a lei. Onde esta ruptura foi para valer, direitos civis e políti-
cos podem ser encadeados. Nas palavras de O’Donnel (2011, p. 54):

Quando em algum momento do século XIX, a maioria dos países do No-


roeste adotou democracias não inclusivas, já havia sido atribuído a uma
grande parte da população masculina uma série de direitos subjetivos que
regulavam boa parte de suas vidas. Mas estes não eram – ainda – os di-
reitos políticos da aposta democrática. Eram direitos civis e subjetivos [...]
quando a plena inclusão política começou a ser debatida, nos países do
Noroeste, já existia um rico repertório de critérios legalmente elaborados
e sancionados para atribuição de agência na esfera privada a um grande
número de indivíduos (em sua maioria homens). Certamente, segundo
os padrões contemporâneos o alcance destes direitos era muito limitado.
Mas também é certo que, devido ao processo de atribuição de direitos sub-
jetivos, preparou-se para tornar extensivos à cidadania política e social.

O modelo explicativo supõe o contraste. Os direitos civis, se acompanha-


dos do reconhecimento da autonomia do agente, incluem a “aposta de-
mocrática”. Mas os direitos civis podem ser apenas epidérmicos, casos
em que não incluem o reconhecimento pleno dos agentes e, portanto,
não carregam consigo os germes de sua transformação, para usar uma
linguagem datada. As trajetórias históricas dos países do Noroeste6 e da
América Latina são distintas. O que se pretende explicar é a divergência
presente, a fragilidade ou falta de efetividade dos regimes democráti-
cos na América Ibérica. Como em Nunes Leal e em Sérgio Buarque de
Holanda, a ausência da ruptura histórica atrofia a experiência futura. No
caso da versão contemporânea centrada na expansão da desigualdade, a
democracia política não gera igualdade social.

As ênfases mudam, mas a essência do modelo não. O que é preciso ter


claro é que os processos de democratização dos casos bem-sucedidos
não são objeto de tratamento sistemático. A evolução política destes
países é deduzida do modelo adotado. Marshall, que não dedica mais
dos que uns poucos parágrafos à extensão dos direito do voto, seria sufi-
ciente para caracterizar a democratização do sistema político inglês. Em

104 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 95-125 | jan.-abr. 2015


Fernando Limongi

outras palavras, a construção do contraste das diferentes rotas trilhadas


é altamente dependente da idealização do que teria sido o processo de
democratização da Inglaterra, França e Estados Unidos.

A contraposição marca estes modelos explicativos. A afirmação de que o


governo representativo não funcionaria adequadamente no Brasil supõe a
existência de seu contrário, isto é, do funcionamento adequado desta for-
ma de governo em determinados países. Para retornar a Nunes Leal, o au-
tor nos oferece uma visão realista de como de fato funcionam as eleições
no Brasil, como por aqui os princípios do governo representativo são false-
ados. Como afirma: “A corrupção eleitoral tem sido um dos mais notórios e
enraizados flagelos do regime representativo no Brasil” (LEAL, 1975, p. 240).

O complemento deste realismo é a idealização da operação do governo


representativo alhures. Assume-se, implicitamente, que o que por aqui
se busca, “eleições limpas e verazes”, teria sido alcançado onde a gran-
de propriedade foi destruída e uma classe média numerosa se formou.
E se as eleições são efetivas, para retornar à versão contemporânea do
argumento, a igualdade social deveria ser uma consequência da política.
Contudo, cabe perguntar: sabemos se funcionou o governo representati-
vo em que haveria uma adequação entre forma política e realidade so-
cial? Podemos afirmar que, na origem, as sociedades inglesas, francesas
e norte-americanas eram mais igualitárias que a brasileira (latino-ameri-
canas)? Existem de fato duas experiências históricas com as instituições
representativas, uma falseada e outra verdadeira?

Governo representativo e desigualdade política

Nunes Leal uma vez mais é a referência inicial. Os termos que emprega
em sua formulação clássica merecem atenção. A referência é ao gover-
no representativo e não à democracia. O centro de sua análise são as
eleições, seu funcionamento, ou melhor, seu desvirtuamento no Brasil
em relação ao modelo. A referência é duplamente importante. Primeiro
porque define de forma clara o ponto de partida ou origem a partir da
qual a reconstituição histórica deve ser empreendida. O ponto de partida
é a adoção do governo representativo e não o liberalismo e muito menos
a liberal-democracia. Segundo porque coloca as expectativas acerca das
práticas eleitorais no centro do debate. A análise das práticas eleitorais

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Governo representativo e democratização: revendo o debate

viciadas experimentadas pelo país se ampara em uma contraposição, na


expectativa de como elas deveriam funcionar. Mas como afinal deveriam
funcionar eleições? Além disto, estas expectativas se referem à realidade
ou ao modelo? Cabe considerar a hipótese: não estaríamos construindo
uma contraposição entre o real e o idealizado? Afinal, sabemos como
evoluiu de fato o governo representativo na Inglaterra, França e Esta-
dos Unidos? A omissão de uma análise detida da história destes países,
quando não da pura idealização de como esta teria transcorrido, está na
base do argumento empregado por Nunes Leal e tantos outros.

Como frisou com propriedade Bernard Manin (1997), o sucedâneo dos go-
vernos hereditários é o governo representativo. A característica essencial
do governo representativo é o fato de que neste a seleção de líderes se
dá por meio de eleições.7 Governantes são eleitos. Ainda que hoje asso-
ciemos eleição à democracia, na filosofia política clássica, o método de
seleção de governantes identificado com a democracia é o sorteio e não
a eleição. Este método específico, a eleição, como sublinha Manin, sem-
pre foi associado ao governo aristocrático e sua adoção no momento de
criação do governo representativo se deu com plena consciência desta
associação.

As consequências desta associação não devem ser lidas como curiosi-


dades ou provas de ilustração. O caráter aristocrático das eleições era
conhecido pelos que propuseram sua adoção. Para dizer de outro modo:
seus efeitos não igualitários pesaram na escolha. Quando eleições passa-
ram a ser usadas para selecionar governantes não se esperava que repre-
sentantes fossem iguais aos representados. Antes o contrário. A expecta-
tiva dos criadores desta forma de governo era de que eleições levassem
à seleção dos melhores, dos mais capacitados, da elite social e cultural.
Caberia a estes governar. Eleições não são igualitárias porque nem to-
dos têm as mesmas chances de serem eleitos e desempenhar funções de
governo. Na origem, portanto, temos uma afirmação clara e explícita da
desigualdade política.

Eleições não foram pensadas com um expediente para contornar a im-


possibilidade da deliberação direta, para contornar a impossibilidade
prática da democracia direta. Os teóricos do governo representativo mo-
vem-se, de forma consciente e explícita, na direção contrária à demo-
cracia. O governo representativo seria superior à democracia justamente

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Fernando Limongi

por recorrer às eleições e, desta forma, garantir que representantes se-


riam selecionados no interior da elite. O governo representativo era para
ser o governo dos melhores. Melhor recorrer a Bernard Manin:

O governo representativo foi instituído com amplo conhecimento de que


os representantes eleitos seriam e deveriam ser cidadãos distinguidos,
socialmente diferentes do que aqueles que os elegiam. Chamarei este de
o princípio da distinção (MANIN, 1997, p. 94, tradução nossa).

Em sua origem, portanto, o apelo a eleições não aspirava criar um corpo


representativo que espelhasse o corpo social. Eleições deveriam levar aos
postos de mandos os mais capacitados, a elite. Basta esta referência para
questionar uma parte considerável dos estudos sobre o pensamento po-
lítico brasileiro no século XIX. O elitismo não é específico ou suficiente
para discriminar o pensamento político brasileiro. Os ingleses, franceses
e americanos do período eram igualmente elitistas. Neste aspecto, o Bra-
sil não é singular.

A superioridade dos eleitos não decorre do voto censitário. A superiori-


dade esperada tem por referência um corpo eleitoral restrito. Represen-
tantes devem pertencer a um grupo social superior ao dos seus eleitores.
Medidas específicas foram tomadas com este fim. Isto é, não apenas o
voto era censitário, como também o acesso aos cargos eletivos era prote-
gido por exigências de propriedade, renda e idade.

Dito de outra forma: as exigências legais para ser candidato eram maio-
res do que as que limitavam o direito ao voto. Assim, necessariamente,
por força da lei, os ocupantes de cargos públicos teriam status superior
ao de seus eleitores. Afirma-se desta forma de maneira explícita e clara o
caráter não igualitário do princípio representativo. Em geral, precauções
foram tomadas para garantir que representantes fossem recrutados no
interior de um grupo seleto. O ponto merece ser frisado: a distinção fun-
damental embutida no governo representativo diz respeito menos a quem
pode votar do que quem pode exercer o poder. Dito de forma mais direta:
é possível compatibilizar o sufrágio universal ao Governo Representativo.

Tanto a legislação inglesa quanto a francesa regulavam de forma explí-


cita o acesso aos cargos de governo, enquanto os Estados Unidos, por
razões discutidas a seguir, deixou de regular a matéria. Vale, uma vez
mais, recorrer a Manin:

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Governo representativo e democratização: revendo o debate

Os limites ao direito de voto nos primórdios do governo representativo


são bem conhecidos […]. O que é menos notado e estudado, contudo, é
que, independente destas restrições, existiam ainda um número de pro-
visões, arranjos e circunstâncias que asseguravam que os eleitos seriam
de um estrato social mais elevado do que o eleitorado. Isto foi obtido de
formas diversas na Inglaterra, França e Estados Unidos. De forma geral,
se pode dizer que a superioridade social era garantida na Inglaterra por
uma mistura entre estatutos legais, normas culturais e fatores práticos
enquanto na França puramente com base na lei. O caso dos Estados Uni-
dos é mais complicado, mas também, por isto mesmo, como será visto,
mais revelador (MANIN, 1997, p. 95).

O reconhecimento desta desigualdade fundamental é crucial para uma


reavaliação das origens e desenvolvimento do governo representativo e,
consequentemente, para o surgimento das democracias representativas
contemporâneas. O elitismo, ou mais claramente, a negação explícita e
direta da ideia da igualdade política está na origem da adoção do governo
representativo. O método de seleção de líderes adotado não é igualitário.
Não se esperava, portanto, que governantes fossem iguais aos governados.

Se o governo representativo funcionar de acordo com suas expectativas,


então, os melhores, os mais aptos governam. Se não for assim, se os mais
capazes não forem selecionados, então há algo de errado com o processo
eleitoral. A corrupção eleitoral, o desvirtuamento do governo representa-
tivo, se dá quando outros critérios que não a capacidade para o exercício
do poder prevalecem.

Mas de onde vêm estas expectativas? Por que se espera que o princípio
da distinção opere? Por que o funcionamento regular das eleições leva a
seleção dos superiores socialmente? Uma resposta se encontra na pas-
sagem transcrita anteriormente: por uma combinação entre leis, normas
culturais e fatores práticos. A interação entre estes fatores deve garantir
que o governo representativo leve ao governo das elites.

Tanto na Inglaterra quanto na França, precauções legais – critérios ex-


plícitos de renda e idade – foram tomados para assegurar que apenas os
detentores de propriedade poderiam ser os eleitos.8 Na passagem citada,
contudo, Manin afirma que o caso norte-americano é mais revelador jus-
tamente por dispensar precauções desta natureza. Mais especificamen-
te, os Estados Unidos prescindem da intervenção das leis para assegurar
que representantes fossem socialmente superiores aos representados.

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Fernando Limongi

A alternativa seguida, contudo, não se deve a uma maior adesão ao credo


democrático ou aceitação do princípio da igualdade política.

Segundo Manin (1997), ao longo dos debates constitucionais na Filadél-


fia, os constituintes foram incapazes de encontrar um critério legal que
pudesse ser aplicado uniformemente nas 13 ex-colônias. O que seria
um critério de exclusão adequado no Sul seria insuficiente no Nordeste.
Como diz Manin (1997), a heterogeneidade social, geograficamente deli-
mitada, impediu que os constituintes americanos chegassem a um acor-
do neste ponto. Ideologicamente, a maioria era favorável a uma restrição
censitária tanto do direito ao voto quanto do acesso a cargos públicos.
Havia desejo de fazê-lo, mas foi impossível encontrar uma condição que
servisse aos propósitos pretendidos. Assim, a regulação da matéria foi
deixada aos estados membros.

O caso é mais revelador justamente por esta omissão e a confiança obti-


da de que não seria desnecessário restringir o conjunto de cidadãos que
poderiam se candidatar a exercer cargos públicos. Reside aí a importân-
cia dos debates entre os federalistas e os antifederalistas.

Os antifederalistas acusam os defensores da nova Constituição de favo-


recer um governo aristocrático. Afirmam que o modelo proposto faria
com que a distância social entre representantes e representados seria
enorme. Somente os mais ricos seriam os eleitos. Os críticos da Consti-
tuição falham, contudo, na identificação do mecanismo que produziria
este resultado.

De sua parte, os federalistas, defensores da Constituição, apontam para a


inexistência de barreiras legais para que representantes e representados
sejam iguais. A Constituição não restringia a cidadania política e tam-
pouco regulava quem poderia se candidatar. Não havendo restrição, se
os resultados das eleições confirmassem os temores dos antifederalistas,
isto se daria pela livre escolha do povo.

Como mostra Manin, a posição dos federalistas neste debate decorre da


sua confiança no caráter aristocrático das eleições. Restrições legais que
discriminassem quem poderia ser eleito não seriam necessárias. Pela sua
própria natureza, eleições levariam à diferenciação entre representantes
e representados. O mecanismo, pela sua natureza, geraria a distinção.
Os federalistas confiavam que os mais ricos e destacados socialmente

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Governo representativo e democratização: revendo o debate

levariam vantagem sobre os demais, sobretudo em distritos amplos. Isto


é quanto maior o distrito, quanto mais eleitores fossem necessários para
eleger um representante, mais relevante a saliência social dos candida-
tos para sua eleição.

A linha de interpretação aberta por Manin, sem exagero algum, revolu-


ciona o entendimento das origens das modernas democracias represen-
tativas. Eleição dos líderes políticos é parte de qualquer definição corren-
te de democracia. Contudo, como argumenta Manin, as marcas da ori-
gem não são inteiramente apagadas pelas transformações que levaram à
democratização do governo representativo. O componente aristocrático
e não igualitário é inerente à eleição, não desaparecendo com a democra-
tização dos sistemas políticos:

No interior de governos baseados exclusivamente em eleições nem todos


os cidadãos têm as mesmas chances de serem governantes. Os cargos
representativos são reservados para pessoas vistas como superiores ou
para membros das classes mais altas. Governo representativo pode em
certos aspectos se tornar mais popular e democrático. Ainda assim, ele
reterá dimensões aristocráticas no sentido de que aqueles que são eleitos
não seriam similares a aqueles que os elegem, mesmo quando ninguém é
impedido de competir por cargos eletivos (MANIN, 1997, p. 134).

Assim, a contribuição de Manin vai muito além do estudo das origens


do governo representativo. A inspiração aristocrática tem consequências
para o entendimento das modernas democracias. Muitas das caracterís-
ticas constitutivas do governo representativo foram mantidas. Algumas
destas decorrem da natureza do processo eleitoral, outras das definições
do papel dos próprios representantes e seus vínculos com os eleitores,
como ausência de mandato imperativo ou recall.

Contudo, para os fins deste artigo, estas consequências são menos im-
portantes que a caracterização oferecida para entender a primeira apari-
ção do governo representativo. O fundamental a reter é a consequência
do trabalho de Bernard Manin para entender tanto o momento original,
para a caracterização da ruptura política operada com o antigo regime,
como também para o entendimento do processo de democratização.
Mais especificamente, cabe retomar a história política da Inglaterra,
França e Estados Unidos com novas lentes. O fim do governo hereditário
não é seguido pela afirmação da igualdade política. Antes o contrário.

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Fernando Limongi

O foco da análise do processo de democratização deve ser revisado. Im-


porta menos quem pode votar do que quem pode ser votado.

O governo representativo não pode ser interpretado como uma forma


de governo protodemocrática,9 da qual teria brotado, por desdobramento
interno, como uma evolução, a democracia moderna.10 Na origem, não
há uma aposta democrática ou inclusiva. Os Pais Fundadores do governo
representativo se movem na direção contrária, reafirmando e sustentan-
do teoricamente a distribuição desigual das possibilidades de exercer o
poder. A desigualdade política entre os membros da comunidade não se
afirma apenas na restrição ao direito de voto. Ela é mais profunda. Na
rea­lidade, a extensão do direito de voto é menos relevante que a distin-
ção quanto a quem pode exercer o poder.

Não se trata, por certo, de equiparar todas as experiências históricas. O


estudo de Bernard Manin chama atenção para a variação da combinação
entre legal provisions, cultural norms, and practical factors para explicar os
processos políticos específicos experimentados pela Inglaterra, França e
Estados Unidos. O estudo de nossa história institucional sob esta pers-
pectiva revelará, por certo, especificidades. Seja como for, porém, o fato
é que a perspectiva interpretativa aberta pelo trabalho de Manin força
uma revisão das noções estabelecidas sobre o ponto de partida trilha-
do pelos países ocidentais. Na origem, em qualquer lado do Atlântico e
em qualquer hemisfério, temos uma afirmação explícita da desigualdade
política.

Tomar os regimes instaurados no século XIX pelo que vieram a se tor-


nar no século XX é incorrer na falácia do determinismo retrospectivo
(BENDIX, 1964, p.16). O desenvolvimento que estes regimes vieram a ter
não era o esperado. Em muitos aspectos, as modernas democracias se
baseiam em princípios e práticas não previstos pelos criadores do go-
verno representativo. Entender o nascimento das modernas democra-
cias, como estas se desenvolveram a partir do governo representativo,
ocupa novamente posição de destaque na literatura comparada. Assim,
a perspectiva inaugurada por Bernard Manin justifica uma releitura da
experiên­cia brasileira com o governo representativo. No princípio, todos
eram elitistas. O ponto de partida não é a afirmação da igualdade.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 95-125 | jan.-abr. 2015 111


Governo representativo e democratização: revendo o debate

Governo representativo e democratização

O ponto de partida, portanto, é o governo representativo e não as re-


voluções burguesas e/ou afirmação da cidadania civil. Em lugar de to-
mar como dada a existência de experiências históricas divergentes, cuja
constituição remontaria o momento da queda do Antigo Regime, passa-
mos a ter uma origem comum. Mais que isto, um ponto de partida que
não supõe ou contém em embrião a ideia da igualdade entre represen-
tantes e representados.

A literatura latino-americana sequer cogita colocar a experiência política


da região em pé de igualdade com a dos países da região temperada. A
agenda de pesquisa sobre a história política da região é voltada para ex-
plicar seu desenvolvimento anômalo ou incompleto. No passado recente,
a diferença dos resultados históricos era clara e evidente. A região era
marcada pela instabilidade política e pelo autoritarismo. No presente,
contudo, a divergência de resultados não é mais tão evidente. A cena po-
lítica da região mudou radicalmente nos últimos tempos. A maioria dos
países tem regimes democráticos que já deram provas de sua estabilida-
de. Ainda assim, persiste a ideia da inferioridade dos regimes políticos da
região, cujas democracias seriam marcadas por um déficit de cidadania,
cujo passivo teria começado a se acumular logo após a independência.

A revisão de perspectiva proposta significa rejeitar a tese de que histó-


ria política da Inglaterra e do Brasil, ou de forma mais geral, dos países
avançados e dos atrasados, devam ser tratadas como duas realidades
distintas.11 Posto de forma positiva: os problemas políticos enfrentados
por Inglaterra e Brasil são da mesma ordem. Trata-se de implantar o go-
verno representativo. As trajetórias, ao menos no momento de sua im-
plantação, estão sobrepostas.

Os problemas institucionais brasileiros não devem ser analisados como


problemas enfrentados pela adaptação do governo representativo aos
trópicos, a uma realidade social inóspita. A ideia de adaptação ou im-
portação de ideias e instituições precisa ser questionada. Há problemas
que são inerentes ao governo representativo e que se manifestam onde
quer que ele tenha sido instaurado. Cabe entender a lógica do governo
representativo e não a de governos liberais. A diferença é sutil, mas não
sem consequências.

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Fernando Limongi

A visão segundo a qual governos liberais precedem governos democrá-


ticos e que a diferença essencial entre um e outro é a restrição ao su-
frágio que vigoraria no primeiro e não no segundo acaba por minimizar
a ruptura entre governo representativo e a democracia contemporânea.
Implicitamente, ao fazê-lo, os que adotam esta perspectiva acabam por
negligenciar as características próprias do governo representativo iden-
tificadas por Manin.

Regimes liberais são geralmente caracterizados como democracias em


gestação, como se o problema por excelência com que se defrontariam
fosse a regulação do direito do sufrágio. Nesta linha de argumentação,
em última análise, a divergência entre a experiência política inglesa e a
brasileira acaba por se resumir às atitudes das elites diante desse proble-
ma, às respostas divergentes que estas teriam dado à pressão pela ex-
tensão da igualdade política.12 Enquanto a Inglaterra estendeu o sufrágio,
no Brasil o caminho tomado teria sido inverso. Tudo se passa como se
somente nos trópicos as elites políticas tivessem explicitamente negado
a igualdade política.

A referência ao governo representativo altera o foco. Como discutido na


seção precedente, as premissas sobre as quais se assenta esta forma de
governo são manifestamente antidemocráticas. Os pais fundadores des-
ta forma de governo não eram democratas. Não eram sequer protodemo-
cratas. Eram declaradamente contrários à igualdade política. Vale voltar
uma vez mais a Manin: eleição é um método de seleção de líderes não
igualitário e sua adoção se deu com plena consciência desta característi-
ca. Sabia-se e valorizava-se o fato que nem todos teriam a mesma chance
de exercer o poder. O exercício do poder ficaria reservado aos membros
da elite.

A restrição ao direito do voto, a defesa do voto censitário, não é, portanto,


produto de uma inconsistência com o princípio fundamental da igualda-
de que, assim, seria eliminada naturalmente. Por revolucionária e radical
que seja a afirmação da igualdade civil, esta não se estende naturalmen-
te e necessariamente ao campo político. Benjamin Constant, ao fazer a
célebre distinção entre a liberdade dos antigos e a dos modernos, estava
justamente, como argumenta Rosanvallon (1999, p. 225), estabelecendo
uma separação profunda entre a igualdade civil e política. Para os moder-
nos, a segunda não decorreria da primeira.

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Governo representativo e democratização: revendo o debate

Como afirma Rivera (2000, p. 31), o liberalismo das elites latino-america-


nas “não era mais contrário à democracia e à participação popular que o
liberalismo dos pais da moderna república liberal”. Os regimes criados na
Inglaterra, Estados Unidos e França não apenas se assentavam sobre so-
ciedades altamente desiguais do ponto de vista social, como também su-
punham que esta mesma desigualdade guiasse a distribuição dos cargos
de poder. Os regimes criados naqueles três países eram tão oligárquicos
quanto seus pares latino-americanos. As divergências entre estes dois
mundos, nos campos social e político, são menores que as convergências.

Rivera (2000, p. 37) observa que não se deve assumir que o modelo do
governo representativo tenha vindo ao mundo pronto e acabado, com
respostas para todos os problemas com que viria a se defrontar. Mais do
que isto: não se deve assumir que as falhas e inconsistências do modelo
teriam se manifestado exclusivamente na América Latina.13 A implan-
tação do modelo conviveu com os mesmos problemas nos dois lados do
Atlântico e nos dois hemisférios. Desde o ponto de vista institucional,
não cabe falar em divergência ou rotas. Há uma história comum, a da
evolução e transformação do governo representativo. Uma história que
é necessariamente turbulenta e errática em função das inconsistências
do modelo original.

O ponto de partida necessário, portanto, é uma caracterização mais acu-


rada do governo representativo, de seus princípios e forma de funciona-
mento. Tomar a extensão do direito de voto aos mais pobres como o prin-
cipal indicador, quando não o único, de democratização acaba por deixar
em segundo plano as transformações radicais, verdadeiras rupturas, que
marcaram o nascimento da moderna democracia. Dito de forma diversa:
não se deve assumir que o único e o mais importante desafio institucio-
nal enfrentado pelo governo representativo em sua evolução tenha sido
a extensão do sufrágio aos mais pobres.

Não se pode assumir que os pais fundadores do governo representativo


tenham sido capazes de antecipar todas as vicissitudes práticas com que
o modelo que criaram viria a se defrontar. Na realidade, a incompletu-
de do modelo não tardou a se manifestar. Como argumentou Hofstadter
(1969), o modelo criado não tinha lugar para a constituição de uma opo-
sição legítima ao governo. Não tinha lugar no sentido em que não era
possível acomodar uma oposição legítima aos princípios do governo

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Fernando Limongi

representativo identificados por Bernard Manin. Como afirma Hofstadter


(1969, p. 8, tradução nossa):

A ideia de uma legítima-oposição reconhecida, organizada e livre o sufi-


ciente em suas atividades para ser capaz de retirar do poder o governo
em exercício, por meios pacíficos, é uma ideia imensamente sofisticada, e
esta não era uma ideia que os Pais Fundadadores encontraram totalmen-
te desenvolvida e pronta para ser aplicada quando eles começaram sua
experiência com o constitucionalismo republicano em 1788.14

O reconhecimento de uma oposição legítima não se resume e, portanto,


não deve ser confundido como o reconhecimento da liberdade da opi-
nião pública identificada no modelo de Manin. Como observa Hofstadter
(1969), a liberdade para a crítica política se encontrava firmemente esta-
belecida na experiência política inglesa e norte-americana, mas o que
era chamado pelos ingleses de

uma oposição formada – isto é, um grupo de oposição organizado e per-


manente, distinto de um indivíduo expressando a sua opinião dentro ou
fora do parlamento – ainda ficava aquém da respeitabilidade, e na opi-
nião de muitos recebia a mácula da deslealdade, subversão ou traição
(HOFSTADTER, 1969, p. ix, tradução nossa).

Não é a liberdade individual que está em jogo. É algo mais complexo,


como nota Hofstadter, mais sofisticado, que está em jogo. Vale observar
que o autor está se referindo a uma oposição legítima, constitucional e
responsável que pretende chegar ao poder por meios eleitorais. Por isto
mesmo, a solução para esta dificuldade não se dá no campo dos valores
ou ideais. Não se trata simplesmente de a oposição aderir à Constituição,
aceitar as regras do jogo e visar chegar ao poder por meios eleitorais. Não
é fácil assimilar uma oposição deste tipo.

A história norte-americana, analisada por Hofstadter, prova-se crucial


para o argumento, uma vez que a dificuldade desta aceitação se ma-
nifesta no interior da elite responsável pela elaboração e aprovação da
Constituição. Ao longo do governo de John Adams (1796-1800), James
Madison e Alexander Hamilton, que anos antes haviam colaborado na
elaboração dos Federalists Papers, acabam em partidos opostos, o Repu-
blicano e o Federalista respectivamente. Enquanto Madison está entre
os que acusam os federalistas de traidores da causa republicana, de de-
fensores de um governo aristocrático alinhado com os interesses monar-

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Governo representativo e democratização: revendo o debate

quistas da Inglaterra, Hamilton está entre os que acreditam que os repu-


blicanos não passariam de democratas extremados, verdadeiros jacobi-
nos que, por isto mesmo, defendiam a França e a Revolução Francesa. Ou
seja, cada um dos partidos nega legitimidade a outro, caracterizando-os
como inimigos da ordem política vigente, verdadeiros traidores da pátria,
representantes dos interesses estrangeiros.

Tanto Madison quanto Hamilton, como deixaram claro nas páginas em


que defenderam conjuntamente a ratificação da Constituição que ha-
viam ajudado a elaborar, execravam os partidos políticos, mas isto não os
impediu de participarem ativamente na criação de partidos políticos. O
mais interessante no caso dos dois é que tenham liderado partidos dife-
rentes. Jefferson, mesmo tendo afirmado em carta a Thomas Hopinkson
que não iria aos céus se o preço a pagar fosse entrar em um partido,15
não hesitou em fundar um partido para entrar na Casa Branca. Como
mostra Hofstadter (1969), a adaptação das ideias à realidade não foi fácil
e tomou tempo. Como indica o mesmo autor, na realidade, esta aceitação
nunca foi completa, justamente porque ela envolve um conflito com o
princípio segundo o qual o critério para o exercício do poder é a quali-
ficação do candidato e não sua fidelidade e pertencimento a um grupo
político qualquer. Há, portanto, um conflito entre o princípio da distinção
e o partidário.

A aceitação da oposição responsável passa por uma questão prática e


imediata, a saber, o tratamento dispensado pelo governo à oposição. Se
os detentores do governo foram legitimamente eleitos, então como jus-
tificar a contestação de seus atos? Uma vez mais, cabe citar Hofstadter
(1969, p. 87, tradução nossa):

Aqueles que estão no poder tendem a pensar em si próprios não como


membros de um partido que tomou o controle do governo, mas sim como
o governo em si mesmo. Assim, a oposição é identificada como uma fac-
ção inteiramente destrutiva, como o antigoverno. Suas críticas das polí-
ticas adotadas são tomadas como críticas ao governo. Sua crítica a um
governo particular é tomada como a crítica a todo e qualquer governo. É
assim identificada a anarquia, subversão e deslealdade.

A oposição ao governo em exercício é naturalmente confundida com


a oposição ao governo em si mesmo. A tendência a negar legitimidade
aos partidos tem duas mãos. O governo tende a ver a oposição como

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subversiva tanto quanto a oposição questiona a integridade dos gover-


nantes. Os governantes, contudo, contam com uma vantagem evidente,
uma vez que justamente por ser governo, controlam o aparato de re-
pressão e podem definir os limites da ação da oposição. Os federalistas,
por exemplo, aprovam em 1798, o Alien and Sediction Act, com base
no qual restringem a ação legal da oposição. O seu objetivo era claro:
perseguir e eliminar a oposição. Falharam, mas os seus sucessores, os
republicanos, não. A ascensão de Jefferson ao poder em 1800 leva ao
desaparecimento dos federalistas da cena política e a um longo período
de governo unipartidário.

Os princípios do governo representativo não preveem a emergência de


eleições competitivas. Não deveriam ser e, em geral, não eram. Eleitores
deveriam reconhecer os seus superiores. Campanhas e, mesmo, candi-
daturas prévias eram vistas como ilegítimas, quando não proibidas por
medidas legais. Pedir votos seria dar prova de que o pretendente ao car-
go não teria suas qualidades naturalmente reconhecidas pelos eleitores.
Além disto, se candidatar, aspirar a um cargo público era dar mostras de
ambição, de desejo de governar. Exercer um cargo público era visto como
um encargo, um ônus que comportava colocar o interesse público acima
do privado. Virtude era a característica exigida para o exercício do poder.

Como afirma Hofstadter (1969, p. 47), referindo-se especificamente a


Virgínia no período anterior à independência, “a sociedade colonial era
uma sociedade estruturada com base na deferência (a deferential society)
e assim também era com sua vida política”. A implicação para as elei-
ções é que “no século XVIII, virginianos não eram eleitos em razão do
grupo ao qual eram associados ou pelo que se propunham a fazer a res-
peito desta ou daquela questão, mas sim porque eles eram quem eram”
(HOFSTADTER, 1969, p. 64).

A deferência dos subordinados para com os socialmente superiores era


a relação crucial sobre a qual se assentavam as expectativas sobre como
as eleições deveriam funcionar. Nestes termos, é impossível dissociar o
voto da submissão socialmente construída. Era justamente isto que se
esperava do eleitor, que consentisse ser governado pelos seus superiores,
que reconhecesse que o papel de governar cabia aos que se destacavam
socialmente. O critério que eleitores deveriam usar ao votar não deveria
ser político, mas sim social.

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Governo representativo e democratização: revendo o debate

Competição eleitoral e partidos políticos não eram partes do modelo ori-


ginal. Mas, como todo cientista politico sabe, tenha ou não lido Schatts-
chneider, a democracia foi criada pelos partidos e é impensável sem eles.
A referência aos dois eixos da democratização identificados por Dahl é
imediata. A presença de partidos que competem pelo poder, que bus-
cam votos para chegar ao poder, está diretamente associada ao eixo da
contestação. O fato é que a movimentação neste eixo tende a ser menos
estudada e analisada do que a ampliação da participação. O processo de
democratização acaba por ser identificado à ampliação da participação.
Ainda assim, competição eleitoral é o elemento crucial em qualquer de-
finição de democracia contemporânea.

Democratização, portanto, não se resume a extensão do sufrágio. A difi-


culdade maior decorre da necessidade de encontrar uma fórmula insti-
tucional que regule a competição entre os partidos por votos. Trata-se de
um desdobramento não previsto pela teoria. Uma dificuldade que se ma-
nifestou com a mesma força e intensidade nos Estados Unidos, Inglaterra,
França, Brasil, México e assim por diante.

O fato é que os pais fundadores do governo tinham expectativas irrea-


listas sobre o funcionamento das eleições. Mas este irrealismo não diz
respeito às expectativas quanto às relações entre superiores e subordina-
dos. Como o caso norte-americano deixa claro, o problema se manifesta
nas relações internas à elite. O conflito entre republicanos e federalistas
se dá no interior da elite e não tem implicações diretas para a definição
da cidadania política. Os líderes de ambos os grupos eram igualmente
membros das elites. O que não estava previsto não era que os membros
das elites não pudessem ter divergências entre si. O que não estava no
mapa era que levassem suas divergências aos eleitores, que se organi-
zassem para vencer eleições. Partidos eleitoralmente constituídos não
poderiam existir.

A informalidade que cercava o processo eleitoral garantia que a influên­


cia e o controle social exercidos pelos mais favorecidos se fizessem pre-
sentes na assembleia eleitoral. O processo eleitoral deveria funcionar
como um momento em que os eleitores expressavam sua aquiescência
para com os representantes, momentos de reafirmação da hierarquia so-
cial, momentos para expressão pública do consentimento da diferença.
Por isto mesmo, como argumenta John Stuart Mill em Considerações sobre

118 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 95-125 | jan.-abr. 2015


Fernando Limongi

o governo representativo, cuja primeira edição é de 1861, não poderia ser


secreto.

Quando eleições funcionam de forma adequada, os mais capazes são elei-


tos. Contudo, a quem cabe o papel de julgar se as escolhas feitas foram
corretas, se de fato os mais qualificados para o exercício do poder foram os
escolhidos? Como vimos anteriormente, os republicanos, liderados por
Tomas Jefferson e James Madison, acreditavam piamente que os federa-
listas não deveriam merecer a confiança do povo. Foram eleitos, foram
distinguidos com a aprovação popular, mas não deveriam ter sido. Mas
como explicar que as eleições tenham levado a escolhas equivocadas?

Se o poder é conferido a homens destituídos da qualificação necessária,


então o processo eleitoral necessariamente deve ter sido corrompido em
algum ponto. Ou bem houve fraude (alteração dos resultados) ou bem
o povo que participou do processo eleitoral não tinha as qualificações
necessárias e, desta forma, pode ser corrompido por políticos inescru-
pulosos. Assim, o conflito entre as elites acaba por desaguar no debate
acerca dos critérios para atribuir o direito do voto. Eleitores passíveis de
ser objeto de corrupção devem ter seu direito de voto negado.

As elites políticas, quando divididas, só têm uma forma de explicar o


apoio eleitoral obtido por seus adversários: a corrupção, a influência ile-
gítima exercida por seus oponentes para granjear a simpatia e confiança
popular. O conflito intraelite, portanto, remete necessariamente ao deba-
te sobre os critérios empregados para definir o direito ao sufrágio.

O eleitorado verdadeiramente qualificado seria aquele dotado da capaci-


dade de distinguir entre os membros da elite econômica aqueles que são
os verdadeiramente virtuosos. O eleitor que falha ao fazer esta distinção,
que pauta suas escolhas por critério diverso, deve ter negado o direito ao
sufrágio. O equívoco da sua escolha é prova da sua incapacidade.

Neste modelo, vale insistir no ponto explorando suas consequências so-


bre outro ângulo, não há lugar para partidos que visem influir nas deci-
sões dos eleitores. Fazer campanhas e procurar arregimentar eleitores
contraria as normas que estruturam as relações representados-repre-
sentantes. A superioridade que destaca o governante potencial tem que
ser percebida naturalmente pelo eleitor. A relação esperada e legítima
é a da deferência. Aquele que pede votos, que organiza eleitores para

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 95-125 | jan.-abr. 2015 119


Governo representativo e democratização: revendo o debate

apoiá-lo, implicitamente, reconhece a insuficiência das suas qualifica-


ções, recorrendo à construção de um elo artificial entre representantes
e representados. Fazer campanha, organizar um partido, é dar prova da
motivação facciosa da empreitada, com toda a carga pejorativa que o
termo carrega consigo.

Obviamente, republicanos e federalistas acreditavam que contavam com


os votos do eleitor capacitado e seus adversários, com o dos desprepa-
rados. A corrupção dos eleitores sempre é a arma a que recorrem os
adversários, os ambiciosos, os que se movem pelos interesses parciais.
Cada uma das partes acredita estar do lado certo, que seu grupo reúne os
homens virtuosos, cujo apoio deriva da confiança e deferência entre as
camadas inferiores.

Ainda que a comparação não seja usual, o fato é que a natureza do con-
flito entre federalistas e republicanos é a mesma que se verifica entre
conservadores e liberais nos primeiros anos do reinado de dom Pedro II
após a derrubada do Gabinete da Maioridade pela intervenção do Poder
Moderador. Os conservadores justificam a dissolução da Câmara eleita
em 1840 como uma medida necessária para deter o “embate das fac-
ções”, antes que estas tenham produzido “irreparáveis estragos” ao sis-
tema monárquico constitucional representativo, do qual seriam os de-
fensores legítimos. A dissolução se impõe como uma defesa da ordem
constitucional, porque

A atual Câmara dos Deputados, Senhor, não tem a força moral indispen-
sável para acreditar e fortalecer entre nós, o sistema representativo. Não
pode representar a opinião do País porque a expressão da vontade nacio-
nal e das necessidades públicas somente pode produzir a liberdade dos
votos (JAVARI, 1989, p. 84).

Os liberais, de sua parte, em Representação enviada ao imperador pela


Câmara Provincial de São Paulo, acusam o Gabinete no poder de “trai-
dor”, que seus atos estariam pondo em risco a “paz do Império, a ordem
e a tranquilidade da Província e até a segurança do Trono”. Os liberais
sustentam que a Lei da Reforma do Código e a criação do Conselho de
Estado seriam obras de uma Legislatura irregular, composta por uma
“maioria vendida” e, por isto mesmo, em desacordo com a verdadeira
“vontade nacional” (MARINHO, 1843, p. 307).

120 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 95-125 | jan.-abr. 2015


Fernando Limongi

Como se vê, cada um dos partidos acusava o outro de deslealdade e des-


respeito à Constituição. Conservadores e liberais acreditam que repre-
sentam a vontade nacional, que seriam os vencedores em uma eleição
livre. Segue desta premissa que se derrotados, tal fato só pode ser ex-
plicado pelos expedientes escusos a que recorreram os vencedores. Os
adversários são facciosos e, por isto, prontos a recorrer à corrupção para
chegar ao poder.

Ironicamente, no interior dos princípios do governo representativo, as


influências que emergem de relações políticas, ditada pela disputa do
poder, são vistas como ilegítimas. Os homens de partido se movem pela
ambição, pelo desejo de exercer o poder e dele tirar vantagens para si e
para seus seguidores. A influência legítima é aquela que é construída no
campo social, anterior portanto à política. Como sustenta Bernard Manin
(1997, p. 203):

Eleições aparecem como reflexos e expressão de interações não-políticas.


[...] Estes [os vínculos e interações] não são gerados pela competição polí-
tica. Antes o contrário, estes laços constituem recursos preexistentes que
políticos mobilizam em sua luta pelo poder. Representantes, obtiveram
proeminência em suas comunidades em virtude de seu caráter, riqueza,
ou ocupação. Eleições selecionam um tipo particular de elite: os notáveis.
Governo representativo começou como o governo dos notáveis.

Considerações finais

A análise da história política brasileira tende a ser reconstituída a partir


do contraste com a história da Inglaterra, França e Estados Unidos. Em
geral, o foco explicativo recai sobre as travas que impediram que o de-
senvolvimento das instituições democráticas seguisse o rumo tomado
naqueles países. Trata-se de uma explicação calcada sobre o signo da
ausência, incompletude, divergência ou anomalia. Em Nunes Leal, o con-
traste toma a forma da contraposição entre a forma corrompida e a ín-
tegra do governo representativo. Nas explicações calcadas no modelo da
expansão da cidadania, a ênfase recai sobre a resistência das elites bra-
sileiras em aceitar ideário da igualdade fundamental entre os homens.

Em ambos os casos, o modelo explicativo se baseia no contraste entre o


real e o idealizado. As referências históricas aos casos de implantação

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 95-125 | jan.-abr. 2015 121


Governo representativo e democratização: revendo o debate

plena da democracia são escassas e esquemáticas. Na realidade, o mo-


delo das trajetórias divergentes se equivoca quanto ao ponto de partida
da experiência política moderna. O ponto de partida é o governo repre-
sentativo e a desigualdade politica que eleições supõem. Sua evolução,
portanto, não pode ser traçada e apreendida pela extensão do sufrágio. A
emergência dos partidos e das eleições competitivas marca o advento da
democracia. O caminho não estava traçado de antemão e não foi simples
e automático em nenhum lugar.

Notas

1 Este trabalho foi parcialmente financiado com recursos da Fapesp e do CNPq.

2 Para uma análise dos debates com ênfase no elitismo do liberalismo


brasileiro, ver Kinzo (1980).

3 Para uma revisão completa da evolução da legislação eleitoral brasileira,


consultar Nicolau (2012). Para um questionamento da interpretação tradicional
sobre a Lei Saraiva, ver Buescu (1981).

4 Ver Carvalho (2003), para uma generalização do argumento.

5 A falta de linearidade da expansão do direito ao voto nos Estados Unidos,


marcada por movimentos cíclicos de expansão e retração, é enfatizada por
Keyssar (2000). O caso francês e suas inúmeras idas e vindas é o objeto de
estudo de Rosanvallon (1999). Para uma revisão das interpretações sobre a
expansão do sufrágio na Inglaterra, consultar Conacher (1971).

6 Os países citados como pertencendo ao Noroeste são os mesmos que


trilharam a rota clássica de Barrington Moore Jr.

7 Manin apresenta uma caracterização mais complexa. São quatro os traços


distintivos do governo representativo: seleção dos governantes por eleições
dentro de intervalos regulares; independência relativa dos governantes diante
dos eleitores; liberdade da opinião pública e o caráter público das decisões.

122 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 95-125 | jan.-abr. 2015


Fernando Limongi

8 Na Inglaterra, as normas e efeitos práticos contribuíam decisivamente para


assegurar a distinção. Do ponto de vista prático pesavam os custos eleitorais
que ficavam a cargo dos candidatos.

9 Wanderley Guilherme dos Santos (2013, p. 13) chama atenção para a


ambiguidade que marca a análise dos governos oligárquicos, vistos ora como
antidemocráticos ora como protodemocráticos.

10 Cabe observar: o termo democratização implica a suposição de um processo


evolutivo em que os sistemas políticos se tornam mais democráticos com o
tempo.

11 A distinção países desenvolvidos/subdesenvolvidos caiu em desuso em


função de suas conotações evolucionistas. O tratamento em separado como
duas realidades diversas persiste, dando lugar a verdadeiros malabarismos
tipológicos para distinguir as trajetórias díspares. A América Latina pode ser
mais facilmente delimitada, por critérios históricos e geográficos, que o grupo
contrastante. Para não incorrer neste tipo de erro, optei por elencar os casos.
Não é fácil encontrar um critério que coloque Inglaterra, França e Estados
Unidos em um mesmo grupo.

12 Ter o direito ao voto não implica ter as mesmas chances de exercer o poder.
Esta a desigualdade fundamental implicada pela adoção do método eleitoral.
A indistinção que caracterizaria a democracia, a igualdade entre súditos e
soberanos não é obtida. Por isto mesmo, o sorteio é o método de seleção de
líderes associada à democracia.

13 Rivera (2000) nota que a reconstituição da história político-institucional da


região, invariavelmente, atribui à realidade social inóspita todas as dificuldades
e tropeços do governo representativo. O modelo institucional, assim, é
absolvido, como se seus criadores tivessem formulado as respostas para todas
as vicissitudes que enfrentaria. O modelo estaria pronto para ser aplicado. Se
falha, a culpa é do usuário. O corolário desta visão é a ideia da transplantação.
O modelo teria sido concebido tendo em vista uma realidade social diversa,
mais igualitária, na qual, quando implantado, teria funcionado sem maiores
problemas.

14 A tradução de todas as citações do trabalho de Hofstadter são minhas.

15 A passagem é a seguinte: “I never submitted the whole system of my


opinions to the creed of any party of men whatever, in religion, in philosophy, in
politics, or in anything else, where I was capable of thinking for myself. Such an
addiction is the last degradation of a free and moral agent. If I could not go to
heaven but with a party, I would not go there at all.” Thomas Jefferson to Francis
Hopkinson, in Writings of Thomas Jefferson, Memorial Editon, Lipscomb and
Bergh Editors, Washington DC, Vol. 7 pag 300.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 95-125 | jan.-abr. 2015 123


Governo representativo e democratização: revendo o debate

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VOLTAR Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 95-125 | jan.-abr. 2015 125
Ana Lúcia Kassouf

Fome, pobreza e
desenvolvimento: um convite
à leitura de Josué de Castro

Rosana Magalhães

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015 127


Rosana Magalhães
Rosana Magalhães é nutricionista (UFRJ), doutora
em Saúde Coletiva (IMS/UERJ) e pesquisadora do
Departamento de Ciências Sociais da Escola Nacional de
Saúde Pública (Fiocruz). Foi chefe do Departamento de
Ciências Sociais da ENSP, coordenadora da área de Saúde
e Sociedade do Programa de Pós-Graduação em Saúde
Pública da ENSP e atualmente desenvolve pesquisas
e estudos sobre os temas da Pobreza, Desigualdades
Sociais e Políticas Públicas de Saúde. Publicou o livro
Fome – uma releitura de Josué de Castro (editora Fiocruz,
1997). Escreveu, dentre outros artigos, Implementação
de Programas Multiestratégicos: Uma Proposta de
Matriz Avaliativa e Avaliação de Políticas e Iniciativas de
Segurança Alimentar e Nutricional: Dilemas e Perspectivas
Metodológicas, ambos os estudos publicados na revista
Ciência e Saúde Coletiva, da Abrasco.

128
Resumo
Este artigo faz um convite à leitura de Josué de Castro, médico,
sociólogo e geógrafo cuja obra contribuiu de maneira inegável
para a renovação do pensamento social brasileiro. O autor
sistematizou um discurso sobre a fome buscando articular
permanentemente as faces biológica e social de uma realidade
dramática presente no país e em várias regiões do mundo. Seus
textos expressam uma vigorosa crítica aos caminhos da nossa
nacionalidade e ao alcance da ciência. O seu esforço para criar
novas possibilidades interpretativas sem abdicar da busca de
alternativas políticas para o enfrentamento da fome e da misé-
ria segue como exemplo de compromisso público e abrangên-
cia intelectual.

Palavras-chave: Fome. Pobreza. Desenvolvimento. Políticas


públicas.

Abstract
This article is an invitation to read Josué de Castro, a doctor,
sociologist, and geographer, whose work undeniably contributed to
renew the Brazilian social thought. The author systematized a speech
on starvation seeking to integrate the biological and social sides of this
dramatic reality in Brazil and other regions of the world. His writings
express a strong criticism of our nationality paths and science impacts.
His efforts to create new interpretive possibilities without giving
up the search for political alternatives to cope with starvation and
poverty remain as an example of public commitment and intellectual
comprehensiveness.

Keywords: Starvation. Poverty. Development. Public Policies.

129
Fome, pobreza e desenvolvimento: um convite à leitura de Josué de Castro

Introdução

O debate sobre as relações entre fome, pobreza e desenvolvimento não é


novo. Ainda assim, é inegável a existência de controvérsias, ambiguida-
des e múltiplas referências tanto teóricas como metodológicas em torno
do tema. Podemos dizer que um dos grandes desafios para avançar na
compreensão integrada destes fenômenos e construção de instrumentos
de análise que possam ser compartilhados de uma maneira consistente
foi e ainda é romper com fronteiras disciplinares muito rígidas. Sem dú-
vida, a tarefa não é fácil. Apesar da dinâmica e historicidade da realida-
de social, o pensamento científico tem trilhado caminhos muitas vezes
avessos à reflexividade interdisciplinar e abrangente. No que se refere
à questão alimentar e nutricional, a desagregação do objeto de estudo
é recorrente. De um lado, a chamada ciência da nutrição que surgiu no
início do século XX e envolveu bioquímicos, médicos, nutricionistas e
outros profissionais de saúde corroborou para a investigação sobre nu-
trientes, patologias e terapias nutricionais. De outro lado, economistas e
planejadores privilegiaram a análise de dinâmicas organizacionais, pro-
cessos produtivos e barreiras relativas à disponibilidade e ao acesso aos
alimentos. Embora seja fundamental reconhecer a importância de cada
uma destas correntes e manter a prudência em relação à unanimidade,
há pouca convergência entre as abordagens e o diálogo com os diferen-
tes especialistas segue frágil e pouco ambicioso.

Segundo Lang e Heasman (2004), embora o mundo hoje esteja produzin­


do mais alimentos do que em qualquer outro momento da história, en-
frentamos ainda inúmeros desafios para alcançar melhores condições de
alimentação e nutrição: o envelhecimento da população, a introdução
de novas tecnologias envolvendo alterações genéticas dos alimentos, o
uso indiscriminado de agrotóxicos, o enfraquecimento das instituições e
arenas reguladoras, a persistência da fome e o aumento dos problemas
de saúde associados à alimentação cotidiana como a obesidade, o dia-
betes e a hipertensão arterial. Neste cenário desconcertante há poucos
consensos sobre o que fazer. As fortes tensões entre grupos de interesse
e divergências incontornáveis que atravessam o debate sobre a natureza
das culturas alimentares e das instituições e agências públicas de segu-
rança alimentar e nutricional têm produzido uma verdadeira “batalha de

130 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 127-147 | jan.-abr. 2015


Rosana Magalhães

paradigmas”. É razoável supor que esta falta de articulação dificilmente


irá contribuir para o alcance de mudanças efetivas.

Sem dúvida, a reflexão sobre pobreza e desenvolvimento social também


tem sido marcada por diferentes pontos de vista e antagonismos difi-
cilmente equacionados ou condensados em objetivos comuns. Aliás, há
um amplo e inconcluso debate sobre os conceitos de pobreza envolvendo
desde Adam Smith, Karl Marx e Alexis de Tocqueville até brilhantes pes-
quisadores e estudiosos contemporâneos como Peter Townsend, Serge
Paugam e Amartya Sen. No Brasil também é vasta a produção na área e
neste percurso, os consensos também têm se mostrado provisórios. Na
verdade trata-se de um terreno pantanoso. É preciso lembrar que a di-
minuição da pobreza associada à gestão governamental gera bons frutos
políticos e eleitorais. Com isso, proposições e teorias explicativas podem
ser consagradas ou obscurecidas muitas vezes ao sabor de objetivos po-
líticos pontuais. Assim, a natureza multidimensional das situações de
pobreza e miséria pode, por exemplo, dar lugar às interpretações bem
menos abrangentes e centradas apenas no critério de renda monetária.
Como lembra Loic Wacquant, sociólogo francês especialista nos temas
da desigualdade e da pobreza, “a renda é uma variável que os analistas
e os arquitetos das políticas públicas consideram mais amena: parece
fácil de medir e manipular” (WACQUANT, 2008). De acordo com o autor,
construir uma abordagem sobre pobreza baseada somente na renda mo-
netária é criar castelos de areia. Isto porque a definição de uma renda
mínima como fronteira entre pobres e não pobres tende a ser arbitrária
e não incorpora aspectos cruciais como o acesso a bens e serviços, ex-
periências de privação simbólica, os tipos de recursos disponíveis e sua
efetiva utilização pelos indivíduos e famílias. Outro problema é que o
uso do critério de renda tende a tornar homogêneas situações distintas
e não considera a capacidade de cada indivíduo, família ou grupo social
converter a renda em bem-estar (SEN, 1997). Com isso, nas áreas rurais
onde ainda é possível a produção de alimentos para o próprio consumo,
por exemplo, a pobreza pode estar superestimada, enquanto nas cidades
onde a dependência das transações de mercado é maior, subestimada
(ROCHA, 2003).

De fato, estudos longitudinais conciliando dados quantitativos e quali-


tativos buscando reconhecer as interdependências entre baixa escolari-

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 127-147 | jan.-abr. 2015 131


Fome, pobreza e desenvolvimento: um convite à leitura de Josué de Castro

dade, desemprego, segregação urbana e isolamento social apontam para


cenários bastante diferentes daqueles que são traçados a partir de abor-
dagens limitadas aos parâmetros de renda. No caso brasileiro, é preciso
lembrar que não temos uma linha monetária “oficial” e, frequentemente,
são superpostos critérios fazendo com que a renda per capita mensal de
até 25% do salário-mínimo utilizada para caracterizar a extrema pobreza
em alguns estudos oficiais não seja a mesma para a seleção de beneficiá-
rios pobres e “extremamente pobres” no programa federal de transferên-
cia de renda Bolsa Família, por exemplo.

Por fim, como o encontro de linhas monetárias de pobreza parte da


compreensão não só da pobreza mas do que é justo e aceitável em cada
sociedade, em muitos países admite-se como renda mínima um valor
que é próximo da renda média nacional levando-se em conta o Produto
Interno Bruto (PIB) per capita. Se aplicada esta perspectiva no Brasil, te-
ríamos que aceitar como pobres uma população muito maior do que o
contingente que tem sido demarcado pelas políticas públicas recentes.
Ainda assim as inconsistências permaneceriam já que, dificilmente, se-
riam contempladas diferenças regionais, de gênero ou étnicas que têm
fortes interfaces com o acesso à renda em um país tão complexo e desi-
gual como o nosso. Na verdade em sociedades com sistemas de proteção
social mais amplos e menos estigmatizantes, a renda tem deixado de
ser a principal via de acesso a bens e serviços de qualidade e demais
prerrogativas de cidadania. Nestes contextos é visto como intensamente
problemático comparar níveis de pobreza entre os grupos sociais sem
incorporar dados sobre o acesso às políticas de saneamento, habitação,
saúde educação, participação social e demais direitos sociais.

Nesse aspecto, as tradições teóricas que buscam associar a fome e a


pobreza à história e à dinâmica dos laços comunitários (SIMMEL, 1998;
DOUGLAS, 2003) têm o mérito de evitar clivagens arbitrárias e economé-
tricas entre pobres e não pobres e, consequentemente, avançar na refle-
xão mais ampla sobre cidadania, justiça distributiva, solidariedade social
e os múltiplos significados do desenvolvimento. Mas a especialização
crescente, o ambiente intensamente competitivo e certo esvaziamento
dos vínculos políticos e éticos entre a prática de pesquisa e a natureza
complexa das demandas e necessidades da população contribuem para
perpetuar a fragmentação e fortalecer antagonismos entre saberes e

132 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 127-147 | jan.-abr. 2015


Rosana Magalhães

áreas de conhecimento. Além disso, distinções mecânicas entre o “natu-


ral” e o “social” dificultam a problematização de situações marcadas por
interdependências e interações recíprocas entre aspectos econômicos,
culturais, políticos e de saúde. Evidentemente, é preciso reconhecer e va-
lorizar resistências e alternativas a tais enfoques e abordagens. Sob a in-
fluência da Antropologia, da Sociologia, da História e da Geografia vários
autores preocupados em entender a natureza das práticas alimentares
e das experiências de privação tanto material como simbólica colabora-
ram de maneira substantiva para a construção de estratégias interpre-
tativas interdisciplinares. Sabemos, porém, que cada contexto histórico
traz possibilidades e limites próprios para a reflexão conceitual e dese-
nho de iniciativas concretas para lidar com problemas sociais. Há, nesta
perspectiva, um “horizonte social” ou campo de debates e preocupações
que balizam posições cognitivas, itinerários de pesquisa e a obra de cada
autor. Ainda assim, é inescapável reconhecer o compromisso científico
e a coerência intelectual nos textos que assumiram o desafio de inter-
rogar o seu tempo e para, além disso, reivindicar mudanças sociais com
base no estudo de práticas e experiências cotidianas de diferentes co-
munidades. Esse é o caso da obra de Josué de Castro, médico, sociólogo e
geógrafo pernambucano cujo projeto de vida foi analisar as origens, con-
tornos e repercussões da fome. Inúmeras instituições criadas no país e
no mundo em torno da questão alimentar e nutricional entre as décadas
de 1930 e 1970 revelam a influência intelectual do autor. Mesmo durante
o período do exílio e sofrendo as ambivalências e contradições desta ex-
periência, Josué de Castro permaneceu refletindo e produzindo análises
contundentes sobre os desafios da fome e do desenvolvimento social.

Cem mil cidadãos feitos de carne de caranguejo

Josué de Castro nasceu no Recife no dia 5 de setembro de 1908, filho


de um agricultor sertanejo expulso pela seca de 1877. Em 1929, aos 21
anos concluiu o curso de Medicina na Universidade do Brasil no Rio
de Janeiro e começou a clinicar em um consultório de endocrinologia
no Recife. Ainda na faculdade, mostrou um forte interesse pela obra
de Sigmund Freud e também pela literatura. Além de poemas e crôni-
cas, em 1930 publicou um conto intitulado O ciclo do caranguejo, que se

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 127-147 | jan.-abr. 2015 133


Fome, pobreza e desenvolvimento: um convite à leitura de Josué de Castro

tornaria um testemunho da sua sensibilidade em relação ao drama da


miséria nos mangues do Recife. Para Josué de Castro, ali nos mangues a
lama, os caranguejos e os homens se fundiam em uma luta incessante
pela sobrevivência.

O ciclo do caranguejo revela um pouco do clima intelectual e político da


época. Desde a década de 1920, as crises da economia agrário-expor-
tadora e do Estado oligárquico alimentavam o desejo de mudanças
sociais orientadas para a formação de um Estado nacional e de uma
sociedade mais democrática. Se antes a intelectualidade brasileira só
tinha olhos para a Europa, neste período cresce a crítica à imitação, ao
chamado “macaqueamento” (SCHWARZ, 2005). A geração de artistas e
intelectuais da época vai buscar olhar o Brasil abandonando as lentes
estrangeiras. O movimento modernista expressou bem este contexto
em que o mais importante passou a ser redescobrir um Brasil oculto,
ambíguo e bem mais contraditório. Josué de Castro acompanhou este
movimento de construção de uma identidade nacional. Por meio da
literatura e do cinema, será pelo campo científico que ele irá buscar
instrumentos, metodologias e enfoques conceituais para lidar com as
grandes transformações e desafios do início do século XX no país, espe-
cialmente o desafio da fome.

No que se refere ao tratamento dado à questão alimentar até os anos


1930, é preciso lembrar que já existiam intervenções e medidas orienta-
das para a construção de parâmetros para a boa alimentação. Oswaldo
Cruz e Eduardo Magalhães, pioneiros da saúde pública no Brasil, integra-
ram a alimentação às preocupações higienistas (BRAGA, 1978). No entan-
to, o abastecimento de alimentos e a fiscalização para evitar o consumo
de produtos deteriorados eram, na época, os principais focos da agenda
pública. Ainda não havia um discurso científico legitimado em torno da
nutrição no país apesar das pesquisas e descobertas no campo da Bio-
química, dinamizado com a I Guerra Mundial, e, especialmente, focaliza-
das no valor calórico dos alimentos e na identificação de nutrientes ca-
pazes de prevenir patologias. Apesar dos avanços da Endocrinologia no
final dos anos 1920, a área só ganhará fôlego no Brasil a partir da conso-
lidação de um Estado Nacional capaz de propor e implementar políticas
de saúde pública capazes de atender às necessidades dos trabalhadores
e aos interesses da economia urbana e industrial.

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Rosana Magalhães

Assim, interagindo com o contexto político do governo de Getúlio Vargas


e dialogando com os múltiplos olhares disciplinares da Bioquímica,
Fisiologia, Antropologia, Sociologia e Economia o autor construiu uma
abordagem interdisciplinar sobre a fome coletiva. Em O problema da ali-
mentação no Brasil, publicado em 1933 e na pesquisa As Condições de Vida
das Classes Operárias em Recife, divulgada no ano seguinte, Josué deixou
evidente sua preocupação em desvendar as influências mútuas do clima,
da cultura, da pobreza e da alimentação na saúde e na produtividade do
brasileiro. Josué de Castro analisou as práticas alimentares de cerca de
500 famílias e concluiu que mais de 70% de sua renda mensal era com-
prometida com a compra de alimentos e, ainda assim, as necessidades
nutricionais não eram atendidas tanto em termos quantitativos como
qualitativos:

O regime que analisamos, possuindo apenas 1.645 calorias, é um regime


insuficiente, que somente chega a cobrir os gastos do metabolismo míni-
mo individual no nosso clima, sem margem para o gasto do trabalho. Sob
o ponto de vista qualitativo também é um regime incompleto (CASTRO,
1937).

Apesar de compartilhar da perspectiva de valorização da identidade na-


cional, Josué de Castro irá se confrontar com a imagem romanceada do
Brasil onde as possibilidades naturais eram imensas, o solo fértil e havia
fartura de alimentos para todos. De certa forma, a polêmica com Gilberto
Freyre após a publicação de O problema fisiológico da alimentação no Brasil,
em 1932, está ligada a esta verdadeira obsessão do autor: construir uma
visão crítica da situação alimentar no país e apontar caminhos para a
superação da fome. Se para Gilberto Freyre o dono de engenho e o es-
cravo eram bem alimentados, para Josué eram alarmantes as condições
nutricionais na região tanto entre os pobres como entre os ricos. E esta
descoberta da má nutrição atravessando os diferentes grupos sociais
era desconcertante. Como dirá Antonio Candido nas décadas de 1930 e
1940, a palavra de ordem era apresentar o país como a “Terra Prometida”
(CANDIDO, 2001). Para Josué de Castro, na verdade, havia uma verdadeira
“conspiração de silêncio” e a fome no Brasil teria se tornado um tabu, um
assunto ao mesmo tempo “delicado e perigoso”.

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Fome, pobreza e desenvolvimento: um convite à leitura de Josué de Castro

A influência do pensamento geográfico de Paul Vidal de La Blache


A influência da Geografia Humana, na sua vertente francesa e sob a ins-
piração de Vidal de La Blache, foi decisiva na obra de Josué de Castro. Em-
bora tal vertente reiterasse a crença na neutralidade científica e compar-
tilhasse algumas premissas do positivismo, também incorporava uma
crítica importante ao determinismo e às interpretações a-históricas so-
bre a relação entre o homem, a cultura e o meio ambiente. Esta geografia
muito mais interpretativa do que descritiva, e que valorizava ao mesmo
tempo os obstáculos e as oportunidades de cada território em sua inte-
ração com os agrupamentos humanos, contribuiu para o desenho de um
quadro de análise sobre a fome nas diferentes regiões do país. Em 1937,
Josué de Castro assumiu a cátedra de Geografia Humana na Universida-
de do Distrito Federal, posteriormente Universidade Federal do Rio de
Janeiro, consolidando a Geografia como uma ferramenta teórica e me-
todológica capaz de transcender as fronteiras disciplinares e favorecer
um olhar qualificado sobre as interdependências e influências recíprocas
entre natureza e cultura. Sem abdicar das demonstrações empíricas da
fome crônica e das carências nutricionais em suas múltiplas formas, a
obra caminhou desvendando o enraizamento social, cultural e político
das populações que têm fome. Quem são os famintos, como vivem, como
trabalham e, sobretudo, de que maneira fazem parte da história de sua
região emergiram como eixos privilegiados da sua investigação. O livro
Alimentação à luz da geografia humana, escrito em 1937, revelou a centra­
lidade da geografia no seu trabalho:

Só a geografia que considera a terra como um todo e que ensina a saber


ver os fenômenos que se passam na superfície, a observá-los, agrupá-los
e classificá-los, tendo em vista a sua localização, extensão e causalida-
de, pode orientar o espírito humano na análise do vasto problema da
alimentação, como fenômeno ligado, através de influências recíprocas à
ação do homem, do solo, do clima, da vegetação e do horizonte de traba-
lho (CASTRO, 1937a, p. 26).

Nesta direção, como aponta Anthony Giddens ainda que, historicamen-


te, sociólogos e geógrafos tenham trilhado caminhos diferentes ao longo
da história, partilham origens comuns. Para Giddens “as configurações
espaciais da vida social são matéria de tanta importância básica para a
teoria social quanto a dimensão de temporalidade” (GIDDENS, 2003). Em

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Rosana Magalhães

1939, Josué de Castro é convidado para participar do governo de Getúlio


Vargas e passa a dirigir o Serviço de Alimentação da Previdência Social
(Saps). Será no Saps que Josué de Castro propôs a obrigatoriedade da me-
renda escolar e participou da discussão sobre cestas alimentares básicas
e a criação do salário-mínimo. Em 1946, a publicação do livro Geografia
da fome consagrou sua abordagem apresentando descrições regionais
aprofundadas marcadas pela análise do entrelaçamento entre o homem
e a natureza ao longo da história. A procura pela identidade e vocação
de cada comunidade foi aliada à arguta observação de singularidades
e especificidades locais. Reforçando o enfoque interdisciplinar, Josué de
Castro problematizou a visão da fome proposta por bioquímicos ou eco-
nomistas sempre constrangidos pelo quadro de suas especializações.
Para ele, o método geográfico teria o objetivo de superar estes limites e
favorecer a reflexão em torno das correlações entre aspectos naturais
e sociais. Podemos dizer que, menos a ideia de um circuito vicioso em
que a fome gerava a baixa produtividade que por sua vez gerava mais
fome, Josué de Castro estava preocupado com fluxos interdependentes.
Deixando muito claro seu foco na fome coletiva, o autor contribuiu de
maneira pioneira para a distinção entre a fome total, em geral presente
nas regiões de miséria extrema e a fome parcial ou fome oculta: “A fome
oculta faz morrer lentamente todos os dias de fome grupos inteiros da
população apesar de comerem todos os dias” (CASTRO, 1946).

Josué de Castro rompeu desta forma, com os estigmas da raça e do cli-


ma como obstáculos ao desenvolvimento do país, estereótipos que ainda
eram muito fortes no início do século XX no país: “Não existem superio-
ridades ou inferioridades raciais, o que existe são diferenciações bioló-
gicas condicionadas pelas condições locais. O que é superioridade nas
regiões polares pode ser uma inferioridade nas regiões tropicais e vice-
versa” (CASTRO, 1946).

Josué de Castro também se opôs fortemente a qualquer forma de controle


demográfico para equacionar o problema da fome. Invertendo a relação
de causalidade entre crescimento populacional e escassez de alimen-
tos prevista por Malthus, Josué de Castro afirmava que a superpopulação
não gerava a fome e sim era a fome, por meio de um mecanismo comple-
xo de estímulo à fecundidade que gerava o aumento populacional. Esta
tese foi intensamente criticada e mesmo refutada por vários estudos que

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Fome, pobreza e desenvolvimento: um convite à leitura de Josué de Castro

demonstraram que o fenômeno do crescimento populacional era mais


complexo e ligado às múltiplas causas para além da dimensão biológica
No entanto podemos dizer que ainda é válida a concepção do autor sobre
as relações entre desenvolvimento econômico e social e o equilíbrio de-
mográfico assim como a crítica a Malthus por considerar o crescimento
da população uma variável independente da realidade social.

As regiões de fome

No livro Geografia da fome, publicado em 1946, Josué de Castro estudou


com rigor as especificidades da alimentação entre as populações das di-
ferentes regiões do país e delineou as chamadas “cinco áreas de fome”.
Na Amazônia, por exemplo, a pobreza do solo, as práticas arcaicas na
agricultura e a baixa densidade demográfica eram refletidas na alimen-
tação composta basicamente de farinha de mandioca, feijão, peixe, ovos
de tartaruga e arroz. O abandono da região após o fim do ciclo da borra-
cha, os altos índices de mortalidade e a migração para o Sul, segundo o
autor, teriam contribuído para um quadro de fome endêmica. O cenário
onde prevalecia o déficit calórico só não era mais grave porque existia ali
na região um complexo mecanismo de aclimatação, o qual acarretava
a queda da taxa de metabolismo basal dos trabalhadores. Assim, a ali-
mentação monótona e hipocalórica, que poderia ser mortal em um clima
temperado ou frio, na Amazônia quente e úmida se tornava adequada à
sobrevivência. Esta adaptação orgânica, na sua avaliação, poderia ser en-
tendida como uma ressignificação mais acurada do que era comumente
chamado de preguiça ou falta de disposição para o trabalho. Como mos-
trou Josué de Castro, a preguiça era, na verdade, uma manobra inteligen-
te do corpo para enfrentar o contexto local.

Todavia, se o corpo enfrentava as condições naturais com sabedoria, o


Estado mostrava sua debilidade. Para Josué de Castro, a ausência de pro-
jetos de investimento e de alternativas para o aproveitamento dos recur-
sos naturais na região revelava o total desinteresse pelo desenvolvimento
local. Neste aspecto, sua análise sobre as razões do déficit proteico na
região amazônica foi emblemática. A partir de sua pesquisa, foi possível
perceber que a população local, apesar de contar com uma grande va-
riedade de peixes nos rios, lagoas e igarapés, não podia consumir essas

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Rosana Magalhães

fontes privilegiadas de proteína de alto valor biológico porque não exis-


tia nenhuma organização da atividade pesqueira ou intervenção voltada
à industrialização dos produtos da pesca capaz de garantir a comerciali-
zação do peixe seco ou de conservas durante todo o ano.

Já no Nordeste, Josué de Castro evidenciou duas realidades distintas


e contraditórias: as conformações sociais do sertão e da região açuca-
reira com diferentes possibilidades alimentares e quadros de fome. Ao
estudar a composição privilegiada da dieta no sertão, onde a economia
agroexportadora ainda não havia dizimado a policultura, ele percebeu
a presença do milho, do leite, da carne e também de vários tubérculos.
No entanto, ao mesmo tempo o autor pôde perceber que este cenário
positivo era ameaçado durante o período das secas. A dieta favorável era
desse modo, totalmente desestruturada com a falta de chuvas configu-
rando “verdadeiras epidemias de fome”. A sabedoria alimentar do ser-
tanejo nordestino era assim corroída mais uma vez pela ineficiência da
intervenção pública.

No chamado Nordeste açucareiro, a ação dos colonizadores preocupa-


dos apenas com sua sustentação econômica baseada na monocultura da
cana conduzia a região a um quadro de fome permanente ou endêmi-
ca. O lucro com a cana-de-açúcar, de acordo com Josué de Castro, exigia
a exploração dos trabalhadores e o esgotamento do solo. Com isso, a dieta
da população era inadequada e impactava fortemente o quadro de saúde
local. De um lado, o consumo exagerado de alimentos ricos em açúcar
e amido contribuía para a grande incidência de diabetes e obesidade.
De outro lado, estavam presentes múltiplas doenças carenciais devido
à falta de proteínas, vitaminas e sais minerais. Reconhecendo, porém,
a complexidade da questão alimentar e as múltiplas influências histó-
ricas e culturais observáveis na região, Josué de Castro pôde iluminar os
efeitos positivos das culturas indígena e negra amenizando tais proble-
mas e possibilitando a criação de importantes alternativas à monotonia
alimentar. Durante o período colonial, o cultivo de frutas e hortaliças
era proibido entre os escravos, mas ainda assim, sobretudo nos quilom-
bos, os negros buscavam manter plantações de banana, laranja e outras
frutas. Com isso, hábitos alimentares mais saudáveis em contraponto à
dieta restrita composta pela farinha de mandioca, feijão e toucinho pu-
deram ser garantidos ao longo das décadas. A maior parte da população,

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Fome, pobreza e desenvolvimento: um convite à leitura de Josué de Castro

porém, ainda sofria com a falta de ferro, vitaminas do complexo B e pro-


teínas de alto valor biológico. Apenas os grupos que moravam à beira
do litoral escapavam desta miséria alimentar incorporando nas prepara-
ções culinárias o coco, os peixes e o azeite de dendê.

No Centro-Oeste, além do cultivo do milho e da couve, a produção do


melado e a criação de gado contribuíam para uma alimentação mais
equilibrada. De acordo com Josué de Castro apenas o bócio endêmico
e, portanto, a carência de iodo denunciavam o desequilíbrio alimentar
na região. Nas regiões Sudeste e Sul, a influência dos imigrantes euro-
peus favoreceu a policultura com destaque para a produção de aveia,
lentilhas, hortaliças, frutas e também o consumo de carnes. Com efeito,
para Josué de Castro esta composição diversificada configurava uma
situação alimentar e nutricional bastante favorável, como apenas zo-
nas de subnutrição e raros casos de fome em geral presentes entre os
trabalhadores menos especializados do contexto urbano. Para Josué de
Castro, a pouca importância dada pelo Estado à agricultura, à questão
da propriedade da terra e à industrialização em todas as regiões do
país, porém, ampliava as intensas desigualdades sociais e criava pro-
fundos obstáculos para o desenvolvimento: “É impossível promover o
desenvolvimento em um país em que 8% dos proprietários possuem
75% da terra” (CASTRO, 1967).

Fome e desenvolvimento

Na décima edição do livro Geografia da fome, a qual considerava definitiva,


Josué de Castro incluiu o subtítulo O Dilema Brasileiro: Pão ou Aço. No
texto, o autor chamou a atenção para o privilegiamento de alguns seto-
res industriais em detrimento da promoção do desenvolvimento agrícola
de maneira integrada e atento às necessidades crescentes do mercado
interno:

Este livro foi publicado pela primeira vez em 1946. Nele tentou o autor
esboçar um retrato do Brasil que era então tipicamente subdesenvolvi-
do, com suas características econômicas de tipo colonial, na exclusiva
dependência de uns poucos produtos primários de exportação, entre os
quais se destacava o café. Ao retratarmos a fome no Brasil, estávamos a
evidenciar o seu subdesenvolvimento econômico porque fome e subde-
senvolvimento é a mesma coisa. Mas o desnível entre a agricultura e a

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Rosana Magalhães

indústria agravou ainda mais a fome no país. Não foi nem casual nem
politicamente desinteressada esta opção por uma política preocupada
em desenvolver áreas já desenvolvidas e em enriquecer os grupos já en-
riquecidos (CASTRO, 1987).

A fome para Josué de Castro era a expressão biológica de um fenômeno


econômico, mas também dos impactos sociais, culturais e políticos do
colonialismo. A economia colonial baseada na exportação de matéria-
prima necessária para a expansão comercial e industrial dos países eu-
ropeus e mais tarde dos Estados Unidos gerou um quadro de miséria e
fome nos países latino-americanos e especialmente no Brasil. No entan-
to, apesar de rompido o pacto colonial, surgiam permanentemente novas
desigualdades a partir da ação de grupos de interesse preocupados em
manter privilégios. Segundo o autor, uma política orientada pelo lucro e
não para o atendimento das necessidades do homem resultou na explo-
ração da população e manutenção da miséria no país.

Apesar de reconhecer que a má nutrição também afetava algumas par-


tes da Europa como o sul da Itália, a Espanha e a Grécia, para Josué de
Castro a fome endêmica nas primeiras décadas do século XX assolava a
África, a Ásia e a América Latina de maneira contundente. Na sua aná-
lise, a produção agrícola voltada ao mercado externo em detrimento do
mercado interno permitiu o enriquecimento de uma burguesia mercantil
e a perpetuação de uma elite fundiária. Para romper com este arranjo
ancorado em uma estrutura agrária arcaica era fundamental promover a
diversificação da produção agrícola, o aumento da demanda interna e do
poder aquisitivo do salário dos trabalhadores e a reforma agrária. A mo-
dernização da produção agrícola ocupou um lugar central na abordagem
de Josué de Castro. Mas longe de focalizar apenas a introdução de novas
tecnologias produtivas, o autor chamava a atenção para a necessidade
de mudanças amplas na estrutura social do campo. A reforma agrária
limitada apenas à redistribuição da terra seria inócua ou, segundo suas
palavras, “uma falsa reforma”. Para resgatar a função social da terra era
preciso um amplo movimento educacional, sanitário e assistencial ca-
paz de reduzir as desigualdades e possibilitar ganhos efetivos nas condi-
ções de saúde e bem-estar de trabalhadores rurais.

O autor se aproximou da corrente cepalina tanto no que se refere ao


diagnóstico da situação brasileira como na proposição de alternativas e

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Fome, pobreza e desenvolvimento: um convite à leitura de Josué de Castro

soluções políticas. A Cepal, Comissão Econômica para a América Latina


e Caribe, criada em 1948 pela Organização das Nações Unidas, reunia
grandes estudiosos em torno da questão do desenvolvimento. Josué de
Castro compartilhava a visão de Raul Prebisch de que a divisão interna-
cional do trabalho colocava a América Latina como periferia no sistema
econômico mundial e consequentemente cristalizava seu papel de for-
necedora de matéria-prima para os países centrais. Assim, o subdesen-
volvimento não era entendido como a ausência ou insuficiência de de-
senvolvimento, mas sim um produto perverso e indissociável do próprio
desenvolvimento.

Josué de Castro tentou contornar algumas das principais críticas às teo­-


rias desenvolvimentistas da Cepal: a sua análise sobre as razões do atra-
so brasileiro não privilegiava apenas a dimensão econômica da explo-
ração colonial (TARANTO, 1980). Fatores socioculturais, assimetrias de
poder no campo e a trajetória institucional centralizadora e avessa à ino-
vação foram questões que ganharam destaque e relevância na sua obra.
A propriedade da terra no Brasil extremamente concentrada foi identifi-
cada como um obstáculo econômico e político para o alcance do desen-
volvimento social. Josué de Castro analisou as especificidades dos países
latino-americanos e do Brasil também no que se refere ao investimento
em capital humano. Assim, para ele somente uma aliança com setores
industriais modernizantes e a radicalização da democracia no plano po-
lítico poderiam levar a cabo as reformas econômicas e sociais necessá-
rias. Para Josué de Castro, se era importante consolidar um capitalismo
nacional, moderno, industrializante capaz de transformar as relações
entre centro e periferia e criar desta forma um mercado forte entre os
países, também era crucial promover amplas mudanças institucionais e
culturais. Com esta perspectiva ocupou posições de destaque em várias
organizações internacionais como a presidência do Conselho Executivo
da FAO, órgão das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação en-
tre 1952 e 1956 e a Associação Mundial de Luta contra a Fome (Ascofam),
organização não governamental voltada ao desenvolvimento de ações e
políticas contra a fome.

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Rosana Magalhães

Impacto e desdobramentos: o contexto contemporâneo


No Brasil, a consolidação da alimentação como direito constitucional e
a aprovação de uma Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional
revelam o amadurecimento do debate conceitual e o refinamento insti-
tucional sobre a questão da fome ao longo dos anos. Ao mesmo tempo, o
quadro nutricional tornou-se mais complexo e multifacetado. Os déficits
calóricos em algumas regiões analisadas por Josué de Castro diminuí-
ram, assim como a prevalência de algumas carências de vitaminas e sais
minerais. O perfil alimentar e nutricional modificou-se de maneira sig-
nificativa. O valor calórico médio da dieta cotidiana aumentou e o déficit
proteico deixou de ser uma questão prioritária na maioria das regiões do
país. O aumento do consumo de carnes, leite e ovos atenuou o problema
e também reduziu a deficiência de cálcio e de vitaminas do complexo
B. A iodação do sal praticamente eliminou o risco de bócio nas regiões
Centro-Oeste, Sudeste e Sul do país. Os déficits de altura para idade fo-
ram reduzidos.

Dentre as razões para estas transformações podemos destacar a melho-


ria na assistência à saúde, avanços nos níveis de escolaridade, sobretudo
das mães, diminuição do desemprego e ampliação de direitos sociais.
Além disso, o panorama nutricional também foi impactado pelo acele-
rado processo de urbanização ocorrido no país. Se no período analisado
por Josué de Castro cerca de 80% da população vivia nas zonas rurais,
hoje a situação é inversa e a maioria da população está concentrada
nas áreas metropolitanas. Com isso, apesar da existência de enormes
desafios nutricionais no campo o quadro de miséria e fome tornou-se
mais urbano e segmentado a partir de clivagens de gênero, etnia, esco-
laridade e inserção ocupacional, sobretudo nas periferias e favelas. Ou
seja, apesar dos avanços em relação às décadas de 1940 e 1950, persis-
tem barreiras sociais históricas que ainda impedem o acesso equitativo
aos alimentos. A hipovitaminose A e a anemia por deficiência de ferro,
sobretudo em crianças, permanecem sendo problemas graves em várias
regiões do país assim como as doenças carenciais causadas por diarreias
e infecções intestinais devido à falta de saneamento básico. E houve um
aumento significativo dos casos de obesidade entre adultos e também
em crianças e jovens. Doenças como diabetes e hipertensão arterial
associadas a baixos níveis de atividade física e ao consumo elevado de

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Fome, pobreza e desenvolvimento: um convite à leitura de Josué de Castro

açúcares, gorduras e sódio presentes em alimentos processados e de bai-


xo custo têm crescido de maneira alarmante gerando o aumento das
taxas de mortalidade e morbidade.

Neste contexto, a fome, entendida nos termos de Josué de Castro, como


problema coletivo, muitas vezes oculto e marcado por déficits qualita-
tivos e não só quantitativos, é ainda um tema prioritário. Como sinali-
zou Josué de Castro no Brasil e na maioria dos países do mundo, a fome
não pode ser explicada pela incapacidade de produzir alimentos. O que
prevalece como principais vetores da má nutrição são, na verdade, as
barreiras sociais e as múltiplas desigualdades no acesso aos alimentos
de maneira adequada e ambientalmente sustentável. Não conseguimos
universalizar a educação com qualidade e erradicar a indigência, enten-
dida como a incapacidade de obter a renda necessária para garantir a
cesta básica de alimentos e, portanto, a mera sobrevivência física dos
indivíduos em patamares aceitáveis. Apesar das inegáveis mudanças
positivas, o acesso aos serviços de saúde e ao saneamento de maneira
universal e efetiva ainda é um grande desafio. A fome e a pobreza não
são sinônimas na medida em que as pessoas que vivem em condições
de pobreza extrema podem por meio de múltiplas estratégias de sobre-
vivência e, também, do acesso diferenciado à rede de serviços de saúde e
saneamento, contornar a desnutrição e algumas carências nutricionais.
No entanto, é clara a maior vulnerabilidade à fome dos indivíduos e fa-
mílias que vivem em contextos de privação material e acumulam des-
vantagens sociais. Ou seja, a experiência da fome ratifica uma estrutura
social injusta.

No que se refere à infraestrutura para lidar com problemas que afetam


seriamente o acesso a alimentos em algumas regiões, podemos dizer
que no caso das secas no Nordeste a situação ainda é dramática. Neste
sentido, superar o desequilíbrio alimentar durante o período das secas
ainda é um dilema no cenário social brasileiro: o sertão nordestino expe-
rimentou em 2013 a maior seca das últimas cinco décadas, atualizando o
diagnóstico feito por Josué de Castro nos anos 1940. De fato, ao formular
um conceito de desenvolvimento que não é puramente econômico, mas
que remete aos aspectos substantivos do bem-estar dos indivíduos, a
obra mantém uma proximidade inquestionável com o debate atual sobre
segurança alimentar e nutricional. Esta atualidade da obra também pode

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Rosana Magalhães

ser percebida na agenda pública global em torno das formas de produ-


ção e consumo articuladas ao respeito ao meio ambiente e à promoção
da saúde. Para Josué de Castro, a elasticidade do ambiente natural tinha
limites – o que ele chamou de “limites de nocividade”. Além destes limi-
tes, o impacto do homem sobre a natureza mostrava-se extremamente
perigoso. Dialogando com diferentes referências analíticas embora sob a
motivação do olhar geográfico, Josué de Castro segue, assim, inspirando
a reflexão interdisciplinar sobre padrões alimentares e de desenvolvi-
mento social democráticos, sustentáveis e orientados pela equidade.

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Fome, pobreza e desenvolvimento: um convite à leitura de Josué de Castro

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Rosana Magalhães

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SCHWARZ, Roberto. As idéias fora do lugar. In: SCHWARZ, Roberto. Cultura e


Política. São Paulo: Paz e Terra, 2005. p. 59-83.

SEN, Amartya. Poverty and famines. New York: Oxford University Press, 1997.

SIMMEL, Georg. Les pauvres. [Paris]: Presses Universitaires de France, 1998.

TARANTO, G. Societá ed sottosviluppo nell´opera di Josué de Castro. Geneve: Cahiers


Internationaux D´Histoire Economique et Sociale, 1982. p. 3-110.

WACQUANT, Loic. As duas faces do gueto. São Paulo: Boitempo, 2008.

VOLTAR Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 127-147 | jan.-abr. 2015 147
Rosana Magalhães

NÚMEROS ANTERIORES
Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 127-147 | jan.-abr. 2015 149
EDIÇÃO 22
DOSSIÊ
Velhice, família, Estado e propostas políticas
Myriam Moraes Lins de Barros (Organização)

Feminismo e velhice
Guita Grin Debert

Entre o Estado, as famílias e o mercado


Carlos Eugênio Soares de Lemos

Violências específicas aos idosos


Alda Britto da Motta

ARTIGOS
Vazios culturais versus alternativas da cultura e as estratégias da poesia
de Cacaso
Carlos Augusto Lima

Violência e maus-tratos contra as pessoas idosas


Lucia Helena de Freitas Pinho França e Edson Alexandre da Silva

EDIÇÃO 23
DOSSIÊ
Lazer
Edmundo de Drummond Alves Junior (Organização)

Sobre o conceito de lazer


Victor Andrade Melo

O profissional do lazer
Hélder Ferreira Isayama

Lazer: um direito de todos


Edmundo de Drummond Alves Junior
Cleber Dias

ARTIGOS

Por uma história da assistência medieval: o caso de Portugal


Priscila Aquino Silva

A forma e as formas de “Alumbramento”


André Vinícius Pessoa

150 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 1-156 | jan.-abr. 2015


EDIÇÃO 24
O americanista tardio: as relações entre o Brasil e os Estados Unidos nos
escritos de Joaquim Nabuco
Angela Alonso 9

Anísio Teixeira: cultura e educação para a nova cidadania


Carlos Guilherme Mota3

Pornografia e Shoah
Jacques Fux53

Teoria do Estado Desenvolvimentista: uma revisão da literatura


Marcus Ianoni 81

As reflexões históricas de Sérgio Buarque de Holanda sobre agricultura


(1936-1957)
Robert Wegner 107

EDIÇÃO 25
O Estado Novo e o debate sobre o populismo no Brasil
Angela de Castro Gomes

Mundo desencantado e mundo desengajado


Luis Carlos Fridman

Henrique Galvão entre os descompassos no império lusitano


Rita Chaves

O marketing político no Brasil: da consolidação ao desafio


das redes sociais
Sérgio Ricardo Rodrigues Castilho

Exílio e linguagem: a escrita de Samuel Rawet


Vera Lins

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 1-156 | jan.-abr. 2015 151


EDIÇÃO 26
DOSSIÊ
Sustentabilidade
Marta de Azevedo Irving (Organização)

Sustentabilidade e O futuro que não queremos: polissemias,


controvérsias e a construção de sociedades sustentáveis
Marta de Azevedo Irving

Sustentabilidade e educação ambiental:


controvérsias e caminhos do caso brasileiro
Carlos Frederico B. Loureiro

“Sustentabilidade líquida”: o consumo da natureza e a dimensão


do capitalismo rizomático nos platôs da sociedade de controle
Fred Tavares

Sustentabilidade e justiça social


Maryane Vieira Saisse

Comunicação e sustentabilidade: reflexões sobre o papel da mídia na


construção de novas práticas de cidadania
Elizabeth Oliveira

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Sinais Sociais, entre em contato conosco:
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NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 127-147 | jan.-abr. 2015 153


Política editorial
A revista Sinais Sociais é editada pelo Departamento Nacional do Ser­viço
Social do Comércio (Sesc) e tem por objetivo contribuir para a difusão
e o desenvolvimento da produção acadêmica e científica nas áreas das
ciências humanas e sociais. A publicação oferece a pesquisadores, uni-
versidades, instituições de ensino e pesquisa e organizações sociais um
canal plural para a disseminação do conhecimento e o debate sobre gran-
des questões da realidade social, proporcionando diálogo amplo sobre a
agenda pública brasileira. Tem periodicidade quadrimestral e distribuição
de 5.000 exemplares entre universidades, institutos de pesquisa, órgãos
públicos, principais bibliotecas no Brasil e bibliotecas do Sesc e Senac.

A publicação dos artigos, ensaios, entrevistas e dossiês inéditos está con-


dicionada à avaliação do Conselho Editorial, no que diz respeito à ade-
quação à linha editorial da revista, e por pareceristas ad hoc, no que diz
respeito à qualidade das contribuições, garantido o duplo anonimato no
processo de avaliação. Eventuais sugestões de modificação na estrutura
ou conteúdo por parte da Editoria são previamente acordadas com os
autores. São vedados acréscimos ou modificações após a entrega dos tra-
balhos para composição.

Normas editoriais e de apresentação de artigos

O trabalho deve ser apresentado por carta ou e-mail pelos(s) autor(es),


que devem se responsabilizar pelo seu conteúdo e ineditismo. A carta
deve indicar qual ou quais áreas editoriais estão relacionadas ao traba-
lho, para que este possa ser encaminhado para análise editorial especí-
fica. A mensagem deve informar ainda endereço, telefone, e-mail e, em
caso de mais de um autor, indicar o responsável pelos contatos.

Incluir também o currículo (com até cinco páginas) com a formação aca-
dêmica e a atuação profissional, além dos dados pessoais (nome com-
pleto, endereço, telefone para contato) e um minicurrículo (entre 5 e 10
linhas, fonte Times New Roman, tamanho 10), que deverá constar no mes-
mo documento do artigo, com os principais dados sobre o autor: nome,
formação, instituição atual e cargo, áreas de interesse de trabalho, pes-
quisa, ensino e últimas publicações.

Os textos devem ser encaminhados para publicação ao e-mail:


sinaissociais@sesc.com.br, ou em CD ao endereço a seguir:

154 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 1-156 | jan.-abr. 2015


DEPARTAMENTO NACIONAL DO SESC
Gerência de Estudos e Pesquisas
Av. Ayrton Senna 5.555, CEP 27775-004 Rio de Janeiro/RJ

O corpo do texto deverá ter no mínimo 35.000 e no máximo 60.000 ca-


racteres, digitado em editor de texto Word for Windows, margens 2,5 cm,
fonte Times New Roman, tamanho 12, espaçamento entrelinhas 1,5. As
páginas devem ser numeradas no canto direito superior da folha.

A estrutura do artigo deve obedecer à seguinte ordem:

a) Título (e subtítulo se houver).


b) Nome(s) do(s) autor(es).
c) Resumo em português (de 100 a 250 palavras, fonte Times New Roman,
tamanho 10, não repetido no corpo do texto).
d) Palavras-chave (no máximo de cinco e separadas por ponto).
e) Resumo em inglês (de 100 a 250 palavras, fonte Times New Roman,
tamanho 10).
f) Palavras-chave em inglês (no máximo de cinco e separadas por ponto).
g) Corpo do texto.
h) Nota(s) explicativa(s).
i) Referências (elaboração segundo NBR 6023 da ABNT e reunidas em
uma única ordem alfabética).
j) Glossário (opcional).
l) Apêndice(s) (opcional).
m) Anexo(s) (opcional).

Anexos, tabelas, gráficos, fotos e desenhos, com suas respectivas legen-


das, devem indicar as unidades em que se expressam seus valores, assim
como suas fontes. Gráficos e tabelas devem vir acompanhados das pla-
nilhas de origem. Todos esses elementos devem ser apresentados no in-
terior do texto, no local adequado ou em anexos separados do texto com
indicação dos locais nos quais devem ser inseridos. Sempre que possível,
deverão ser confeccionados para sua reprodução direta. As imagens de-
vem ser enviadas em alta definição (300 dpi, formato TIF ou JPEG).

Recomenda-se que se observem ainda as normas da ABNT referentes


à apresentação de artigos em publicações periódicas (NBR 6022), apre-
sentação de citações em documentos utilizando sistema autor-data
(NBR 10520) e numeração progressiva das seções de um documento (NBR
6024).

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 1-156 | jan.-abr. 2015 155


Referências (exemplos):

Artigos de periódicos

DEMO, Pedro. Aprendizagem por problematização. Sinais Sociais, Rio de


Janeiro, v. 5, n. 15, p. 112-137, jan. 2011.

DIAS, Marco Antonio R. Comercialização no ensino superior: é possível


manter a ideia de bem público? Educação & Sociedade, Campinas, v. 24,
n. 84, p. 817-838, set. 2003.

Capítulos de livros

CANDIDO, Antonio. O significado de Raízes do Brasil. In: HOLANDA, Sérgio


Buarque de. Raízes do Brasil. 25. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1993. p. 39-49.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Tratado de nomadologia: a máquina


de guerra. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e
esquizofrenia. Trad. Aurélia Guerra Neto e Celia Pinto Costa. São Paulo:
Ed. 34, 1980. v. 5, p. 14-110.

Documentos eletrônicos

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: síntese de indicadores:


2002. Rio de Janeiro, 2003. Disponível em: < http://www.ibge.gov.
br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2002/
sintesepnad2002.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2013.

SANTOS, José Alcides Figueiredo. Desigualdade racial de saúde e contexto


de classe no Brasil. Dados, Rio de Janeiro, v. 54, n. 1, 2011. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-
52582011000100001&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 20 jul. 2013.

SANTOS, Nara Rejane Zamberlan; SENNA, Ana Julia Teixeira. Análise


da percepção da sociedade frente à gestão e ao gestor ambiental. In:
CONGRESSO BRASILEIRO DE GESTÃO AMBIENTAL, 2., 2011, Londrina.
Anais eletrônicos... Bauru: IBEAS, 2012. Disponível em: < http://www.ibeas.
org.br/congresso/Trabalhos2011/I-002.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2013.

156 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 1-156 | jan.-abr. 2015


Livro

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: J. Olympio,


1936.

Trabalho acadêmico

VILLAS BÔAS, G. A vocação das ciências sociais (1945/1964): um estudo


da sua produção em livro. 1992. Tese (Doutorado em Sociologia) –
Universidade de São Paulo, São Paulo, 1992.

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Esta revista foi composta na tipologia Caecilia LT Std
e impressa em papel pólen 90g, na Rona Editora Ltda.

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