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Departamento Nacional
27
ISSN 1809-9815
Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p.1-156 | jan.-abr. 2015
Sesc | Serviço Social do Comércio CONSELHO EDITORIAL
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Diogo Franca empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou
quaisquer outros.
Apresentação 7
Editorial 8
Uma tarefa desafia aqueles que receberam como legado a missão de realizar
no presente os ideais vislumbrados pelos líderes do passado: a revisão e a
ampliação permanente dessa compreensão.
Assim como ao Sesc cabe atuar sobre a realidade social, cabe valorizar e difundir
o entendimento acerca dessa realidade, dos conceitos e questões fundamentais
para o país e das políticas públicas e formas diversas de promover o bem-estar
coletivo.
Com a revista Sinais Sociais, colaboramos para que esses verbos sejam conjuga-
dos em favor de uma sociedade que traduza de forma mais fidedigna a expressi-
va riqueza cultural e o potencial realizador de seus cidadãos.
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Ana Lúcia Kassouf
Possui mestrado em Economia Aplicada pela Esalq,
Universidade de São Paulo, doutorado em Applied
Economics pela University of Minnesota e pós-doutorado
pela London School of Economics e University of
Minnesota. Trabalhou como consultora de projetos
da OIT, Banco Mundial, Unicef e Unesco. Atualmente é
professora titular do Departamento de Economia da Esalq,
Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de
Economia, com ênfase em Economia do Bem-Estar Social,
atuando principalmente nos temas: trabalho infantil,
educação, saúde, rendimento e programas sociais.
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Resumo
O objetivo desse estudo é apresentar a trajetória de redução do
trabalho infantil no Brasil e analisar os fatores que levaram a
essa redução desde o início da década de 1990. Criação de leis
e comissões de combate ao trabalho infantil, maior fiscalização
no trabalho, implementação de programas sociais, políticas de
fortalecimento da educação de crianças e jovens e atuação de
organismos internacionais direta ou indiretamente impactaram
na redução do trabalho infantil. Apesar dessa redução, quase
dois milhões de crianças e adolescentes de 5 a 15 anos ainda
trabalham. Muitos desses trabalhadores não são remunerados
ou recebem baixos rendimentos e trabalham um número
elevado de horas por semana, o que os impedem de estudar.
É importante ampliar e melhorar o acesso à educação de
qualidade, adotando estratégias que garantam no mínimo a
conclusão do ensino básico (Fundamental e Médio). Finalmente,
para eliminar as piores formas de trabalho infantil é preciso
fortalecer os sistemas públicos de inspeção do trabalho.
Abstract
The aim of this study is to present the trajectory of reducing child
labor in Brazil and analyze the factors that led to this reduction from
early 1990. The creation of laws and commissions to combat child
labor, greater surveillance at work, implementation of social programs,
strengthening policies to support children and youth education, and
international organization activities directly or indirectly impacted on
the reduction of child labor. However, there are still 2 million children
and youths, aged 5 to 15, who are still working. Many are not paid or
are on low income and work a high number of hours per week, which
prevent them from studying. It is important to expand and improve
the access to quality education, adopting strategies that ensure at
least the completion of basic education (primary and secondary).
Finally, to eliminate the worst forms of child labor, the public labor
inspection systems need to be strengthened.
13
Evolução do trabalho infantil no Brasil
1. Introdução
A OIT tem papel importante na luta contra o trabalho infantil. Sua visão
é a de que o trabalho infantil prejudica a saúde, a educação e a qualida-
de de vida em geral das crianças. Preocupada com a situação de explora-
ção do trabalho infantil, a OIT lançou em 1992 o Programa Internacional
para Eliminação do Trabalho Infantil (IPEC). Trata-se de um programa
mundial de cooperação técnica, que visa à erradicação progressiva do
trabalho infantil mediante o fortalecimento das capacidades nacionais
e do incentivo à mobilização mundial para o enfrentamento da questão.
Promove o desenvolvimento e a aplicação de legislação protetora e apoia
organizações parceiras na implementação de medidas destinadas a
prevenir o trabalho infantil, a retirar crianças de trabalhos perigosos e
a oferecer alternativas imediatas, como medida transitória para a erra-
dicação do trabalho infantil. O trabalho da OIT e do IPEC foi fundamental
para promover uma conscientização e mudar os pré-conceitos cultu-
rais com relação ao trabalho infantil no Brasil. Assim, o trabalho infantil
começou a ser visto como algo negativo e que pode causar danos às
crianças.
Apesar de o Peti ser uma política específica para atender crianças e ado-
lescentes em situação de trabalho, outros programas sociais sem foco es-
pecífico no trabalho infantil também têm impacto na sua redução, como
o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e os programas de transferên-
cia de renda condicionada, Bolsa Escola (2001 a 2003) e Bolsa Família (que
O Programa Bolsa Família (PBF) foi criado em 2003 para integrar e unificar
o programa Bolsa Escola, o Auxílio Gás, o Bolsa Alimentação e o Cartão
Alimentação. É um programa de transferência direta de renda, que além
de beneficiar famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza, pos-
sui condicionalidades que reforçam o acesso a direitos sociais básicos
nas áreas de Educação, Saúde e Assistência Social. A contrapartida é que
as famílias beneficiárias mantenham seus filhos e/ou dependentes com
frequência na escola e vacinados, enquanto gestantes ou lactantes de-
vem realizar o pré-natal e o acompanhamento da sua saúde e do bebê.
Ademais, crianças e adolescentes com até 15 anos em risco ou retiradas
do trabalho infantil pelo Peti devem participar dos Serviços de Convivên-
cia e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) do Peti e obter frequência míni-
ma de 85% da carga horária mensal. A seleção das famílias é feita com
base nas informações registradas pelo município no Cadastro Único,2
instrumento de coleta de dados que tem como objetivo identificar todas
as famílias de baixa renda existentes no Brasil. Com base nesses dados,
Além de todos esses fatores que com certeza colaboraram para a redução
do trabalho infantil, fatores socioeconômicos também foram responsá-
veis pela diminuição do número de crianças trabalhando.
Salário-mínimo real (R$) GRÁFICO 3 – Evolução do salário-mínimo real no Brasil (1992 a 2011).
Fonte: Ipeadata.
GRÁFICO 4 – Idade em que o indivíduo começou a trabalhar, por faixa etária (1992 e 2011).
Idade que começou a trabalhar
Fonte: Pnads (IBGE, 1992-2011); excluem a área rural da região Norte, exceto Tocantins.
Fonte: Pnads de 1992 e 2011; excluem a área rural da região Norte, exceto Tocantins.
por exemplo, Rio de Janeiro e Santa Catarina. Os dois estados têm PIB
per capita próximo a R$ 11.000,00, mas no Rio de Janeiro a porcentagem
de crianças trabalhando é menos de 2% e em Santa Catarina é quase
6%. Nesse último estado há emprego de crianças na agricultura familiar,
mais por razões culturais do que por necessidade de renda. Da mesma
forma, Tocantins, Bahia, Pernambuco e Amapá têm PIB per capita próximo
a R$ 5.000,00 e porcentagens de crianças trabalhando com variação de
15% a 3%.
Fonte: Pnads (IBGE, 1992-2011); excluem a área rural da região Norte, exceto Tocantins.
Fonte: Pnads (IBGE, 1992-2011); excluem a área rural da região Norte, exceto Tocantins.
.
Fonte: Pnads (IBGE, 1992-2011); excluem a área rural da região Norte, exceto Tocantins. .
Número % Número %
Fonte: Pnads (IBGE, 1992-2011)de 1992 e 2011; excluem a área rural da região Norte, exceto Tocantins. .
O ramo agrícola é o que mais emprega crianças no Brasil. Como pode ser
observado no Gráfico 11, em 1992, 52,4% das crianças de 10 a 15 anos que
trabalhavam estavam exercendo atividades agrícolas e pecuárias, passan-
do para 44% em 2011. Apesar de ter havido uma redução na porcentagem
de crianças trabalhando no ramo agrícola, ainda é o ramo de atividade com
a maior porcentagem de crianças trabalhando. Em 2011, além do ramo agrí-
cola, 19% das crianças estavam trabalhando no comércio, 12% em serviços,
8% na indústria, 8% no emprego doméstico e 4% na construção civil. Den-
tro do ramo agrícola, as crianças trabalham principalmente nas culturas
de arroz, milho, mandioca, em hortas e com manejo de animais e aves.
Fonte: Pnads (IBGE, 1992-2011); excluem a área rural da região Norte, exceto Tocantins. .
GRÁFICO 12 – Média de horas trabalhadas por semana no trabalho principal (1992 a 2011).
Horas trabalhadas por semana
Fonte: Pnads (IBGE, 1992-2011); excluem a área rural da região Norte, exceto Tocantins.
Fonte: Pnads (IBGE, 1992-2011); excluem a área rural da região Norte, exceto Tocantins. .
Fonte: Pnads (IBGE, 1992-2011); excluem a área rural da região Norte, exceto Tocantins.
Caracterizar o perfil das crianças que exercem atividades tidas como perigosas,
tais como cultivo de cana-de-açúcar e fumo, pesca, extração de minérios, fa-
bricação de produtos químicos e outros é difícil devido ao reduzido número de
observações de pessoas até 17 anos na amostra da Pnad nessas atividades. De-
ve-se levar em consideração que o reduzido número de observações resulta na
não representatividade da população. Na Tabela 2, foram selecionadas algumas
atividades consideradas perigosas, com base na Pnad 2011 e na lista de piores
formas de trabalho infantil divulgada pela Comissão Nacional de Erradicação
do Trabalho Infantil (Conaeti). Vale ressaltar que não há dados detalhados sobre
crianças e adolescentes desenvolvendo essas atividades e a tabela serve como
uma orientação, mas não é precisa.
Pesca 35.889
Total 340.028
Fonte: Siti – Sistema de Informações sobre Focos de Trabalho Infantil no Brasil/Ministério do Trabalho.
As informações referentes à quantidade de municípios em cada estado foram retiradas do Censo 2010.
6. Considerações finais
anos trabalhando na área rural do Brasil cai de 50% em 1992 para 19% em
2011, enquanto na área urbana, a queda foi de 15,6% para 5%.
Sabe-se hoje que não existe uma única política para eliminar o trabalho
infantil e a sua persistência é uma evidência clara de que não há uma
Notas
1 Nos anos de 2000 e 2010 não se realizou a Pnad por serem anos de censo
e em 1994 excepcionalmente também não houve Pnad. Em 1996 e 1997 as
informações da Pnad sobre trabalho não incluíram menores de 10 anos. Para
efeito de comparação, esses dados não incluem a área rural da região Norte, a
qual não era levantada antes de 2004.
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Anna Faedrich,
Renato Lima e
Jacques Fux
Renato Lima
Doutorando em Ciência Política no Massachusetts Institute of
Technology (MIT), mestre em Estudos da América Latina pela
Universidade de Illinois em Urbana-Champaign (UIUC) e jornalista
pela UFPE. Fundador do programa de rádio “Café Colombo –
o seu programa de livros e ideias” da Universitária FM, Recife.
Jacques Fux
Pós-doutorando em Literatura Comparada pela UFMG. Pós-doutor
em Teoria Literária pela Unicamp. Visiting Scholar em Harvard
(2012/2014). Doutor em Literatura Comparada pela UFMG e doutor
em Língua, Literatura e Civilização Francesa pela Universidade de
Lille 3. Autor dos livros Literatura e matemática: Jorge Luis Borges,
Georges Perec e o Oulipo (versão da tese que recebeu o Prêmio
CAPES de Melhor Tese de Letras/Linguística 2011) e Antiterapias
(Prêmio São Paulo de Literatura 2013).
50
Resumo
Este artigo tem como objetivo discutir a questão da autoficção em
relação à memória traumática do período da ditadura militar no
Brasil. Além disso, propomos pensar nos efeitos políticos desencade-
ados a partir da publicação do livro K., relato de uma busca, de Bernar-
do Kucinski. O livro narra, na voz do pai da vítima, o desparecimen-
to de Ana Rosa Kucinski, professora de Química na Universidade
de São Paulo (USP), e de seu marido, o físico Wilson Silva, durante
a ditadura militar brasileira, e o processo instaurado pela Univer-
sidade por “abandono de emprego”. Aqui pensamos essa questão
no contexto político e literário e o que mudou após a publicação do
livro.
Abstract
The objective of this article is to discuss the autofiction issue regarding the
traumatic memory of the military dictatorship period in Brazil. We also
propose thinking about the political effects triggered since the publication
of the book K., by Bernardo Kucinski. In the victim’s father voice, the book
chronicles the disappearance of Ana Rosa Kucinski, a Chemistry Teacher at
the University of São Paulo (USP), and her husband, the Physicist Wilson
Silva, during the military dictatorship in Brazil, in addition to the process
initiated by the University for “job abandonment”. Here, we think this
issue in a political and literary context and what has changed after the
book publication.
51
K., relato de uma busca: autoficção e efeitos políticos
1. Introdução
Assim começou a saga do velho pai, cada dia mais aflito, mais maldormi-
do. No vigésimo dia, depois de mais uma incursão inútil ao campus e à
casa de Padre Chico, recorreu aos amigos do círculo literário; os mesmos
que por descontrole havia amaldiçoado. Quem sabe conheciam alguém
que conhecesse alguém outro, na polícia, no exército, no SNI, seja onde
for dentro daquele sistema que engolia pessoas sem deixar traços
(KUCINSKI, 2014, p. 18).
mesma casa, a esse mesmo filho meu que não conheceu sua tia seques-
trada e assassinada” (KUCINSKI, 2014, p. 181, grifo nosso).
O que fazer com a cadela? Com o casal tudo deu certo, do jeito que o che-
fe gosta, sem deixar rastro, sem testemunha, nada, serviço limpo, nem
na casa entramos, para não correr risco com vizinhos, casa muito colada
nas outras; pegamos os dois no beco, de surpresa; uma sorte, aquela saí-
da lateral do parque, meio escondida, quando os dois se deram conta, já
estavam dentro do carro e de saco na cabeça, só a cadela latiu, mas já era
tarde (KUCINSKI, 2014, p. 63).
2. Da ambiguidade e do desbordamento
3. Hibridismo
Mas K. clama por uma reparação histórica, por uma necessidade de inter-
vir nas leis e no perdão que a História, e o tempo, insistem em corroborar.
É uma audácia, sobretudo para um livro de ficção, mas talvez seja essa a
única forma de se enfrentar verdadeiramente essa questão tabu e trau-
mática da ditatura brasileira.
4. O aspecto dramático
Dos três países, a Argentina foi o que foi mais longe em processar mi-
litares. Um dos primeiros atos do governo de Raúl Alfonsín na Argenti-
na pós-ditadura militar foi revogar a anistia que protegia os militares. A
Conadep trabalhava com a perspectiva real de obter evidências que se-
riam depois usadas em tribunais contra os agentes do regime autoritário.
Dessa forma, cooperar com a Comissão – produzir verdade, portanto – era
assinar uma sentença condenatória por parte de quem sabia dos casos
de desaparecimento por estar diretamente envolvido. Não espanta, por-
tanto, que o número total de vítimas seja tão pouco conhecido, variando
entre cerca de 10.000 até o triplo desse número. Tanto Chile quanto o
Brasil não aboliram o mecanismo da anistia, embora no Chile processos
criminais contra militares tenham avançado pelo uso de brechas legais.
Cooperar com comissões da verdade, dado a existência de anistia, é pos-
sível, mas tem seu risco. Quem participou e revela o que sabe de atos
criminosos em uma ditadura, porque protegido por uma anistia, produz
material que pode ser justamente usado por quem deseja ver um fim à
impunidade e, talvez, um bordeamento mais plausível do evento.
Notas
1 Podemos relacionar os efeitos jurídicos de expor a vida de outra pessoa com
o debate atual sobre as biografias não autorizadas. Entretanto, na autoficção,
tal efeito é amenizado por seu caráter fictício. Em 2014, artistas integrantes
do grupo Procure Saber, tais como Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Chico
Buarque, Caetano Veloso, Djavan, defenderam o direito à privacidade por meio
da autorização prévia a biografias. Segundo os artigos 20 e 21 do Código Civil
(BRASIL, 2002), é proibida a publicação de informações pessoais de qualquer
cidadão em casos que “atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade,
ou se se destinarem a fins comerciais”. Há dois casos famosos de censura
de biografias não autorizadas no Brasil, o da biografia Roberto Carlos em
detalhes, de Paulo Cesar de Araújo; e o da biografia de Daniella Perez escrita
por Guilherme de Pádua, seu assassino (que já cumpriu a pena e está livre).
A questão é considerada polêmica porque, de um lado, temos os artistas
querendo o direito de preservar a vida pessoal (“Pensei que o Roberto Carlos
tivesse o direito de preservar sua vida pessoal. Parece que não” (BUARQUE,
2013) e, de outro, temos uma série de jornalistas e biógrafos, principalmente,
alegando a liberdade de expressão conquistada a duras penas (inclusive pelos
próprios Chico Buarque e Caetano Veloso na época da ditadura militar) e o
retrocesso que é censurar as biografias. Vale lembrar que Paulo César de Araújo
lançou, finalmente, o livro O réu e o rei, em 2014.
14 Tradução nossa. No original: L’esprit du temps est le produit aussi bien d’un
genre littéraire informé par les mutations sociales que des mutations sociales
informées par la production littéraire.
Referências
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Contribuições da experiência
internacional ao gerenciamento
das rendas do petróleo do
pré-sal brasileiro*
Beni Trojbicz
70
Resumo
Em seu discurso de posse, Dilma Rousseff se referiu ao
pré-sal como fonte de recursos que seria utilizada para
financiar melhora dos serviços públicos, redução da pobreza
e conservação do meio ambiente, indicando nova orientação
atribuída às políticas de desenvolvimento econômico e seus
vínculos com o bem-estar social. Não é trivial o gerenciamento
das rendas minerais, sendo abundante na literatura a referência
à “maldição dos recursos naturais”– presença de resultados
negativos acompanhando sua exploração, do ponto de vista
econômico, político e social. Existem muitas experiências de
gerenciamento das rendas minerais, com diferentes resultados
e possíveis aprendizados para o caso do pré-sal brasileiro. Esse
trabalho vai apresentar experiências internacionais relevantes,
focando a perspectiva política e institucional, e em seguida as
implicações para a experiência brasileira.
Abstract
In her inaugural address, President Dilma Rousseff referred to
the pre-salt oil as a source of resources that would be used to
finance public services improvement, poverty reduction, and
environmental conservation, indicating a new orientation given
to economic development policies and its links with the social
welfare. Management of mineral revenues is not trivial, with
plenty of reference in the literature on the “resource curse” – the
presence of negative economic, political, and social results following
its exploitation. There are many international experiences in
natural resources management, with different results and possible
apprenticeships for the Brazilian pre-salt case. This paper will present
relevant international experience, focusing on the political and
institutional perspective, followed by the implications to the Brazilian
experience.
71
Contribuições da experiência internacional ao gerenciamento das rendas do petróleo do pré-sal brasileiro
Introdução
A descoberta de maciças reservas de petróleo no pré-sal1 brasileiro desen
cadeou processo de reforma do marco regulatório do petróleo para ex-
plorar essa riqueza. A então ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff,
cuja carreira originou-se no setor energético e que havia recentemente
ocupado o cargo de ministra das Minas e Energia, foi artífice dessa mu-
dança e a ela pode-se atribuir parte importante da responsabilidade pela
legislação aprovada em 2010. Já como presidente, em seu discurso de
posse, ela se referiu ao pré-sal como fonte de recursos que seria utilizada
para financiar melhora dos serviços públicos, redução da pobreza, con-
servação do meio ambiente e geração de poupança de longo prazo:
Tal referencial teórico está aqui embutido numa exposição de casos múl-
tiplos, em que os temas foram selecionados com base em dois objetivos.
O primeiro deles é apontar a diversidade de resultados existentes na ex-
periência internacional, elemento que também norteou a escolha dos
países a serem incluídos no estudo. O segundo objetivo diz respeito à de-
tecção de questões pertinentes ao caso brasileiro. A exposição dos casos
contém breve panorama histórico do país visando à criação de contexto
para a análise.
Experiência internacional
Noruega5
A Noruega é caso paradigmático na utilização dos recursos advindos
da exploração das riquezas naturais, onde ao mesmo tempo em que a
exploração do petróleo foi acompanhada de políticas econômicas que
lograram neutralizar os efeitos da doença holandesa, os recursos auferi-
dos foram utilizados na promoção do bem-estar da sociedade de forma
universal.
Entre o final dos anos 1970 e o começo dos anos 1980 houve grande au-
mento de consumo, acompanhado de superaquecimento da economia,
originados no aumento da cotação do petróleo. O aprendizado gerado
possibilitou amadurecimento da política fiscal, levando à constituição do
“Fundo do Petróleo”, posteriormente renomeado Government Petroleum
Chile
O Chile apresenta experiência bem-sucedida na superação da “maldição
dos recursos naturais”, por meio de modelo ideológico liberal, apresen-
tando inovação institucional financeira de lógica similar à encontrada na
Noruega.
Indonésia11
No caso da Indonésia, se observa que o país logrou utilizar os recursos
da exploração mineral para gerar desenvolvimento econômico, mas esse
desenvolvimento não se refletiu em uma melhora significativa do bem-
estar social. Níveis altos de corrupção, orientação econômica pró-mer-
cado e um governo autoritário explicam parcialmente esse resultado.
Ainda assim, a Indonésia é considerada caso bem-sucedido no que diz
respeito a resultados econômicos da exploração dos recursos minerais.
Nigéria12
A Nigéria oferece um caso fascinante sobre utilização de riquezas mine-
rais no desenvolvimento social, com grande variabilidade nas políticas
ao longo do tempo.
Bolívia
O caso boliviano mostra a utilização de recursos minerais em ambiente
pouco estável, em que dividendos gerados pela participação estatal em
empresas de energia financiavam o sistema de pensão isento de contri-
buição, dirigido aos idosos: o Bono Solidário ou Bonosol.
Noruega Não existe problema de dependência dos recursos minerais Redistribuição social dos recursos
Políticas anticíclicas
Política de emprego visando coordenar mudanças setoriais
Com base nos elementos apontados nos casos internacionais, foram es-
colhidos dois temas para discussão no contexto do caso brasileiro: a cria-
ção de fundos de poupança ou estabilização e a atuação do Estado sobre
a política de emprego, visando amortecer os efeitos da mudança setorial
originada na ascensão da atividade relacionada ao petróleo.
No Brasil, houve criação do Fundo Social do Pré-Sal (FS), por meio da Lei
nº 12.351/2010, depois modificada pela Lei nº 12.858 de 9 de setembro de
2013. Essa última responde a pressões da população por melhoras nos
serviços públicos e estabelece destinação determinada para royalties e
participação especial de todos os entes federativos: 75% para gastos com
educação e 25% para gastos com saúde. Além disso, indicou utilização
imediata de 50% dos recursos do FS para a educação.
carências atuais, utilizar parte dessas receitas para aliviar essas carên-
cias parece acertado.
Considerações finais
Notas
1 Camada geológica anterior à camada de sal, localizada na plataforma
continental brasileira, onde em 2006 foram descobertas reservas de petróleo e
gás natural que tornariam o Brasil um dos maiores produtores mundiais.
7 O Chile era o único produtor mundial de nitrato, insumo que teve demanda
elevada em decorrência da aceleração da produção industrial europeia. Dada a
posição monopolista, o Chile usufruiu de alta lucratividade na atividade. Com
a invenção do nitrato sintético e a diminuição da atividade em decorrência da
crise de 1929, a demanda do nitrato teve diminuição brusca, com efeitos fiscais
profundos sobre a economia chilena. Entre 1880 e 1931, o nitrato foi responsável
por 42% das receitas governamentais, caindo para 14% entre 1932 e 1945
(GUAJARDO, 2012).
Referências
ASCHER, W. Mineral wealth, development and social policy in Indonesia. In: HUJO,
K. (Org.), Mineral rents and the financing of social policy: opportunities and challenges.
Houndmills: Palgrave-MacMillan: UNRISD, 2012.
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da pobreza e os processos de cooperação e coordenação intergovernamental para sua
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SINGER, A. Raízes sociais e ideológicas do Lulismo. Novos Estudos Cebrap, n. 85, nov.
2009.
Fernando Limongi
95
Contribuições da experiência internacional ao gerenciamento das rendas do petróleo do pré-sal brasileiro
Fernando Limongi
Fernando Limongi é professor titular da Universidade de
São Paulo (USP) e pesquisador do Cebrap/CEM/Neci e
bolsista do CNPq. É coautor, com Argelina Figueiredo, de
Política orçamentária no presidencialismo de coalizão (Rio
de Janeiro, Editora FGV/Konrad Adenauer, 2008); Executivo
e legislativo na nova ordem constitucional (Rio de Janeiro,
Editora FGV/Fapesp 1999); e, com Adam Przeworski,
Michael Alvarez e José Antonio Cheibub, de Democracy
and Development: Political Institutions and Well-Being in
the World, 1950-1990 (New York: Cambridge University
Press, 2000).
Resumo
Este artigo propõe uma releitura do debate sobre a evolução
política do país. Partindo das teses que sustentam a inviabilidade
ou incompletude da democracia no Brasil, o artigo sugere uma
revisão da forma de entender o processo de democratização.
Trata-se de revisitar um velho debate cujas origens são traçadas
a interpretações clássicas como o de Victor Nunes Leal e Sérgio
Buarque de Holanda.
Abstract
This paper proposes a new reading of the debate on the country’s
political evolution. Starting from the theses that support the infeasibility
or incompleteness of democracy in Brazil, this paper proposes a review
to understand the democratization process, addressing an old debate
originated with the classical interpretations of Nunes Leal and Sergio
Buarque de Holanda.
Introdução1
Em seu clássico Coronelismo, enxada e voto, Victor Nunes Leal define seu
objeto de estudo da seguinte forma: “Concebemos o ‘coronelismo’ como o
resultado da superposição de formas desenvolvidas de governo represen-
tativo a uma estrutura econômica e social inadequada” (LEAL, 1975, p. 20).
é apenas um passo para aceitar que estes mesmos indivíduos têm ca-
pacidade para participar das decisões políticas. A extensão dos direitos
políticos, que viria no século XIX, não seria senão o reconhecimento das
consequências do primeiro avanço. Tratar-se-ia de uma decorrência his-
tórica e lógica. O encadeamento entre um e outro seria necessário.
Assim, neste tipo de análise, por paradoxal que possa parecer, a demo-
cratização não é problematizada ou estudada. Democracias emergem
naturalmente das revoluções burguesas, da quebra da velha ordem. Se-
pultado o Antigo Regime, o novo florescerá. Pode demandar tempo, mas
a evolução pode ser tomada como certa.
Nunes Leal uma vez mais é a referência inicial. Os termos que emprega
em sua formulação clássica merecem atenção. A referência é ao gover-
no representativo e não à democracia. O centro de sua análise são as
eleições, seu funcionamento, ou melhor, seu desvirtuamento no Brasil
em relação ao modelo. A referência é duplamente importante. Primeiro
porque define de forma clara o ponto de partida ou origem a partir da
qual a reconstituição histórica deve ser empreendida. O ponto de partida
é a adoção do governo representativo e não o liberalismo e muito menos
a liberal-democracia. Segundo porque coloca as expectativas acerca das
práticas eleitorais no centro do debate. A análise das práticas eleitorais
Como frisou com propriedade Bernard Manin (1997), o sucedâneo dos go-
vernos hereditários é o governo representativo. A característica essencial
do governo representativo é o fato de que neste a seleção de líderes se
dá por meio de eleições.7 Governantes são eleitos. Ainda que hoje asso-
ciemos eleição à democracia, na filosofia política clássica, o método de
seleção de governantes identificado com a democracia é o sorteio e não
a eleição. Este método específico, a eleição, como sublinha Manin, sem-
pre foi associado ao governo aristocrático e sua adoção no momento de
criação do governo representativo se deu com plena consciência desta
associação.
Dito de outra forma: as exigências legais para ser candidato eram maio-
res do que as que limitavam o direito ao voto. Assim, necessariamente,
por força da lei, os ocupantes de cargos públicos teriam status superior
ao de seus eleitores. Afirma-se desta forma de maneira explícita e clara o
caráter não igualitário do princípio representativo. Em geral, precauções
foram tomadas para garantir que representantes fossem recrutados no
interior de um grupo seleto. O ponto merece ser frisado: a distinção fun-
damental embutida no governo representativo diz respeito menos a quem
pode votar do que quem pode exercer o poder. Dito de forma mais direta:
é possível compatibilizar o sufrágio universal ao Governo Representativo.
Mas de onde vêm estas expectativas? Por que se espera que o princípio
da distinção opere? Por que o funcionamento regular das eleições leva a
seleção dos superiores socialmente? Uma resposta se encontra na pas-
sagem transcrita anteriormente: por uma combinação entre leis, normas
culturais e fatores práticos. A interação entre estes fatores deve garantir
que o governo representativo leve ao governo das elites.
Contudo, para os fins deste artigo, estas consequências são menos im-
portantes que a caracterização oferecida para entender a primeira apari-
ção do governo representativo. O fundamental a reter é a consequência
do trabalho de Bernard Manin para entender tanto o momento original,
para a caracterização da ruptura política operada com o antigo regime,
como também para o entendimento do processo de democratização.
Mais especificamente, cabe retomar a história política da Inglaterra,
França e Estados Unidos com novas lentes. O fim do governo hereditário
não é seguido pela afirmação da igualdade política. Antes o contrário.
Rivera (2000, p. 37) observa que não se deve assumir que o modelo do
governo representativo tenha vindo ao mundo pronto e acabado, com
respostas para todos os problemas com que viria a se defrontar. Mais do
que isto: não se deve assumir que as falhas e inconsistências do modelo
teriam se manifestado exclusivamente na América Latina.13 A implan-
tação do modelo conviveu com os mesmos problemas nos dois lados do
Atlântico e nos dois hemisférios. Desde o ponto de vista institucional,
não cabe falar em divergência ou rotas. Há uma história comum, a da
evolução e transformação do governo representativo. Uma história que
é necessariamente turbulenta e errática em função das inconsistências
do modelo original.
Ainda que a comparação não seja usual, o fato é que a natureza do con-
flito entre federalistas e republicanos é a mesma que se verifica entre
conservadores e liberais nos primeiros anos do reinado de dom Pedro II
após a derrubada do Gabinete da Maioridade pela intervenção do Poder
Moderador. Os conservadores justificam a dissolução da Câmara eleita
em 1840 como uma medida necessária para deter o “embate das fac-
ções”, antes que estas tenham produzido “irreparáveis estragos” ao sis-
tema monárquico constitucional representativo, do qual seriam os de-
fensores legítimos. A dissolução se impõe como uma defesa da ordem
constitucional, porque
A atual Câmara dos Deputados, Senhor, não tem a força moral indispen-
sável para acreditar e fortalecer entre nós, o sistema representativo. Não
pode representar a opinião do País porque a expressão da vontade nacio-
nal e das necessidades públicas somente pode produzir a liberdade dos
votos (JAVARI, 1989, p. 84).
Considerações finais
Notas
12 Ter o direito ao voto não implica ter as mesmas chances de exercer o poder.
Esta a desigualdade fundamental implicada pela adoção do método eleitoral.
A indistinção que caracterizaria a democracia, a igualdade entre súditos e
soberanos não é obtida. Por isto mesmo, o sorteio é o método de seleção de
líderes associada à democracia.
Referências
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Civilização Brasileira, 2005.
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2012.
VOLTAR Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 95-125 | jan.-abr. 2015 125
Ana Lúcia Kassouf
Fome, pobreza e
desenvolvimento: um convite
à leitura de Josué de Castro
Rosana Magalhães
128
Resumo
Este artigo faz um convite à leitura de Josué de Castro, médico,
sociólogo e geógrafo cuja obra contribuiu de maneira inegável
para a renovação do pensamento social brasileiro. O autor
sistematizou um discurso sobre a fome buscando articular
permanentemente as faces biológica e social de uma realidade
dramática presente no país e em várias regiões do mundo. Seus
textos expressam uma vigorosa crítica aos caminhos da nossa
nacionalidade e ao alcance da ciência. O seu esforço para criar
novas possibilidades interpretativas sem abdicar da busca de
alternativas políticas para o enfrentamento da fome e da misé-
ria segue como exemplo de compromisso público e abrangên-
cia intelectual.
Abstract
This article is an invitation to read Josué de Castro, a doctor,
sociologist, and geographer, whose work undeniably contributed to
renew the Brazilian social thought. The author systematized a speech
on starvation seeking to integrate the biological and social sides of this
dramatic reality in Brazil and other regions of the world. His writings
express a strong criticism of our nationality paths and science impacts.
His efforts to create new interpretive possibilities without giving
up the search for political alternatives to cope with starvation and
poverty remain as an example of public commitment and intellectual
comprehensiveness.
129
Fome, pobreza e desenvolvimento: um convite à leitura de Josué de Castro
Introdução
As regiões de fome
Fome e desenvolvimento
Este livro foi publicado pela primeira vez em 1946. Nele tentou o autor
esboçar um retrato do Brasil que era então tipicamente subdesenvolvi-
do, com suas características econômicas de tipo colonial, na exclusiva
dependência de uns poucos produtos primários de exportação, entre os
quais se destacava o café. Ao retratarmos a fome no Brasil, estávamos a
evidenciar o seu subdesenvolvimento econômico porque fome e subde-
senvolvimento é a mesma coisa. Mas o desnível entre a agricultura e a
indústria agravou ainda mais a fome no país. Não foi nem casual nem
politicamente desinteressada esta opção por uma política preocupada
em desenvolver áreas já desenvolvidas e em enriquecer os grupos já en-
riquecidos (CASTRO, 1987).
Referências
CANDIDO, A. Os parceiros do Rio Bonito. 9. ed. São Paulo: Duas Cidades, 2001.
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LANG, T.; HEASMAN, M. Food war: the global battle for mouths, minds and markets.
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Rosana Magalhães
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Incluir também o currículo (com até cinco páginas) com a formação aca-
dêmica e a atuação profissional, além dos dados pessoais (nome com-
pleto, endereço, telefone para contato) e um minicurrículo (entre 5 e 10
linhas, fonte Times New Roman, tamanho 10), que deverá constar no mes-
mo documento do artigo, com os principais dados sobre o autor: nome,
formação, instituição atual e cargo, áreas de interesse de trabalho, pes-
quisa, ensino e últimas publicações.
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e impressa em papel pólen 90g, na Rona Editora Ltda.