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Tessituras do Imaginário Poético


Ensaios de Poesia Moderna

2013
© EDIPUCRS, 2013
Capa:
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

T341 Tessituras do imaginário poético : ensaios de poesia moderna


recurso eletrônico] / org. Ana Maria Lisboa de Mello,
Anna Faedrich Martins, Estevan de Negreiros Ketzer. –
Dados eletrônicos. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2013.

ISBN 978-85-397-0304-3
Sistema requerido: Adobe Digital Edition
Modo de Acesso: http://www.pucrs.br/edipucrs

1. Poesia – História e Crítica. 2. Literatura – Crítica e


Interpretação. I. Mello, Ana Maria Lisboa de. II. Martins, Anna
Faedrich. III. Ketzer, Estevan de Negreiros.

CDD 809.1

Ficha Catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS.

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PREFÁCIO
Prismas de abordagem do texto poético
Os textos reunidos nesse livro – intitulado Tessituras do imaginário poético: ensaios de poesia
moderna – têm sua origem na III Jornada de Poesia Moderna, de 2011, apoiada pela CAPES, e em
artigos decorrentes de duas disciplinas da Pós-Graduação em Letras da PUCRS, a saber: Teorias da
Poesia e Teorias da Criação Poética. São capítulos escritos por professores de universidades brasileiras
– UNESP-Araraquara; UPF; UFAL; UnB – e por doutorandos e mestrandos da PUCRS e por uma
mestranda da UFRGS.
O evento e as disciplinas desencadearam artigos que refletem sobre o poético e a linguagem poética,
os perfis do eu-lírico, os contornos da lírica moderna no século XIX, as relações entre mito e poesia, o
contexto histórico e a produção poética, bem como o confronto entre a tradição lírica e as rupturas
formais do século XX no Brasil e no Exterior.
Nesse sentido, há capítulos voltados a questões teóricas relativas à construção do sujeito lírico na
poesia contemporânea, às configurações da metáfora no poema e às relações simbólicas entre poesia e
gestualidade. Um conjunto de artigos, na segunda parte, trata da poesia brasileira em suas múltiplas faces,
tais como a presença do mito e do simbolismo das águas nos poetas de Cataguases (Francisco Marcelo
Cabral, Joaquim Branco e Ronaldo Werneck) – e a permanência do mito de Orfeu na poesia brasileira,
do Arcadismo ao Modernismo, que aponta para as transformações desse mito em um conjunto de poetas.
A poesia de Manuel Bandeira, com ênfase nos primeiros livros, de tom penumbrista, e a produção
poética de Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto, no contexto da
Segunda Guerra, apontando as relações entre poesia e história, são objeto de estudo dos demais autores
deste bloco.
A terceira parte do livro apresenta estudos de autores estrangeiros: Rimbaud e a alquimia, o perfil do
eu-lírico na obra da poeta portuguesa Sophia Andresen e a criação poética da escritora francófona
Andrée Chedid, nascida no Egito. Contém também um estudo sobre a poeticidade La Jetée ciné-roman,de
Chris Marker, bem como uma reflexão sobre poesia alemã e questões de tradução para o português.
Esse conjunto de estudos, perpassados de questões teóricas sobre a lírica, aponta para a face
desafiadora da linguagem poética, em contínua renovação, mantendo a complexidade própria do gênero.
Os ensaios desdobram-se em reflexões sobre a imagem, a poeticidade, o poder sugestivo das imagens, a
poesia que expressa o desespero do homem diante das atrocidades da guerra.Por outro lado, mostram que
a poesia lírica, incluindo a brasileira, está aberta a uma liberdade imprevisível no jogo das significações
na experimentação da linguagem, ao mesmo tempo,que mantém diálogo com o “patrimônio poético,
mítico e arcaico” da humanidade, conforme observa Hugo Friedrich em Estrutura da lírica moderna,
apontados por dois dos artigos aqui reunidos. A presença do mito na poesia acusa-se através da retomada
de imagens arquetípicas cujas forças continuam a aludir a um estado anímico, uma ideia ou um
“sentimento do mundo”, aludindo aqui ao título de um dos livros do poeta Carlos Drummond de Andrade.
Tanto no mito, quanto na poesia, a linguagem assume uma dimensão simbólica, ou, melhor dito,
nessas criações a linguagem volta ao seu “estado natural”, conforme assinala Octavio Paz a propósito da
relação poesia e linguagem: “ a linguagem é poesia em estado natural. Cada palavra ou grupo de palavras
é uma metáfora. (...) A palavra é um símbolo que emite símbolos”.1 As imagens e suas relações dentro do
todo são pontos-chave no ato de deciframento textual. Inter-relacionadas, constroem a tessitura dos
poemas e sustentam a significação: “cada imagem sucessiva se introduz com firmeza e precisão, e não se
detém até que a próxima a substitua”.2
Vista por diferentes autores, a poesia, nesses ensaios, revela a pluralidade de perspectivas pelas
quais pode ser estudada, bem como a sua vigorosa vitalidade e permanência, sobretudo como uma arte
que, através de aguda sensibilidade e visão crítica, pode produzir nos leitores uma reflexão profunda
sobre os acontecimentos históricos e desencadear uma resistência a tudo aquilo que vier contra a
humanidade.
Ana Maria Lisboa de Mello

Notas
1 PAZ, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982. p. 41-2
2 JOUBERT, J.L. La Poésie. Paris: Armand Collin, 1977, p.20.
I. ALGUNS ASPECTOS TEÓRICOS
Contenção de Despesas na Casa do Eu Lírico Contemporâneo1
Roberto Sarmento LIMA2 - Universidade Federal de Alagoas
Se já era uma aventura insatisfatória e geralmente malsucedida querer definir o poético em bases
mais estáveis e sólidas, ou até mesmo provisórias, o que não se dirá hoje dessa presunção, quando a
heterogeneidade do discurso literário se torna cada vez mais visível e presente. Desde os românticos,
preocupados com o estatuto da literatura na nova era que então se iniciava – era pós-clássica, era
moderna, como se queira dizer –, as teorias viram nascer um rol extenso de conceitos e definições. Os
conceitos foram se multiplicando, até desembocar na teoria literária contemporânea, dispersa ainda mais
em juízos por vezes contraditórios e prematuramente envelhecidos, mal acabam de nascer. A velocidade
do momento atual, ajudada por um ímpeto comercial e tecnológico que leva à substituição de uma
mercadoria por outra em tempo recorde, faz que tudo pareça, de repente, antigo e inviável, prestes a ser
desprezado por sua inadequação à sensibilidade e ao gosto de uma geração de pessoas que nem chegaram
a acostumar-se com a presença daquele produto. O que acontece com as coisas materiais acontece com
os bens culturais, no mesmo ritmo e desenvolvimento temporal.

A relativização dos espaços


A consequência inevitável disso tudo é a instalação de um profundo relativismo entre homens,
valores e coisas. A velocidade do mundo e a necessidade urgente de serem ajustados os polos de
definição da realidade são tão grandes e prementes que aquilo que, até umas horas atrás, era novo passa,
de súbito, a ser velho; igualmente, o que era o contrário de alguma coisa tida por sua rival já não é, torna-
se seu mais íntimo comparsa e cúmplice.
Por isso, no poema “O revólver do meu sonho”, de Waly Salomão, não é inoportuno nem
extravagante perguntar, como o faz o seu eu lírico,

Você por acaso esqueceu a buzina do vapor barato?


Apagou a fita daquela canção
A casa do sol nascente?
Enfiou a tesoura na transação?
Passou a gilete na ligação?
Meteu a borracha no traço de união
Oriente-Ocidente?

Já esqueceu, leitor, tudo isso? Lembra-se ainda de fatos que mal envelheceram e que talvez nem
tenham ainda se esvaído no túnel do tempo? Por isso se pode perguntar: há lugar ainda para
rememorações pessoais? Por exemplo, lembranças da infância, como as que teve o eu lírico de
“Profundamente”, de Manuel Bandeira: “Quando eu tinha seis anos / Não pude ver o fim da festa de São
João / Porque adormeci [...] Onde estão todos eles?”. O auge desse processo veloz de apagamento de si e
da realidade aparece nos versos de Waly Salomão, precisamente em “Meteu a borracha no traço de união
/ Oriente-Ocidente?”. Como diz Marco Polo, o narrador de uma das cidades invisíveis de Ítalo Calvino,
“os espaços se misturaram”. O que leva ao esquecimento dos espaços de origem. Ou ao descaso,
desatenção, desprezo.
Na literatura brasileira, um ancestral notável figurativo desse estado em que os opostos se unem e
mutuamente se neutralizam – mais por desconsideração do que propriamente por outro motivo –, sem, no
entanto, perder a sua individualidade ontológica, se encontra em Memórias póstumas de Brás Cubas, de
Machado de Assis. Evocando a bem inspirada leitura que dele fez Roberto Schwarz no ensaio
“Complexo, moderno, nacional, e negativo” (1985), especialmente a respeito do segundo capítulo desse
romance, “O emplasto”, os polos contrários “filantropia” e “lucro capitalista” são o que aparece,
conjugadamente, no lado da medalha que se ostenta para o público, já que “sede de fama” fica no lado da
medalha que os outros não podem ver, a verdadeira motivação da personagem. Pela lógica do romance
oitocentista europeu, o comum era uma personagem fingir que era filantropa, ocultar o seu verdadeiro
interesse, que é buscar o lucro, por debaixo dos panos; mas, em Machado, essa não é uma oposição
válida nem absoluta, senão relativa, porque uma coisa pode ficar no lugar da outra sem que a substituição
cause estranheza, já que, como diz Schwarz, “filantropia e lucro não estão em campos opostos”, e sim
“de mãos dadas, e na mesma face da medalha”3:
Assim, a minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o
público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada.
Digamos: – amor da glória.
Da mesma forma que, em Waly Salomão, se exorta para apagar o traço de união no par Ocidente-
Oriente e, em Calvino, os espaços das cidades se misturam totalmente, ocorre que esse nosso, digamos
assim, primeiro pós-moderno,4o tal Brás Cubas, já dava mostras de sensibilidade guiada pela noção de
mercado e de profunda relativização de valores imposta por um mundo em regime de voraz
transitoriedade, muito mais do que o poderiam supor os modernos de então. O que, na verdade, Brás
queria, por presunção e vaidade – não por dinheiro ou por amor ao próximo –, era ser lembrado pelo
mercado, ver seu nome divulgado nas prateleiras das farmácias com o invento “emplasto Brás Cubas”,
que lhe traria fama,5 ainda que volátil, até porque, como ele mesmo reconhece, não transmitimos a
ninguém nosso legado.

Leitura na tela do computador


Numa realidade como esta que se apresenta já não faz sentido falar de continuidade e finalidade,
projeto e utopia, relações afetivas e humanitárias. De certo modo, esses são sintomas da literatura
moderna, pois é o que se vê também, sem maiores esforços de compreensão, em Macunaíma (para quem
não há escapatória e não se pode levar nada a sério, pois a personagem não tinha moral consolidada, nem
regras a cumprir). No entanto, outro fator, o plus pós-moderno, se aplica, hoje, a tudo isso: a certeza de
que não há mais o que preservar, já que tudo se extingue mal raia o dia. A velocidade do mundo midiático
somada ao ritmo do tempo industrial, que substitui todas as mercadorias que não foram feitas mais para
durar, adquire proporções inimagináveis. Se em Macunaíma a regra era aguardar os frutos da esperteza e
em Brás Cubas a pretensão era vivenciar o contínuo esgotamento das forças em cada conquista realizada,
na literatura contemporânea rompem definitivamente laços o sujeito e o objeto por uma espécie de
neutralização de algum tipo de ligação entre eles. O mundo vira imageria que mal se costura, que mal
relaciona os seres que se distribuem diante do campo de visão do observador. Fato que é mais dramático
no poema lírico do que mesmo na narrativa, porque ao menos na narrativa há mal e mal uma história a ser
contada, ainda que não se perceba o fundamento por que as personagens tecem algum tipo de
relacionamento – o que teria motivado o encontro, por exemplo, no romance Elogio da mentira, de
Patrícia Melo, das personagens José Guber e Fúlvia, aparentemente unidos pelo propósito de compor
uma novela policial que ele, como escritor, tenta escrever, depois (ou ao mesmo tempo) por uma
necessidade dela, mal explicada, de matar o marido e querer para isso a ajuda do amante e depois (ou
também) por quererem fixar um caso amoroso típico de cúmplices do mal. Fracassam ambos, porém,
nesse intento, até o leitor notar que nenhuma dessas ações é legítima nem tem substância e, por isso, nada
na história pode ser compreendido como um objetivo a ser cumprido, a não ser para que o romance exista
como discurso e artefato, se realize como tal e seja vendido, comprado e lido em seguida.
No poema lírico contemporâneo, a situação parece ser mais chocante ainda, porque – à falta de um
disfarce, ou do pretexto de uma história para narrar –, em breve espaço sintagmático, imitando uma tela
de TV ou de monitor de computador, tudo não passa de uma rede de coisas e palavras que não se
completam nem se integram, talvez por inexistir algum link que faça o texto se definitivizar. Como se se
sugerisse que, para ler o poema, seria preciso o auxílio de um mouse, e o leitor, assim, fosse capaz de
estabelecer as conexões que pretende, sem outra regra a dirigi-lo.
Continua o eu lírico de Waly Salomão:

Barato era tudo e muito mais


As curvas da estrada de Santos
O motor fervia, o carro rugia, meu amor
O coração batia tão veloz
Mas o mundo corria muito mais veloz que nós

É preciso, como no romance policial contemporâneo, matar por matar, viver por viver, sentir por
sentir, sem que os fatos narrados mostrem sua relação necessária. O que uniria, então, “as curvas da
estrada de Santos”, título de uma canção de Roberto Carlos, ao que foi dito nos versos anteriores e é dito
nos versos posteriores do poema “O revólver do meu sonho”, senão mera aparência de coordenação que
simula pôr um dique momentâneo ao caos e às relações súbitas estabelecidas entre coisas que, enfim, não
se coordenam? Os espaços do poema vão e vêm, nas linhas virtuais vertical e horizontal da página, por
links inesperados, como se a escrita, e provavelmente a sua leitura, se dessem numa tela de computador –
recurso que, aliás, é lembrado mais adiante, como a sinalizar, por autorreferenciação, esse modo de
organização do texto:

Interfone, blitz, joaninha, computador


O futuro comum de hoje em dia
Que eu, cigana, já pressentia

O zapping do poema
As palavras circulam no espaço da página como se movidas pelo zapping do controle remoto. Não
há nisso conexões seguras. O eu lírico aparentemente coordena coisas; o leitor as hierarquiza a seu modo
para ver nelas algum sentido consumível. E o interessante disso tudo é que quanto mais as imagens se
acumulam menos têm a dizer. A realidade se mede por alto grau de quantidade imagética e baixo grau de
informação, como sugere Beatriz Sarlo no estudo sobre a função do zapping no manejo do aparelho de
TV6. Há, antes, um estímulo – no qual, entretanto, não se põe fé – para que tão somente haja um motivo
para escrever o texto, numa espécie de palavra puxa palavra, sem direção nem finalidade. Sobre essa
atmosfera verificada na narrativa pós-moderna, Leyla Perrone-Moisés (2000) disse que a esse tipo de
realidade produzida pelo texto se poderia aplicar a expressão francesa fuiteen avant, fuga desordenada
para frente, sem saber exatamente onde isso vai dar7. Sensação vivida em Macunaíma e Brás Cubas,
parentes próximos– mas não por Rubião, em Quincas Borba, nem por Policarpo Quaresma, em Triste fim
de Policarpo Quaresma. A autodestruição, ainda que involuntária, destas duas últimas personagens
citadas passa tanto por estímulos internos (desejo de vivenciar um amor ainda que proibido, num caso, e
sentir-se paranoicamente brasileiro no país em que nasceu, no outro) quanto por estímulos externos (em
Machado de Assis, atingir a plenitude amorosa e vivencial no ser amado, a que o dinheiro sempre ajuda,
e, em Lima Barreto, pôr o Brasil no eixo de um projeto aloprado de nacionalização por via da absorção
irrefletida da cultura indígena autóctone, tida por primacial). Nos dois casos, as personagens miram-se
em espelhos que não dão certo. Como se sabe, fracassam; e fracassam sobretudo porque enlouqueceram,
prova do conflito estabelecido entre a expectativa pessoal e o duro enfrentamento da realidade social
adversa, num espelhismo às avessas, visto que, nessas personagens, repousava, e era acalentado, um
acerto de contas final, ou consigo mesmo (Rubião), ou com o seu país (Policarpo Quaresma).
Já na narrativa pós-moderna isso nem é cogitado, porque ninguém sabe por que está ali, fazendo o
quê e para quê. A vida, nesse caso, desenrola-se como o ato de fazer o zapping diante do aparelho
televisivo. E o eu lírico de Waly Salomão, nesse contexto, de controle remoto na mão, foge para frente,
sempre e sempre, sem saber para onde vai, em regime de completa dispersão:

O revólver dos Beatles disparava nas paradas


Me assustava, me encantava e movia
E eu ia, e eu ia, e eu ia
Ricocheteava
Arembepe, Woodstock, Pier, verão na Bahia

Na literatura contemporânea, a demonstração desse estado parece não ter efeitos agônicos; não
conduz à loucura por causa de qualquer tipo de frustração, como foi o caso de Rubião e de Policarpo
Quaresma; nem se procura, por algum meio, por menos dramático que seja, resolver qualquer impasse.
Não há impasses, aliás; há movimentos para a esquerda e para a direita, para frente e para trás, mas o
alvo é desconhecido, porque também não existem buscas definidas e determinadas de coisa nenhuma.
Não só porque tudo – pessoas, coisas, sentimentos e paisagens – se conjuga, mas sem operar uma síntese,
mas também porque não se criam expectativas. O futuro, se há, é um painel branco em que nada se
escreve, ou no qual qualquer coisa pode ser reescrita segundo o modelo do “copiar-colar” da edição de
texto no computador.

Inversão da posição entre as palavras e as coisas


Estilisticamente, a configuração dessa atmosfera fragmentada apresenta-se em linguagem rarefeita,
diluída, com conexões frágeis, ralas, esgarçadas, como pretendi mostrar até agora. Um minimalismo
atinge a sintaxe e a própria impressão do mundo sugerido à frente do leitor. Chamam atenção, nesse
circuito, não apenas a cisão entre as palavras, os seres e as coisas que se relacionam intimamente – uma
das acusações feitas à modernidade, culpada por fragmentar o que não deveria ser fragmentado –, como
também, mais do que isso, uma antecipação do efeito em relação a uma possível causa, distanciados
ambos no tempo, como se um não precisasse do outro para acontecer, numa completa distorção temporal
e ontológica. Assim como o real se cria no texto, não sendo mais visto como fonte do texto, conforme o
presumiu a teoria da mimese, a poesia confirma o que já se sabe que ocorre no mundo da propaganda e
da difusão dos bens materiais postos no mercado. Cria-se o desejo antes mesmo de surgir a necessidade,
invertendo-se a relação entre palavras, coisas e sujeitos. O efeito vem antes da causa, como se percebe
no refrão do poema “O revólver do meu sonho”:

O revólver do meu sonho atirava


Atirava no que via
Mas não matava o desejo do que ainda não existia

Traduz-se assim a mais brutal separação entre o mundo da qualidade e o mundo da quantidade,
mundos que abrigam as coisas no âmbito social. Disfarçada em “sonho” – o símbolo mais bem acabado
do polo da subjetividade, segundo um dos topoi sobejamente conhecidos da literatura –, a qualidade
(representada pelo “desejo”) se separa do que há de fato (“do que ainda não existia”), correspondendo
tal gesto à divisão do trabalho, a uma artificialização que só ocorre numa “práxis fetichizada”, como
salienta, nesses termos, Karel Kosík em seu Dialética do concreto (1976). Esse ardil – que existe na
linguagem e, evidentemente, nas relações humanas que não se deixam especular por uma visada mais
penetrante da realidade, sob pena de pôr em causa a manutenção ideológica dessa mesma realidade – é
levado às últimas consequências na poética contemporânea, bem além da mirada moderna. Tudo para
garantir a percepção superficial dos problemas, ou, melhor ainda, a sua não percepção, logo agora que o
capitalismo se ergue à condição de sistema econômico-produtivo universal sem encontrar adversários à
altura que de algum modo o possam colocar em perigo rumo a uma desestabilização. Se essa mesma
interpretação puder ser submetida a um ponto de vista psicanalítico, pode-se até prever que houve uma
economia libidinal – não fazer sentir –, para que as energias físicas e mentais não conheçam a exaustão.
O sistema pensa por nós, assim como os brinquedos eletrônicos brincam pelas crianças. Ponto alto para o
mercado, que, como diz Sarlo8, substituiu as religiões, a política, as ideologias, os espaços comunitários.
Precisamos de algum modo economizar para gastar mais adiante, racionalizando as despesas; e, fazendo-
nos consumidores, criamos uma identidade global e globalizada, homogeneizadora, perversamente e
aparentemente diluidora das diferenças.
Visto que o sonho, segundo a explicação freudiana, corresponde a processos primários do aparelho
psíquico onde coisas e imagens se intercambiam ou se fundem – semelhantemente, diríamos, ao menos de
modo provisório, que esse é também o processo da realização literária, apesar de consciente –, o que
ocorre no poema contemporâneo é a disjunção entre o ser e o desejo, que, particularmente, estimularia o
estado onírico. Pois “o revólver do meu sonho” atira e mata o alvo, qualquer alvo, desrealiza energias e
focos de realidade, promove a separação entre as partes intimamente afetadas, mas não mata o desejo, o
oposto da necessidade. Entretanto, o que ainda não existe – o campo da necessidade – se mantém intacto,
justamente porque não existe. Nessa relação invertida de causa e efeito, põe-se em evidência o produto
do mercado, que, ao invés de vir de uma necessidade humana, praticamente a cria. A pensar desse modo,
preserva-se, assim, um princípio econômico fundamental, o do fetichismo da mercadoria, que continua a
existir, mas dessa vez de modo mais autônomo ainda, porque agora o mundo da necessidade e o do
desejo não se comunicam em hipótese alguma.
Como não pretendo nem uma análise economicista nem muito menos psicanalítica da poesia
contemporânea, mas apenas lembrar possibilidades de enquadramento teórico do texto, quero dizer
apenas que cada vez mais ocorre o distanciamento da qualidade das coisas, seja pela exacerbação do
fetichismo da mercadoria, seja pelos danos que isso pode trazer à relação do homem com o mundo,
afetando consideravelmente a maneira de compreender a própria realidade que habita. Para a
maximização do sistema, é preciso que cada vez mais também se embaralhem os dados que o compõem,
porque quanto mais diluídos e dispersos forem menos se tem noção do que representa socialmente o
sistema na vida do indivíduo.9

Observando da plateia
Waly Salomão diz isso em termos de obliteração certa e inadiável: dispersão é esquecimento; é
recusa de um posicionamento mais firme ou vontade de interferir nas coisas; é, antes de tudo, ênfase dada
à observação em detrimento da ação, como quem da plateia, à revelia de si mesmo, vê o mundo mexer-
se. Quando chamado a agir, é simplesmente lembrado de que já esqueceu. É natural que é preciso criar a
ilusão de que o sujeito age, mas no ritmo da indiferença e descompromisso com a realidade mais próxima
(“esqueceu”, “apagou”, enfiou a tesoura”, “passou a gilete”, “meteu a borracha”), tudo em nome da
impossibilidade de deixar rastros, porque os objetos e os seres se renovam continuamente, estimulando a
produção desenfreada dos bens, ainda que não se precise deles. O que deve ser esquecido e posto de
lado é a canção, a transação, a ligação e o traço de união que cria relações entre os para sempre opostos
Oriente e Ocidente e entre outros pares antinômicos também (relação homem-mulher, pai-filho, adulto-
criança, macho-fêmea), desestabilizando crenças e dicotomias consideradas já sedimentadas. Na
velocidade em que vivemos, a perda das qualidades sensíveis (pelo menos daquelas em que tanto se
acreditava) é altamente operacional e conveniente à impessoalidade do sistema, porque já não se percebe
o liame entre elas, não se sente falta disso ou daquilo, porque tudo é mesmo volátil e contingente. Alerta
o poeta:

Passado, futuro, presente


Fundido e confundido na minha mente
A todo vapor

Não há tempo nem dinheiro a perder, nem energias vitais, pois o sistema precisa continuar vigendo e
funcionando em ritmo freneticamente acelerado. A perspectiva não é a de quem tem noção clara e distinta
das coisas, fato que ajuda a não questionar o rumo da sociedade globalizada e dos muros que ela derruba,
fundindo espaços antes discerníveis. Algo parecido com o que disse Caetano Veloso no poema “O trem
das cores”, cuja perspectiva clássica se revela completamente arruinada em favor de uma visão
fragmentária, a ponto de os pigmentos das cores escaparem dos objetos que colorem:

As casas tão verde e rosa


Que vão passando ao nos ver passar
Os dois lados da janela

Quem, aí, vê o quê, nesse trem das cores? O adjetivo “verde”, o único que poderia se flexionar no
plural nessa sequência, não concorda com “casas” porque cor e objeto já se dispersaram um do outro. E
de onde, de que lugar, é que se vê? Aquele que está situado do lado de fora do trem ou quem está do lado
de dentro? As casas vão passando – parece ser a ilusão de quem está sentado, viajando, no interior do
trem – mas são as casas que nos veem passar. Enquanto isso, os dois lados da janela são as duas
interpretações, os dois ângulos de visão numa mesma operação sígnica, sem que se dê, entretanto, a tão
esperada síntese, pois simultaneidade não quer dizer síntese. Porque, se se desse a síntese, que é a
operação suprema da transformação dialética, se perderia energia, algo se iria para sempre pelo ralo; e,
assim, sinistramente, desnecessariamente, numa recolocação das perspectivas sociológica e
psicanalítica, se perderia dinheiro, e se perderia força vital, libidinal, à toa, sendo que tal desgraça não
pode ocorrer num sistema vigilante, que, no máximo, permite o jogo mas não permite em definitivo que o
jogo assuma a frente e o comando das ações políticas fundamentais, como questionar a ideologia, por
exemplo. A dualidade, pois, se preserva, apesar do aparente embaralhar dos polos.

Sem escolha e sem dialética


Linda Hutcheon afirma justamente isso: “No pós-modernismo existe contradição, mas não dialética.
E é essencial que a duplicidade seja mantida”10. Relembro, então, os dois lados da janela do verso de
Caetano: duplicidade preservada “e não resolvida”, continua Hutcheon (Ibid). É bom lembrar de novo,
nesse sentido, Brás Cubas, que não escolheu entre a filantropia e o lucro capitalista; ficou com os dois,
apesar de conflitantes e contraditórios entre si. Em consequência, os polos, tidos em geral como
antinômicos, não ascendem ao nível da síntese. Juntam-se, mas não perdem suas características básicas,
não chegam a constituir qualidade superior.
Não que não seja dada a oportunidade de escolher este ou aquele lado, isso não; mas, embaralhando
momentaneamente – apenas momentaneamente – a percepção do indivíduo, o sonho se libera, sem
pretender, no entanto, direcionar-se exatamente a um alvo da realidade. No máximo, o estímulo ao desejo
pode ter muitas direções, seja qual for o objeto externo ao qual o desejo venha um dia se ligar – afinal, o
revólver do sonho não mata o desejo do que ainda não existe –, porque o sonho já é uma realização, e o
prazer é bastante e autossuficiente. O sonho é dispersivo e não vem de quem sonha, mas, em sua total
independência, aparece desligado de uma eventual necessidade (que poderia, se tudo fosse tão lógico
assim, levar ao sonho). Não se trata, como na teoria marxista do fetichismo da mercadoria, de uma
ocultação da legítima fonte do capital, que é a mais-valia. O sonho, no poema de Waly Salomão, é o
fetiche em si e por si; nada oculta nem disfarça porque já não há o que disfarçar, pois ele não
corresponde a relações sociais entre pessoas que, supostamente, têm necessidade.
Esse sonho, que não é, pois, do homem que sonha, é, antes, do mercado que estimula o consumo
anárquico e sem direção certa. O revólver é, nessa construção, o elemento impulsionador e propulsor do
desejo como algo separado do humano. Afinal, alguém sonha por nós, o sistema produz nossa
necessidade de sonhar, embora a necessidade, igualmente alienante, não traduza a mais autêntica
subjetividade. Pois, como disse Carlos Drummond de Andrade, “sonhei que o sonho existia / não dentro,
fora de nós, / e era tocá-lo e colhê-lo, / e sem demora sorvê-lo, / gastá-lo sem vão receio / de que um dia
se gastara”.11
Para o poeta alagoano Maurício de Macedo, ter prazer é uma experiência poética ou uma experiência
real, tanto faz. Nos dois casos, seja lá como for, o homem está cindido nele mesmo, como se pode ver no
poema “Orgasmo”:

Reteve a musculatura o felino


e num salto penetrou no espelho.
E de repente na superfície polida
não se via mais a sua imagem.

O espelho, limite de si e do outro refletido, não reflete, contudo. Não há síntese nem de si mesmo,
pois tudo está irremediavelmente fundido e confundido sem que esse efeito queira significar totalidade ou
unidade, e sim perda, mas uma perda desejada, esperada, não traumática. Homem e imagem se separaram
para sempre, é o que parece dizer o poeta. Foi passada a borracha no desenho, foi cortada a ligação entre
os seres, foi promovido o esquecimento de si e do outro, num isolamento extremado. Os românticos ainda
dispunham dos rios e dos lagos em que se refletiam e com os quais conversavam, quando a realidade
social e o sentimento de irmandade lhes pareciam impossíveis, num mundo estilhaçado e avesso à
comunicação e às formas razoáveis de socialidade. Agora, não há revolta nem medo; apenas uma
constatação – sem tremores ou nostalgias – do grande vazio do espelho, uma espécie de disco de Newton
girando sem parar. Parece não ter remédio o isolamento, nem ninguém o questiona, mas é aceito com
serenidade, com passividade, sem reflexão, e muitas vezes até com cinismo. O que fica, como diz o
poeta, é uma “superfície polida” e branca, promessa para que nela se reescrevam instantâneos iguais a
esse.
Os dois lados da janela se mantêm. A duplicidade – que, frise-se bem, não é sinônimo de
ambiguidade – não se apaga em nome de uma síntese, mas disfarça as diferenças e as antinomias,
contribuindo para uma maior eficácia do estilo. Traduzindo isso para os termos da ciência econômica, há
uma contenção de despesas na casa do eu lírico, um gasto controlado do dinheiro e das energias físicas,
já que nada se desperdiça: é uma economia deliberada. Ou tudo se funde num só ato, como o fez Brás
Cubas ao dizer, no capítulo XVI do livro, que ia fazer uma reflexão imoral e, ao mesmo tempo, uma
correção de estilo, numa espécie de dois em um – o que, convenhamos, é bem mais econômico. O
discurso registra as antinomias, mas não as quer resolver dialeticamente. Em situação muito parecida
com esta, Brás Cubas, que inicialmente olhou com interesse para Eugênia, desiste de namorar a “flor da
moita”, expressão metafórica de que se arrepende e que descarta logo depois de construí-la, depois de
constatar que ela era coxa: “Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita?”. A duplicidade existe e
não pode ser desmentida, mas pode ser cinicamente enfrentada. Diz então esse narrador em favor da
economia do recurso estilístico: “Retira, pois, a expressão, alma sensível, castiga os nervos, limpa os
óculos – que isso às vezes é dos óculos – e acabemos de uma vez com esta flor da moita”.
Não se pode perder tempo, pois perdê-lo é degenerar-se financeiramente. Nem utilizar imagens
literárias à toa, pela mesmíssima razão. Brás Cubas também se livrou das culpas e das causas de suas
ações irresponsáveis, tendo ficado apenas com o sonho (frustrado, é verdade). Falando como um
verdadeiro financista ou economista, Brás vê a tudo cinicamente, não padecendo da derrocada das
negativas (“Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem
sobra”, ou então, “saí quite com a vida”, ou, ainda, “achei-me com um pequeno saldo”). Afinal, é
preciso, como lei última do mercado, conter e controlar gastos, ver nisso alguma vantagem pecuniária.

Referências
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(Org. de Afrânio Coutinho). Rio de Janeiro: Nova Aguilar S. A., 1997. p. 511-639.
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Trad. de Waltensir Dutra. São Paulo: Martins
Fontes, [198-].
ECO, Umberto. Pós-escrito a O nome da rosa. Trad. de Letizia Zini Antunes e Álvaro Lorencini. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Trad. de Ricardo Cruz. Rio de
Janeiro: Imago, 1991.
KOSÍK, Karel. Dialética do concreto. Trad. de Célia Neves e Alderico Toríbio. 2. ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1976.
MACEDO, Maurício de. Tear da palavra. Maceió: Edições Catavento, 2004.
MARQUES, Reinaldo; VILELA, Lúcia Helena (Orgs.). Valores: arte, mercado, política. Belo Horizonte:
Editora da UFMG/Abralic, 2002.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. A profecia de Mário de Andrade. Em: PERRONE-MOISÉS, Leyla. Inútil
poesia e outros ensaios breves. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 248-253.
SALOMÃO, Waly; FREJAT, Roberto; GIL, Gilberto. O revólver do meu sonho. Em: COSTA, Gal. Gal
profana. [S. l.]: RCA, 1984. 1 disco laser, 4,8 pol. 74321215242. Gravação de som.
SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna: intelectuais, arte e videocultura na Argentina. Trad. de
Sérgio Alcides. 4. ed. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2006.
SCHWARZ, Roberto. Complexo, moderno, nacional, e negativo. Em: SCHWARZ, Roberto. Que horas
são?: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 115-125.
VELOSO, Caetano. Trem das cores. Em: VELOSO, Caetano. Cores, nomes. São Paulo: Philips, 1989. 1
disco laser, 4,8 pol. C 838 464-2. Gravação de som.

Notas
1Palestra apresentada em Porto Alegre, no dia 22 de setembro de 2011 na terceira edição das Jornadas
de Poesia Moderna/Criação Poética, organizada pelo Núcleo de Estudos sobre Imaginário e Literatura,
do Programa de Pós-Graduação em Letras, da PUCRS.
2 Professor Associado 4 da Universidade Federal de Alagoas, doutor em Literatura Brasileira e
integrante da área Estudos Literários, na linha de pesquisa Literatura e História, do Programa de Pós-
Graduação em Letras e Linguística (PPGLL), da Faculdade de Letras (Fale), da Ufal.
3 P. 117.
4 Uso, aqui, o conceito meta-histórico de pós-moderno de acordo com a definição dada por Umberto Eco
(1985, p. 55): “o pós-moderno não é uma tendência que possa ser delimitada cronologicamente, mas uma
categoria espiritual, melhor dizendo, um Kunstwollen, um modo de operar. Podemos dizer que cada
época tem seu próprio pós-moderno, assim como cada época teria seu próprio maneirismo”.
5 Outro romance brasileiro do século XIX que problematiza a divulgação da imagem do indivíduo, como
configuração estética da ideia –ainda que prematura –de ação da propaganda e da mídia na sociedade
capitalista, numa espécie de antessala da literatura que hoje se produz, antenada com o mercado, é O
Ateneu (1888), de Raul Pompéia, em que Aristarco se vê a si mesmo como face de um anúncio
publicitário: “Nas ocasiões de aparato é que se podia tomar o pulso ao homem. Não só as condecorações
gritavam-lhe do peito como uma couraça de grilos: Ateneu! Ateneu! Aristarco todo era um anúncio. Os
gestos calmos, soberanos, eram de um rei [...] A irradiação do reclame alongava de tal modo os
tentáculos através do país [...]” (Cf. capítulo I desse romance).
6 2006, p. 57.
7 P. 250.
8 2006, p. 28-29.
9 Não seria isso o mesmo que Terry Eagleton acusa ao tratar dos estudos linguísticos e literários na
contemporaneidade? Diz ele: “Se o estruturalismo separou o signo do referente, esse pensamento –
frequentemente mencionado como ‘pós-estruturalismo’ – dá um passo além: separa o significante do
significado” (EAGLETON, [198-]. p. 138).
10 1991, p. 264.
11 Quero deixar claro que a relação da arte com o dinheiro, a economia e os interesses mercadológicos
não é simplesmente um tema, mas se inscreve na própria montagem e organização – hoje mais do que
nunca – do discurso literário, como o podem revelar o poema drummondiano “Sonho de um sonho”, de
Claro enigma, aqui transcrito em parte, e sobretudo o poema de Waly Salomão, fulcro da presente
análise. Bom estudo sobre tais relações se pode ver em alguns ensaios incluídos na coletânea Valores:
arte, mercado, política, organizada por Reinaldo Marques e Lúcia Helena Vilela (2002).
A ARTE POÉTICA E A METÁFORA
Cibele Beirith Figueiredo Freitas1
A questão da criação poética tem sido debatida desde a antiguidade, com os filósofos da Grécia
Antiga. Inúmeros críticos e estudiosos tem debatido questões relacionadas à poesia, com intuito de
caracterizá-la e criar teorias que tratem da arte poética. Cada teórico tem o um ponto de vista, o que
enriquece as questões acerca do tema poesia.
Aristóteles, discípulo de Platão, foi um dos primeiros a contribuir com o tema, distinguindo o poeta
do historiador, afirmando que o primeiro é mais filosófico que o segundo, pois a poesia não tem
compromisso com a verdade dos acontecimentos, sendo a verossimilhança um elemento necessário à
história. Para ele, “a obra do poeta não consiste em contar o que aconteceu, mas sim coisas quais podiam
acontecer, possíveis no ponto de vista da verossimilhança ou da necessidade”.2
Assim, o autor introduz o conceito de mímesis, ou seja, a obra de arte não representa a realidade,
mas possíveis interpretações do real através de ações, palavras e pensamentos imaginários, dos quais se
originam os poemas. O ato de imitar a realidade é inerente ao homem, pois é através dela que ele
conhece a realidade e também pelo prazer que o ato de imitar proporciona.
Em outras palavras, a definição da mímesis grega passa por uma reunião dos “traços da mímesis que
a distinguem de uma cópia que repetiria a natureza”3. Para Aristóteles, o poeta imita como o pintor e isso
pode ser percebido através do uso de figuras de linguagem:
Imitador como o pintor ou qualquer outro artista plástico, o poeta necessariamente
imita sempre por uma de três maneiras: ou reproduz os originais tais como eram ou são,
ou como os dizem e eles parecem, ou como deveria ser. Isso se explica numa linguagem
em que há termos raros, metáforas e muitas modificações de palavras, pois consentimos
isso aos poetas.4
Dessa forma, o autor afirma que a imitação ocorre através do uso de figuras de linguagem, como a
metáfora. Para Aristóteles, a metáfora “consiste no transportar para uma coisa o nome de outra coisa, ou
do gênero para a espécie de uma para a espécie de outra, ou por analogia”.5
Após a contribuição de Aristóteles, base do pensamento ocidental sobre a arte poética, muitos outros
autores trataram do tema. No período do romantismo, iniciou a busca para uma reflexão sobre a poesia
em sua característica de linguagem metafórica. Com efeito, no romantismo, iniciou-se a concepção de que
os recursos de linguagem na poesia servem para dar ênfase aos estados de ser do eu-lírico. É o que se
nota, por exemplo em Hegel:
O conteúdo da obra de arte lírica não pode ser o desenvolvimento de uma ação
objetiva em sua conexão que se amplia em um reino mundano e sim o sujeito singular e
justamente com isso a singularização da situação e dos objetos bem como do modo com
que o ânimo em seu juízo subjetivo sua alegria, seu maravilhamento, sua dor e seu sentir
leva em geral a si a consciência em tal Conteúdo.6
Neste sentido, o conteúdo da poesia adquire substancial significação, já que reside no conteúdo da
linguagem o que enriquecimento o sentido das palavras. O enriquecimento surge a partir da
singularização da perspectiva que se tem sobre o assunto abordado.
Ainda no século XIX, outro autor que aborda a questão da criação poética é Edgar Allan Poe. No seu
texto “O princípio Poético”7, Poe defende o principio de autonomia da arte, ou seja, a arte pela arte. Ele
acrescenta que não importa o tamanho do poema, mas a emoção que ele provoca, de acordo com os usos
que faz dos elementos linguísticos de que se vale.
De fato, para Poe, a poesia não tem compromisso com a verdade e com a ética, e a este fato ele
denomina de “heresia do didático”. Ele completa afirmando que o poema é nobre quando ele fala de
dentro da alma, escrito por ele mesmo, sem intenção de verdade, mas compromisso com o belo e com o
gosto.
Segundo ele, o esforço do poeta não diz respeito apenas à apreciação da beleza, mas para ultrapassar
a beleza, a qual faz compreender e sentir o poético, destacando a música como o modo de alcançar a
suprema beleza. É no encontro da poesia e da música que se alcança um amplo espaço para o
desenvolvimento poético.
Somente na contemplação da Beleza achamos possível atingir aquela elevação
aprazível da alma, que denominamos Sentimento Poético e que tão facilmente de
distingue da Verdade, que é a satisfação da Razão, ou da Paixão, que é o excitamento do
coração.8
A poesia deve ser guiada pelo sentimento que é a essência da beleza. E, em verdade, a essência da
beleza, como quer Hegel, representa uma singularização do que se sente as respeito da beleza. A
singularização é provocada pela emoção.
É justamente a emoção do poema que determina a singularização das questões que expressa através
da linguagem, em especial com o uso das figuras de linguagem. O principio poético de Alan Poe defende
a arte pela arte, o fazer como prazer estético, sem dever com a verdade. E, por sinal, coincide com o
pensamento aristotélico de que a arte, notadamente a arte poética, consiste em uma representação do
mundo sem duplicá-lo, mas sim enfatizar as qualidades belas, associadas ao que se entende por
verdadeiro.
É com Jean Cohen que a reflexão sobre as figuras de linguagem, em especial a metáfora. Na obra A
estrutura da linguagem poética 9, Cohen afirma que a linguagem usual, que ele denomina “linguagem
natural”, é própria da prosa, diferentemente da linguagem poética. Neste contexto, temos primeiramente
uma comparação da linguagem poética e da prosaica a fim de que, nesta abordagem tipológica, a poesia
adquire a sua especificidade.
Para o referido autor, as figuras de linguagem encontradas na poesia são ornamentos necessários
porque eles mostram a carga poética escondida no mundo e, também porque a poesia, sendo composta de
linguagem resumida, precisa para expressar muito em poucas palavras.
Neste sentido, não bastam apenas os recursos poéticos, mas há que pensar em como usá-los. Eis aqui
o diferencial de Jean Cohen em relação aos pensamentos anteriores, uma vez que a singularização do
sentimento, da visão de mundo, passa pela ênfase causada pelos “ornamentos” por ocasião da expressão
da mensagem a que o poema se propõe através da linguagem.
Dentre as figuras de linguagem, a metáfora é uma figura de mudança de sentido. Cada palavra possui
dois sentidos: um denotativo, que advém dos dicionários, e um conotativo, que tem um sentido figurado.
A metáfora é a passagem da função conotativa para a denotativa, da linguagem denotativa para a
conotativa.
A poesia não fala a linguagem literal, ou seja, o poeta nunca diz diretamente o que quer dizer, mas
fala através de enigmas, tergiversações, em suma, fala através das entrelinhas. De fato, a metáfora
poética “[...] não é simples mudança de sentido: é mudança de tipo ou natureza de sentido, passagem do
sentido nocional ao sentido emocional. Por essa razão, toda metáfora é poética”.10
Outra abordagem que Cohen faz referência diz respeito ao uso das metáforas de cor, seguidamente
utilizadas pelos simbolistas. Ele acrescenta que atribuir uma cor aos objetos e seres é um desafio à razão,
mas que faz parte do universo simbolista que ele denomina “desconcertante”. Para ele,
A verdade é que a palavra que exprime a cor não remete para a cor, ou melhor, só
remete num primeiro tempo. Num segundo tempo, a própria cor torna-se o significante de
um segundo significado de natureza emocional. [...] O poeta não procura “pintar”, e a
metáfora não é “pintura” como o verso não é “música”. A metáfora poética é a passagem
da língua denotativa para a língua conotativa, passagem obtida por meio do desvio de
uma fala, que perde seu sentido ao nível da primeira língua, para reencontrá-la ao nível
da segunda.11
Cohen acrescenta aos raciocínios anteriores que a metáfora não é apenas uma mudança de sentido,
mas uma “metamorfose” da linguagem poética de uma maneira geral, o que torna a poesia arte. Deste
modo, é lícito pensar que o poeta precisa infringir a linguagem natural, desconstruir a linguagem literal
para recriá-la em outro plano e mostrar a face oculta, poética, da vida. E, com efeito, esta face poética é
a única que de fato importa para o eu lírico, haja vista a importância que ele atribui à linguagem
metafórica para expressar o que sente e o que pensa do mundo ao seu redor.
Com efeito, o poeta cria uma metáfora original quando ele utiliza “uma forma antiga numa substância
nova”12; em outras palavras, ele muda o contexto usual de uma palavra e agrega a ela outro sentido que
não o sentido literal e neste ato de agregar sentido está a recriação. Ou seja, o poeta recria a linguagem
quando é capaz de enriquecer as palavras com novas nuanças de sentido.
É fato que a recriação das palavras, comum a todos os poetas, permite constatar o caráter dinâmico
da linguagem. No dinamismo da recriação, os sentidos se renovam, as palavras revelam um corpo
poético diferenciado e mostram que sua bagagem semântica não é algo estagnado, que se restringe a
apenas determinados usos e valores. A linguagem poética é uma linguagem que se renova porque explora
novos sentidos e sensações despertadas pela interioridade que, ao fim e ao cabo, é um contexto em que se
explora o autoconhecimento.
Paul Ricoeur retoma o pensamento aristotélico para refletir a respeito da questão da obra de arte
enquanto reflexo da realidade. De fato, considerando a linguagem poética, Ricoeur estabelece de forma
bastante enfática que
A realidade permanece uma referência, sem jamais se tornar uma determinação. É
por isso que a obra de arte pode ser submetida a critérios puramente intrínsecos, sem que
pese o cuidado ontológico de proporcionar aparência ao real. Ao renunciar ao uso
platônico de mimese que permitia tomar mesmo as coisas naturais por imitações de
modelos eternos e chamar a uma pintura imitação da imitação, Aristóteles impôs-se usar
o conceito de imitação da natureza apenas nos limites de uma ciência da composição
poética, que conquistou a sua plena autonomia. 13
Deste modo, Ricoeur reafirma o conceito aristotélico do descompromisso com a realidade na arte
poética. O uso da metáfora proporciona uma nova leitura da realidade a partir de novas matizes
adquiridas pelo uso da linguagem. A realidade, sendo referência, colabora apenas como ponto de partida
para a expressão poética. A linguagem metafórica é o que de fato proporcionará a emoção do poema e,
por consequência, o impacto de sua mensagem.
Se este impacto for a emoção causada, tal como quer Poe, então há que pensar na questão dos
diversos usos linguísticos que permitirão um encadeamento de ideias e palavras tal de modo a colocar a
realidade sob uma perspectiva diferenciada e, neste contexto, abordar o sentir humano como arte poética.
Nestes termos, é importante pensar que a qualidade do “impacto” de um poema, a medida da
“emoção” que é capaz de causar, está ligada ao uso que faz das metáforas. Se a metáfora é um elemento
que estabelece a ênfase na comunicação dos sentimentos abordados, logo ela se reveste de considerável
importância no cabedal de informações que é necessário transmitir ao leitor mediante uma linguagem
resumida. Afinal, no resumo deve estar a precisão e, na precisão, a escolha dos termos que, mesmo sendo
poucos, sejam capazes de dizer muito.
No texto “Metáfora e símbolo”14, Paul Ricoeur afirma que a metáfora garante a literariedade na obra
literária, o que a difere do texto científico, uma vez que apresenta um sentido explícito e um implícito. O
estudioso afirma que apenas a denotação é cognitiva e de ordem semântica, portanto, a conotação deve
estar livre de qualquer significado cognitivo.
Segundo ele,
[...] aquilo que um poema enuncia se relaciona com o que ele sugere, da mesma maneira
que a sua significação primeira se relaciona com a significação segunda onde ambas as
significações concordam no campo semântico. E a literatura é o uso do discurso em que
várias coisas se especificam ao mesmo tempo e onde o leitor não é mais intimado a entre
elas escolher. É o uso positivo e produtivo da ambiguidade. 15
Nesse sentido, o discurso da poesia apresenta várias camadas de significação que auxiliam na
compreensão da mensagem expressa através da linguagem simbólica e o leitor poderá escolher quais os
elementos que ele utilizará para atribuir sentido ao poema.
Ricoeur retoma a definição aristotélica sobre metáfora como a “aplicação de uma coisa de um nome
que pertence a outro [...]” e acrescenta que “a comparação é uma forma ampliada da metáfora”16. Para
ele, a metáfora resulta de uma tensão entre dois termos, ou duas palavras, e só tem sentido no conjunto
organizado da frase, como enunciado metafórico. É no encontro entre duas palavras que se dá o conflito
que sustenta a metáfora numa extensão de sentido.
O autor critica o uso da metáfora na retórica clássica como simples substituição entre as duas
palavras. Ele afirma que tal figura de linguagem transita entre dois termos que formam uma dupla
interpretação: um sentido literal e um sentido figurado. Essa dupla interpretação opõem-se à teoria da
substituição porque traz uma nova significação para o enunciado.
A partir dessa ideia, Ricoeur constrói uma nova definição, na qual metáfora
é uma criação instantânea, uma inovação semântica que não tem estatuto na linguagem já
estabelecida e que apenas existe em virtude da atribuição de um predicado inabitual ou
inesperado. Por conseguinte, a metáfora assemelha-se mais à resolução de um enigma do
que a uma associação simples baseada na semelhança; é constituída pela resolução de
uma dissonância semântica.17
A metáfora utiliza-se da linguagem usual para atribuir um novo sentido a uma sentença. É fruto de
uma tensão entre duas palavras ou termos na tentativa de construir um novo significado. Na poesia, a
metáfora enriquece o discurso porque traz inúmeras possibilidades de significações construídas num
plano distinto da linguagem denotativa.
No discurso poético há vários exemplos de metáfora. Com efeito, a metáfora serve aos propósitos de
expressão de sentido. Um dos momentos em que o uso de metáforas ilustra o sentimento angustioso do eu
lírico é a questão de um amor não correspondido, como se verifica, por exemplo, no poema “Estátua”, de
Camilo Pessanha, transcrito abaixo:

Cansei-me de tentar o teu segredo:
No teu olhar sem cor, – frio escalpelo,
O meu olhar quebrei, a debatê-lo,
Como a onda na crista dum rochedo.
Segredo dessa alma e meu degredo
E minha obsessão! Para bebê-lo
Fui teu lábio oscular, num pesadelo,
Por noites de pavor, cheio de medo.
E o meu ósculo ardente, alucinado,
Esfriou sobre o mármore correto
Desse entreaberto lábio gelado...
Desse lábio de mármore, discreto,
Severo como um túmulo fechado,
Sereno como um pélago quieto.

No poema transcrito podemos encontrar a metáfora do amor não-correspondido através de vários
recursos linguísticos. Um deles é o uso da cor, ou melhor, da ausência de cor, simbolizando ausência de
vida e, por consequência, ausência de sentimento. O ser amado na verdade não é um objeto inatingível,
mas um ente incapaz de corresponder o amor.
No entanto, o eu lírico faz tentativas para concretizar o amor. Todas, entretanto, infrutíferas. A falta
de êxito acha-se simbolizada na onda que atinge um rochedo, sendo o rochedo mais uma metáfora para a
falta de sentimento ou de correspondência de amor.
A falta do amor correspondido dificulta a relação do eu lírico com o outro, isto é, com o ser amado,
visto que este se apresenta como um ser sem vida, frio e imóvel, e daí porque ele o denomina “estátua”,
conforme sugere o título.
A falta de correspondência do amor expressado pelo eu lírico ocasiona um espaço vazio entre o eu
do eu lírico, e o outro, espaço este que se traduz em um contexto de segredo. Ou seja, o ser amado tem um
segredo na medida em que revela apenas o que é por fora e não o que é por dentro tal como o eu lírico.
A tentativa de descobrir o segredo do ser amado constitui uma espécie de exílio do eu lírico,
“Segredo dessa alma e meu degredo/ E minha obsessão!”. Neste contexto, o que fazer para que o outro
possa se revelar? O eu lírico tenta uma solução para isso através do beijo, já que o beijo significa, no
contexto poema, a revelação de um segredo.
Contudo, não houve manifestação de amor correspondido da parte do outro, a “estátua”, visto que
“Esfriou sobre o mármore correto/ Desse entreaberto lábio gelado”. O “lábio gelado” é mais uma
metáfora para a frieza do ser amado diante do amor do eu lírico, ou seja, mais um recurso com que o
poema se reveste para expressar uma situação de amor não-correspondido.
A frieza também é atestada pelo uso da figura do mármore, que representa o impassível, o
imperturbável, o destituído de emoção e, por consequência, sem vida. A ausência de vida, por outro lado,
também se apresenta com a metáfora do túmulo, a qual é a metáfora mais significativa para falar de
ausência de sentimento, visto que simboliza a morte: “Desse lábio de mármore, discreto,/ Severo como
um túmulo fechado”.
A caracterização finaliza com a definição do outro como sendo “Sereno como um pélago quieto”,
isto é, silencioso como um mar calmo e profundo. Entretanto, a metáfora do pélago sereno não significa
paz, mas ausência de sentimento e vida.
A questão do mar profundo, da circunstância abismal ilustra a distância entre o eu lírico e o ser
amado, daí o vazio existente entre ambos: de um lado, o eu lírico, que não é correspondido, de outro, o
ser amado em sua frieza, falta de cor, aparência de mármore e situado em um mar sereno e profundo,
sepultado para toda e qualquer possibilidade de amor.
Outro poeta em que podemos ver o uso de metáforas é em Manuel Bandeira, no poema ‘O Bicho”,
transcrito abaixo:

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.

Nos versos do poema “O bicho”, o eu lírico faz uma comparação do bicho com o homem em estado
de degradação. Segundo o que se depreende dos versos do poema, um bicho é um animal que não
necessariamente escolhe a comida que vai comer. Come porque tem fome, porque precisa sobreviver.
O homem se degrada quando ele adquire este comportamento de comer por sobrevivência, quase por
instinto, o que é ilustrado no verso “Na imundície do pátio”. Ou seja, não importa o lugar onde se coma
e, desta forma, a degradação humana se faz sentir na medida em que está ausente a característica que
diferencia o homem do animal: a higiene, a boa escolha do alimento e o olfato sensível para aquilo que
lhe é agradável enquanto humano e não enquanto animal. Isso é possível notar nos versos “Quando
achava alguma coisa,/ Não examinava nem cheirava:/ Engolia com voracidade”.
Ao final do poema, então é revelado de qual animal fala o eu lírico: o homem. Os outros animais
servem de metáfora para o comportamento humano na situação em que o homem, não podendo alimentar-
se como os outros, procura restos de comida, tal como fazem os animais, no caso cães, gatos e ratos.
O poema permite depreender que há, nas entrelinhas, a denúncia de um problema social onde o ser
humano, para não morrer de fome, está em uma situação-limite tal que a busca do alimento é feita da
forma que um animal faria, isto é, sem escolher, sem cheirar, simplesmente engolir, sem sentir o gosto,
enfim, sem o comportamento característico de um ser humano.
O bicho-homem colocado no poema representa a degradação humana. O fato do homem igualar-se
aos animais não representa que os animais sejam degradados, mas sim, que o homem se esvaiu de sua
condição humana, transviando-se para uma condição que, por direito, não deveria ser sua.
O examinado demonstra a importância e a contribuição dos estudos sobre o fazer poético desde a
antiguidade, iniciando por Aristóteles, com o conceito de mimese, base dos estudos sobre poesia até os
dias de hoje.
Nesse contexto, podemos perceber a importância do uso das figuras de linguagem, em especial, a
metáfora, para a construção do discurso poético. A metáfora proporciona a ênfase de uma ideia. Portanto,
a metáfora é de suma importância para causar o impacto em um poema.
A sensibilidade humana, ao que as mais variadas produções poéticas permitem constatar, é melhor
atingida pela metáfora do que pela mesma ideia proposta pela linguagem usual. Naturalmente o sentido
da palavra não se extravia com o uso da metáfora.
Com efeito, a metáfora enriquece o sentido das palavras e, por consequência, da própria língua,
sendo mais frequente o seu uso no discurso poético, que “trabalha com pouco para construir muito”.
Porém, para construir muito com pouco, há que escolher os recursos linguísticos adequados para a
expressão da arte poética.
Camilo Pessanha escolhe os recursos que lhe parecem mais adequados para abordar a frieza
enquanto símbolo de não correspondência de amor. Assim, as metáforas ali colocadas não o foram sem
critério, visto que elas dão ênfase ao sentimento do eu lírico, enriquecem o sentimento de vazio e são
decisivas na caracterização da sua experiência com relação ao ente amado.
Da mesma forma, Manuel Bandeira usa os animais como metáforas para abordar as condições de
degradação a que chega o ser humano em determinadas circunstâncias causadas por problemas sociais. A
comparação com o animal enfatiza o humano desvirtuado de sua condição e o impacto do poema está no
fato de que tal desvirtuamento ocorre por uma necessidade premente, isto é, a fome.
Em ambos os poemas, a metáfora é responsável por grande parte da compreensão do que é dito.
Muito embora todos os poetas usem metáfora, há que saber se ela proporciona em muitos casos emoção
ao poema. Cada poeta usa metáforas conforme seu estilo e a eficácia da comunicação de um poema
depende da ênfase que essa figura de linguagem causa ao leitor e do entendimento que ele tiver a respeito
dela. Pode-se dizer que a metáfora é um recurso que reside em todos os tempos e modos e, se a
comunicação poética é um apelo ao coração, a figura de linguagem representa um caminho para atingi-lo.

Referências
ARISTÓTELES. Poética. 7 ed. Tradução de Eudoro de Souza. São Paulo: Casa da Moeda, 2003.
_____. Poética. Em: Aristóteles, Horácio, Longino: a poética clássica. Tradução por Jaime Bruna. 12.
Ed. São Paulo: Cultrix, 2005.
COHEN, Jean. A estrutura da linguagem poética. Tradução de Ávaro Lorencini e Anne Arnichand. São
Paulo: Cultrix, 1974.
HEGEL, G. W. F. Cursos de estética: volume IV. Tradução Marco Aurélio Werle e Oliver Tolle. São
Paulo: Edusp, 2004.
POE, Edgar Allan. Poemas e ensaios. Org. Milton Amado. Tradução de Oscar Mendes. Rio de Janeiro:
Globo, 1985.
RICOEUR, Paul. A metáfora viva. Tradução de Joaquim Torres Costa e António M. Magalhães. Porto:
Rés, 1983.
_____. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação. Lisboa: Edições 70, 1987.

Notas
1 Graduada em Letras, Licenciatura em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (2007) e Mestre em Letras pela mesma universidade (2010). Atualmente é aluna de
Doutorado em Letras, Teoria da Literatura, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
2 ARISTÓTELES. Poética. Em: Aristóteles, Horácio, Longino: a poética clássica. Tradução por Jaime
Bruna. 12. Ed. São Paulo: Cultrix, 2005, p. 28.
3 RICOEUR, Paul. A metáfora viva. Tradução de Joaquim Torres Costa e António M. Magalhães. Porto:
Rés, 1983, p. 63.
4 ARISTÓTELES. Poética. Em: Aristóteles, Horácio, Longino: a poética clássica. Tradução de Jaime
Bruna. 12 ed. São Paulo: Cultrix, 2005, p. 48.
5 ARISTÓTELES. Poética. 7 ed. Tradução de Eudoro de Souza. São Paulo: Casa da Moeda, 2003, p.
134.
6 HEGEL, G. W. F. Cursos de estética: volume IV. Tradução Marco Aurélio Werle e Oliver Tolle. São
Paulo: Edusp, 2004, p. 157-158.
7 POE, Edgar Allan. Poemas e ensaios. Org. Milton Amado. Tradução de Oscar Mendes. Rio de Janeiro:
Globo, 1985.
8 POE, Edgar Allan. Poemas e ensaios. Org. Milton Amado. Tradução de Oscar Mendes. Rio de Janeiro:
Globo, 1985, p. 84
9 COHEN, Jean. A estrutura da linguagem poética. Tradução de Ávaro Lorencini e Anne Arnichand.
São Paulo: Cultrix, 1974.
10 COHEN, Jean. A estrutura da linguagem poética. Tradução de Ávaro Lorencini e Anne Arnichand.
São Paulo: Cultrix, 1974, p. 173.
11 COHEN, p. 173.
12 COHEN, Jean. A estrutura da linguagem poética. Tradução de Ávaro Lorencini e Anne Arnichand.
São Paulo: Cultrix, 1974, p. 41.
13 RICOEUR, Paul. A metáfora viva. Tradução de Joaquim Torres Costa e António M. Magalhães. Porto:
Rés, 1983, p.71-72.
14 RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação. Lisboa: Edições
70, 1987.
15 RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação. Lisboa: Edições
70, 1987, p. 59.
16 RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação. Lisboa: Edições
70, 1987, p. 59.
17 RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação. Lisboa: Edições
70, 1987, p. 64.
POESIA E GESTUALIDADE:
CAMPOS PRIVILEGIADOS DO SIMBÓLICO NA LITERATURA
Moema Vilela PEREIRA
No ensaio “Da obra ao texto”, Roland Barthes fala do texto como o que pratica o “recuo infinito do
significado”. O infinito do texto não vem do fato de ele ser inefável, mas de que é preciso “dar-lhe
partida” para que signifique, num jogo de perpétuas possibilidades. “O texto é radicalmente simbólico:
uma obra de que se concebe, percebe e recebe a natureza integralmente simbólica é um texto.”1
Se, como quer Barthes e grande parte de seus contemporâneos no estudo da literatura, essas
propriedades não pertencem a nenhum gênero em especial, mas são uma potencialidade da literatura, na
história das letras a poesia sempre esteve de alguma forma mais próxima desse convite à realização
plural do sentido. Ela tem sido um dos espaços por excelência do “excesso de significação”, como
atentou Paul Ricoeur em seus estudos sobre o simbólico na linguagem2.
Da mesma maneira, se toda esfera do humano poderia ser vista em sua “reserva de sentido”3,
considerando as práticas e compreensões dominantes a linguagem do corpo também é lugar especial para
a ambiguidade, o implícito e a multiplicidade de sentido. Foi o que viu o dançarino, coreógrafo e
pesquisador da dança e do movimento Rudolf Von Laban, ao dizer que, embora os desenhos visíveis da
dança possam ser descritos em palavras, “seu significado mais profundo é verbalmente inexprimível.”4.
Nascido na atual Bratislava, Eslováquia, em 1879, Laban também usa o termo “simbólico” para o que a
linguagem do movimento pode remeter. As execuções de movimentos no dia-a-dia, como “serrar
madeira, abraçar ou ameaçar alguém” são significativas, mas, para além das ações que o ser realiza em
sociedade e no cumprimento de suas necessidades vitais, há no movimento uma potência de revelação do
simbólico, que interessava a Laban especialmente na dança.
As palavras que exprimem sentimentos, sensações, emoções ou certos estados
espirituais e mentais não são capazes de fazer mais do que arranhar de leve a superfície
das respostas interiores que as formas e os ritmos das ações corporais têm condições de
evocar. O movimento, em sua brevidade, pode dizer muito mais do que páginas e páginas
de descrições verbais.5
A afinidade com o simbólico que têm a linguagem do corpo e a literatura, Walter Benjamin viu
casadas na obra de Franz Kafka. No ensaio a propósito do décimo aniversário de morte de Kafka,
Benjamin analisa a gestualidade como o “elemento nebuloso” nas parábolas kafkianas, do qual partiria
toda sua obra literária. “Toda a obra de Kafka representa um código de gestos, cuja significação
simbólica não é de modo algum evidente, desde o início, para o próprio autor.”6 Estudos e contos
menores do criador de “O castelo” só apareceriam sob sua verdadeira luz quando transformados em
peças representadas no teatro ao ar livre. Neste teatro, Benjamin aponta que a dissolução do
acontecimento no gesto é uma das funções mais significativas.
Não há muitos estudos do gesto na literatura, sendo o caso de Franz Kafka o mais expressivo,
decisivo na análise de Walter Benjamin e presente em ensaios de Theodor Adorno, Günter Anders, Gilles
Deleuze e Félix Guattari7. O elemento fundamental nas análises destes pesquisadores, de linhas teóricas
as mais diferentes, é a recusa de uma interpretação decifradora do simbolismo em Kafka, como teria feito
uma abordagem simplista, em geral de viés sociológico, psicanalítico ou existencialista. A meu ver, tais
leituras foram enriquecidas pela análise da gestualidade, e o mesmo valeria para outras pesquisas nas
letras que atentassem para como os gestos funcionam na ficção. Para os fins deste ensaio, centrado na
poesia, vamos ver como, ao longo da história, movimentos literários construíram diferentes relações com
o simbólico, e em que medidas o universo dos símbolos, compreendido dentro do quadro analítico do
filósofo francês Paul Ricoeur, se torna terreno propício para a poesia. Para tornar esses elementos mais
vivos e relacioná-los à gestualidade, vamos fazer uma leitura de “Making a fist” (Fechando o Punho), de
Naomi Shirab Nye, poeta americana de ascendência palestina, nascida em 1952 em St. Louis. Nele, a
imagem do abrir e fechar do punho reúne no gesto os temas da travessia, da fugacidade da vida e da
persistência contra a morte, que estruturam o poema.

O simbólico segundo Paul Ricoeur e sua relação com a poesia


Paul Ricoeur trata a poética como um dos campos privilegiados de investigação do simbólico, como
a psicanálise e a história das religiões – esta pela necessidade de uma linguagem simbólica para
representar o transcendente, aquela pelo interesse pelos sonhos e outros sintomas como símbolos de
conflitos psíquicos. No caso da poética, os símbolos seriam entendidos como: [...] imagens privilegiadas
de um poema ou as imagens que dominam as obras de um autor ou de uma escola de literatura ou as
figuras persistentes dentro das quais toda uma cultura se reconhece a si mesma, ou ainda as grandes
imagens arquetípicas que a humanidade enquanto todo – ignorando as diferenças culturas – celebra.8
Para elaborar sua teoria do símbolo, Paul Ricouer analisou a princípio a metáfora, já que ambos
demarcariam campo para a teoria da interpretação. Para ele, os pressupostos implícitos no tratamento
retórico da metáfora centram-se numa semântica da palavra, em vez de numa semântica da frase,
concluindo que a metáfora não representaria inovação semântica nem, por consequência, informação
nova acerca da realidade. Ricoeur, pelo contrário, recusa a compreensão da metáfora como mero
deslocamento na significação das palavras, descolada da enunciação que lhe dá sentido. A metáfora não
poderia ser “traduzida”. Nem “deveríamos efetivamente falar do uso metafórico de uma palavra, mas
antes de enunciação metafórica9”, onde a metáfora é o resultado da tensão entre dois termos. O
enfrentamento entre duas interpretações opostas da enunciação, uma literal e outra metafórica, sustentaria
a metáfora numa criação de sentido peculiar e insubstituível.
Da mesma maneira, o símbolo promove o traslado entre a significação literal e a simbólica em um
único movimento, sendo contraproducente pensar nas duas significações em separado. Na função poética,
como admitiu Roman Jakobson e reafirma Ricouer, não se suprime a função referencial. O que acontece é
uma alteração radical do mecanismo de significação que transforma a mensagem dotando-a de
ambiguidade.
Resumindo, a linguagem poética não diz menos a respeito da realidade do que
qualquer outro uso de linguagem, mas como refere-se a ela por meio de uma estratégia
complexa que implica, como componente essencial, uma suspensão e, analogamente, uma
anulação da referência comum ligada à linguagem descritiva.10
Sobre as ruínas da referência direta, diz Ricoeur, se constrói uma indireta, que é primordial em sua
sugestão, revelação e descoberta das estruturas profundas da realidade. Esse resultado seria a condição
para uma visão “radical” da realidade.11
No caso do símbolo, esse mecanismo se torna ainda mais complexo, pois ele, diferentemente da
metáfora, compreende também uma dimensão não-linguística, caracterizando-se como uma estrutura de
duplo sentido.12 As raízes não-semânticas do símbolo o tornam opaco, irredutível à descrição
linguística, semântica ou lógica, lançando-o no para além do discurso. Muitas vezes, é a estrutura
metafórica que faz a ponte entre o estrato profundo e duradouro do conteúdo simbólico e a acessibilidade
da expressão linguística. Tal metáfora tornaria explícito o que está oculto no simbólico, emprestando
deste seu poder e sua permanência.

A ambiguidade simbólica, do romantismo à poesia moderna


A presença da metáfora e do símbolo é tão forte na poesia que alguns pesquisadores chegaram a
defini-la especialmente em relação a esses instrumentos, que remetem à ambiguidade poética e também
ao mundo interior que lhe originaria. Numa abordagem histórica, a relação da poesia com o mundo
interior pode ser recuada desde a noção da lírica, termo que a partir do século XVII começou a abranger
toda composição referente à expressão do íntimo. A poesia era um meio de expressar a subjetividade,
explicando-se assim marcas como o uso da primeira pessoa. Depois, o termo “literatura” começou a
prevalecer sobre “poesia” para designar a criação artística em geral, ajudando a individuar a forma
poética tal como a compreendemos hoje.
À medida que a expressão do eu, o sonho, a sinceridade, a espontaneidade, a ingenuidade13 se
tornam centro da criação literária no romantismo, os princípios do lirismo se confundem, em definitivo,
com a ideia de poesia.
É sabido que a lírica era, a princípio, apenas um gênero da poesia; porém com o
declínio do grande poema narrativo e do verso dramático, lírica e poesia terminaram por
confundir-se. No exame da literatura moderna, um termo pode ser praticamente
empregado pelo outro.14
A poesia moderna, por sua vez, não se compreendia mais como obra de uma alma no estado de ânimo
poético, mas como fruto de “uma inteligência que poetiza”15, de uma subjetividade descolada da
experiência do sujeito empírico. Ela recusava a personalização da lírica, a lógica e a métrica românticas,
levando a arte para outras fronteiras estilísticas e de conteúdo, sem, contudo, descartar o lírico como
expressão do interior e do mundo subjetivo. Essas afinidades entre o romantismo alemão e a poesia
moderna foram assinaladas por muitos pesquisadores da literatura, entre eles Edmund Wilson e Hugo
Friedrich. Mesmo o poeta fundador da modernidade, Charles Baudelaire, escreveu: “O Romantismo é
uma bênção celeste ou diabólica, a quem devemos estigmas eternos.”16
Leitor entusiasta de Edgar Allan Poe, influência fundamental do simbolismo francês, Baudelaire
mesclava imagens prosaicas e espirituais, intelectuais e arcaicas, confundia as percepções sensoriais
para evidenciar a magia e a fantasia contra o banal da realidade, prenunciando “uma lírica que renuncia,
cada vez mais, à ordem lógica, afetiva e também gramatical.17” Poe, do seu lado, perseverando em
aspectos do romantismo como o mistério e a irracionalidade, transformou-os radicalmente ao gosto dos
novos tempos.
“Eu sei”, vemos Poe escrever, por exemplo, “que a indefinição é um elemento da
verdadeira música (da poesia) – quero dizer, da verdadeira expressão musical [...] uma
indefinição sugestiva de vago e, por isso, espiritual efeito.”18
A consciência romântica de que a vida e a alma individual não podiam ser analisadas e explicadas
por um discurso racional e mecânico profetizou o próximo olhar que viria a ser radicalizado pelos
modernos.19 Em meio a uma aguda intelectualidade, traços de origem arcaica, mística e oculta. A
simplicidade da exposição em contraste com a complexidade do que é expresso. O preciso que se
encontra com o absurdo e inextricável. Esses famosos paradoxos apontados por Hugo Friedrich em sua
análise da poesia moderna apontam para uma valorização do simbólico, único recurso a dar conta do
inapreensível. Algumas categorias negativas que ele usa para descrevê-la vão ao mesmo sentido:
desorientação, dissolução do corrente, ordem sacrificada, incoerência, fragmentação, reversibilidade,
poesia despoetizada, lampejos destrutivos, imagens cortantes, repentinidade brutal, deslocamento; noções
que direcionam, em geral, à auto-suficiência e pluralidade de sentido na poesia.20 Na síntese de John E.
Jackson: “L’obscurité n’est pas un mode parmi d’autres de la poésie moderne: elle lui est inhérente.”21
Na contemporaneidade, algumas tendências ressignificam as relações entre lírico e poético e poético
e simbólico, com manifestações tais como algumas experiências da poesia concreta, dos caligramas, ou o
movimento de entrega à percepção de realidades triviais, que à primeira vista podem parecer se afastar
do simbólico e da subjetividade moderna, mas que precisam ser estudados detidamente. No caso da
poesia de Naomi Shirab Nye, que abordamos neste ensaio, a construção é menos problemática e pode ser
percebida dentro do quadro que evocamos acima sobre os elementos do lírico que permeiam o romântico
e o moderno e a ambiguidade construída por meio do símbolo.

Abrindo e fechando uma pequena mão


Making a Fist Fechando o Punho Tradução Ivan Justen Santana.
We forget that we are all dead men Esquecemos que estamos todos mortos conversando com
conversing wtih dead men. Jorge Luis Borges homens mortos. Jorge Luis Borges
For the first time, on the road north of
Tampico, I felt the life sliding out of me, a
drum in the desert, harder and harder to
hear.
Pela primeira vez, na estrada norte de Tampico, eu senti a vida
I was seven, I lay in the car watching
deslizando para fora de mim, um tambor no deserto, cada vez mais
palm trees swirl a sickening pattern past the
difícil de ouvir.
glass.
Eu tinha sete, deitada no carro, assistindo às palmeiras
My stomach was a melon split wide
trançarem um padrão enjoativo pelo vidro.
inside my skin.
Meu estômago, um melão rachado dentro da minha pele.
“How do you know if you are going to
“Como a gente sabe se já está morrendo?”
die?”
supliquei para minha mãe.
I begged my mother.
Viajávamos havia dias.
We had been traveling for days.
Com estranha confiança, ela respondeu:
With strange confidence she answered,
“Quando a gente não consegue mais fechar o punho.”
“When you can no longer make a fist.”
Anos depois, eu sorrio ao pensar naquela viagem, nas fronteiras
Years later I smile to think of that
que temos de cruzar separadamente, estampadas com nossas
journey, the borders we must cross
aflições irrespondíveis.
separately, stamped with our unanswerable
woes. Eu, que não morri, que ainda vivo, ainda deitada no banco de
trás das minhas perguntas, cerrando e abrindo uma pequena mão.
I who did not die, who am still living,
still lying in the backseat behind all my
questions, clenching and opening one small
hand.


NYE, Naomi Shihab. “Making a Fist”. Versão brasileira do poeta e tradutor curitibano Ivan Justen
Em: Grape Leaves: A Century of Arab Santana, não publicada. Disponível em
American Poetry. Utah: University of http://www.felipearruda.com/blog/2010/07/fechando-o-
Utah Press, 1988. punho/. Acesso em 2 de dezembro de 2011.

O eu lírico se inscreve no presente rememorando uma cena da infância, quando viajava com a mãe.
Na memória adulta, quando se fala “nas fronteiras que temos que cruzar separadamente, estampadas com
nossas aflições irrespondíveis”, as fronteiras deixam de ser geográficas e a viagem é ressignificada para
além de seu significado literal. Palavras como viagem, estrada (road, travelling, journey) remetem agora
a um percurso arquetípico, de uma criança que ouviu um ensinamento sobre a morte e, adulta, o retoma
para falar sobre o significado de estar viva.
Aos sete anos, a doença que a faz “sentir” a morte e perguntar sobre ela pela primeira vez é expressa
por duas metáforas, a do melão e a do tambor. Julio Cortázar, para quem o homem tende naturalmente
para a concepção analógica do mundo, diz: Ao eliminar o “como” (pontezinha de condescendência,
metáfora para a inteligência), os poetas não perpetram audácia alguma; expressam simplesmente o
sentimento de um salto no ser, uma irrupção em outro ser, em outra forma do ser: uma participação.22
O estômago da criança era um melão rachado dentro da pele, a vida era um tambor no deserto.
Tamanha transposição fez com que Monroe Beardsly dissesse que a metáfora seria um poema em
miniatura.23
O som do tambor – ou a vida que desliza pra fora – realiza uma trajetória de dissipação,
esgotamento, que contrasta com a aliteração no original em inglês: drum/desert, harder and harder to
hear. Além da musicalidade criada, a aliteração sublinha a força desse momento, valendo-se também de
uma palavra dura, harder. Essa figura de linguagem também está presente na outra metáfora, que une
stomach, split, inside, skin.
A criança doente está deitada no banco do carro, e a adulta retoma essa espacialidade horizontal e
recolhida quando fala das perguntas que permanecem. Uma fragilidade infantil se manifesta na mão que é
pequena, na posição que é de maior submissão. A resposta da mãe foi literal, um ensinamento sobre como
confirmar se o sujeito estava perdendo o viço na cessação de suas atividades orgânicas, mas o eu lírico
traz o significado do gesto para além da vida orgânica, falando do fato de permanecer vivo, cruzando
fronteiras intelectuais e emocionais (aflições/woes, all my questions/perguntas) solitariamente
(separadamente/solitariamente), sem possibilidade de resposta (irrespondíveis/ unansweable). O
reconhecimento faz a adulta sorrir, em uma reconciliação com a vida. Ela é vitoriosa em viver, embora
isso não se apresente de forma definitiva. O gesto que dá nome ao poema é um movimento inscrito no
tempo, que não acaba nem termina, evidenciado pelo gerúndio que torna a ação corporal contínua:
abrindo e fechando uma pequena mão. A promessa de morte paira sobre o poema, mas o sujeito vive o
tempo em que isso ainda não aconteceu (eu, que ainda vivo, que não morri, que ainda abro e fecho minha
pequena mão). Em sua simbologia, o gesto traz à linguagem novos modos de estar no mundo, projetando
possibilidades íntimas de expressar a relação com a vida e com a morte. Como enfatiza Ricoeur, “o que
liga o discurso poético é, pois, a necessidade de trazer à linguagem modos de ser que a visão ordinária
obscurece ou até reprime.”24
A satisfação pela persistência na vida vem expressa também no “sorriso”, que confere alegria e
contentamento, numa linguagem corporal codificada sem problematização. O sorriso aparece não como
resposta pragmática a outro indivíduo, por exemplo, mas como efeito da lembrança, remetendo ao
universo de forças psíquicas de que fala Ricoeur, anteriores à verbalização.25 O caráter pré-semântico
convocado pelo símbolo traz à tona um momento em que as vivências profundas ainda não foram
reveladas ou traduzidas pela linguagem.
Não é o caso do sorriso em “Making a fist”, mas, como o assunto é gesto e poesia, é interessante
pensar como movimentos involuntários são como a ponta visível do iceberg em relação ao mundo
interior, e podem ser utilizados para imprimir uma indefinição desejada aos sentimentos do eu lírico.
Esta qualidade do gesto está mesmo no dicionário, fonte de sentidos em comum em uma cultura, como
sabem as pesquisas semióticas que dele partem. No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, na
primeira definição de gesto, lemos “movimento do corpo, especialmente das mãos, braços e cabeça,
voluntário ou involuntário, que revela estado psicológico ou intenção de exprimir ou realizar algo.” “Por
fazer parte desse mundo reflexo, inconsciente, o gesto revela o que o sujeito não quer revelar. Por isso,
numa arte especialmente favorável à exposição da intimidade, como a literatura, o gesto é incomparável
para quem quer mostrar, e não dizer.”26

Referências
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ANDERS, G. Kafka: pró e contra. São Paulo: Perspectiva, 1969.
BARTHES, Roland. Da obra ao texto. Em: Rumor da Língua. Trad. Mário Larajeira. São Paulo: Editora
Brasiliense. 1988, pp. 65-70.
BENJAMIN, Walter. Franz Kafka, a propósito do décimo aniversário de sua morte. Em: Magia e
Técnica, Arte e Política. Obras Escolhidas. vol.1: São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
CORTÁZAR, Julio. Para uma poética. Em: Valise de Cronópio. (Tradução de Davi Arrigucci Jr.). São
Paulo: Perspectiva, 1974.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
JACKSON, John E. La poésie et son autre – essai sur la modernité. Paris: José Corti, 1998.
LABAN, Rudolf von. Domínio do movimento. São Paulo: Summus editorial, 1978.
MERQUIOR, José Guilherme. A astúcia da mimese – ensaios sobre lírica. Rio de Janeiro: José Olympio
Editora, 1972.
NYE, Naomy Shirab. “Fechando o Punho.” (Tradução de Ivan Santana).
Disponível em: http://ossurtado.blogspot.com.br/2010/07/abrindo-mao-um-amigo.html. Acesso em:
dezembro de 2011.
RICOEUR, Paul. Metáfora e símbolo. Em: Teorias da interpretação: o discurso e o excesso de
significação. Lisboa: Edições 70, 1987.
_____. O processo metafórico como cognição, imaginação e sentimento. Em: SACKS, Sheldon. (org). Da
metáfora. São Paulo: EDUC/Pontes, 1992.
RODRIGUES, Antonio. Modernité et paradoxe lyrique - Max Jacob, Francis Ponge. Paris: Éditions
Jean-Michel Place, 2006.
WILSON, Edmund. O castelo de Axel - Estudo sobre a literatura imaginativa de 1870 a 1930. São
Paulo: Companhia das Letras, 2004.
VILELA, Moema. Mãos pensas, olhar oblíquo: acenos para um estudo do gesto na literatura. (Ensaio
em andamento, não publicado). 2010.

Notas
1 BARTHES, Roland. Da obra ao texto. Em: Rumor da Língua. Trad. Mário Larajeira. São Paulo:
Editora Brasiliense. 1988, pp. 65-70.
2 RICOEUR, Paul. Metáfora e símbolo. Em: Teorias da interpretação: o discurso e o excesso de
significação. Lisboa: Edições 70, 1987.
3 RICOEUR, Paul. Op. cit., 1987.
4 LABAN, Rudolf Von. Domínio do movimento. São Paulo: Summus editorial, 1978, p. 53.
5 Ibid., p. 141.
6 BENJAMIN, Walter. Franz Kafka, a propósito do décimo aniversário de sua morte. Em: Magia e
Técnica, Arte e Política. Obras Escolhidas. vol.1: São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 146.
7 ADORNO, Theodor W. Prismas, Crítica cultural e sociedade. São Paulo. Editora Ática, 1998;
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977;
ANDERS, G. Kafka: pró e contra. São Paulo: Perspectiva, 1969.
8 RICOEUR, Paul. Op. cit., 1987, p. 65.
9 Idem, p. 61.
10 RICOEUR, Paul. O processo metafórico como cognição, imaginação e sentimento. Em: SACKS,
Sheldon. (org). Da metáfora. São Paulo: EDUC/Pontes, 1992, p. 154.
11 Idem, p. 155.
12 RICOEUR, Paul. Op. cit., 1987, p. 57.
13 Esses três últimos são adjetivos de RODRIGUES, Antonio. Modernité et paradoxe lyrique - Max
Jacob, Francis Ponge. Paris: Éditions Jean-Michel Place, 2006.
14 MERQUIOR, José Guilherme. A astúcia da mimese – ensaios sobre lírica. Rio de Janeiro: José
Olympio Editora, 1972, p. 03.
15 FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978, p 17.
16 Idem, p. 30.
17 Idem, p.52.
18 WILSON, Edmund. O castelo de Axel - Estudo sobre a literatura imaginativa de 1870 a 1930. São
Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 37.
19 Como observa Edmund Wilson sobre suas comparações, também para nós essa rede de familiaridades
e influências entre romantismo, simbolismo e poesia moderna não quer fazer crer que estes movimentos
foram gerados uns pelos outros, mas pensar de que maneira noções e métodos evoluem, desaparecem ou
se mantêm atuantes.
20 FRIEDRICH, Hugo. Op. cit., 1978.
21 JACKSON, John E. La poésie et son autre – essai sur la modernité. Paris: José Corti, 1998, p. 11.
22 CORTÁZAR, Julio. Para uma poética. Em: Valise de Cronópio. (Tradução de Davi Arrigucci Jr.). São
Paulo: Perspectiva, 1974, p. 95.
23 RICOEUR, Paul. Op. cit., 1992, p. 58.
24 RICOEUR, Paul. Op. cit., 1987, p. 71.
25 Idem, p. 71.
26 VILELA, Moema. Mãos pensas, olhar oblíquo: acenos para um estudo do gesto na literatura.
Ensaio em andamento, não publicado. 2010.
II. POESIA MODERNA BRASILEIRA
AS MARGENS POÉTICAS DE CATAGUASES NO IMAGINÁRIO
DAS ÁGUAS
Lina Tâmega PEIXOTO
O debruçar sobre a poesia de Francisco Marcelo Cabral, Joaquim Branco e Ronaldo Werneck – à
procura do maravilhamento poético na espessa e densa força de suas imagens – encontra o equilíbrio
necessário e o apoio nas pesquisas, estudos teóricos e análises sobre o Imaginário, realizadas por dois
importantes autores. Refiro-me, primeiro a Gaston Bachelard que, em seu método fenomenológico,
considera ser “[...] pela intencionalidade da imaginação poética que a alma do poeta encontra a abertura
consciencial de toda verdadeira poesia.” E conclui: “[...] este ato consciencial, só o estudaremos [...] no
campo da linguagem, mais precisamente na linguagem poética, quando a consciência imaginante cria e
vive a imagem poética.”11
E a Gilbert Durand, onde o imaginário, visto sob o trajeto antropológico, é “[...] o conjunto das
imagens e relações de imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens”, apresentando-se como
“o grande denominador fundamental onde se vêm encontrar todas as criações do pensamento humano.”E
sublinha que o símbolo e o imaginário não podem ser enfocados por apenas uma das ciências humanas,
mas por um conjunto amplo e abrangente de um universo cultural.2
E acrescento ao feixe de textos a que tive acesso, o artigo de Ana Maria Lisboa de Mello:
“Pesquisas sobre O Imaginário: perspectivas teóricas e teorias francesas”3, escrito com extraordinária
lucidez e sensibilidade, e que nos leva pelos caminhos do Imaginário em seu percurso histórico e teórico,
assim como pelos atalhos das divergências, problemas e conceituações.
O que se pretende na análise crítica dos poetas de Cataguases – autores de obras literárias que já
alcançaram outras montanhas, planícies e águas além de Minas, do país e de além-mar – é compreender
de que modo a poesia se insere no campo de extraordinárias ressonâncias simbólicas, visualizar o gesto
da interpretação estética, evidenciar como, através do suporte mítico, já transposto o aspecto religioso,
se determinam a criação e a composição de uma cidade refeita pela memória – afetiva e da infância – e
verificar, pela “presença semântica”, como se compõem os símbolos.
A leitura que fizemos daqueles poetas – pertencentes à geração que se firmou literariamente a partir
da década de 70 – pôs em relevo uma tensão poética, marcando uma constelação de imagens voltadas
para o rio Pomba ou para outras águas que correm em Cataguases. O nome, rio e pássaro com seu bater
as asas de águas, é um sonho. E no pensamento imaginário vincula-se a um espaço cósmico, fabricado
com a linguagem poética, tecida com o tênue vapor e aroma da palavra que se deita junto a outra. Assim,
ele provoca inquietações, tremores de alma, devaneios e referências simbólicas e nos incita a realizar um
estudo sobre este Imaginário das águas e de suas reverberações e resíduos.
Ernst Cassirer aponta uma possibilidade que muito se acomoda ao nosso intento de estudo, quando
diz: “[...] se acreditou que a essência de cada configuração mítica pudesse ser lida diretamente a partir
de seu nome. A idéia de que o nome e a essência se correspondem em uma relação intimamente
necessária, que o nome não só designa, mas também é esse mesmo ser, e que contém em si a força do ser,
são algumas das suposições fundamentais dessa concepção”.4 Na perspectiva de nosso trabalho, esta
suposição será considerada como uma verdadeira e real imagem literária e, com ela, navegaremos no rio
Pomba ou córregos, em Cataguases, seus núcleos poéticos e míticos.
Voltamos os olhos para o passado a fim de verificar se havia, nos poetas da Verde, revista do
movimento modernista de Cataguases, surgido em 1927, manchas de umidade ou fios de água que
percorressem os versos. Menciona-se o poema “Meia-Pataca”, que dá título ao livro de Francisco Inácio
Peixoto e Guilhermino Cesar, publicado em 1928.
Meia-Pataca é um córrego que banha a cidade, e foi batizado com este nome por terem achado em
seu leito meia-pataca de ouro. “Também nunca que acharam mais nada”5, diz Peixoto. O ouro suporta
apenas o significado de riqueza, ganância e, portanto, dele se exclui qualquer vestígio mítico.
Dos textos poéticos dos participantes da Verde escorrem melancolia, perda do amor, quadro familiar
que se esvai com a morte, a natureza como desejo amoroso, a noite como metáfora do silêncio e da
ausência, acontecimentos que representam o atropelo frenético do progresso, expressando, deste modo, o
ritmo que os conduzia a interpretar o mundo.
O registro mais remoto que encontramos, data de 1967. O poema “Carta aos Ases”6, fabricado com
as mãos de Joaquim Branco e Ronaldo Werneck, menciona a paisagem das pontes e da curva da vida,
que, semelhante à curva do rio, são desenhadas pela sombra de uma quase esquecida memória. E aos
poucos, a partir dessa década, o rio cresce e flui, avoluma-se numa narrativa simbólica, serve ao
exercício das experiências sensíveis e íntimas, define a cidade nas imagens do sonho e a situa num
espaço mítico.
Francisco Marcelo Cabral, Joaquim Branco e Ronaldo Werneck irão olhar as águas e habitar as
margens do rio para determinar como se processam a criação e a composição de uma cidade, como situá-
la no mundo dos sentidos, conhecer a infância e o pensamento inclusos no sonho e de que modo o
imaginário das águas fundamenta o tecido mítico, e de como a memória conduz, infinitamente, as feições
do tempo.
Mito e Poesia indicam uma aproximação histórica entre os dois termos, que, numa ação conjuntiva,
interpretam o sentido da vida e nos remetem para as referências metalinguísticas dos símbolos. Magia e
cumplicidade.
Não nos parece, aqui, necessário mencionar definições do mito que levem a determinar seu aspecto
individual ou coletivo. Penso que nos basta, apenas, lembrar as palavras de Gilbert Durand: “O mito é
narrativa simbólica, conjunto discursivo de símbolos, mas o que nele tem primazia é o símbolo e não
tanto os processos da narrativa.”7
Assim, retomo a evocação do mito, criado pela poesia que, ultrapassando a fronteira do sagrado e se
entendendo como forma de estar no mundo pela linguagem, conta uma história: a do imaginário das águas
de Cataguases. Ana Maria Lisboa de Mello expressa este conceito ao dizer que “Saindo da esfera
sagrada para entrar na arte, o mito torna-se um recurso poético arquetípico, decantado pelo tempo para
revelar os meandros da psique humana, bem como, em nível mais amplo, a sociedade e sua história”.8
Francisco Marcelo Cabral, em Inexílio9, perturbador e belíssimo poema, enumera os elementos que
identificam Cataguases, comandados pelo pronome indefinido NADA, que concentra – na afirmação do
que exclui – as imagens de sua cidade, reordenando e reintegrando a realidade ao tempo da memória.
O poeta escreve:
NADA, Cataguases, em teu rio pobre pomba sem vida, mudo e sujo rebanho
cabisbaixo, a correr entre os morros, nada, Cataguases, nem a tua indiferença ou desprezo
/ pelos teus poetas e teus loucos, únicos / que te conferem a glória de não seres / como
outra qualquer um simples mercado.
NADA ME FAZ / lembrar um porto de diamantes / (que fossem topázios, ametistas, /
crisólidas, opalas, turmalinas!) / nem mesmo saber – só agora – que no cascalho do leito
do Meia-Pataca / ainda repousa o ouro não minerado / inatingível sob o lodo pegajoso.10
As repetições do pronome indefinido NADA em início de estrofes, ao longo do poema, assemelham-
se a cantos de saturação amorosa. Este movimento de sedução e encantamento permite ao poeta
reorganizar e reincorporar a consciência poética às transitivas experiências do viver a dimensão e o
lastro do passado, onde o ouro, primitivo e puro, repousa, em lenta germinação, “pomba sem vida”,
“mudo e sujo”, “sob o lodo pegajoso”.
Lembramos “Campo marcado”, poema que dá título ao livro.11 Diz o poeta:
Nesse encontro de rios marquei o meu campo/ para buscar o nobre pó quase perdido,
/ atrás da ígnea visão da alma candente/ não do metal em si, real e esterlino: /ouro pouco,
ouro pó, ouro poeira, escasso,/ oculto nas lájeas do fundo das correntes/ e na matéria
mineral de meus poemas. Marquei meu campo ali lavado pelos rios onde a curta vida se
escoa – transferindo / o brilho de meu viço ao vórtice das palavras, / – e a mina da
poesia vai-se exaurindo.
E citamos mais um poema, “Uma vez mais”: “Na crista da enchente de verão afogado em poemas
invado com a espuma das palavras / as margens encharcadas do Pomba”.
E outra estrofe: “Uma vez mais, o rio, / sangue espesso e cáqui / arrastando pedaços da cidade, / e
que eu tanto temi na minha infância”.
E por fim, “Água serpente”: “Singrar o rio nos barcos de areia abrindo a veia do fluxo barrento
Sangrar o Pomba para deter seu voo de quimera / confinado às margens”.
E finaliza: “Esgotar o rio Pomba para que libere / do ouro fino do leito, os saibros dos poemas”.12
Podemos agrupar os fragmentos dos três poemas em uma mesma unidade existencial, pela
intertextualidade de seus tecidos imagísticos. Refiro-me ao ouro, elemento alquimístico, transformado o
metal já em substância simbólica: “a palavra” que escreve o enigma primeiro e secreto da vida, à
procura da “alma candente”, se prolonga na completude, identidade e nas formas do fazer poético. As
palavras são águas, espumam, encharcam as margens do rio para fecundar a linguagem a fim de
configurar as possibilidades que possui como corpo criador. Queremos destacar que não há referência ao
volume das águas no leito do rio. Ele está contido nas margens.
Ao comentar as dificuldades e os riscos que advêm da interpretação da obra literária, Gilbert
Durand nos adverte que “a leitura, que é interpretação, constitui a felicidade da ‘leitura feliz’ (cf.
Bachelard), seu sentido, só é possível pelo [...] mito que descobre a interpretação, o mito com suas
marcas de referência metalépticas, as suas redundâncias diferenciais do ‘alguns’, seja ele ‘mito pessoal’,
seja mito de uma época, seja mito de uma cultura, seja mito eterno e universal...”.13 Esta função exercida
pelo mito nos move a buscar a interpretação dos versos de “Água serpente”, que se assemelham a um
fervilhar de imagens da infância, ferindo o poeta adulto com suas lascas cortantes e agônicas. A infância
é uma metalinguagem simbólica, constante e profunda na obra do Autor e muitas vezes, aparece como
centro do devaneio no seu entardecer de homem.
O rio é um corpo sagrado, fechado em seu mistério. É preciso abrir-lhe as veias e deixar que a água,
fecundada pela terra, se esvaia. Esgotar o rio, extenuar a sua força para que seja somente um nome
confinado às margens, e se torne cego no vôo de seu curso, pássaro abatido, e perca, por instantes, sua
forma simbólica. E o rio renasça, fluindo como murmúrios de poemas, polidos pela substância criadora:
o ouro, assombro e torções de luzes do ser poético.
E o mito é o Pomba, rio e pássaro, transmudados num só nome, que gera o ouro em suas entranhas,
elemento simbólico do germe existencial, de onde brota a essência da palavra, a que permite ao poeta
decifrar e reinventar a forma, harmoniosa e íntima, de sua expressão no mundo. Compreendido como uma
função criadora, o ouro, como vibração mítica, sutura a memória e converte as distensões da alma em
consistentes e belas imagens poéticas.
Lembramos Bachelard, que nos adverte do devaneio que encontra nas águas, não o do infinito do
mar, mas o da profundidade que lhe dá a água do rio ou de um riacho.14
A atitude de Francisco Marcelo Cabral é de contemplação, não a de erguer os olhos para o céu, mas
a de baixar o olhar para as águas, cortando o espaço que vê em duas margens. Na imaginação poética, as
margens definem o rio, onde se procura a densidade da vida no ouro oculto “sob o lodo pegajoso”, “nas
lájeas do fundo das correntes”, “no fluxo barrento”. O ouro que é “inatingível”, “matéria mineral” de
poesia e libera “os saibros dos poemas”.
Ouro-palavra que escreve a graça e a sensualidade do mistério, o tremor duro, terno e sensual do
sentir e do imaginar, a substância do sensível e do intelectivo, envolvendo infinitamente a linguagem
ancorada na memória afetiva e dos traços e resíduos da infância, na construção do Imaginário.
Gilbert Durand, citando Bachelard, nos informa que
[...] o ouro [...] é justamente o princípio primordial das coisas, a sua substância
encarnada. A substância é sempre causa primeira, e o sal como o ouro são as substâncias
primeiras, ‘gordura do mundo’, ‘espessura das coisas’, como escreve ainda um
alquimista do século XVII.15
Francisco Marcelo Cabral cumpre com uma alta e solar expressão linguística este destino da poesia,
o de ser fios de sol sobre a penumbra e, lembrando Valéry, o de sonhar infinitamente desperto.
De Joaquim Branco, um poema, inédito: “Recortes para uma visão das margens do Pomba”. O poema
arrasta rigorosas imagens em direção ao Imaginário das águas. Desdobrando-se em subtítulos, ele projeta
o encontro do olhar na recordação mesma do que foi visto. Observamos no título do poema uma refração
poética, que modula o sentido em duas direções interpretativas. Ou, entendemos que a visão se projeta
nas margens do rio, ou que ela se dá a partir delas. De qualquer modo, a leitura amplia-se nas duas
margens, no reconhecimento deste espaço bivalente. E lemos o primeiro subtítulo:

“A Igreja”
Ao vê-la, o espelho
nem crê que a água
se revela em tudo
que faz parte dela.

Destaca-se na estrofe a imaginação das águas, onde o reflexo da igreja no líquido espelho é um
reflexo que vê. A contemplação torna-se imperfeita, quase opaca, pois o que ela vê não participa da
forma refletida no olhar. A água, por ser transparente, adquire densidade e materializa-se no único objeto
que reflete o que ela vê: a igreja. Bachelard aborda o atrativo e a consistência das formas nascidas das
águas, que resultam em “devaneios mais materiais e mais profundos”, impulsionando o aparecimento da
força poética, que torna as águas pesadas. Assim, elas aprofundam-se e materializam-se.16
Nota-se que o poeta situa-se num ponto fixo: “as margens” de onde parte o movimento da realidade
apreendida. O que vê são fragmentos de reflexos, que não se relacionam entre si, aparentemente.
Menciono, apenas, algumas estrofes, das doze que compõem o poema, pelo pouco espaço que me
cabe no escrever: “o calçadão”, “a praça”, “a cidade”, “a curva do rio”, “as fiandeiras”, marcadas, na
quase totalidade, pelo artigo definido, na intenção de preservar cada um dos subtítulos na duração que
lhe confere o transitivo contemplar. A transcrição de mais duas estrofes irão assinalar, mais fundamente,
como se intensifica a apreensão da multiplicidade de linguagens, com que o Autor desenha os “recortes”.

“Pássaros”
Um pássaro, dois, cem
bastam para o revoo
de mil idéias que nascem
das asas deste dia?

O número dos pássaros, “dois”, “cem”, assim como a carga superlativa em “mil ideias”, sugere a
experiência da imaginação aérea e da voluptuosidade do voo onírico. Toda a estrofe nos remete a uma
impressão de ligeireza. E o poeta indaga se toda esta sôfrega procura da essência infinita da vida, que lhe
criou as “asas deste dia”, sustentaria o sonho renovado – o “revoo” mais alto e continuo – nascido do
sopro do desejo, mas sobrecarregado pela profusão de “mil ideias”. Cabe, aqui, no debruçar sobre a
imagem na poesia de Joaquim, lembrar que para Bachelard: “[...] no mundo do sonho não se voa porque
se tem asas, as asas crescem porque se voa.”17
E a última estrofe:
“A ponte”
Eternamente unir,
levar sofregamente,
nitidamente postar-se
fugir avidamente.

Joaquim Branco tem uma produção literária que o projeta nacionalmente no que se refere à poesia
concreta e ao poema figurativo. Talvez, por intuição ou “um salto no escuro”, nas palavras de Dámaso
Alonso, percebi na estrofe uma peculiar estrutura, construída com apenas dois elementos: verbos e
advérbios. Visualizei, subitamente, pela leitura, a composição de formas significativas. Explico melhor.
As posições dos verbos, em final e início dos versos, assim como as dos advérbios, em seu princípio e
fim, resultaram num efeito sintático-acústico de associações de sentido. Explico melhor. Podemos traçar,
pela imaginação visual, linhas geradas pelo atrito sonoro das rimas verbais em –ir , “unir” e “fugir”,
versos ( 1º e 4º)” em –ar, “levar” e “postar-se ” ( 2º e 3º) e as dos advérbios em -mente, versos ( 1º e
4º )e (2º e 3º) que sugerem dois traços inclinados que se cruzam, ao modo de um X. Surgem destas
figurações duas margens simbólicas, onde a ponte se firma com seu tátil e secreto arcabouço. Em
Joaquim, a emoção do lúdico e a linguagem que amplia e move o eu-lírico, se aglutinam e sedimentam o
pensar e o fazer poético, junto às margens da palavra, em sua sensual consistência de pedra e nuvem .
Ronaldo Werneck mexe nas palavras como se elas estivessem adormecidas num balaio do mundo.
Uma poesia que se espalha na página como esteios de uma fascinante arquitetura. A capacidade do poeta
em jogar palavras e frases para criar o prazer de um sentimento estético, se assemelha ao lançar sementes
no infinito.
De seu livro minas em mim e o mar esse trem azul18, destacamos trechos de poemas, para clarificar
estas considerações do pensar.

[...]

como numa interrogação


num olhar solto
no espaço
num só laço
o rio envolve
esse tropel de burros
bicicletas
meninos soltos
no pó
no pé descalço
nos galhos
pendurada no ar
nas árvores
a poesia
se desmanchando
se amarelando
se dissolvendo
tênue
MANHÃ às avessas
jorrada
pra dentro da noite.19

O espaço de brancura, entre os segmentos dos versos, é um espaço oco. Sinaliza os limites das
palavras, repartidas e utilizadas como fronteiras nas páginas. Em Jean Cohen encontramos referência a
este procedimento estilístico: “O branco é o signo gráfico da pausa ou do silêncio; portanto, signo sem
referências, já que a ausência de letras simboliza naturalmente a ausência de voz”.20 O texto poético de
Ronaldo, também, nos conduz a perceber o jogo lúdico que secciona os versos em diferentes modulações
de voz, distribuídas no poema como um elemento encantatório, permitindo ao rio e à memória, em sua
duração, modular a natureza do sonho.
No texto de apresentação do livro, minas em mim e o mar esse trem azul – que comporta a seção
Pomba poema – o Autor nos informa que “Pomba Poema” foi um longo mergulho no rio Pomba, que
banha a cidade, e na história que por suas margens corre: minas-mar-memória”.21
Há, na figuração deste fragmento de poema, duas vertentes de significação que vão se unir, depois,
numa mesma nascente. A primeira, a da imagem do rio, delineada pela inversão que lhe dá o olhar. Na
segunda, a imagem retorna ao princípio de sua essência: a de ser águas, nascidas da criação poética.
O rio sobe à superfície. Erguido pelo olhar que o interroga, solta-se no espaço num só laço, num só
lance, num só voo, talvez o de uma pomba. A poesia que se faz gestos da linguagem, pendurados “no ar”,
“nos galhos” e “nas árvores” vai-se apagando, desmanchando-se, num movimento sem matéria. No
dissolver-se, a poesia, “tênue manhã às avessas”, lança, nas águas da noite e na boca em sua solidão de
“fala”, seu jorro de palavras.
Este mesmo contemplar o mundo pelo que ele se apresenta sob a visão submersa, imagens que são
sonhos e não podem ser tocadas, dá à poesia de Ronaldo Werneck uma atmosfera de funda e dolorida
procura da memória, deitada no fundo do rio Pomba.
Em outro fragmento do Pomba poema22, encontramos esta mesma tensão existencial:

[...]

a em cidade
tomba
pesa sobre o rio
esquálido
não como o cálido
vento da infância
debruçando ingazeiros
sobre o pomba
mas como ferida
sangrando des
engrossando des
correndo solta des
bombeando às avessas num só des
fluxo des
norteando des
secando
cem rios num des
coração des
norteado
às avessas des.

Ao lermos estes versos, mergulhamos na longa história de uma cidade que, em decadência, agonia e
sofrimento, contamina o rio onde se reflete, tornando as águas, antes frescas e puras, como um “cálido
vento da infância”, em sujas e barrentas. A cidade desmancha-se em seu reflexo nas águas. Assim, ela
que é o “rio esquálido”, abre sulcos, feridas, numa avalanche de ecos profundos no passado. Caminhar na
lembrança é impregnar o coração do sonho do imaginário: que o rio, quase seco, “engrossando-se mar”,
recupere pela inversão das imagens, a experiência feliz do narcisismo: o de ser o poeta e a cidade um só
olhar.
O emprego do afixo “des”, junto às formas verbais, enfatiza a nulidade do esforço em deter o tempo,
em seu caminho de destruição, perda e morte. Nas formas nominais, traduz o desvio da direção afetiva,
acumulando, na leitura, o sentido de “desde”, ou com maior relevo, entendendo “des” como um signo:
”desde sempre”.
O conhecimento das camadas imagísticas em que a poesia se acomoda, nos leva a acompanhar a
lição de Gilbert Durand a respeito do “lugar do espelho” “que nos dá uma imagem que, apesar de
semelhante àquilo que reflete, é, porém, completamente diferente pela inversão, pela conversão que nos
propõe: a lição que nos dá o espelho é mostrar-nos que toda imagem tem um “inverso”; ela proclama a
evidência do oculto”.23
Há um “falar líquido”, segundo Bachelard. “Se não percebemos facilmente este aspecto da
imaginação falante, é porque queremos dar um sentido demasiado restrito à função da onomatopeia. E
conclui: “há portanto na atividade poética uma espécie de reflexo condicionado, reflexo estranho pois
tem três raízes: reúne as impressões visuais, as impressões auditivas e as impressões vocais”. E mais
adiante, lemos: “A voz projeta visões”.24
Ronaldo Wernek nos dá a ler um poema, onde se evidencia a cadência, o ritmo, o timbre, os efeitos
acústicos que nos provocam a escutar o rio nos seus sussurros de estremecidos devaneios e lamentos, nas
associações de fatos, acontecimentos e coisas de um tempo passado. Tudo roçando a serenidade e a
angústia da realidade presente.

...cataguases
Mesmo a curva
a mesmidão do rio
mesmo a solidão minerada
das mesmas minas içadas
ouriçadas minas
onde
chico cabral&lina
acharam palavras
mineraram
poemas-pataca
perdidos rolados
no rio enrolados
por verdes
às vezes embora
sagazes
rapazes de outrora.25

Há um fluir de movimento em direção ao fruir do prazer, pelo efeito da repetição do vocábulo


“mesma”, intensificado pelo desdobramento em outros segmentos fônicos; pela predominância da vogal i,
a vogal do rio; pela inventiva e bela criação de “a mesmidão”, aglutinando “mesma” e “imensidão”,
numa extensão poética de infinitude; pela terminação dos verbos no pretérito, pela força dos cicios de –
azes nos nomes: “cataguases”, “sagazes”, “rapazes”; e também pela função da oclusiva bilabial p com
suas bolhas de vento. Os versos são para ser lidos em voz alta, dificilmente um verdadeiro leitor
interpretaria e sentiria o texto poético, se a leitura se fizesse em silêncio. Este é mesmo o imaginário das
águas, nascido de todas as palavras que, no leito das vozes ,tremem, vibram, se chocam, se confundem, se
amam.
Diz o poeta: “Retomar Pomba Poema 22 anos depois significa de novo mergulhar nas águas de
Minas. Deixar que elas fluam intactas e gerais – na plenitude de seus moveres, nos mistérios de ruídos e
remansos, de lugares e falares”.26
Ronaldo Werneck rompe os nervos das palavras e os engata em outras para criar sua linguagem
literária, a que serve à figuração do passado, em sua contradição no tempo presente, às amarras do amor
e das sombras da infância que refletem sua memória. A posição de Ronaldo: o estar dentro de Minas e de
Cataguases representa o símbolo em sua três dimensões: a de ser ele um poeta cósmico, aberto aos signos
do mundo, a de ser onírico, mergulhado em seus sonhos e a de ser, enfim, poético, no emprego da
linguagem mais luminosa e abstrata em sua concha concreta.27
Só o poeta sabe traçar as formas do mundo e nos revelar os vínculos que unem a vida à poesia,
enclausurada em seu mistério, de angústia e deslumbramento.
Guilhermino Cesar sabe, em seu segredo de poeta, que “De mitos, claro, se ordena o mundo”.28

Referências
BACHELARD, Gaston. Poética do devaneio. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
_____. A água e os sonhos. 3. tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
_____. L’air et lês songes. 4e. réimp. Paris: Librairie José Corti, 1943.
BRANCO, Joaquim e Ronaldo Werneck. Suplemento do jornal Cataguases. Cataguases: 07.09.1967.
CABRAL, Francisco Marcelo. Livro de poemas. Cataguases: Editora-empresa Instituto Francisca de
Souza Peixoto, 2003.
CASSIRER, Ernst. Linguagem e mito. São Paulo: Editora Perspectiva S.A., 1972.
CESAR, Guilhermino e Francisco I. Peixoto. Meia-Pataca. Cataguases: Verde Editora, s/d., p.s/n.
_____. Sistema do imperfeito & outros poemas. Porto Alegre: Globo, 1977.
COHEN, Jean. Estructura del Lenguaje Poético. Madrid: Editorial Gredos S.A.,1970.
DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário.3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
_____. Campos do Imaginário. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.
_____. L’imagination Symbolique. 2.éd. Paris: Presses Universitaires de France, 1968.
MELLO, Ana Maria Lisboa. Ciências & Letras. Porto Alegre: Revista da Faculdade Porto Alegrense de
Educação, Ciências e Letras, 1977.
MELLO, Ana Maria Lisboa de; MOREIRA, Maria Eunice; BERND, Zilá (Orgs.). Pensamento Francês e
Cultura Brasileira. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2009.
WERNECK, Ronaldo. minas em mim e o mar esse trem azul. Cataguases: Editora Poemação Produções,
1999.

Notas
1 BACHELARD, Gaston. Poética do devaneio.2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 5.
2 DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.
18.
3 MELLO, Ana Maria Lisboa de; MOREIRA, Maria Eunice; BERND, Zilá (Orgs.). Pensamento Francês
e Cultura Brasileira. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2009, p. 21-26.
4 MELLO, Ana Maria Lisboa de; MOREIRA, Maria Eunice; BERND, Zilá (Orgs.). Pensamento Francês
e Cultura Brasileira. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2009, p. 21-26.
5 Cataguases: Verde Editora, s/d, p. s/n.
6 Suplemento, jornal do Cataguases. Cataguases: 07.09.1967, p. 8.
7 Campos do Imaginário. Lisboa: Instituto Piaget,1996, p. 42.
8 Mito e Literatura. Em: Ciências & Letras. Porto Alegre: Revista da Faculdade Porto Alegrense de
Educação, Ciências e Letras,1977, p. 14.
9 Livro de Poemas. Cataguases: Editora-empresa Instituto Francisca de Souza Peixoto, 2003, pp. 57-74.
10 Ibid., pp. 61, 66 e 71.
11 Campo marcado. Rio de Janeiro: Booklink, 2010, p. 35.
12 Ibid., pp. 59-60 e 23.
13 Cf. Campos do Imaginário, p. 251.
14 BACHELARD, 2002, p. 9.
15 Cf. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. pp. 262-263. Texto de Gaston Bachelard em La
formation de l’esprit scientifique. Paris: Vrin, p.121.
16 Cf. A água e os sonhos, p. 22.
17 L’air et les songes. 4e réimp. Paris: Librarie José Corti, 1943, pp. 36-38. (tradução nossa).
18 Cataguases: Editora Poemação Produções, 1999.
19 Ibid., Seção Pomba Poema, pp. 76-79.
20 Estructura Del Lenguaje Poético. Madrid, Editorial Gredos S.A., 1970, p. 55. (tradução nossa).
21 minas em mim e o mar esse trem azul. Texto de apresentação, p.2. (grifos do Autor).
22 Ibid., pp. 63-64.
23 Cf. Campos do Imaginário, p. 243.
24 Cf. A água e os sonhos. pp. 195-196.
25 Cf. minas em mim e o mar esse trem azul, Seção Pomba Poema, p. 44.
26 Ibid., texto contracapa.
27 Gilbert Durand. L’Imagination Symbolique.,2e ed. Paris: Presses Universitaires de France,1968, p. 9.
(tradução nossa).
28 PROSAICO-voltaico. Em: Sistema do Imperfeito & Outros Poemas. Porto Alegre: Globo,1977, p.
54.
RASTROS DE ORFEU NA POESIA BRASILEIRA MODERNA
Antônio Donizeti PIRES - UNESP/Araraquara

Introdução
Este trabalho é um recorte do projeto de pesquisa “Demandas de Orfeu (e do Orfismo) na poesia
brasileira moderno-contemporânea”, que desenvolvo na UNESP, campus de Araraquara, na qualidade de
professor da área de literatura brasileira. Por isso, ao lado de umas poucas novidades interpretativas e
conceituais, tentarei fazer uma cartografia das migrações e andanças de Orfeu (ou Orfeu e Eurídice)por
momentos vários de nossa poesia, sempre frisando os modos como isto se deu e tentando articular
diacronia e sincronia. Antes de nosso périplo em companhia do vate lendário, porém, vejamos
rapidamente alguns traços característicos do mito.

I – O mito de Orfeu (e Eurídice)


Tradicionalmente, o ciclo mítico de Orfeu (a narrativa) constitui-se de quatro mitemas fundamentais:
a) a fabulosa viagem do poeta ao lado dos Argonautas, em busca do Velocino de Ouro; b) o casamento
infeliz com a ninfa Eurídice, que, vitimada por uma serpente, é logo perdida pelo poeta; c) a consequente
catábase de Orfeu ao Hades, aonde vai para tentar resgatar a esposa do mundo dos mortos; d) por fim, a
violenta morte de Orfeu, esquartejado pelas enciumadas bacantes da Trácia. Em todas as situações,
sobressai o Orfeu portador da lira, cujo canto soberbo (música e palavra; construção e sentido; som e
imagem) encanta os homens, os monstros marinhos, os animais da Terra e outros elementos naturais, bem
como os próprios deuses do mundo subterrâneo, Hades e Perséfone. Se o primeiro mitema é
vincadamente épico, tendo-nos legado epopeias e poemas épicos como a anônima Argonáuticas órficas
ou a Argonáutica de Apolônio de Rodes ou a de Valério Flaco, os outros três são acentuadamente líricos
e dramáticos: assim, o frustrado amor de Orfeu e Eurídice, ou a morte do poeta, fizeram brotar,
principalmente desde Ovídio e Virgílio, uma pletora de poemas líricos, poemas dramáticos, óperas,
tragédias, tragicomédias, comédias, pinturas, esculturas, mosaicos, filmes, contos, romances, histórias em
quadrinhos...

II – O Orfismo
Além dos aspectos mais gerais, afeitos aos dicionários e tratados de Mitologia, outros problemas
avolumam o “feixe de contradições” que é Orfeu, pois se crê que ele teria sido fundador de um culto
mistérico e iniciático que leva seu nome, o Orfismo: este, mais propriamente vincado por aspectos
místico-religiosos, nem por isso deixou de imiscuir-se nas representações mais estritamente mítico-
poéticas do bardo lendário. Assim, se em alguns momentos da literatura universal as representações
mítico-poéticas possam prevalecer, em outros é quase impossível deslindar-se, no vasto acervo literário
e iconográfico que provém de Orfeu, o limite entre questões estético-poéticas e questões ético-religiosas.
Isto já está documentado em pelo menos duas obras literárias da Antiguidade tardia atribuídas a Orfeu, os
anônimos Hinos órficos e Argonáuticas órficas (além dos lapidários e de obras várias de cunho
teogônico e/ou esotérico). Com o advento da modernidade romântico-simbolista, pode-se dizer que a
con-fusão entre o mito e o fundador religioso se dá principalmente nos modos por que o poeta moderno
se caracteriza e se autonomeia Demiurgo, Iniciado, Vidente, Tradutor, Profeta, Vate, Eleito etc. – e tem
em Orfeu seu protótipo platônico-ideal. É o início, diríamos, de um pensamento órfico mais claramente
moderno, em relação à poesia e ao poeta, embora ainda seja muito complicado, hoje, afirmar-se
exatamente o que constitui e o que caracteriza tal pensamento órfico: este, muito sumariamente e em
grosso modo, a) pressupõe uma visão analógica do mundo e o apreço pelas misteriosas relações poesia e
música (como se a poesia devesse atingir a música das esferas celestes e o número mágico constitutivo
do Universo, na perspectiva pitagórica); b) perfaz-se uma forma de conhecimento esotérica que se
alimenta de paganismo e cristianismo, idealismos diversos e filosofia; c) pressupõe um sentimento de
inadequação do poeta, que se sabe exilado no mundo e portanto alijado das realidades essenciais, mas
sempre com a consciência de que é um eleito entre os homens e que a estes sempre pode revelar uma
verdade fundamental; d) enfim, requer também o conhecimento técnico do ofício de poeta, a fim de que
possa, pela palavra (que é som e sentido; mas também magia e sugestão; e música e imagem) apreender e
transmitir aos homens o tipo de conhecimento que só a poesia pode proporcionar (conforme ideias que se
podem pinçar da obra de um Mallarmé, um Fernando Pessoa ou um Jorge de Lima).

III – Orfeu na literatura brasileira


a) Do Barroco ao Parnasianismo
No Brasil, ainda que não haja tradição de estudos sobre Orfeu ou o Orfismo, é possível
vislumbrarmos pelo menos três fases (ou maneiras) diferentes da aparição de Orfeu em nossa poesia
lírica: na primeira (que vai, grosso modo, do Barroco ao Parnasianismo), ele é apenas tema e motivo,
como constatamos em poemas de Gregório de Matos, Silva Alvarenga, Cláudio Manuel da Costa, Tomás
Antônio Gonzaga, Raimundo Correa ou Olavo Bilac. Deste, o soneto abaixo transcrito (de Tarde, 1919),
é exemplar do aproveitamento temático simples do mito (em seu quarto mitema, pois trata da morte do
poeta); aproveitamento que então se escora nos postulados estéticos do Parnasianismo (aparato
descritivo e decorativo, impessoalidade, objetividade, clareza): “A morte de Orfeu”
Em vão as bacantes da Trácia procuraram consolá-lo. Mas Orfeu, fiel ao amor de
Eurídice, encarcerada no Averno, repeliu o amor de todas as mulheres. E estas,
despeitadas, esquartejaram-no.

Houve gemidos no Ebro e no arvoredo,


Horror nas feras, pranto no rochedo;
E fugiram as Mênades, de medo,
Espantadas da própria maldição.
Luz da Grécia, pontífice de Apolo,
Orfeu, despedaçada a lira ao colo,
A carne rota ensanguentando o solo,
Tombou... E abriu-se em músicas o chão...
A boca ansiosa um nome disse, um grito,
Rolando em beijos pelo nome dito:
‘Eurídice!’, e expirou... Assim Orfeu,
No último canto, no supremo brado,
Pelo ódio das mulheres trucidado,
Chorando o amor de uma mulher, morreu...1

b) Simbolismo e arredores
No segundo modo (que, em minha perspectiva, engloba Simbolismo e Pré-Modernismo, abarcando
os anos de1893 a 1923), já subjaz certa cosmovisão órfica na obra de alguns poetas, notadamente Cruz e
Sousa.
Para vincar a diferença entre os procedimentos estéticos parnasianos e simbolistas, evidenciando-se
quão mais perto estes estão de um pensamento órfico moderno, escolhi o soneto “O Assinalado”, de Cruz
e Sousa (de Últimos sonetos, 1905):
“O Assinalado”
Tu és o louco da imortal loucura,
O louco da loucura mais suprema.
A Terra é sempre a tua negra algema,
Prende-te nela a extrema Desventura.
Mas essa mesma algema de amargura,
Mas essa mesma Desventura extrema
Faz que tu’alma suplicando gema
E rebente em estrelas de ternura.
Tu és o Poeta, o grande Assinalado
Que povoas o mundo despovoado,
De belezas eternas, pouco a pouco...
Na Natureza prodigiosa e rica
Toda a audácia dos nervos justifica

Os teus espasmos imortais de louco!2

Observe-se que a cosmovisão órfica referida pronuncia-se na conjunção de vários fatores: a) nos
elementos estruturais, morfossintáticos e lexicais do poema; b) nos aspectos semânticos perceptíveis nos
estratos mais superficiais, mas também na significação profunda do texto; c) na seleção imagética
requintada, que aproxima, por exemplo, o resultado do trabalho do poeta a “estrelas de ternura”; d) nos
aspectos rítmicos e sonoros, que se marcam tanto pelos decassílabos sáficos e heroicos, quanto pelo
sistema de rimas, pelas assonâncias e aliterações: tudo isto adensa a sugestiva e espiritualizada
musicalidade do poema, como se este quisesse atingir as esferas mais profundas e mais altas do
Universo, projetando o eu-lírico para fora da Terra degradada. A adesão órfica do soneto, a meu ver,
completa-se pela consciência técnica do artista (já que estamos diante de um evidente metapoema), mas,
principalmente, pela autocaracterização do poeta como “Assinalado” e “louco” e, por extensão, como
“maldito” e “pária social” – temas caros, como se sabe, ao Romantismo-Simbolismo, e que na obra de
Cruz e Sousa dizem muito de sua condição humano-social.
Outros poetas, que poderíamos considerar da “Segunda Geração Simbolista” (Ernani Rosas,
Eduardo Guimaraens, Alceu Wamosy, Emiliano Perneta, Clemente Ritz...), somar-se-iam ao intenso
trabalho de Dario Veloso em Curitiba, cidade onde o Simbolismo brasileiro mais tingiu-se de postulados
esotéricos. Dario Veloso, muito apegado ao rito, ao mito e à iniciação, fundou naquela cidade o Instituto
Neo-Pitagórico em 1909, sediado no Templo das Musas. Além disso, ressuscitou festas pagãs gregas
consagradas às musas e aos deuses: falta-me ainda uma medida mais clara e justa das relações que se
podem estabelecer entre os vários poetas citados, mas, de um modo ou de outro, há em todos eles um
apreço requintado pelos temas gregos e certa recorrência ao mito de Orfeu, seja por conta do amor deste
por Eurídice, seja por sua condição de poeta exemplar, seja devido aos graus de mistério e iniciação que
vincam a religião do Orfismo.
As datas convencionais que escolhi vão desde a publicação das obras simbolistas de Cruz e Sousa
(Missal e Broquéis, 1893), até o aparecimento de Orpheu (1923), poema dramático do gaúcho Homero
Prates, por ele mesmo classificado como “[...] um canto de amor, um poema filosófico e um sonho
espiritualista”.3Vazado em versos polimétricos (com preferência pelo alexandrino de rima emparelhada,
nos colóquios de Orfeu e Eurídice), o poema recobre todo o ciclo mítico de Orfeu, não faltando a sua
consagração como “[...] Pontífice e Rei da arte sacerdotal [...]”4, poiso moço é “Vidente”5, é “o filho
predileto / de Apolo”6 e detém o “poder secreto [...] / de encantar as almas”7. Veja-se, nos campos
floridos da Trácia, o primeiro encontro de Orfeu e Eurídice:

[...]

Orfeu
Hoje é a primeira vez que te olho face a face e entanto é como se eu há muito já te amasse
de tal modo me bate o coração no peito.
Eurídice
Divino Orfeu! bem sei que és único e perfeito, mas não outro senão a ti é que eu buscava
quando pelas manhãs, mal o sol despontava,
só com meu grande amor, cantando de alegria de entre os rosais em flor dos bosques te
sorria, vendo-te em sonho, assim, tal qual te vejo agora. [...]8

Poema importante nos quadros de um Orfismo à brasileira, inclusive por evidenciar o imbricamento
Parnaso e Símbolo no nosso chamado Pré-Modernismo, Orpheu permanece à margem do cânone e
aguarda estudo e reedição. Tal imbricamento estético do poema parece ter vincado bastante a obra do
hoje desconhecido Homero Prates, que Rodrigo Otávio Filho considera como penumbrista e que Andrade
Muricy coloca entre os últimos simbolistas, embora ambos reconheçam o pendor esteticista, o gosto pelo
helenismo, a queda pelo esoterismo, o cultivo do idioma e a virtuose rítmica e versificatória como
características muito pessoais de Homero Prates. Otávio Filho chega a dizer que ele, neoplatônico,
“Seguia, como discípulo, a lição de Plotino: o supremo objetivo das almas é a contemplação da
Beleza”.9

c) Modernismo e contemporaneidade
No terceiro momento (a partir dos anos 1940/50 até a esta parte), decerto por influxo da divulgação,
entre nós, de poetas como Rilke e Fernando Pessoa, constata-se a configuração mais plena e efetiva de
uma poesia realmente órfica e original, cujos vários matizes podem: a) misturar elementos mítico-
poéticos e místico-religiosos típicos do ciclo de Orfeu (Dora Ferreira da Silva); b) acrescer, a estes,
atributos católico-cristãos (Jorge de Lima); c) emular Orfeu com o poeta moderno decaído, sem função
na sociedade capitalista (Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade); d) explorar uma imagética
mais tradicional, em termos de tema e motivo, dos vários mitemas que compõem a trajetória do lendário
poeta-amante (Dante Milano, Péricles Eugênio da Silva Ramos, Marly de Oliveira); e) aclimatar Orfeu à
realidade social brasileira (Vinicius de Moraes, no teatro) etc.
Para o ensejo, lembremos primeiro o programático “Prefácio interessantíssimo” com que Mário de
Andrade abre a Pauliceia desvairada (1922) e relativiza, de certo modo, a propalada ruptura ocasionada
pela vanguarda: Escrever arte moderna não significa jamais para mim representar a vida atual no que tem
de exterior: automóveis, cinema, asfalto. [...] Sei mais que pode ser moderno artista que se inspire na
Grécia de Orfeu ou na Lusitânia de Nun’Álvares. Reconheço mais a existência de temas eternos,
passíveis de afeiçoar pela modernidade: universo, pátria, amor e a presença-dos-ausentes, ex-gozo-
amargo-de-infelizes.10
Evidente que o poema Orpheu, de Homero Prates, não é ainda moderno no sentido proposto por
Mário de Andrade, mas talvez se possa dizer que este, “[...] um tupi tangendo um alaúde!”11; dividido em
“trezentos [ou] trezentos-e-cinquenta”12; arlequim melancólico compondo poemas à negra, à amiga, ou
mesmo à cidade brumosa e aos cafezais paulistas, tenha atualizado/incorporado o mito de Orfeu de
maneira muito particular. Esta maneira pressupõe a beleza nova e suja da cidade moderna, mas inclui
também o constante atrito com sua São Paulo contraditória, com o Brasil agreste e musical (nova Trácia
recém-descoberta), ou com a própria sexualidade do poeta.
Seja como for, o Orfeu moderno, decaído inclusive, aparece mais bem configurado em poetas
posteriores, conforme deixam entrever os dois poemas seguintes de Murilo Mendes. Extraídos de As
metamorfoses (1944), os poemas são uma prévia do modo reiterado como Orfeu (e uma madura
cosmovisão órfica, muito essencialista e pessoal) vincará a obra de Murilo Mendes, até Convergência
(1970). As duas composições, “Orfeu” e “Novíssimo Orfeu”, foram transcritas, já se disse, de As
metamorfoses, livro cujo título ressalta o rico processo de apropriação e transformação do poeta
lendário, através do qual Mendes se insere em seu momento histórico-político-social e refaz o
questionamento sobre o papel do poeta no “mundo caduco”, destituído de sentido13:
“Orfeu”
O sino volta de longe,
Desperta a ronda infantil.
Os homens-enigmas passam,
Não reconhecem ninguém.
O mundo muitas vezes
É tão pouco sobrenatural.
Penso nas amadas vivas e mortas,
Penso em suas filhas
Que são um pouco minhas filhas.
Ajudo a construir
A Poesia futura,
Mesmo apesar dos fuzis.
Os planetas vão se aproximando,
Alguém volta para o céu:

O universo é um só.14
“Novíssimo Orfeu”
Vou onde a poesia me chama.
O amor é minha biografia,
Texto de argila e fogo.
Aves contemporâneas
Largam do meu peito
Levando recado aos homens.
O mundo alegórico se esvai,
Fica esta substância de luta
De onde se descortina a eternidade.
A estrela azul familiar
Vira as costas, foi-se embora!

A poesia sopra onde quer.15

Como já aventado, são muitos os poemas que perfazem o ciclo mítico de Orfeu (ou
Orfeu e Eurídice), em nossa poesia dos anos 1940/50, até os dias atuais. Merece menção
especial, além dos nomes de Dante Milano, Carlos Drummond de Andrade e Vinicius de
Moraes, o poeta alagoano Jorge de Lima, cuja obra final, mais propriamente órfica, inclui
o Livro de sonetos (1949) e a Invenção de Orfeu (1952). No entanto, como hipótese de
trabalho em curso, a estes acrescento o Anunciação e encontro de Mira-Celi, livro de
1943 só publicado por Lima em 1950, e cujos 59 poemas (em prosa e/ou em versos)
mantêm certa aura de mistério em relação à figura de Mira-Celi: quem é ela? A Virgem
Maria? A Musa? A mulher pura e a decaída? A mãe, a deusa, o eterno feminino? A Alma
do poeta? Mira-Celi é Eurídice? Talvez seja; e a se adotar tal linha interpretativa, vê-se
que o encontro e a anunciação da figura seriam o encontro e a anunciação da própria
Poesia personificada, como que a antecipar a aventura mais substancialmente órfica dos
dois últimos livros de Jorge de Lima, conforme se pode ler no segundo poema da série:
2
Tu és, ó Mira-Celi, a repercutida e o laitmotivo que aparece ao longo de meu poema.
Nele estás construída à semelhança de um imenso órgão movimentado pelo meu espírito.
Cresces nele paralelamente a teu desenvolvimento físico, mas incognitamente, como uma
órfã dentro da multidão.
Às vezes, quando dobras uma página, perguntas: – ‘Sou eu?’
Mas, olhando depois a paisagem mudar tanto, no espaço de um segundo, encontras os teus
membros na nudez de uma frase.
Nunca te libertará deste parque em que nos encerramos, fingindo dois desaparecidos,
e em que nos nutrimos um do outro contra as leis naturais.
Outras vezes te encolhes em mim, ó minha pequena maré; e basta que eu abra as
pálpebras e a minha memória te encontre, para te recompores imediatamente
em minha maior dimensão.
As nossas respirações enchem o mundo,
achatam o mar,
agitam as palmas e os areais.
Pairamos em planos irrealizáveis à maioria das aves com outra visão oculta em cada
palavra.
Pouca gente encontrará a chave deste mistério.
E os olhos que perpassarem através de tantos poemas que não findam e que se
transformam de momento a momento, não compreenderão o movimento perpétuo
em que nos perseguimos e nos superpomos.
Outras vezes ainda, as minhas mãos são um disfarce de ti, escrevendo tua história ou me
sustentando a face.
Ora pareces marcha nupcial; és, no entanto, elegia.
Ora és sacerdotisa, musa, louca, pastora ou apenas ave.
Dei-te diversos nomes, para que ninguém te acompanhe.
Anuncio que morreste, para que ninguém te convide.
Quase sempre te transformo, para te distribuir.
E, quando me resta uma única migalha, reconstituo-te como uma catedral e alimento-te
como uma criancinha.
Figuramos no mapa como um sol gêmeo que num perpétuo eclipse desse a impressão de
um só núcleo.
Gravidades estranhas nos atraem: sombras tutelares protegem a nossa rotação, em que
tudo são coincidências de duas asas num corpo.
Algum sacerdote antigo já nos tinha visto, por acaso, uma noite, e morreu sem nos
decifrar, pois não voltamos ainda nem à primeira página, nem à primeira estrofe do
imenso e misterioso poema sempre por terminar.16

Carlos Drummond de Andrade, como se sabe, apresenta várias fases e faces em sua obra poética,
uma vez que dedicou pelo menos 60 anos ao incansável trabalho com a palavra. Grosso modo, se nos
valemos da ordem cronológica de suas publicações, vemos que a fase inaugural (anos 30) guarda
bastante afinidade com o primeiro Modernismo; a segunda (anos 40) volta-se mais para a poesia social,
de participação (segundo Modernismo); a terceira (anos 50) quer-se mais refinada, ligada a certa
tradição elevada da lírica; a quarta (anos 60/70, a partir da série Boitempo), reatando as fases anteriores,
privilegia a memória, a infância, a família, a biografia sua e alheia, a província. A trajetória do poeta
culmina talvez com a poesia erótica dos anos 80/90, embora o tema sempre tenha sido cultivado por
Drummond e perpasse os vários momentos de sua obra. Assim, por certo se pode considerar que a
recorrência de temas e motivos confere certa unidade à obra drummondiana, embora seja diferente e
específico o valor concedido a cada um de seus livros em particular: por exemplo, a crítica tem A rosa
do povo em grande apreço, mas o mesmo não se pode dizer da série Boitempo ou dos poemas de
circunstância. Aceita a premissa, deve-se ter em mente que ela não vale, entretanto, para a fase dos anos
50, tempo em que o poeta, cansado dos fatos sociais e mundanos, e cansado do próprio Modernismo,
agora procura o recolhimento, a depuração e os temas mais universais e metafísicos, cujo rebuscamento
formal e lexical acaba por redimensionar seus caminhos, ao menos em parte. Dentre tais temas novos, é
com certa surpresa que se constata o florescimento do “orfismo drummondiano”, embora de curta
duração e sem a adesão essencial que vinca a obra de Jorge de Lima ou a de Murilo Mendes.
É no soneto “Legado”, de Claro enigma (1951), que Drummond já se reporta ao vate lendário no
segundo quarteto: “[...] Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti. / Esses monstros atuais, não os
cativa Orfeu, / a vagar, taciturno, entre o talvez e o se. [...]”17. Mas é em Fazendeiro do ar (1954) que,
além do soneto “Viagem de Américo Facó”, dedicado à descida do amigo morto ao Hades (“Sombra
mantuana, o poeta se encaminha ao inframundo deserto, onde a corola noturna desenrola seu mistério /
fatal mas transcendente [...]”18), encontra-se o belo “Canto órfico”, poema talvez atípico no geral da
obra de Drummond, que passo a transcrever:
A dança já não soa,
a música deixou de ser palavra,
o cântico se alongou do movimento.
Orfeu, dividido, anda à procura
dessa unidade áurea, que perdemos.
Mundo desintegrado, tua essência
paira talvez na luz, mas neutra aos olhos
desaprendidos de ver; e sob a pele,
que turva imporosidade nos limita?
De ti a ti, abismo; e nele, os ecos
de uma prístina ciência, agora exangue.
Nem tua cifra sabemos; nem captá-la
dera poder de penetrar-te. Erra o mistério
em torno de seu núcleo. E restam poucos
encantamentos válidos. Talvez
um só e grave: tua ausência
ainda retumba em nós, e estremecemos,
que uma perda se forma desses ganhos.
Tua medida, o silêncio a cinge e quase a insculpe, braços do não-saber. Ó fabuloso
mudo paralítico surdo nato incógnito
na raiz da manhã que tarda, e tarde,
quando a linha do céu em nós se esfuma,
tornando-nos estrangeiros mais que estranhos.
No duelo das horas tua imagem
atravessa membranas sem que a sorte
se decida a escolher. As artes pétreas
recolhem-se a seus tardos movimentos.
Em vão: elas não podem.
Amplo,
vazio
um espaço estelar espreita os signos
que se farão doçura, convivência,
espanto de existir, e mão completa
caminhando surpresa noutro corpo.
A música se embala no possível,
no finito redondo, em que se crispa
uma agonia moderna. O canto é branco,
foge a si mesmo, vôos! palmas lentas
sobre o oceano estático: balanço
de anca terrestre, certa de morrer.
Orfeu, reúne-te! chama teus dispersos
e comovidos membros naturais,
e límpido reinaugura
o ritmo suficiente, que, nostálgico,
na nervura das folhas se limita,
quando não compõe no ar, que é todo frêmito, uma espera de fustes, assombrada.
Orfeu, dá-nos teu número
de ouro, entre aparências
que vão do vão granito à linfa irônica.
Integra-nos, Orfeu, noutra mais densa
atmosfera do verso antes do canto,
do verso universo, latejante
no primeiro silêncio,
promessa de homem, contorno ainda improvável de deuses a nascer, clara suspeita
de luz no céu sem pássaros,
vazio musical a ser povoado
pelo olhar da sibila, circunspecto.
Orfeu, que te chamamos, baixa ao tempo
e escuta:
só de ousar-se teu nome, já respira

a rosa trismegista, aberta ao mundo.19

O “Canto órfico” de Drummond, numa primeira leitura, revela-se um poema hermético, de difícil
acesso e compreensão (inclusive no que tange ao léxico). É um longo poema, que se auto-intitula “Canto”
(decerto em lembrança às origens conjuntas de lírica e música na tradição órfica), mas onde é patente a
nota elegíaca. Não se pode dizer que o poema seja uma tematização estrita do ciclo mítico de Orfeu, pois
outras parecem ser as preocupações de Drummond (mais metafísicas, dir-se-ia): ele sabe quão gasta e
conhecida é a história lendária do poeta e sua amada. Por outro lado, é evidente que estamos diante de
um metapoema, uma vez que de Poesia trata a composição: das origens míticas desta; do papel de seu
fundador e de sua situação, hoje, no mundo moderno; por extensão, do papel e da situação do próprio
poeta moderno, degradado tal qual o mito originário.
A composição soma 64 versos que, na sua maciça maioria, compõem 43 versos decassílabos (ER 6-
10, sobretudo), a completar-se com alguns de 11 sílabas poéticas, chamados hendecassílabos (“o cântico
se alongou do movimento” – ER 2-7-11), e outros, poucos, dodecassílabos: “dera poder de penetrar-te.
Erra o mistério” (ER 4-8-12); “Tua medida, o silêncio a cinge e quase a insculpe” (ER 6-12). Entre os
versos de medida curta, há um de apenas uma sílaba poética (“Amplo”), alguns dissílabos (“vazio”; “e
escuta”), hexassílabos (“A dança já não soa”; “Orfeu, dá-nos teu número”) e de sete sílabas, as
redondilhas maiores (“e límpido reinaugura”). Se a versificação demonstra o apuro formal do texto,
corrobora também a maestria técnica de Drummond, o que o liga à longa tradição poética em língua
portuguesa: isto se verifica pelo intenso uso do decassílabo, o mais nobre de todos os versos da língua.
Porém (e isto é o mais importante, no poema em apreço), a metrificação oscilante, ziguezagueante,
esquartejada, está a demonstrar, no plano da expressão, o tema que a composição desenvolve: o
dilaceramento de Orfeu e das coisas órficas, no mundo moderno, e a remota possibilidade de
(re)encarná-lo, presentemente. O uso oscilante dos versos, com destaque para o decassílabo (ER 6-10),
sustenta também o ritmo e a musicalidade algo truncada (esquartejada) do poema, que não tem o respaldo
de um sistema fixo de rimas ou uma estrofação regular.
Muito se deveria dizer ainda do “Canto órfico” drummondiano, para uma possível e clara
interpretação, mas passemos enfim à apresentação dos dois últimos poemas escolhidos para esta ocasião,
da poeta paulista Dora Ferreira da Silva. No caso dela, pode-se dizer que os deuses ainda habitam a
Terra, numa simbiose entre sagrado, poesia e telúrico difícil de separar. Assumidamente órfica, a poesia
da autora (tradutora de Rilke e Jung, entre nós) é presidida pelas figuras de Perséfone Koré, Orfeu e
Apolo. A presença destes, mais a valorização da Natureza e a aceitação plena do mistério, confere à obra
da artista uma singular cosmovisão órfica, pois mescla o que chamo Orfismo mítico-poético e Orfismo
místico-religioso – ou seja, a poeta tematiza passagens do ciclo mítico de Orfeu tal qual a tradição e os
manuais de Mitologia nos ensinam, porém ultrapassa o descritivismo puro e simples porque vai
gravando, a cada novo poema, o inequívoco sinal de pertencimento à crença ancestral dos órficos,
dotando então sua poesia de rara sacralidade, hermetismo e plena comunhão com a Natureza, com o ser
humano e os animais, com Deus e os deuses, com o passado e o presente, buscando aquela
atemporalidade essencial, mistérica, iniciática, que parece definir, para Dora, a poesia lírica. Por tudo
isto, leiamos o metapoético “Orfeu” (publicado em 1973, em Uma via de ver as coisas), que faz a
conexão necessária entre o vate lendário e o poeta presente; e leiamos também o misterioso (e também
metapoético) “Órfica”, poema emblemático do pensamento da poeta, pois que aparece e reaparece em
vários de seus livros (Uma via de ver as coisas, 1973; Poemas da estrangeira, 1995; Hídrias, 2004)20:
“Orfeu”

Canto canções
para os que morreram.
Doces animais acorrem
para ouvir o canto
e me acolhem
nos quietos corações:
pomba, pavão,
pássaros de beira d’água,
cervos, esquilos
e a Árvore.
Vem a pantera, agora mansa.
Sob as folhas vivas
sustenho na mão a lira.
É isso a solidão.

II

Colheu a flor – o Poema –


arrancou-o à resina da vida
e entre as páginas prendeu-o
debatendo-se, vivo.
A fonte alimentou-o nas águas.
E a mão o feriu
para dispersá-lo
e, nele, o coração.

III
Sob a Árvore chamas,
sem que os lábios falem.
Eis o cervo, a pantera,
a áspide, o pássaro,
o boi ruminando sombra:
ramos dispersos,
bebem o orvalho da música,
reunidos nas cordas
de teu claro

coração.21

“Órfica”

Não me destruas, Poema,


enquanto ergo
a estrutura do teu corpo
e as lápides do mundo morto.
Não me lapidem, pedras,
se entro na tumba do passado
ou na palavra-larva.
Não caias sobre mim, que te ergo,
ferindo cordas duras,
pedindo o não-perdido
do que se foi. E tento conformar-te
à forma do buscado.
Não me tentes, Palavra,
além do que serás

num horizonte de Vésperas.22

Apesar de muito breve, suponho que a leitura dos poemas tenha ajudado a mapear os rastros e os
caminhos do mito de Orfeu na poesia brasileira, em seus diversos períodos histórico-literários, e em seus
vários e até contraditórios significados estéticos e éticos.

À guisa de (in)conclusão
Depois do rápido périplo, considero positivo refletirmos (ainda que haja parcas respostas) sobre
algumas questões fundamentais (e atemporais) sobre o mito, suas migrações e aproveitamento literário, e
sobre a literatura brasileira: Quem é Orfeu? Quem é o poeta? Quem é o poeta brasileiro? Qual a função
do mito? Qual a função do poeta? Qual a função do poeta brasileiro? Por que migra Orfeu? Como migra
Orfeu? Tais migrações são comparáveis às migrações e às e/migrações do povo e do poeta do Brasil?
Que metamorfoses o mito de Orfeu vai delineando nas várias literaturas pelas quais per/passa? Que
características novas, espaciais e temporais, sintáticas e semânticas, vai adquirindo Orfeu em suas
andanças de uma literatura a outra? Qual o real significado de Orfeu (histórico, diacrônico e sincrônico)
na literatura brasileira? A utilização do mito de Orfeu, nesta, diminuiria a originalidade e a qualidade de
sua produção? Ou faria com que ela se desvirtuasse de questões inerentes a nossa cultura, tais a
identidade, o nacionalismo, a ruptura, a antropofagia, o empenho ético-social? Por que estudar Orfeu?
Ele teria relações com algum mito prototípico indígena brasileiro, em relação à capacidade demiúrgica
de criação? Se sim, que comparações estabelecer entre ambos, uma vez que Orfeu (o Orfismo) está
baseado numa teogonia que diverge da teogonia tradicional grega? Seria possível considerar, em
civilizações diferentes, que viagens ao Inferno pressuponham um pensamento órfico? Como este se dá? O
que é pensamento órfico? Em suma, o que é poesia órfica? O que é poesia órfica, ontem e hoje? Toda
poesia é órfica?
Enfim, a estrutura, a essência e os temas da poesia lírica talvez ainda sejam os mesmos, na Grécia
arcaica e no Brasil dilemático que emerge neste século XXI. Porém, é meu direito advogar, em face de
um mítico/místico Orfeu grego, um Orfeu brasileiro de carne e osso (ou mesmo de papel e tinta), cujo
canto-palavra medule e module as nossas contrapostas e contraditórias vozes roucas, nem sempre
audíveis.

Referências
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Notas
1 BILAC, 1997, p. 331-332.
2 SOUSA, 1995, p. 201.
3 PRATES, 1923, p. 35. Atualização ortográfica feita por mim, com base na primeira edição da obra
(1923).
4 Idem, p. 111-112.
5 Idem, p. 111.
6 Idem, p. 111.
7 Idem, p. 111.
8 PRATES, 1923, p. 42.
9 OTÁVIO FILHO, 1986, p. 578.
10 ANDRADE, 19__, p. 32.
11 p. 37.
12 P. 165.
13 Para maior aprofundamento desta e de outras questões órficas na poesia de Murilo Mendes, veja
PIRES (2010).
14 MENDES, 2002, p. 85.
15 MENDES, 2002, p. 124.
16 LIMA, 1974, p. 116-117.
17 ANDRADE, 1980, p. 165.
18 Idem, p. 205.
19 ANDRADE, 1980, p. 213-215.
20 Para maior aprofundamento desta e de outras questões órficas na poesia de Dora Ferreira da Silva,
veja PIRES (2010 e 2011).
21 SILVA, 1999, p. 93.
22 SILVA, 2004, p. 30.
BANDEIRA NA PENUMBRA:
QUANDO O POETA AINDA NÃO ERA MODERNO
Luís Roberto de Souza JÚNIOR

Um outro Bandeira
Vou tratar aqui de um poeta que usa e abusa dos tons crepusculares e da melancolia da herança
romântico-simbolista. Um poeta que segue o hábito do verso regular, construído segundo os cânones da
metrificação tradicional, uma preocupação de influência parnasiana. Um poeta com tendências monótonas
e melancólicas. Um poeta fascinado pelo mistério e pelas sombras. Que fala do tédio e esfuma a
realidade.
Este poeta é Manuel Bandeira.
Pois o Bandeira que ficou conhecido pela modernidade de sua poesia, na qual “a vida de relação, tal
como se mostrava no dia-a-dia, se torna matéria literária”1 , o Bandeira que, embora não tenha sido o
primeiro a empregar o verso livre no Brasil, é o poeta mais importante a fazê-lo em sua época, o
Bandeira que se consagrou por uma poesia epifânica, de êxtase diante do sublime que se encontra no
cotidiano e acaba por revelar o insondável, esse Bandeira que é tão bem estudado e referido na história
da poesia brasileira, ele apenas se mostrou completamente a partir de Libertinagem (1930).
Antes, existia um outro Bandeira, o que escreveu seus primeiros livros – A cinza das horas (1917),
Carnaval (1919) e O ritmo dissoluto (1924) – oscilando entre formas poéticas tradicionais e modernas,
uma gangorra que a cada livro “se inclinava de vez para a modernidade.”2
Segundo Maria Lúcia Pinheiro3, o pré-modernismo é um período literário que se iniciou com o fim
do simbolismo e se encerrou com o começo do modernismo: “[...] É um período sincretista, às vezes neo-
simbolista ou neo-parnasiano, ou as duas coisas simultaneamente.”
É aí que se enquadra o Manuel Bandeira do qual vou tratar. Mais especificamente no que “os
manuais de literatura brasileira reconhecem unanimemente um certo período de transição entre
simbolismo e modernismo, ora chamado de crepuscularismo, ora de pós-simbolismo, ora de
penumbrismo.”4
Ao retratar esse “poeta na penumbra”, mostrando quando a gangorra de sua poesia ainda pendia para
o lado das poéticas tradicionais, analisando as influências de seus primeiros livros, busco os alicerces
da poesia futura de Bandeira. Pois “[...] é no período de formação dos grandes escritores que devemos
procurar, quem sabe, a explicação talvez mais válida para o futuro esplendor de sua maturidade
artística.”5

Pequena história suíça


Manuel Bandeira foi o homenageado da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) em 2009. Na
conferência de abertura, Davi Arrigucci Jr, falando da formação poética de Bandeira, disse que ele
“poderia ter sido um personagem de Thomas Mann em seu A montanha mágica”.
De fato, em junho de 1913, Bandeira embarcou para a Suíça a fim de se tratar no sanatório de
Clavadel, perto de Davos-Platz, “cenário que em 1895 testemunhara os suspiros tísicos de Antônio
Nobre e que Thomas Mann tornaria famoso n’A montanha mágica, de 1924.”6
No romance, o jovem alemão Hans Castorp vai visitar um primo tuberculoso no sanatório de Berghof
e quase por acaso descobre que também está doente, passando a viver a rígida monotonia do lugar, um
lugar isolado do mundo, onde sobra tempo para contemplação e inquietações filosóficas.
Thomas Mann começou a escrever A montanha mágica em 1912, quando sua mulher estava em
recuperação num sanatório da região de Davos-Platz, e ele a visitava com frequência. Ou seja,
literalmente, Manuel Bandeira poderia ter sido a inspiração para um dos personagens.
Mas não é essa coincidência que torna relevante a afirmação de Arrigucci Jr. É que o espírito dos
personagens de Mann – a melancolia e a incerteza reinantes, devidas à Primeira Guerra Mundial (1914-
1918) e, sobretudo, à batalha diária contra a morte travada por cada vítima da tuberculose – faz-se
presente nos versos que Bandeira então escreveu. Afinal, como bem coloca Joaquim-Francisco Coelho
em Biopoética de Manuel Bandeira:
Dado que obra alguma de arte floresce no vácuo, procurou-se também situar a
produção europeia do tempo, em que ela tão obviamente radica, sobretudo a literatura
parnasiano-simbolista de expressão francesa, seminal, ninguém o desconhece, na eclosão
de uma escrita belle-époque contra a qual se rebelariam (mesmo quando contaminadas
por ela) as primeiras vanguardas do século.7
Nas muitas vezes enevoadas montanhas suíças, Bandeira dedica-se principalmente a ler, escrever e
refletir sobre poesia. Segundo Coelho, em outro estudo sobre o poeta – Manuel Bandeira pré-
modernista – essas “horas de inefável repouso”, as encostas cobertas de neve, as pastagens alpestres
com seus “densos bosques de pinheiros” compõem a própria geografia dos primeiro versos de Bandeira:
“Na geografia alpina dos seus primeiros versos, a paisagem que vemos constitui no limite a transposição
artística da paisagem que ele via, do solário do sanatório, deitado na cama-de-vento.”8
Ali ele reaprende o alemão, que estudara no ginásio, e faz amizade com Paul Eugène Grindel, um
jovem de 18 anos que depois assinaria Paul Éluard e seria um dos principais poetas surrealistas
franceses. Bandeira e Éluard se influenciam mutuamente. Éluard empresta a Bandeira livros de Vildrac,
Fontainas e Claudel, e talvez seja por isso que o brasileiro volte da Europa “marcado por um neo-
simbolismo.”9
É na Suíça também que Bandeira compõe e decide publicar seu primeiro livro, para o qual escolhe o
nome de Poemetos melancólicos. Bandeira tentou primeiro publicá-lo em Coimbra, Portugal, mas não
conseguiu, e o livro, com modificações (ele esqueceu os originais no sanatório e não conseguiu refazê-lo
integralmente) foi publicado em 1917, “só que a melancolia dos poemas ressaltou com mais força do
título que afinal prevaleceu, A cinza das horas.”10
A cinza das horas é uma coletânea dos primeiros versos de Bandeira. Ribeiro Couto, um dos
melhores amigos do poeta, relembra que “em 1917 fizeste imprimir em 200 exemplares os antigos
Poemetos melancólicos no volumezinho de A cinza das horas. Era uma experiência de vossa
curiosidade. Queríeis saber ‘como era aqui fora.’”11
Os poemas que ficaram de fora desse livro, acrescidos a outros que compostos nos anos seguintes,
foram reunidos na segunda obra de Bandeira, Carnaval, publicada em 1919.

Poesia da penumbra
De acordo com Rodrigo Otávio Filho12, o termo penumbrismo vem de um artigo de Ronald de
Carvalho sobre o livro de Ribeiro Couto O jardim das confidências. O artigo se intitula Poesia da
penumbra e afirma – com exagero, segundo Filho – que no Brasil “a poesia era pura eloquência” e que o
poeta que desejasse triunfo rápido “tinha que se transformar num pirotécnico hábil, capaz de pôr bichas e
bombas chilenas nos seus endecassílabos, buscapés, salta-moleques nas suas redondilhas, foguetes de
assobio nos seus alexandrinos.”
Rodrigo Otávio Filho comenta longamente o artigo de Ronald de Carvalho, diz que:
Felizmente, outra é a entonação de seu pensamento quando, referindo-se ao livro de
Ribeiro Couto, confessa a existência de alguns artistas bastante corajosos, que chegam a
trocar o verso reluzente e a rima fatal por uma entidade quase metafísica, desconhecida
da maioria dos nossos versejadores oficiais. São, continua Ronald, poetas tentados pela
sombra, fascinados pelo mistério. A sombra e o silêncio influenciam a verdadeira poesia
nova do Brasil, e “o brilho do mundo contingente não encontra um eco favorável.”13
Para ele, não foram poucos os poetas brasileiros que “durante uma certa época, andaram esquecidos
de que viviam em uma terra de sol e céu azul”. Otávio Filho defende que esses poetas, “animados pelos
sentimentos de uma mocidade livresca, perguntavam à poesia: quando serás penumbra? E a ela
entregaram-se de corpo e alma”.
O estudioso, porém, não acredita na existência de uma escola penumbrista. Ele afirma que, em vez
disso, houve “uma atitude, um movimento emocional, uma coincidência temática, tendente a um acentuado
intimismo poético”:
[...] que pode ser definido numa tentativa de enquadramento em nossa história literária
como nítido exemplo de literatura de transição ou intermediária. Foi uma espécie de
flecha de vôo lento que, vindo de um decadentismo um tanto mórbido, influenciada por
certo nefelibatismo passageiro, e por hermetismo que esteve em moda, atravessasse
brilhantemente a zona simbolista para, ao fim do vôo, criar e alimentar o modernismo14.

Norma Seltzer Goldstein15 diz que o penumbrismo foi “mais tendência poética do que grupo
propriamente dito” e que se caracteriza [...] por uma melancolia agridoce, pelos temas ligados ao
quotidiano, por uma morbidez velada – atitude doentia de perplexidade em face do progresso e da
técnica, traduzida, no plano afetivo, por uma atenuação dos sentimentos.
Goldstein classifica o Manuel Bandeira dos dois primeiros livros como o principal poeta do
penumbrismo. Ela constata que uma leitura cuidadosa de As cinzas das horas permite perceber que a
maioria dos poemas está:
[...] dentro do universo crepuscular, marcado pelos efeitos de atenuação, pela atitude
contemplativa, pelas horas de penumbra, pelo tom melancólico. Também a maioria
apresenta regularidade de composição e certos recursos retóricos de sabor clássico ou
parnasiano.16
Sobre Carnaval, ela afirma que “no plano formal predominam a regularidade e os torneios retóricos.
No plano temático, reina a atmosfera crepuscular.”17

Alguma (s) poesia (s)


Vamos agora ver como as características citadas se evidenciam em dois poemas de A cinza das
horas. Escolhi este livro – e não Carnaval – porque é, sobretudo, nele que a linguagem do poeta é
“decadista e ‘crepuscular.’”18 Em Carnaval, o eu lírico ainda gosta da penumbra, mas se disfarça um
pouco, sendo “um ‘Clown lastimoso’, que esconde sua angústia sob as máscaras.”19
O primeiro poema a ser analisado é Imagem:

És como um lírio alvo e franzino,


Nascido ao pôr-do-sol, à beira d’água,
Numa paisagem erma onde cantava um sino
A de nascer inconsolável mágoa...
A vida é amarga. O amor, um pobre gozo...
Hás de amar e sofrer incompreendido,
Triste lírio franzino, inquieto, ansioso,
Frágil e dolorido...20

O poema traz implícito o mito de Narciso. Fala de um lírio nascido à beira d’água, alguém que há de
amar e sofrer incompreendido, fala de alguma forma de um amor impossível, o amor, o desejo por si
mesmo. Dito isso, logo se nota o tom melancólico.
Na antologia Testamento de Pasárgada, o organizador, Ivan Junqueira, coloca Imagem na subdivisão
temática O amor e as mulheres. Junqueira usa biografismo para explicar a melancolia contida nos
versos.
[...] na poesia de Bandeira, a morte e o amor muitas vezes se tangenciam, adquirindo a
partir daí a condição de acontecimentos cruciais na vida do autor, que apenas através
deles conseguia evadir-se daquela existência que lhe foi sempre madrasta.21
O fato é que em Imagem “a vida é amarga”, o sol se põe, dando lugar à penumbra “numa paisagem
erma, onde cantava um sino”.
Imagem também é um poema que – como o próprio penumbrismo – atravessa a zona simbolista.
Pois:
Propício ao surgimento da melancolia e da monotonia (palavras-eixos do léxico do
Simbolismo, onde se transformam, a partir do próprio Baudelaire, em verdadeiros
emblemas da angústia moderna), o tédio, que em A cinza das horas cai até dos telhados.22
E principalmente:
À tradição do Simbolismo-Decadentismo filia-se, por outro lado, uma parte
considerável do léxico do livro, sobretudo na série nome/verbo/adjetivo: névoa, lírio,
harmonia, crepe, espirais, nevrose, crânio, luar, tédio, ermo, círio, cinza, etc...23
Neste poema, também se encontram vários mandamentos simbolistas, como o a sugestão cromática (o
desalento é expresso nas meias-tintas crepusculares), a justaposição cumulativa (os versos finais – “Lírio
franzino, inquieto, ansioso/ Frágil e dolorido” – apresentam seis adjetivos na sequência), alegorias
pessimistas e os esboços de atmosfera vaga.
Percebem-se essas tonalidades fugidias “típicas da escola simbolista ao influxo da qual se formou o
nosso poeta, manifestam-se com maior força nas cenas de fim de tarde, quando o sol, no recolhimento do
poente.”24
Agora vamos ao segundo poema escolhido – O inútil luar:

É noite. A Lua, ardente e terna,


Verte na solidão sombria
A sua imensa, a sua eterna
Melancolia . . .
Dormem as sombras na alameda
Ao longo do ermo Piabanha.
E dele um ruído vem de seda
Que se amarfanha . . .
No largo, sob os jambolanos,
Procuro a sombra embalsamada.
(Noite, consolo dos humanos!
Sombra sagrada!)
Um velho senta-se ao meu lado.
Medita. Há no seu rosto uma ânsia . . .
Talvez se lembre aqui, coitado!
De sua infância.
Ei-lo que saca de um papel . . .
Dobra-o direito, ajusta as pontas,
E pensativo, a olhar o anel,
Faz umas contas . . .
Com outro moço que se cala,
Fala um de compleição raquítica.
Presto atenção ao que ele fala:
— É de política.
Adiante uma senhora magra,
Em ampla charpa que a modela,
Lembra uma estátua de Tanagra.
E, junto dela,
Outra a entretém, a conversar:
— “Mamãe não avisou se vinha.
Se ela vier, mando matar
Uma galinha.”
E embalde a Lua, ardente e terna,
Verte na solidão sombria
A sua imensa, a sua eterna
Melancolia...25
Sem dúvida, percebemos em O inútil luar características penumbristas. O eu-lírico, por exemplo,
mostra uma atitude contemplativa, e o poema fala da noite, tudo ocorre à meia-luz. Além disso, reina a
melancolia.
Estamos longe dos versos livres, uma vez que há uma regularidade métrica e fônica, um ritmo
marcado pela repetição e pelo emprego de rimas.
Pode-se dizer que o poema se encaixa claramente no “ciclo de 1917, dominado pelo binômio
cinéreo/funéreo, de matiz romântico-simbolista com tonalidade parnasianas.”26
Porém também há aqui algo do modernismo posterior do poeta. Não é exagero afirmar que em Inútil
luar “Dentro desses esquemas e tendências [...] sobressai de vez em quando a ainda tímida (mas já
tangível) originalidade de Bandeira.”27
Aqui se trata de um Bandeira que já assume “uma posição livre diante dos materiais tão heterogêneos
com que trabalha”, mesmo que esses materiais e essa liberdade não estejam tão evidentes, e o resultado
esconda “o jogo com os materiais alheios ou estranhos.”28
Peguemos o seguinte trecho: “Outra a entretém, a conversar:/ — Mamãe não avisou se vinha./ Se ela
vier, mando matar/ Uma galinha”.
Transparece aqui a coloquialidade, o que faz Maria Helena Camargo Regis afirmar que:
Este poema, publicado em 1917, já manifesta características que vão revolucionar a
poesia brasileira: a presença da linguagem coloquial, a valorização do cotidiano, a
representação do receptor como meio de figurar a língua oral e outros fatos de estilo, até
então inadmissíveis na obra literária, sobretudo em verso.29
Somente resta concordar com ela.

Frouxas amarras
A título de conclusão, podemos afirmar que os dois primeiros livros de Manuel Bandeira – A cinza
das horas (1917) e Carnaval (1919) formam um conjunto quase uniforme “dada a similaridade de suas
características: predominância de traços penumbristas acrescidos da ‘máscara’, em Carnaval.”30
Nestes livros, podemos falar de um poeta com características diversas das que consagrariam o
Manuel Bandeira modernista. Esse outro Bandeira tem a “expressão de um escrever ‘Art Nouveau’ que
foi primacialmente o dele antes da adoção ‘oficial’ do discurso modernista.”31
Em A cinza das horas e Carnaval notam-se versos com amarras da versificação regular, nas quais “o
lirismo escolhia não só as formas fluidas de expressão, como empregava, também, os modelos graciosos
da tradição portuguesa, tudo com a marca inconfundível da vossa personalidade, que era um secreto
acento de pudor e ironia.”32
São livros que fazem parte de um “lento processo de assimilação da experiência poética, até o
progressivo domínio das palavras”33. Trata-se de um Manuel Bandeira cujo caráter variado,
“combinando elementos temáticos e formais, e podendo resultar até da interferência de linguagens de
outras artes, não fica decerto evidente desde o início.”34
Porém devemos considerar também que o Bandeira modernista, que desentranha a poesia do
cotidiano, o poeta do alumbramento, o que não faz cerimônia para usar a linguagem coloquial, esse poeta
está prenunciado desde o primeiro livro, já que:
[...] alguns textos apresentam inovações rítmicas, ora já avançadas (versos livres), ora
prenunciadoras do Modernismo (tensão rítmica, deslocamentos de acento, versos
polimétricos). De modo discreto, permanece a temática do quotidiano – tratada com o
aprofundamento característico de Manuel Bandeira –, vazada em tom coloquial.35
O exemplo é O inútil luar. A análise deste poema mostra que “embora seja a partir do livro O ritmo
dissoluto, publicado em 1924, que se tornou mais frequente a presença da linguagem coloquial e popular
na poética de Manuel Bandeira, já no livro A cinza das horas, de 1917, se percebe esta tendência”36.
Em Apresentação da Poesia Brasileira, Manuel Bandeira, falando sobre Murilo Mendes, diz que a
concepção da poesia como um “estudo” que nunca se conclui e, uma vez publicada, se oferece a outros
poetas como matéria de recriação. Também se pode aplicar esse raciocínio a ele próprio, então os versos
de seus primeiros livros serviram a ele como estudo e matéria de recriação para sua maturidade artística.

Referências
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Companhia das Letras, 1992.
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REGIS, Maria Helena Camargo. O coloquial na poética de Manuel Bandeira. Florianópolis: Ed. Da
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SAMPAIO, Maria Lúcia Pinheiro. História da poesia modernista. São Paulo: J. Scortecci, 1991.

Notas
1 ARRIGUCI, 1990, p. 53.
2 Ibid, p. 139.
3 PINHEIRO, 1991, p. 19.
4 Ibid, p. 19.
5 COELHO, 1982, p. 6.
6 Ibid, p. 22.
7 Ibid, p. 7
8 COELHO, 1982, p. 23.
9 BOSI, 1982, p. 332.
10 COELHO, 1981, p. 23.
11 COUTO, 1960, p. 66.
12 FILHO, 1970, p. 71.
13 Ibid, p. 71-73.
14 Ibid, p. 73.
15 GOLDSTEIN, 1983, p. 5.
16 Ibid, p. 97.
17 Ibid, p. 107.
18 COELHO, 1982, p. 7.
19 COUTO, 1960, p. 67.
20 BANDEIRA, 2008.
21 JUNQUEIRA, 2003, p. 212.
22 COELHO, 1982, p. 16.
23 Ibid, p. 19.
24 Ibid, p. 17.
25 BANDEIRA, 2008.
26 COELHO, 1982, p. 13.
27 Ibid, p. 13/14.
28 ARRIGUCI, 1990, p. 141.
29 REGIS, 1986, p. 18.
30 GOLDSTEIN,1983, p. 110.
31 COELHO, 1981, p. 6/7.
32 COUTO, 1960, p. 67.
33 ARRIGUCCI, 1990, p. 125.
34 Ibid, p. 141.
35 COELHO, 1982, p. 107.
36 REGIS, 1986, p. 17.
A ROSA DO POVO, DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE:
POESIA E ESPERANÇA EM TEMPO DE GUERRA
Anna Faedrich MARTINS
A poem needs understanding through the senses. The point of diving in a lake is not
immediately to swim to the shore but to be in the lake, to luxuriate in the sensation of
water. You do not work the lake out. It is an experience beyond thought.
Poetry soothes and emboldens the soul to accept mystery.
John Keats
Quando vi que a proposta dos ensaios era “poesia em tempo de Guerra”, minha primeira reação,
ingênua, foi a de me questionar como eu escreveria sobre uma poesia produzida no Brasil, com esta
temática, se, aqui, nós não tivemos a experiência da Guerra. Além disso, sempre ouvimos dizer que os
brasileiros não têm o sentimento da Guerra, da dor e do desespero vivenciados em outros continentes,
principalmente o europeu. O horror daqueles que carregam consigo o trauma da catástrofe e do absurdo
nunca é associado aos brasileiros, os cordiais brasileiros, que, aparentemente, não compartilham desse
sentimento.
No entanto, ao longo do estudo sobre poesia brasileira, em especial, Cecília Meireles, Carlos
Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Murilo Mendes, vimos que o sofrimento e as
consequências da Guerra estão presentes na lírica produzida no País. O sentimento da Guerra pode
aparecer de maneira implícita ou explícita nos poemas. Cecília Meireles (1901-1964), conhecida por
suas belas e suaves canções e pelo plano transcendental presente em sua lírica, também trata de situações
mais concretas da vida, num viés crítico e, até mesmo, sociopolítico. Em “Lamento do oficial por seu
cavalo morto”, Cecília condena a Guerra, o uso de armas e de tecnologia para fins de destruição:
Nós merecemos a morte,
porque somos humanos
e a guerra é feita pelas nossas mãos,
pela nossa cabeça embrulhada em séculos de sombra, por nosso sangue estranho e
instável, pelas ordens que trazemos por dentro, e ficam sem explicação.
Criamos o fogo, a velocidade, a nova alquimia,
os cálculos do gesto,
embora sabendo que somos irmãos.
Temos até os átomos por cúmplices, e que pecados
de ciência, pelo mar, pelas nuvens, nos astros!
Que delírio sem Deus, nossa imaginação!
E aqui morreste! Oh, tua morte é a minha, que, enganada, recebes. Não te queixas. Não
pensas. Não sabes. Indigno, ver parar, pelo meu, teu inofensivo coração.
Animal encantado – melhor que nós todos! – que tinhas [tu com este mundo dos homens?
Aprendias a vida, plácida e pura, e entrelaçada
em carne e sonho, que os teus olhos decifravam...
Rei das planícies verdes, com rios trêmulos de relinchos...
Como vieste morrer por um que mata seus irmãos!

Já Murilo Mendes (1901-1975), no poema “Lamentação”, mostra a perplexidade e o desespero face


à falta de esperança, à falta de perspectiva de uma saída, num mundo onde o próprio homem constrói a
sua algema:
Nenhum homem tem mais saída:
Antes de nós o dilúvio.
Durante, o tédio no caos.
Depois, o épico escuro.
O desespero desespera
Os olhos não são para ver
Nem os ouvidos para ouvir.
O diálogo virou monólogo,
Meio-dia é meia-noite.
Todos curvados constroem
Suas próprias algemas
O grande ai das criaturas
Sobe para o céu
Forrado de espadas.

A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) é um livro composto por 55
poemas, escritos no período de 1943 e 1945 e publicado em 1945, momento crítico pelo qual o mundo
passava. O contexto é de tensão, de Segunda Guerra Mundial (1939-1945), campos de concentração,
judeus torturados, milhares de mortos, combates, pessoas perseguidas, invasões, etc. No Brasil, o
contexto é de Ditadura Militar, transcorria o período do Estado Novo, antecedido pela Era Vargas, pelo
constante progresso da cidade e pela modernização.
Este é o livro de poemas de Drummond mais aclamado pela crítica literária, talvez por sua intensa
reflexão sobre o tempo de Guerra pelo qual o mundo passava, sendo esta uma poesia que pode ser
considerada de caráter social. Entretanto, creio que tais afirmações categóricas, como “o melhor e mais
significativo poeta jamais surgido na língua portuguesa do Brasil lança aquele que será, para sempre, seu
mais importante livro, A rosa do povo”1, são perigosas, pois desmerecem as demais produções líricas do
poeta, bem como se restringem a uma valorização extrema da análise social do poema, não levando em
consideração que, mesmo em A rosa do povo, a poesia de Drummond supera qualquer tentativa de
reducionismo, uma vez que sua poesia é uma verdadeira explosão de sentidos. Conforme T. S. Eliot
(1972), o poema, aqui, pode significar muito mais do que aquilo que o próprio autor tinha consciência.
Percebe-se em A rosa do povo uma variedade temática, marcada pela metalinguística, pela reflexão
existencial, pelo cotidiano, pelo passado, pelo amor, pela celebração dos amigos, pela paródia, entre
outros temas. Entretanto, tal variedade temática volta-se, sempre, para o sentimento da Guerra, que,
quando não está explicitamente colocado, aparece nas entrelinhas, repercutindo na interioridade do eu
lírico, que sente e sofre diante da crise mundial.
Os dois primeiros poemas, “Consideração do poema” e “Procura da poesia”, são reflexões do
sujeito lírico sobre o próprio fazer poético. A abertura do livro com esses dois poemas metalinguísticos
é uma escolha significativa para o todo da obra. No primeiro, Drummond apresenta uma ruptura com a
poética tradicional, uma vez que não acredita mais no sentido vazio da rima entre as palavras sono e
outono, por exemplo, saindo, assim, do lugar-comum poético:
Não rimarei a palavra sono
com a incorrespondente palavra outono.
Rimarei com a palavra carne
ou qualquer outra, que todas me convêm.
As palavras não nascem amarradas,
elas saltam, se beijam, se dissolvem,
no céu livre por vezes um desenho,
são puras, largas, autênticas, indevassáveis.2

A poesia enquanto tema na lírica drummondiana é uma expressão da preocupação do poeta sobre a
arte da poesia, o ofício de escrever, a estruturação do texto e o trabalho da linguagem lírica. Em a
“Procura da poesia”, o eu lírico utiliza o imperativo para refletir o que é a poesia através da negação do
que ela não é, do que não deve ser feito:
Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo, esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso
à efusão lírica.
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro são indiferentes.
Não me reveles teus sentimentos, que se prevalecem de equívoco e tentam a longa
viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.3

Os teóricos John Fletcher e Malcolm Bradbury observam a tendência do romance moderno em


preocupar-se com o caráter técnico e fictício do romance. Tal consciência sobre o fazer literário é
denominada, pelos de teóricos, de introversão: A forma não é um simples meio de manipular o conteúdo;
em certo sentido, ela própria é o conteúdo: a experiência gera a forma, mas a forma gera a experiência, e
é nos delicados cruzamentos entre as pretensões de totalidade formal e da contingência humana que
encontramos algumas das principais táticas e estéticas da ficção modernista.4
O mesmo procedimento que Fletcher e Bradbury analisam no romance modernista pode ser
associado ao aspecto moderno dos poemas de Drummond. O movimento de introversão na obra de arte
moderna é um de seus grandes temas, ou seja, a arte do próprio romance, dando à ficção um caráter
simbolista, o que obriga o leitor a entrar em sua forma e ir além do conteúdo: Na criação literária, a
experiência individual se transforma num ‘equivalente espiritual’; descobrindo-nos, desvelamos o mundo
artístico que se encontra dentro de nós. E, como é apenas pela arte que emergimos de nós mesmos, o
estilo de um escritor não é uma questão de técnica, mas uma visão ou uma totalidade simbolista.5
Face à variedade temática de A rosa do povo, o recorte de análise, aqui, será o poema “Visão 1944”.
Aparentemente, a relação do título com o poema propriamente dito é uma contradição. O título refere-se
à visão de uma determinada época, e o poema repete a cada nova estrofe a impossibilidade do eu lírico
em enxergar face à pequenez de seus olhos. O poema é composto de 22 estrofes de quatro versos cada,
chamadas de quadras ou quartetos, e, o início de cada estrofe é marcado pelo ritornelo, ou seja, o retorno
do verso “Meus olhos são pequenos para ver”. Tal repetição também é conhecida como refrão, que age
no poema de maneira a deixar a leitura mais tensa, chamar a atenção ao reforçar a ideia que nele
expressa e dar ritmo à sua composição formal.
O ritornelo “Meus olhos são pequenos para ver” pode, entre outras interpretações, reforçar o
sentimento de impotência e de insignificância do homem face à barbárie da guerra. O eu lírico sente-se
impotente ao ver o general escolhendo a próxima cidade a ser bombardeada, pois nada pode fazer para
impedir o horror e o sofrimento dos que são atingidos. A insignificância do homem é acentuada através
dessa repetição, pois tem a consciência de que, em alguns segundos, num bombardeio, pode virar pó,
assim como uma cidade inteira vira ruína. É uma situação de desespero, desvalorização da vida,
desumanidade:
Meus olhos são pequenos para ver
a massa de silêncio concentrada
por sobre a onda severa, piso oceânico
esperando a passagem dos soldados.
[...]

Meus olhos são pequenos para ver


o general com seu capote cinza
escolhendo no mapa uma cidade
que amanhã será pó e pus no arame.

“Meus olhos são pequenos para ver” também pode ser a expressão do desejo desse eu lírico de não
querer enxergar o que está acontecendo, de sentir-se contrariado, avesso à realidade, e, por isso, prefere
negá-la, rejeitá-la: Meus olhos são pequenos para ver
o transporte de caixas de comida,
de roupas, de remédios, de bandagens
para um porto da Itália onde se morre.
Os olhos do eu lírico são pequenos para ver o futuro, o que poderia acontecer caso as cidades não
estivessem sendo atacadas e a população não estivesse sendo perseguida, torturada e morta. O poema
expressa a repercussão da Guerra na interioridade do sujeito, no caso mais particular, como é o beijo
cancelado de uma mulher, um beijo cancelado pelas granadas, pelos ataques, pelas mortes. A destruição e
o desespero são totais, e o poeta constrói imagens fortes, como a de um botão que se desfolhará no céu e
a dos peixes que convivem silenciosamente com os destroços humanos afundados no mar, tal como a do
beijo cancelado, que nos levam à percepção intensa da tensão da época:
Meus olhos são pequenos para ver
o corpo pegajento das mulheres
que foram lindas, beijo cancelado
na produção de tanques e granadas.

[...]

Meus olhos são pequenos para ver


na blusa do aviador esse botão
que balança no corpo, fita o espelho
e se desfolhará no céu de outono.
Meus olhos são pequenos para ver
o deslizar do peixe sob as minas,
e sua convivência silenciosa
com os que afundam, corpos repartidos.

Assim, percebemos que a poesia social de Drummond não se trata meramente de uma denúncia social
ou do registro de uma crise mundial. Também a significação do seu poema escapa à paráfrase, de acordo
com Eliot, ela “pode ser algo muito maior do que o propósito consciente de seu autor, e algo afastado de
suas origens.”6 Para Eliot, se a poesia nos toca, ela significa algo. E, lendo “Visão 1944”, posso me
sentir tocada mesmo que eu não tenha a experiência da Guerra, pois “o poema significa mais do que o
discurso comum pode significar”, a poesia, segundo Eliot, “tenta exprimir algo além daquilo que é
expresso na prosa”, ela permanece da mesma forma uma pessoa falando a outra, e isso também é
verdadeiro na canção.
Eliot afirma que cantar é outro modo de conversar, por isso, ao falar da musicalidade da poesia, o
teórico e poeta inglês dá ênfase à conversação. A musicalidade, por sua vez, não existe à parte do seu
significado e a poesia tem de ser a que está latente na fala comum de sua época. Para Eliot, o poeta é um
escultor dessa linguagem da conversa, ele não a reproduz, mas sim encontra nela o material de sua
poesia. É interessante quando o poeta inglês afirma que a musicalidade do verso não está em cada linha,
mas no poema como um todo, há, nele, a musicalidade de imagens, bem como de sons, exatamente como
vimos no poema “Visão 1944”, em que tanto a repetição do primeiro verso, o ritornelo, quanto a
construção de imagens compõe esse “outro modo de conversar” da canção, ou seja, a significação do
poema.
Os olhos do eu lírico são pequenos para ver, mas veem. Esta é a revelação final do poema. Podemos
dizer que, em sua maioria, os finais dos poemas de Drummond são surpreendentes, no sentido de
provocar surpresa, como uma quebra no sentido do que vinha sendo dito. Há neles uma revelação ou um
profundo lirismo que é fundamental para o seu todo. Essa revelação parece contraditória, uma tensão
entre o intenso pessimismo e a esperança revelada nos últimos versos. No final de “Visão 1944”, surge
uma esperança com um “outro mundo”. E é um outro mundo que brota em meio ao sangue, à sujeira. Um
mundo que brota da lama, como a flor de lótus, que o poeta refere no poema pelo termo científico
“nelumbo”.
Os olhos do eu lírico são pequenos demais para ver uma porção de coisas, entretanto, no final, existe
um “outro mundo”, símbolo de esperança, que os olhos conseguem ver, querem ver, e eles “veem,
pasmam, baixam deslumbrados”:
Meus olhos são pequenos para ver
essa mensagem franca pelos mares,
entre coisas outrora envilecidas
e agora a todos, todas ofertadas.
Meus olhos são pequenos para ver
o mundo que se esvai em sujo e sangue,
outro mundo que brota, qual nelumbo
– mas veem, pasmam, baixam deslumbrados.

Esse mesmo procedimento pode-se encontrar em “A flor e a náusea” e “Morte do leiteiro”, por
exemplo, poemas do mesmo livro. No primeiro, uma flor rompe o asfalto, fura o tédio, o nojo e o ódio. A
flor é uma dose de esperança face à crise cotidiana experienciada no poema:
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Em “Morte do leiteiro”, o desfecho cruel do poema, em que o leiteiro, trabalhador inocente, é


confundido com um ladrão e assassinado pelo dono da casa onde entregava o leite todas as manhãs, é
marcado pela junção das cores do sangue e do leite, que, ao se misturarem, transformam-se em tom rosa,
o terceiro tom, o qual o eu lírico chama de aurora:
Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.

A rosa do povo é uma obra que é considerada, por muitos, “datada”, isto é, registra uma época, faz
parte de um contexto histórico-social marcado. Entretanto, se considerarmos a missão da poesia,
conforme os apontamentos de Marcel Raymond7, como uma permissão ao eu escapar a seus limites e
dilatar-se até ao infinito, ou seja, apreender os sentidos através de uma realidade complexa, vemos que a
poesia de Drummond vai além da representação da crise mundial. Há, isso sim, uma subjetivação do
sentimento humano face à Guerra. É a dor e o sofrimento do eu lírico que compõem o poema, assim como
o sentimento de esperança que surge a cada desfecho. Sendo assim, a repercussão do dado social na
interioridade do sujeito permite ao poema o seu aspecto atemporal.
José Guilherme Merquior chama de “astúcia da mimese” o procedimento que permite à
representação singular a significação universal, uma vez que “a mimese poética é imitação das palavras,
que se refletem e se correspondem, antes mesmo de ser representação de algo externo.”8 Merquior
percebe que tal astúcia da mimese não concerne apenas ao lírico, mas sim a todos os gêneros literários:
“é o modus operandi da literatura em geral”. Sendo assim, ela indica “a causa final do literário, que
guarda o segredo da universalidade das suas obras”9, ou seja, promove o aspecto atemporal da poesia,
isto é, interessa aos homens em qualquer tempo e lugar.
Se formos pensar no nosso contexto atual, Brasil, ano de 2010, o Rio de Janeiro tem passado por
uma experiência de Guerra. A ocupação das favelas por parte da integração da Polícia Civil, Militar e
das Forças Armadas tem causado um momento de profundo pânico e terror. Dessa forma, o sentimento de
impotência e de insignificância do homem, expresso no poema “Visão 1944”, é um sentimento universal e
atemporal, pois, mais de 50 anos depois, podemos ler esse poema, sentindo e reconhecendo na dor do eu
lírico a nossa própria dor, a nossa perplexidade em frente à violência e à desumanização.
“Visão 2010” foi uma paródia despretensiosa que fiz do poema de Drummond. Ao incluir essa
paródia aqui, a minha intenção é mostrar que a poesia de Drummond mantém um diálogo com os nossos
tempos atuais. Esse diálogo só é possível porque, mesmo um lirismo social e político, que o poeta
pratica na tentativa de superação do lirismo individual, conforme Antonio Candido observa quando fala
das inquietações do Drummond, esse cantar “se torna realmente geral porque é, ao mesmo tempo,
profundamente particular.”10

Visão 2010

Meus olhos continuam pequenos para ver


chuva de balas, Rio em chamas
números de um balanço no jornal
que cresce, aumenta, espanta.
Meus olhos continuam pequenos para ver
carros blindados, subida no morro,
tiros para todo o lado
família em desespero.
Meus olhos continuam pequenos para ver
guerra contra os traficantes, contra o povo,
é na Vila Cruzeiro, é no Complexo do Alemão
é na cidade maravilhosa onde se morre.
Meus olhos continuam pequenos para ver
Números de sábado: 45 mortos, 99 veículos incendiados, 192 prisões, 2 toneladas de
drogas apreendidas.
Pequenos para ver fuzis, metralhadoras, bombas, granadas.
Meus olhos continuam pequenos para ver
o nelumbo de outrora, o brotar da rosa, o alívio do povo.
A flor que é feia, mas nasce no enlodo.
- Não veem, blindados, resistem assustados.

É interessante observar a questão levantada por Merquior em relação ao fato de os estudos de


sociologia da literatura terem tomado por base a narrativa e não a lírica. Predominou, durante muito
tempo, a convicção de que o romance refletia a realidade enquanto a poesia era questão de “imaginação”.
Esta tendência nos estudos sobre lírica aconteceria “em virtude do fenômeno de interiorização que lhe
está na raiz”. Sendo assim, percebe-se que a lírica de Drummond reflete a realidade político-social, a
cultura e aspectos permanentes da vida humana. De acordo com Merquior, “para a análise literária,
convém discernir, entre essas várias dimensões do real, qual a mais favorecida pela mimese particular de
cada estilo e de cada obra.”11
O estudioso chama a atenção para a estrutura do poema, sem isolá-lo do mundo, revelando como o
poema se articula com a representação da existência: A fidelidade ao concreto e, de certo modo, a
própria mimese começam na articulação da estrutura verbal do poema. Um poema é uma mensagem
única, ainda que veicule conceitos abstratos (como na poesia sentenciosa) ou se componha de expressões
simples e diretas (como no caso da canção sem “imagens”). A disposição das palavras no poema
singulariza-as; o contexto poético neutraliza a generalidade que elas apresentam na linguagem casual. Daí
o estabelecimento, entre o significado geral dos versos e a interação particularíssima dos elementos do
significante, de uma tensão viva, que já nos anos heróicos do formalismo russo se julgava capaz de
aguçar a percepção do real e captar em minúcia as suas linhas.12
Para os formalistas russos, renovar a percepção é um desejo de novidade pela fuga do racional, da
vida mecânica, da automatização do pensamento. É o que eles denominam de estranhamento. Se o mundo
moderno faz com que as coisas percam o sabor, cabe à arte devolvê-lo. Tal recriação linguística está
ligada à poesia pura, ao voltar para uma língua antes de babel, ao sentido original da língua, que se
perdeu na automatização da modernidade. Guimarães Rosa, em diálogo com Günter Lorenz, diz que
“Somente renovando a língua é que se pode renovar o mundo”. Assim, a forma adquire, por sua vez, um
objetivo ético de resgatar o valor da vida.
Roberto Said, ao analisar a poesia de Drummond, observa o fluir constante do passado no presente:
“[...] como se nessa escrita passado e presente fossem menos dois momentos sucessivos no tempo, que
elementos coexistentes, como se o passado não parasse de passar, como se não parasse de ser no
presente.”13 Dessa forma, podemos dizer que tal movimento marca a tensão viva da lírica
drummondiana, que permite ao leitor de “Visão 1944”, hoje, ler e sentir a angústia e a insignificância do
homem face às consequências da Guerra; a sua impotência diante do massacre, do poder e das
tecnologias que permitem a destruição total. Por outro lado, também é possível reconhecer o sentimento
de esperança que brota, inesperadamente, como uma flor no meio da sujeira e do horror, tal como a
poesia e a sua função, que alivia o povo da crise mundial – talvez por vislumbrar o final da Guerra – e
existencial.

Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. 41. ed. Rio de Janeiro: Record, 2008.
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 3. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
ELIOT, T. S.. Musicalidade da poesia. Em: A essência da poesia. Tradução Maria Luiza Nogueira. Rio
de Janeiro. Artenova, 1972.
FLECHTER, John & BRADBURY, Malcolm. O romance de introversão. Em: BRADBURY, Malcolm &
MACFARLANE, James (org.). Modernismo: Guia Geral. São Paulo: Cia das Letras, 1989.
LORENZ, Günter. Diálogo com Guimarães Rosa. Em: Guimarães Rosa. COUTINHO, Eduardo (Org.).
Coleção Fortuna Crítica. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.
MERQUIOR, José Guilherme. A astúcia da mímese. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.
RAYMOND, Marcel. De Baudelaire ao surrealismo. Tradução Fúlvia M. L. Moretto & Guacira
Marcondes Machado. São Paulo: EDUSP, 1997.
SAID, Roberto. A angústia da ação: poesia e política em Drummond. Curitiba: Editora UFPR; Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2005.

Notas
1 FISCHER, Luis Augusto. Em: Leituras Obrigatórias: Vestibular da UFRGS 2001-2002. Porto Alegre:
Novo Século, 2000, p. 127.
2 ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 21.
3 Ibid, p. 24.
4 FLETCHER & BRADBURY, 1989, p. 325.
5 Ibid, p. 330.
6 ELIOT, T. S. Musicalidade da poesia. Em: A essência da poesia. Tradução Maria Luiza Nogueira. Rio
de Janeiro. Artenova, 1972, p. 49.
7 RAYMOND, Marcel. De Baudelaire ao surrealismo. Tradução Fúlvia M. L. Moretto & Guacira
Marcondes Machado. São Paulo: EDUSP, 1997, p. 20.
8 MERQUIOR, José Guilherme. A astúcia da mímese. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p. 23.
9 Ibid, p. 26
10 CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 3. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995, p. 127.
11 MERQUIOR, José Guilherme. Op. Cit., 1997, pp. 32-33.
12 Ibid, p. 23.
13 SAID, Roberto. A angústia da ação: poesia e política em Drummond. Curitiba: Editora UFPR; Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2005, p. 41.
POESIA EM TEMPOS DE GUERRA:
A DESTRUIÇÃO, O DESESPERO E A GUERRA URBANA EM
“MORTE DO LEITEIRO”
Ana Paula Klauck
A Rosa do Povo é uma das obras mais importantes de Carlos Drummond de Andrade, especialmente
pelo envolvimento que o autor demonstra com o contexto histórico em que escreve seus poemas,
publicados em 1945. Muitos dos poemas de A Rosa do Povo apresentam uma temática claramente
referente aos acontecimentos que assolaram o mundo nos anos anteriores à obra. Trata-se de referências à
Segunda Guerra Mundial e ao obscuro período pelo qual passava a humanidade, que assistiu desesperada
aos horrores bélicos. Muitos estudiosos da obra de Drummond, por sua vez, afirmam que A Rosa do
Povo, mais do que envolver-se declaradamente com a Segunda Guerra Mundial, foi capaz de representar
o sentimento de medo e desespero que sentiam as populações urbanas brasileiras da época. Dessa forma,
até mesmo os poemas que não trazem notas diretas à guerra são permeados por temáticas de destruição,
terror e fragmentação do indivíduo, seja por ele estar inserido no recém consolidado meio urbano, seja
por viver em um mundo cujo momento histórico é violento e opressor. Em ambos os casos, o homem de
Drummond aparece como um ser derrotado, frustrado, destruído.
O pessimismo, dessa forma, penetra nos poemas da obra e aparece representado no homem, em sua
rotina e em seu meio. Também aparece nas cidades destruídas pela guerra ou naquelas ‘destruídas’, de
alguma forma, pelo progresso e pelo caos urbano. Diante do contexto histórico em que vive, Drummond
se sensibiliza e leva os poemas ao máximo contato com a realidade presente, misturando o espaço urbano
com o tempo de guerra para falar do homem como um ser partido, inacabado. O autor parte da vivência
individual do homem inserido num contexto opressor para falar da humanidade e seu pesar e desespero
em relação ao seu momento histórico.
O poema “Morte do Leiteiro”, apesar de não tratar diretamente da temática da guerra, apresenta uma
atmosfera de incerteza, violência e medo, que aponta para a época em que foi escrito. Para verificarmos
a presença de tais aspectos, analisaremos o poema a seguir, de acordo com a existência de elementos e
imagens que apontem para tal direção.

Há pouco leite no país,


é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.
Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morador na Rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.
E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro...
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.
Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.
Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.
Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.
Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.1

O poema inicia falando sobre a escassez de leite no país e, em contrapartida, da sede abundante, que
gera a necessidade de ‘entregá-lo cedo’. Havendo a urgência da entrega, surge o leiteiro, cuja função é
descrita como das mais nobres, por ser ele o responsável em nutrir e alimentar os trabalhadores do país.
A expressão ‘é preciso entregá-lo cedo’, que se repete nos versos dois e quatro, reforça a
impessoalidade da tarefa. O eu-lírico não menciona que alguém especificamente deveria entregar o leite,
apenas que é necessário fazê-lo; ou seja, nao importa quem o faça, contanto que seja feito. A figura do
leiteiro, assim, surge como alguám despido de personalidade, caracterizado pela sua profissão e
eficiência, o que é enfatizado na segunda estrofe do poema. O leiteiro, logo nesses primeiros momentos,
começa a ser moldado com características semelhantes a dos soldados da guerra, o que será enfatizado
nas estrofes seguintes, principalemente pela importância que é atribuída à sua tarefa na luta diária pelo
trabalho e pela sobrevivência.
Ainda na primeira estrofe, observamos a construção do espaço em que o eu-lírico situa os
personagens do qual vai falar no texto. Além da sede, o país também tem um costume, uma regra apócrifa,
de que as ameaças devem ser eliminadas com tiros, ou seja, com violência. Nessa primeira estrofe, o eu-
lírico caracteriza o país de duas formas: pela sede (escassez) e pelo medo, ambos decisivos no desfecho
trágico do leiteiro. Mais do que isso, essa primeira insere a narrativa2 do poema em um ambiente de
insegurança, de medo e de ameaça: na mesma medida, há a escassez e o ódio contra aqueles que tentam
usurpar o pouco que há.
Na estrofe que segue, vemos que o eu-lírico caracteriza o leite como um elixir que traz força e
vontade de lutar ao trabalhador em sua guerra urbana. O leite é um tônico (“o leite mais frio/ e mais alvo
da melhor vaca / para todos criarem força / na luta brava da cidade”) que habilita os homens a viver e a
sobreviver. O cenário descrito é de uma batalha urbana, para a qual o homem só está preparado quando
tem acesso ao precioso alimento, que também é seu alento, sua força. Com tal descrição do leite, o papel
do leiteiro no texto se eleva e ele se torna uma espécie de porta-voz da esperança, um portador da força,
da segurança que tanto é escassa em um país com tanta sede. Da mesma forma, nessa estrofe, podemos
observar que aquela comunidade que serve o leiteiro não é a sua (“e veio do último subúrbio”); em
outras palavras, é tão nobre sua tarefa de levar o leite às famintas bocas da sociedade, que ele deve vir
de outras terras, o que exalta ainda mais o difícil trabalho do jovem. O leite surge como a esperança que
o leiteiro devolve às pessoas. Mais uma vez, o leiteiro pode ser aproximado com um soldado: enquanto a
população dorme, ele tem a importante tarefa de supri-la com segurança, com alento, com força para que
ela possa continuar a viver. Enquanto o leitero se arrisca por territórios inóspitos, o povo dorme, na
certeza de eficiência do leiteiro/soldado focado em sua função.
Nessa mesma estrofe, também observamos que o eu-lírico nos dá uma pista sobre o caráter daqueles
que recebem o leite das mãos do leiteiro. Sua profissão é nobre, mas aqueles a quem serve nem sempre o
são, segundo o julgamento da voz que narra (“leite bom pra gente ruim”).
Na estrofe seguinte, algumas características sobre o leiteiro aparecem, em uma tentativa de
humanizar aquele que fora tratado até então apenas pela sua alcunha profissional. O eu lírico, porém, faz
questão de dizer que o moço que entrega leite, embora tenha suas particularidades, é “ignaro”, ou seja,
não tem consciência de si, da importância de sua tarefa ou da exatidão de seus atos. Ele realiza seu
trabalho sem ter tempo de pensar sobre ele (“não tem tempo de dizer / as coisas que lhe atribuo”), apenas
com o intuito de ‘deixar a mercadoria’. O leiteiro, mais uma vez, assim como na estrofe anterior, aparece
como um ser deslocado, estrangeiro (“ignaro / morador da rua Namur”), alguém que desconhece, mas que
também é desconhecido. O leiteiro realiza altivo trabalho, mas, ainda assim, ninguém está interessado em
conhecê-lo ou ele de conhecer o lugar onde está ou aqueles a quem serve. A pressa do rapaz (“e já que
tem pressa”) também reforça sua característica servil e sua não necessidade de pensar ou compreender
sua condição. A idade do rapaz também denuncia sua falta de consciência sobre a tarefa que realiza: ele
tem apenas 21 anos, é jovem e inexperiente, cumprindo apenas uma obrigação que lhe foi atribuída e que
nada a ele representa se não um trabalho a ser feito. Da mesma forma, o jovem é chamado à guerra e tem
que deslocar-se para outros territórios, em uma luta que pouco tem a ver com seus ideais e cujos motivos
ou justificativas ele desconhece.
A quarta estrofe retoma os versos que iniciam o poema (“há pouco leite no país / [...] ladrão se mata
com tiro”), pois remonta a insegurança e a incerteza na qual se insere o homem naquele momento. Os
versos falam sobre pessoas que desejam o leite daqueles servidos pelo leiteiro e, por isso, volta e meia
se escondem nas portas dos fundos das casas para usurpar a mercadoria. Porém, esse mesmo cenário, os
fundos das casas, serve também como uma preparação para uma emboscada, cuja vítima será o leiteiro.
Trata-se de um beco, em cujo corredor segue o jovem, com seu passo leve, alheio às ameaças (assim
como um soldado inexperiente).
A quinta estrofe denuncia a inocente luta do leiteiro ante tamanhas ameaças que o cercam: ele não
sabe marchar, mas desliza, em silêncio, sutil, muitas vezes sendo surpreendido por obstáculos e inimigos
diversos (“passo errado / vaso de flor no caminho / cão latindo por princípio / ou um gato quizilento”),
devido a sua pouca vocação para a batalha que lhe foi atribuída. O eu lírico também fala daqueles
‘senhores’ que acordam, por algum barulho, mas que tornam a dormir na certeza de que se trata do
leiteiro, servindo-lhes leite, o elixir para a luta urbana. Os senhores voltam a dormir, pois sabem que o
leiteiro lhes traz segurança, tranquilidade pelas coisas estarem correndo conforme o esperado. Ou seja, a
fim de que o senhor possa dormir em sua cama, seguro e confortável, um outro tem que se arriscar, em um
horário inseguro, por terras desconhecidas, diante de obstáculos diversos. O leiteiro, ao sair para a
batalha matutina, garante um mínimo de tranquilidade em um mundo tão inseguro. Nesse ponto do poema,
também é possível perceber um conflito de classes, perpetrado nas ações do leiteiro versus as ações do
senhor que descansa. Nesse caso, um deve se sacrificar para o conforto do outro. Mais do que isso, a
desaproximação entre meio urbano (representado pela cidade perigosa e incerta) e meio rural
(representado pelo leite, sinônimo de tranquilidade) aparece como inevitável, já que as diferenças entre
ambos causam conflitos e medo.
Tais conflitos surgem quando um dos ‘clientes’ do leiteiro, influenciado pelo caos e pela violência
que se entrelaçam na rotina urbana, ao ouvir ruídos na madrugada, os relaciona aos ladrões que ‘infestam
o bairro’. No mundo urbano em que agora vivem os homens, a insegurança e o medo lhes tiram o sono e
não há mais lugar para uma relação de confiança entre morador e leiteiro. O homem que acorda
aterrorizado não concebe o leiteiro como um prestador de serviços, mas como um invasor da
propriedade. Esse homem é o inimigo que embosca o rapaz, aquele que nega a identidade do jovem
soldado e o vê apenas como uma ameaça. Nesse caso, cada um tem a seu favor a sua própria luta:
enquanto um defende a propriedade, outro trabalha para seu sustento. A forma como o leiteiro se dirige à
casa do homem que o vai assassinar remonta uma cena de batalha militar, na qual o mais fraco é
encurralado. Nesse emboscada, assim como na guerra, há quem esteja defendendo seu território e há o
que invade o território estrangeiro. Em ambos os casos, um desconhece o outro e acaba vencendo o que
está melhor armado, melhor preparado. O leiteiro, com juventude e seu passo leve, certamente não estava
preparado para esse embate urbano.
A sexta estrofe é marcada pelo assassinato do leiteiro e pela tentativa de remissão da culpa do
assassino. Nessa estrofe, os objetos ganham vida, a fim de ironicamente justificar a atitude do culpado: a
“arma salta da gaveta”, os “tiros liquidaram” – tudo gerado pelo pânico do morador que acordou
aterrorizado por ter sua propriedade maculada. O fato de os objetos “tomarem vida” e substituírem a
vontade humana, nesse caso, a arma e as balas, remetem à atmosfera de medo em que vive a comunidade
em questão. Os homens não têm total consciência da violência com que podem agir; mais do que isso, ao
responsabilizar as armas pelos atos do ser humano, o eu lírico aproxima a realidade do homem e a do
leiteiro à da guerra, na qual os soldados não têm juízo de todos os seus atos ou de como os seus atos de
violência atingirão o seu semelhante. Em uma situação de violência e ameaça, seja urbana, seja bélica, a
violência aparece como uma resposta automática, justificada, e anula qualquer subjetividade que possa
haver nas relações dos sujeitos em questão.
Nesse momento, novamente, o eu lírico se aproxima do leiteiro de maneira afetuosa ao chamá-lo de
“meu leiteiro”. Ele também reforça a ideia de que a vida do rapaz foi abortada, foi tomada antes do
tempo e que o jovem morreu em virtude da sua função, seu dever, já que ninguém conhecia outras
características que não fossem o fato de que era um leiteiro (“se era noivo, se era virgem se era alegre,
se era bom não sei / é tarde para saber”). Morreu, portanto, pela função que exercia, não havendo
importância alguma em saber como era sua personalidade ou sua vida.
Na sétima estrofe, o eu lírico dá voz ao assassino, mostrando o descaso e o cinismo com que ele lida
com o acontecimento. Nesse momento, o culpado, que antes pensava no invasor como “ladrão”, “gatuno”
ou como uma ameaça, passa a tratá-lo como “irmão”, “filho de meu pai”, “inocente”. Apesar de palavras
de um aparente arrependimento, o eu lírico resume o sentimento do assassino e sua justificativa para o
seu ato quando afirma “está salva a propriedade”. Essa estrofe trata de uma tentativa de “justiça” sendo
posta em prática: a morte, no entanto, não redime, não resolve, não se justifica depois de realizada. O
assassinato foi consumado de forma ‘acidental’ mas, nem por isso, exonera a culpa do assassino e
tampouco a do inocente. A morte, não obstante, aparece como justificada na situação de terror em que os
homens se encontram; a bala que sai da arma do homem, assim como na guerra, não distingue quem é
criminoso de quem é inocente, ela apena mata.
A afirmação de que “está salva a propriedade”, nessa perspectiva, representa a reificação pela qual
adentrava a humanidade no período de grande urbanização das cidades, bem como durante a guerra: a
terra é mais importante do que a vida; a ordem descaminha a subjetividade; a vida é desvalorizada e a
luta humana passa a ser pelas coisas e pela propriedade e não por si mesmo. No final da sétima estrofe,
vemos uma referência à noite, que é longa e demora em dar lugar à aurora. O tempo é de trevas, de
incerteza, de medo e a insegurança da noite faz agonizar aqueles que esperam pela manhã. O leiteiro,
nesse cenário, encontra-se “estatelado, ao relento / perdeu a pressa que tinha”. A manhã, assim como
leiteiro, perdeu a pressa de chegar e aos homens resta apenas a incerteza da noite.
A última estrofe, em contrapartida, vem aparentemente como um alento àqueles que assistem com
terror às caóticas cenas noturnas: ela anuncia a aurora, a luz, que vem redimir os homens e iluminar seus
medos. Nesse cenário, porém, o eu lírico reitera a reificação a que foram sujeitos os homens, afirmando
que, enquanto jazem o leiteiro e sua garrafa quebrada no chão, são os objetos que estão “confusos” e
“mal redimidos” e não os homens, mesmo ante tal cena aterradora. A “garrafa estilhaçada” e o “ladrilho
sereno”, nessa perspectiva, se opõem, um representando o caos da noite (a garrafa estilhaçada =
assassinato) e o outro a calma da manhã (serenidade). Outros elementos colaboram para essa oposição
que o eu-lírico constroi entre luz e escuridão, noite e dia, caos e tranquilidade: trata-se das duas cores
que “se procuram” – o vermelho, representando a violência e o caos e o branco, representando a
servidão, a inocência, o trabalho. Nesse momento da humanidade, esses elementos convivem,
confundindo e desorganizando o homem: no caos urbano e bélico, o sujeito perde sua identidade
subjetiva e fica deslocado em relação à objetividade da violência. As duas cores, unidas, formam um tom
diverso, o rosa, ou a cor da aurora – como chama o eu lírico.
A aurora, por sua vez, não aparece como um símbolo de esperança em relação à incerteza da noite.
Ela aparece como uma mistura melancólica da desilusão dos homens e, ainda, seu desejo por mudança. A
cor que se forma a partir da violência e da esperança é uma melancolia, que, ora mantém a incerteza dos
homens, ora liricamente os convida a continuar. O tom da aurora nasce da morte, da injustiça, do caos –
dos “objetos confusos / mal redimidos da noite”; surge do não arrependimento do assassino, da falta de
atitude dos moradores (já que, se tivessem removido o corpo do rapaz, a fim de prestarem-lhe socorro, o
sangue não permaneceria escorrendo e misturando-se ao leite e aos ladrilhos do chão), da não
estupefação diante da violência. A forma como o eu-lírico termina o poema, assim, mais do que um
reluzir de esperança ou um antever de um mundo melhor, demonstra a melancolia de um sujeito oprimido
por um mundo em terror e que tenta, por mais que as circunstâncias não colaborem, antever qualquer tipo
de mudança e, quiçá, de melhora.
A destruição, a obscuridade, a violência, nessa perspectiva, controem um poema cuja realidade é
semeada pela desconfiança e pela incerteza, sentimentos que povoam o homem em um cenário de guerra.
Adorno afirma que um poema não é feito de vivências meramente individuais ou de emoções
específicas de um sujeito; um poema é a universalização do que é individual, quando catalisado pela
experiência estética, e toma forma artística por deixar de representar apenas um homem, mas muitos, ou
todos. Diz o estudioso alemão: [...] O mergulho no individuado eleva o poema lírico ou universal porque
põe em cena algo de não desfigurado, de não captado, de ainda não subsumido e, desse modo, anuncia
por antecipação algo de um estado em que nenhum universal postiço, ou seja, particular em suas raízes
mais profundas, acorrente o outro, o universal humano. Da mais irrestrita individuação, a formação lírica
tem esperança de extrair o universal.3
Muitos poemas de Drummond seguem nesse caminho descrito por Adorno e partem de pequenas
experiências individuais para falar de sentimentos e emoções universais; é o caso do poema analisado
acima. “Morte do Leiteiro”, entre outros poemas de A Rosa do Povo, retrata uma sociedade desconfiada
e aterrorizada, disposta a tudo para se defender em tempos de incerteza. Essa perspectiva é representada,
conforme demonstramos acima, pelos fatos que ocorrem em uma comunidade, entre um leiteiro e seu
cliente. A compreensão dessa universalidade descrita por Adorno só ocorre quando o indivíduo está
inserido socialmente, ou seja, quando sofre dos males da humanidade junto com ela. Adorno acredita que
a linguagem media lírica e sociedade, pois subjaz ambas, e é capaz de expressar o sujeito objetivamente
e também convidá-lo à imersão, já que não objetiva comunicar.
Bernardinelli baseia-se em ensinamentos de Adorno e também acredita na força social da lírica
quando ela retrata as reverberações de um sujeito para falar dos cataclismas da humanidade. A lírica
imerge no homem, mas o faz vestida de linguagem poética, que transforma as objetividades em dualismos
e subjetividades. O homem resultado desse processo é todos os homens ou qualquer um. É a profunda
individuação, catalisada pela poesia, que gera a universalização da lírica. Diz Bernardinelli: A única
verdade ou autenticidade possível da lírica está em seu alheamento diante do suporte e da garantia dos
esquemas intersubjetivos por meio dos quais a socialização salva e subsume em si o indivíduo. É a
tomada de partido por uma ‘individualização implacável’ que permite à lírica exprimir sua mensagem e
sua verdade não manipulada do seu conteúdo social. [...] A lírica moderna fala de reificação, de anomia,
de risco de insensatez. Porém, justamente por isso, a autenticidade específica dessa lírica está em sua
objetiva declaração de impotência diante da existência petrificada e lacerada. A poesia não pode
recuperar esteticamente as condições da própria existência social. Não pode, com os meios de que
dispõe, superar a fratura entre indivíduo e sociedade e recomeçar de novo.4
Ao seguirmos os passos das teorias iniciadas por Adorno e Bernardinelli, observamos que a poesia
escrita por Drummond no início dos anos 40 comunicava-se com a sociedade ao demonstrar empatia e
provocar identificação. O mote, o impulso de mudança social gerado por essa poesia, partia de seu efeito
estético, das reverberações da realidade no homem que se vê, consciente ou inconscientemente, retratado
na arte. Para os dois teóricos, a lírica não se orienta por tentar mudar a realidade social por meio da
estética e da forma, pois o mundo real não coincide com o mundo poético: ambos estão em diferentes
patamares. São, no entanto, ligados inevitavelmente pelo elo dramático que insere o homem nos dois
âmbitos, como foi possível observar em nossa análise. A lírica expressa o mundo real, dá voz às
repercussões sociais e se liga à história de forma indelével. A poesia foge do real quando mergulha na
solidão humana, não sabendo que, assim, volta à sua inevitável realidade. Rancière, em semelhante
perspectiva, nos lembra que “O real precisa ser ficcionado para ser pensado”5.
Para podermos pensar na obra de Drummond e, mais especificamente no poema “Morte do Leiteiro”
como relacionados ao contexto em que o autor os escreve, vale recorrermos às considerações de Kate
Hamburger. A autora afirma que a vivência pode ser desencadeadora da construção lírica, mas nunca
aparece no poema exatamente como ocorreu. O poema não pode simplesmente representar a realidade,
afirma Hamburger6, pois, se assim o fizer, estará valorizando mais o objeto de que se fala do que a
linguagem, o poema em si. Um poema de qualidade, afirma a estudiosa, parte do real, mas se distancia
dele o suficiente para torná-lo universal e subjetivo. Em outras palavras, não se deve negar
completamente que o poema tem conexão com a realidade; da mesma forma, quando ele é ligado de
forma indelével a determinado contingente e não pode ser significado e reverberado fora dele, o texto
torna-se pobre, pouco passível de construção de imagens e sentidos e de pouco efeito estético. A
realidade que é referida no poema tem relação com o eu lírico que fala, mas é também manipulada de
forma a ter alguma relação com os homens que lerão esse poema, traduzindo-se em significados diversos.
Hamburger, assim como Bernardinelli, acredita que a realidade do poema não pode ser comparada a uma
realidade qualquer, mesmo “se esta for o núcleo da enunciação”7, pois está ela sempre aberta a sentidos
vários.
A poesia de Drummond dos anos 40, embora envolvida com o contexto histórico que inevitavelmente
abraçava os homens em todos os níveis da sociedade e de diversos países do mundo, foi pensada de
forma universal, representando realidades humanas permeadas por obscuridade e negativismo, não
necessariamente ligadas à Segunda Guerra. A solidão humana e a violência inerente às sociedades
urbanas, a intoxicação do indivíduo em meio a um mundo ameaçado e, mais do que isso, o desespero do
sujeito ante sua desconexão com o mundo em que vive são temáticas presentes nos poemas dessa obra,
inclusive naquele analisado anteriormente. “Morte do Leiteiro” adentra o momento histórico por meio de
representações das grandezas e das pequenezas da guerra e seus reflexos no coração e na vida dos
homens. Trata-se do individual ressoando o coletivo, das reverberações de um homem despedaçado e
cuja dor se sobrepõe à dor do universo. O homem e sua desilusão com o mundo infiltram-se no desenho
que Drummond faz da sociedade da época e, por tabela, da humanidade em geral. O eu-lírico em “Morte
do Leiteiro” vislumbra o caos e a tragédia que espreitam o homem na década em questão (e ainda o
fazem nos dias de hoje), ao escrever sobre uma pequena batalha humana e urbana, em uma comunidade
qualquer, que, assim como o resto do mundo, está envolvida em medo e desespero. Escreve Afonso
Romano de Sant’Anna: O surgimento do futuro na obra de Drummond se dá inicialmente através de uma
expectação trágica. Há uma apreensão em torno do destino individual e coletivo dos homens. O tom dos
versos nessa fase é apocalíptico. Fora iniciada a Segunda Guerra Mundial e o irromper violento do
nazismo, quebrando todas as fronteiras, surge como uma imagem da própria morte.8
Sant’Anna afirma em sua obra O Gauche no tempo que A Rosa do Povo é uma obra essencial para se
entender a poesia de Drummond, pois foi escrita em um momento em que o autor se mostra em guerra
com a realidade que o cerca: É o ponto em que o personagem (gauche) está na parte mais aguda de sua
luta aberta com a realidade. É o ponto crítico na travessia da náusea, o momento de descoberta do
“mundo grande”, onde o tempo é sentido em todas as suas irradiações.9
O autor acredita que, em tal fase, Drummond sentia-se demasiadamente preso ao contingente e sofria
por sentir o peso da destruição do mundo que o cercava. Segundo Sant’Anna, A Rosa do Povo conta a
caminhada do eu-lírico em um mundo do qual não consegue se desvencilhar e afirma que essa obra
demonstra a inserção total do eu lírico no tempo presente, o que a torna diferente de outras obras de
Drummond, que são emborcadas na memória e na nostalgia. Imerso no contingente, o eu lírico conhece “o
âmago do mundo”10 e a ferida histórica de uma guerra em tempo real o afeta, provocando uma voz
profundamente contaminada de realidade e consciente de seu tempo.
Sant’Anna, que dedicou boa parte de sua carreira como estudioso da literatura à obra de Drummond,
alega que, em boa parte dos poemas, o eu lírico reflete um desajuste com o mundo, um não se encaixar
constante. A realidade exterior e a realidade interior do eu lírico não coincidem e, por consequência,
suas falas são sempre entrelaçadas por um sentimento de desajuste, de desilusão permanente. Segundo
Sant’Anna: O presente social e histórico representado na ascensão do nazismo e do fascismo, no
irromper da Guerra Civil Espanhola e na conflagração da Segunda Guerra Mundial, tanto quanto o
acirramento das questões ideológicas entre capitalismo e comunismo, coincidem, e não por acaso, em sua
poesia, com o desvelar de seu drama existencial. O gauche de então é o indivíduo conflagrado totalmente
com a realidade, preso à sua contingência e se esforçando por superá-la pela abertura de seu próprio
Ser.11
Os poemas de Drummond nessa fase, diz Sant’Anna, apresentam homens fragmentados de medo, em
constante luta pela sobrevivência e, em muitos casos, em desconsideração pelo próximo – possível
ameaça –, como é o caso do simples leiteiro, visto como bandido pelo dono da casa. A batalha da guerra
torna mais difícil a luta cotidiana, e o homem urbano se vê cerceado, entrincheirado no próprio temor.
Nesse cenário de obscuridade, no qual o homem despedaçado enfrenta constantes trevas, o poeta antevê
uma leve possibilidade de mudança, com um frágil raio de luz que fragmenta e noite da humanidade e,
assim possibilita a aurora. Trata-se de um esforço de esperança, misturado com um sentimento de
melancolia e desilusão, conforme demonstramos no poema analisado, diante da opressão que impera na
realidade. Sant’Anna afirma: “o poeta supera o pessimismo e o pânico prevendo um tempo em que, sendo
diferente do atual, seja também de realização de sonhos passados.”12
Outra característica importante que aparece nessa fase de Drummond e que é apontada por Sant’Anna
é a transformação do contexto temporal em representações de espaço. Nesse viés, a cidade de homens
devastados passa a ser sinônimo do momento bélico pelo qual passa o mundo. A guerra, mais do que um
período que todos vivem, torna-se um sentimento que permeia os homens em geral e é representado pelo
caos em que se tornam as cidades – ou pelo sono com medo dos homens ou pelas reações violentas ante
os ruídos da madrugada, que nada mais são do que a presença matutina do leiteiro. Nessa mesma época,
o meio urbano está em ascensão e as cidades ganham importância, tamanho e crescem em população. As
cidades, no entanto, ainda estão muito desorganizadas e caóticas, características que, somadas à
desesperança da guerra, deixam os homens amedrontados e vazios. O desespero, o caos e a morte passam
a ser rotinas diárias na existência desses ‘homens partidos’, constantemente espreitados pela destruição:
A partir de A Rosa do Povo o sentido da destruição não é apenas evidente, como se apresenta como
contrapeso da própria vida. Cerca de 23 poemas entre os 55 desse livro tratam reincidentemente da
destruição [...].
A consciência espácio-temporal que vinha se dilatando dos primeiros livros, aqui se
expande amplamente sobre a cidade, o país, o mundo. O poeta está na pólis onde há o
acontecer histórico, por isto seu verso, curto a princípio [...] agora se torna cada vez mais
abrangente, abarca tudo que sua época oferece aos olhos. Seus poemas são depósitos
vocabulares de um período da História, documento crítico de uma época. Por isto, não há
de se estranhar que na expansão da consciência temporal viesse inserido o germe da
destruição, que compromete e impulsiona a consciência em transito. Acresce um dado
histórico intensificador e explicador desse clica de corrosão: o livro foi composto
durante os anos da Segunda Guerra Mundial.13
O sentimento de destruição, mencionado por Sant’Anna, na obra de Drummond, é também
relacionado à reificação dos homens e à desvalorização do individual que aparecem em muitas imagens
construídas nos poemas, assim como em Morte do Leiteiro. A valorização dos objetos e da propriedade
em detrimento do homem, a antropormorfização das coisas, que se tornam extensões do sujeito e das
quais ele passa a depender mais do que do seu próprio semelhante, também são recorrentes em muitos
poemas. Em Morte do Leiteiro, o profissional em questão é identificado pelos objetos que porta e pelas
roupas que veste e não pela sua consciência individual. O próprio leiteiro não sabe de si ou de sua tarefa
e sua morte é caracterizada por ‘objetos confusos’ que se misturam ao seu sangue e ao leite que carrega, e
não pela estupefação do assassino ou daqueles que acompanham o acontecimento. O poeta, assim, narra a
ascensão das cidades e sua simultânea corrosão e destruição: “Poeta cidade são o mesmo Ser em
destruição, conhecendo ambos a morte progressiva na água-tempo.”14
À medida que o homem é reificado, os objetos são humanizados e a cidade e indivíduo se
confundem. O homem é a cidade e a cidade é o homem, ambos oprimidos por uma guerra que não prevê
subjetividade ou consciência, que não se interessa pelo indivíduo e que se prolonga no espaço e no
tempo de maneira constante. Morte do Leiteiro, conforme demonstramos, mostra a luta diária dos homens
que perdem sua subjetividade e sua consciência quando inseridos em um mundo de terror e desespero. A
rotina nas grandes cidades e sua ascensão caótica e desorganizada, somadas à insegurança da guerra,
cultivaram um sentimento de medo que certamente incomodava o homem da época. Drummond,
extremamente envolvido com os acontecimentos que o cercavam, não podia deixar de se sensibilizar com
o vazio dos homens e, junto com eles, sofreu e se desiludiu. Sua obra durante esse período não somente
falava àqueles preocupados com a guerra, mas também a todos cujo coração, assim como o dele, ansiava
por períodos mais tranquilos. Assim como afirmou Adorno, a lírica de Drummond comunicou-se com a
sociedade e, mais do que isso, tornou-se um registro histórico dos horrores e da desgraça que
angustiavam os homens de seu tempo. O poeta e sua sociedade, mergulhados nas trevas e sem poder fugir
daquele “tempo de homens partidos” compartilhavam a arte, como uma voz que fala a todos e, mais do
que isso, fala aquilo que todos querem expressar.

Referências
ANDRADE, Carlos Drummond. A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 2001.
ADORNO, Theodor W. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
BERNARDINELLI, Alfonso. Da poesia à prosa. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
HAMBURGER, Kate. A lógica da criação literária. São Paulo: Perspectiva, 1975.
RANCIÉRE, Jacques. A partilha do sensível. Estética e política. São Paulo: 34. 2005.
SANT’ANNA, Afonso Romano. Drummond, o gauche do tempo. Rio de Janeiro: Lia / INL, 1972.

Notas
1 ANDRADE, Carlos Drummond. Morte do Leiteiro. Em: A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 2001.
2 Partimos do pressuposto de que se trata de um poema narrativo e, por isso, além de características
líricas, o texto também possui elementos narrativos, tais como personagens, espaço, tempo e até falas.
3 ADORNO, Theodor W. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 194.
4 BERNARDINELLI, Alfonso. Da poesia à prosa. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 35.
5 RANCIÉRE, Jacques. A partilha do sensível. Estética e política. São Paulo: 34. 2005. p. 58.
6 HAMBURGER, Kate. A lógica da criação literária. São Paulo: Perspectiva, 1975.
7 BERNARDINELLI, Alfonso. Op. cit., 2007, p. 204.
8 SANT’ANNA, Afonso Romano. Drummond, o gauche do tempo. Rio de Janeiro: Lia / INL, 1972, p.
101.
9 Ibid, p. 22.
10 Ibid, p. 23.
11 Ibid, p. 94.
12 Ibid, p. 102.
13 Ibid, p. 149.
14 Ibid, p. 153.
“COM O RUSSO EM BERLIM”:
A MARCHA FINAL
Ângela Maria Garcia dos Santos SILVA1

Contexto histórico
A consequência dos efeitos sociais, políticos e diplomáticos da crise econômica iniciada em 1929, o
surgimento dos governos totalitários na Europa a partir desse mesmo ano e o desejo de expansão
territorial de países como a Alemanha, a Itália e o Japão estão entre as principais causas que
desencadearam a Segunda Guerra Mundial. A fim de elaborar um plano estratégico de conquista, essas
três nações se uniram e formaram o chamado Eixo. Em contrapartida, em 1941, outros acordos se
estabeleceram nas relações internacionais e estruturou-se um grupo oponente, os Aliados, constituindo as
mais inusitadas alianças2 no intuito de interromper os planos dos adversários. As batalhas que
sucederam desses confrontos devastaram quase toda a Europa e parte da Ásia, sendo que países como a
URSS, a Polônia e a Alemanha ficaram totalmente em ruínas.
O mundo assistia horrorizado as destruições e as perdas humanas, um total de, segundo Vizentini3, 55
milhões de mortos, 35 milhões de mutilados e três milhões de desaparecidos. Nesses números, estão
incluídos seis milhões de judeus e 600 mil ciganos, além do que milhões desses indivíduos morreram nos
campos de concentração e nos territórios ocupados, vítimas da fome e da extrema violência nazista.
Apesar do medo, da angústia e da tristeza que caracterizava o clima dos derradeiros anos da guerra,
a esperança de uma vida melhor renascia depositada nas importantes vitórias dos Aliados,
principalmente na resistência dos russos, considerados pela população mundial como heróis libertadores.
Esse sentimento de uma nova ordem se intensificou com a chegada dos soviéticos em Berlim, no ano de
1945, dando fim ao evento considerado por muitos historiadores como o maior, mais sangrento e
desastroso conflito da história da humanidade.
Se em 1945 o mundo comemorava o fim da guerra, no Brasil os brasileiros festejavam o fim do
Estado Novo, período ditatorial de Getúlio Vargas, um dos momentos mais esperados pela população e
pelos intelectuais que ansiavam pela democracia.4
Nesse contexto histórico do século XX, como intelectual comprometido e também como sujeito
social do seu tempo, Carlos Drummond de Andrade traduz a inquietude, o medo e as dores das pessoas,
reflexo de uma fase individual e coletiva tanto em nosso país como no mundo. Com os olhos voltados
para esses acontecimentos, o poeta centra o seu foco poético nas questões históricas, políticas e sociais
desenvolvendo, desse modo, conforme Silviano Santiago em artigo intitulado Introdução à leitura dos
poemas de Carlos Drummond de Andrade5, o seu engajamento político à esquerda, que “se acentua com
o correr dos anos e vai desaguar em A rosa do povo [...]”. A poesia de Drummond está, pois, intimamente
relacionada com os eventos descritos e revela, em seu conteúdo, a realidade político-sócio-cultural
depreendida pela percepção do poeta nesse período. Essa ideia de que o assunto dos poemas representa
o produto de uma mimese cultural foi levantada por José Guilherme Merquior, no capítulo “Natureza da
lírica”, da obra A astúcia da mimese: ensaio sobre lírica. Citamos esse autor porque o livro de
Drummond foi considerado pela crítica de uma maneira geral, nas palavras do próprio Merquior em
Verso Universo em Drummond6, como poesia social “no sentido de arte engajada, levando em conta,
sobretudo, se não exclusivamente, os trechos ideológicos e o lirismo coral dos poemas de guerra como:
“Carta a Stalingrado”, “Visão em 1944”, “Com o russo em Berlim”, entre outros. Este último texto é o
objeto de análise deste ensaio por ser um dos mais representativos do contexto em que estava inserido o
sujeito Drummond enquanto ser social de sua época e, ainda, por refletir sobre o clima depressivo
durante o período de conflito e sobre o otimismo da população mundial com a derrocada do Eixo.

O poema: aspectos literários e históricos


Nesse cenário de destruição de países transformados em depósitos de cadáveres, o poeta anuncia a
utopia de uma nova ordem, cantando o sentimento captado naquele instante de perplexidade diante do
comportamento das pessoas e da progressão de acontecimentos durante a guerra. Como a traduzir esse
tempo, o poema “Com o russo em Berlim”7 concentra em seus versos a força da política e da história
tratando, principalmente, do fim da guerra com particular ênfase aos obstinados e resistentes russos, que
contavam com a simpatia da população mundial. A chegada dos soviéticos em Berlim representou mais
do que a derrota dos alemães, significou a conquista da liberdade e a esperança de uma nova vida.
Ainda que este texto demonstre um forte caráter universal e o engajamento social e político de
Drummond, é preciso registrar que não se trata de vida real, mas de representação e esta é regulada de
acordo com Merquior8, pelas normas do espírito, não pela realidade fora do poema. O poeta não está,
pois, a descrever ou a documentar a história (ainda que a sua mensagem poética continue a alcançar
gerações) porque a poesia não se presta a relatos ou descrições; ele simplesmente capta o sentimento
coletivo particularizando-o de tal forma que expõe a sua percepção da realidade traduzindo o seu estado
de ânimo naquele momento. E é isso que confere novidade ao tema. Mais importa, pois, como o artífice
representa esse evento do que ele propriamente dito que é exterior ao texto. Para dar conta dessa
imitação da realidade, o poeta se utiliza das palavras, sua principal ferramenta de trabalho. Os
vocábulos são também elementos da imagem, como postula Octávio Paz em Signos em rotação9. O modo
como Drummond estrutura e arranja esses vocábulos estabelece uma relação de independência entre eles
de maneira que nenhum deles pode sair do lugar para que não se perca a unidade e, tampouco, o efeito
que o poeta concedeu ao seu texto. Para isso, abusa do ritmo (nesse caso bem marcado), das aliterações e
assonâncias, elementos fundamentais para a constituição da imagem de uma caminhada militar e que
igualmente constrói o sentido do texto.
No que se refere à imagem, o leitor é já, no título do poema, colocado diante do cenário de guerra
que lhe é imposto num só golpe e que não é a realidade, mas realidade poética criada a partir da
percepção do poeta sobre tudo o que se passa no seu entorno. A imagem inicial do domínio de Berlim
pelos russos explica a si mesma e tende a forçar o leitor a lembrar do conflito, ainda que não tenha
vivido ou sofrido tal tragédia, basta que tenha lido ou estudado sobre o assunto. Mas, se não estiver na
mesma disposição anímica do autor, conforme explica Emil Staiger em Conceitos fundamentais de
poética10, não entenderá o texto. É preciso, enfim, que o leitor tenha conhecimento da história para que o
poema faça para ele algum sentido. Se a imagem da guerra se apresenta de vez desde o título, a da
marcha se realiza durante o poema até o último verso, sendo necessário analisar todos os elementos que a
formam.
Tomando por base a estrutura do texto, verificamos que a forma utilizada para a sua construção, 17
estrofes distribuídas em quadras brancas compostas por três decassílabos em refrão hexassílabo, se
presta mais para traduzir a interioridade de Drummond naquele momento. Fica claro que para dar um
sentido de marcha militar progressiva a fim de atingir um objetivo final e também para abordar todas as
questões da guerra que, em forma de conteúdo, estão intimamente entrelaçadas com o todo do poema, o
poeta não poderia usar, por exemplo, um soneto. Evidentemente, Drummond necessitava escrever um
poema longo com métrica bem determinada para traduzir o movimento ritmado do seu espírito e do
exército russo. Começando pelo refrão, o uso do metro enfaticamente marcado e as dezessete vezes em
que é repetido no poema, produz o que Staiger chama de linguagem onomatopaica. O ritmo dessa linha
combinado ao uso de assonâncias e aliterações – principalmente se levarmos em consideração as vogais
fechadas “i” e “u”, e as semifechadas “e” e “o”, aliadas às consoantes “c” “r” e “b” –, imitam uma
espécie de jornada militar ininterrupta e em evolução rumo ao fim da guerra, à liberdade dos países
ocupados pelo movimento fascista e à utopia de uma nova ordem.
A imagem da marcha se concretiza mais fortemente se isolarmos o refrão e o lermos repetidamente:
“com o russo em Berlim”, “com o russo em Berlim”, “com o russo em Berlim”, “com o russo em
Berlim”, “com o russo em Berlim”, “com o russo em Berlim”... Dessa forma, é possível, inclusive,
visualizarmos o desfile das tropas como se estivessem os soldados soviéticos a bater os pés no chão,
efeito conseguido pelo poeta na sílaba tônica rus, que marca energicamente o ritmo da caminhada. Por
esse motivo, ao contrário dos demais versos, esse tem de ser hexassílabo e sem pausas, o que lhe dá uma
certa rapidez e indica o avanço insistente e progressivo dos soldados. Esse verso traduz o sentimento e
a ideia-chave do poema. Deixando-o, porém, junto de cada estrofe, amplia o significado do texto. Os
primeiros três versos de cada estrofe vão apresentando as mazelas e consequências da guerra, mas nesta
linha de seis sílabas existe a certeza de um fim, alcançado somente na última estrofe, quando, enfim,
cessa a marcha soviética. Em outras palavras: mesmo que o mundo esteja um caos, mesmo que tenham se
perdido vidas, se destruído cidades, se torturado e aprisionado inocentes, mesmo que nada pudesse ser
denunciado por causa da censura, que tenha havido todo o tipo de desperdício, a marcha russa
libertadora traz a esperança e trará êxito. Usamos o verbo no futuro porque, progressivamente, a partir
de cada momento da guerra apresentado em cada estrofe, o refrão aparece como se estivesse caminhando
para a vitória que só se realiza de fato no fim do poema.
Analisando as duas primeiras estrofes, percebemos que os seis versos decassílabos que antecedem
“com o russo em Berlim” intensificam a espera do sujeito poético pelo efeito de lentidão provocado pelo
uso de pausas e de sílabas tônicas lembrando os seis anos de duração do conflito (1939-1945). A longa
espera, no entanto, se converte em esperança de que esse evento que abalou a paz do mundo terá fim. O
verbo “chegarei” e a expressão “um dia entrar” realizam a imagem (ainda tímida) de otimismo do sujeito
lírico atento a todas as ocorrências da guerra registradas nas demais estrofes. O motivo pelo qual sente-
se aliviado é por ter “agora” a certeza de que não esperou em vão.

Esperei (tanta espera), mas agora,


nem cansaço nem dor. Estou tranquilo.
Um dia chegarei, ponta de lança,
com o russo em Berlim.
O tempo que esperei não foi em vão.
Na rua, no telhado. Espera em casa.
No curral; na oficina: um dia entrar
com o russo em Berlim.11
O registro do caos em que se encontrava o mundo se faz mais claro a partir das próximas linhas tanto
no conteúdo quanto na escolha do poeta pelos versos brancos. De acordo com T.S. Eliot em
“Musicalidade da poesia”12, o verso branco pode ser usado para propósitos meditativos, idílicos,
filosóficos e épicos. Ao que parece, a preferência de Drummond tem um objetivo claro: referir-se aos
russos como heróis dando um tom de epopéia ao texto, ao mesmo tempo em que o sujeito poético medita
sobre a guerra e seus efeitos. A desorganização do mundo também é reforçada pela falta de rimas o que
causa certa desarmonia no poema análoga às consequências da guerra, ocasionadas pelo “tempo de ódio
e mãos descompassadas.” O conteúdo revela igualmente um dos resultados dessa desordem: o período de
silêncio que se estabelecera no mundo todo por conta da censura controlada pelos regimes totalitários
não permite ao sujeito poético se manifestar e ele só pode fazê-lo através das palavras. Como então lutar
sem elas, “penetrando com o russo em Berlim?”. O jeito é ficar acompanhando as notícias pelo jornal,
calado, sem poder manifestar sua posição, sem poder usar a sua ferramenta mais preciosa.

Minha boca fechada se crispava.


Ai tempo de ódio e mãos descompassadas.
Como lutar, sem armas, penetrando
com o russo em Berlim?
Só palavras a dar, só pensamentos
ou nem isso: calados num café,
graves, lendo o jornal. Oh, tão melhor
com o russo em Berlim.13

A ênfase à censura se repete denunciando esse tempo em que as bocas calaram-se por toda a parte.
No caso do Brasil, o autor de A rosa do povo assistiu a instauração do chamado estado de emergência
que permitia a Getúlio Vargas um poder absoluto: podia ele prender, exilar, invadir domicílios,
suspender a imunidade dos parlamentares e para completar, legalizou a censura para todos os meios de
comunicação espalhando o medo e evitando manifestações contrárias à sua política pró-fascista. Nessa
época de total repressão, somente os olhos desejosos de um outro desfecho assistem a tudo; e a anáfora
“só os olhos” se repete para sublinhar que toda a esperança estava depositada no “exército vermelho”.
Se nada se podia dizer, os olhos fixavam o mapa observando a evolução da marcha soviética.

Pois também a palavra era proibida.


As bocas não diziam. Só os olhos
no retrato, no mapa. Só os olhos
com o russo em Berlim.14
No entanto, os lábios contraídos e o sentimento antes abafado pelo silêncio imposto ressurgem com a
expectativa de vitória desses soldados. Foi preciso ter paciência, esperar “com esperança fria”:
Eu esperei com esperança fria,
calei meu sentimento e ele ressurge
pisado de cavalos e de rádios
com o russo em Berlim.15

Na próxima estrofe, numa referência às diversas batalhas ocorridas na China, na França, na Bélgica
(Batalha de Ardenas) e na África (Batalha de Tobruc), o eu poético retoma os momentos de longa espera
para destacar àquela que deu finalmente algum sinal de que o projeto nazista de expansão seria
interrompido: a Batalha de Stalingrado. Esta foi, desse modo, um marco na história da guerra. A
recuperação da cidade era uma questão de honra para os russos pelo valor simbólico que encerrava, pois
levava o nome do líder soviético, Stálin. Exatamente por esse motivo Hitler não queria entregá-la, mas o
exército oponente cercou o 6º exército alemão, obrigando o comandante Von Paulus a se render. Esses
versos são fundamentais para situar o leitor sobre o avanço da “marcha russa” no poema, já que esta
batalha aconteceu em 1943. O poeta aponta assim para a primeira derrota significativa dos alemães,
embora o primeiro fracasso nazista tenha sido na Batalha de Moscou. A partir daí, os soldados de Hitler
passariam a recuar em todas as frentes, principalmente na região extinta da União Soviética.

Eu esperei na China e em todo canto,


em Paris, em Tobruc e nas Ardenas
para chegar, de um ponto em Stalingrado,
com o russo em Berlim.16

Todas essas batalhas, obviamente, tiveram tristes e negativos resultados: muitas baixas humanas,
cidades inteiras extintas e colheitas arruinadas. Nos versos que seguem, logo depois de lamentar suas
perdas, o eu lírico faz menção à política russa de defesa de terra arrasada: tudo o que não podiam levar
para o leste, destruíam e queimavam para que não fosse usufruído pelas tropas inimigas (fábricas,
colheitas e outros recursos). Apesar de tanto aniquilamento, insiste que tudo será reconstruído, ideia de
esperança reforçada pela expressão “que ressurge” com a marcha contínua dos russos.

Cidades que perdi, horas queimando


na pele e na visão: meus homens mortos,
colheita devastada, que ressurge
com o russo em Berlim.17

As pausas bem marcadas e a repetição empregada no primeiro verso da próxima estrofe, “O campo,
o campo, sobretudo o campo”, denotam uma profunda reflexão do sujeito poético a respeito da
escravização e do extermínio brutal protagonizado pelos germanos.18 Nesse caso, a progressão da
marcha dos soldados soviéticos está representada no uso do gerúndio “desfazendo-se”, que alonga a ação
porque ainda não aconteceu, mas acontecerá quando chegar o final do texto. É necessário, pois, que o
exército heroico continue a caminhada.

O campo, o campo, sobretudo o campo


espalhado no mundo: prisioneiros
entre cordas e moscas; desfazendo-se
com o russo em Berlim.19

Nas estrofes anteriores, o sujeito poético está perplexo observando e refletindo sobre os crimes,
resultado da barbárie da guerra. Entretanto, a partir dos próximos versos, ainda que o poeta tenha usado o
pronome me (“os peixes me devorando”), o eu lírico agora se inclui na ação: ele faz parte de um grupo
de marinheiros que morreram durante os ataques dos submarinos alemães aos navios brasileiros quando
transportavam matérias-primas estratégicas para os Estados Unidos (carvão, ferro, areias monazíticas
etc.). Ao todo, 35 navios foram afundados numa reação dos nazistas pela ruptura do Brasil com o Eixo. O
acontecimento provocou grande mobilização popular, de intelectuais e da União Nacional de Estudantes
– UNE pressionando Vargas a declarar guerra contra a Alemanha. A carga perdida era de fundamental
importância para sustentar o exército americano, importante aliado dos russos.

Nas camadas marítimas, os peixes


me devorando; e a carga se perdendo,
a carga mais preciosa: para entrar
com o russo em Berlim.20

Nas quatro próximas linhas, numa espécie de retorno ao ponto em que se via apenas como
observador, o sujeito poético refere-se, provavelmente, à aviação americana autorizada por Vargas a
utilizar os aeródromos do nordeste com os objetivos de combater os submarinos alemães, proteger os
comboios de navios mercantes, e como ponto estratégico de escala da rota para a África e para a Ásia.
Em janeiro de 194321, os EUA construíram a Base Aérea de Natal e, em seguida, num acordo entre
Roosevelt e o presidente brasileiro, foi criada a Força Expedicionária Brasileira – FEB, no intuito de
participar do conflito contra o bloco fascista. Assim, o Brasil pôde auxiliar da luta anti-submarina
próxima ao nosso litoral com unidades aéreas e, posteriormente, estender o apoio em outras batalhas. Se
não participa da ação nesse momento como na estrofe anterior, o sujeito poético manifesta a vontade de
fazê-lo quando nota “a batalha no ar” e se pergunta “por que não/ com o russo em Berlim?”. Mesmo que
sejam citadas fases em que não é possível identificar a presença direta dos soviéticos, o poeta retoma o
verso hexassílabo para lembrar que os soldados russos continuam a sua luta, a sua marcha.

Essa batalha no ar, que me traspassa


(mas estou no cinema, e tão pequeno
e volto triste à casa; por que não
com o russo em Berlim?).22
Várias unidades navais brasileiras também prestaram socorro às unidades aéreas contra os
submarinos nazistas. A referência da participação da Marinha brasileira no conflito denota uma mudança
explícita no texto: o eu poético identifica-se com os marinheiros quando diz “Muitos de mim saíram pelo
mar”. Ao se transformar em muitos, passa do plano individual para o coletivo e, nas próximas estrofes,
ele é “nós”.
No segundo verso, o poeta salienta que o melhor dele está lutando, talvez, naquele momento,
construindo poemas (muitos dele próprio), as únicas armas que possui, mostrando-se entendedor de que a
ele cabe dar a conhecer a sua mensagem para que possa chegar triunfante “com o russo em Berlim”.

Muitos de mim saíram pelo mar.
Em mim o que é melhor está lutando.
Possa também chegar, recompensado,
com o russo em Berlim.23

E pede que não cesse esse avanço da marcha russa, embora “Este vento que passa” e que ainda não
pode ser anulado (a guerra), leve com ele as vidas e derrube parte do mundo.

Mas que não pare aí. Não chega o termo.


Um vento varre o mundo, varre a vida.
Este vento que passa, irretratável,
com o russo em Berlim.24

No segundo semestre de 1943 e durante todo o ano de 194425, os Aliados realizaram ofensivas no
Pacífico e no sudeste asiático libertando muitos países ocupados pelos inimigos e obtendo grandes
vitórias. Drummond observa essa onda de otimismo que se espalha pelo mundo e reproduz, no texto, a
sua percepção do momento. O sujeito poético já convertido em “nós” representa milhões de pessoas que
têm fé, que têm certeza de que esse terrível evento está chegando ao fim. A garantia está na afirmativa
“nós a temos”. A retomada do refrão cumpre papel idêntico ao das outras estrofes: a progressão da
marcha soviética que não desiste e continua avançando.

Olha a esperança à frente dos exércitos,


olha a certeza. Nunca assim tão forte.
Nós que tanto esperamos, nós a temos
com o russo em Berlim.26

Mas ainda era preciso conquistar a cidade poderosa: Berlim. O eu lírico reconhece que a empreitada
não será fácil quando afirma “E não cairá tão cedo.”, pois, apesar das derrotas sofridas antes de 1945, a
Alemanha ainda contava com forças poderosas e organizadas dispostas a morrer lutando em defesa do
território do Reich. Em abril de 1945, o exército soviético iniciou os ataques a Berlim e cercou a cidade
“colar de chamas forma-se a enlaçá-la”. O “russo” já está, finalmente, em Berlim27.

Uma cidade existe poderosa


a conquistar. E não cairá tão cedo.
Colar de chamas forma-se a enlaçá-la,
com o russo em Berlim.28

Ao contrário do que acontecia no oeste, onde as tropas alemãs rendiam-se aos americanos sem muita
luta, em Berlim, os soldados nazistas resistiam violentamente usando todo o poderio de armas de que
dispunham no seu “ventre metálico”. Essa cidade cruel, um “ajuntamento” de homens estúpidos agora
“treme com o russo em Berlim”. O medo da invasão russa tinha razão de ser porque quando invadiram a
Rússia, os alemães foram extremamente ferozes e impiedosos matando, escravizando, estuprando
inocentes e massacrando cidades para tomar suas indústrias, riquezas e recursos naturais. Depois que os
soviéticos se apossaram do prédio de Reichestag, Hitler se suicidou, atitude repetida por outros
dirigentes nazistas.

Uma cidade atroz, ventre metálico


pernas de escravos, boca de negócio,
ajuntamento estúpido, já treme
com o russo em Berlim.29

Ao final do texto, o sujeito poético convoca os trabalhadores para que, junto com os russos,
esmaguem Berlim, fazendo uma alusão ao famoso grito de protesto do socialismo constante no Manifesto
Comunista de Karl Marx e Friedrich Engels. É importante não esquecer que, durante a guerra, em quase
todos os países, organizaram-se movimentos político-militares de resistência que foram reconhecidos e
apoiados pelos aliados ocidentais. Esses grupos30 tiveram formas de atuação variadas de acordo com as
nações a que pertenciam. Alguns, conforme Vizentini31, dedicaram-se à espionagem, à organização de
greves, aos atos de sabotagem à indústria bélica, aos atentados contra oficiais, soldados e políticos
fascistas, à propaganda e publicação clandestinas e à luta de guerrilhas, chegando a travar grandes
batalhas contra os invasores.
A referência aos grupos de resistência (os trabalhadores do mundo) nessa estrofe serve apenas para
enfatizar a simpatia de Drummond pelo movimento, pois não encontramos em nenhum livro de História
relatos de que guerrilheiros tenham auxiliado os russos na invasão contra Berlim. Sendo Drummond
comunista como é de conhecimento público, sonhava, naturalmente, com uma nova vida, diferente da que
se vivia na época. O seu poema é, de certa forma, uma homenagem àqueles que realizaram essa marcha
de libertação. Identificamos uma reverência particular do poeta à marcha dos comunistas russos. Essa
promessa de libertação e de uma nova ordem também era defendida por um dos movimentos de
resistência, que desejava que a luta pela liberdade viesse acompanhada de reformas sociais
progressivas.

Esta cidade oculta em mil cidades,


trabalhadores do mundo, reuni-vos
para esmagá-la, vós que penetrais

com o russo em Berlim.32

Considerações finais
Ao final da análise, ainda se fazem necessárias algumas considerações acerca deste texto
considerado por Alexei Bueno33 como um dos mais importantes textos oriundos da guerra. Carlos
Drummond de Andrade vive num tempo em que o cenário social, político e cultural esmaga a população
mundial e não podemos esquecer que ele presenciou igualmente todas as atrocidades cometidas pelo
governo ditatorial de Getúlio Vargas. “Com o russo em Berlim” apesar de tratar de temas que denotam
essa realidade, não trata exatamente dela, porque é, na verdade, o resultado da grande angústia que sente
o poeta diante da dor e do sofrimento individual e coletivo.
Por tudo isso, Drummond assume um posicionamento político de esquerda que significava, na época,
mais do que ser comunista, significava ser contrário ao horror nazista que se espalhava pelo mundo. Ele
traduz em versos esse sentimento dando ênfase justamente ao ano de 1945 quando os russos invadiram
Berlim e aconteceu, finalmente, o fim da guerra. É fato declarado no texto a simpatia do poeta pelos
sacrifícios e sucessos da URSS, uma vez que representa a marcha “epopeica” dos soviéticos em um texto
longo e bem ritmado capaz de traduzir o avanço do exército heroico naquele instante. A ideia central do
texto está, desse modo (e desde o título!), no verso hexassílabo.
O que fica implícito no texto é o fato de que há sim a sobreposição do sistema comunista (socialista)
sobre o nazista é exatamente por isso que a população ansiava: uma nova ordem, uma nova vida para os
indivíduos. E quem melhor representava esse sonho comunista/socialista34 era a União Soviética.
Mesmo que os Aliados tenham vencido a Segunda Guerra, foram os russos que invadiram Berlim e os
olhos do mundo estavam voltados para eles.
De acordo com Käte Hamburger35, o objeto do poema não precisa aparecer de maneira objetiva, ele
pode ficar sugerido no plano simbólico. Nesse sentido, podemos dizer, por fim, que a repetição do verso
ideia-chave do texto traz em si o otimismo da população e, principalmente o do Drummond comunista ao
assistir a queda do regime fascista derrotado pelos também comunistas russos.36

Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
BUENO, Alexei. Uma história da poesia brasileira. Rio de Janeiro: G. Ermakoff Casa Editorial, 2007.
CHURCHILL, Winston. Memórias da Segunda Guerra Mundial. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1995.
HAMBURGER, Käte. O gênero lírico. Em: A lógica da criação literária. São Paulo: Perspectiva, 1975.
p. 167-209.
HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
MASSON, Philippe. A Segunda Guerra Mundial. Tradução Ângela M. S. Corrêa. São Paulo: Contexto,
2010.
MERQUIOR, José Guilherme. Natureza da lírica. Em: A astúcia da mimese: ensaio sobre lírica. 2. ed.
Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. p. 7-33.
_____. Verso Universo em Drummond; tradução de Marly de Oliveira. 2. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1976.
PAZ, Octavio. A imagem. Em: Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 1996. p. 37-50.
PROENÇA, M. Cavalcanti. Ritmo e poesia. Rio: Simões, 1955.
SANTIAGO, Silviano. Introdução à leitura dos poemas de Carlos Drummond de Andrade. Em:
ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais de poética. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993.
ELIOT, T.S. Musicalidade da poesia. Em: A essência da poesia. Estudos e ensaios. Rio de Janeiro:
Artenova, 1972.
VIZENTINI, Paulo Fagundes. As guerras mundiais (1914-1945). Porto Alegre: Leitura XXI, 2003.

Notas
1 Ângela Maria Garcia dos Santos Silva é Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Letras, da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e bolsista do CNPq.
2 Países capitalistas como a Grã-Bretanha, os Estados Unidos e a França juntaram-se aos comunistas
russos para combater os alemães, ignorando as atrocidades cometidas pelo ditador soviético Stálin, pois,
nesse momento, por razões mais relevantes como a de colocar um “freio” nas intenções do Eixo,
principalmente nas de Adolf Hitler, já não era considerado o mesmo perverso de 1930, mas um dos
principais líderes contra o nazismo ao lado do Primeiro-Ministro da Inglaterra, Winston Churchill, do
Presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosvelt, e do General francês De Gaulle, que estava exilado na
Inglaterra durante o conflito.
3 VIZENTINI, Paulo Fagundes. As guerras mundiais. Porto Alegre: Leitura XXI, 2003.
4 Vale lembrar que a participação do Brasil na Segunda Grande Guerra foi determinante para a derrubada
do sistema de governo de Vargas, uma ditadura inspirada no fascismo. Quando a crise de 1929 reduziu o
comércio e os investimentos internacionais, a política exterior brasileira oscilou entre cooperar com a
Alemanha ou com os Estados Unidos, o que, conforme Vizentini em As guerras mundiais, tratava-se de
uma estratégia de Getúlio Vargas para forçar as relações com os EUA. O presidente Roosevelt
demonstrava preocupação na ligação comercial entre a Alemanha e o Brasil por vários motivos:
primeiro, porque nosso país significava a melhor porta de entrada no continente, em caso de expansão
alemã; segundo, porque se a indústria alemã dominasse os recursos brasileiros, contaria com
considerável alteração na balança mundial de poder; terceiro, pelas tendências autoritárias pró-fascistas
de Vargas e de parte significativa de seu exército, além da presença de grandes colônias italiana e alemã
no país. E mais da metade desta última simpatizava com o nazismo. Por conta disso, Roosevelt
empenhou-se em afastar a América Latina de Berlim numa longa negociata comercial e diplomática.
Vargas, por sua vez, tendo entrado em acordo com os Aliados, obteve dos EUA a modernização do
exército brasileiro através do fornecimento de armas, o financiamento das importações e a construção da
usina siderúrgica de Volta Redonda. O acordo realizado determinou definitivamente o rompimento das
relações diplomáticas do Brasil com o Eixo.
5 Este artigo está publicado na crítica reunida constante na Poesia completa de Carlos Drummond de
Andrade, lançada em 2002, pela Nova Aguilar.
6 MERQUIOR, José Guilherme. Verso Universo em Drummond. Tradução de Marly de Oliveira. 2. ed.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1976. p. 122.
7 Em Uma história da poesia brasileira, Alexei Bueno considera esse o maior poema inspirado pela
Segunda Grande Guerra e também um dos maiores originários do conflito na literatura ocidental.
8 MERQUIOR, José Guilherme. Natureza da lírica. Em: A astúcia da mimese: ensaio sobre lírica. 2. ed.
Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. p. 7-33.
9 PAZ, Octavio. A imagem. Em: Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 1996. p. 37-50.
10 STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais de poética. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993.
11 ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
12 ELIOT, T.S. Musicalidade da poesia. Em: A essência da poesia. Estudos e ensaios. Rio de Janeiro:
Artenova, 1972.
13 ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., 2002.
14 Ibid.
15 Ibid.
16 Ibid.
17 Ibid.
18 Conforme VIZENTINI, Paulo Fagundes. Op. cit., 2003, nos campos de Auschwitz, Chelmno, Belzek,
Sobibor e Treblinka seis milhões de judeus foram exterminados, sendo que a maior parte deles era de
trabalhadores pobres da Europa Centro-Oriental. Também morreram nesses locais seiscentos mil ciganos
e milhões de russos, ucranianos, iugoslavos e poloneses.
19 ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., 2002.
20 Ibid.
21 VIZENTINI, Paulo Fagundes. Op. cit., 2003.
22 ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., 2002.
23 Ibid.
24 Ibid.
25 VIZENTINI, Paulo Fagundes. As guerras mundiais. Porto Alegre: Leitura XXI, 2003.
26 ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., 2002.
27 Vale lembrar que os russos invadiram sozinhos a Europa Oriental.
28 ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., 2002.
29 Ibid.
30 Desde o seu surgimento, os grupos de resistência dividiram-se entre conservadores antinazistas que
ansiavam pela restauração do regime anterior à guerra, e os grupos de esquerda que desejavam que a luta
de libertação fosse acompanhada de reformas sociais progressistas.
31 VIZENTINI, Paulo Fagundes. As guerras mundiais. Porto Alegre: Leitura XXI, 2003.
32 ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., 2002.
33 BUENO, Alexei. Uma história da poesia brasileira. Rio de Janeiro: G. Ermakoff Casa Editorial,
2007.
34 A título de esclarecimento, o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, dá as seguintes definições de
comunismo: 1conjunto coerente de ideias fundamentais a serem transmitidas, ensinadas; 2) conjunto das
ideias básicas contidas num sistema filosófico, político, religioso, econômico etc.; 3) doutrina econômica
e sociopolítica, de cunho revolucionário, elaborada pelos teóricos alemães Karl Marx (1818-1883) e
Friedrich Engels (1820-1895), que prevê a superação do capitalismo por meio da luta de classes, o fim
da propriedade privada dos meios de produção, a instauração de um regime de partido único e, num
último estágio, a supressão do Estado e o estabelecimento de uma sociedade sem classes.
35 HAMBURGER, Käte. O gênero lírico. Em: A lógica da criação literária. São Paulo: Perspectiva,
1975. p. 167-209.
36 Acreditamos ser importante neste momento esclarecer que não nos interessa defender nenhuma
posição política, nos detivemos exclusivamente no que pudemos depreender do texto, por isso, para
apoiar nossas conclusões finais, citaremos algumas passagens da obra de Vizentini. O movimento fascista
alemão, ou nazismo, liderado pelo austríaco Adolf Hitler não tinha uma unidade ideológica bem definida,
“apoiando-se em fontes heterogêneas, tais como ‘a vontade de potência’, de Nietzsche, as teorias
racistas, de Gobineau e Chamberlain, a ‘fé no destino’, de Richard Wagner, as teorias sobre herança, de
Mendel, a Geopolítica, de Haushofer, o neodarwinismo, de A. Ploetz e A decadência do Ocidente, de
Oswald Spengler” (em VIZENTINI, Paulo Fagundes, Op. cit., 2003, p.72). Mais adiante o historiador
explica que “O obscurantismo do fascismo alemão pretendia destruir a civilização oriunda do
renascimento, do iluminismo e do liberalismo do século XIX. Era também firmemente anticomunista e
antimarxista, embora manipulasse a ideia de um ‘nacional-socialismo’”. O autor de As guerras
mundiais esclarece ainda na página 110 que, em 1930, todos os países fomentaram o nacionalismo. No
caso da Rússia, não se tratava somente de defender o país, defendia-se, principalmente a pátria do
socialismo e “o povo sabia o que vinha por trás dos exércitos nazistas: não apenas a destruição de todas
as conquistas da Revolução como também a escravização ou o extermínio puro e simples. Os
prisioneiros judeus e comunistas foram imediatamente fuzilados.” E para terminar, Vizentini conclui
nas páginas 161 e 162: “deve-se observar igualmente que a contribuição da URSS à derrota da Alemanha
não foi apenas a de uma nova potência industrial, mas a de um novo sistema social, o socialismo.” E
insiste: “As resistências tornaram-se, especialmente na Europa, importantes movimentos político-
militares, nos quais a força de esquerda – sobretudo a comunista – acentuava-se como resultado da
própria luta, tornando-se um fator político de primeira grandeza como condicionamento do processo
de reordenação mundial.”
AS COISAS SOFREDORAS MAR ABSOLUTO ADENTRO
Camila Canali DOVAL

Introdução
A arte de Cecília Meireles é indissociável de sua biografia; ao confrontá-las, nos deparamos com um
movimento circular que se autoalimenta e não cessa de interagir. Poderíamos, da mesma forma, afirmar
que a sua poesia é indissociável da época e da sociedade em que viveu e produziu? É possível que uma
primeira leitura acuse Cecília de ser essencialmente metafísica, descomprometida com as agruras
concretas da humanidade. Mas para este breve estudo, em Cecília Meireles, assim como em Guimarães
Rosa para Antonio Candido, há de tudo para quem souber ler.
A função da poesia é um tema polêmico entre a crítica e o público, e até entre os próprios artistas.
Cabe a pergunta de Armindo Trevisan para dar início à discussão: “Qual, em última análise, a
responsabilidade do poeta?” Assim como cabe a sua resposta para nortear o desenvolvimento da nossa
análise:
A de constituir, dentro da sociedade, uma objeção e uma resposta. Uma objeção, em
época de flagrantes (ou veladas) injustiças, quando a luta pela vida rasteja tanto que não
sobeja ao homem espaço psíquico para sua liberdade. [...] Uma resposta, igualmente:
cabe ao poeta salvaguardar, ao nível das sensibilidades, as utopias. E as promessas
também. Imaginar que, para tornar-se eficaz, deve a poesia renunciar à sua essência é o
mesmo que pretender matar a fome com palavras.1
Sob essa perspectiva, buscaremos na obra Mar absoluto imagens que demonstrem a poesia de
Cecília Meireles como objeção à opressão infligida à vida pelo horror da guerra, bem como resposta ao
esvaecimento das esperanças de homens e mulheres em um dia ver o seu mundo refeito.
Para alcançar esse objetivo, traçaremos um breve percurso entre a vida e a obra de Cecília, algumas
noções acerca de uma possível função social da poesia e uma sucinta conceitualização de imagem
poética, rota que culminará na aventura de mergulhar em Mar absoluto.

Gotas de Cecília
A poesia de Cecília é filiada, antes de a qualquer movimento estético, às questões da vida e da morte
– sobretudo da morte. Segundo Maria Lúcia Dal Farra, em seu artigo “Cecília Meireles: imagens
femininas”:
Nascida sob um signo a que nada faltaria para ser funesto, Cecília reconhece, nesse
infortúnio, o sinal ativo de forças que lhe serão muito próprias, capazes de esclarecer o
seu estar no mundo e a sua especificidade existencial. Deveras. Três meses antes do seu
nascimento, seu pai, funcionário do Banco do Brasil, falece, culminando, desse modo, o
encadeamento das mortes dos três irmãos mais velhos da menina. Todavia, a corrente de
catástrofes não se aplacava aí, pois que, três anos após o seu nascimento, é a vez da mãe
professora, que morre deixando a guarda da filha à avó materna, Jacinta Garcia
Benevides, por quem Cecília será criada e a cuja memória dedicará, depois, em 1945, o
belíssimo e pungente ciclo das oito Elegias acopladas a Mar absoluto.2
Um breve voo sobre a vida da poetisa permite que se sobressaia ao olhar a construção de uma
personalidade marcada pela tragédia, mas que não deixou de exercer durante a vida a função de
educadora, nem de produzir e coordenar projetos em prol de uma sociedade justa, educada, sensível —
um mundo habitável. Conforme palavras da própria Cecília Meireles,
Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram muitos contratempos
materiais, mas, ao mesmo tempo, me deram, desde pequenina, uma tal intimidade com a
Morte que docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno que, para outros,
constituem aprendizagem dolorosa e, por vezes, cheia de violência. Em toda vida, nunca
me esforcei por ganhar nem me espantei por perder. A noção ou sentimento da
transitoriedade de tudo é fundamento mesmo da minha personalidade. Creio que isso
explica tudo quanto tenho feito, em Literatura, Jornalismo, Educação e mesmo Folclore.
Acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam
arrastar. Mostrar-lhes a vida em profundidade. Sem pretensão filosófica ou de salvação –
mas por uma contemplação poética afetuosa e participante.3
A explicação de si mesma realizada pela poetisa esclarece, de alguma forma, sua múltipla atuação:
engajada na Cecília jornalista; revolucionária na Cecília educadora; metafísica na Cecília poeta. Poetar
sobre a existência humana de aqui e de além não a impediu de encarar no front a realidade efêmera do
ser humano, seja assinando coluna em jornal, seja dirigindo um centro de educação infantil:
A admirável mulher que nos transmite tais palavras sofreria ainda outro e outro
infortúnios – maneiras que a vida certamente encontrou para ir depurando e
aperfeiçoando a têmpera do seu caráter. Durante a primeira metade da década de trinta,
Cecília atravessará atribulações de um período de perseguição política mais ou menos
velada que, em verdade, tem início logo em 1929. Nessa altura, a defesa brilhante da sua
tese, intitulada “O espírito vitorioso”, escrita para a obtenção da cátedra de Literatura na
Escola Normal do Distrito Federal, não será suficiente para impedir a arbitrariedade do
júri, de modo que a poetisa se vê preterida. Por ironia (e, certamente, por desagravo do
destino), é apreciando as mesmas questões pedagógicas que o seu trabalho discutia, que o
Diário de Notícias do Rio de Janeiro a contrata como colunista durante os próximos
quatro anos, quando então, já em 1934, Cecília será finalmente designada, pela Secretaria
de Educação, para dirigir o recém-fundado Centro Infantil no Pavilhão Mourisco do Rio
de Janeiro.4
É pela mão de Cecília e do marido, o artista plástico Fernando Correia Dias, com quem se casara em
1921, que surge a primeira biblioteca infantil do Rio de Janeiro, posteriormente fechada por Getúlio
Vargas, sob suspeita de ilegitimidade moral e educacional dos livros constantes do acervo, por exemplo,
As aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain, considerado pernicioso para a formação das crianças.5
Após esse duro episódio, Cecília sofre o baque do suicídio do marido, em novembro de 1935, e tudo
o que decorreu dessa perda, como a responsabilidade sobre a educação e a manutenção das três filhas.
Conforme Dal Farra:
É a partir de então que ela se sobrecarrega de atividades: torna-se professora de
Literatura Luso-Brasileira e da disciplina de Técnica e Crítica Literária na Universidade
do Distrito Federal, ao mesmo tempo em que mantém uma coluna sobre folclore no jornal
A Manhã, outra, de crônicas semanais, no Correio Paulistano, outra, de escritos
regulares, n’A Nação, além de organizar a revista Travel in Brazil.6
Diante de uma vida destinada à tragédia, Cecília parece construir um bunker de trabalho ao seu
redor, protegendo-se de ser absorvida pela neblina que a perseguia desde antes do nascimento. Sob o
abrigo das atividades racionais em que se envolvera, deixa transbordar na poesia o ser formado a ferro e
fogo, numa produção contínua, sólida e cercada de polêmica:
Cecília estreara, em 1919, com o livro de poemas Espectros, aliás, muito bem
recebido por João Ribeiro, que preconizara, para muito breve a ela, “a reputação de
poetisa, que de justiça lhe cabe” em virtude do seu “talento” e das suas “qualidades
poéticas”. Depois disso, Cecília publicara Nunca mais... e Poema dos poemas, em 1923,
e Baladas para El-Rei, em 1925, ambos ilustrados pelo marido Correia Dias. Em 1939,
portanto, depois de todos os percalços que narrei, dera à luz ao extraordinário Viagem
que, embora sendo o resultado da depuração das intemperanças sinistras dessa década,
parece trazer, ainda, a marca do tempo em que foi composto, pois que vem para causar
polêmica e malestares nos meios intelectuais da Academia Brasileira de Letras.7
Seguindo a trilha de sua produção literária, em 1940, casada com Heitor Grillo, Cecília vai dar aulas
na Universidade de Austin (Texas). Segue-se a esse período uma farta e incansável produção. Conforme
Dal Farra, “ao mesmo tempo em que publica obras primas como Vaga música (1942), Mar absoluto
(1945) e Retrato natural (1949), ela leva a cabo uma extensa pesquisa cujos frutos só dará à luz, dez
anos depois, em 1953.”8 em Romanceiro da Inconfidência. Depois de Romanceiro, Cecília publica
Canções (1956), Metal rosicler (1960) e o último, Solombra (1963).
Da saga de viagens a qual Cecília se lança a partir de 1940, por países como a Argentina, o Uruguai,
a França, a Bélgica, a Holanda, a Índia, incluindo Goa, a Itália, Porto Rico e Israel, que não eram para
ela “simples terras a viajar, mas culturas a serem decifradas, geografia e história a serem apreendidas,
experiências poéticas que redundaram em obras que, embora sendo versos de itinerância, são, antes, pura
poesia contemplativa.”9 São elas: Doze Noturnos da Holanda (1952), dos Poemas escritos na Índia
(1953), dos Poemas italianos (1953), de Pistóia, cemitério militar brasileiro (1955) e dos Poemas de
viagens (1940-1964).
Se por um lado a filiação existencial de Cecília Meireles era múltipla e indefinível, servindo-se a
diferentes papéis na sociedade, sua filiação estética não era muito diferente. Conforme Damasceno: “Seu
aparecimento coincide com a eclosão do movimento modernista, do qual pretenderam aqueles escritores
representar uma tendência, malgrado a diversidade de pontos de vista no enfocamento do fenômeno
literário por parte dos grupos concorrentes.”10
Participante do grupo que compunha a revista Festa, que, conforme descrita na dissertação de
mestrado intitulada “A revista Festa e a modernidade universalista na arte”, de Joseane de Mello Rücker:
(2005, p. 27):
Apresenta uma visão totalista e universalista da arte. Os seus colaboradores não
acreditavam em ruptura brusca como proclamavam os primitivistas, mas em
continuidade. Não queriam construir a modernidade negando a tradição, mas dialogando
com ela, utilizando-se das nossas origens e da nossa história cultural, sem aguilhoar-se
ao pitoresco. A inovação não deveria se edificar em oposição ao velho, mas como um
caminho para uma literatura que ultrapassasse o regional e atingisse o universal, opondo-
se à excessiva cor local. Festa almejou por uma arte sem fronteiras, fruto da crença no
espiritualismo como elemento redentor [...].11

Ainda, para Tasso da Silveira, um dos fundadores da revista, a quem se refere Rücker12: “[...] a hora
era de renovação, mas não de uma renovação que representasse apenas ruptura, mas que voltasse às
raízes cadenciais do universalismo, e cita, como exemplo, a poesia de Cecília Meireles.”13
No entanto, para Manuel Bandeira, citado na tese de doutorado “Mar de poeta: A metáfora do oceano
nas líricas de Cecília Meireles e Sophia Andresen”, de Karin Lilian Backes:
se as quatro diretrizes do grupo de Festa – velocidade, totalidade, brasilidade,
universalidade - estão bem definidas nos poemas do principal porta-voz do grupo, Tasso
da Silveira, são incapazes de dar conta das características da poesia de Cecília Meireles,
cuja voz a esse tempo já se distinguia entre os nossos poetas pela maestria no manejo de
sua arte, em que jamais a mensagem foi prejudicada em favor de uma destreza técnica.
Em Cecília, a forma, longe de ser apenas um adorno, identifica-se com a mensagem do
poema.14
Sobre a mesma discussão, Damasceno acrescenta:
Isso explica o fato de que, embora manejando metros tradicionais, Cecília Meireles
fosse apontada, quando da publicação de seus primeiros livros, como exemplo das
possibilidades renovadoras que se atribuía à corrente espiritualista. Mas o estudo
acurado de Baladas para El-Rei e Nunca Mais... e Poema dos poemas evidenciaria uma
natureza artística muito afinada, ainda, com o movimento simbolista, e cujas
peculiaridades, se pressagiadoras de um novo estilo poético, eram-no em favor da artista,
que estreava provida de uma intuição rara em nossas letras, e não à conta do grupo a que
pertencia.15
Ainda, à sombra de Bandeira sobre o caráter singular da poesia de Cecília, Backes reitera:
Por vezes inserida no movimento modernista (caso de Alfredo Bosi), a lírica de
Cecília Meireles tem marcas que a colocam, acertadamente, ombreada a versos como os
do Cemitério marinho, obra que muito deve à poesia pós-simbolista, que, a rigor, já
pertence ao modernismo. Assim, se a inserção da autora no Modernismo se deve a versos
em que há maior liberdade da forma, cabe perguntar se essa é uma conquista que veio
com ele, ou se é herança devida, como em Valéry, ao influxo simbolista. Mas Bosi acerta
quando diz que ela, como Murilo Mendes, nada deve ao grupo de Festa, que caminhou
em direção contrária ao grupo de Oswald de Andrade.16
Embora este texto até aqui se refira à poesia de Cecília Meireles em geral, nosso objetivo se
delimita em buscar imagens, na obra Mar absoluto, que reflitam de alguma o período de guerra em que
foi escrito. Não há dúvida de que uma obra tão importante para a literatura brasileira quanto a de Cecília
Meireles mereça estudos verticais e frequentes, pois muito há para se descobrir e contar. Consideramos
este texto uma gota diante do mar que se derrama das mãos da poetisa carioca em direção ao mundo.

Por onde navegam poeta e poesia


Até agora apenas sugeri o ponto extremo até o qual, creio eu, pode-se dizer que se
estende a influência da poesia; e isso pode ser melhor expresso pela afirmação de que, no
decurso do tempo, ela produz uma diferença na fala, na sensibilidade, nas vidas de todos
os integrantes de uma sociedade, de todos os membros de uma comunidade, de todo o
povo, independentemente de que leiam e apreciem poesia ou não, ou até mesmo, na
verdade, de que saibam ou não os nomes de seus maiores poetas. A influência da poesia,
na mais distante periferia, é naturalmente muito difusa, muito indireta e muito difícil de
ser comprovada. [...] Assim, se rastrearmos a influência da poesia através dos leitores
mais afetados por ela às pessoas que jamais leram nada, a encontraremos presente em
toda parte. Pelo menos a encontraremos se a cultura nacional estiver viva e sadia, pois
numa sociedade saudável há uma influência recíproca e uma interação continuas de uma
parte sobre as outras. E isso é o que eu entendo como a função social da poesia em seu
mais amplo sentido: é isso o que, proporcionalmente à sua existência e vigor, afeta a fala
e a sensibilidade de toda a nação.17
Muito se fala sobre a metafísica de Cecília Meireles e sua opção por alienar-se num momento em
que poetas engajavam-se. De fato, é tarefa árdua encontrar produção acadêmica a respeito de um veio de
cunho social na poesia de Cecília, pois, ao que aparentemente se conclui, este perfil ficou limitado a sua
carreira jornalística e a sua atuação como professora.
Diante disso, cabe refletir um pouco sobre a poesia e a função do poeta e de sua obra na sociedade.
Para T. S. Eliot, por exemplo, o levantar da questão já é polêmico: “Quando aludimos à ‘função’ de
qualquer coisa, provavelmente estamos pensando naquilo que essa coisa deve produzir em vez daquilo
que ela produz ou haja produzido.”18 Temos como dúvida, por exemplo, saber como se define uma
poesia socialmente engajada; qual o limite entre o engajamento e o panfleto; o quão explicitamente uma
poesia deve clamar pela justiça social para ser considerada engajada — ou ao menos preocupada com a
sociedade.
Para Theodor W. Adorno, falar de lírica e sociedade num mesmo contexto “trata-se de manusear o
que há de mais delicado, de mais frágil, de pô-lo em contato justamente com aquela roda-viva da qual
preservar-se intacta faz parte do ideal da lírica, pelo menos no sentido tradicional.”19
Para Trevisan,
Quando um poeta escreve um poema social localiza-se no espaço e no tempo. Abdica
da utopia, numa tentativa extrema – e a priori fracassada – de influir na história. O poema
torna-se, realmente, uma arma para ele. O poeta quer produzir determinado efeito, não só
emocional como atual. Não se limita a lavrar o coração, esperando que um dia a semente
frutifique em ações eficazes; o poeta, nesse caso, quer induzir o coração à ação. Ao
menos intencionalmente, o poema social reafirma-se prático. [...] Poesia é linguagem
extraordinária. Nesse caso, poder-se-á falar poeticamente permanecendo-se dentro dos
limites do ordinário?20
Talvez seja esse um dos principais motivos pelo qual Cecília é acusada de alienação. Sua linguagem
jamais próxima do ordinário a distancia de uma visão pragmática de ser social, e o que há de
transcendente em suas palavras a condena diante da iminência do mundo. Enquanto Trevisan afirma que
“O poeta social deverá ser, obrigatoriamente, humilde”21, Cecília impõe-se a tarefa de “Acordar a
criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam arrastar. Mostrar-lhes a vida em
profundidade.”22 Dessa forma, ao associar sua experiência de vida — e morte — a sua arte, Cecília
corrobora com Adorno, quando o filósofo afirma que “da mais irrestrita individuação a formação lírica
tem esperança de extrair o universal.”23
Trevisan afirma que o poema é “uma coisa alada que não pode transformar-se num leão ou elefante.
Se o poeta quiser ser eficaz, seja homem de ação. A práxis da poesia é a da ação indireta. A práxis
política, a da ação direta. [...]”24. Cecília era uma mulher de ação. Na vida, não na poesia. Ou talvez,
como pretendemos demonstrar, não de forma constantemente explícita na poesia. A obra de Cecília toma
outros caminhos para se inscrever na sociedade: “Aparentemente desligado da história, o poema
introduz-se nela pela conspiração do silêncio e da ruptura da linguagem.”25
Em Cecília Meireles, temos a poesia como a poesia é em essência, desobrigada de funções sociais
específicas, por natureza agregadora do sentimento da humanidade. Realiza-se dessa forma o seu caráter
universal, oriundo do um, mas desligado dele ao alcançar o outro:
Dá-se como uma fusão de mitos coletivos e mitos pessoais na vida de cada um. O
poeta não se subtrai a essa lei. O que faz é unificar, na medida do seu talento, o
patrimônio mítico pessoal com o patrimônio coletivo. É tanto mais poeta quanto mais
atinge essa coincidência. Os grandes poetas afloram o milagre: dão a impressão de que
seus mitos pessoais se converteram em mitos de todo um povo.26
Ainda conforme Trevisan, “Inútil imaginar que a poesia se constrói com bons ou maus sentimentos;
ela se constrói, além dos bons e maus sentimentos, mediante palavras, que são materiais tão resistentes
como quaisquer outros.”27 Para Adorno, igualmente, “o conteúdo de um poema não é a mera expressão
de emoções e experiências individuais. Pelo contrário, estas só se tornam artísticas quando, exatamente
em virtude da especificação de seu tomar-forma estético, adquirem participação no universal.”28
A maestria no uso da linguagem é o ponto alto da poesia de Cecília. Através do manejo arguto das
palavras é que ela conduz o leitor a um plano superior da existência, num jogo de aproximação e
distância de experiências, de presença e ausência de sentidos. Mesmo quando parte de sensações
aparentemente distantes do dia a dia, do sofrimento advindo de situações reais da vida, Cecília é capaz
de aproximar o interlocutor de um sentimento que é extraterreno, mas intimamente humano. Quando, ao
contrário, a poeta parte da situação mínima do nosso cotidiano para demonstrar um sentido metafísico
máximo da humanidade, ela igualmente nos adentra com suas palavras, nos reúne nelas. Na ânsia de
demonstrar ao humano o que é de fato humano, mesmo que à primeira vista não pareça, incluindo o que
lhe é intrínseco e superior, Cecília está agindo socialmente, em prol do que impôs como missão para a
sua poesia. Adorno sobre o esquema universal / individual, aponta:
Essa universalidade do conteúdo lírico, todavia, é essencialmente social. Só entende
aquilo que o poema diz quem escuta em sua solidão a voz da humanidade; mais ainda, a
própria solidão da palavra lírica é pré-traçada pela sociedade individualista e, em última
análise, atomística, assim como, inversamente, sua postulação de validade universal vive
da densidade de sua individuação.29
Portanto, almejando o universal, mas preso ao espaço circunscrito e ao mesmo tempo inesgotável da
linguagem humana, o poeta procura se movimentar. No momento em que limita a sua palavra a um espaço
e/ou a um tempo, suicida-se artisticamente, pois cai no lado ordinário da linguagem:
A palavra, ou antes, a frase, que o poeta trabalha, constitui uma realidade própria
com leis físicas e metafísicas. O problema reside aí: a palavra não é um material
polivalente apenas a partir do seu exterior; é um material polivalente a partir do seu
interior também. Só que esse interior não é propriedade privada. Sendo o bem humano
mais comum, todos o possuem, ninguém o possui. O monólogo tende a transcender-se. É
uma palavra em busca de um interlocutor, isto é, uma palavra tresmalhada, ou então, uma
palavra que se suicida, a protestar contra suas companheiras. Sempre uma palavra no
meio de outras palavras.30
O uso da palavra é, em si mesmo, uma atitude transgressora, pois o papel do poeta é recriá-la;
inaugurar seu sentido, surpreender as expectativas; romper com o pré-estabelecido:
Essa exigência feita à lírica, todavia, a exigência da palavra virginal, é, em si mesma
social. Implica o protesto contra um estado social que todo indivíduo experimenta como
hostil, alheio, frio, opressivo, e imprime negativamente esse estado na formação lírica:
quanto mais pesa esse estado, mais inflexivelmente lhe resiste a formação, não se
curvando a nada de heterônomo e constituindo-se inteiramente segundo a lei que lhe é
própria. Seu distanciamento da mera existência torna-se a medida do que há nesta de
errado e ruim. Em protesto contra ela o poema enuncia o sonho de um mundo em que
seria diferente.31
Na forma da utilização da palavra é que o poeta se define e define sua interação com a sociedade. É
neste âmbito que analisaremos a poesia de Cecília Meireles: confiando ao seu lirismo uma atitude de
alcance social. Para Trevisan, “Por mais lírica que seja a poesia, ela traduz uma inquietação coletiva.
Não existe palavra impune. Nem silêncio descomprometido.”32
Silêncio. Eis um elemento crucial na poesia de Cecília Meireles. Ler Cecília é ler também – e
sobretudo – silêncios. Apegar-se ao que nela está explícito é afogar no próprio mar de sua poesia o que
está silenciado, mas presente e atuante na significação: “Que faz o poeta se não adensar o silêncio? Um
poema é uma ou várias palavras rodeadas de silêncio por todos os lados. O silêncio não subsiste por si
mesmo. É como a palavra: um espaço dentro do qual a significação circula.”33
Nos silêncios de Cecília pretendemos ler o que se esconde por trás da metafísica resplandecente;
onde vive e significa o “meramente” humano; de que formas a poeta se faz social num discurso
desobrigado do efêmero e voltado ao eterno. Nas palavras de T. S. Eliot,
As pessoas suspeitam às vezes de qualquer poesia com um propósito particular, isto
é, a poesia em que o poeta defende conceitos sociais, morais, políticos ou religiosos,
assim como outras pessoas julgam amiúde que determinada poesia seja autêntica só
porque exprime um ponto de vista que lhes apraz. Eu gostaria de dizer que a questão
relativa ao fato de o poeta estar utilizando sua poesia para defender ou atacar
determinada atitude social não interessa. O mau verso pode obter fama temporária
quando o poeta reflete uma atitude popular do momento; mas a verdadeira poesia
sobrevive não apenas à mudança da opinião pública como também a completa extinção
do interesse pelas questões com as quais o poeta esteve apaixonadamente envolvido.34

Em meio às ondas, avistando a margem


Depois de termos observado a vida e a carreira de Cecília Meireles e discutido sobre a função da
poesia na sociedade, faz-se fundamental estabelecer um modo de análise para os poemas. O objetivo
principal é invadir a poesia de Cecília Meireles com olhar perscrutador, a fim de avistar o que há de
terra firme beirando tanto mar, o que há de dor terrena, da guerra, da perda, de quem fica e vê partir.
Não se trata de olhar para a sua imensidão e inebriar-se e desesperar-se e perder-se. E deixar-se
levar. Não se trata de bancar o navegador intrépido ou o Ulisses ardiloso. Trata-se, antes, de nadar em
segurança, até aonde ainda se dá pé, e de lá encarar a beira. As margens. O que há de humano, concreto,
acessível. Referências do cotidiano de quem não foi à guerra, nem lutou, nem morreu. Apenas ficou,
esteve e sentiu. De alguma forma, distante e distorcida ou apenas nebulosa — por distante.
O que era a guerra para quem não estava na guerra? Onde acontecia? Que forma tinha? Tinha cor? E
cheiro? O que era o cheiro da guerra?
Do mundo, o que se tem depois da guerra? Quem ficou? Quem nem sabia que poderia ter ido? Quem
não pensou que guerra era coisa feita por alguém?
Há guerra para todos os lados, também para os de Cecília.
Pinçaremos da sua obra Mar absoluto, escrita em 1945, certas imagens que se referem ao momento
sócio-histórico de final de guerra ao qual o mundo vivia. Em primeiro lugar, entretanto, é preciso
estabelecer alguns conceitos do que entenderemos aqui como imagem poética.
Para Octavio Paz, “Convém advertir, pois, que designamos com a palavra imagem toda forma verbal,
frase ou conjunto de frases, que o poeta diz e que unidas compõem o poema.”35 Dessa definição (muito)
aparentemente simples, o autor extrai que “Cada imagem – ou cada poema composto de imagens – contém
muitos significados contrários ou díspares, aos quais abarca ou reconcilia sem suprimi-los.”36
É desses significados contrários ou díspares que passamos a ter noção da riqueza da imagem. Um
poema é feito de imagens e é ele mesmo uma imagem capaz de se desdobrar em tantos sentidos quantos
forem as leituras dele realizadas. Uma imagem não diz apenas do significado dado pelo poeta; ela diz da
dialogia entre poeta e poema, poema e leitor, poeta e leitor, poema e mundo, humano e mundo, e todas
suas possibilidades. Assim,
O poema não diz o que é e sim o que poderia ser. Seu reino não é o do ser, mas o do
“impossível verossímil” de Aristóteles. Apesar dessa sentença adversa os poetas se
obstinam em afirmar que a imagem revela o que é e não o que poderia ser. E ainda mais:
dizem que a imagem recria o ser.37
O reino do poema, na verdade, como já dito, é a linguagem. Nela são realizados os sentidos, não há
fim possível além da própria linguagem; essa é sua vantagem e seu desespero. Procurar o além dela é
cair no abismo surdo das referências, as quais não encontram objetivo plausível no mundo real. Tudo
acontece internamente ao poema e ressoa em seu exterior:
A condenação das palavras origina-se da incapacidade da linguagem para
transcender o mundo dos opostos relativos e interdependentes, do isto em função do
aquilo. “Quando se fala de apreender a verdade, pensa-se nos livros. As palavras, é
claro, têm um valor. O valor das palavras reside no sentido que ocultam. Ora, este
sentido não é senão um esforço para alcançar algo que não pode ser alcançado realmente
pelas palavras. Com efeito, o sentido aponta para as coisas, assinala-as, mas não as
alcança jamais. Os objetos estão mais além das palavras.38
Portanto, ao propormos o pinçar dessas imagens em Mar absoluto que se referem ao momento
vivido pela humanidade quando da escritura da obra, estabelecemos previamente a consciência de que
essas imagens atravessam a realidade e não é possível estagná-las em estruturas pré-concebidas ou
categorias imaginadas. Isso seria forçar sentidos não intrínsecos aos poemas. Seria tentar fazer a obra
literária caber nos conceitos que aqui nos movem; tarefa de antemão inútil. Conforme Octavio Paz, “A
imagem diz o indizível: as plumas leves são pedras pesadas. Há que retornar à linguagem para ver como
a imagem pode dizer o que, por natureza, a linguagem parece incapaz de dizer.”39
É pela imagem que a poesia se liberta dos limites da linguagem e o indizível se, então, demonstrável:
“A linguagem explica, representa; o poema não explica: apresenta. Não alude à realidade; pretende – e às
vezes o consegue – recriá-la. Portanto, a poesia é um penetrar, um estar ou ser na realidade.”40
Ainda para Paz dessa forma:
Toda frase quer dizer algo que pode ser dito ou explicado por outra frase. Em
consequência, o sentido ou o significado é um querer dizer. Ou seja: um dizer que pode
dizer-se de outra maneira. O sentido da imagem, pelo contrário, é a própria imagem: não
se pode dizer com outras palavras. A imagem explica-se a si mesma. Nada, exceto ela,
pode dizer o que quer dizer. Sentido e imagem são a mesma coisa. Um poema não tem
mais sentido que as suas imagens.41
Na sua tese de doutorado, Backes traz conceitos de outros autores sobre o tema da imagem poética,
entre eles o britânico Cecil Day Lewis:
Indagando o que se entende por imagem poética, o poeta inglês [Cecil Day Lewis]
comenta que um epíteto, uma metáfora, um símile, podem criar uma imagem, mas que toda
imagem poética é, de algum modo, metafórica, e mesmo as emocionais e intelectuais
trazem algum traço do sensível que as move do tipo mais comum, as visuais,
conclamando também os outros sentidos.42
Além de Day Lewis, a tese apresenta a definição de Bachelard:
Para Gaston Bachelard, antes de caber à imaginação o papel de formar imagens, ao
contrário, cabe a ela deformar o que é fornecido pela percepção, pois sua função é
libertar-nos das imagens prontas, “[...] uma imagem estável e acabada corta asas à
imaginação.” O imaginante na linguagem só é verdadeiramente sentido quando
procuramos “[...] a propósito de todas as palavras, os desejos de alteridade, os desejos
de duplo sentido, os desejos de metáfora”, acrescentando ser natural na linguagem
poética exceder os limites do pensamento, pois essa é uma das formas da audácia
humana, fazer o irreal parecer verdadeiro. [...] E o mérito de ser reconhecida como
imagem literária vem somente através da originalidade, transformando um sentido já
desgastado em um novo significado, acrescido de um onirismo novo, “significar outra
coisa e fazer sonhar diferentemente, tal é a dupla função da imagem literária. A poesia
não exprime algo que lhe permanece estranho. [...] a imagem literária não vem revestir
uma imagem nua, não vem dar a palavra a uma imagem muda” ela é a emergência da
imaginação e representa um desejo humano.43
Ainda, complementando o exposto até aqui, Backes apresenta a visão do filósofo francês Mikel
Dufrenne: “para Dufrenne, ‘penetrar no mundo de um poeta não é descobrir certas imagens obsessivas, é
aprofundar um sentido’, pois a poesia não exprime uma emoção, mas através de seu assunto, exprime um
mundo.”44
A partir daqui, munidos de um pouco da essência do ser-Cecília, de noções acerca de uma possível
função social da poesia e de breve conceitualização de imagem poética, podemos iniciar o mergulho
exploratório em Mar absoluto.

Até onde dá pé
Na última parte deste artigo, realizaremos, na obra Mar absoluto, uma coleta de imagens que
reflitam o sentimento da sociedade no período de guerra e pós-guerra. Serão levadas em consideração
questões referentes à distância em que o Brasil se encontrava da guerra e à forma como os
acontecimentos referentes ao conflito se refletiam no cotidiano do brasileiro.
O que se busca não é a guerra em si, mas o clima, a partir do entendimento de que era inerente à
Cecília “um poder de abraçar, de envolver/as coisas sofredoras,/e levá-las nos ombros como os anhos e
as cruzes.”45 Nas imagens que buscamos, o eu lírico personifica aquele que ficou em terra brasileira,
que vê a guerra de longe, em quem ressoa o sofrimento do mundo de diferentes formas e em diferentes
níveis de intensidade.
Mar absoluto, além dos poemas diretamente alusivos à guerra, é repleto de signos do pessimismo,
da fragmentação, da desolação inerente à época em que foi publicado. Mas é, também, repleto da marca
da distância de quem observa ao longe, que fareja, que adivinha, mas jamais viverá o que se sente no
front.
Tentaremos pensar Cecília como a poeta que abraça a dor do mundo, esquecendo um pouco a dor do
ser — e de ser — tão própria de suas palavras. Um eu lírico marcado pela experiência de estar no mundo
num momento em que o mundo se desfaz e se recomeça; mesclando uma existência metafísica com uma
responsabilidade física de existir.
Em Mar absoluto, a primeira imagem que pinçamos é a do próprio mar: imenso e absoluto, cobrindo
a terra, regido em todos os quatro cantos pela mesma lua, porém assumindo diferentes formas em cada
margem que toca. Distância e proximidade numa mesma imagem; o mar é a alma do mundo, mas
indiferente ao mundo. Sentenciada, a poeta proclama: “Deus te proteja, Cecília, que tudo é mar — e mais
nada.”46
A maior parte dos títulos da obra sugere: escuro (“Noturno Madrugada no campo”, “Minha sombra”,
“Retrato obscuro”, “Madrugada na aldeia”, “Noturno”, “Noite no rio”, “Noite”, “Constância do deserto”,
“Nós e as sombras”, “Sobriedade”, “Dia de chuva”); morte (“Os presentes dos mortos”, “Suave morta”,
“Os mortos”, “Natureza morta”, “Enterro de Isolina”); apego ao passado (“Museu”, “Convite
melancólico”, “Desejo de regresso”, “Desapego”, “Saudade”, “Cantar saudoso”); desesperança em
relação ao futuro (“Prazo de vida”, “Caronte”, “Blasfêmia”); distância (“Distância”, “Vigilância”);
torpor (“Irrealidade”, “Mulher adormecida”, “Suspiro”, “Contemplação”).
Há, ainda títulos que se referem explicitamente à guerra: “Lamento da noiva do soldado”; “Balada do
soldado Batista”; “Lamento da mãe órfã”; “Lamento do oficial por seu cavalo morto”; e “Guerra”.
Entretanto, não serão esses o foco da observação, visto que nos interessamos por uma alusão menos
direta. O que nos importa, nesta obra de Cecília, é o clima de perda do sentido ao ver — de diferentes
distâncias e perspectivas— o mundo se desfazer.
Mesmo nos poemas que se referem explicitamente à guerra, como “Balada do soldado Batista”, a
questão da distância insondável é marcante. Os seguintes trechos denotam o sentimento da dor imprecisa,
porque imaginada: “Não vem certa? Onde está, que não manda uma letra?/Que demora tão
esquisita!/Perto do amor. Longe da vista.”; “Nas cadeiras de vime, os velhinhos sentados/perguntam a
quem chega: ‘Quanto dista/a África do Brasil? Que distância infinita!’ e “Enquanto não souberem,
sonharão que ainda exista/em algum lugar seu filho, o soldado Batista.”
Em “Lamento da mãe órfã” há o retrato do desespero de uma mãe distante, que não sabe o que o filho
passou, viu ou viveu, cuja distância não a permite nem imaginar como ele está. Ela apenas o quer de
volta, da forma em que esteja, conforme o trecho: “Vem para perto, nem que já estejas desmanchando/em
fermentos do chão, desfigurado e decomposto!/Não te envergonhes do teu cheiro subterrâneo,/dos vermes
que não podes sacudir de tuas pálpebras,/da umidade que penteia teus finos, frios
cabelos/cariciosos./Vem como estás, metade gente, metade universo,/com dedos e raízes, ossos e vento, e
as tuas veias/a caminho do oceano, inchadas, sentindo a inquietação das marés.”
Embora Cecília não seja considerada uma poetisa engajada, é sua a poesia que tão bem ilustra o ser
movido pela guerra; irrefreável em direção à violência; desprovido de sentido e esperança como só um
humano pode ser: “Nós merecemos a morte,/porque somos humanos e a guerra é feita pelas nossas
mãos,/pela nossa cabeça embrulhada em séculos de sombra,/por nosso sangue estranho e instável, pelas
ordens/que trazemos por dentro, e ficam sem explicação.” Neste trecho de “Lamento do oficial por seu
cavalo morto” temos a mesma imagem de distância e proximidade, em que Cecília usa a primeira pessoa
do plural para se unir ao homem que guerreia, que ‘mata seus irmãos’.
“Lamento da noiva do soldado” repete o tema da distância, reforçando o sentimento daquele que
ficou: “Teus olhos, que me viram, como podem ser fechados?/Aonde foste, que não me chamas, não me
pedes,/como serei agora, sem ti?/Cai neve nos teus pés, no teu peito, no teu/coração… Longe e
solitário… Neve, neve…/E eu fervo em lágrimas, aqui.”
Em “Guerra”, por fim, a alusão ao combate é direta, porém, nos ateremos à questão da distância. O
eu lírico demonstra profunda preocupação com o que é individual em meio à massa disforme: “Oh! os
dedos com alianças perdidos na lama.../Os olhos que já não pestanejam como a poeira.../As bocas de
recados perdidos.../O coração dado aos vermes, dentro dos densos uniformes...” Essa é a marca da
distância. Temos a impressão de que o eu lírico observa a guerra através de fotografias, e busca
incansável nelas o que é verdadeiro e humano, o que a imagem estática não é capaz de apreender e que,
portanto, não podemos sentir. O trecho “[...] e nós e vós, imunes,/chorando, apenas, sobre fotografias,/—
tudo é um natural armar e desarmar de andaimes/entre tempos vagarosos,/sonhando arquiteturas” mostra
como a guerra se naturaliza no cotidiano de quem a acompanha de longe, através de uma representação da
realidade.
Após a observação de imagens da distância nos cinco poemas explicitamente referentes à guerra,
partiremos para as associações menos explícitas, porém igualmente representativas do clima de guerra e
pós-guerra, encontradas em Mar absoluto.
Em Contemplação, temos a atitude contemplativa — e distante — perante a vida. E qual outra seria?
Como viver uma guerra que não é sua? “Não acuso. Nem perdoo./Nada sei. De nada./Contemplo.”;
“Parece que às vezes me falam./Mas também não tenho certeza./Quem me deseja ouvir, nestas
paragens/onde somos todos estrangeiros?”; “Tão pouco somos, — e tanto causamos,/com tão longos
ecos!” Mesma atitude encontramos em Sugestão, agora na imagem da lua, que se repete no livro como
símbolo da distância; alta e isenta; ora quente, ora fria; a mesma e diferente; pairando sobre o mundo ao
mesmo tempo em guerra e ao mesmo tempo cotidiano, pois a natureza não se move em função do que é
humano: “Lua que envolve igualmente/os noivos abraçados/e os soldados já frios./Também como este ar
da noite:/sussurrante de silêncios,/cheio de nascimentos e pétalas.” O eu lírico retoma a mesma lua em
“Distância”: “- Para esse mundo vão meus pensamentos,/tão estrangeiros, tão desapegados,/como se esta
varanda fosse a Lua.”
O poema “Prazo de vida” traz uma rima soturna (frio – sombrio – vazio) que personifica o clima
apocalíptico e culmina com a visão máxima do fim do mundo pela guerra: “O universo ficou
vazio,/porque a mão do amor foi partida/no vazio.” Da mesma forma encontramos, em “Vigilância”,
imagens profundamente sombrias proferidas pelo eu lírico que vigia e se aflige, que vê na beleza apenas
outra face do sofrimento: “presságio triste”; “errantes barcos”; “almas de angústia demorada e cega”;
“Ilha em sobressalto”; “eternamente aflita”; “tempestade certa”. Em “Evidência”, declara-se o fim da
pureza para um mundo definitivamente corrompido: “Puros e tristes ficamos,/puros e tristes e sós./O
coração é vaga nuvem./E vaga areia, a voz.”
A visão do passado que morre sem deixar esperanças para o futuro também é expressa em “Museu”,
local onde tudo o que pensamos que somos acaba indo parar. Aqui, o eu lírico se questiona
retoricamente, pois tudo já se encontra morto e frio: Espadas frias, nítidas espadas,/duras viseiras já sem
perspectiva,/cetros sem mãos, coroa já não viva/de cabeças em sangue naufragadas;/anéis de demorada
narrativa,/leques sem falas, trompas sem caçadas,/pêndulos de horas não mais escutadas,/espelhos de
memória fugitiva;/ouro e prata, turquesa e granadas,/que é da presença passageira e esquiva/das heranças
dos poetas, malogradas:/a estrela, o passarinho, a sensitiva, a água que nunca volta, as bem amadas,/a
saudade de Deus, vaga e inativa...?”
A descrença no futuro é explícita no poema “Futuro”: “Perguntareis: ‘Mas era aquilo, o teu
silêncio?’/Perguntareis: ‘Mas era assim, teu coração?’/Ah, seremos apenas imagens inúteis, deitadas no
barro,/do mesmo modo solitárias, silenciosas,/com a cabeça encostada à sua própria recordação.” e
culmina em “Convite melancólico”: “Já nem queremos nada,/tanto estamos desgostosos:/nem água nem
ouro nem beijo./Para nunca mais – o horizonte e a sua flor!”; e “Desejo de regresso” relata a ânsia de
voltar a um mundo que se quebrou: “Deixai-me nascer de novo,/nunca mais em terra estranha,/mas no
meio do meu povo,/com meu céu, minha montanha,/meu mar e minha família.”
Juntamente à descrença no futuro, destaca-se a falta de sentido da vida, sob a visão do mesmo eu
lírico desolado. O destino é certo e vão: a morte. Fim. É o que nos relatam os trechos de “Cavalgada”:
“Irás ao céu num selim de ouro,/sem saberes quem pôs teu pé no estribo./Rodarás entre a poeira e
Sírius,/com esses ginetes sem voz e sem sono,/até vir o mais poderoso/que esmague a rosa guardada em
teu peito./Depois, continuarão saltando, mas tão longe/que não perturbarão tuas pálpebras soterradas.”
Também cabe ressaltar a frustração do eu lírico com o seu humano. Ao mesmo tempo em que não se
abstém da culpa da humanidade, o eu lírico lamenta a existência de uma raça sem solução, responsável
por sua própria miséria, como em “Pássaro azul”: “Mas não voltes aqui, pois é pesado e triste/o humano
clima, para o teu destino aéreo./Eu mal te posso amar, com o sonho do meu corpo,/condenado a este chão
e sem gosto terrestre.” e em “O tempo no jardim”: “Se algum de nós avistasse o que seríamos com o
tempo,/todos nós choraríamos, de mútua pena e susto imenso.” Em “Os mortos”, o eu lírico proclama um
ser humano cuja maior desgraça é sua própria existência como tal, ou seja, a impossibilidade de
redenção: “Creio que o morto chorou depois da morte. /Chorou por não ter sido outro./(É só por isso que
se chora.)” Já em “Os homens gloriosos” transborda o desejo do eu lírico de não ser humano, pois em
relação à espécie só resta desolação: “Senhor da Vida, leva-me para longe!/Quero retroceder aos aléns
de mim mesma!/Converter-me em animal tranquilo,/em planta incomunicável,/em pedra sem
respiração./Quebra-me no giro dos ventos e das águas!/Reduze-me ao pó que fui!/Reduze a pó minha
memória!/Reduze a pó/a memória dos homens, escutada e vivida...”
“Compromisso” revela a capacidade do eu lírico de absorver a dor alheia, de carregar nos ombros o
dever de sentir pelos outros, por não se permitir estar no mundo sem padecer as dores do mundo, mesmo
as distantes: “Vive! — clamam os que se foram,/ou cedo ou irrealizados./Vive por nós! — murmuram
suplicantes./Vivo por homens e mulheres/de outras idades, de outros lugares, com outras falas./Por
infantes e velhinhos trêmulos./Gente do mar e da terra,/suada, salgada, hirsuta./Gente de névoa, apenas
murmurada.”
Para essa “gente de névoa, apenas murmurada” o eu lírico endereça Carta, objeto por si mesmo
emblema da distância, busca do olhar o do outro, cujo conteúdo lamenta, mais uma vez, uma humanidade
que consome a si mesma e que um dia necessitará de perdão pelo próprio desmazelo: “Eu, sim. – Mas a
estrela da tarde, que subia e descia o céu, cansada e esquecida?/Mas os pobres, batendo às portas, sem
resultado, pregando à noite e o dia com seu punho seco?/Mas as crianças, que gritavam de coração
alarmado: ‘por que ninguém nos responde?’/Mas os caminhos, mas os caminhos vazios, com suas mãos
estendidas à toa?/Ah! – Eu, sim – porque já chorei tudo, e despi meu corpo usado e triste,/E as minhas
lágrimas o lavaram, e o silêncio da noite o enxugou./Mas os mortos, que dentro do chão sonhavam com
pombos leves e flores claras,/Mas os que no meio do mar pensavam na mensagem que a praia
desenrolaria rapidamente até seus dedos.../Mas os que adormeceram, de tão excessiva vigília – e eu não
sei mais se acordarão.../E os que morreram de tanta espera... – e que não sei se foram salvos./Eu sim.
Mas tudo isso, todos esses olhos postados em ti, no alto da vida,/Não sei se te olharão como
eu,/renascida de mim, e desprovida de vinganças,/no dia em que precisares de perdão.”
Em contrapartida ao ser humano condenado, “Mar absoluto” revela um mundo vivido à parte do
clima apocalíptico da guerra, o mundo de quem segue vivendo sua vida, para quem a guerra não passa de
notícias de jornal: “Caem as folhas secas sobre os longos relatos de guerra:/e o sol empalidece suas
letras infinitas.” No mesmo poema, o eu lírico faz menção àqueles que mantém o mundo funcionando
enquanto outros guerreiam: “Aqui, toda a vizinhança proclama convicta:/’Os jornais servem para fazer
embrulhos’./E é uma das raras vezes em que todos estão de acordo.”
Paradoxo é viver sob o clima fragmentar de um mundo desfeito pela guerra enquanto longe da
devastação física a vida segue o ritmo inexorável da vida: o sobreviver. Em “Mulher ao espelho”, temos
um eu lírico que diferencia — mas não hierarquiza — níveis diferentes de consciência: “Falará, coberta
de luzes,/do alto penteado ao rubro artelho./Porque uns expiram sobre cruzes,/outros, buscando-se no
espelho.”; em “Transeunte”, o paradoxo é claro: “Tenho vergonha dos meus sonhos de beleza”; em
Inscrição, o questionamento revela uma desconstrução de valores em tempos nos quais o correto era
sofrer: “Por que havemos de ser unicamente humanos,/limitados em chorar?”
Por fim, trazemos o que consideramos um dos mais significativos poemas de “Mar absoluto”, no
sentido de descrever o sentimento do eu lírico em relação ao mundo vigente. No plano real, talvez, uma
resposta — e um desafio — de Cecília Meireles aos que colocam em xeque seu comprometimento com a
sociedade. Em “Interpretação”, Cecília se expõe, se defende, se explica, se duvida e duvida da
necessidade de se retratar na poesia uma realidade que pode ser ela mesma ilusão: “As palavras aí estão,
uma por uma:/porém minha alma sabe mais./De muito inverossímil se perfuma/o lábio fatigado de
ais./Falai! que estou distante e distraída,/com meu tédio sem voz./Falai! meu mundo é feito de outra
vida./Talvez nós não sejamos nós.” Hipótese de irrealidade corroborada em “Nós e as sombras”:
“Éramos duplos, éramos tríplices, éramos trêmulos,/à luz dos bicos de acetilene,/pelas paredes
seculares, densas, frias,/e vagamente monumentais./Mais do que as sombras éramos irreais.”

Conclusão
Com o objetivo de recortar imagens sobre o clima de desolação, fragmentação e desesperança que
tomou conta do mundo durante o período da Segunda Guerra Mundial e também do pós-guerra, em que
parte da humanidade havia sido exterminada ou devastada, realizamos esta análise. É claro que, diante de
águas tão profundas quanto às de Cecília Meireles, pudemos explorar apenas até onde “dávamos pé”.
Não encontramos todas as imagens nem tampouco chegamos ao fundo das que encontramos, mas,
neste breve espaço, procuramos ilustrar o que pensamos sobre o que seria a vida de quem viveu a guerra
à distância e a reproduziu em palavras. Nada no mundo escapou à onda avassaladora da guerra, e a
poesia de Cecília não seria uma exceção.
Diz Trevisan: “O poeta testemunha a história, impõe mesmo uma mensagem política, mas sem
autoflagelar-se. Seu depoimento confunde-se com sua expressão. E com sua autenticidade. A única coisa
que não pode corromper-se é o sentimento.”47 No Mar absoluto de Cecília Meireles, o sentimento não
se corrompe, muito antes o contrário, ele se alimenta da dor do mundo da poetisa e emerge em direção ao
transcendente da arte, que não tem guerra, época ou estrutura — é um sempre porvir ao leitor.

Referências
ADORNO, Theodor W. Lírica e sociedade. Em: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
BACKES, Karin Lilian. Mar de poeta: A metáfora do oceano nas líricas de Cecília Meireles e Sophia
Andresen. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Letras, UFRGS, Porto Alegre, 2008.
DAL FARRA, Maria Lúcia. Cecília Meireles: imagens femininas. Cadernos Pagu, n. 27, julho-dezembro
de 2006, pp. 333-371. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cpa/n27/32147.pdf>.
Acesso em: 9 dez. 2010.
DAMASCENO, Darcy. Poesia do sensível e do imaginário. Em: Obra poética. Rio de Janeiro:
Companhia José Aguilar Editora, 1972.
ELIOT, T. S. A função social da poesia. Em: De poesia e poetas. São Paulo: Brasiliense, 1991.
Disponível em: <http://blogs.abril.com.br/singrandohorizontes/2009/06/t-s-eliot-funcao-social-
poesia.html>. Acesso em: 10 dez. 2010.
MEIRELES, Cecília. Mar absoluto. Em: Obra poética. Rio de Janeiro: Companhia José Aguilar Editora,
1972.
PAZ, Octavio. A imagem. Em: Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 2009.
RÜCKER, Joseane de Mello. A revista Festa e a modernidade universalista na arte. Estudo de caso:
Adelino Magalhães. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Letras, UFRGS, Porto
Alegre, 2005. Disponível em:
TREVISAN, Armindo. Reflexões sobre a poesia. Porto Alegre: InPress, 1993.

Notas
1 TREVISAN, Armindo. Reflexões sobre a poesia. Porto Alegre: InPress, 1993.
2 DAL FARRA, Maria Lúcia. Cecília Meireles: imagens femininas. Cadernos Pagu, n. 27, julho-
dezembro de 2006, p. 335. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cpa/n27/32147.pdf>. Acesso em: 9
dez. 2010.
3 Apud DAMASCENO, Darcy. Poesia do sensível e do imaginário. Em: Obra poética. Rio de Janeiro:
Companhia José Aguilar Editora, 1972, p. 58.
4 DAL FARRA, Maria Lúcia. Op. cit., 2006, p. 336.
5 Ibid.
6 Ibid., p. 337.
7 Ibid., p. 339.
8 Ibid., p. 340.
9 Ibid., p. 340.
10 DAMASCENO, Darcy, Op. cit., 1972, p.13.
11 RÜCKER, Joseane de Mello. A revista Festa e a modernidade universalista na arte. Estudo de caso:
Adelino Magalhães. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Letras, UFRGS, Porto
Alegre, 2005, p. 27.
12 2005, p. 31.
13 RÜCKER, Joseane de Mello. Op. cit., 2005, p. 31.
14 BACKES, Karin Lilian. Mar de poeta: A metáfora do oceano nas líricas de Cecília Meireles e
Sophia Andresen. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Letras, UFRGS, Porto Alegre,
2008.
15 DAMASCENO, Darcy, Op. cit., 1972, p. 14.
16 BACKES, Karin Lilian. Op. cit., 2008, p. 62.
17 ELIOT, T. S. A função social da poesia. Em: De poesia e poetas. São Paulo: Brasiliense, 1991.
Disponível em: <http://blogs.abril.com.br/singrandohorizontes/2009/06/t-s-eliot-funcao-social-
poesia.html>. Acesso em: 10 dez. 2010.
18 Ibid.
19 ADORNO, Theodor W. Lírica e sociedade. Em: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p.
193.
20 TREVISAN, Armindo. Reflexões sobre a poesia. Porto Alegre: InPress, 1993, p. 33. Os grifos são do
autor.
21 Ibid, p. 34.
22 DAMASCENO, Darcy, Op. cit., 1972, p. 58.
23 ADORNO, Theodor W. Op. cit., 1980, p. 194.
24 TREVISAN, Armindo. Op. cit., 1993, p. 34.
25 Ibid, p. 34.
26 Ibid, p. 10.
27 Ibid, p. 11.
28 ADORNO, Theodor W. Op. cit., 1980, p. 193.
29 ADORNO, Theodor W. Op. cit., 1980, p. 194.
30 TREVISAN, Armindo. Op. cit., 1993, p. 24. Os grifos são do autor.
31 ADORNO, Theodor W. Op. cit., 1980, p. 195.
32 TREVISAN, Armindo. Op. cit., 1993, p. 25.
33 Ibid, p. 24.
34 ELIOT, T. S. Op. cit., 2010.
35 PAZ, Octavio. A imagem. Em: Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 37.
36 Ibid, p. 38.
37 Ibid, p. 38.
38 Ibid, p. 43.
39 Ibid, p. 44.
40 Ibid, p. 50.
41 Ibid, p. 47.
42 BACKES, Karin Lilian. Op. cit., 2008, p. 38.
43 Ibid, p. 44.
44 Ibid, p.46.
45 MEIRELES, Cecília. Mar absoluto. Em: Obra poética. Rio de Janeiro: Companhia José Aguilar
Editora, 1972.
46 MEIRELES, Cecília. Op. cit., 1972.
47 TREVISAN, Armindo. Op. cit., 1993, p. 12.
POÉTICA DA PEDRA:
A LINGUAGEM DA DUREZANA POESIA DE JOÃO CABRAL DE
MELO NETO
Ana Karina SILVA1
Todo poeta verdadeiro é muito mais capaz do que se pensa geralmente de
raciocínio exato e de pensamento abstrato.
Paul Valéry
O Engenheiro, terceira obra de João Cabral de Melo Neto, foi publicada em 1945 e sinaliza uma
mudança poética do autor caso se compare à poesia anterior que diversos críticos2 acreditavam ser
fortemente influenciada pelo Surrealismo. Essa postura tomada demonstra um amadurecimento e o início
de uma trajetória lúcida apresentada pelo poema que dá título à obra: como um engenheiro, o poeta faz
um trabalho de construção, desenhando, projetando e calculando e utilizando o lápis, o esquadro e o
papel. Essa valorização do trabalho com a linguagem é empregada conscientemente por alguns poetas da
literatura moderna como Baudelaire, Mallarmé e Valéry além dos brasileiros Carlos Drummond de
Andrade, Murilo Mendes e o próprio João Cabral. No entanto, percebe-se, nas composições deste
último, um processo, quase levado ao extremo, em que forma e conteúdo se interpenetram criando uma
espécie de programa estético do poeta, plenamente alcançado em obras posteriores, tornando o nome de
João Cabral de Melo Neto como um marco na poesia brasileira.
A análise proposta por este trabalho será justamente perceber de que forma se articulam os preceitos
poéticos de O Engenheiro à época de sua produção (1942–45) e publicação (1945). Considerando as
assertivas “cada poema é uma leitura da realidade”3 e “escrever um poema é decifrar o universo” 4,
ambas de Octávio Paz, percebe-se na poesia cabralina uma apreensão bastante racional do mundo: o
próprio poeta-engenheiro afirma que “sonha coisas claras: superfícies, tênis, um copo de água” (vv. 3 e
4).5 Não se pode ignorar a presença dessas imagens concretas advindas dos objetos que o autor
seleciona para compor seus poemas e que traduzem um “mundo palpável”, uma leitura precisa e uma
articulação com a concretude e a objetividade. Enquadrar sua poesia em um tempo visivelmente
modificado pela Segunda Guerra Mundial é uma tarefa bastante difícil já que em uma primeira leitura de
O Engenheiro, João Cabral parece não dialogar com a sua realidade histórica e social. No entanto,
resistir a essa tendência panfletária é uma tomada de posição. O poeta cria um universo onde a linguagem
se basta. Faz sentido, caso se considere que, em um mundo caótico, onde predomina a violência e a
opressão, a palavra resiste, permanece fora do tempo. Merquior afirma que “a linguagem imita, ao nível
das relações universais, a aparência do mundo.”6 Nessa linha, não se pode dizer que a poesia de João
Cabral é alheia a seu tempo, porém, o poeta decide não falar diretamente e sim mostrar uma resistência
dentro desse contexto.
Em Poesia e pensamento abstrato, Paul Valéry discorre sobre a criação poética e faz uma reflexão
sobre a poesia e o pensamento abstrato cuja combinação é considerada “perigosa” pelo senso comum:
“as análises e o trabalho do intelecto, os esforços de vontade e de exatidão em que o espírito participa
não concordam com essa simplicidade de origem, essa superabundância de expressões, essa graça e essa
fantasia que distinguem a poesia.”7 A profundidade encontrada em uma poesia, nesse sentido, seria
somente conseguida através de uma inspiração e não através da profundidade da mesma natureza de um
filósofo, advinda do raciocínio. Esse contraste entre inspiração e raciocínio parece vir da época dos
gregos antigos, quando o poeta invocava a Musa para realizar a sua “missão” de escrever o poema como
se ele não possuísse responsabilidade pelo que estava sendo escrito, ou seja, era simplesmente um
instrumento, a voz da Musa no mundo. Para Valéry, todo o trabalho com a linguagem feito pelo poeta não
pode ser obra do mero acaso. A esse “estado de poesia”8 mencionado como “irregular, inconstante,
involuntário, frágil, e que o perdemos, assim como o obtemos, por acidente”9 não é suficiente para se
fazer um poeta. É necessário perceber a diferença entre o estado poético e a produção da poesia:
Um poeta, portanto, na qualidade de arquiteto de poemas, é muito diferente daquilo
que é como produtor desses elementos preciosos com os quais toda a poesia deve ser
composta, mas cuja composição se distingue e exige um trabalho mental totalmente
diferente. [...] um poema é uma espécie de máquina de produzir o estado poético através
das palavras.10
Nessa acepção, a obra do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto é exemplar na literatura
brasileira e considerada como um divisor de águas, uma referência na nossa poesia. Sua mineralidade,
seu raciocínio lógico e sua arquitetura poética tão compatíveis à densidade dos materiais utilizados em
sua obra, convertem-no a um sujeito único na Geração de 45 a qual, conforme Merquior, pertence apenas
cronologicamente11. Essa “geração” de poetas cujo propósito era de elevar
a linguagem à altura da essência poética, [...] não passou, ressalvadas as exceções que
não invalidam a generalidade deste panorama, dos limites retóricos da dicção elevada,
presa a um vocabulário de eleição, previamente considerado poético, em que
substantivos privilegiados se uniam a adjetivos nobres.12
Entende-se assim que o termo “geração” deve ser aplicado à situação histórica e não a um programa
estético elaborado por esses artistas. Como declara Benedito Nunes13, ninguém escolhe em qual geração
irá nascer, mas pode-se escolher a partir dela e, às vezes, contra ela. João Cabral escolheu o caminho
contrário ao de seus contemporâneos: ele rejeita a linguagem elevada e a poesia profunda, defendendo o
princípio da clareza e do controle reflexivo da elaboração poética. O poeta colocará em prática o
preceito de que “a formulação poética só é perfeita quando passa pelo crivo da racionalidade...”14 e
para a realização deste, serve-se de um conjunto de imagens que alcançam um relevo plástico de
concretude e lucidez.
A sua primeira obra Pedra do sono constitui uma fase de exercício poético, mas já se percebe o
sentido alegórico que possui o título: a pedra é um objeto mediador entre o sonho e a poesia. Os poemas
presentes nesse livro sugerem “visões que visitam e fascinam o espírito adormecido.”15 O poeta nada
em um rio invisível, onírico. Articula-se numa poética do vago, do impreciso: as palavras que compõem
os poemas da obra referida são “nuvem”, “sonho” dentre outras que revelam uma poesia latente ao
espírito em estado de sono, estado esse que evoluirá para o de vigília a partir da terceira obra do poeta.
O segundo livro, Os três mal amados, ele escreve em prosa, conferindo uma recusa ante os valores
poéticos em vigor e tentando um exercício de legitimar suas ideias em poesia enquanto barreira aos
sentimentos e emoções, ou seja, o que os críticos definem como antilira presente em sua obra.
Essa saída do mundo onírico para o mundo perceptivo é uma característica da poesia cabralina,
vislumbrada com a publicação de O Engenheiro. O sonho tematizado nas obras anteriores continua sendo
uma constante. No primeiro poema “As Nuvens”, já se identifica uma transição dessa simbologia relativa
aos sonhos, ao vago, até a exploração da linguagem a partir daquilo que é observado. As tentativas de
definição do elemento nuvem são feitas através de metáforas que evidenciam uma busca pela concretude,
no sentido do táctil da palavra.

As nuvens são cabelos


crescendo como rios
são os gestos brancos
da cantora muda;16

A natureza confusa e mal definida da nuvem evidencia seu caráter transitório. Para constituir uma
imagem precisa desse elemento, o autor lançou mão de outros cujas características corroboram com esse
propósito de dar uma concretude à nuvem. Nesse sentido, os “cabelos crescendo como rios” (vv. 1 e 2)
fazem perceber a mobilidade e a fluidez dessas formas que se renovam assim como o próprio movimento
aéreo da nuvem. Essa forma que se desloca é reforçada pela imagem de “países de vento” (v. 8),
expressando essa mutação figurativa da nuvem, “símbolo da metamorfose viva [...] em virtude de seu
próprio vir a ser”, conforme Chevalier. Os “gestos brancos da cantora muda” (vv. 3 e 4) e as “estátuas de
voo à beira de um mar” apresentam-se numa atitude análoga à da indefinição da nuvem: a
impossibilidade de falar da cantora muda criará uma nova forma de expressão para que ela possa ser
compreendida, assim como o voo da estátua, que manifesta um movimento que só o voo pode dar. É a
liberdade do voo em contraste à imobilidade da estátua. Numa comparação à poesia do autor, é a
liberdade da linguagem somada à objetividade do poeta-engenheiro.
Nota-se, com a leitura desse poema, que a obra de João Cabral de Melo Neto não é de fácil
compreensão. Pelo contrário, o próprio autor dizia pensar em cada palavra esperando instigar o leitor à
reflexão. Em “As Nuvens”, os aspectos concretos dos objetos são utilizados para atingir o nível
subjetivo: as imagens inseridas nesse poema criam uma série de paradoxos que evoluem de um limite
abstrato do sensível a um ideal de lucidez poético que substitua a pura expressão dos estados subjetivos.
Há uma espécie de redução do que havia de onírico inicialmente. Essa mutação pode ser inferida na
trajetória de João Cabral já que este ainda definia a sua poética.
A cor branca é reiterada três vezes ao longo do poema, sendo significativa a sua simbologia:
“valor limite” que ora significa ausência, vazio, ora a soma de todas as cores; aparece
ora no início, ora no final da vida diurna e do mundo manifesto. Como “cor de
passagem”, pode representar o branco da alvorada, ainda vazia de cores, mas rica do
potencial de manifestação, pois um “vazio” suspenso entre a ausência e a presença.
Sendo “não-cor”, produz o mesmo efeito do silêncio, entretanto, que é repleto de
“possibilidades vivas”, “um nada anterior a todo nascimento, anterior a todo começo”.
Cor iniciadora, o branco passa a ser, em sua acepção diurna ou “solar”, a cor da
revelação, da transfiguração que desperta o entendimento, logo, “cor essencial da
sabedoria.”17
A imagem da cor branca na poética cabralina pode ser concebida como o desejo de
entendimento claro do poema, desmontando o embalo surrealista do texto, saindo da zona
menos clara das imagens do sonho e projetando uma paisagem de vigília. Além dessa
concepção, vale salientar aqui a última estrofe do poema “As Nuvens”, que possibilita
outra interpretação da cor branca:

são a morte (a espera da)


atrás dos olhos fechados;
a medicina, branca!
nossos dias brancos. 18

A espera da morte liga-se a essa impossibilidade de deter as nuvens, que se movem e crescem, e à
“medicina branca” (v. 15), que é nula e não resolve a morte. Numa alusão à época de escrita do poema e
de publicação de O Engenheiro, tanto a medicina como os dias brancos representam essa falta de ação
em que se encontra o ser humano, ou seja, a esse horizonte vazio em que o período caótico de governos
ditatoriais e guerras resume os dias das pessoas.
Os vinte e dois poemas de O Engenheiro demonstram esse projeto iniciado por João Cabral em seu
primeiro livro, que apesar das imagens oníricas de influência surrealista, traz o símbolo da pedra como
símbolo da “aspereza, rigidez e resistência ao sono e ao sonho”19, como já mencionado anteriormente.
Esse aprendizado do poeta é intensificado pelos poemas de caráter metalinguístico como “O engenheiro”,
“O poema”, “A lição de poesia”, “A Paul Valéry” e “Pequena ode mineral”, dentre outros, em que se
percebe uma poesia com textura bruta, que exige grande atenção e concentração de quem a lê, não sendo
por acaso a alcunha dada ao poeta de “pedreiro do verso”, conforme entrevista a José Geraldo Couto:
Eu procuro uma linguagem em que o leitor tropece, não uma linguagem em que ele
deslize. O Pierre Reverdy dizia: o poeta é “maçon” (pedreiro). Ele ajusta as pedras. O
prosador é “cimentier”, ele “couleleciment” (espalha o cimento). Eu procuro fazer uma
poesia que não seja asfaltada, que seja um calçamento de pedras, em que o leitor vá
tropeçando e não durma, nem seja embalado.20
Esse pensar em cada palavra como um obstáculo ao leitor é a chave do “caminho de pedras”
oferecido pela estética cabralina. Avessa à desagregação ou à desordem, a pedra corresponde à ideia de
unidade, coesão e relaciona-se perfeitamente a essa poesia enxuta, precisa e pétrea:

nos três eclipses


condenando o muro;
no duro tempo mineral
que afugentou as floras.
(in “A paisagem zero”)
Entre nossas pedras
(uma ave que voa,
um raio de sol)
um amor mineral,
a simpatia, a amizade
depedra a pedra
entre nossos mármores
recíprocos.
(in “Os primos”)
Como um ser vivo
pode brotar
de um chão mineral?
(em “O poema”)
Doce tranquilidade
do pensamento da pedra,
sem fuga, evaporação,
febre, vertigem.
(em “A Paul Valéry”)21

No entanto, é com o último poema da obra “Pequena ode mineral” que a poética da pedra proposta
por João Cabral de Melo Neto se faz sentir em grau mais elevado em O Engenheiro. O título já nos
remete a uma homenagem feita pelo poeta, é uma ode à pedra. Em sua estrutura, pode-se dividir em duas
partes de 6 estrofes cada uma, compostas de quatro versos. Vale ressaltar aqui essa escolha que parece
não ter sido ao acaso: a quadra lembra a forma de um quadrado, ou seja, uma figura geométrica de quatro
lados iguais. Esta forma da estrofe deve ser compreendida como “um bloco, como unidade blocal de
composição, elemento geométrico pré-construído, definido e apto consequentemente para a armação do
poema.”22Além disso, os versos possuem quatro sílabas poéticas, reforçando essa regularidade que só
poderia ter sido pensada por alguém que prioriza uma “matemática poética”, remetendo a um equilíbrio
formal.
Cada uma dessas partes do poema possui uma temática que se completa através da imagem da pedra,
como se esta fosse um objetivo a ser alcançado. Infere-se dois estados poéticos no corpo do poema: um
em que está presente a desordem e outro em que se encontra a ordem estabelecida pela durabilidade da
pedra. As duas primeiras estrofes dessas partes mencionadas criam uma antítese do transitório e do
permanente:

Desordem na alma
Que se atropela
sob esta carne
Que transparece

[...]

Procura a ordem
que vês na pedra
nada se gasta
mas permanece.23

Os elementos presentes na primeira parte do poema relacionam-se com essa desordem. Expressões
como “desordem na alma” (vv. 1 e 5), “vaga fumaça que se dispersa” (vv. 7 e 8), “informe nuvem” (v. 9)
e “e cuja face nem reconheces” (vv. 11 e 12) reforçam a ideia daquilo que é impreciso, vago, transitório
e sem forma. Essa desordem na alma humana só conseguirá alcançar uma estabilidade através de um
aprendizado, ou seja, através do “devaneio petrificante” proposto por Bachelard, quando afirma a
possibilidade de “encontrar em certos poetas uma espécie de vontade de petrificar.”24 E o autor
acrescenta: “o poeta vive potências medusantes, sabe imobilizar no chão o seu adversário.”25 Nesse
caso, esse adversário é a própria desordem da alma humana que é petrificada através do olhar (“Procura
a ordem que vês na pedra”).
Cabral destaca essa passagem de estados da alma: desordem e ordem, mobilidade e imobilidade,
temporário e permanente. Todo o poema é composto por essas antíteses e encontram na pedra a solidez, a
unidade que permanece no tempo, pois ela é densa, dura e compacta, é o “pesado sólido que ao fluido
vence” (vv. 37 e 38). Essa pedra ordenada, estável e silenciosa ensina o homem a ouvir o silêncio,
relacionando essa imagem à própria economia verbal da poesia desse autor. A pedra representa a palavra
em seu estado bruto, pois como o poeta diz em entrevista, a poesia deve ser uma linguagem sensorial e
são as palavras concretas que se dirigem aos sentidos. E acrescenta: “Eu acho, por exemplo, que uma
palavra como maçã, ou manga, ou pão, ou cadeira são palavras muito mais poéticas que tristeza, ou
melancolia, ou angústia.”26 Daí o intenso trabalho entre a associação das palavras, muitas vezes
rompendo com a tradição poética, ligada ao nobre e ao lirismo, e utilizando termos ligados ao cotidiano
e que normalmente não fazem parte da linguagem poética. Nessa direção, observa-se maior quantidade de
substantivos em detrimento aos adjetivos nos seus poemas, já que a proposta de Cabral é justamente
tratar da matéria própria da palavra e, através dos substantivos ele consegue evidenciar o concreto do
objeto. Um exemplo disso são as definições de nuvem feitas no poema analisado anteriormente.
Ainda em “Pequena ode mineral”, a desordem na alma, grande motivo da primeira parte do poema,
alcança a ordenação da própria poesia, manifestada em silêncio, fixo, pétreo, permanente a partir da
sétima estrofe. Conforme Carla da Silveira Mano, essa paradoxal voz de silêncio mais do que ausência,
relaciona-se à própria presença concreta da poesia. “A poesia tematiza o próprio silêncio num perfeito
exemplar da metapoesia alheia ao tempo e a tudo, afinal, concentrada sobre si mesma.”27 Como afirma
Octávio Paz, o poema transcende a linguagem:
A experiência poética é irredutível à palavra e, não obstante, só a palavra a exprime.
A imagem reconcilia os contrários, mas esta reconciliação não pode ser explicada pelas
palavras – exceto pelas da imagem, que já deixaram de sê-lo. [...] O poema é linguagem
em tensão: em extremo de ser e em ser até o extremo. Extremos da palavra e palavras
extremas, voltadas sobre as suas próprias entranhas, mostrando o reverso da fala: o
silêncio e a não significação.28
O universo imagético de “Pequena ode mineral” enuncia a identidade da poesia cabralina em que se
observa a preocupação formal como meio de expressão. Apesar de este ser o único poema com todos os
versos isométricos – todos os versos possuem quatro sílabas poéticas –, Cabral não dá primazia a
esquemas rítmicos e rimas ou regularidade métrica em O Engenheiro. O poeta defende um “ritmo
sintático” em oposição ao ritmo automático, mecânico, rançoso das grandes antologias de sonetos que era
obrigado a ler na época da escola.29 Com certeza esse “horror à literatura” declarado pelo autor durante
a entrevista citada determinou o seu tipo de poesia. João Cabral de Melo Neto não queria escrever
poemas que embalassem o leitor. Ainda na entrevista, percebe-se que ele era avesso à musicalidade: “a
música embala-se, faz-me dormir. E eu procuro viver no extremo da consciência e não embalado. A
música amortece a consciência”. A preferência por um ritmo duro, forte, é salientada pelas rimas toantes
e pelas aliterações das consoantes t e p, que marcam a batida da construção do poeta-engenheiro:

Tua alma escapa


como este corpo
solto no tempo
que nada impede.

[...]

Nem mesmo cresce


pois permanece
fora do tempo
que não a mede,
pesado sólido
que ao fluido vence,
que sempre ao fundo
das coisas desce.30

Em consonância ao próprio senso de objetividade e procura de clareza na escrita, o poeta não


compõe por puro entusiasmo criador ou improviso, seus versos são resultado de muito trabalho e
esforço, utilizando o raciocínio para alcançar a essência, a exatidão e a pureza poética. O estado de
vigília do engenheiro busca conquistar o silêncio que se esconde por trás da palavra.
É preciso, no entanto, compreender esse relacionamento entre poema e poeta. O tratamento da
imagem poética é um elemento num conjunto maior, através do qual o escritor medita acerca de suas
relações com o real. A modernidade de João Cabral de Melo Neto e a ruptura com os poetas da sua
geração intensificam e prenunciam nos poemas de O Engenheiro esse seu tema mais recorrente, a poesia
dentro da poesia. Contudo, existem outros assuntos que se deixam entrever na obra: a lembrança, o
cotidiano, o acaso, até chegar à problematização da efemeridade do tempo, da fugacidade das coisas e da
morte. É diante dessa temática que a poesia de João Cabral de Melo Neto evolui para uma perspectiva
universal. O poeta não faz referência direta ao social, o qual será reconhecido posteriormente quando
escreve Morte e vida Severina, nem à época de guerra a qual está inserido o livro O Engenheiro.
Compreende-se, então, uma concepção da linguagem cabralina como um ato de resistência, como o
elemento pétreo constante em sua obra, pois não se presta a comunicar algo que já foi dito, mas sim,
recolher-se à palavra. Em vez de gritar, o poeta escolhe o silêncio, por ser uma época em que não se
pode protestar não há mais o que falar sobre o mundo. A solução é, portanto, a arte, no caso, a poesia. E
esta, em Cabral, atinge a dimensão de resistência comentada por Bosi:
A poesia há muito que não consegue integrar-se, feliz, nos discursos correntes da
sociedade. Daí vêm as saídas difíceis [...]. Essas formas estranhas pelas quais o poético
sobrevive em um meio hostil ou surdo, não constituem o ser da poesia, mas apenas o seu
modo historicamente possível de existir no interior do processo capitalista. [...] a poesia
moderna foi compelida à estranheza e ao silêncio. Pior, foi condenada a tirar só de si a
substância vital.31
Apesar de O Engenheiro não possuir esse caráter ideológico percebido em diversas obras que
dialogavam diretamente com a guerra, é impossível não perceber marcas profundas desse momento no
conteúdo poético da obra. Os paradoxos presentes nos poemas analisados e a própria imagem de
transição formada pelos elementos escolhidos pelo autor demonstram essa instabilidade em que vivia o
ser humano e essa fragilidade diante de um futuro incerto. Em “As Nuvens”, a espera da morte e os dias
brancos podem se referir a essa situação, assim como a desordem na alma em “Pequena ode mineral”. A
pedra resiste, assim como a palavra e a arte que transcendem, permanecem fora desse tempo tão fugaz. O
silêncio diz mais que qualquer palavreado inútil e sem sentido proposto pela palavra opressora dos
discursos dominantes ditatoriais. O “silêncio puro” – verso 44 de “Pequena ode mineral” – mostra o ser
humano que se recolhe, que faz esse movimento de voltar a si mesmo e refletir sobre o seu destino.
O homem se redescobre através da lírica cabralina. O poeta vive o clima da guerra e isso é traduzido
em sua poesia através de um elemento que pode ser entendido como uma proteção: a pedra. Essa imagem
áspera, dura, impenetrável da pedra sobrevive a esse meio hostil, lugar onde o silêncio se faz poesia. “A
imagem é cifra da condição humana.”32 Dessa maneira, O Engenheiro, apesar de distante da realidade,
assume um caráter social já que é através da linguagem hermética que João Cabral de Melo Neto critica
o sistema. Essa crítica está subentendida dentro da metapoesia e do contexto de produção da obra, escrita
no período de 1942 a 1945, em pleno auge do regime fascista no mundo e do Estado Novo no Brasil.
Sendo assim, a arte do poeta-engenheiro voltada para si mesmo vai ao encontro da teoria de
Adorno33 que vê, dessa forma, a lírica atingindo o universal. Através de sua linguagem precisa, sua
exatidão de raciocínio, João Cabral de Melo Neto reage a essa desordem, a essa transitoriedade das
coisas e à efemeridade da vida, revelando a sua forma de apreender o mundo como uma das mais
criativas da poesia brasileira e tão perene quanto ao “elemento-pedra” que definiu a sua poética.

Referências
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_____. A imagem. Em: Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 1996. p. 37 – 50.
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_____. Existência do simbolismo. Em: _____. Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1991b.
_____. Situação de Baudelaire. Em: _____. Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1991c.

Notas
1 Mestranda em Teoria da Literatura do Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
2 A fortuna crítica de João Cabral de Melo Neto estudada para a realização desse trabalho percorre as
análises de Benedito Nunes, João Alexandre Barbosa, Antônio Carlos Secchin, dentre outros listados nas
referências bibliográficas.
3 PAZ, Octavio. Analogia e ironia. Em: PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda.
São Paulo: Nova Fronteira, 1984, p. 98.
4 Idem, Ibid. p.98.
5 NETO, João Cabral de Melo. O engenheiro (1942 – 1945). Em: Serial e antes. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1997, p. 34.
6 MERQUIOR, José Guilherme. Natureza da lírica. Em: ______. A astúcia da mimese: ensaios sobre a
lírica. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p. 22.
7 VALÉRY, Paul., 1991a, p. 201.
8 Ibid, p. 206.
9 Ibid.
10 Ibid, p. 217.
11 José Guilherme Merquior afirma sobre uma “incômoda convergência cronológica entre João Cabral e
os seus companheiros poetas da geração de 45 em “Falência da Poesia ou uma geração enganada e
enganosa: os poetas de 45”, ver as referências bibliográficas.
12 NUNES, Benedito. João Cabral de Melo Neto. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1974, p. 29.
13 Ibid.
14 HOUAISS apud NUNES, Benedito. João Cabral de Melo Neto. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1974, p. 32.
15 NUNES, Benedito. João Cabral de Melo Neto. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1974, p. 35.
16 NETO, João Cabral de Melo. O engenheiro (1942 – 1945). Em: Serial e antes. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1997, p. 31.
17 MANO. Op. cit., 2006. p. 185.
18 NETO. Op. cit., p. 31.
19 MANO. Op. cit., p. 186.
20 Cf. COUTO, José Geraldo. 34 letras, Rio de Janeiro, nº 3, mar. 1989. Em: MANO, Carla da Silveira.
A tradição da negatividade na moderna lírica brasileira. 2006. 273f. Tese (Doutorado em Letras.
Faculdade de Letras, PUCRS, Porto Alegre, 2006, p. 188.
21 Todos os poemas citados fazem parte da obra O Engenheiro. As palavras que fazem alusão à pedra
foram grifos meus.
22 CAMPOS, Haroldo de. O geômetra engajado. Em: CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e outras
metas. Petrópolis: Vozes, 1967, p.70.
23 MELO. Op. Cit., pp. 49 – 50.
24 BACHELARD, Gaston. A Terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginação das forças.
2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001a. p. 180.
25 Idem, Ibid. p. 180.
26 Transcrição da fala de João Cabral de Melo Neto em entrevista apresentada pelo vídeo “Mestres da
Literatura” e disponível no site:
<http://www.youtube.com/watch?v=oJgIY5DmSDI&feature=related>
27 MANO. Op. cit., p. 196.
28 PAZ, Op. cit., p. 48 – 49.
29 Informação retirada da entrevista apresentada no vídeo mencionado nesse trabalho.
30 NETO. Op. Cit., p. 50.
31 BOSI, Alfredo. Poesia-resistência. Em: BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. 7. ed. São Paulo:
Companhia das letras, 2004, p. 165 – 166.
32 PAZ. Op. cit., p. 38.
33 ADORNO, Theodor W. Lírica e sociedade. Em: BENJAMIN, ADORNO, HORKHELMER,
HABERMAS. Textos escolhidos. São Paulo: Abril cultural. 1980. p. 193 – 208.
A LÍRICA MODERNA E A ANTILÍRICA DE JOÃO CABRAL DE
MELO NETO
Gustavo Suertegaray SALDIVAR
“... machine à émouvoir...”
Le Corbusier, epígrafe de O engenheiro
O advento da Modernidade enquanto evento de natureza cultural carreou consigo uma imensurável
coleção de mudanças nos modos pelos quais a humanidade compreendia os fenômenos ligados à
interpretação da existência.
Como decorrência dessa revolução do pensamento, a literatura, veículo dos mais sofisticados para a
expressão dos anseios e das angústias inerentes ao ideário humano, sofreu mudanças de várias ordens,
abandonando valores secularmente vigentes e adquirindo nuances inovadoras, transformadoras.
Dentre as características formais e estéticas derivadas dessa abrangente mudança de paradigmas, é
possível de se identificar, por exemplo, a absorção e o emprego, por parte dos poetas do século XIX, dos
conceitos ligados ao termo lirismo como modo de identificar determinadas virtudes constantes da
produção poético-cultural do tempo em questão.
Entretanto, da mesma forma que encetou a criação de novos atributos no âmbito da poética, o
Modernismo também promoveu, em longo prazo, a íntima transformação das virtudes reunidas sob a
égide do lirismo. De forma a tornar explícito o quadro de alterações pelo qual o termo passou desde sua
fixação até os dias que correm, o presente estudo se serviu de conjuntos de interpretações desenvolvidas
por poetas e por teóricos da matéria literária acerca da evolução do conceito, desde os primórdios, na
Grécia Antiga, até a atualidade, bem como buscou fixar um caso emblemático do resultado dessas
modificações, através de uma visada sobre algumas das produções do poeta pernambucano João Cabral
de Melo Neto, possivelmente o maior representante contemporâneo e nacional do que a teoria literária
tratou como a antítese do julgamento original, o antilirismo.
Inicialmente, faz-se necessária a compreensão das motivações que levaram ao aparecimento do
termo “lirismo” no terreno literário.
Historicamente, a designação “lírica” surgiu na Grécia Antiga, originariamente com a função de
identificar uma forma de poesia cujo acompanhamento era executado por instrumentos tais como a flauta
e a lira. A poesia lírica decorre, pois, da associação entre certa espécie de declamação poética e o toque
de liras.
Para melhor compreender o evento da formação do estilo lírico na poesia, convém a observação do
pensamento do filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel. A partir de suas investigações em áreas
ligadas à história da cultura humana através dos tempos, o estudioso esclareceu o modo pelo qual a
poesia grega sofreu as alterações que acarretaram no surgimento do novo formato.
Sendo, pois, a poesia épica a grande representante da intelectualidade e da filosofia gregas, bem
como sendo este o gênero que serviu como modelo absoluto de veiculação da totalidade da história e da
cultura desse país, dado o simples fato de que as narrativas dos mais relevantes feitos haviam sido
criadas dentro do conjunto de normativas da épica, foi a partir de variações desse consagrado e
celebrado molde que a lírica nasceu.
O modo pelo qual essas transformações sobrevieram está ligado a um imperativo de mudança na
forma de representação suscitada pela lógica poética grega. A esse respeito, Hegel sustenta que
[...] se a poesia épica traz diante de nossa representação intuitiva o seu objeto – ou em
sua universalidade substancial ou em espécie adequada à escultura ou pictórica –, como
aparição viva, então desaparece, pelo menos na altura desta arte, o sujeito que representa
e sente em sua atividade poética diante da objetividade daquilo que ele coloca para fora
a partir de si1.
Como ficou dito antes, a poesia épica era a responsável pela divulgação dos grandes feitos da
história grega. Entretanto, observando a lógica do pensamento hegeliano presente no excerto acima, não
havia lugar nesse perfil poético para a demonstração da individualidade do produtor cultural. É em
decorrência da necessidade de inserção da subjetividade do poeta que surge o estilo lírico.
Na inauguração dessa nova maneira de pensar a construção poética, outro fator importante de
caracterização da nova arte recaiu sobre uma escolha bastante singela, do ponto de vista da
funcionalidade do formato nascente: houve um movimento de conjunção, de familiarização da tipologia
poética com a musicalidade presente nas composições dos instrumentos que lhes serviam de
acompanhamento. Assim, por conta dessa fusão simples, estabeleceu-se o novo paradigma de produção
cultural.
Naturalmente, a nova disposição poética estabeleceu uma relação diferenciada entre a musicalidade
resultante do emprego da lira e a constituição interna dos seus versos. A respeito dessa peculiaridade da
lírica, o teórico alemão Emil Staiger observa que “o valor dos versos líricos é justamente essa unidade
entre a significação das palavras e sua música.”2
Filosoficamente falando, no entanto, foi novamente Hegel que sublinhou outra importante distinção
introduzida pelo lirismo: a universalidade presente nessa poesia de cunho mais pessoal. Dentro deste
prisma, o erudito considera que, “por meio deste princípio, que reside no lírico, da particularização, da
particularidade e da singularidade, o conteúdo pode ser da maior multiplicidade e atingir todas as
direções da vida [...]”3
No entanto, o aspecto mais importante da linguagem lírica, desde sua origem, é, sem sombra de
dúvida, aquele que jaz na expressão do sujeito, da subjetividade, da interioridade do poeta.
Porém, os séculos se escoaram e a cultura grega observou a derrocada do país frente aos macedônios
– com a manutenção, todavia, de partes desse sistema cultural na porção mais Oriental do novo reino –, a
ascensão e a queda de Roma, o nascimento e a proliferação do Cristianismo, a chegada ao modo feudal e
à filosofia teocrática, quando aconteceu o retorno da cultura grega ao continente europeu, pelo avanço
dos mouros na península Ibérica, a chegada ao modo de produção capitalista e o renascimento urbano e
cultural da Europa, entre os séculos XVI e XVII.
Finalmente, com o retorno aos preceitos da Antiguidade Clássica, ao longo dos séculos XVIII e XIX,
houve movimentos de revalorização das formas poéticas gregas, instante no qual se tornou possível a
revitalização do estilo lírico, e a cultura europeia viu nascer um movimento de forte contraposição ao
modelo econômico do capitalismo e às filosofias marcadamente utilitaristas e racionalistas do período
do Iluminismo: emerge o Romantismo.
A lógica romântica, de cunho fortemente humanista, asseverava, em seu bojo, o valor dos
nacionalismos, das utopias, do subjetivismo, do eu-do-autor e, é claro, do lirismo. A abrangência e a
influência do romantismo foram tão fortes que, de certa forma, acabaram por estabelecer uma nova
preceptística para a vida na Europa, além de se estender por outros continentes, no Ocidente, entre a
metade final do século XIX e o primeiro quartel do século XX.
Falando mais especificamente do terreno da literatura, se, de um lado, o movimento romântico
instituiu novas séries de modelos e mudou profundamente a relação entre autor e obra, bem como
acarretou mudanças também nas relações comerciais decorrentes dessa união, como o estabelecimento
dos direitos autorais, por exemplo; de outro, ao retomar certas bases filosóficas e ao explorar novos
jogos temáticos e conceituais, como os do campo do onírico, o próprio romantismo terminou por produzir
exacerbações e sensíveis derivações dos ideários originais, fato que levou à revisão dos valores da
corrente literária e à eventual dissipação e reposicionamento de seus franqueados dentro de outras
tendências.
Todavia, como uma das principais consequências dos acontecimentos que levaram à
supervalorização da instância do indivíduo, a chegada do século XX carreou consigo, no âmbito da
literatura, a dissensão das fronteiras que separavam e possibilitavam a caracterização das várias
convergências literárias de época, instituindo o que hoje se compreende como movimentos literários
unitários, individuais, pessoais.
Do mesmo modo, outra mudança profunda na lógica composicional artística teve lugar com a
aquisição, por parte dos maiores nomes da poética do momento, de um maior grau de consciência a
respeito do tempo histórico em decurso. Desse processo sobreveio a revisão da posição do poeta no
tocante ao uso da linguagem, das formas, dos modelos, enfim, da totalidade das condições de produção,
redundando no surgimento de uma poética notadamente mais reflexiva, mais crítica e mais objetivada.
A partir, pois, dessa série de câmbios de pensamento na Modernidade, e da revisão de conceitos em
várias correntes filosóficas, nas diversas instâncias do conhecimento, a poética literária também conhece
e reconhece como seu ponto de mudança paradigmática a obra do francês Charles Baudelaire.
O escritor de Paraísos artificiais modificou sobremaneira o terreno da poética, introduzindo
elementos, como a visão da decadência em oposição à vivência ordinária, a abstração dos desejos de
ascensão, de escape e de evasão da realidade – motivos tão caros à construtiva romântica –, entre outros.
Nessa linha, o poeta também abriu espaço em suas obras para figuras marginais da sociedade francesa de
época: os rebaixados, as prostitutas, os viciados, etc.
Ademais, Baudelaire conseguiu compreender, conforme apontou o escritor norte-americano T. S.
Eliot, não somente o próprio sofrimento como também o do Homem de seu tempo, sufocado pela
premência civilizatória das metrópoles modernas. Tal entendimento do real levou o poeta ao ápice de se
submeter a toda sorte de experiências como justificativa para as descrições minuciosas das sensações,
dos sentimentos, fato que foi conceituado por Eliot como o correlato relativo, isto é, a construção da
verossimilhança entre as vivências do autor e sua escrita.
Um indicativo desta condição baudelaireana pode ser observado no trecho do texto
Correspondências, cuja transcrição segue:

TABELA
Também em termos formais o bardo instaura uma série de rupturas para com a poética romântica,
questionando as questões ligadas à inspiração e à passionalidade, bem como à idealização, marcas
representativas do movimento; e para com os parnasianos, por conta da superficialidade psicológica e
fixidez construtiva de seus escritos.
Contrariando ambas as tendências literárias – muito embora se valendo de virtudes presentes nas
duas escolas –, Baudelaire buscou valorizar o trabalho na poesia, a prática laboriosa e tenaz sobre o
texto, a ourivesaria na inserção da palavra no poema.
Ao revisar os valores norteadores da poesia de sua época, o vate francês lançou as bases para a
grande transformação pela qual a poética lírica ainda haveria de atravessar.
No terreno histórico, a humanidade experienciou eventos de natureza econômica (a Segunda
Revolução Industrial e a publicação do Manifesto Comunista, por Marx e Engels, por exemplo) e
científica (e. g., as teorias evolutivas de Darwin e a invenção da psicanálise, por Freud), o que trouxe
reflexos diretos sobre o ambiente cultural da passagem do século XIX. Já ao princípio dos anos 1900, o
Pragmatismo e a Fenomenologia concorreram, no âmbito da filosofia, para um estreitamento ainda maior
nos laços entre o Homem e a existência prática.
Esses foram apenas alguns dos fenômenos ligados ao estabelecimento dos pressupostos da estética
da Modernidade.
Na esfera da literatura, sendo esta uma das formas mais evoluídas de manifestação do engenho
humano, os efeitos das alterações empreendidas pela Modernidade histórica se fizeram sentir por meio
de questionamentos dos preceitos das escolas literárias do Romantismo – e de seu principal
desdobramento, o Simbolismo – e do Realismo, bem como de sua extensão, o Real-Naturalismo. Como
resposta à mudança dos tempos e do pensamento humanos, vários pequenos movimentos de transgressão
estética eclodiram na Europa, nos primeiros decênios do séc. XX: as chamadas Vanguardas artísticas.
Coube a estas novas tendências promover a inscrição, mais ou menos atabalhoada, das concepções
artísticas mais tradicionais dentro dos novos paradigmas de produção cultural.
A poesia lírica, funcionando sob a égide do tempo histórico e sendo correlata ao pensamento de
época, foi, igualmente, revisada e reconfigurada pelas mudanças estéticas levadas a cabo desde a
insurgência de Baudelaire e de su’As flores do mal. Como decorrência majoritária dessa verificação, o
lirismo sofreu intervenções de ordem linguística, o que fica evidente no dizer do debatedor Luiz Costa
Lima:
[...] entre linguagem e sociedade corre um vínculo estreito [...] que faz com que a sombra
desta se projete no semblante dessemelhante daquela. É dentro dessa concepção dinâmica
da linguagem que se põem os termos da desestruturação e da estruturação.4
O crítico insere aqui dois conceitos basilares para a compreensão das mudanças ocorridas na
literatura com a chegada do século XX. O termo desestruturação, colocado anteriormente ao seu antípoda
de forma proposital, diz respeito aos inúmeros fenômenos ocorridos ao longo da linha temporal da poesia
lírica.
A questão da estruturação – reestruturação, neste caso – se refere aos resultados práticos, no campo
da produção literária, dos processos de desconstrução que desembocaram no afloramento deste novo
paradigma de poesia, corretamente reconhecido por Costa Lima, no contexto da literatura brasileira, sob
a alcunha de antilírica.
O conceito de antilírica deve ser entendido, aqui, em acordo com o trabalho elaborado pelo
estudioso francês Michel Collot, que descreveu as transformações pelas quais a lírica tradicional passou.
Como resultado de seus estudos, o teórico procurou observar e sublinhar a característica-chave
envolvida nesse fenômeno: a questão da despersonalização do sujeito-lírico. Na esteira dessa alteração,
Collot identificou outras mudanças que sobrevieram, como a impossibilidade da expressão dos
sentimentos íntimos do poeta, que é substituída pela introjeção e pela interação com os acontecimentos da
esfera do mundo exterior, que passam a tocar a fibra sensível do espírito criador.
Outro ponto salientado pelo crítico francês assinala o fato de que o eu lírico moderno é, em certa
medida, desfamiliarizado da musicalidade que serviu originalmente como matéria de distinção de gênero.
Além disso, também se fazia premente, como reafirmou Luiz Costa Lima, a reconfiguração da obsoleta
linguagem romântica, cujo novo papel seria o de promover a mediação entre o subjetivo do poeta e o
objetivo das coisas do mundo.
A partir desse importante conjunto primordial de variações, as líricas moderna e contemporânea
passaram a produzir suas obras em consonância com uma filosofia de valorização de experimentações,
encerrando leques de possibilidades que abrangeram a introdução da linguagem quotidiana, a dissolução
dos parâmetros de métrica e de rima, e a construção de poemas-imagem, entre outros.
No roldão dessas derivações, alguns poetas modernos levaram as desconstruções iniciadas por
Baudelaire às últimas instâncias, sobrepujando-o em certos aspectos, inclusive. Este é o caso do poeta
João Cabral de Melo Neto, a quem este ensaio focaliza doravante.
Dono de uma técnica construtiva absolutamente ímpar, o pernambucano João Cabral de Melo Neto, a
despeito de não haver sido o fundador da tendência na qual se inscreve, revolucionou a cultura poética
brasileira e se destacou, desde o momento da fixação de seu estilo, na expressão do que José Castelo
denominou como “estética da secura”.
Concernente às problemáticas levantadas por este exame até o momento, o entendimento do conceito
de secura foi constituído em função do alheamento dos escritos do vate recifense do conjunto
características tradicionalmente votadas à lírica de ordem romântica e de sua predileção, em diametral
oposição, pela extremada valorização da técnica e do despojamento vocabular na construção vérsica,
virtudes dispostas no programa da antilírica.
De modo, pois, a compreender as formas de manifestação dessa tendência em sua poética, bem como
dos mecanismos pelos quais operam suas escolhas estéticas, faz-se necessária a intervenção do próprio
autor. Nesse sentido, o extrato abaixo, retirado do ensaio Poesia e composição, evidencia a opinião de
João Cabral quanto à sua prática, ao afirmar que o
[...] trabalho de arte pode valer a atividade material e quase de joalheria de construir
com palavras pequenos objetos para adorno das inteligências sutis e pode significar a
criação absoluta, em que as exigências e as vicissitudes do trabalho são o único criador
da obra de arte.5
Eis a primeira componente de uma lógica compositiva que desafia a preceptística da lírica de cunho
romântico: as expressões “[...] atividade [...] de joalheria” e o último período, “[...] as exigências e as
vicissitudes do trabalho são o único criador da obra de arte”, seguramente reforçam a escolha do escritor
pelo emprego da técnica, pelo trabalho de joalheria – de ourivesaria, como ficou dito antes – na invenção
poética.
Entretanto, é justamente no exercício da escrita que as opções do vate se fazem observar de forma
mais veemente. Em grande parte, esta colocação se justifica pela significativa quantidade de unidades
textuais erigidas sob o mote do fazer poético. Segue outro exemplo, sublinhado do poema “Catar feijão”:

Catar feijão se limita com escrever:
jogam-se os grãos na água do alguidar
e as palavra na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar [...]6

A partir desta porção de versos é possível de se inferir o comprometimento do autor em descrever a


sua prática e sua propensão pela atividade da escrita, como se houvesse uma força que impelisse o poeta
ao ato criador, uma espécie de necessidade orgânica de deitar sobre o papel o resultado de suas
elucubrações mentais. Nota-se, igualmente, a inserção de suas escolhas vernaculares, bem como da
imagética presente neste excerto, nos modelos consagrado pelo modernismo, com temática e linguagem
associadas a temas do quotidiano. E se apresenta, mais uma vez, no verso que completa a quadra, a
preocupação norteadora do fazer do escritor: a questão da depuração do poema.
A quase obsessão de João Cabral de Melo Neto pela laboriosa preparação vérsica é uma das marcas
de uma poética que prima pelo menos; por dizer mais, ou mais profundo, usando menos recursos
vocabulares. A esse respeito, o poeta é enfático ao afirmar, não destituído de certa dose de ironia, que
fala, em seus poemas, “com as mesmas vinte palavras.”7
Por sua vez, o teórico Ivo Barbieri, ao tratar dessa distinção da poesia cabralina, comenta sobre a
racionalidade consciente do autor no tangente à linguagem: “[...] o poeta assume a posição do engenheiro,
que [...] suprime brechas de linguagem por onde pudessem se insinuar imprecisões, sombras ou
mistérios.”8
Outro debatedor que aponta para essa realidade é Décio Pignatari, afirmando que a caracterização
básica que pode ser feita à prática do poeta é o seu pendor pelo emprego da “palavra nua e seca, as
poucas palavras, a escolha substantiva da palavra [...] a serviço de uma vontade didática de linguagem
direta.”9
Retornando, entretanto, às questões da antilírica, as colocações expostas acima parecem estabelecer
um descompasso entre a tendência da lírica moderna à obscuridade e ao hermetismo e a poética do autor
de Quaderna, mormente no sentido de esclarecer que a linguagem cabralina tende (obsessivamente) à
clareza.
Evidencia-se o primeiro indício da secura na arte do poeta: a secura de palavras.
Outro aspecto importante dos textos do vate se encerra na questão da musicalidade de sua produção.
Ou na contrariedade dessa virtude: a antimusicalidade.
Entendido, pois, que a criação cabralina busca exilar-se dos preceitos da lírica secular, então
também surge como coerente a tentativa de abstração, na esfera de sua escrita, de um dos caracteres
fundadores da antiga poesia lírica. Nesse sentido, o crítico Ivo Barbieri nos brinda com um
posicionamento revelador a respeito da escolha melódica de Cabral, apontando que sua “preferência
pelo concreto, pela palavra mineralizada na escrita, pela bem tramada sintaxe, pelo relevo escultural da
imagem bastaria para apagar toda ressonância musical das palavras.”10
Tomando o cuidado necessário para não cair no anacronismo, o presente ensaio revisita Nietzsche
em sua concepção de que “a poesia se encontra frequentemente a caminho de tornar-se música, quando
ela busca conceitos mais sutis, aqueles em que o lado material do conceito quase desaparece.”11 Esta
asserção do filósofo alemão diz respeito a um paradoxo cunhado por João Cabral ao valorizar a
antimusicalidade em seus versos: o apartamento da poética em relação à musicalidade se faz com a
matematização das relações rímicas e vérsicas, o que parece um contrassenso no sentido de que a poesia
e a música são, em larguíssima medida, devedoras da precisão e do cálculo matemático.
De qualquer modo, como prova dessa virtude do texto cabralino, tem-se abaixo um excerto da poesia
“Alguns toureiros”, presente na obra Paisagens com figuras:

[...]

Mas eu vi Manuel Rodriguez,


Manolete, o mais deserto,
o toureiro mais agudo,
mais mineral e desperto,

[...]

O que melhor calculava


O fluido aceiro da vida,
O que com mais precisão
Roçava a morte em sua fímbria
O que à tragédia deu número,
À vertigem, geometria,
Decimais à emoção
E ao susto, peso e medida, [...]12

A partir deste trecho, é possível de se identificar alguns dos condicionantes mais empregados por
João Cabral em sua produção.
Há, por exemplo, a liberdade de versificação e de construção rímica. Essa negligência para com as
rimas – que é, evidentemente, proposital – contribui para o desaparecimento do sentido musical do
poema.
Um segundo elemento aponta para o empréstimo tomado pelo poeta de expressões provenientes do
campo semântico da matemática, prática corriqueira na poesia cabralina e que, além disso, denota a
predileção do autor por esta área do conhecimento.
Entretanto, o que talvez fique mais evidente na leitura da porção extraída para este trabalho se
encerre no terreno da significação, pois o encontro da temática da tauromaquia com o vernáculo rigoroso,
severo, deste poema desvela a tentativa – bem sucedida, aliás – do vate, que objetiva, tal como o toureiro
busca domar artisticamente a massa bruta e potente do animal, adestrar as palavras da composição, isto
é, tornar o verbo manso e obediente à plasticidade de seus anseios poéticos.
Observa-se, ainda, o movimento do autor em debelar da atividade do toureiro, da sede irredutível do
animal humano em fazer prostrar diante de si a natureza do animal-fera, a totalidade das ações motivadas
pela paixão e pelo impulso. As ações de touro e de toureador são baseadas na precisão coreográfica – e
poética.
João Cabral atua, neste poema, como um verdadeiro escultor da palavra, que desbasta o bloco
mineral do vernáculo até o limite possível da criação, retirando os excessos e revelando aquilo que a
pedra traz de mais íntimo e elementar.
Eis a forma pela qual se dá o fenômeno da secura da musicalidade na poética do pernambucano.
Outro fenômeno possível de se verificar na produção cabralina concerne às escolhas de temas e
imagens, vistas aqui de forma associada, sob a ótica igualmente restritiva da economia.
Ao colocar as questões temáticas e imagéticas nesses termos, este texto se reporta, novamente, ao
crítico Ivo Barbieri, que, inspirado pela parcimônia vocabular do autor, sentencia:
A repetição de umas tantas palavras, o retorno insistente a uns poucos sítios
temáticos, a persistência obsessiva de meia dúzia de imagens, a reprise das mesmas
paisagens com outras figuras, todos esses expedientes são índices seguros de uma
tonicidade poética que se mantém tensa e ativa, graças a um processo de autocontrole
interno ao sistema da obra.13
O que se depreende da assertiva deste teórico nada mais é do que a afirmação de tudo o que vem
sendo trabalhado nestas últimas páginas, ou seja, João Cabral faz sua poesia operar dentro de limites
construtivos muito estreitos e, concorrentemente, sob uma lógica de valorização – quando não, de
exacerbação – da escassez, da privação e da carência.
Tratando este tema de modo mais amplo, há de se revisar o contexto de inserção do poeta no cenário
físico e humano do Brasil. Com a preocupação de não ser reducionista e tampouco biografista, o fato é
que João Cabral de Melo Neto é pernambucano, filho do Nordeste brasileiro, filho de uma terra com um
Sol abrasador e sufocante, uma terra na qual todo o esforço e energia devem ser cogitados, de modo a
não serem consumidos em vão. E, tal qual a do poeta, a quase totalidade da cultura nordestina se emerge
a partir de temáticas ligadas a esse fenômeno da terra, que é muito mais do que físico, é preponderante no
momento em que sujeita os seres a sua existência inclemente.
Juntando-se a isso o gosto do poeta pela poupança vocabular e pela sua capacidade de produzir o
máximo na significação pelo mínimo na escrita, chega-se a um conjunto bastante rarefeito de temas e de
imagens que povoam os escritos cabralinos: a morte (muito embora ela possa se inscrever na obra do
poeta como elemento de redescoberta da vida, a exemplo do que ocorre em Morte e vida severina, o que
é absolutamente inusitado), a seca e o rio (elementos justapostos, indissolúveis e conflitantes), a pedra (o
símbolo da resistência do Homem ao meio e do meio ao Homem, concomitantemente), o mineral (a parte
íntima constituinte de toda a matéria e da condição humana), a faca (que corta o real e o espesso do
poema) e o Homem (ao mesmo tempo presente na paisagem ou sendo a própria paisagem, nela incrustado
e dela dependente).
Como saldo da junção dos elementos descritos até o momento, tem-se na textualidade cabralina uma
poesia mormente voltada para si, ou seja, para a própria lógica de produção, cercada de preocupações
quanto à sobriedade estrutural e vocabular, constituída dentro de um ideário de secura, de negativa de
elementos, por um autor que compreende que
[...] tanto no ferreiro que trabalha para domar o ferro quanto no poeta que, no seu fazer,
submete o fluxo das palavras a um comando de construção calculada, o que prevalece, na
analogia de posturas frente à relutância da matéria a ser modelada, é a tenacidade do
engenheiro, cujo empenho a dificuldade fecunda.14
A esse propósito, o poeta recifense deixou, no texto “O ferrageiro de Carmona”, a despeito da
coloquialidade da linguagem e do tom aparentemente corriqueiro do tema, uma consideração bastante
simplificada, que serve como ilustração de seu pensamento sobre o labor que deve nortear a atividade da
escrita de versos.

[...]

Dou-lhe aqui humilde receita,


Ao senhor que dizem ser poeta:
O ferro não deve fundir-se
Nem deve a voz ter diarréia
Forjar: domar o ferro à força,
Não até uma flor já sabida,
Mas ao que pode até ser flor
Se flor parece a quem o diga15

O texto que ora chega a termo buscou fazer um apanhado dos acontecimentos que marcaram a
trajetória do conceito de lirismo dentro da poesia, desde seu aparecimento até os dias atuais. Finalmente,
houve a descrição da maneira pela qual o gênero tem sido explorado contemporaneamente, pela
apresentação das características poéticas de um autor claramente inserido nas mais modernas tendências
de produção literária.
Parece evidente que, da mesma forma que os círculos críticos e literários decretaram o fim da épica
clássica nos seus moldes mais ortodoxos, também a poesia lírica secular não apresenta mais um nicho ao
qual possa se associar. E as razões pelas quais tal formato não encontra mais consonâncias nos tempos de
hoje estão ligadas aos eventos que concorreram para a chegada da Modernidade na História do Homem.
Do mesmo modo, há uma tendência, entre os debatedores da literatura atual, em afirmar que o gênero
lírico vem sofrendo, há mais de uma centena de anos, importantes alterações, que, ao que se depreende
da atualidade da produção cultural, estão surtindo efeito e reinscrevendo o estilo nos contextos do século
XXI.
Nesse sentido, os exemplos trazidos neste ensaio, além de explicitar dados sobre a poética do vate
pernambucano João Cabral de Melo Neto, lançaram alguma luz acerca da atualidade literária do gênero,
muito embora não tenham chegado a demarcar as novas fronteiras da antiga lírica, empreitada que
fatalmente demandaria uma numerosa coleção de livros.
De fato, a problemática da despersonalização na literatura – e na própria esfera da condição humana
– apresentada nos estudos de Michel Collot, argumento que parece indubitável em termos filosóficos,
originou novas formatações no terreno das manifestações poéticas, preceitos estes cuja adoção tem se
mostrado tão natural, no contexto da contemporaneidade cultural, quanto pode ser tomada como precisa e
cerebral a estética da máquina de emocionar da poética de João Cabral.

Referências
BARBIERI, Ivo. Geometria da composição: morte e vida da palavra severina. Rio de Janeiro: Sette
Letras, 1997. 143 p.
BARBOSA, João A. As ilusões da modernidade: notas sobre a historicidade da lírica moderna. São
Paulo: Perspectiva, 1986. 159 p.
BLOG DO ELAPHAR. Correspondências. Tradução de Ivan Junqueira. Disponível em:
<http://blogelaphar.blogspot.com/2010/09/30-de-setembo-dia-do-tradutor.html> Acesso em 27 out 2011.
CARA, Salete de A. A poesia lírica. São Paulo: Ática, 1998.
ELIOT, T. S. Baudelaire. Em: ELIOT, T. S. Ensaios. São Paulo: Art Editores, 1989.
FLEURS DU MAL. Correspondances by Charles Baudelaire. Disponível em:
<http://fleursdumal.org/poem/103> Acesso em 26 out 2011.
HEGEL, G. F. Estética: Poesia. (Tradução de Álvaro Ribeiro). Lisboa: Guimarães, 1964, vol. 7.
LIMA, Luiz C. Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1968.
MELO NETO, João C. de. Obra completa. Organização de Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 2003.
STAIGER, Emil. Conceitos Fundamentais da Poética. (Tradução de Celeste Aída Galeão). Rio de
Janeiro: Tempo Universitário, 1975.

Notas
1 HEGEL, 1964, p. 155.
2 STAIGER, 1975, p. 7.
3 HEGEL, 1964, p. 158.
4 LIMA, 1968, p. 5.
5 MELO NETO, 2003, p. 728.
6 Ibid, p. 346.
7 Ibid, p. 311.
8 BARBIERI, 1997, p. 11.
9 PIGNATARI apud BARBIERI, 1997, p. 31.
10 BARBIERI, 1997, p. 21.
11 NIETZSCHE apud BARBIERI, 1997, p. 21.
12 MELO NETO, 2003, p. 158.
13 BARBIERI, 1997, p. 11.
14 Ibid, p. 49.
15 MELO NETO, 2003, p. 596.
III. MANIFESTAÇÕES DA POESIA
EUROPEIA
UM GESTO POÉTICO:
A ALQUIMIA EM PARACELSO E RIMBAUD
Estevan de Negreiros KETZER

Mas noto que meu espírito adormece. Se estivesse acordado sempre, a partir deste
momento, chegaríamos logo à verdade.
Rimbaud
O que é que o homem descobre por si ou através de si mesmo?
Nem um paninho suficiente para fazer calças.
Paracelso
O que está embaixo é como o que está em cima.
O que está em cima é como o que está embaixo para realizar os milagres de uma coisa
só.
Tabula smaragdina

Introdução: criações poéticas, criações alquímicas


Sobre um alpendre de ranhuras intermináveis um homem em pé observa aquelas colunas jônias do
jardim como se ali tivesse vivido sua infinita infância. As cores em tons pastéis nunca mais brilharão
como antes. É o homem que ganha ainda mais ao deixar o vento outonal sobre a face e dele retirar o
próximo passo para a aurora. Um gole de vinho antes do trabalho com o mundo, manuais de ervas
medicinais, e de uma medicina dos astros. Essa velha memória sempre impinge a degustação elaborada
das substâncias mais finas, movimento superficial que invade o verbo só ter o gosto de saber o que é, o
que é... Mas o vento também traz a solidão e diante do mármore antigo do alpendre sua resposta é o
silêncio. É aí que deve advir a primeira experiência: abrir os braços e cantar um hino novo aprendido
com as gotas d’água ali na antiga fonte do jardim. Colheu as flores e captou o orvalho. Deu ódio a todas
as palavras e queimou o enxofre para dar início ao tratamento. Fez assim, até a tingir a exaustão da mente
torturada pelo cansaço. Será suficiente para ter o ouro ou a vida eterna? Serão tais argumentos que
validam a busca filosofal?
A poética encontra a alquimia, seus movimentos não são simples e levam a uma importante
meditação que ainda deixa dúvidas: será que ambas ainda tem algo para dizer em tempos cheios de
mercados integrados? Dúvida essa que como veremos tem muito a ver com a poética de Arthur Rimbaud
e a alquimia do médico medieval Paracelso (Philippus Aureolus Bombast Von Hohenheim). Ambos, em
eras diferentes, e com propostas diferentes, se propuseram a pensar elementos essenciais da vida humana
que precisavam ser considerados para romperem com dogmas e superficialidades. Essa autenticidade no
trabalho de ambos é uma marca importante de uma arte que na dificuldade de encontrar explicações
exteriores, passa a um trabalho na direção da interioridade, sem se restringir a considerações
psicológicas, tendo em vista que na obra de ambos parece haver algo a mais que excede a vida
meramente individual, conforme coloca Bachelard1 ao se referir aos obstáculos do conhecimento
científico e da criação poética. Acerca da universalidade da compreensão dos símbolos alquímicos e da
obra poética Jung2 denominará arquétipos do inconsciente coletivo ao trabalho assim dirigido para as
grandes ideias que envolvem o sentido simbólico subjacente.
Aqui a análise do poético não se restringirá ao fazer da poesia propriamente dita, mas minha
proposta é examinar a ocorrência da poética diante da modernidade e das diferenças que são
reconhecidas sobre a subjetividade, uma vez escrita e editada, não se deve esquecer o valor do
pensamento, do fazer pensar sobre o registro fônico e de sensibilidade encontrado na prosa poética de
Rimbaud Uma temporada no inferno, escrito em 1873. A relação de Rimbaud com a alquimia é por
demais estreita, portanto o livro de Paracelso A Chave da Alquimia também será pensado na
possibilidade de que a alquimia problematize outra interpretação do sentido poético encontrado em
Rimbaud.

Uma poética da modernidade


A poesia que marca a segunda metade do século XIX na França vive ainda sobre o primado da obra
Charles Baudelaire, Flores do Mal, de 1857. Nesse livro, Stéphane Mallarmé, em 1865, qualifica a obra
citada como “mergulho cheio de prazer nessas tão queridas páginas.”3 Mais importante do que a crítica
da época, mesmo com as considerações de Mallarmé, é enxergarmos em Baudelaire4 o precursor de um
ambivalente movimento entre o “eterno e o transitório”. Sendo assim, a arte na Modernidade teria ambos
os caráteres que compõem em um só escopo os opostos e o homem que daí surge terá de viver com essa
insegurança de ter de se deparar na unidade das coisas com as variedades. Isso fica mais evidente
quando analisamos alguns de seus poemas contidos em As Flores do Mal, como no exemplo de A Beleza:
Eu sou bela, ó mortais! Como um sonho de pedra,
E meu seio, onde cada um se fere um pouco,
É feito para inspirar ao poeta um amor louco
Eterno e mudo como Fedra.5

Que espécie de beleza é essa? Tão recolhida na sua dor que não é capaz de sair de um mundo feito
para si própria e que só tem serventia quando vista muito de fora. É beleza que está contida na matéria?
Então a beleza mesmo não fala, não tem tanta vida ou graça. Sua serventia é muito diferente da concepção
que anteriormente se pensava saber dela. A poesia de Baudelaire fala pela primeira vez de uma
incompatibilidade entre sua forma e a vida humana. Mesmo na razão mais arguta é possível que ela se
perca, mas se perder logo voltará com nova aparência.

Os poetas, diante minhas graves atitudes,


Que pareço copiar de monumentos semelhantes,

Gastarão os seus dias em austeras virtudes;6

Se aos poetas é permitido falar de tudo, esses pagarão com o preço de crerem na palavra, só verão a
si mesmos, aí reside a verdadeira beleza que está de fora, na claridade de dentro, sem explicação
qualquer. E aí creio que reside a forma do estudo de Baudelaire pelo seu incipiente simbolismo: o
símbolo interior possui ressonância, e reverbera ante qualquer regime de igualdade ou eternidade. Talvez
o próprio autor já tenha se dado conta de que os costumes são impeditivos para algo muito maior: a
experiência moderna. Esta, uma vez na envergadura do mundo, abre a incompletude humana para o mal-
estar e a experiência inadvertida. A obra começa a falar, quebrar o silêncio que possuía antes.
Não será também aí que Rimbaud parece tanto se esforçar? Em sua correspondência a Paul Demeny,
em 15 de maio de 1871, o poeta falará da busca de todo o poeta a uma nova forma de contato com os
sentidos. “Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; buscar-se a si, esgotar em si mesmo todos
os venenos, a fim de só lhes reter a quintessência.”7 Notamos aí o uso do termo quintessência, linguagem
empregada pelos alquimistas para falar acerca de um outro elemento da natureza que não se restringiria
aos já conhecidos terra, fogo, água e ar. A busca desse quinto elemento sempre foi cercada de mistério
em grande parte da antiguidade. Por mais que notemos o quanto custa saber o que seja esse elemento,
parece com grande propriedade que os alquimistas investiram muito tempo nessa busca, na verdade
podemos inicialmente olhar com atenção que os interesses dos alquimistas eram basicamente dois e se
vertiam para o mundo natural: 1) imortalidade do corpo; 2) transformação de chumbo em ouro. Interesses
relativamente físicos, como os que encontramos hoje nos cartazes de auto-ajuda espalhados pela internet.
Podemos pensar se ela se restringe a isso, pois nossa constatação pode ser facilmente olhar para a
alquimia como uma tentativa suplementada pela proposta científica de fins do século XIX, principalmente
com a química atomística contemporânea, ou reclinar-nos sobre ela para pensarmos como o homem pode
se conhecer melhor.

Alquimia e poesia: vertentes da imagética


Não teriam os filósofos e os médicos feito a mesma coisa com objetivos diferentes? Resta perguntar
se os poetas não poderiam tentar também encontrar aquilo que os proporcionaria mexerem com as
palavras no nível da transformação, da verdadeira transformação que só diz respeito a cada um. Dar vida
ao símbolo, sua linguagem primeira destituída de um representante formal e unívoco. Para Jung,8
“verdadeiros e autênticos símbolos, isto é, tentativas de expressar alguma coisa para a qual ainda não
existe conceito verbal.” Nessa linguagem de difícil acesso deve residir a verdadeira apreensão de algo
extraordinário que não pode ser banalizado com risco das pessoas perderem a importância. Jung estuda
alquimia, para poder considerar não somente seu descontentamento com o saber, mas para que este o
ajuda a saber algo do humano. Como psiquiatra e, portanto como médico, ele olha para e enfermidade
com os olhos de dúvida: não saber algo é um importante começo. A poesia é também esse dissaber como
crê Rimbaud e dissaber inaugura também a alma universal de seu tempo, como coloca na carta a Paul
Demeny.
A arte eterna terá suas funções, já que os poetas serão cidadãos. A Poesia não marcará
mais o ritmo da ação; ela estará na frente.
Esses poetas virão! Quando for quebrada a servidão infinita da mulher, quando ela viver
por si mesma, quando o homem – até então abominável – lhe tiver dado sua alforria,
também ela será poeta!9
E na força da mulher reside justamente o oposto do homem trazido à tona. Utopia de que a poesia
seja algo muito diverso na sua simplicidade. Gaston Bachelard ao analisar os desenhos de alquimistas
medievais, o Rosarium Philosophorum, nota que os opostos vivem no mesmo psiquismo. O frasco de
vidro, este uma invenção moderna, possui o ideal da união entre o Rei e a Rainha, devaneio máximo que
às “origens obscuras da vida.”10 Essa força poética das imagens, algo que extrapola a mera acumulação
do conhecimento em verdadeiro ou falso. Para um alquimista o conhecimento está muito além disso. É
conhecer etapas psicológicas muito arcaicas, vestígios de impurezas que o enxofre não dissolveu
completamente.

11
E Rimbaud só incide em histórias de loucura, pois observa que seu eu lírico já ousara ter coisas de
que pudesse se orgulhar da beleza. Em um claro diálogo com os poemas de Baudelaire, o poeta observa
que esses valores são efêmeros demais para saciarem os sentidos. A alquimia do verbo é inventiva, só
ela resolve os problemas de uma linguagem para bons moços: “Foi primeiro um experimento. Escrevia
silêncios, noites, anotava o inexprimível. Fixava vertigens.”12 Se acentua o caráter de uma arte que o
poeta não sabe qual direção tomar. Me parece essa a insatisfação primeira de toda a postura do bom
poetar: saber na sensibilidade dos sentidos.
Essa crítica esta contida já nos problemas epistemológicos de Bachelard. Em A formação do espírito
científico a alquimia já coloca problemas básicos para a formação de qualquer movimento: o conceitual
é muito secundário, o desafio é como poder descobrir a si mesmo diante de um laboratório. “[...] somos
nós mesmos, nossas surdas paixões, nossos desejos inconscientes, vamos estudar de perto algumas
fantasias referentes à matéria, tentar mostrar suas bases afetivas e o dinamismo subjetivo.”13 Como será
possível que as paixões particulares influenciem em um laboratório? Bachelard investiga o
posicionamento do alquimista diante de sua experiência. Ele não reduz o problema a sua impossibilidade
técnica ou a inviabilidade dos resultados. Se assim ocorreu com o experimento, o problema deve estar no
próprio experimentador. A poesia não estaria também aí inserida? Se um poema possui sua métrica bem
feita, seu encaixe e sonoridade, ainda assim ele pode não ser bom. Deve haver outra substância, de
disposição interna, para causar uma ruptura com a problemática do mundo físico. Essa atribuição de
autenticidade é extremamente simbólica para o alquimista. “Como vai o alquimista purificar a matéria se
não purificar primeiro a própria alma?”14. Nesse trabalho em que o objeto e o sujeito estão plenamente
simbolizados parece ser necessário rever como a poética pode se fazer sentir diante de um devaneio.
Estranha zona que parece cruzar dois paradigmas muito distintos: o do saber e o do sentir. Ambos já não
podem mais dar conta da epistemologia da modernidade, mas ambos ainda podem criar no humano, pois
só habitam o homem em sua alternativa imaginária complexa. Em a Psicanálise do Fogo, Bachelard15
retoma esse valor do imaginário como alternativa a todo o pensamento racional. “A ciência forma-se
muito mais sobre uma experiência, e são necessárias muitas experiências para se apagarem as brumas do
sonho.” É o ato subjetivo por excelência que pode possibilitar a descoberta do inédito. Assim é o
laboratório, um constante estar pronto sem nunca estar completamente. Não deve ser essa a postura do
poeta? “Nada de esperanças / Nem de recomeço. Ciência e paciência, / O suplício é certo.”16 Então
Rimbaud não nos dá garantia nenhuma de sua ida ao inferno? Ao que tudo indica é dever do poeta fazer
uma visita lá e voltar para contar suas experiências.

Rimbaud e Paracelso: a medicina da palavra mágica


A velharia poética tinha boa parte na minha alquimia do verbo. (...) Em seguida,
explicava meus sofismas mágicos com a alucinação das palavras!

Acabei por considerar sagrada a desordem de meu espírito.17

Mesmo que o desejo não se faça frente ao mundo material, este fica na espera de que a próxima
forma não esteja restrita a explicações fáceis, concretas na exatidão torpe de palavras vagas que são
explicitadas pelo seu uso cotidiano. Limitações de ordem prática se impõe e elas devem dar lugar as
imagens bachelarianas que não se transformam em pensamentos, exigem um devir da palavra acesa, como
o fogo a queimar o composto químico e dar forma nova a este. Assim é o trabalho do poeta no delírio das
palavras, assim é “[...] o alquimista, tão logo termina uma destilação, recomeça-a misturando de novo o
elixir e na matéria morta, o puro e o impuro, para que o elixir aprenda, por assim dizer, a libertar-se de
sua terra.”18 Um poeta, nessa acepção, não é um homem inspirado, gênio como a velha crítica costumava
dizer, mas sim demiurgo do inacabado, esforço de oleiro sobre a argila. Muito esforço e uma percepção
objetiva são os elementos alquímicos elementares. “O amor é a primeira hipótese científica para a
reprodução objetiva do fogo”, nos diz Bachelard19 sobre algo indispensável ao poeta e ao alquimista e
que na figura da sexualidade eleva o pensamento aos seus mais altos extertores da fricção, os fogos que
nascem do contato.
A poética se reclina sobre uma psicanálise muito primitiva, ainda por vir da alma, repleta de
interações simbólicas. Amor e fogo. Estes já dão mostras de um desenvolvimento em relação ao outro,
outro da palavra incandescente, outro que olha no horizonte descontínuo de algo muito maior do que si e
desperta no segredo fundamental: “Porque Eu é um outro”20. A célebre frase de Rimbaud indica algo a
mais da composição que precisa ser pensado: essa forma de alteridade não se dá de outro modo se não
na percepção de uma realidade interna que desperta, a outridade da razão. Por isso o romantismo não foi
bem entendido segundo Rimbaud. O amor por si só é superficial, mas esse estranhamento inicial,
princípio máximo de toda a mímesis, é o ponto forte dos poemas de Baudelaire. “Para mim é evidente:
assisto à eclosão de meu pensamento: eu a contemplo, eu a escuto. Tiro uma nota ao violino: a sinfonia
agita-se nas profundezas, ou ganha de um salto a cena”21. A arte traz sempre algo a mais, o Outro do
discurso, o inconsciente freudiano aí também reside e dele se pode criar o que parece não ter explicação.
Esse Eu de Rimbaud já sabe ser o Eu do passado, o mesmo Eu do Estado, concepção de que algo ficou
no lugar para dar conta da identidade. O poeta verifica um Eu que é transformação incessante quando
desperto para essa força inconsciente.
Não estará aí o trabalho de Paracelso com sua medicina fortemente galgada na cura com fármacos? O
pensamento de Paracelso olha para os astros com fim a alertar os homens sobre tais pretensões. Era
importante alertar as pessoas de que os movimentos dos astros não mudam a vida das pessoas.22 Sua
ideia de ciência parte para uma consideração altamente materialista por um lado e altamente ontológica
por outro: “[...] todos e cada um de nós levamos nossa própria razão de ser em nós mesmos.”23 Em seu
método de analogia do microcosmo com o mundo é que o homem pode compreender seu ser. O médico
suíço enxerga o horizonte de transformação do homem, todas as esferas que seu corpo lhe pode
proporcionar. Ele ruma para os fármacos e revolve em nomes astrológicos as possibilidades da cura. São
dos astros os conhecimentos de todos os compostos. “O médico é como o fabricante de vidros. Ainda que
tenha diante de si um doente e diversos medicamentos à disposição falta-lhe a ciência e o conhecimento
das causas.”24 O médico não segue só seus instintos, assim como a poeta não segue sua sensibilidade
sem um estudo aprofundado das essências das coisas – ou entidades como preferia Paracelso. “Através
do exterior ele vê o interior.”25 Haveria maior poética que imaginar o quanto o exterior mostra o interior
do homem? “Assim estamos no mesmo céu que se estende diante de nossos olhos mas atrás dos olhos,
por isso não o podemos ver.”26 Talvez na voz de Jung esteja a última grande compreensão dos mistérios
sagrados que configuraram as alternativas à ciência contemporânea propriamente dita. Esses movimentos
que a alquimia começa a unir entre a cabala hebraica, a filosofia grega e a química árabe podem ser
associados e trazer novamente a pergunta sobre o que o saber pode proporcionar ao homem, se pode
transformá-lo e enriquecê-lo com algo surpreendente e que outrora não era conhecido. “Na prática, isto
significa que a filosofia se acha, de certa forma, oculta dentro da matéria, podendo por isso também lá
ser encontrada.”27 E a filosofia então passa a ser algo que está tanto dentro quanto fora, tanto no mundo
dos quatro elementos quanto no mundo dos astros. Cabe a filosofia mostrar à matéria inferior sua origem,
podendo ser encontrada no homem, aquele que desbrava o interior das matérias. A filosofia acaba
possuindo propriedades mágicas de ligação entre os elementos da matéria (terra e água) e os elementos
astrais (fogo e ar).
Mas o homem não deve esquecer que é o objeto que projeta para ele seu sentido, demonstrando sua
essência. E o que o homem pode compreender disso é o seu próprio Archasius.28 Logo, a compreensão
de Paracelso aqui se coloca muito próxima da fenomenologia mais recente. Não será esta a mesma
proposta de Bachelard em seu A Poética do Devaneio, ao elevar o método fenomenológico a entrar em
contato com a consciência do próprio poeta? “A descrição dos psicólogos pode, sem dúvida, fornecer
documentos, mas o fenomenólogo deve intervir para colocar esses documentos no eixo da
intencionalidade.”29 Essa consciência de criatividade não está solta e os esforços para que o devaneio
seja poético não podem restringir o homem a seus achados meramente psíquicos. Daí a imaginação ser
para o futuro, para o que ainda não se conhece e que o anterior, mesmo com a restituição de seu sentido,
não é capaz de dar conta. O sonho não deveria ser encarado como o recalque do diurno, mas como a
liberdade crescente do enigma que traz à memória a vivacidade de um instante vivo.
Por vezes é esse esfacelamento do instante que Rimbaud traduz em forma de poesia, dando vida à
uma matéria no limiar de seu apagamento. “Minha saúde ficou ameaçada, o terror vinha vindo. Caía em
sonos de dias e, de pé, prosseguiam os sonhos mais tristes. Estava maduro para o falecimento; por uma
rota de perigos, minha fraqueza me levava aos confins do mundo [...]”30. Daí também a imaginação de
um espírito do tempo (Zeitgeist) que não se consola com a vida de sonhos cristalizados e bem
delineados. O poeta ao entrar no inferno não volta o mesmo, pois sua vida o levou para muito longe dos
outros e da velha “moral” cristã que tanto Nietzsche estava no fluxo batendo com um martelo. Também
aqui a filosofia quer ir mais além, quer falar da essência do homem que está embriagado com uma
aparência muito positivista. A poesia não pode aceitar isso, nos diz Rimbaud, deve ser na figura da
degradação: “A raça inferior cobriu tudo – o povo, como se diz, a razão; a nação e a ciência.”31 Que
raça inferior é esta? Estamos no meio de uma nova crença a deflagrar nossos interesses mais pessoais. É
assim que o poeta fala da perda de tudo o que antes a humanidade tinha fé e passa a dar luz a voz da
ciência com seus progressos que não retomam mais o significado do homem no mundo. Também aí a
intenção do poeta em sair do mesmo ritmo da pena em substituição ao arado. “Que século de mãos! Não
darei nunca a minha. Depois, ser doméstico leva longe demais. A honestidade de mendigar me aflige. Os
criminosos repugnam como os castrados: eu, estou intacto, e para mim é o mesmo.”32 Também aqui o
trabalho não é apreciado como uma simples resposta a sociedade, se não for algo que possamos
responder para nós: de que adianta tanto esmero? Onde o homem pode olhar para si mesmo diante do
outro? Um homem castrado já não pode mais ter o que fazer diante de uma mulher, assim como um homem
sem desejo pela vida. “Não acabo de me rever no passado. Mas sempre só, sem família; até, que língua
eu falava?”33 Aqui o poeta encontra sua decadência, pois não está no outro o que realmente lhe aflige,
mas em si mesmo, na tonalidade de cores que sua alma não ruboriza e nem a alquimia tem conseguido
transubstanciar. Finalmente, vem a acomodação da palavra, sem rumo e sem ser: “A gente não parte.
Retoma o caminho, e carregando meu vício, o vício que lançou raízes de dor ao meu lado desde a idade
da razão, e sobe ao céu, me bate, me derruba, me arrasta.”34 E mesmo o mundo não tendo jeito para
receber suas considerações, ainda assim o mundo não deve saber de todos esses desânimos. Um homem
que não tem esperança não tem consideração da sociedade e isso toca a fundo a compreensão do
alquimista, a começar seu experimento na alma. “Sim, tenho a vista fechada a vossa luz. Sou um animal,
um negro.”35

Conclusão: uma dor, uma criação... um outro


O que será essa temporada no inferno? Não será esta também a mesma proposta dos alquimistas
diante dos afetos? Tentei pensar essa problemática inaudita quando as expressões utópicas de fins do
século XIX se mostram infrutíferas para darem conta da fragmentação do sistema simbólico que
anteriormente reinava na arte. Diante do que antes era tão certo e consistente, em Baudelaire habita
dúvida diante da resposta apressada. Também nesse lugar de flerte com o aparecimento da alquimia
como um saber arte faz muito sentido, segundo as concepções bachelarianas de uma estética da criação
que se lance ao devaneio infantil da descoberta do mundo – desafios estes que acompanham a busca do
conhecimento científico.
A concepção de Jung do trabalho de Paracelso traz certamente uma luz para as investigações desse
autor diante da medicina e não devem ser desprezadas quando olhadas à luz da estética da criação
poética, pois Jung mostra que os estudos de Paracelso já rumavam para as relações entre o microcosmo
(homem) e macrocosmo (universo), encadeando aí uma concepção de ciência e de cura médica pelo
advento da criatividade e da percepção sensível, esta última muito valorizada pelo empirismo inglês na
busca do método científico 36.
Sustento, assim como Bachelard o fez, que o conhecimento e a poética estão altamente entrelaçados,
sendo os desafios de suas manifestações muito próximos de uma concepção de conhecimento complexo.
O que é de fato o complexo? Ele ainda não é, mas pode ser: se o pensamento observar com os afetos e se
os afetos captarem a tenacidade dos pensamentos.

Referências
BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
_____. A Psicanálise do Fogo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
_____. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. Porto Alegre: Sulina, 2003.
_____. Sobre a Modernidade. São Paulo: Paz e Terra, 2011.
JUNG, Carl Gustav. O Espírito na Arte e na Ciência. Petrópolis: Vozes, 1985.
MALLARMÉ, Stéphane. Sinfonia Literária. Em: BAUDELAIRE, Charles. Poesia e Prosa: volume único.
Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1995.
PARACELSO. A Chave da Alquimia. São Paulo: Editora Três, 1983.
RIMBAUD, Arthur. Uma Temporada no Inferno. Porto Alegre: L&PM, 2008.
_____. Correspondência. Rio de Janeiro: Topbooks, 2009.

Notas
1 BACHELARD, 2009; 1999; 1996.
2 JUNG, 1985.
3 BAUDELAIRE, 1995, p. 1003.
4 MALLARMÉ, 2011, p. 25.
5 BAUDELAIRE, 2003, p. 20.
6 BAUDELAIRE, 2003, p. 20.
7 RIMBAUD, 2009, p. 39.
8 JUNG, 1985, p. 59.
9 RIMBAUD, 2009, p. 40.
10 Ibid, p. 75.
11 GRIEMILLER, J. Rosarium Philosophorum (1578). Arsgravis: relación entre las artes visuales y el
pensamiento simbólico tradicional. Disponível em: <http://www.arsgravis.com/detall.php?id=214>.
Acesso em: 6 ago. 2012.
12 RIMBAUD, 2008, p. 65.
13 BACHELARD, 1996, p. 57.
14 Ibid, p. 62.
15 BACHELARD, 1999, p. 34.
16 RIMBAUD, 2008, p. 75.
17 Ibid, p. 69.
18 BACHELARD, 2008, p. 73.
19 BACHELARD, 1999, p. 37.
20 RIMBAUD, 2009, p. 38.
21 Ibid, p. 38.
22 PARACELSO, 1983.
23 Ibid, p. 56.
24 Ibid, p. 162.
25 PARACELSO, citado por JUNG, 1985, p. 18.
26 Ibid, p. 18.
27 Ibid, p. 19.
28 Conforme Jung (1985) explica, o conceito de Archasius refere-se ao calor vital interno do homem. É o
espírito que no homem gera a digestão, assim como nos metais é necessário um forno (chamado pelos
alquimistas de Atanar) para purificar os minerais.
29 BACHELARD, 2009, p. 4.
30 RIMBAUD, 2008, p. 77.
31 Ibid, p. 25.
32 Ibid, p. 21.
33 Ibid, p. 25.
34 Ibid, p. 27.
35 Ibid, p. 31.
36 Embora Paracelso tenha desenvolvido estudos astrológicos, alquímicos, dava aulas em alemão ao
invés do latim e queimado tratados de importantes médicos consagrados como Avicena, Galeno e Rhazes
(JUNG, 1985) não se pode negar que apesar dessa aparente contestação da ordem seu pensamento tenha
gerado muitas implicações na filosofia até então metafísica. Paracelso possuía uma concepção binarista
entre corpo (sêmen) e alma (potência), por ele designadas ens seminis e ens virtutis (PARACELSO,
1983). Faço questão de apontar esse fato, pois é exatamente sobre esse binarismo que a filosofia do
século XVI e XVII irão se reclinar, a partir de Descartes e culminando com Spinoza, este último com uma
forte tradição judaica como pano de fundo de um sistema filosófico inovador e altamente cético.
DESPERSONALIZAÇÃO E CRIAÇÃO POÉTICA EM SOPHIA
ANDRESEN
Márcia Helena S. BARBOSA
Situar a poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen no panorama da literatura portuguesa é uma
tarefa difícil, como destaca Silvina Rodrigues Lopes, que organizou o volume da coleção Textos
Literários dedicado ao estudo dos textos da escritora. Essa dificuldade deve-se, em parte, à “distância”
guardada pela autora “em relação a qualquer hipótese de escola ou movimento literário”. A participação
de Sophia Andresen nos Cadernos de Poesia, revista literária que circula entre 1940 e 1942, anuncia o
seu surgimento no cenário das Letras e abre caminho para a publicação de seu primeiro livro, Poesia, em
1944. Na época, como adverte a ensaísta, “a ‘Presença’ se impõe no panorama artístico português”.
Entretanto, a escritora “não partilha a sua imposição de uma interioridade e subjectividade subjugantes”;
antes afirma [...] a sua singularidade num movimento des-subjectivante, movimento poético de
transfiguração que é paixão do exterior.”1
Ainda de acordo com a ensaísta, Sophia Andresen produz uma poesia “clássica” – nos dois sentidos
que habitualmente são conferidos a essa palavra –, porque relacionada “com a civilização grega ou
romana ou com os seus renascimentos na história” e subtraída “às variações epocais do gosto”. No que
diz respeito à segunda acepção do termo, a estudiosa explica que a autora mantém-se independente das
tendências de ruptura e inovação que caracterizam a modernidade literária e em função das quais o
clássico tende a desaparecer.2
Eduardo Lourenço e Fernando Martinho, de certo modo, também referem-se à posição ocupada, no
cenário da literatura portuguesa, por Sophia Andresen, escritora que manteve uma produção constante e
recebeu importantes prêmios até pouco antes de sua morte, ocorrida em 2004. Os dois ensaístas, ao
falarem sobre aquela que foi considerada pela crítica como uma das grandes vozes da expressão lírica
em língua portuguesa, ressaltam a leitura precisa que Sophia Andresen realizou de Fernando Pessoa.3 Na
opinião do primeiro crítico, expressa no prefácio à Antologia da escritora, “jamais se revisitou, por
dentro, a aventura sem fim de Fernando Pessoa, poesia e vida confundidas, como nesse admirável poema
‘Cíclades’”, incluído em O nome das coisas.4 Por sua vez, Fernando Martinho, ao mesmo tempo que
reafirma “a presença tutelar” de Pessoa na poesia portuguesa contemporânea, chama atenção para “o
entendimento por dentro das fecundas propostas de modernidade contidas na poesia pessoana”,
alcançado pelos autores “que melhor corporizaram o espírito dos Cadernos de Poesia, entre os quais
Sophia de Mello Breyner Andresen.”5
Eduardo Lourenço observa, ainda, que existem “poucos itinerários poéticos em
língua portuguesa tão impregnados de positividade original, tão de raiz, canto ao rés de
uma realidade aceite como esplendor efêmero e eterno e por isso tão isentos de
polemismo e intrínseca negatividade”, como o de Sophia Andresen. A constatação,
inscrita no texto em que o crítico mostra a presença de Pessoa na obra da autora, dá lugar
a uma indagação – como “a maga do sentimento pânico e harmonioso do mundo”,
trilhando “um caminho de serenidade e irradiante presença”, poderia “encontrar-se com o
‘dividido’, a ausência feita voz, a multiplicidade sem centro, o ‘viajante no anverso’?”6
O ensaísta lembra que a escritora e seu interlocutor ocupam pólos opostos e que ela, mais do que
qualquer outro poeta, põe termo à longa travessia da consciência poética como consciência infeliz,
inaugurada por Antero de Quental e alçada à sua expressão “épica” por Álvaro de Campos. Ao mesmo
tempo, o crítico sugere uma resposta para a pergunta que ele próprio formulara, observando o momento
em que, na sua opinião, ocorre o “encontro” efetivo entre Sophia Andresen e Pessoa. Nas últimas obras
da autora, a presença de Pessoa teria surgido “com uma insistência enigmática, como se Sophia sentisse a
necessidade de integrar a sua sombra imersa, ou a plenitude inversa que ele instalou na consciência
poética contemporânea”, ao seu mundo, justamente na hora em que neste “é mais fulgurante do que nunca
o sentimento da realidade.”7
Instante privilegiado dessa integração, o poema “Cíclades” é, no ponto de vista de Eduardo
Lourenço, o retrato de Pessoa que permanecerá para sempre e “que acaso só uma mulher e um grande
poeta podiam conceber, oferecendo a sua disponibilidade maternal ao que não chegou a tocar-se como
existente.” Segundo o crítico, por meio da evocação de Pessoa, Sophia Andresen se aloja na diferença
que a separa do escritor e, simultaneamente, a vincula a ele. Dessa forma, a autora estaria situada como
“não errante na errância do nosso Ulisses” e, em “Cíclades”, sintetizaria “o seu destino de Penélope, a si
mesma fiel, tecedora do mais alto dia e da mais viva esperança no meio da noite nossa e da vida.”8
Mesmo que se possa questionar se a “disponibilidade maternal” e a “não-errância”
de Sophia Andresen explicam de maneira satisfatória, como quer Eduardo Lourenço, a
presença de Pessoa no universo poético daquela que o sucedeu, a direção apontada pelo
crítico abre caminho para a reflexão acerca da despersonalização na obra da escritora.9
Com o propósito de encaminhar a discussão do tema, e na impossibilidade de focalizar
os diversos textos da autora que tematizam o “drama em gente” – “Fernando Pessoa”,
“Em Hydra evocando Fernando Pessoa”, “Personna” e “Cíclades” –, opta-se por
comentar este último, o longo poema incluído em O nome das coisas e distinguido por
Eduardo Lourenço, do qual transcreve-se um fragmento:

A claridade frontal do lugar impõe-me a tua presença


O teu nome emerge como se aqui
O negativo que foste de ti se revelasse
Viveste no avesso
Viajante incessante do inverso
Isento de ti próprio
Viúvo de ti próprio
...............................................
...............................................
Pudesse o instante da festa romper o teu luto
Ó viúvo de ti mesmo
E que ser e estar coincidissem
No um da boda
Como se o teu navio te esperasse em Thasos
Como se Penélope
Nos seus quartos altos
Entre seus cabelos te fiasse. 10

Abre o texto a “claridade frontal do lugar” a reclamar o olhar de Caeiro. A luz “impõe” ao eu lírico
a presença de seu interlocutor e faz emergir o nome do poeta, como se aí o “negativo” que ele foi de si
próprio “se revelasse”. São lembrados, nos versos de Sophia Andresen, os poucos papéis que Pessoa
desempenhou, com discrição, na “irrealidade” de sua vida cotidiana: o do “inquilino de um quarto
alugado por cima de uma leitaria”, o do “empregado competente de uma casa comercial” e o do
“frequentador” dos “cafés da Baixa”.
O homem cuja passagem pela vida foi “imperceptível” como o “dedilhar” de suas mãos nas mesas
dos cafés é, aqui, chamado de “viúvo de ti próprio”, expressão que faz eco a outra – “viúvo de pessoa”
–, empregada no poema “Fernando Pessoa”11, de Livro sexto. “Esquartejado pelas fúrias do não-
vivido”, isto é, dividido e apartado “dos outros e da vida”, Pessoa viveu “no avesso”. Lançando-se à
escrita com uma paixão que não soube e/ou não quis dedicar a sua existência como “personalidade” e
sujeito, ele se tornou “Viajante incessante do inverso”. Em vez de entregar-se ao mar, ao fluxo da vida,
fez-se um aplicado cartógrafo: criou obras com características específicas para cada um de seus
heterônimos e imaginou os elementos que comporiam a biografia desses seres.
Pessoa evitou, desse modo, os riscos que poderia enfrentar numa viagem destinada a explorar não os
mapas, mas o território: “Mantiveste em dia os teus cadernos todos / Com meticulosa exatidão desenhaste
os mapas / Das múltiplas navegações da tua ausência”. Mais adiante, há outra afirmação do eu lírico que
pode ser interpretada de maneira semelhante: “Viajavas no avesso no inverso do adverso”. Percebe-se,
ainda, que a palavra “ilha” está lá – “Aquilo que não foi nem foste ficou dito / Como ilha surgida a
barlavento” – para reativar o sentido de isolamento. Fica demonstrado, assim, que essa “navegação com
bússola e sem astros”, como é denominada no poema intitulado “Fernando Pessoa”, ao mesmo tempo que
desvia o viajante de certas adversidades, leva-o a assumir perigos de natureza distinta.
O balanço desse exílio, que Pessoa efetua nos limites da sua poesia, também faz o “não-vivido”
transformar-se em linguagem, conforme se percebe nos versos de Sophia Andresen: “Com prumos sondas
astrolábios bússolas / Procedeste ao levantamento do desterro”. Fernando Martinho observa que uma
passagem do texto da escritora – “Nasceste depois / E alguém gastara em si toda a verdade / O caminho
da Índia já fora descoberto” – indica a ampla dimensão de tal desterro. Pessoa é apresentado aqui como
“o exilado no lugar e no tempo”, de acordo com o crítico, que lê, por trás das palavras da autora, os
versos de Álvaro de Campos em Opiário: “Pertenço a um gênero de portugueses / que depois de estar a
Índia descoberta / Ficaram sem trabalho”.12
Junto e, ao mesmo tempo, separado dos que nasceram depois do período dos
descobrimentos e sofreram com a crise que assolou o país, está um poeta extemporâneo.
Segundo Leyla Perrone-Moisés, Pessoa era “demais” para Portugal, “que não sabia o que
fazer daquele grande poeta épico, daquele ‘supra-Camões’ advindo num momento em que
a glória das Navegações se perdia num passado longínquo”. E na palavra “desterro”,
empregada por Sophia Andresen, podem ser vislumbrados os diversos aspectos que
constam no inventário realizado pela ensaísta acerca do criador de heterônimos. Num
esforço de síntese, Leyla Perrone-Moisés define Pessoa desta forma: “Sujeito em crise
de identidade, poeta em crise de língua, gênio poético acuado num país que atravessava
ele mesmo uma crise política e econômica.”13
Condenado ao exílio por todas essas razões, Pessoa, como lembra o eu lírico de “Cíclades”,
experimenta ainda outra espécie de desterro, pois sua condição humana o separa dos deuses, que, na
Antigüidade Clássica, transitavam no mesmo espaço que os seres humanos, e que depois se ausentam
neste mundo: “Dos deuses só restava O incerto perpassar No murmúrio e no cheiro das paisagens”.
Conforme se verá a seguir, o sujeito poético compartilha com seu interlocutor o sentimento de desamparo
provocado por tal divisão, mas Pessoa, na voz de Ricardo Reis, vai além e, assim, afasta-se do eu lírico
de “Cíclades”. Reis é aquele que se diz “desterrado da pátria antiqüíssima da minha / Crença, consolado
só por pensar nos deuses.”14 No entanto, fugindo de tudo quanto ameace mudá-lo “para melhor que
seja”, o que realmente deseja é ser esquecido pelos deuses: “Quero dos deuses só que me não lembrem. /
Serei livre – sem dita nem desdita.”15
Mesmo sabendo que Pessoa se dividiu em “muitos rostos / Para que não sendo
ninguém” dissesse “tudo”, o eu lírico de Sophia Andresen age no avesso do avesso e
reúne, no seu campo de visão, elementos que possam tornar a ausência do poeta uma
presença. Esse ato começa com uma invocação: “Porém obstinada eu invoco – ó dividido
– / O instante que te unisse / E celebro a tua chegada às ilhas onde jamais vieste”.
Depois, o eu lírico dirige-se ao poeta como quem entrega presentes a um estrangeiro. São
oferecidos a Pessoa, no texto de Sophia: a inteireza, a noção de conjunto que o rosto do
poeta, repartido em “ilhas”, jamais alcançou; a alegria, o “estio”, que ele não recebeu
dos deuses nem quis para si, e, novamente, o esplendor, a nitidez do real, a qual o olhar
de Caeiro procurou se abrir.
A unidade, a luz e a harmonia encontradas na Grécia real contrastam com a fragmentação de Pessoa
e, por isso, o enigma que ele representa surge, “mais nu e veemente”, a interrogar o eu-lírico. A
invocação ao escritor vem, então, opor-se a sua “viuvez”. O sujeito poético clama por Pessoa como se
ele chegasse “neste barco”, e como se a presença do real penetrasse o espaço de ausência e negação em
que o criador de heterônimos se constituiu. Assim, as ilhas gregas e a voz do eu lírico são mostradas
como o abrigo, o lar e o amor, que precisam ir ao encontro desse Odysseus e “invadi-lo”, porque ele só
conhece a solidão.
O eu lírico encerra “Cíclades” com a manifestação de um desejo que se sabe irrealizável: o de que o
instante da festa, da “chegada” de Pessoa às ilhas gregas, fosse como o regresso de Odysseus a Ítaca.
Encontrando uma Penélope que se unisse a ele, e unisse nele os pontos dispersos, Pessoa alcançaria, no
“um da boda”, a coincidência entre “ser e estar”. Dessa forma, veria rompido o seu luto e sairia inteiro
de uma viuvez três vezes sofrida, pois deixaria de ser, simultaneamente, viúvo de si mesmo, dos outros e
da vida. No entanto, seu caminho não passa nesse porto.
Aquilo que ocorre em “Cíclades” repete-se em muitas outras oportunidades: o eu lírico da obra de
Sophia Andresen assume o papel de Penélope, a companheira de Ulisses na Odisséia, a fim de reagir às
diversas formas de destruição e dispersão com que se depara. Nessas ocasiões, o sujeito poético fia ou
desfia. A resistência a todas as divisões, rupturas e desvios requer a dupla habilidade da personagem de
Homero. Exemplo disso é o texto intitulado “Penélope”:

Desfaço durante a noite o meu caminho.
Tudo quanto teci não é verdade,
Mas tempo, para ocupar o tempo morto,
E cada dia me afasto e cada noite me aproximo.16

O tempo consumido nas tarefas cotidianas ou empenhado em “contratempos” é um


caminho que leva para longe da plenitude e, por isso, é necessário “destecê-lo”. Ao
desmanchar essa trama, compõe-se, na verdade, uma outra teia, como mostra o poema
denominado “O vento”: “Sento-me ao lado das coisas / E bordo toda a noite a minha
vida.”17 Conforme lê-se em “Espera”18 e em inúmeros outros textos, é na “hora tardia”
que o sujeito poético encontra o “silêncio” e a “concentração” para atingir o
despojamento desejado e reconquistar a unidade, embora, em determinadas ocasiões, o
excesso de claridade, o sol a pino, também possa conduzi-lo a esse estado.
Esses aspectos sugerem que, de esperar, tecer e destecer, faz-se a vida dessa Penélope que fala nos
poemas de Sophia Andresen. Todavia, sua existência não pode ser definida somente por esses três
verbos, pois é inquestionável o fato de que o eu lírico não se nega à busca nem ao risco, e irá assumir
papéis distintos ao longo da obra da autora, alguns dos quais serão comentados a seguir.
Em “O Minotauro”19, o sujeito poético diz ter beijado o chão de Creta “como Ulisses”. No poema
denominado “Ítaca”20, conversa consigo mesmo ou transmite a outrem um saber, ao que tudo indica, feito
de experiência. O tom de anunciação que imprime a suas palavras, e a riqueza de detalhes com que se
refere ao ritual a ser cumprido, revelam que o eu lírico já foi iniciado nesse segredo que agora repete
para si ou compartilha com um interlocutor feminino como ele. Nesse texto, o sujeito poético identifica-
se, mais uma vez, com o herói homérico, pois a sabedoria que detém diz respeito a uma aventura
semelhante àquela que foi protagonizada por Ulisses. O ritual consiste em deixar o cais, perder-se “no
interior da noite no respirar do mar”, sendo esta “a vigília de um segundo nascimento”, para depois ser
acordada pelo sol e recuperar, em Ítaca, “a sabedoria inicial”, emergindo “confirmada e reunida”.
No texto intitulado “Ariane em Naxos”21, o percurso do sujeito poético cruza-se com o da filha de
Minos, rei de Creta. A evocação a Ariane, personagem que empresta a Teseu o fio que lhe permite sair
do labirinto, de certo modo, é uma volta à figura de Penélope. Todavia, constata-se que, assim como o
eu-lírico feminino transforma-se de Penélope em Ulisses em alguns textos de Sophia Andresen, em
outros, não satisfeito em ser apenas aquela que provê e guia – Ariane –, vai avançar na pele de Teseu
pelos corredores do labirinto: “Sozinha caminhei no labirinto.”22 O mesmo ocorre em “O Minotauro”23,
texto já citado, em que o sujeito poético afirma ter mergulhado no mar de Creta, visto aqui como o lugar
onde reina o monstro com corpo de homem e cabeça de touro.
No texto intitulado “Enquanto longe divagas”24, o sujeito poético mostra que a sua existência está
ligada ao retorno daquele que lhe serve de interlocutor e revela que este experimenta variações de
aspecto e de comportamento. As mudanças, sucessivamente enumeradas na primeira parte do poema,
explicam por que esse “tu” a quem o eu lírico se dirige é apresentado, nos versos iniciais, como um
“fugitivo perseguido por inomeadas formas”. Ele se assemelha a Teseu ao percorrer os labirintos, onde
“tateia”, “duvida” e “espanta-se”, buscando a si próprio e sendo guiado apenas por um “fio” – a sua
“saudade da vida”. Em seguida, na trilha da Ariane, ele regressa, como a si mesmo, ao mar; “emerge
entorpecido”; naufraga; depois dorme “como criança na praia”. No momento posterior, volta lentamente a
seu corpo, “como jovem toiro espantado de se reconhecer”, transfigurando-se, então, no próprio ser a
quem parecia disposto a dar combate.
Na segunda parte do poema, o eu lírico confessa aguardar com enorme expectativa o momento em
que, concluída tal cadeia de transformações, seu interlocutor deverá retornar: “O meu amor da vida está
paralisado pelo teu sono E como ave no ar veloz detida Tudo em mim se cala para escutar o chão do teu
regresso”. Na terceira parte, verifica-se que esse ser múltiplo, tão ansiosamente esperado já se faz
anunciar – “Pois no ar estremece tua alegria” –, trazendo consigo sua “jovem rijeza”, seu “ímpeto”, sua
“fuga e desafio”, sua “inteligência” e “argúcia”, e também seu “riso”.
A leitura da primeira parte do poema leva a pensar que é a um poeta e, portanto, a si próprio que o
eu-lírico está falando, pois a trajetória descrita do primeiro ao último verso pode ser vista como uma
alusão ao processo de criação. A etapa inicial é o esquecimento da palavra, a divagação, e a fase final da
jornada consiste na recuperação da “mão”, do “gesto” e do “amor das coisas sílaba por sílaba”.
Desejando a volta do poeta que mora dentro de si e às vezes se perde, de maneira provisória, nos
desvios do labirinto, o eu lírico define-se como um ser multiforme. Além disso, ao sintetizar, no
encerramento do texto, os atributos que possui, abre e fecha a lista com o estado ou manifestação – a
“alegria”, o “riso” – que, em outros momentos, reconhece em Dyonisos e que oferece, em mais de uma
ocasião, a Fernando Pessoa, nos poemas a este dedicados.
À medida que se identificam alguns dos principais papéis assumidos pelo sujeito poético ao longo da
obra de Sophia Andresen, vêm à tona aspectos relevantes a serem considerados no diálogo que a autora
trava com Pessoa. Após a análise desenvolvida, é possível afirmar que, para o eu lírico, tecer, destecer e
esperar são formas de unir, de preservar e, fundamentalmente, um modo de reagir a toda espécie de
dispersão. Em geral, as divisões são impostas por elementos exteriores ao indivíduo, o tempo por
exemplo. Porém, a ação desenfreada da consciência é outra ameaça que precisa ser afastada, pois geraria
um novo tipo de fragmentação. Tudo isso demonstra que a ação silenciosa e sutil de Penélope pressupõe
o pleno conhecimento dos “desastres” que rondam o ser humano.
Verifica-se, todavia, que a disposição para a busca e o combate, bem como a
consciência do risco, tornam-se mais evidentes quando a aventura do sujeito poético
funde-se com a experiência de Ulisses, do Minotauro e de Teseu. Do primeiro, ele
aprende a vontade de navegar; a coragem de perder-se no mar e das águas renascer; o
desejo de retornar e a comunhão com a terra. Do Minotauro, incorpora o instinto, a
“fúria” – “A fúria reina intacta / E penetra comigo no interior do mar”25 – e a
duplicidade, pois esse ser mitológico está situado entre o humano e o animal. De Teseu,
assimila a determinação, a ousadia de olhar o perigo de frente, a força, a capacidade de
saber o momento certo de recuar e a hora precisa de atacar o adversário – eis a “dança
que se dança na frente de um toiro” –, para, desse modo, sobreviver à ruína e sair
vitorioso de dentro do labirinto.
Ao aproximar-se de tais figuras, o eu lírico feminino afirma sua prontidão para a
luta, mas as personagens de Ariane e Dyonisos surgem para mostrar, outra vez, que fazer
frente não é apenas “arremeter”. O sujeito poético herda de Ariane alguns traços que já
encontrara em Penélope: a perspicácia; a tarefa de guiar e orientar, guardando um centro
de referência para si e para os outros; a espera e, finalmente, a vocação para o
renascimento e a boda. A alegria e a ligação com a natureza, ele absorve de Dyonisos.
Esse breve levantamento indica que as qualidades de que o eu-lírico é impregnado, ao confundir-se
com as diferentes personagens mitológicas, são as mesmas que ele outorga a si próprio no final do texto
intitulado “Enquanto longe divagas”26, no instante em que recupera sua condição de poeta. Chamam
atenção a diversidade e o expressivo número de predicados que compõem o inventário. Além disso, cabe
destacar que as sucessivas transformações experimentadas pelo eu-lírico ao longo da obra de Sophia
Andresen, e em alguns casos dentro de um único texto, revelam um fenômeno que não é episódico na
poesia da autora.
Convém, ainda, salientar que unir-se a Dyonisos e refazer o caminho daqueles que
celebraram uma aliança com o divino é o modo que o sujeito poético achou de virar-se
para o exterior e de confundir-se com as coisas, que, por vezes, recebem a visita súbita e
fugaz dos deuses. Veja-se, no poema “O rei de Ítaca” o elemento que chama a atenção da
escritora nas atitudes de Ulisses e que garantem a ele a ligação com o mundo, com a
terra:

A civilização em que estamos é tão errada que


Nela o pensamento se desligou da mão
Ulisses rei de Ítaca carpinteirou seu barco
E gabava-se também de saber conduzir
Num campo a direito o sulco do arado.27

Esse mesmo saber, a autora encontra numa atividade semelhante, mencionada no poema “Esteira e
cesto”:

No entrançar de cestos ou de esteira


Há um saber que vive e não desterra
Como se o tecedor a si próprio se tecesse
E não entrançasse unicamente esteira e cesto
Mas seu humano casamento com a terra.28

O eu lírico, que diz acrescentar-se de tudo quanto vê29, alcança a unidade por meio da diversidade.
Converte-se, assim, num ser multiforme e, por isso mesmo, mais preparado para entrar no labirinto e
debelar o Minotauro, algo necessário, uma vez que o “paraíso terrestre” percebido pela escritora não
existe sob a forma de eternidade, e a iniciativa de conquistá-lo ou fabricá-lo compete a cada um. A
procura do reino é, portanto, uma constante e as ameaças estão sempre presentes desde que “se apagaram
/ Os antigos deuses sol no interior das coisas”.30
Se Odysseus-Persona perde-se nos labirintos da escrita, a Penélope que fala na obra da escritora
entrega-se, em várias circunstâncias, ao mar e, às vezes, a suas próprias divagações. Destaca-se, ainda, o
fato de Sophia Andresen oferecer a Pessoa não apenas a acolhida e a possibilidade de integração. Ela, a
exemplo do que ocorre com o criador de heterônimos, não está a salvo das divisões e, por isso, em
certos momentos, quando se aproxima de Pessoa, comunga do sofrimento e da sensação de desamparo
que o afrontam.
Fernando Martinho comenta o diálogo que Sophia Andresen estabelece com Pessoa e afirma que “um
poeta quando cita os outros é a si próprio, às suas obsessões, ao sentido da sua busca, que muitas vezes,
afinal, cita”. Na leitura de “Cíclades”, o crítico verifica que a mesma autora que, “no princípio
conhecera a harmonia, o esplendor, e neles se reconhecera e extasiara como os deuses da sua Grécia
ideal na sua própria ‘imagem’ se extasiavam, vem a experimentar a cisão, a ter o conhecimento da dor e
da desarmonia”. Ela, tal como Pessoa, “constata o ‘crepúsculo’, o apagamento dos ‘deuses.’”31
Percebe-se, entretanto, que, se as obsessões dos dois poetas guardam algumas semelhanças, o modo
de reagir encontrado por Sophia Andresen é diferente daquele que foi adotado pelo criador de
heterônimos. Por isso, ela afirma que teve “uma guerra com o Pessoa”, como se verá logo a seguir,
contrariando – ou, quem sabe, complementando – o pensamento de Eduardo Lourenço, que vê nessa
aproximação apenas a “disponibilidade maternal” da escritora. A autora, tendo a exata consciência de
que habita um mundo dividido, nunca deixa de caminhar para a “única unidade.”32 A despersonalização
é, nos seus textos, o modo de atingir a harmonia num mundo sem deuses. Contudo, se tal procedimento é o
mesmo praticado por Pessoa, a natureza do fenômeno e suas conseqüências são distintas nas obras dos
dois escritores. Miguel Serras Pereira explica que, “enquanto Pessoa multiplica os eus e as máscaras, na
voz de Sophia, [...] o eu supera a repetição e os mapas do já sido e despersonaliza-se, para se reunir, ‘no
um da boda’, à vaga incessante onde o real é excesso de si próprio”. Na autora, “a voz se expande e
impessoaliza em autocriação do mundo”, reencarnando sempre, na medida em que se estabelece uma
“dimensão conjuntiva de sujeito e objeto, do devir e permanecer do universo”. Em Pessoa, “os excessos
e a indeterminação da subjectividade levam [...] à invenção repetida de outros eus”.33
Como define Sophia Andresen, numa entrevista em que nega a suposta influência do poeta sobre o
seu trabalho, em Fernando Pessoa “o jogo da despersonalização” é “diferente”; é “uma viagem sem
volta”. A autora declara que, quando começou a ler os textos de Pessoa, “já tinha formado ou elaborado
uma maneira de escrever”, e conclui: “O Pessoa deslumbrou-me mas não foi uma influência. Tive uma
guerra com o Pessoa, digamos assim. Por isso é que escrevi vários poemas sobre ele. Para mim a arte é
um espelho em que o artista vê o mundo mas não se vê a si próprio.34
A declaração de Sophia Andresen sobre a sua arte é corroborada pelo poeta e crítico
português Fernando Pinto do Amaral, que assim se manifesta sobre a poesia da autora:
Paralelamente a todas as estéticas da recusa e da contestação que terão marcado no
nosso século a chamada Modernidade – arrastando consigo uma profunda consciência da
arte como ruptura e anunciando mesmo a sua morte – persistiu uma outra atitude que
talvez pudéssemos designar por um retorno ao essencial. No caso de alguma poesia, essa
exigência prescinde dos labirintos mais ou menos dilacerados de uma certa tradição
subjectivista ou interiorizante, conduzindo, em vez disso, a uma percepção assombrada e
ao mesmo tempo lúcida de um mundo reconciliado com a sua verdade primeira.35
Se Sophia Andresen, como escritora, busca na poesia o “retorno ao essencial”, é, talvez, porque esse
retorno lhe foi propiciado ainda na infância, num momento em que podia assumir apenas a condição de
ouvinte e recitadora de poemas. Em “Arte Poética V”, a autora inscreve uma das experiências mais
remotas de que se lembra no que diz respeito a seu contato com a literatura. O texto fala da menina que
descobriu o poema antes de ter aprendido a ler e que, dessa forma, começou a preparar-se para ser uma
leitora permanentemente ligada na palavra oral e uma escritora sempre em busca da imanência:
Na minha infância, antes de saber ler, ouvi recitar e aprendi de cor um antigo poema
tradicional português, chamado “Nau Catarineta”. Tive assim a sorte de começar pela
tradição oral, a sorte de conhecer o poema antes de conhecer a literatura.
Eu era de facto tão nova que nem sabia que os poemas eram escritos por pessoas,
mas julgava que eram consubstanciais ao universo, que eram a respiração das coisas, o
nome deste mundo dito por ele próprio.
Pensava também que, se conseguisse ficar completamente imóvel e muda em certos
lugares mágicos do jardim, eu conseguiria ouvir um desses poemas que o próprio ar
continha em si.36
Anos depois, experiências como essa iriam tornar-se o fundamento do seu processo de criação
literária. A autora conta que, durante toda a vida, tentou escrever esse “poema imanente”, e que aqueles
momentos em silêncio, no jardim, ensinaram-lhe que não há poesia em silêncio, sem que se tenha criado
o vazio e a despersonalização. Em outro texto que também leva o nome de “Arte poética” refere-se a sua
dicção da seguinte forma:

A dicção não implica estar alegre ou triste


Mas dar minha voz à imanência das coisas
E fazer do mundo exterior substância da minha mente

Como quem devora o coração do leão.37

Além disso, a leitora que recitava os poemas alheios, dá origem à autora para quem a poesia é um
“encontro com as vozes e as imagens”, uma vez que esses elementos lhe facultam a “participação no
real”. Para ela, o poema fala de “uma vida concreta” – e não de “uma vida ideal” –, propiciando a
convivência com os mais diversos sinais, não raro captados por meio da contemplação ou da escuta:
“ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos
rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume da tília e do orégão.”38
Sophia Andresen comenta que tais convicções se evidenciam e fortalecem na medida em que lê e/ou
aprecia obras de outros artistas. No contato com esses parceiros, ela identifica e define com precisão
suas próprias escolhas e o seu modo peculiar de perceber as coisas. No texto sem título que abre o
primeiro volume de sua Obra poética, a escritora relata:
A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro do qual
está, poisada em cima duma mesa, uma maçã enorme e vermelha. Do brilho do mar e do
vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira. Não era nada de
fantástico, não era nada de imaginário: era a própria presença do real que eu descobria.
Mais tarde a obra de outros artistas veio confirmar a objectividade do meu próprio olhar.
Em Homero reconheci essa felicidade nua e inteira, esse esplendor da presença das
coisas. E também a reconheci, intensa, atenta e acesa na pintura de Amadeu de Sousa
Cardoso.39
Atenta ao papel relevante desempenhado pela imagem e pelo som na arte de outros indivíduos,
Sophia Andresen também reconhece a importância que a visão, de um lado, e a audição e o canto, de
outro, adquirem em suas próprias composições. Tais elementos já se fazem presentes na primeira etapa
do processo criativo da autora – o momento que precede e anuncia a escrita dos textos. Em “Arte Poética
IV”, Sophia Andresen revela que, em determinadas ocasiões, “surge não um poema mas um desejo de
escrever, um ‘estado de escrita’. Há uma aguda sensação de plasticidade e um vazio, como num palco
antes de entrar a bailarina”. Além disso, estabelece-se, nessas situações, “uma espécie de jogo com o
desconhecido, o ‘in-dito’, a possibilidade”. Então, o “branco do papel torna-se hipnótico”, provocando
na escritora uma reação semelhante à que ela esboça quando atraída pelas imagens que alguns artistas
produzem. Ainda em “Arte Poética IV”, Sophia Andresen revela que escrever, para si, consiste em ouvir
o poema, em deixar que este “se diga por si, sem intervenção minha (ou sem intervenção que eu veja),
como quem segue um ditado.”40
O texto intitulado “Regressarei” sugere que o poema se parece com o palco de um teatro, invadido
pelo som e a luminosidade. A esse lugar o eu lírico retorna para “buscar obstinada a substância de tudo /
E gritar de paixão sob mil luzes acesas.”41 Em outro texto42, chama de “canto” a poesia que pede à
Musa. O nome de tal entidade é empregado pelos antigos para responder “como, onde e por quem“ é feito
o poema, conforme esclarece a autora em “Arte Poética IV”. Sophia Andresen adverte que essa não é a
única forma de referir-se ao fenômeno e lembra que alguns falam de “subconsciente”. Ela imita os
antigos, mas confessa que é complicado nomear o que “não distingue bem”. “É-me difícil, talvez
impossível, distinguir se o poema é feito por mim, em zonas nebulosas de mim, ou se é feito em mim por
aquilo que em mim se inscreve”, diz a escritora.43
Talvez a despersonalização – assim como o apego às imagens e aos sons – seja não apenas uma fonte
para o tipo de escrita que a autora pratica, mas também um ponto de partida ou estímulo para uma
determinada espécie de recepção. Quem sabe a “palavra alada impessoal”, que foi dita pela poeta e que
ela reconhece “por não ser já sua”44, possa transformar-se numa nova convocação ao leitor, já atraído
pelo canto e as aparições que pulsam na obra de Sophia Andresen. É provável que, diante da
despersonalização que marca os poemas da escritora, o destinatário se veja instigado a instalar-se,
dentro do âmbito textual, no intervalo aberto por ela, onde poderá encontrar não um sujeito que se
confessa, mas um espaço de atenção, aquele “esplendor da presença das coisas” que a autora percebeu
no mundo exterior e na obra de outros artistas.

Referências
AMARAL, Fernando Pinto do. Sophia: a luz sem mancha do primeiro dia. Jornal de Letras, Artes e
Idéias, Lisboa, p. 11, 1º ago. 1989.
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Obra poética I. Lisboa: Caminho, 1990.
_____. Obra poética II. Lisboa: Caminho, 1991a.
_____. Obra poética III. Lisboa: Caminho, 1991b.
_____. O búzio de Cós e outros poemas. 3. ed. Lisboa: Caminho, 1999.
LOPES, Silvina Rodrigues. Apresentação crítica. Em: ___. (Org.). Poesia de Sophia de Mello Breyner
Andresen. Lisboa: Comunicação, 1990. p. 11-48.
LOURENÇO, Eduardo. Prefácio. Em: ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Antologia. Lisboa:
Moraes Editores, 1975. p. I-VII.
MARTINHO, Fernando, J. B. Sophia lê Pessoa. Persona, Porto, n. 7, p. 26-29, 1982.
PEREIRA, Miguel Serras. O testemunho poético de Sophia. Jornal de Letras, Artes e Idéias, Lisboa, p.
6, 10/16 mar.1992.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Aquém do eu, além do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
VASCONCELOS, José Carlos de. Sophia: a luz dos versos. Jornal de Letras, Artes e Idéias, Lisboa, p.
8-11, 25 jun. 1991.

Nota
1 LOPES, 1990, p. 15-16.
2 Ibid, p. 15-16.
3 De acordo com Eduardo Lourenço, somente nas últimas obras de Sophia Andresen, “a presença de
Pessoa surge com uma insistência enigmática”, e é em Livro Sexto, datado de 1962, que se esboça “o
primeiro retrato-diálogo com Pessoa” (LOURENÇO, 1975, p. IV-V). Para Fernando Martinho, porém, “a
presença do criador de heterônimos em Sophia” é anterior à “inclusão do ‘retrato’ de Pessoa no livro de
1962”, embora até esse momento ocorra apenas “de forma difusa, e mais ao nível da ‘dicção’ e do tom”
(MARTINHO, 1982, p. 26).
4 LOURENÇO, 1975, p. VI.
5 MARTINHO, 1982, p. 26.
6 LOURENÇO, 1975, p. II.
7 LOURENÇO, 1975, p. IV-V.
8 Ibid, p. VI-VII.
9 Para a análise realizada a seguir, foram utilizados, além de O búzio de Cós e outros poemas, coletânea
lançada em 1997, os três tomos que integram a Obra poética da escritora – o primeiro editado em 1990 e
os outros dois, em 1991 –, onde estão reunidos os livros que publicou de 1944 até 1989: Poesia (1944),
Dia do mar (1947), Coral (1950), No tempo dividido (1954), Mar novo (1958), Livro sexto (1962),
Geografia (1967), Dual (1972), O nome das coisas (1977), Navegações (1983) e Ilhas (1989).
10 ANDRESEN, 1991b, p. 175-178.
11 ANDRESEN, 1991a, p. 129.
12 MARTINHO, 1982, p. 27.
13 PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 11.
14 PESSOA, 1995, p. 318.
15 Ibid, pp. 273-295.
16 ANDRESEN, 1990, p. 226.
17 Ibid, p. 175.
18 ANDRESEN, 1991b, p. 38.
19 Ibid, p. 147.
20 Ibid, p. 73.
21 Ibid, p. 153.
22 ANDRESEN,1991a, p. 123.
23 ANDRESEN,1991b, pp. 147-149.
24 Ibid, pp. 202-203.
25 Ibid, p. 147.
26 Ibid, pp. 202-203.
27 Ibid, p. 209.
28 Ibid, p. 208.
29 Ibid, p. 89.
30 Ibid, pp. 70-71.
31 MARTINHO, 1982, p. 27.
32 ANDRESEN, 1990, p. 46.
33 PEREIRA, 1992, p. 6.
34 VASCONCELOS, 1991, p. 11.
35 AMARAL, 1989: 11.
36 ANDRESEN, 1991b, p. 349.
37 ANDRESEN, 1999, p. 8.
38 ANDRESEN, 1991b, p. 95.
39 ANDRESEN, 1990, p. 7.
40 ANDRESEN, 1991b, pp. 167-168.
41 Ibid, p. 228.
42 Ibid, pp. 102-103.
43 Ibid, pp. 166-169.
44 Ibid, p. 350.
ANDRÉE CHEDID E A METAPOESIA:
REFLEXÕES SOBRE A CRIAÇÃO POÉTICA
Daniela Lindenmeyer KUNZE

Introdução
Este trabalho tem como objetivo revelar e analisar a poética da autora francófona Andrée Chedid
através de alguns de seus poemas1 dedicados à análise da poesia e da criação poética – aqui entendidos
como metapoemas. A obra poética desta escritora destaca-se no contexto literário francófono
contemporâneo por algumas características temáticas e formais, entre elas, justamente, a preocupação
com o fazer poético, evidenciada por seus muitos metapoemas. A poesia, teorizada, questionada,
analisada, se faz presente em todos os seus livros.
Para chegar ao cabo deste objetivo, este estudo partirá de alguns metapoemas de Andrée Chedid para
ir ao encontro de textos teóricos sobre poesia e criação poética escritos igualmente por poetas. Estes
poetas são Paul Valéry e Pierre Reverdy, cujas reflexões teóricas, parecem, muitas vezes, aproximar-se
dos conceitos e das definições expostos nos poemas de Chedid.
Alguns poetas aventuram-se a descrever a poesia em textos teóricos; outros fazem destas reflexões
poemas. Valéry em Poésie et pensée abstraite2 e Reverdy em Cette émotion appelée poésie,
Circonstances de la poésie e La fonction poétique3 expõem suas definições de poesia e suas
concepções do fazer poético e do poeta, enquanto Andrée Chedid, por sua vez, transforma estas reflexões
em material poético para uma das principais vertentes de sua poesia.
Andrée Chedid é uma escritora francófona nascida no Egito em 1920 e morta em 2011 em Paris.
Desde cedo, escolheu o francês como língua de expressão artística e de criação literária. Aos 26 anos,
instalou-se em Paris e, nessa cidade, escreveu quase toda a sua obra poética.
Neste artigo, pretendo, primeiramente, apresentar uma visão geral da obra poética desta autora
para, num segundo momento, consagrar-me à sua poética, revelada pelas reflexões sobre sua obra – e
a poesia de uma maneira geral – presentes em seus metapoemas.

A obra poética de Andrée Chedid


A autora começa a escrever na juventude e, aos 18 anos, publica seus primeiros poemas ainda no
Egito. Desde cedo, adota a língua francesa como língua de criação literária e, em Paris, começa a
explorar outros gêneros, escrevendo inúmeros romances, novelas e peças de teatro. Seu primeiro livro de
poemas em francês foi publicado em 1948, em Paris. Ela conta com 21 livros de poemas publicados até
agora, sendo o último em 2010, a menos de um ano de sua morte. Atualmente, ela ocupa um lugar
privilegiado entre os autores francófonos contemporâneos pela riqueza e pela diversidade da sua obra.
Suas numerosas publicações, tanto em verso quanto em prosa, valeram-lhe importantes prêmios literários
como o Prix de l’Académie Mallarmé (1976), o Grand Prix de la Poésie de la Société des Gens de
Lettres (1990), o Prix Paul Morand de l’Académie Française (1994), o Prix Goncourt de la poésie
(2002) pelo conjunto de sua obra poética, entre outros.
No estudo de sua produção poética, evidencia-se, de imediato, a presença de duas temáticas
dominantes: a metapoesia e a interculturalidade. Andrée Chedid representa uma mescla de culturas
formadoras da própria francofonia: filha de pais libaneses, nascida no Egito e educada em escolas
francesas, ela escolhe o francês como língua de expressão artística.
A cultura francesa domina sua formação intelectual, assim como a de muitos egípcios de sua geração.
Desde os primeiros anos escolares, ela frequenta internatos franceses, e sua formação acadêmica oscila
entre a francesa e a inglesa. Sua família encarna uma classe social egípcia privilegiada voltada
principalmente para a França. Sua formação afetiva também é fortemente influenciada pela cultura e pela
língua francesas, representadas por uma mãe extremamente apaixonada pela França, que vive no Egito
como se estivesse em Paris. Andrée Chedid comenta, em uma entrevista publicada no livro Entre Nil et
Seine4, a importância que essa paixão materna exerceu em sua formação e em suas escolhas futuras e o
quanto ela tornou quase natural essa escolha pela língua francesa e por Paris como cidade de exílio.
Esta multiculturalidade se reflete em sua criação através de nuances culturais diversas que se
combinam e se entrelaçam de maneira harmônica e igualitária para formar algo novo, produto desta
gênese intercultural. Assim, Nilo e Sena se cruzam e se encontram em muitos de seus romances e poemas,
seja na escolha de personagens e cenários, seja no ritmo e nas tonalidades que ganham seus poemas. Suas
raízes libanesas e as lembranças de uma infância egípcia se traduzem numa poética de fórmulas simples,
mas genialmente combinadas, luminosa e extremamente musical. O calor e as cores do Egito, assim como
a miséria e a Guerra do Líbano se misturam com a liberdade e magia da vida parisiense. A própria autora
evidencia o caráter intercultural de sua poética num poema escrito para seu neto, o músico Matthieu
Chedid:
Du Sphinx dans mon rimeur
Paris au fil du cœur
Du Nil dans mes veines
Dans mes artères coule la Seine.5

Nesta mesma entrevista, a autora aborda também a outra temática dominante na sua criação poética: a
metapoesia, determinada pela importância atribuída à definição da poesia e do fazer poético. Ela dedica
uma boa parte desta entrevista para a exposição de suas noções de poesia e para a explicação de seu
processo criativo tanto em verso quanto em prosa, demonstrando, assim, a importância destas
reflexões metapoéticas, que ganham um lugar privilegiado em sua obra. Muitos de seus livros possuem
títulos reveladores desta vontade de definir e problematizar a criação poética como Textes pour un
poème6 e Poèmes pour un texte7, que a própria autora explica serem o reflexo de sua busca criativa:
J’ai intitulé deux de mes livres Textes pour un poème et Poèmes pour un texte, les deux titres sont des
miroirs. Le premier veut dire qu’on écrit des textes pour essayer d’atteindre le poème. Le deuxième, c’est
un peu pareil, on écrit des poèmes, encore et encore, pour essayer d’atteindre un texte qui vous échappera
toujours. C’est un peu cela ma course.8
Outros títulos como Par-delà les mots9 e Rythmes10 evocam igualmente essa tendência e reafirmam
esta inclinação à produção metapoética em seus livros.

A metapoesia de Andrée Chedid


Poetas como Paul Valéry, Pierre Reverdy, Yves Bonnefoy, Octavio Paz ou ainda Arthur Rimbaud
possuem alguns textos em prosa problematizando questões teóricas sobre a poesia e a criação poética.
Alguns analisam a poesia de maneira geral; outros, sua própria criação ou seu projeto poético, como
Rimbaud em suas Lettres du Voyant11, cartas em que ele explicita seu processo criativo e seu programa
poético. Alguns destes textos são utilizados como instrumentos para o estudo da teoria da literatura
juntamente com textos de estudiosos que produzem somente teoria e não são poetas.
Este trabalho pretende, propositalmente, deixar de lado os teóricos e salientar a produção
metaliterária dos poetas. Para chegar ao extremo desta busca, pretende traçar o fazer poético através não
somente de artigos teóricos escritos por poetas, mas também de poemas que fazem as vezes de textos
teóricos, isto é, de poemas que definem e ilustram a teoria da criação poética.
Muitos poetas, em todo o mundo, se inscrevem nessa tradição de uma escritura em que poesia e
metapoesia se confundem. Pode-se pensar em exemplos próximos, em língua portuguesa, como Cecília
Meireles, Ferreira Gullar ou Fernando Pessoa. Porém, neste artigo, o propósito é partir mais longe
geograficamente, mas mais perto no tempo. Para tanto, ficaremos com a poeta francófona contemporânea
que mais utiliza este recurso em sua obra. Serão apresentados e analisados poemas de Andrée Chedid
nos quais sua poética é explicitada, em que ela se faz, mais do que poeta, crítica da criação poética,
como salienta Jacques Izoard em seu livro dedicado à autora.
Il est significatif de constater qu’Andrée Chedid fait, en quelque sorte, œuvre de
critique à l’intérieur de ses propres textes, ou, plus exactement, écrit le poème; sa
surprise, en face des mots, la fascine. Et cela donnera naissance, par la suite, plus
nettement, dans Visage Premier, à Terre et Poésie, une succession de réflexions sur la
poésie.12
Pode-se constatar que a metapoesia de Chedid aborda as mesmas noções estudadas pela teoria da
criação poética. Em alguns metapoemas, ela apresenta sua definição de poesia e o que a compõe e, em
outros, ela analisa o ato de criação, as palavras e suas combinações e a condição do homem que se faz
poeta. Estas mesmas reflexões encontram-se nos ensaios de Valéry e de Reverdy.
Estes dois últimos escritores problematizam a definição da poesia e do fazer poético de maneira
muitas vezes similar, e suas idéias se cruzam e se encontram, em muitos momentos, com as de Andrée
Chedid. Valéry fala de “état poétique”, e Reverdy, de “choc poétique”, para explicar o ato de criação
poética. Andrée Chedid, por sua vez, utiliza o que ela chama de “choc des mots” para nomear um dos
pilares de sua poética. No livro Entre Nil et Seine, ela afirma a importância desse procedimento que
aparece em muitos de seus poemas. “Mais il y a aussi ‘le choc des mots’. Ceux qui ne sont pas faits pour
être ensemble et qui, tout d’un coup, parce qu’ils sont côte à côte, créent une luminosité, un éclat!”13
A afirmação de Chedid aproxima-se, de maneira significativa, do que Reverdy chama de “la façon
particulière de dire une chose très simple”14, própria do poema. Sua maneira particular de se expressar
em poesia é, justamente, através da criação destes choques entre as palavras.
Para ela, a força maior de sua poesia reside nesse “choc des mots”, produzido pela combinação
inusitada de palavras e de imagens e principal criador de metáforas. Ela aplica este exercício poético
nos poemas Poésie II, do livro Visage Premier, citado por Izoard, e Poésie, do livro Par-delà les mots.
Ela utiliza este procedimento para definir a poesia com uma sucessão de imagens contraditórias e
inesperadas.

Poésie II
Ce qui est plus que le mot
mais que le mot délivre
Ce qui est périssable
mais qui renaît devant
Ce qui sombre à foison
mais sans cesse se bâtit
Ce qui nous passe toujours
mais dont nous sommes semence
Ce qui a nom de vie
mais que les jours écartent
Ce qui est évidence
mais qui reste en suspens. (Andrée Chedid, 1991, p.56)15

Poésie

Par-delà les mots


Elle sécrète la parole
En deçà du verbe
Elle questionne l’univers
Au-delà des murailles
Elle nomme la liberté
En deçà de chaque flot
Elle révèle l’océan
Désertant les conquêtes
Elle promet l’équipée
Elle remue le souffle
Sacre l’humble outil
Elle assemble les fragments
Du visage dispersé
Et désigne le mystère
Qui demeure entier.16

Tanto Reverdy quanto Valéry salientam essa particular combinação e associação de palavras, de sons
e de imagens que diferenciam a poesia de todas as outras linguagens.
Il faut donc se décider à dire que la poésie n’est intelligible à l’esprit et sensible au
cœur que sous la forme d’une certaine combinaison de mots, en quoi elle se concrète, se
précise, se fixe et assume une réalité particulière qui la rend incomparable à toute autre.17
Não parece ser por acaso que este “choc des mots” apareça frequentemente em seus metapoemas que
tentam definir a poesia. Eles expressam, no fundo, a própria impressão de impossibilidade de definição
que a poesia suscita. Esta impressão aparece também, no texto de Valéry quando ele afirma: “entre Voix
et Pensée, entre la Pensée et la Voix, entre la Présence et l’Absence, oscille le pendule poétique.”18 E o
“pendule poétique” de Andrée Chedid oscila também entre o presente e o ausente, entre o capturável e o
invisível, entre o individual e o coletivo, quando ela escreve o poema em prosa Visage Premier, do livro
Poèmes pour un texte: Poésie, mouvement sans finale qui nous hante, comme un rythme, depuis le début
de temps. Chemin recommencé, avec ses passerelles où se joignent rêve et quotidien, saisissable-
invisible, l’instant et l’ailleurs. Poésie qui construit le regard; fait surgir, par bribes, du monde exigu,
anecdotique, de nos existences, ce fond des fonds de nous : VISAGE PREMIER.

‘Le JE de la poésie est à tous.’


La t erre est. Nous la touchons.
La poésie – évidence, mais qui reste en suspens – n’attend que nous, pour devenir.19

Neste poema, a autora compara a terra que se toca com a poesia suspensa que só existe através do
leitor. Reverdy afirma igualmente que é próprio do poema deixar espaço para que o leitor crie suas
próprias imagens. Para Valéry, assim como para Chedid, o poeta tem a função de criar no leitor o “état
poétique”, de fazer sentir o que o poeta sente: “le JE de la poésie est à tous”.
Chedid transforma, assim, a fórmula inaugurada pelos românticos e colocada em evidência por
Rimbaud – “Je est un autre” – para mostrar que o poeta não somente é outro, mas também todos e o
universo inteiro. Sua tarefa é revelar o que está presente em todos através de seus sentimentos e do seu
olhar. A poesia tem, para ela, esta grande força de identificação e revelação do outro através de si.

J’ai tenté de joindre ma terre, à la terre;


Les mots à la trame du silence;
Le large, au chant voilé.
Tenté de dire la rencontre possible,
Dégager le lieu de la nasse des refuges;
Fléchir la parole, jusqu’à la partager.20

Neste trecho do poema Démarche I, Chedid define uma poesia que deve fundir sua realidade interior
à realidade coletiva e ao próprio universo: “J’ai tenté de joindre ma terre, à la terre”. A poesia é
concebida, desta maneira, como o espaço de encontro e de troca entre o eu do poeta e o eu de todos,
como salienta Judy Cochran no artigo Andrée Chedid, poète de présence et d’avenir: “le lieu-poème
étant pour cet auteur le lieu sacré où l’âme du poète se joint à l’âme de l’univers.”21 Para tanto, o poeta
de Chedid ganha um ar de profeta, de vidente, na medida em que seu olhar deve ser capaz de capturar o
mundo: “Il faut au poète une fenêtre sur l’inconnu, un espace que ne gouverne aucune structure rigide,
aucun dogme. Un regard qui embrasse de vastes et multiples horizons.”22
Outra tarefa do poeta, para Valéry, é suscitar no leitor “la sensation de l’union intime entre la parole
et l’esprit.”23 Seguindo esta mesma tendência, Chedid problematiza, em alguns de seus metapoemas, a
relação entre palavra e sentimento e questiona os limites da linguagem, como neste trecho do poema
Épreuves du langage:
Quel alphabet
Prend en compte
Nos clartés comme nos ombres.24

Duro é o trabalho do poeta, que deve buscar incessantemente a palavra exata que transmita sensações
e imagens, sons e ritmo. E esta é uma das preocupações de Chedid, que aparece tanto em seus
metapoemas quanto em sua entrevista do livro Entre Nil et Seine:
[...] j’ai besoin aussi que les mots chantent, j’essaie de trouver une musicalité. C’est
essentiel dans la poésie. Je suis également attentive à ne pas brouiller le sens. Il faut à la
fois dire quelque chose, composer une musique, des mots justes, inventer aussi de
nouveaux moyens d’expression.25

Em seus poemas, o ritmo e a musicalidade estão extremamente presentes. Nos metapoemas, esta
predileção pela música aparece, muitas vezes, com evocações ao ritmo da respiração, do fôlego. Assim,
a palavra “souffle” se repete em certos metapoemas, como em Poésie, de 1995, no qual ele é definido
como “l’humble outil” da poesia.

A Arte Poética de Andrée Chedid


Entre os inúmeros metapoemas presentes na obra da autora, dois poemas mais longos apresentam
uma brilhante síntese de todas as concepções de poesia e do projeto poético de Chedid citados neste
trabalho. Estes poemas são considerados, por alguns estudiosos da obra da poeta, uma verdadeira Arte
Poética – tal qual a de Aristóteles ou de Boileau –, contendo uma reflexão completa sobre a criação
poética. Um destes poemas e, a meu ver, o mais significativo, é Épreuves du langage, do livro Rythmes:
Épreuves du langage

D’où vient le son


qui nous ébranle
Où va le sens
Qui se dérobe
D’où vient le mot
Qui libère
Où va le chant
Qui nous entraîne
D’où surgit la parole
Qui comble le vide
Quel est le signe
Qui fauche le temps?

II

Quel alphabet
Prend en compte
Nos clartés comme nos ombres
Quel langage
Raboté par nos riens
Ameute le souffle
Quel désir
Devient cadences
Images métamorphoses
Quel cri
Se ramifie
Pour reverdir ailleurs
Quel poème
Fructifie
Pour se dire autrement?
III

Issu de notre chair


Tissé de siècles
Et d’océans
Quel verbe
Criblera nos murs
Sondera nos puits
Modèlera nos saisons?
Avec quels mots
Saisir les miettes
Du mystère
Qui nous enchâsse
Ou de l’énigme
Qui nous surprend?

IV

Que veut la Poésie


Qui dit
Sans vraiment dire
Qui dévoie la parole
Et multiplie l’horizon
Que cherche-t-elle
Devant les grilles
De l’indicible
Dont nous sommes
Fleur et racine
Mais jamais ne posséderons?

V
Ainsi chemine
Le langage
De terre en terre
De voix en voix
Ainsi nous devance
Le poème
Plus tenace que la soif
Plus affranchi que le vent!26

Neste metapoema, são retomadas e aplicadas todas as definições, todas as regras e todos os
questionamentos presentes nos demais metapoemas da autora. A poeta trabalha com o choque de
palavras, contrastando imagens e fazendo associações inesperadas. Voltam à tona os questionamentos
sobre a linguagem da poesia, capaz de dizer o indizível, sobre o ritmo e o movimento marcados pela
respiração e pelo vento. A necessidade de escrever é reafirmada, e esta poesia que transborda todos os
limites e multiplica os horizontes é evocada novamente. A palavra do poeta que liberta e seu “grito” que
revela no outro a sua força conferem ao poema esta maneira particular de sugerir e de se multiplicar no
leitor. O verbo poético que modela o mundo e revela o mistério, o enigma dos seres e das coisas do
universo, é novamente preconizado.
Enfim, o “canto”, a “carne”, a “palavra”, o “grito”, a “respiração”, a “cadência”, a “imagem”, a
“metamorfose”, o “mistério” e o “desejo”, entre outras imagens fortes e significativas, marcam e revelam
a Arte Poética de Andrée Chedid: a metapoesia em sua manifestação, mais clara, mas, ao mesmo tempo,
mais sugestiva, que consegue entrelaçar de maneira genial a teoria literária e o ato criativo.

Conclusão
Andrée Chedid fixa, com sua produção metapoética, um projeto de criação que ela consegue levar a
cabo perfeitamente. Ela define a poética de uma maneira geral, mas define também a sua poesia de forma
extremamente precisa. Ela estabelece regras e define parâmetros que regem toda a sua criação e revelam
o essencial da poesia.
Esta riqueza e esta exatidão metapoéticas justificam o estudo do conjunto de metapoemas da autora
no contexto literário desta produção, ao lado de outros poetas que igualmente o exploraram, mas também
no contexto da teoria da literatura, como ilustração destes conceitos revelados sob forma de verso.
Andrée Chedid insere-se, desta maneira, nesta linhagem de poetas que pensam e refletem sobre sua
própria obra e sobre o ato criativo em geral.
Este trabalho espera, desta forma, ter conseguido revelar sua importância, assim como a riqueza de
noções e de imagens que formam a sua Arte Poética e que a definem-se, de certa maneira, como a
ilustração desta poética contemporânea que rompe fronteiras geográficas em busca de noções universais.

Referências
AQUIEN, Michèle. Dictionnaire de poétique. Paris: LGF, 1997.
CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo:
Perspectiva, 2006.
CHEDID, Andrée. Poèmes pour un texte (1970-1991). Paris: Flammarion, 1991.
_____. Textes pour un poème (1949-1970). Paris: Flammarion, 1987.
_____. Par delà les mots. Paris: Flammarion, 1995.
_____. Territoires du souffle. Paris: Flammarion, 1999.
_____. Rythmes. Paris: Gallimard, 2003.
_____. Entre Nil et Seine. Entretiens avec Brigitte Kernel. Paris : Belfond, 2006.
_____. Au coeur du coeur. Paris: Librio, 2010.
CHEDID, Andrée; CHEDID Louis-Antoine. Le coeur demeure. Paris: Stock, 1999.
DECAUDIN, Michel; ROY, Claude. Anthologie de la poésie française du XXe siècle, T1. Paris:
Gallimard, 2000.
GIRAULT, Jacques; LECHERBONNIER, Bernard (org.). Andrée Chedid, Racines et liberté. Paris:
L’harmattan, 2004.
IZOARD, Jacques. Andrée Chedid. Paris: Seghers, 2004.
LEUWERS, Daniel. Les lettres du voyant Rimbaud. Paris: Ellipses, 1998.
PAZ, Octavio. El arco y la lira. Mexico D. F.: Fondo de cultura economica, 1986.
REVERDY, Pierre. Au soleil du plafond, La liberté des mers, Sable mouvant suivi de Cette émotion
appelée poésie et autres essais. Paris: Gallimard, 2003.
SEMPRUN, Jorge et PARA, Jean-Baptiste. Anthologie de la poésie française du XXe siècle, T2.
Paris: Gallimard, 2000.
VALÉRY, Paul. Variété III, IV et V. Paris: Gallimard, 2002.

Nota
1 Todos os poemas de Andrée Chedid utilizados neste trabalho possuem traduções minhas. Essas
traduções são literais, não levando em consideração o ritmo, mas somente o sentido, aqui mais
importante.
2 VALÉRY, Paul. Variété III, IV et V. Paris: Gallimard, 2002.
3 REVERDY, Pierre. Au soleil du plafond, La liberté des mers, Sable mouvant suivi de Cette émotion
appelée poésie et autres essais. Paris: Gallimard, 2003.
4 CHEDID, Andrée. Entre Nil et Seine. Entretiens avec Brigitte Kernel. Paris: Belfond, 2006.

5 CHEDID, Andrée. 2010, p.95 : “Esfinge no meu rimador/ Paris ao longo do coração/Nilo em minhas
veias/ Nas minhas artérias corre o Sena.”

6 CHEDID, Andrée. Textes pour un poème (1949-1970). Paris: Flammarion, 1987.

7 CHEDID, Andrée. Poèmes pour un texte (1970-1991). Paris: Flammarion, 1991.


8 CHEDID, Andrée. Entre Nil et Seine. Entretiens avec Brigitte Kernel. Paris : Belfond, 2006, p.76:
“Intitulei dois de meus livros Textos para um poema e Poemas para um texto, os dois títulos são
espelhos. O primeiro quer dizer que escreve-se textos para tentar chegar ao poema. O segundo, é um
pouco semelhante, escreve-se poemas, mais e mais, para tentar chegar a um texto que escapa-lhe sempre.
Esta é, de certa maneira, minha corrida.”
9 Cf. CHEDID, Andrée. Par delà les mots. Paris: Flammarion, 1995.
10 Cf. CHEDID, Andrée. Rythmes. Paris: Gallimard, 2003.
11 Cf. LEUWERS, Daniel. Les lettres du voyant Rimbaud. Paris: Ellipses, 1998.
12 IZOARD, Jacques. Andrée Chedid. Paris: Seghers, 2004, pp. 32-33: “E importante constatar que
Andrée Chedid faz, de certa maneira, um trabalho de critica, no interior de seus próprios textos, ou, mais
precisamente, escreve o poema; sua surpresa, diante das palavras, a fascina. E isso, dará nascimento,
posteriormente, de maneira mais clara, no Visage Premier, em Terre et Poésie, a uma sucessão de
reflexões sobre a poesia.”

13 CHEDID, Andrée. Op. cit. 2006, p.68. “Mas existe também ‘o choque das palavras’. As que não são
feitas para estar juntas e que, de repente, por estarem lado a lado, criam uma luminosidade, um brilho.”
14 REVERDY, Pierre. Au soleil du plafond, La liberté des mers, Sable mouvant suivi de Cette émotion
appelée poésie et autres essais. Paris: Gallimard, 2003, p. 98. “A maneira particular de dizer uma
coisa muito simples.”
15 CHEDID, Andrée. Poèmes pour un texte (1970-1991). Paris: Flammarion, 1991, p.56:
Poesia II
O que é mais que a palavra
Mas que a palavra liberta
O que é perecível
Mas que renasce adiante
O que desaparece em abundância Mas que constantemente se constrói O que sempre nos foge

Mas do qual somos semente


O que tem nome de vida
Mas que os dias afastam
O que é evidência
Mas continua em suspenso.

16 CHEDID, Andrée. Par delà les mots. Paris: Flammarion, 1995, p. 7:


Poesia
Além das palavras
Ela torna secreta a fala
Aquém do verbo
Ela questiona o universo
Além das muralhas
Ela nomeia a liberdade
Aquém de cada onda
Elarevela o oceano
Desertando as conquistas
Ela promete aventura
Ela remexe o sopro
Consagra o humilde instrumento Ela junta os fragmentos

Do rosto disperso
Ela designa o mistério
Que continua inteiro.

17 REVERDY, Pierre. Op. cit. 2003, p. 114: “Faz-se necessário dizer que a poesia somente é
inteligível ao espírito e sensível ao coração sob a forma de uma certa combinação de palavras, na
qual ela se concretiza, se torna precisa, se fixa e assume uma realidade particular que a torna
incomparável a qualquer outra.”
18 VALÉRY, Paul. Variété III, IV et V. Paris: Gallimard, 2002, p. 683 : “Entre Voz e Pensamento, entre
Pensamento e Voz, entre a Presença e a Ausência, oscila o pendulo poético.”
19 CHEDID, Andrée. Op. cit., 1991, p. 13:
“Rosto primeiro Com a paixão pelo concreto, através da prova da lucidez, reconhecer, renomear,
celebrar – sem renúncia – o Rosto. Porque ele é vida, ele é fonte. Porque ele é nós, na sua nudez, na raiz
do sensível; sem dúvida também na sua coerência e na sua significação.
Poesia, movimento sem final que nos assombra, como um ritmo, desde o começo dos tempos. Caminho
recomeçado, com suas passarelas onde se encontram sonho e cotidiano, palpável-invisível, o instante e o
longínquo. Poesia que constrói o olhar; faz surgir, por fragmentos, do mundo exíguo, anedótico, de nossas
existências, esse fundo do fundo de nós: ROSTO PRIMEIRO.
‘O EU da poesia é para todos.’
A terra é. Nos a tocamos.
A poesia – evidência, mas que fica em suspenso – somente espera-nos, para tornar-se.”

20 CHEDID, Andrée. Textes pour un poème (1949-1970).Paris: Flammarion, 1987, p.21.


“Tentei juntar minha terra, a terra;
As palavras à trama do silêncio;
O alto mar, ao canto velado.
Le large, au chant voilé.
Tentei >dizer o encontro possível, Libertar o lugar da rede dos refúgios; Curvar a palavra até dividi-la.”

21 COCHRAN, Judy (citado por GIRAULT, Jacques; LECHERBONNIER, Bernard (org.). Andrée
Chedid, Racines et liberté. Paris: L’harmattan, 2004, p. 110). “ O lugar-poema é, para essa autora, o lugar
sagrado onde a alma do poeta se encontra com a alma do universo.”
22 CHEDID, Andrée. Au coeur du coeur. Paris: Librio, 2010, p. 26: “É necessário ao poeta uma janela
sobre o desconhecido, um espaço que não governe nenhuma estrutura rígida, nenhum dogma. Um olhar
que abarque vastos e múltiplos horizontes.”

23 VALÉRY, Paul. Op. Cit., 2002, p.683. “A sensação de união intima entre a palavra e espírito.”
24 CHEDID, Andrée. Rythmes. Paris: Gallimard, 2003, p. 29. “ Que alfabeto Leva em conta Nossas
clarezas e também nossas sombras.”
25 CHEDID, Andrée. Entre Nil et Seine. Entretiens avec Brigitte Kernel. Paris : Belfond, 2006, p. 67:

Necessito também que as palavras cantem, tento achar uma musicalidade. É essencial na poesia. Sou
igualmente atenta à não confundir o sentido. E necessário, ao mesmo tempo dizer alguma coisa e compor
uma musica, as palavras justas, inventar também novos meios de expressão.”
26 CHEDID, Andrée. Rythmes. Paris: Gallimard, 2003, pp. 29-33:
Provas da linguagem

D’où vient le son


Qui nous ébranle
Où va le sens
Qui se dérobe
D’où vient le mot
Qui libère
Où va le chant
Qui nous entraîne
D’où surgit la parole
Qui comble le vide
Quel est le signe
Qui fauche le temps?

II

Que alfabeto
Leva em conta
Nossas clarezas e também nossas sombras Que linguagem

Polida por nossas ausências


Agita a respiração
Que desejo
Torna-se cadência
Imagens metamorfoses
Que grito
Ramifica-se
Para verdejar em outro lugar
Que poema
Frutifica
Para dizer-se de outra maneira?

III

Issu de notre chair


Tissé de siècles
Et d’océans
Quel verbe
Criblera nos murs
Sondera nos puits
Modèlera nos saisons?
Avec quels mots
Saisir les miettes
Du mystère
Qui nous enchâsse
Ou de l’énigme
Qui nous surprend?

IV

O que quer a Poesia


Que diz
Sem realmente dizer
Que perverte a palavra
E multiplica o horizonte
O que procura ela
Diante das grades
Do indizível
Do qual somos
Flor e raiz
Mas jamais possuiremos?

Assim caminha
A linguagem
De terra em terra
De voz em voz
Assim nos ultrapassa
O poema
Mais enaz que a sede
Mais livre que o vento!
TEMPO, MEMÓRIA E A POETICIDADE DE LA JETÉE CINÉ-
ROMAN DE CHRIS MARKER
Lídia Aparecida Rodrigues Silva MELLO
Escrever é uma questão de devir, sempre inacabado, sempre um fazer-se, que
extravasa toda a matéria vivível ou vivida.
Gilles Deleuze
Ao lançar-me na escritura desse ensaio, acompanha meu pensamento essa noção deleuziana da
escrita como algo inseparável do devir, que se dá no processo. Não busco atingir uma fórmula, mas
instaurar uma zona de vizinhança com o objeto de estudo, pois não há linha reta na linguagem.
Escolhi o romance La Jetée ciné-roman1 de Chris Marker2, para tecer uma reflexão sobre esse
livro, partindo da ideia de que as palavras escritas e as imagens fotográficas, em preto e branco, que
compõem tal romance, têm caráter poético. Desejo perceber como o escritor utiliza da poeticidade em
seu conteúdo e forma, buscando entender o poético por meio dos elementos que Marker faz uso e pelo
modo com o qual cria uma relação entre o texto e as imagens desse romance. Tomo como ponto de
partida o protagonista e suas viagens no tempo.
Lembro que esse livro ainda não foi publicado no Brasil, não encontrei nenhuma produção
acadêmica ou de outro tipo sobre ele, logo, ouso com meus conhecimentos e palavras estudar tal
romance, apoiada por teóricos da literatura e também com o pensar da filosofia, pois o romance tem um
tom filosófico e poético. A opção de escrever sobre La Jetée ciné-roman, se dá por ser um dos objetos
de estudos do meu projeto de dissertação de mestrado em curso no PPGLET-UFRGS.3
Na trama de La Jetée, a única maneira possível de sobreviver seria pelo tempo: o protagonista evoca
passado e futuro em socorro do presente em uma Paris devastada pela 3ª Guerra Mundial, em ruínas. Os
poucos humanos sobreviventes são colocados a experimentar viagens no tempo. O chefe das
experiências, com a intenção de enviar alguém de volta ao passado, no pré-guerra, busca reabastecer os
estoques decrescentes de alimentos, remédios e energias no tempo presente já destruído pela guerra. Ele
também está em busca de encontrar uma solução para o futuro da humanidade. Um Homem, personagem
protagonista, tomado como cobaia na experiência para viajar no tempo, por ser perturbado por uma forte
lembrança de infância, realiza viagens no tempo. Durante tais viagens, ele procura em sua memória tal
lembrança. No início da narrativa, o protagonista vive em seu passado, é uma criança, quando aparece no
aeroporto onde estava com os pais vendo aviões partir; esse viajante do tempo presenciara a morte de um
homem na plataforma do aeroporto de Paris – mais tarde veio a saber que era sua própria morte –, no
momento que olhava para uma Mulher – e a imagem dessa Mulher ficou na sua memória. Quando o
menino cresce, ele vai em busca da Mulher, e nas viagens no tempo a reencontra e então relembra esse
momento em que foi o de sua própria morte. Em outra vida? Enquanto adulto o homem vive ao mesmo
tempo no passado e no presente antes e depois da guerra, no momento de sua morte no aeroporto e nas
viagens no tempo passado e futuro.
A narrativa de La Jetée ciné-roman é de ficção científica, do passado, uma narrativa labiríntica ao
modo de Kafka, cujo enredo traz a história de um homem escolhido para fazer viagens no tempo, em
razão de guardar consigo uma forte imagem do passado: o rosto de uma Mulher. Atrás de tal enredo, o
escritor deixa entrever um possível romance do protagonista com a mulher da qual ele guardara em forma
de imagem. Os perceptos e afectos4 do protagonista, o atravessam de modo que independe se viveu ou
inventou o romance com a mulher. Eles transbordam de sua memória e consciência.
Refletindo o tempo e memória de La Jetée, e a vida do protagonista, correria o risco de pensar a
trama do romance como uma linha temporal cronológica, que recorta o real em função da nossa
necessidade de viver, no tempo mensurável, matematizado e dividido em instantes. Mas com base nos
eventos que compõem a narrativa de La Jetée pensar em termos de linearidade não é possível, tão pouco
é possível pensar a vida do protagonista do ponto de vista linear, pois ele parece ter uma dupla e
simultânea vida tanto no passado e quanto presente. Enlace de aprisionamento e libertação.
O escritor provoca ao longo da narrativa constantes mudanças temporais, tudo beira o indiscernível,
e se passa em tempos que coexistem. Nesse pensar, o filósofo Henry Bergson5 afirma que somos
interiores ao tempo, a esse tempo que dura e muda, a esse presente que passa e se conserva no passado;
um passado que coexiste com o presente que ele foi. Talvez por isso o protagonista seja atormentado por
lembranças confusas em tempos coexistentes.
Em La Jetée ciné-roman, Marker faz uso de um texto curto e denso, distribuído nas folhas de fundo
azul petróleo de formato retangular 23x27cm, ora com bordas/emoldurações das imagens, ora não, num
certo encadeamento textual, porém, de modo fragmentado e sem divisão em capítulos. Configura-se em
uma rica combinação de palavras e muitas imagens fixas: são fotográficas em preto e branco,
funcionando como elementos narrativos que produzem diferentes sentidos para o leitor; criando uma
concepção estética em que o semântico e o imagético são expressivos, produzindo um estilo literário
singular que dialoga com áreas artísticas distintas. Mas, a fotografia, o design, a literatura e o cinema,
são afins.
Parto do princípio de que o escritor do livro em estudo não quer atestar verossimilhança dos fatos
abordados em seu romance, em sua ficção, mas percorrer territórios imaginativos, provocar rupturas,
realizar capturas e possibilitar diversas interpretações e sentidos a serem atribuídos pelos leitores,
buscando tocá-los de algum modo pelas imagens e texto. Entendo que recursos poéticos são comuns ou
podem estar presentes em qualquer obra literária, não é um privilégio da poesia; todavia, de acordo
Valéry6 (1939), o que faz sentido num gênero literário pode não fazer em outro.
Interessa-me, pois, perceber como Marker constrói artisticamente esse romance, como toca,
sensibiliza o leitor através dos elementos poéticos que o constitui. Paul Valéry7 afirma que certas
combinações de palavras produzem emoções, e isso pode ser denominado poética. Eu acrescentaria, no
caso de La Jetée, que a junção da narração com as imagens fotográficas produzem sensações, ampliam
tais emoções e os sentidos visíveis. A série de fotografias em preto e branco que compõe o enredo de La
Jetée, uma certa história fotográfica comentada por um único narrador, dá a trama um caráter singular e
poético. Imagens usadas para expressar, junto com o que está sendo narrado, as memórias da vida do
protagonista, são lembradas de modo parcial e truncado. Quando se olha o passado através de um álbum
de fotos as lembranças que vêm a memória estão, pois, em desordem temporal, como saltos no tempo,
alterando as emoções diante do que se vê ou ouve. Embora as imagens fotográficas por natureza tentem
congelar o tempo.
Trago um exemplo de duas imagens do livro: numa imagem da mulher, que o escritor coloca no livro,
aparentemente se vê o rosto dessa personagem, mas o narrador comenta que pode ser a única imagem do
tempo de paz a atravessar o tempo da guerra, pois são os dois tempos experenciados pelo protagonista.
Ou seja, é uma imagem de um tempo passado que perdura na memória desse homem e é evocada,
atualizada no tempo presente da trama de La Jetée. O olhar da mulher parece nada saber sobre esse ele
que a procura em suas viagens no tempo, e nem mesmo porque a procura. Esse rosto nem mesmo o
protagonista tem certeza se viu ou se criou, mas conserva sua imagem como um momento terno, que o
ajudaria a escapar dos momentos difíceis que estavam por vir.
Numa outra imagem, em que eles estão juntos, quando ele viaja ao passado, é induzido em
laboratório que está com a mulher. Podemos ver os dois passeando por um jardim. O homem a olha com
afeto e com um certo temor de não mais vê-la, dada sua fascinação por essa mulher e, talvez, pela falta de
confiança em sua própria memória, uma vez que não tem certeza se ela existiu ou se é uma criação sua.
Esse homem sofre, é atormentado pela ausência dessa mulher.
Nessas imagens que comentei e em todas do livro, diga-se de passagem imagens não como
representação do mundo, baseando-me na noção de tempo duração de Bergson8, tem-se um corte móvel
na duração, pois não é possível separá-las do que as precedeu ou as preenche, não se pode isolá-las,
converter em representação. Há, nessas imagens, virtualidades a serem atualizadas pelo protagonista e
pelo leitor, virtualidades que estão para além do aparente. É aquilo que existe em potência.
Sobre a poética, o título do livro já traz em si, uma certa poeticidade, La Jetée ciné-roman, é um
romance cinematográfico, ou seja, feito para o cinema. O escritor faz de imediato uma alusão ao suporte
do qual surge tal romance, mas recria no suporte livro, o filme intitulado, La Jetée photo-roman, um
romance fotográfico, desse mesmo escritor/diretor. Ele joga com a imaginação do leitor, com a literatura,
com o cinema e com a fotografia, aproximando tais artes e criando uma nova estética, que não é apenas
específica de uma ou outra linguagem. Além de promover encontros e tensões, enriquece as relações
entre elas. Não busco tecer uma comparação entre livro e filme; essas observações servem para situar o
leitor explicitando de onde surgiu o livro em foco.
Outra questão que chama atenção é o texto escrito na contracapa, do lado esquerdo, uma espécie de
prefácio, no qual o escritor fornece uma visão da trama a ser narrada. Tal prefácio tem, já de início, um
tom poético, com forte apelo expressivo e instiga o leitor:
Esta é a história de um homem, marcado por uma imagem de infância. A intensa cena
que o perturba, e cujo significado compreenderia apenas anos mais tarde, teve lugar num
terraço de Orly - aeroporto de Paris, alguns anos antes do início da III Guerra Mundial.
Em Orly, aos domingos, os pais levavam os seus filhos para ver a partida dos aviões.
Num domingo, a criança sobre a qual contamos essa história, estava tentando olhar
através do sol forte, a paisagem do outro lado do terraço e um rosto de uma mulher. Nada
separa essas lembranças de outros momentos, mais tarde é preciso que nos lembremos
disso quando veremos as marcas que delas ficaram. Esse rosto que ele teria visto foi a
única imagem em tempo de paz, que sobreviveu a guerra. Pergunta-se durante muito
tempo, se ele realmente a teria visto ou teria inventado esse terno momento para romper
com momento de loucura que estaria por vir.9
Penso que o romance de Marker também é poético porque usa na criação da trama de La Jetée
diferentes recursos estilísticos: a conjugação das imagens fotográficas com o texto, para transmitir,
conforme Deleuze e Guattari10, um composto de afectose perfectos, um bloco de sensações, vivenciadas
pelo protagonista, também evidenciados pela sua escolha por uma estética textual ao mesmo tempo
visual. Nesse sentido, argumenta Paul Valéry, que os efeitos poéticos de um texto podem ser percebidos,
associados “às imagens, às ideias, às excitações do sentimento e da memória, aos impulsos virtuais e às
formações de compreensão – em uma palavra, tudo o que constitui o conteúdo, o sentido de um
discurso.”11 Em Marker, o encontro entre a palavra escrita e as imagens fotográficas cria poeticidade
como possibilidade estética.
A composição formal criada no livro a partir das imagens fotográficas em preto e branco com o texto
é, pois, outro aspecto poético desse romance. É fortemente expressiva e potencializada a relação entre os
tempos passado, presente e futuro de forma não linear; encarregadas de juntamente com o texto, narrar
uma história que não poderia ser contada apenas com palavras.12 Com projeto gráfico do contemporâneo
designer canadense Bruce Mau, e pensada a partir das imagens do filme La Jetée photo-roman e das
ideias do Marker, tal composição ilumina o discurso e a subjetividade desse escritor. Bruce Mau compõe
páginas inteiras com preto e vazios, deixando livre a imaginação do leitor. Ele o leva pelas descrições
do narrador por meio das ações dos personagens, dos espaços e tempos por onde circulam,
acompanhando os conflitos do protagonista com suas confusas lembranças guardadas e evocadas na
memória. Não por acaso, argumenta Paul Ricoeur13, a memória é pouco confiável. Bergson afirma que a
memória “existe sobre duas formas, contrai uma multiplicidade de momentos e dilata uma camada de
lembranças, pode suprimir ou acrescentar dados”14, ou seja, depende do interesse e atenção de quem as
suprime ou as conserva. O poeta e teórico Paul Valéry, por sua vez, disse que “a memória é a substância
do pensamento” […]. E completa: “o pensamento é o que origina em nós o que não existe.”15 Em
Matéria e Memória, Bergson afirma que o pensamento está sempre em movimento. Diante desse
pensamento e memória em movimento, estaria o protagonista de La Jetée ciné-roman imaginando ou
evocando algo em sua memória? Ou estaria ele tomando a imagem pela realidade? Sobre a memória,
retomarei tal discussão mais à frente.
Nesse momento, faço uma pausa para refletir sobre os personagens centrais de La Jetée, e trago o
seguinte argumento do filósofo Gilles Deleuze: “É preciso que a personagem seja primeiro real, para
afirmar como potência […], a personagem está sempre se tornando outra, e não é mais separável desse
devir que se confunde com um povo.”16 Essa questão levantada por Deleuze aproxima-se do
protagonista de La Jetée, já que ele parece ter vivido duas vidas; também se aproxima da mulher,
personagem que o narrador nos deixa em dúvida se ela existiu ou se foi uma criação ou imaginação do
protagonista ex-combatente/prisioneiro, e sobrevivente da 3ª guerra.
Com referência a esse viajante no tempo convocado a experiência de reviver o passado e viajar para
o futuro, percebe-se que está cheio de conflitos e dúvidas, que vive um dilema interior e seus afectos e
perceptos, blocos de sensações, são trazidos para fora através de suas ações, pelas viagens e pela voz do
narrador que o guia.
O protagonista da história de La Jetée ciné-roman é partícipe dessas experiências no tempo
presente. Bergson17 afirma que o tempo é duração, isto é, que dura e muda constantemente. O tempo se
estende e se contrai, retorna ao passado e avança para o futuro. O presente é o tempo vivido, com seu
movimento necessário e incessante.
Sobre a personagem secundária, a mulher cuja imagem ficou na memória do protagonista, percebo
sua imagem como imagem-lembrança, pois, segundo Bergson18, refere-se ao conjunto de nossas imagens
passadas que nos permanece presente. A imagem dessa Mulher que o viajante no tempo fixou em sua
memória é evocada durante as viagens. Ele a reconhece quando a encontra, mas a trama deixa em aberto
se ela existiu ou foi uma criação do protagonista. Além disso, o olhar de tal mulher é carregado de
poesia. Para além do que nele vê o protagonista, ou ficou guardado em sua memória, resta a lembrança de
um momento feliz, mas que ele não sabe de imediato porque o afeta tanto.
A narrativa joga com o tempo passado, presente e futuro considerando os diversos eventos vividos
pelo protagonista. Todavia, esses eventos não são narrados em ordem cronológica. Ele viu a mulher pela
primeira vez na plataforma, quando era criança, no mesmo momento em que assiste sua própria morte,
embora sem ter consciência de que era ele quem morria, mas só a reconhece quando viaja no tempo,
quando vê e tenta manter contato com ela.
Já o antagonista, o homem chefe do laboratório das experiências, envia o protagonista nas viagens no
tempo tendo, como ponto de controle, a imagem da mulher que ficou em sua memória, embora seu
objetivo fosse outro: por meio das viagens no tempo, salvar a humanidade.
Quanto à relação entre esses personagens centrais do enredo de La Jetée ciné-roman, o chefe do
laboratório conduz as ações do viajante do tempo, por meio do experimento das viagens e de sua
memória. Entre o protagonista e a mulher perdura um suposto romance e a imagem-lembrança que ele
viveu ou inventou. E há entre todos os personagens um mútuo atravessamento de afectos e perceptos que
se entrecruzam.
Sobre o narrador do romance La Jetée é único, masculino, percebido pela sua voz, onisciente, em 3ª
pessoa e anônimo. Apresenta os eventos narrados adotando uma postura aparentemente neutra, deixa o
leitor livre para imaginar, contestar e atribuir diversos sentidos, fazer escolhas, e assim vai comentando
as ações do protagonista. É pela palavra escrita, de sua voz, que tomamos conhecimento da trama de La
Jetée. Portanto, é um narrador heterodiegético19 e o nível da narração é extradiegético: alguém que está
fora da história, mas dela tudo sabe e comenta.
Um narrador exterior que, segundo o teórico Philippe Dubois20, torna-se uma instância invisível,
que conhece a totalidade da história do protagonista e fala de um futuro enunciativo pelo qual o presente
do enunciado somente pode ser o passado estratificado. Dubois comenta ainda que em Marker a
revelação sempre se deu após um certo tempo e que existe, do ponto de vista da enunciação, uma
conservação do tempo no passado, pois é atravessado, conectado por uma trajetória de consciência. É
preciso projetar-se no futuro se quisermos compreender o presente, o qual se esclarece somente de forma
retrospectiva, sendo um passado que retorna como uma imagem. Percebe-se uma concepção bergsoniana,
de um presente extensivo e movente, um presente feito com fronteiras flutuantes entre passado e futuro.
O narrador faz referência direta, e com certa imparcialidade, aos acontecimentos vividos pelo
protagonista e demais personagens, que têm voz por meio de sua fala e das imagens fotográficas, mas não
intenciona prestar conta ao leitor a respeito do modo pelo qual veio a conhecer os fatos por ele narrados,
não certificando uma verdade. Pergunto-me se seria o narrador um testemunho do passado do
protagonista ou ele mesmo em sua vida anterior. Ou ainda, a consciência do tempo e da memória.
Memória que em La Jetée conduz a narrativa. É a voz que fala, relata o que passou na vida do
protagonista, e é um forte elemento desse romance, pois a narrativa aparece na memória. Mas uma
memória, como argumenta Deleuze21 não só relata a narrativa, mas tem também uma função de futuro,
retendo o que passa, para assim fazer o objeto porvir de outra memória.
De acordo com Paul Ricoeur22, nos valemos da memória porque não temos nada melhor para
declararmos o acontecimento de algo, quando se passou antes de declararmos ter lembrado. O narrador
nos relata os afectos e perceptos vivenciados pelo protagonista, algo que ele parece ter vivido ou
imaginado e que está em sua memória de forma confusa.
Argumenta Bergson:
Imaginar não é lembrar-se. Sem dúvida uma lembrança à medida que se atualiza
tende a viver numa imagem, mas a recíproca não é verdadeira, a imagem pura e simples
não me reportará ao passado, a menos que seja efetivamente no passado que eu vá buscá-
la.23
Quando o narrador afirma que o rosto da mulher na mente do protagonista foi a única imagem em
tempo de paz, antes da guerra, é porque isso é algo demasiado significativo para esse homem, mesmo que
tal imagem tenha sido por ele criada e não lembrada.
O foco narrativo do romance em reflexão é, segundo Genette24, o ponto de vista de quem conta a
história, é o de um narrador que tudo sabe e tudo vê, e que revela os sentimentos, emoções e pensamentos
dos personagens, controla os eventos relatados, as ações dos personagens no tempo e no espaço em que
se situam e nos quais se movem.
Outras questões que compõem a estética do romance podem ser levantadas a partir dos espaços por
onde transitam, movimentam-se os personagens, em especial o protagonista. La Jetée se passa em Paris –
um lugar real, e são descritos pelo narrador os seguintes lugares: acampamento de guerra/laboratório de
experiências e galerias subterrâneas, terraço do aeroporto e ruas. Todos os eventos se passam em Paris,
antes da guerra, no aeroporto, depois da guerra, no acampamento e nas galerias subterrâneas. As
mudanças observadas nestes espaços nos dão a noção do transcorrer do tempo. Na medida em que o
protagonista se desloca no tempo, é possível observar as alterações ocorridas no espaço, nos lugares que
transita em momentos distintos.
Por exemplo, em sua viagem final no tempo, o protagonista foi seguido até o terraço do aeroporto por
um homem que estivera com ele no acampamento subterrâneo, e, nesse ato, é possível perceber seu
deslocamento físico. Ele vai em direção a mulher “[...] quando ele reconhece o homem que o havia
seguido desde o acampamento subterrâneo, e compreende que não podia escapar do tempo.”25 Desse
modo, surge outro questionamento: por que fora o protagonista assassinado? Assassinado por dois
homens que comandavam as experiências feitas no laboratório por meio das viagens no tempo. Talvez
porque o homem viajante recusava o futuro, temia um tempo que dele nada sabia.
Outro assunto a abordar é a guerra, um dos subtemas da trama de La Jetée. A guerra pertence ao
mundo da realidade através das imagens fotográficas presentes no romance. Por meio da ficção científica
do passado o narrador busca em La Jetée produzir no leitor um certo efeito do real, embora o escritor
não queira atestar verossimilhança. Colabora para o universo diegético com a realidade factual/histórica,
mas também confunde, provocando a imaginação do leitor e pertubando as fronteiras. O caráter histórico
desse tempo de guerra é pano de fundo para o fluxo narrativo presente no desenrolar das viagens do
protagonista, das passagens de tempo e do desenvolvimento de conflitos que ele permite à memória ora
lembrar, ora esquecer.
Comentei algo sobre a guerra porque também não posso ignorar o contexto da França, o qual Marker
cria La Jetée em 1962. Nessa época, o país ainda se recuperava da 2ª guerra mundial, ocorrida entre
1939-1945 da qual a Alemanha saíra vencedora depois da ocupação. As marcas/lembranças da guerra de
certa forma são atualizadas na trama, porém, não significa que o escritor queira atestar a verossimilhança
dos fatos abordados em seu romance. Essas lembranças atualizaram-se, talvez, porque o protagonista é
um sobrevivente de guerra e vivenciou o momento de destruição parcial de Paris. Temeria ele reviver
esse passado de guerra? Ou estaria ajustando as contas com ele?
Retomo a discussão sobre o tempo e a memória em La Jetée ciné-roman por serem fundantes na
trama criada por Marker. Por serem constituintes da poeticidade do romance valho-me novamente das
noções teórico-filosóficas de Bergson a respeito de um tempo que dura e muda, do tempo enquanto
duração: “a duração é essencialmente uma continuação do que não mais é.”26
Percebo que Marker utiliza tanto o tempo como a memória como elementos poéticos que permitem ao
protagonista transitar de um espaço e tempo a outros; de um território a outro, carregando consigo afectos
e perceptos de momentos distintos de sua vida, alguns que ele não lembra, uns que conservam em sua
memória, e outros que por razões afetivas inventou. Em La Jetée, o que conta afinal é o tempo presente,
pois passado e futuro são dimensões do presente, os tempos são, pois, coexistentes.
Sobre essa coexistência Deleuze afirma que “o passado não só coexiste com o presente que ele foi,
mas se conserva em si (ao passo que o presente passa) – é o passado inteiro, integral, todo o passado que
coexiste com cada presente.”27 Essa é a metáfora do cone bergsoniano: todos os tempos parecem
convergir em um só tempo, logo, coexistindo. Em La Jetée, o protagonista parece vivenciar paisagens
interiores do tempo, da memória que, assim como o tempo, se desdobra, coexiste.
Quanto a essa memória também coexistente, que se contrai e dilata, comenta Bergson:
[...] tem por função primeira evocar todas as percepções passadas análoga a uma
percepção presente, recordar-nos o que precedeu e o que seguiu, sugerindo-nos assim a
decisão mais útil. Mas não é tudo. Ao captar numa intuição única momentos múltiplos da
duração, ela nos libera do movimento de transcorrer das coisas, isto é, do ritmo da
necessidade.28
É pela necessidade de agir, pelo desejo de rever a mulher que o protagonista sai do presente em
direção ao passado e recusa o futuro, pois sabe que lá, ela não está. Essa coexistência virtual da
memória, o que está em vias de se atualizar, imagens que se conservam e se acumulam na trajetória das
viagens temporais dele, vão ora se contraindo pelo esquecimento ou confusão sobre o que viveu ou
imagina ter vivido, ora se dilatando quando evoca o passado, em especial a imagem que tanto perturba o
protagonista.
Sobre o tempo na literatura, constitutivo do romance, citando Georg Lukács argumenta Walter
Benjamin:
[...] toda ação interna do romance não é senão a luta contra o poder do tempo… Desse
combate... emergem as experiências temporais […] Somente no romance... ocorre uma
reminiscência criadora, que atinge seu objeto e o transforma...29
Nesse sentido o tempo no romance, não necessita ser assimilado à realidade, mas o tempo presente
intervém na compreensão do passado e do futuro, para criar novos sentidos e ser transformador, nesse
pensar o escritor se apropria do tempo de forma criadora em sua ficção, produzindo na narrativa
literária, encontros e tensões fazendo coexistir distintos momentos da vida do viajante no tempo por
diferentes lugares e tempos, pondo em evidência as contradições desse combate temporal.
Sigo pensando as viagens no tempo do protagonista pela narrativa não linear de La Jetée. Tomo
como parâmetro a vida dele num tempo não cronológico, mas em fluxo, em que evoca passado e futuro,
imagina-os e visita-os para tentar proteger o presente. A narrativa se passa, a princípio, no pós 3ª guerra,
no presente, mas dura e muda, se dá no tempo duração, de modo coexistente. Bergson e Deleuze em sua
esteira defendem a ideia de que presente e passado coexistem, pois o presente se conserva no passado.
Passado e futuro são dimensões do presente.
Nesse tempo em fluxo, duração, o Homem viajante no tempo se duplica, de modo que, quando
criança, ele assiste a sua própria morte enquanto adulto. Em suas viagens temporais, o protagonista faz
saltos no tempo, vai do presente ao passado e do presente ao futuro. São tempos que coexistem enquanto
imagens-lembranças. Ele vive simultaneamente no presente, do que já foi e do que será – do real, da
imaginação, de expectativas e de imagens criadas, guardadas em sua memória. Esse homem que ao viajar
no tempo, tem como motivação algo que lhe é interior: a imagem da mulher. Através de experiências de
ficção científica do passado, vai do presente em direção ao tempo memória cheio de marcas ou a um
futuro que teme. Vejamos um exemplo por meio de uma fala do narrador:
E algum tempo após, veio a destruição de Paris […] O Homem sobre o qual
contamos essa história foi eleito entre mil, devido sua fixação com uma imagem do
passado […] No início, nada mais se retira do tempo presente e de seus tormentos […]
Ao décimo dia da experiência, começam a surgir imagens, como confissões. Uma manhã
do tempo de paz, um quarto do tempo de paz […] Os cientistas que conduzem a
experiência intensificam seu controle. Enviam-no de novo sobre o mesmo rastro. O tempo
retrocede de novo, ele retorna àquele momento passado. Desta vez aproxima-se dela, fala
com ela. Ela acolhe-o sem surpresas. Eles de nada recordam, nem têm planos. O tempo
escorre sem dificuldade entorno deles.30
Outro exemplo do livro, desse tempo duração, que dura e muda: “Mais tarde, ele compreendeu que
tinha visto a morte de Homem.”31 Morto por um dos homens do laboratório que coordenava as viagens
no tempo, o protagonista descobre que esse momento fixado em sua memória era o de sua própria morte,
em uma de suas vidas. Talvez a execução do protagonista possa significar que ele é assombrado por suas
memórias; tempo impossível de escapar e da vida que flui sem cessar até a morte. Essas e todas as
vivências do protagonista na trama se dão, num tempo coexistente.
A confusão entre o que é vivido pelo protagonista ou inventado, se dá desde o início do romance.
Não sabemos ao certo se os cientistas o projetam para um passado real ou se ele próprio inventa ou
recorda suas lembranças. Trata-se de uma viagem que se dá, portanto, não apenas no tempo, mas também
na memória.
Com relação à imagem da mulher fixada em sua memória, imagem que o faz partir em viagens no
tempo, ele não sabe se ela existiu, ou poderia tê-la conhecido numa época anterior a de seu próprio
nascimento. Então, teria ele a conhecido em uma outra vida sua? Ou criado isso, como uma força interior
para suportar o que lhe viria acontecer em outros momentos?
Não pretendo chegar a uma decisão se essa imagem da mulher fixada na memória do protagonista
existiu ou não, mas do ponto de vista filosófico, pode ser pensada com base no pensamento de Bergson32
que, segundo ele, consciência significa principalmente memória, enquanto duração é consciência, e é
também memória: uma atenção voltada para o mundo interior, que conserva e acumula o passado no
presente e antecipa o futuro. A consciência então ligaria o que foi com o que será, passado e futuro,
agindo assim sobre as dimensões do tempo. Não é por acaso que o protagonista guarda tal recordação e a
evoca no tempo presente e, quando vai para o futuro, escolhe retornar ao passado, como se não quisesse
esquecer, mas conservar tal imagem da mulher mesmo sem saber o motivo dessa marcante lembrança, ou
se ela foi mesmo uma criação sua. Acrescenta Bergson:
Utilizando-se o que já foi, a vida se empenha desde o começo em conservar o
passado e antecipar o futuro numa duração em que passado, presente e futuro penetram
um no outro e formam uma continuidade indivisa: esta memória e esta antecipação são,
como vimos, a própria consciência. E esta é a razão, de direito, se não de fato, de que a
existência seja coextensiva à vida.33
Assim, a duração como estado interior da consciência e essa confrontação do protagonista consigo
mesmo seria o único meio de se libertar da imagem guardada ou criada.
Já chegando ao tempo duração desse ensaio, os aspectos poéticos que percebo no romance em
estudo estão nos encontros e tensões do tempo com a memória e na composição do texto/narração com as
imagens fotográficas do livro La Jetée ciné-roman. É interessante pensar o modo como o escritor produz
sentido ao compor o livro ciné-roman, como um romance cinematográfico, com imagens a princípio
feitas para o cinema. Ele as recria na forma livro, traçando a composição com um texto filosófico
carregado de poeticidade, acrescido do tempo e memória coexistentes e dos enquadramentos das fotos.
Enquandramentos fechados para expressar os afectose perceptos que tensionam a vida do protagonista
nos diferentes e simultâneos tempos; enquadramentos abertos quando ele está percorrendo as viagens no
tempo, momento que revive ou crê reviver as lembranças do passado, momentos felizes, por exemplo,
quando reencontra a mulher e quando visita lugares do tempo em paz, em que gostava de frequentar antes
que explodisse a 3ªguerra.
Ao analisar La Jetée filme, o teórico Raymond Bellour34 afirmou que Marker faz uso do tempo de
modo fluído, pelos enquadramentos, ângulos e pelas múltiplas durações das fotos. Penso que as imagens
que afligem o protagonista movem o leitor junto com ele pelas suas viagens no tempo. Imagens que o
constituem e produzem diferentes sentidos para o leitor. Ainda sobre as fotografias, relata Bellour: “que a
fotografia […] não duplica o tempo [...]; ela o suspende, fratura, congela.”35 Ela conserva o tempo, não
por acaso Marker escolhe imagens fotográficas, relaciona esse seu poder de fixar o tempo, com a fixação
do protagonista com uma imagem do passado, de sua infância.
O estilo de La Jetée ciné-roman compreende uma estética literária que conjuga imagens fotográficas
em preto e branco e um texto curto, mas denso, algo que lembra livros das artes plásticas e do design,
diga-se de passagem, foi diagramado por um designer. A inserção de imagens fotográficas no livro cria
poeticidade e abre à interpretação do leitor, através de tais imagens que são inseparáveis do texto,
ampliando-se a multiplicidade de sentidos. Todavia, se por um lado o leitor pode aproximá-las ou
confrontá-las, tecendo diferentes relações, por outro lado exige uma maior capacidade de leitura e
compreensão, já que os códigos são verbais e visuais. Esse livro tem, portanto, uma particularidade na
sua composição narrativo-formal, ficando entre a narrativa das artes visuais e da literatura, sendo feito
de pouca escrita e muitas imagens, onde o visual e o textual têm forte apelo, embora não haja valor de
superioridade de um sobre o outro, e sim de ampliação dos sentidos aparentes. Além disso, relembro que
o livro não tem uma forma de livro tradicional que visa uma relação causal.
A proposta literária do romance em reflexão rompe, pois, com a narrativa calcada na causalidade,
que faz uso apenas da palavra escrita, é um romance poético, imagético-textual. A visualidade de um
dialoga com a verbalidade do outro, porém, sem o privilégio de uma linguagem sobre a outra. Assim
pensando, creio que a narrativa desse livro expressa uma rica invenção poética, a junção de palavras
escritas e imagens fotográficas vibram intensidades para além do literário.
Lembro que Chris Marker pensa em imagens. Além de escritor, poeta e filósofo, ele é um realizador
audiovisual, faz um diálogo constante do imagético com o textual, de uma linguagem ou arte com a outra,
sem hierarquia entre elas. No próprio ato de nomear o livro de romance cinematográfico ele deixa
vestígios desse livro que, antes, foi um filme.
A poética de tal romance junta, pois, lembrança e imaginação, tempo e memória que coexistem na
vida do homem viajante do tempo, com as imagens e texto que o compõem.
Aproximando, de fato, das palavras findas, creio que, apoiadas pelos teóricos citados ao longo desse
ensaio, o poético no romance La Jetée ciné-roman, pôde ser percebido tanto em seu conteúdo quanto em
sua forma, na verbalidade escrita e na visualidade das imagens, produzindo assim um encontro potente.
Não pretendendo exaurir o assunto, deixo em aberto o pensamento, e como citei no início desse ensaio,
segundo Deleuze, escrever é uma questão sempre inacabada, em devir.

Referências
BELLOUR, Raymond. Entre – imagens: foto, cinema, vídeo. Campinas: Papirus, 1997.
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Em: Obras Escolhidas. São Paulo: Ed.
Brasiliense, 1994, Vol. 1.
BERGSON, Henri. Duração e simultaneidade. São Paulo: Martins Fontes, 2006a.
_____. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 2006b.
_____. A Consciência e a Vida. (Tradução de Franklin Leopoldo e Silva). Em: Os Pensadores. São
Paulo: Abril Cultural, 1979.
CHRIS MARKER. Notes from the Era of Imperfect Memory. Disponível em:
<http://www.chrismarker.org>. Acesso em: 30 nov. 2011.
DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. São Paulo: Ed. 34, 2008.
_____. A literatura e a vida. Em: Crítica e clínica. São Paulo: Ed.34, 1993.
_____. A imagem-tempo. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1990.
DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. O que é filosofia? Tradução de Bento Prado Jr. E Alberto Alonso
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DUBOIS, Philippe. La Jetée de Chris Marker ou le cinématogramme de la conscience. Collection
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GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Lisboa: Ed. Vega,1972.
LA JETÉE. Disponível em: <http://fr.wikipedia.org/wiki/La_Jetée>. Acesso em: 30 nov. 2011.
MARKER, Chris. La Jetée ciné-roman. Paris: Editions de l’Éclat, 2008.
VALÉRY, Paul. Poesia e Pensamento Abstrato. Em: Variedades. São Paulo: Iluminuras, 2007, pp.193-
210.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed. UNICAMP, 2007.

Nota
1 Esse livro foi editado pela 1ª vez em 1996, foram impressos poucos exemplares e logo esgotado, em
2008 foi reeditado pela Éditions Kargo/L´Eclat, esta é versão que utilizo nesse ensaio. La Jetée em
francês significa plataforma, terraço, mas na trama do livro, um corredor temporal por onde o
protagonista se lança, viaja no tempo.
2 Nascido em 1921 na França, Marker é um dos poucos realizadores da Nouvelle Vague ainda vivo e
continua em atividade. Além de roteirista, realizador audiovisual, graduou-se em filosofia, é fotógrafo,
escreveu cerca de 10 livros, foi assistente de direção e co-dirigiu filmes – um artista múltiplo. Sua obra
audiovisual compreende cerca de 40 filmes (curtas, médias e longas-metragens – a maioria
documentários).
3 O outro objeto é La Jetée photo-roman, 1962, um filme de ficção científica do passado, com duração
de 28min.
4 Segundo DELEUZE e GUATTARI, 2007, p. 213, os perceptos não mais são percepções, são
independentes do estado daqueles que os experimentam e os afectos não mais são sentimentos ou
afecções, transbordam a força daqueles que são atravessados por ele.
5 BERGSON, 2006b.
6 VALÉRY, 2007.
7 VALÉRY, 2007.
8 BERGSON, 2006c.
9 Eis o texto original: “Ceci est l’histoire d’un homme marqué par une image d’enfance. La scène qui le
troubla par sa violence, et dont il ne devait comprendre que beaucoup plus tard la signification, eut lieu
sur la grande jetée d’Orly, quelques années avant la début de la Troisième Guerre Mondiale. À Orly le
dimanche, les parents mènent leurs enfants voir les avions en partance. De ce dimanche, l’enfant dont
nous racontons l’histoire devait revoir longtemps le soleil fixe, le décor planté au bout de la jetée, et
un visage de femme. Rien ne distingue les souvenirs des autres moments : ce n’est que plus tard qu’ils
se font reconnaître, à leurs cicatrices. Ce visage qui devait être la seule image du temps de paix à
traverser le temps de guerre, il se demanda longtemps s’il l’avait vraiment vu, ou s’il avait créé ce
moment de douceur pour étayer le moment de folie qui allait venir.” (Toda tradução que consta nesse
ensaio é minha).
10 DELEUZE & GUATTARI, 2007.
11 VALÉRY, 2007, p. 213.
12 Saliento que o livro tem um texto que é todo comentado por um único narrador.
13 RICOEUR, 2007.
14 BERGSON, 2006b, p. 31.
15 VALÉRY, 1939, p. 214.
16 DELEUZE, 1990, p.185.
17 BERGSON, 2006a.
18 BERGSON, 2006b.
19 O narrador não participa da história, conceito proposto por GENETTE, 1972.
20 DUBOIS, 2006.
21 DELEUZE, 1985.
22 RICOEUR, 2007.
23 BERGSON, 2006b, p.158.
24 GENETTE, 1972.
25 MARKER, Chris. La Jetée ciné-roman. Paris: Editions de l’Éclat, 2008.
26 BERGSON, 2006a, p. 57.
27 DELEUZE, 2008, p. 46.
28 BERGSON, 2006b, p. 266.
29 BENJAMIN, 1994, p. 212.
30 MARKER, Chris. Op. cit., 2008.
31 Ibid.
32 BERGSON, 1979.
33 Ibid, p. 75.
34 BELLOUR, 1997.
35 Ibid, p. 170.
DO QUADRINHO À POESIA:
UM RELATO PESSOAL DOS DESAFIOS NA TRADUÇÃO DO
IDIOMA ALEMÃO PARA O PORTUGUÊS
Augusto Machado PAIM
Traduttore tradittore, diz o provérbio italiano. Sim, traduzir é trair. Seja trabalhando em uma
tradução voltada para a língua de partida (portanto, fiel e literal em relação ao texto original, porém
correndo o risco de o texto não ser compreendido), seja uma tradução voltada para a língua de chegada
(e adaptando assim o texto à cultura que o receberá, porém perdendo significados e sentidos que só
funcionam na cultura original), o tradutor estará inevitavelmente lidando com um conflito insolúvel.
Traduzir é sempre um dilema. Em curso ministrado na Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, o professor canadense Emmanuel Fraisse disse que “é impossível ser fiel na tradução,
mas é necessário ser fiel na tradução.”1 O que parece um paradoxo é, na verdade, algo cuja compreensão
está ao alcance de todo tradutor que leva seu trabalho a sério.
Como disse Gilles Ménage: “a tradução é uma estrangeira bela que devemos pôr nas roupas do nosso
país”.2 Para refletir sobre as dificuldades envolvendo a tradução a partir de um caso concreto, relatarei
aqui as minhas próprias experiências como tradutor do alemão para o português. O percurso começará na
tradução de histórias em quadrinhos, passando para a de literatura e a de poesia. O objetivo é mostrar,
através dessa gradação, os diferentes obstáculos enfrentados pelo tradutor.

Quadrinho
Minha carreira como tradutor começou em 2009, quando verti para o português a obra Johnny Cash
– uma biografia, do quadrinista alemão Reinhard Kleist. Recentemente, fiz a tradução da minha segunda
obra, Wir können já Freunde bleiben, de Mawil, a ser publicada em 2012.
Traduzir quadrinhos é, sem dúvida, menos trabalhoso do que traduzir literatura e poesia. Isso porque
o ritmo da narrativa já está todo dado pela sequencialização dos quadros, e muito do clima e da
ambientação está contido no desenho e não no texto. Traduzir quadrinhos, portanto, é uma boa forma de
se fazer esse ingresso no pantanoso terreno das traduções. Já é possível perceber, no texto dos
quadrinhos, algumas das dificuldades encontradas por quem quer verter uma obra literária do alemão
para o português. Cito três exemplos advindos da obra de Reinhard Kleist.
O primeiro deles diz respeito a uma expressão idiomática. Quando Johnny Cash convida os outros
integrantes da sua banda a fazer um teste numa gravadora, um dos personagens, receoso, responde: “Hör
mal, Johnny, das ist mir’ne Nummer zu groß”3. Literalmente, ele disse: “Escuta, Johnny, isto é para mim
um número muito grande”. A tradução literal, no entanto, elimina o contexto da frase. Quando diz
“número”, a personagem refere-se ao tamanho de uma roupa. Ele, na verdade, quer dizer: “este número
[de calça, de camisa] fica muito grande em mim”. Trata-se de uma expressão idiomática para sugerir que
algo não está adequado ou, no contexto do enredo da obra, de que não é o momento certo para
determinada coisa acontecer. Na tradução, precisei achar uma expressão em português que passasse a
mesma sensação. A solução encontrada foi: “Olha só, Johnny, isso é muita areia pro meu
caminhãozinho.”4
Há casos em que a expressão idiomática é traiçoeira. Daí vem o segundo exemplo. Em certa
passagem da obra, Johnny Cash assiste a um show de Elvis e pergunta ao colega ao lado à qual gravadora
o cantor pertence. A personagem responde que é a Sun Records e comenta que a gravadora “ist seit Elvis
schwer im Geschäft”5. Ou seja, numa tradução literal: “[a gravadora] está, desde Elvis, ‘difícil’ nos
negócios”. A palavra ambígua aí é “schwer”, que significa “pesado”, “difícil” etc. Palavra, portanto, de
sentido negativo, o que remeteria imediatamente ao significado de “dificuldades nos negócios”. No
entanto, a expressão quer dizer justamente o contrário: “Desde o Elvis eles estão com os negócios a
mil”6.
O terceiro exemplo que trago diz respeito a um trocadilho. Johnny Cash, interessado em June Carter,
pergunta a ela o nome do seu marido. O diálogo é assim: “‘wieheißterdochgleich...? Wird nix?’, ‘Rip.
Rip Nix.’, ‘Nix. Passender Name für einen Sheriff, hehehe...’”7. O grande problema advém da palavra
“nix”, que significa “nada”. Quando Cash pergunta “Wird nix?”, ele quer dizer: “essa história de vocês
não vai dar em nada, não é mesmo?” E a seguir June responde que o nome do marido é Nix, ou seja,
“Nada”. Como o livro de Reinhard Kleist é de natureza biográfica, ou seja, não-ficcional, não é possível
alterar o nome de personagens. Afinal, Rip Nix realmente existiu. A solução que encontrei, para não
perder totalmente a intenção do autor, foi usar um outro trocadilho, dessa vez com a palavra “RIP8”:
“‘Qual-é-o-nome-dele-mesmo...? Será que essa história não vai descansar em paz...?’, ‘Rip. Ele se
chama Rip Nix.’, ‘Nix. Bom nome pra um xerife, hehehe...’”9.
Cada trabalho apresenta desafios singulares. Na tradução de Wir können ja Freunde bleiben (título
provisório: “É melhor ser só amigos”), minha maior dificuldade foi encontrar expressões em português
que mantivessem o tom da obra original. Trata-se de um relato autobiográfico sobre a infância e a
adolescência do autor na antiga Alemanha Oriental. Há uma grande ênfase no humor, e esse humor surge
principalmente dos usos dessas expressões jovens que se situam em um local e em um tempo específico.
Antes de começar a tradução, pensei em usar algum sotaque brasileiro regional, mas logo descartei a
ideia. Perder-se-ia aí toda a referência à cultura alemã. Decidi adotar um português de conhecimento
geral e ir resolvendo as gírias caso a caso. Também tive o cuidado de utilizar expressões de uma época
mais recente, para que a obra pudesse ser compreendida por crianças e adolescentes de hoje, o que
ilustra o quanto o público-alvo interfere no plano de tradução. Assim, a versão em português tem
expressões como “caraca”, “show de bola” e eventualmente “bom pra dedéu”. Mais trabalho deu um
trecho em que as personagens jogam pingue-pongue. As expressões que elas usam não podem ser
reproduzidas tal e qual, porque as formas de se jogar esse jogo são diferentes na Alemanha e no Brasil.
Particularmente, o último dos quatro capítulos foi o mais árduo. Nessa parte da história, o
protagonista vai morar em uma república internacional de estudantes em Berlim. O idioma oficial da casa
é o inglês, e é nesse idioma que ele e uma espanhola (seu par romântico) comunicam-se. No original, o
texto alterna-se entre alemão e inglês, sem tradução, já que o inglês é um idioma de fácil domínio na
Europa. No Brasil, porém, não é possível deixar partes do texto em inglês. Pôr a tradução em notas de
rodapé também prejudicaria a dinâmica ágil da obra10. A solução encontrada foi deixar o protagonista
falando português e a espanhola falando espanhol. Manteve-se assim a confusão idiomática, importante
estratégia para a construção do humor da obra, e pôde-se alcançar o mesmo efeito que se conseguiu no
original, na alternância entre inglês e português. Adaptar, nesse caso específico (mas também em
qualquer tradução), foi uma forma de ser fiel à obra.

Literatura
Uma prova de que a cultura de chegada é o fator mais importante para a escolha dos critérios de
tradução está na reportagem Títulos daqui e d’além mar, publicada na Revista Língua Portuguesa. O
texto, de Gabriel Perissé, compara o nome dado a obras no Brasil e em Portugal. Apesar de o idioma de
chegada ser o mesmo, o resultado é por vezes muito diferente. Afinal, as culturas não são idênticas.
Disgrace (1999), do sul-africano John M. Coetzee, é Desonra, no Brasil, e Desgraça, em Portugal.
A tradução portuguesa destaca a ideia de infortúnio: na história, Lucy, uma jovem branca, é violentada
por três homens negros e, apesar da insistência do pai para denunciá-los e abortar a criança gerada,
decide calar-se e ter o filho. A tradução brasileira permite pensar na vergonha que o pai sente, mas
também no fato de ele próprio, como professor, ter-se envolvido com uma aluna negra. A opção lusitana
alinha-se com a tradução espanhola (Desgracia), e a brasileira com a italiana (Vergogna). (PERISSÉ,
2011) 11
Outro exemplo é dado pela obra O paciente inglês: Um sucesso literário da década de 1990, The
English Patient (1992), do escritor cingalês naturalizado canadense Michael Ondaatje, é comprado em
Portugal com o título O Doente Inglês, ao passo que no Brasil consta como O Paciente Inglês. Teria a
tradutora portuguesa Ana Luísa Faria receado que alguém imaginasse um personagem inglês “paciente”
(adjetivo), tranquilo? O nosso tradutor, Rubens Figueiredo, não se preocupou com essa ambiguidade. Nos
demais idiomas, temos Der Englische Patient (alemão), El Paciente Inglés (espanhol), Il Paziente
Inglese (italiano). Em francês, acharam por bem acrescentar, ao Le Patient Anglais, uma informação -
L’homme Flambé («O homem queimado»), uma vez que é assim, coberto de horríveis queimaduras, que o
protagonista aparece, semimorto, nas areias quentes do Saara. (PERISSÉ, 2011)12
Os trechos servem também para atestar que há, sim, uma parcela de escolha pessoal do tradutor. Essa
escolha, claro, é baseada nas suas expectativas e conhecimentos culturais da língua de chegada, mas
ainda assim é uma escolha essencialmente subjetiva, haja vista que tradutores diferentes produziriam
obras diferentes. Como diz o autor, no início do artigo da revista: Descobrir que o título de uma mesma
obra foi traduzido de um modo no Brasil e de outro em Portugal é revelador. Pode nos ajudar a apreciar
melhor as semelhanças e divergências entre dois modos de ver e escrever sobre o mundo. O ato de
traduzir, afinal, permitindo uma certa margem de criação, é também uma forma de interpretar a realidade.
Essa interpretação é atribuída ao tradutor como indivíduo que expressa sua visão e suas idiossincrasias,
mas também como representante, que ele é, naquele momento, de um contexto cultural específico.
(PERISSÉ, 2011)13
Guilherme da Silva Braga, importante nome da nova geração de tradutores brasileiros, em entrevista
para o site Meia Palavra disse que: Nem os títulos nem coisa nenhuma tem que ser traduzida literalmente.
Sempre há espaço para a liberdade tradutória. SEMPRE! Esse mito da tradução literal precisa cair.
Traduzir um texto não tem nada, absolutamente nada a ver com copiar o original em português apenas
trocando as palavras de idioma; trata-se, antes, de reescrever um texto altamente articulado, que forma
um todo coeso, em outra língua. E de reescrevê-lo em um estilo o mais próximo possível do original – o
que inclui reescrever um texto fluente de modo fluente, entre outras coisas. O objetivo de uma tradução
literária não é dizer “o que está no original” a qualquer custo, mas acima de tudo escrever um texto de
qualidade literária e características estilísticas semelhantes às do original. Paradoxalmente, uma das
maneiras mais garantidas de se arruinar completamente a qualidade literária e as características
estilísticas de um texto é fazer uma tradução literal dele. Assim, se o objetivo é apresentar ao leitor da
língua para a qual se está traduzindo um texto de características semelhantes às da obra original, é fácil
perceber que pequenas modificações inspiradas pelo estilo do original que visem justamente mantê-las
não são apenas desejáveis, mas também necessárias. E para obter esse resultado é preciso abrir mão do
apego desnecessariamente obstinado ao original.
Com os títulos acontece a mesma coisa. Vamos pegar como exemplo O morro dos
ventos uivantes, um título consolidado em nossa língua. O original Wuthering Heights
não diz nem “morro”, nem “ventos” nem “uivantes”. Em suma, a tradução não traduziu
uma palavra sequer do original. Mas pouco importa: uma tradução literal de Wuthering
Heights seria desastrosa e o título que se tornou clássico em português soa muito bem e
tem tudo a ver com o livro, assim como o original. Do ponto de vista do efeito, é uma
tradução magistral. Como a principal tarefa do tradutor literário é produzir um texto
literário de qualidade e dotado de função estética na língua para a qual traduz, se o
resultado de uma tradução é um texto sem características e qualidade literárias, é
evidente que algo está muito errado.14
Todas essas reflexões fazem muito sentido quando penso no meu trabalho de tradutor da língua
alemã. De fato, minha experiência comprova que há sutilezas de um idioma que não encontram
paralelismo no outro. Algumas se referem ao gosto estético. No alemão, por exemplo, a frase longa,
cheio de informações, é considerada uma comprovação da habilidade de escrita de um autor, até porque a
estrutura frasal alemã permite que se insiram inúmeras informações em sequência, eventualmente
prescindindo até mesmo do emprego da vírgula.
Também o ritmo da frase é diferente. No alemão, os verbos ocupam uma posição fixa. Dou um
exemplo: “Ich hatte ihr geschrieben, zu sagen, dass ich sie im nächsten Sommer besuchen werde.” A
frase tem cinco verbos, marcados em negrito. Em português, se traduzíssemos mantendo a estrutura da
frase, ficaria assim: “Eu havia a ela escrito, para dizer, que eu no próximo verão visitá-la irei.” Uma
frase, convenhamos, muito estranha no nosso idioma.
Outras dificuldades de tradução são mais simples, mas já acarretam numa alteração em relação ao
texto de partida. É o caso do uso dos pronomes pessoais “Sie” e “du”. A grosso modo, eles podem ser
substituídos respectivamente por “o/a senhor/a” e “tu/você”, mas qualquer pessoa que já tenha traduzido
um texto do alemão para o português sabe que essa correspondência nem sempre funciona. Às vezes, em
determinados contextos, “você” é a melhor tradução para “Sie”. Em outros, “tu” fica brusco demais para
representar o “du”. O tradutor, portanto, precisa ter bastante flexibilidade e domínio no manejo da língua,
além de um cuidado para que essa flexibilidade não se transforme em confusão.
O idioma alemão tem ainda o caso dos artigos. São três: masculino, feminino e neutro. Como o
português só tem dois, percebe-se desde já que qualquer tradução, por mais fiel que seja, já acarretará
em perda. Afinal, o uso do artigo não é desprovido de intenção. Há efeitos de sentido e climas que só
funcionam por causa do artigo.
A questão fica mais complicada quando pensamos que uma palavra pode ter um artigo masculino no
português e feminino no alemão. Um caso bem conhecido e revelador envolve as palavras “sol/lua” e
“Sonne/Mond”. No alemão, “o sol” vira “die Sonne” (“a sol”), e “a lua” vira “der Mond” (“o lua”). Não
se trata apenas de uma mudança de artigo. É também uma mudança na cosmovisão. Em conversa com um
autor alemão, tive a oportunidade de aprender o quanto as concepções de dia e noite são radicalmente
diferentes no Brasil e na Alemanha. Para nós, a noite é materna, acalentadora, apaixonante. Para eles, é o
lugar do masculino, da celebração, do hormônio, da conquista. Para nós, o dia é masculino, quente,
agitado, sinônimo de trabalho. Para eles, o sol é uma mãe que fornece energia e calor para os seus filhos.
Sem dúvida, essa diferença é bastante evidenciada pelo uso dos artigos.
Penso que essas questões não impedem a tradução, apenas instigam a criatividade do tradutor, como
atesta Guilherme da Silva Braga: “Não acredito na tradução impossível. Acredito apenas na tradução
para a qual ainda não se achou uma boa solução.”15
Esses desafios já existem na tradução de quadrinhos. A tradução do livro de Mawil, por exemplo,
trouxe uma exigência que a obra de Kleist não havia me apresentado. Refiro-me ao uso das
onomatopeias. Apesar de parecer relativamente simples, as onomatopeias são um desafio para o tradutor.
Para dar conta do trabalho, tive que acessar bastante material teórico. Entre eles, tive a sorte de me
deparar com o artigo Onomatopeias e interjeições em histórias em quadrinhos em língua alemã, da
professora da USP Selma Meireles. Diz ela que: Entre os elementos mais característico dos quadrinhos
estão as interjeições e as onomatopeias, a visualização de sons paralinguísticos e ambientais que, assim
como os efeitos sonoros do cinema, são indispensáveis para a elaboração da sua mensagem. Com pouca
expressão na literatura tradicional, na qual se prioriza a descrição dos ruídos (como, por exemplo, em “o
telefone tocava” ou “um cão latia”), as onomatopéias encontraram seu “habitat natural” nas histórias em
quadrinhos, onde assumem várias funções além de representar sons e ruídos: elas também podem criar
um “fundo emocional”, à semelhança da trilha sonora nos filmes, ou ainda servir como elementos de
direcionamento da leitura.
A representação gráfica de sons e ruídos nos quadrinhos é essencial para a
ambientação da trama e acabou por desenvolver características específicas, resultando
num código próprio de leitura que mescla elementos icônicos e convencionais.16
A leitura do artigo de Selma Meireles abriu para mim uma outra porta de percepção, relacionada à
comparação entre a tradução de quadrinhos e a de literatura. Até agora, a minha experiência tem se
concentrado na tradução de obras de quadrinhos. Sei que preciso acumular experiência nessa área antes
de passar para a tradução de uma obra em prosa, mas penso que o próximo passo será justamente esse:
traduzir um livro de contos.
Há um autor alemão recentemente descoberto por mim que eu gostaria de traduzir. Trata-se de
Siegfried Lenz. A leitura de seu livro So zärtlich war Suleyken causou em mim forte impressão. Pude
compreender o subtexto de seus contos, bem como apreciar o ritmo de cada uma de suas frases. Penso
que é um autor cujo estilo de escrita aproxima-se do apreciado por leitores brasileiros. E é com isso –
com a identificação com o autor e com a compreensão da sua obra – que começa o trabalho de tradução.
Afinal, traduzir é tentar colocar-se na posição do autor, tarefa que só pode ser bem-sucedida se vier
impregnada de empatia.

Poesia
Na escala de dificuldades de tradução, com certeza a poesia é o gênero mais difícil. Afinal, em um
poema temos que cuidar não só o significado das palavras, mas também seus simbolismos e suas
sonoridades em um nível que a literatura e os quadrinhos não nos exigem. Em alguns casos, tem-se ainda
que prestar atenção na métrica e na rima, cujos sistemas de valoração diferem radicalmente de idioma
para idioma.
Vejamos um exemplo de trechos de um poema do Goethe, retirados da obra Conceitos Fundamentais
da Poética17.
Du nun selbst! Was felsenfeste Sich vor dir hervorgetan, Mauren siehst du, siehst
Paläste Stets mit anderen Augen an. Weggeschwunden ist die Lippe, die im Kusse sonst
genas, Jener Fuss, der an der Klippe, Sich mit Gemsenfreche mass. // Jene Hand, die
gern und milde Sich bewegte, wohlzutun, Das gegliederte Gebilde, Alles ist ein andres
nun. Und was sich an jener Stelle Nun mit deinem Namen nennt, Kam herbei wie eine
Welle, / Und so eilt’s zum Element.18
Como o objetivo da obra é o estudo dos três grandes gêneros literários (Lírico, Épico e Dramático),
a tradutora Celeste Aída Galeão, professora da Universidade Federal da Bahia, optou por manter os
textos no idioma original e traduzir em notas de rodapé apenas o seu conteúdo. A tradução, portanto,
enfoca o conteúdo, não o ritmo e a sonoridade: Agora mesmo tu, outrora / rocha plantada a tua frente, /
vês muros e palácios / sempre com olhos novos; / longe e perdido está o lábio / que antes com o beijo
era prazer / e aquele pé que saltava / na rocha qual fresca camurça. // Aquela mão terna e prestável a
agir e fazer bem todo o ser e sua forma / é agora de outro modo / e o que em seu lugar conserva agora o
teu nome veio célere como onda / e apressa-se para o elemento.19
Repetindo: essa tradução é intencionalmente literal. Conserva o conteúdo, não a forma poética. Uso-
a aqui apenas para comparar as dificuldades de tradução de poesia. Vê-se aí a perda da rima:
“Lippe/Klippe”, por exemplo, virou “lábio/saltava”. Há também a força da cultura gramatical. Em alguns
versos no original alemão, sabemos, pela estrutura frasal, que a frase está em suspenso, pois ainda está
por vir um complemento. Na tradução literal, não há esse efeito. Uma tradução que enfocasse a dinâmica
lírica teria que prestar atenção nesse detalhe.
Para destacar essa diferença, mostramos o trecho os uma tradução de Fausto em edição bilíngue. Em
alemão, temos o texto: “MEPHISTOPHELES: Was ziehst du mich in diese düstern Gänge? Ist nicht da
drinnen Lust genug, Im dichten, bunten Hofgedränge / Gelegenheit zu Spaß und Trug?”20 Na versão em
português, do tradutor Jenny Klabin Segall, ficou assim: “MEFISTÓFELES: Por que me arrastas a esta
ala sombria? / Lá dentro, então, não dá para compor-te / Com a tropelia e a multidão da corte? / Ensejo
dão para o logro e a folia.”21 As diferenças são muitas. A começar pelo nome do personagem, que
assumiu sua versão em português. Já o último verso deixou de ser uma pergunta. Além disso, a rima
“genug/Trug” (“suficiente/engano”) migrou para as palavras “compor-te/corte”, alterando assim a classe
gramatical das palavras rimadas. Além disso, enquanto o segundo verso do original já permite perceber,
pelo fato de o verbo “ist” estar na posição inicial da frase, de que se trata de uma pergunta, a versão em
português só desvela o caráter interrogativo ao fim do terceiro verso, com a chegada do ponto de
interrogação.
Em função dessas dificuldades, a tradução de uma poesia pode originar versões muito diferentes,
dependendo do tradutor. Vejamos por exemplo os três primeiros versos de Odisseia, de Homero, na
versão de Manuel Odorico Mendes: “Canta, ó Musa, o varão que astucioso, / Rasa Ílio santa, errou de
clima em clima, / Viu de muitas nações costumes vários.”22 Compare-se com a tradução de Donaldo
Schüler: “O homem canta-me, ó Musa, o multifacetado, que muitos / males padeceu, depois de arrasar
Tróia, cidadela sacra. / Viu cidades e conheceu costumes de muitos mortais. [...]”23 Cada tradutor
escolheu sua forma de expressar a disposição anímica de Homero, cada um deles colocou-se no estado
poético e tentou traduzi-lo criativamente para o seu tempo.
Traduzir poesia é uma tarefa de dificuldade extrema. É por isso que muitas editoras optam por
edições bilíngues, onde se pode ver a diferença exercida entre a versão do autor e a do tradutor. Este,
aliás, precisa ter uma formação mais extensa: é necessário conhecer a fundo a obra do autor, bem como
as diversas possibilidades de sons, símbolos, rimas e ritmos dos sistemas poéticos, tanto da língua de
partida quanto da de chegada. O tradutor precisa, portanto, ser ele mesmo um poeta.
Penso que ainda levarei muitos anos de estudo antes de me atrever a traduzir uma poesia alemã. Mas
é um caminho que, com anos de estudo e prática, inevitavelmente devo trilhar.
Haicai
Em paralelo aos meus estudos (já avançados) do idioma alemão, tenho me proposto uma nova tarefa:
o aprendizado do idioma japonês. Ainda é em nível incipiente: no início de 2012, darei início ao quarto
semestre de estudos. Penso, porém, que no futuro esse meu interesse por traduções se manifestará também
nesse idioma.
Trata-se de uma língua com dificuldades ímpares. Em primeiro lugar, porque é baseada em
ideogramas, que são grafismos com capacidade de expressar uma ideia, um conceito ou mesmo uma frase
inteira. Algumas dessas ideias não existem no português. É por isso que o haicai, como o conhecemos no
Brasil, já não é o haicai japonês, pois o haicai no Japão pode ser composto por um único ideograma
capaz de expressar sozinho os três versos comumente usados nas versões brasileiras.
É essa questão da visualidade, aliás, que me atrai, talvez pela minha ligação com quadrinhos. Um
ideograma, afinal, é ao mesmo tempo poesia, imagem e texto.
Além disso, a cultura japonesa é muito diferente da cultura Ocidental, e isso afeta drasticamente o
trabalho de tradução. Os gestos e rituais, por exemplo, não encontram correspondência no Brasil.
Especialmente nos quadrinhos, essa diferença torna necessário um conhecimento introdutório. Por
exemplo: quando vemos em um mangá o desenho de uma personagem com uma bolha de sangue saindo do
nariz, só leremos aí o significado de “excitação sexual” se já tivermos certa familiaridade com a cultura
nipônica. O mesmo pode ser dito em relação aos gestos. Quando um japonês coloca os dedos indicadores
sobre a cabeça, apontados para cima, quer dizer que ele está furioso. No Brasil, esse é um símbolo de
traição conjugal.
São essas dificuldades e desafios que me fascinam. Por isso estou aprendendo o idioma. Penso que
quando começar a traduzir do japonês para o português terei acesso a um novo mundo de reflexões sobre
o processo de tradução.

Referências
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concedida para o site Meia Palavra: http://blog.meiapalavra.com.br/2011/04/25/10-perguntas-e-meia-
para guilhermeda-silva-braga/ Acesso em 2 de dezembro de 2011, às 11h52min.
CARONE, Modesto. Lições de Kafka. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
GOETHE, Johann Wolfgang Von. Fausto: uma tragédia – Segunda parte. Tradução de Jenny Klabin
Segall. São Paulo: Editora 34, 2007.
HOMERO. Odisséia. Tradução de Manuel Odorico Mendes. 2ª edição. São Paulo: Ars Poética: Editora
da Universidade de São Paulo, 1996.
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KLEIST, Reinhard. Cash – I see a Darkness. Hamburg: Carlsen, 2006.
KLEIST, Reinhard. Johnny Cash: uma biografia. Tradução de Augusto Paim. Porto Alegre: 8Inverso,
2009.
LENZ, Siegfried. So zärtlich war Suleyken – Masurische Geschichten von Siegfried Lenz. Hamburg :
Hoffmann und Campe Verlag, 1955.
MAWIL, Markus. É melhor ser só amigos (título provisório). Tradução de Augusto Paim. Campinas:
Zarabatana, 2012 (no prelo).
MAWIL, Markus. Wir können já Freunde bleiben. Berlin : Reprodukt, 2003.
MEIRELES, Selma. Onomatopeias e interjeições em histórias em quadrinhos em língua alemã. Em:
revista Pandaemonium germanicum, FFLCH USP, novembro de 2007, 157-188.
PERISSÉ, Gabriel. Títulos daqui e d’além mar: diferença entre títulos de livros lançados no Brasil e
em Portugal ajuda a explicar como cada país enxerga a cultura. Reportagem publicada na Revista
Língua Portuguesa. http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=12454 Acesso em 2 de dezembro
de 2011, às 11h55min.
STEIGER, H. Conceitos Fundamentais da Poética. Tradução de Celeste Aída Galeão. 2ª
edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993.

Nota
1 Citado no curso Approches theoriques et sociologiques de la lecture et du fait litteraire, ministrado
pelo professor Emmnauel Fraisse, da Université Sorbonne Nouvelle Paris 3, na Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, em agosto de 2011.
2 Citado pelo professor Emmanuel Fraisse na mesma ocasião apontada acima.
3 KLEIST, 2006, p. 51.
4 KLEIST, 2009, p. 51.
5 KLEIST, 2006, p. 50.
6 KLEIST, 2009, p. 50.
7 KLEIST, 2006, p. 106.
8 RIP é a sigla para a expressão inglesa Rest In Peace, ou seja, “descanse em paz”.
9 KLEIST, 2009, p. 106.
10 Nessa tradução, usei as notas de rodapé apenas para dar breves contextualizações sobre a História da
Alemanha, e somente nos casos estritamente necessários.
11 Acesso em 2 de dezembro de 2011, às 11h55min.
12 Idem.
13 Idem.
14 BRAGA, 2011. Acesso em 2 de dezembro de 2011, às 11h52min.
15 Idem.
16 MEIRELES, 2007, p. 158-159.
17 Essa é uma obra teórica, cuja dificuldade de tradução não é igual à da poesia, mas quase. Afinal, há
termos técnicos cujo significado no alemão não pode ser plenamente contemplado no português. É o caso
da palavra “Stimmung”, que na tradução foi desmembrada em duas palavras: “disposição anímica”.
18 GOETHE Em: STAIGER, 1993, p. 170.
19 STAIGER, 1993, p. 170.
20 GOETHE, 2007, p. 216.
21 idem, p. 217.
22 HOMERO, 1996, p. 65.
23 HOMERO, 2007, p. 13.
AUTORES
Ana Karina SILVA
Mestre em Teoria da Literatura do Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul.
Ana Paula KLAUCK
Doutoranda em Letras, Teoria da Literatura, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
e bolsista Capes. Professora da área de Letras.
Ana Maria Lisboa de MELLO
Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul e pesquisadora do CNPq.
Ângela Maria Garcia dos Santos SILVA
Doutoranda em Letras, Teoria da Literatura, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
e bolsista CNPq.
Anna Faedrich MARTINS
Doutoranda em Letras, Teoria da Literatura, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
e bolsista CNPq.
Antônio Donizeti PIRES
Professor de Literatura Brasileira na UNESP/Araraquara, SP, onde atua na Graduação e na Pós-
Graduação.
Augusto Machado PAIM
Jornalista, escritor e tradutor. Mestrando em Letras – Escrita Criativa –na PUCRS e bolsista Capes II.
Camila Canali DOVAL
Doutoranda em Letras, Teoria da Literatura, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
e bolsista CNPq.
Cibele Beirith Figueiredo FREITAS
Doutoranda em Letras, Teoria da Literatura, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Daniela Lindenmeyer KUNZE
Professora de francês e Mestre em Didática do Ensino de Francês Língua Estrangeira. Doutoranda em
Letras, Teoria da Literatura, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, e bolsista
Capes II.
Estevan de Negreiros KETZER
Psicólogo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Mestrando do
Programa de Pós-Graduação em Letras, na área de Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Gustavo Suertegaray SALDIVAR
É Bacharel em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Mestrando em Letras,
Teoria da Literatura, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Lídia Aparecida Rodrigues Silva MELLO
Mestranda em Estudos de Literatura – Literatura Comparada no PPGL da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Especialista em Cinema pela UNISINOS e Graduada em Comunicação pela PUC MG.
Roteirista e realizadora audiovisual menor.
Lina Tâmega PEIXOTO
Poeta e crítica de Literatura. Ex-professora da UnB.
Luís Roberto de Souza JÚNIOR
Mestrando em Letras/PUCRS, bolsista CNPq.
Márcia Helena S. BARBOSA – Doutora em Letras – Teoria da Literatura e Professora do PPGL-UPF.
Moema Vilela PEREIRA – Jornalista e escritora. É mestre em Estudos de Linguagens – Linguística e
Semiótica pela UFMS e mestranda em Letras – Escrita Criativa pela PUCRS, este último como bolsista
do CNPQ.
Roberto Sarmento LIMA
Professor Associado 4 da Universidade Federal de Alagoas, doutor em Literatura Brasileira e integrante
da área Estudos Literários, na linha de pesquisa Literatura e História, do Programa de Pós-Graduação em
Letras e Linguística (PPGLL), da Faculdade de Letras (Fale), da Ufal.

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