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A DIALÉTICA ENTRE LIBERDADE E SUBMISSÃO: Análise literária

de O Operário em Construção de Chico Buarque e Construção de Vinicius


de Moraes
FRAGA, A. Priscila¹

RESUMO: O presente artigo tem como objetivos a análise literária das obras O
Operário em Construção e Construção, de Vinicius de Moraes e Chico Buarque,
respectivamente, e a partir de então a reflexão acerca dos aspectos intrínsecos às
relações de trabalho na sociedade contemporânea, tendo como foco a dialética entre
liberdade e submissão, presentes na poesia e na canção enquanto um dos elementos
cruciais para a análise literária.

1. INTRODUÇÃO

A constituição de uma obra de arte, no caso em questão, de uma obra literária


integra aspectos internos à própria coisa em si, e externos, relacionados ao ambiente no
qual é criada. Esses aspectos, dialeticamente vinculados, resultam na construção do
imaginário poético, cercado pela expressividade linguística, pela liberdade artística de
criar realidades, e, também, pela capacidade de escancarar as diversas realidades já
existentes.
O Operário em Construção, de Vinicius de Moraes, e Construção, poesia e
canção de Chico Buarque, demonstram fielmente a intrínseca relação entre literatura e
sociedade, não no ponto de vista sociológico, mas do literário. As características
próprias da canção, vinculadas às da poesia, compõem o todo das obras em questão,
elaboradas indissociavelmente dos fatores sociais inerentes à sociedade capitalista.
Ainda, segundo Candido (2006, p. 18):

Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma


dessas visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto
e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, [pág. 13] em
que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos,
quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é
virtualmente independente, combinam como momentos necessários do
processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o
social) importa, não como causa, nem como significado, mas como

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elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura,
tornando-se, portanto, interno.
2. POESIA, CANÇÃO E SOCIEDADE EM CHICO E VINÍCIUS

A poesia e a canção cumpriram desde os áureos períodos de desenvolvimento


nacional o papel de exprimir com maestria os elementos estéticos e culturais
componentes da construção de uma identidade artística. Isso resulta no debate acerca da
literatura enquanto expressão das questões externas à palavra. Acerca disso, Candido
(2006, p. 27-28), citando Sainte-Beauve (1943) afirma:

A propósito, e para evitar equívocos, mencionemos um trecho de


Sainte-Beuve, que parece exprimir exatamente as relações entre o
artista e o meio: "O poeta não é uma resultante, nem mesmo um
simples foco refletor; possui o seu próprio espelho, a sua mônada
individual e única. Tem o seu núcleo e o seu órgão, através do qual
tudo o que passa se transforma, porque ele combina e cria ao devolver
à realidade".

Chico Buarque e Vinicius de Moraes revelam aspectos da realidade social


brasileira e exibem atributos literários semelhantes, no que tange ao lirismo de seus
versos, à marcante presença da figura feminina, representação do amor, e propagação
das desigualdades sociais e demais conflitos brasileiros.
Construção, gravada em 1971, retrata os últimos momentos da vida de um
operário em meio aos desafios e percalços da vida de um trabalhador brasileiro na
tentativa de sobreviver ao mundo dos prédios, construções e desigualdades. Essa
canção, carregada de emoções e melancolia, representa o engajamento político de
Chico.
Os versos da canção são estruturados com o intuito de transmitir dinâmica,
movimento à rotina do personagem. Desde a despedida de seus familiares ao sair de
casa rumo ao trabalho, Chico constrói o imaginário a partir da utilização de verbos no
pretérito que se mantém ao longo das estrofes, assumindo os passos do operário:

“Amou daquela vez como se fosse a última


Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas (...)” (HOMEM, 2009, p.97)

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Outro elemento importante é a repetição da palavra “última” nos dois primeiros
versos e na sequencia, em uma referencia ao desfecho trágico do operário, o uso de
outras palavras que cumprem o papel de adjetivos e desenham as ações do personagem
e as emoções sentidas por ele no decorrer de seu dia. Além disso, a utilização da
conjunção “e” no inicio dos versos mantém a noção de movimento e auxilia na
marcação de mudança das ações, ao passo que durante a leitura, visualiza-se o
personagem agindo nas cenas descritas por Chico.

“Tijolo com tijolo num desenho mágico


Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música (...)”(HOMEM, 2009, p.97)

No trecho supracitado, Chico apresenta elementos referentes ao psicológico do


operário, que imerso na exaustiva rotina de empilhar tijolos, enche os olhos de lágrimas,
e essas se misturam ao cimento, pois durante todo o dia de trabalho, uma visão marcante
e ao mesmo tempo comum.
Outro destaque importante refere-se às características da canção, uma vez que a
utilização dos instrumentos e acordes resulta no pano de fundo da trajetória do
personagem. A canção inicia com introdução num tom de suspense e no fundo, sons e
ruídos que remetem aos instrumentos de trabalho de um operário, aos barulhos da
cidade. Até o final da primeira estrofe, a melodia mantém-se linear, e quando ela se
encerra a partir do verso “Morreu na contramão atrapalhando o tráfego”, o maestro
Rogério Duprat, responsável pelos arranjos da canção, acrescenta outros instrumentos
como o saxofone, além das batidas características da Bossa Nova:

“E tropeçou no céu como se fosse um bêbado


E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passei público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego. (...)” (HOMEM, 2009, p.97)

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Além disso, no verso, “E flutuou no ar como se fosse um pássaro”, a
representação da ilusória liberdade desfrutada pelo operário está representada pela
figura do “pássaro”, a partir do segmento “como se fosse” que se repete ao longo da
canção.
Ao final do trecho acima, o operário morre e esse acontecimento se dá de
maneira incomoda às outras pessoas que passam pela construção. O personagem morre
“atrapalhando o tráfego”.
No decorrer da canção, Chico mantém a mesma estrutura dos versos e os repete
trocando apenas os adjetivos finais.

“Amou daquela vez como se fosse o último


Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina


Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu n contramão atrapalhando o sábado.” (HOMEM, 2009, p.97-98)

A trajetória do operário em seus últimos momentos de vida retratada em uma


canção tensa e melancólica revela fatos fidedignos do cotidiano de trabalhadores
brasileiros, especialmente na década de 1970. Ato institucional nº5, restrição de
liberdades individuais e coletivas e proibição dos direitos de organização sindical são

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alguns dos acontecimentos do contexto político, social e econômico do Brasil da
ditadura militar. Nesse sentido, a população brasileira pouco ou quase nenhum recurso
possuía para que seus direitos enquanto cidadãos fossem assegurados. Essa conjuntura
exigiu da arte uma responsabilidade singular, e ao mesmo tempo escancarou as
dificuldades enfrentadas pelos artistas. Acerca disso Candido (1977, p.13) disserta:

O atual regime militar do Brasil é de natureza a despertar o protesto


incessante dos artistas, escritores e intelectuais em geral, e seria
impossível que isto não aparecesse nas obras criativas, por mais
interessadas que estejam em experimentos de fatura. Por outro lado,
este tipo de manifestação extremamente dificultada pelo regime, que
exerce um controle severo sobre os meios de comunicação. Controle
total na televisão e no radio, quase total nos jornais de maior
circulação, muito grande no teatro e na canção; nos livros e nos
periódicos de pouca circulação a repressão mais branda, porque varia
na razão direta do alcance dos meios de comunicação.

Ainda, Candido (1977, p. 14) discute a importância da canção popular frente à


repressão política:

Neste sentido, tem tido grande importância a canção popular,


constantemente reprimida pelas autoridades, mas insistindo em
retratar com sinceridade o atual estado de coisas. Através da
linguagem figurada e da exploração sistemática da ambiguidade, tem
sido possível a alguns compositores-poetas dizer muita coisa que
encarna o protesto e manifesta a critica, motivando frequentemente a
proibição de seus discos e espetáculos, o que tem acontecido
sobretudo com o serenamente bravo Chico Buarque de Holanda.

Na citação anterior, Candido (1977, p.14) descreve Chico Buarque como o


“serenamente bravo”. Essa caracterização é coerente com a maneira como o compositor
constrói os versos das canções, ou como desenha os cenários e personagens de seus
espetáculos. Ao retratar a exploração e crueldade do exaustivo trabalho de um operário
brasileiro, Chico aposta nas figuras de linguagem, na ironia, na sátira, e de modo
“sereno” desvenda a tragédia, o sofrimento, o caos.
No verso “Sentou pra descansar como se fosse um pássaro”, na última estrofe da
canção, Chico utiliza o substantivo “pássaro”, como símbolo da liberdade negada aos
trabalhadores da década de 1970. Aqui, a dialética entre liberdade de submissão, se
expressa na medida em que apesar da aparente voluntariedade do exercício do trabalho,

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os indivíduos se veem impelidos dessa ação para a manutenção da existência. O
operário de Chico é livre e submisso.
Vinícius de Moraes, o “poetinha”, em O operário em construção, de maneira
semelhante à Chico Buarque, “serenamente” revela a desigualdade social brasileira e a
exploração do trabalho humano. A primeira estrofe inicia com:

“Era êle que erguia casas


Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Êle subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo,
Que a casa de um homem é um templo,
Um templo sem religião
(...)” (MORAES, 1959, p. 45)

Logo de início, Vinicius de Moraes apresenta seu personagem principal, um


operário brasileiro. Assim como Chico, ao utilizar as metáforas, escancara o sofrimento
da exploração do trabalho no verso “Como um pássaro sem asas”. Nesse verso, o poeta
discorre acerca da contradição dialética entre a aparente liberdade do operário,
comparada a um “pássaro”, e concomitantemente, e a submissão, “como um pássaro
sem asas”.
Adiante, nos versos seguintes, o personagem do poetinha vê-se em um empasse:
apesar da louvável habilidade de erguer casas e edifícios, o operário “tudo
desconhecia”. A partir daí, ele se depara com os dilemas de sua existência enquanto
indivíduo, envolto por suas emoções, e participante ativo de uma classe de trabalhadores
brasileiros.
Os quatro últimos versos da primeira estrofe revelam as ambiguidades inerentes
à vida humana na sociedade capitalista. Através da relação entre a liberdade e a
escravidão, remetendo-as à “casa”, Vinicius de Moraes revela as contradições inerentes
à exploração do trabalho:

“(...)Como tão pouco sabia


Que a casa que êle fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão (...).” (MORAES, 1959, p. 45)

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A seguir, na segunda estrofe, o poeta apresenta elementos da realidade dos
setores mais pauperizados da sociedade brasileira da década de 1950, através do jogo de
palavras entre “tijolo” e “pão”. Nesse momento, as desigualdades sociais demarcam as
distintas posições ocupadas por patrão e trabalhador; enquanto um lucra com a exaustão
diária do operário, o outro trabalha para garantir o acúmulo de riquezas do patrão:

“(...) De fato como podia


Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos êle empilhava
Com pá, cimento e esquadria;
Quanto ao pão, êle o comia.
Mas fosse comer tijolo...
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui,
Adiante um apartamento,
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria,
Não fosse eventualmente
Um operário em construção (...).”(MORAES, 1959, p. 46)

Desde o excerto acima, é possível perceber que o trabalho na sociedade


capitalista contemporânea, para além do sentido de desenvolvimento individual e
coletivo assume outras funções decorrentes dos interesses antagônicos compartilhados
pelos agrupamentos sociais. De acordo com Engels (1876, p. 8), à luz do marxismo
compreendem-se os antagonismos entre as classes sociais enquanto uma luta econômica
e política:

Os homens que nos séculos XVII e XVIII haviam trabalhado para


criar a máquina a vapor não suspeitavam de que estavam criando um
instrumento que, mais do que nenhum outro, haveria de subverter as
condições sociais em todo o mundo e que, sobretudo na Europa, ao
concentrar a riqueza nas mãos de uma minoria e ao privar de toda
propriedade a imensa maioria da população, haveria de proporcionar
primeiro o domínio social e político à burguesia, e provocar depois a
luta de classe entre a burguesia e o proletariado, luta que só pode
terminar com a liquidação da burguesia e a abolição de todos os
antagonismos de classe (...) (ENGELS, 1876, p.8)

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Segundo Engels (1876, p.8), há na sociedade fundada a partir da acumulação de
riquezas, origina amplos setores sociais desprivilegiados economicamente e que se
situam à margem das grandes cidades. Isso é relatado através dos jogos de palavras e
figuras de linguagem, em O operário em construção (1959), no qual o personagem
central da trama vivencia a ausência de direitos que asseguram a dignidade humana.

“(...) Mas êle desconhecia


Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
—• Garrafa, prato, facão —
Era êle quem os fazia (...).”(MORAES, 1959, p. 46)

Ainda, a começar pelo trecho anterior, o operário ao perceber as diferenças


sociais entre ele e seu patrão, e que as casas, os prédios, e todos os objetos são
produzidos por ele, e com isso, sua consciência de classe se amplia. Nesse sentido
percebe-se as distinções entre O operário em construção de Vinicius de Moraes e
Construção de Chico Buarque. Chico escancara as desigualdades de maneira mais sútil,
tendo como auxílio a melodia da canção para compor a atmosfera de tensão da história
do personagem. Já Vinicius de Moraes explora os aspectos inerentes à desigualdade
social de maneira mais profunda, marcando a poesia com diálogos, metáforas, jogos de
palavras, intertextualidade, etc.

“(...) Ah, homens de pensamento,


Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que êle mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão,
Sua rude mão de operário,
De operário em construção,

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E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela (...).”(MORAES, 1959, p. 47)

O trecho acima marca as descobertas do operário ao deparar-se com as


construções realizadas por ele. A partir disso “um mundo novo nascia”, um mundo de
constatações da força do trabalho desse indivíduo, e essas revelações lhe causam grande
emoção. E assim como crescem as construções, cresce agora o operário, fato já relatado
no título do texto. O operário em construção, além de exercer as funções na construção
de casas e edifícios, constrói também sua própria identidade, percebendo-se no mundo.

“(...) Foi dentro da compreensão


Desse instante solitário
Que, tal sua construção,
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo,
Em largo e no coração,
E como tudo o que cresce
Êle não cresceu em vão.
Pois além do que sabia
— Exercer a profissão —
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu


Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edifício em construção,
Que sempre dizia sim,
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:
Notou que sua marmita
Era o prato do patrão,
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão,
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão,
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão,
Que seus dois pés andarilhos

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Eram as rodas do patrão,
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão,
Que sua imensa fadiga
Era a amiga do patrão (...).”(MORAES, 1959, p. 47-48)

O operário passa a enxergar sua condição social sob a ótica da exaltação das suas
capacidades produtivas, dos seus talentos, e encontra na poesia a possibilidade de
exercer seus direitos e extravasar suas descobertas. Esse momento é compartilhado entre
ele e seus pares, os outros trabalhadores da construção. A partir da poesia o personagem
grita silenciosamente seu sofrimento, suas conquistas, e compreende aos poucos a
liberdade e a prisão de sua vida.
No verso, “E foi assim que o operário/ Do edifício em construção/ Que sempre
dizia sim/ Começa a dizer não”, o operário parte da atitude passiva para a ativa,
posicionando-se frente à exploração cotidiana. Antes dizia sim, e agora diz não. A partir
daí, novas descobertas impõem-se, como o distanciamento entre a “marmita” e o “prato
do patrão”, a “cerveja preta” e o “uísque”, o “macacão” e o “terno”, os “pés” e as
“rodas”, e a “dureza do seu dia” e “a noite do patrão”.

“(...) E o operário disse: não!


E o operário fêz-se forte
Na sua resolução.
Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação.
— Convençam-no do contrário,
Disse êle sobre o operário,
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário


Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado,
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido,
Teve seu braço quebrado,
Mas quando foi perguntado
O operário disse: não! (...).” (MORAES, 1959, p. 48-49)

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O trecho acima relata a repressão e os enfrentamentos entre os operários na
medida em que o personagem central assume uma atitude ativa frente à exploração de
seu trabalho. Em seguida, na oitava estrofe, Vinicius de Moraes utiliza o segmento
“Dia seguinte” para dar dinâmica aos acontecimentos e marcar com destaque as
agressões sofridas pelo operário, como o “braço quebrado” e o “rosto cuspido”.
A décima estrofe marca outro acontecimento importante: frente à irredutível
postura do operário, seu patrão utiliza outra tática, a de silenciar não pela violência, mas
pela extorsão. Vinicius de Moraes usa a intertextualidade, a partir de um trecho da bíblia
cristã, em que Jesus é confrontado pelo Diabo para que abandone seu criador, e em
troca receberia todas as riquezas do mundo. Esse momento é sinalizado pelo diálogo,
símbolo do enfrentamento entre explorado e explorador.

“(...) Sentindo que a violência


Não dobraria o operário,
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário;
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fêz-lhe esta declaração:
— Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser,
Dou-te tempo de lazer,
Dou-te tempo de mulher. ..
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.
Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia;
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos,
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: não!(...).” (MORAES, 1959, p. 49-50)

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Os próximos versos marcam o conflito psicológico do operário diante da
tentativa do patrão de suborna-lo. Em seguida a sequencia, “Um silêncio de martírios/
Um silêncio de prisão./ Um silêncio povoado/ De pedidos de perdão” materializa os
confrontos internos vivenciados pelo personagem na medida em que consolida sua
postura austera.

“(...) E um grande silêncio


fêz-se Dentro do seu coração.
Um silêncio de martírios,
Um silêncio de prisão,
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão,
Um silêncio apavorado
Como o medo em solidão,
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição (...).”(MORAES, 1959, p. 51)

O desfecho da poesia O operário em construção ilustra a “construção”


individual e coletiva do operário. Ele, tomado de razão, deixa de ser um “operário em
construção” e torna-se um “operário construído”. Isso marca as transformações no nível
da consciência, da identificação do indivíduo enquanto parte ativa da sociedade. O
operário enxerga-se no mundo e compreende a dinâmica liberdade/submissão que
permeou sua vida até aquele momento.
Assim, a partir da análise de Construção, de Chico Buarque, e O operário em
construção, de Vinicius de Moraes, vê-se a presença marcante e profunda dos aspectos
externos à poesia. Aspectos vivenciados cotidianamente na contemporaneidade que são
escancarados através da linguagem, tanto de Chico, quanto do poetinha. Ambos
apresentam a tensão da exaustão do trabalho, da exploração e da ausência de direitos.
Entretanto, os autores revelam as desigualdades vividas por seus personagens através da
utilização de recursos ora distintos, ora semelhantes. No caso de Chico Buarque, por
exemplo, nota-se o uso da conjunção, das metáforas, dos adjetivos e da repetição de
estruturas linguísticas para construir a noção de movimento aos acontecimentos. Já em
Vinicius de Moraes, faz-se presente, além das figuras de linguagem, a intertextualidade
e os confrontos marcados pelo diálogo entre o personagem e o patrão.

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REFERÊNCIAS

MORAES, de V. O Operário em construção. In: Novos Poemas II, Rio de Janeiro,


São José, 1959.

Chico Buarque. Construção. Construção. Phonagram/Philips, 1971.

ENGELS, F. O papel desempenhado pelo trabalho na transição do macaco ao


homem. In: MARX, K; ENGELS, F. Obras Escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega, s/d.
v.2, p.269-280.

CANDIDO, A., et al. Literatura e sociedade. 2000.

DE MENESES, Adélia Bezerra. Desenho mágico: poesia e política em Chico


Buarque. Ateliê editorial, 2000.

CANDIDO, A. A literatura brasileira em 1972. Revista Iberoamericana, v. 43, n. 98,


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SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa (A ficção brasileira modernista). Discurso, n.


10, p. 161-174, 1979.

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